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Dissertacao Pedro Trindadeseg
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PEDRO MORAES TRINDADE
DO LADO DE C DA KALUNGA:
OS AFRICANOS ANGOLAS EM SALVADOR - 1800-1864
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Histria Social da Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para
obteno do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Eugnio Lbano
Soares.
Salvador Bahia
2008
DO LAD0 DE CA DA KALUNGA: A PRESENCA DOS AFRICANOS ANGOLAS NA BAHIA - 1800-1864
DissertaG30 de Mestrado submetida ao Programa de P6s-Gradua~5o em Hist6ria Social da Universidade Federal da Bahia - UFBA, como parte dos requisitos necessirios A obtenqso do grau de Mestre em Hist6ria Social.
Aprovada por:
BANCA EXAMIIVADORA 0 Prof. Dr. Carl ugenio Libano Soares (Orientador) Prof. Dr. Renato da Silveira
P- Prof" Dra. Lucilene Reginald0
Salvador, 15 de setembro de 2008.
Para Cludia,
minha mulher, historiadora e co-orientadora competentssima.
Para os meus filhos e filhas,
quando tiverem dvidas quanto ao caminho a trilhar, sigam-me.
AGRADECIMENTOS
Esta Dissertao de Mestrado no teria sido possvel sem o envolvimento direto ou
indireto de muitas pessoas e instituies, s quais me cabe exprimir agradecimentos. Algumas
dessas pessoas tiveram uma participao singular pela preocupao que externavam em ver,
logo, passar estes dois anos da minha gravidez. Sim, foi um parto. E a est a criana forte e robusta graas, em primeiro lugar, aos meus pais, Alice Moraes Trindade e Crispim Trindade
in memoriam por terem, na linguagem deles, me mostrado um mundo onde sem luta no se
vence batalha.
Ao professor Carlos Eugnio Lbano Soares que, estrategicamente, disponibilizou-me
uma vara com anzol e tive que sair procura do peixe. Mas no me deixou sozinho quando
me viu lida com tubares cuja captura carecia de estratgias mais apuradas. Emprestou-me livros de sua biblioteca particular, e me atendeu a qualquer momento que o procurei.
Eugnio tem uma forma diferenciada de administrar conflitos, e sempre consegue chegar a
um denominador comum. Foi mais que um orientador. Foi um amigo.
O professor, e amigo, Joo Reis muito contribuiu cedendo-me fontes documentais e
indicando bibliografias, alm de estar sempre disposto a tirar as dvidas que me surgiram,
para as quais eu sabia que ele tinha respostas. Estudar a morte, a partir da sua obra, uma
festa.
Agradeo aos funcionrios dos arquivos e bibliotecas por onde passei. Foi de suma
importncia a ajuda da Professora Ventia Durando Braga Rios e de Renata Soraya Bahia de
Oliveira, do Laboratrio Eugnio Veiga, da UCSAL, por terem me disponibilizado fontes
documentais que sem elas este trabalho no teria acontecido a contento. Carlos Francisco da
Silva Jnior deu um grande auxlio trazendo-nos alguns angolas apresentados no primeiro
captulo. Com o seu faro aguado de pesquisador, muito nos ajudou na fase inicial da pesquisa
Agradecimentos tambm a Marina da Silva Santos da Biblioteca da FFCH/UFBA e a todos os
outros funcionrios.
O apoio da CAPES alicerou-me dando-me condies para atender s minhas
necessidades acadmicas, cujos gastos eu no suportaria sem to significante ajuda. Sou
muito grato.
Aos professores, colegas e funcionrios do Mestrado. s professoras Maria Hilda
Baqueiro Paraso, Lgia Bellini, Lina Maria Brando de Aras pelo tratamento respeitoso que
sempre me dispensaram. Meus agradecimentos. Ao professor Gino Negro, muito obrigado
pela lio. Aos funcionrios Soaria Ariane Ferreira e Jos Carlos Cavalcante Caldas Jnior,
que sempre me presentearam com as suas formas carinhosas de atender, muito obrigado.
Agradeo aos membros da linha de pesquisa Escravido e Inveno da Liberdade, do
Programa de Ps-Graduao em Histria da UFBA que muito contriburam com as
observaes que fizeram, referente ao segundo captulo desta dissertao. Foi, realmente,
enriquecedor. Da mesma forma os professores Walter Fraga Filho e Nicolau Pars quando no
momento da minha qualificao. Com o segundo, ainda tive o prazer de desfrutar dos seus
conhecimentos durante o estgio docente.
Aos professores Lucilene Reginaldo e Renato da Silveira eu no poderia ter deixado
de incomod-los, sabendo que os dois so profundos conhecedores do meu tema. Foram
sempre solcitos.
J que comparei essa dissertao ao nascimento de uma criana, Cludia foi a obstetra.
Acompanhou a gestao at o momento do corte do cordo umbilical. A tradio da palmada
para o primeiro choro, neste caso, quem levou foi o parturiente, vrias vezes, antes do nascimento do beb, paradoxalmente, para evitar um possvel aborto. Cludia esteve o tempo
todo contribuindo com a experincia adquirida no seu curso de Mestrado e acredito que, pela
primeira vez, um mestrando teve uma co-orientadora, vinte e quatro por dia ao seu lado,
literalmente, inclusive, dormindo na mesma cama.
Aos meus filhos, s agora tenho tempo para explicar o por que, s vezes, no pude dar
uma resposta completa para as suas perguntas. Para os adultos se torna mais fcil o
entendimento, mas para os mais novos cabe uma explicao. o caso de Olujimi, Naila e
Dalila: estou de volta e s ordens.
Aos meus alunos do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho que entenderam a minha
ausncia nas aulas, no permitindo que isso resultasse em alterao na nossa proposta de
trabalho, o que me d fora para retornar s atividades com mais vigor. Aos contramestres do
GCAP, especialmente a Jorge, muito obrigado. Por falar em GCAP, no poderia esquecer os
meus alunos de So Luiz de Paraitinga, em So Paulo, na pessoa de David, o qual esteve
sempre a postos quando precisei de alguma fonte bibliogrfica, s disponvel em uma das
Universidades paulistas. Helen Catalina, foi a minha salvao quando eu descobria que tinha
chegado o meu limite quanto ao conhecimento da lngua inglesa. Nunca colocou obstculo.
A Hugo Nascimento da Silva, Tambalaj, in memorian, eterna saudade.
Vrios amigos me ajudaram de alguma forma, mas quatro deles tiveram participao
especial durante a minha luta para concretizao desse trabalho Luiz Leal, meu irmo, tem um
lugar especial em meu corao; Mr. Robert Cooper, my afro-american dad; o Mestre Jair
Moura e o Jos Augusto Leal. Esses amigos estiveram, o tempo todo, na platia, sempre
preparados para preencher espaos que significassem ameaa ao meu sucesso. Que Ogum e
seus auxiliares lhes protejam de todo mal.
Para finalizar, agradeo ao Alapini Deoscoredes Maximiano dos Santos, Mestre Didi,
pelo carinho, confiana e por compreender a minha necessidade de estar, durante esse
perodo, fisicamente distante do Il Asip, mas sempre presente espiritualmente. Que Bab
Abikunan d muitos anos de vida e sade a todos dessa casa.
RESUMO
Esta dissertao tem o objetivo de estudar a presena e a movimentao dos africanos do
grupo banto, de nao angola, no sculo XIX, na cidade de salvador no perodo de 1800 a
1864. Discutimos os rituais de sepultamento de africanos angolas atravs dos registros de
bitos, alem de fazermos um estudo demogrfico referente a essa nao nas freguesias da S,
Conceio da Praia e Santo Antnio Alm do Carmo. Buscamos tambm, atravs dos
anncios de jornal, fazer um levantamento das fugas. Alm de interpretar as estratgias de
resistncia e as imagens identitrias desses africanos na viso senhorial. Finalmente destaco a
trajetria dos africanos livres, de nao angola traficados aps o ano de 1831, o que era
proibido por lei.
Palavras-chave: frica-Central, Nao Angola, Resistncia, Escravido - Bahia Histria Sculo XIX.
ABSTRACT
The aim of this thesis is to study the presence and movement of Africans from the Bantu
group, of the Angola nation, from the 19th
century, in the city of Salvador, during the period
from 1800 to 1864. I discuss the burial rituals of Angolan Africans through death records as
well as doing a demographic study referring to this nation in the parishes of S, Conceio da
Praia and Santo Antnio Alm do Carmo. Also, using newspaper announcements we did a
survey of escapes. Moreover, I interpet the resistance strategies and the images with which
the masters identified these Africans.. Finally, I highlight the trajectory of Africans liberated
from the Angola nation that were trafficked after the year 1831, which was prohibited by law.
Keywords: Central-frica, Angola Nation, Resistence, slavery, Bahia History, 19th Century.
SUMRIO
Introduo ..................................................................................................................... 10
Captulo 1.
Alm da morte: padres de enterro de africanos Angolas na cidade de
Salvador, 1800-1850 ..................................................................................................... 20
Captulo 2.
No caminho da liberdade: os Angolas na imprensa e nas fontes policiais da
Cidade da Salvador da primeira metade do sculo XIX ........................................... 47
Captulo 3.
Os derradeiros malungos: africanos livres da nao Angola na Bahia
1851-1864 ....................................................................................................................... 72
EPLOGO ..................................................................................................................... 97
FONTES E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................... 99
TABELAS E ILUSTRAO
Tabelas.
1. Africanos por nao em termos de bitos das Freguesias da Conceio da Praia, Santo
Antnio Alm do Carmo e S, 1800-1850 ..................................................................... 22
2. Freguesias de enterro de africanos de nao Angola em Salvador, 1800-1850 ......... 24
3. Causa da morte dos africanos de nao Angola das Freguesias da S, Santo
Antnio Alm do Carmo e Conceio da Praia, 1800-1850 .......................................... 25
4. Vestes do enterro de africanos Angolas na cidade de Salvador, 1800-1850 .............. 34
5. Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da
Freguesia de Santo Antnio Alm do Carmo, 1800-1850.............................................. 35
6. Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia
da S, 1800-1850 ............................................................................................................ 36
7. Local de sepultamento de Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da
Conceio da Praia, 1800-1850 ...................................................................................... 37
8. Sepultamento nas irmandades das Freguesias da S, Conceio da Praia e
Santo Antnio Alm do Carmo, 1800-1850 ................................................................... 38
9. Naes dos africanos livres 1851-1864 .................................................................. 73 10. Data de apreenso dos africanos livres .................................................................... 74
11. Nao e comportamento dos africanos livres .......................................................... 77
12. Faixa etria dos africanos livres ............................................................................... 86 13. Local de trabalho dos africanos livres Angolas ................................................................... 87
Ilustrao.
1. Barbeiros ambulantes. Jean Baptiste Debret .............................................................. 56
2. Negro trabalhando com palha. Joo Goston, Bahia, c. 1870, acervo IMS
(Instituto Moreira Sales). Publicado Ermakoff, G. O negro na fotografia brasileira
do sculo XIX. 2004 ....................................................................................................... 82
10
INTRODUO
Lembro-me quando, no incio da dcada de 1980, fiz parte de uma delegao baiana
que foi enviada pela Prefeitura Municipal de Salvador a Angola com o objetivo de discutir,
junto administrao da cidade de Luanda, uma parceria que teria incio com a inaugurao
de um espao cultural em cada cidade: a Casa de Angola em Salvador, e a Casa de Salvador
em Angola. Fui selecionado para compor a delegao enquanto mestre de capoeira Angola,
uma manifestao reconhecidamente de matriz afro-centro-ocidental.1
A diferena de quatro horas de fuso horrio e a ansiedade de ver concretizado o
projeto que me levou quele pas, tirava as minhas horas de sono, do que eu aproveitava para
ficar, j naquele momento, ao meu modo, dialogando com a outra margem do Atlntico
negro, conversando com um soldado da fora revolucionria, FAPLA, de planto na entrada
do hotel onde estvamos hospedados, em Luanda, bem em frente a um dos portos onde eram
embarcados os africanos ocidentais em direo s Amricas.2 Logo estabelecemos laos
identitrios quando lhe disse que, alm de brasileiro, ensinava Capoeira Angola uma das
vrias manifestaes ainda vivas no Brasil, conforme o baiano Manuel Querino, com fortes
representaes simblicas das culturas centro africanas.3 E o soldado comeou o seu relato
repleto de herosmo e altas doses de ufanismo quanto aos feitos dos seus compatriotas na luta
por independncia contra o jugo portugus que teve incio nos primrdios do sculo XV.
Fiquei confuso quando tentei associar toda exposio do soldado ao que a
historiografia da escravido no Brasil, anterior dcada de 1980, insistia em identificar os
africanos escravizados, chegados daquelas cercanias, com uma certa tendncia a acomodao
diante do cativeiro. Duas dcadas aps, em 2004, o professor Carlos Eugnio Lbano Soares
migra do Rio de Janeiro para Salvador, para compor o quadro docente do departamento de
Ps Graduao em Histria da Universidade Federal da Bahia, UFBA, aps presentear a
capoeira e seus adeptos, praticantes e/ou pesquisadores, com a excelente obra A Negregada
1 Sobre o carter Centro-africano da capoeira, ver Obi Desh J. T, Combat and the Crossing of the Kalunga, in
Linda M. Heywood (org) Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. (Cambridge
University Press, 2002); Robert Farris Thompson, Black martial arts of the Caribbean, Review: Latin American Literature and Arts,( n 37, jan-jun, 1987), pp. 44-47; Carlos Eugnio Lbano Soares, A Capoeira
Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro, 1808-1850, Campinas, Unicamp, 2003; Edson Carneiro,
Religies Negras. Negros Bantos. Civilizao Brasileira, 3 Edio, 1991. pp. 211-220, entre outros. 2 A FAPLA (Foras Armadas Populares de Angola) foi um grupo guerrilheiro criado em 1 de agosto de 1974,
quando da realizao da 3 reunio plenria do MPLA. Extinta aps a guerra de libertao, e substituda pela
FAA (Foras Armadas Angolanas). 3Manuel Querino, A raa africana e os seus costumes na Bahia, Salvador, Theatro XVIII/P555, 2006, p.27.
11
Instituio, que trata da presena dos capoeiras na Corte Imperial do Rio de Janeiro no
perodo entre 1850 e 1890 e, em seguida, A Capoeira Escrava que discorre, mais uma vez,
sobre a ao dos capoeiras no Rio de Janeiro da primeira metade do sculo XIX.4
A leitura dessas obras estimulou em mim a curiosidade em querer saber o porqu das
contradies entre a viso do soldado das FAPLA e as idias que eu tinha do africano Angola
na dispora. A obra A capoeira escrava, por exemplo, foi a que mais aguou a minha
curiosidade em querer desvendar esse mistrio, devido forma apimentada como o professor
apresenta os africanos, a maioria provindos da frica Centro-Ocidental, na relao com uma
sociedade, conforme o autor, em constante preocupao para que a Corte no viesse a ser
palco de acontecimentos semelhantes aos que viveu a provncia da Bahia em 1835, o que se
acentuou com a chegada ao Rio dos chamados minas- nags chegados daquela regio. 5
Tambm o longo tempo de prtica, ensino e pesquisa da capoeira, interpretando-a
sempre como uma manifestao holstica e atrelada aos elementos da cosmogonia banto, a
convivncia em ambientes onde alguma manifestao de matriz centro-africana como o
candombl de Angola, e o samba levou-me a decidir por pesquisar a participao dos
africanos de nao Angola na formao da sociedade afro-baiana, atravs do Curso de Ps
Graduao em Histria Social da UFBA, para o qu tive o estmulo do professor Carlos
Eugnio. No por acaso, o escolhi para mostrar-me os caminhos que me levassem ao meu
objetivo.
A historiografia da escravido na Bahia tem enfatizado a presena dos africanos
ocidentais, como nos informam vrios trabalhos sobre o tema. Entre eles, a obra de Joo Reis
a que esmia toda a saga dos africanos muulmanos, conhecidos na Bahia como mals,
cuja revolta aconteceu no meado do sculo XIX (1835).6 Nas ltimas dcadas, alguns
historiadores tm se debruado sobre a presena dos africanos, oriundos da frica sub-
equatorial, com nfase para a nao Angola.7 Dentre as vrias naes africanas identificadas
4 Carlos Eugnio Lbano Soares, A negregada instituio: os capoeiras na corte imperial 1850-1890, Rio de
Janeiro, Access, 1999; Soares, A capoeira escrava. 5 Para saber mais, ver Joo Jos Reis Rebelio Escrava no Brasil. A histria do levante dos mals em 1835
So Paulo: Companhia das Letras, 2003. 6Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835, Edio Revista e
Ampliada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. Para outros trabalhos sobre a populao africana ocidental
na Bahia ver, Luis Nicolau Pars, A Formao do candombl: histria e ritual da nao jeje na Bahia,
Campinas, SP, Editora Unicamp, 2006; Pierre Verger, Fluxo e refluxo do trfico de escravos entre o Golfo do
Benin e a Bahia de Todos os Santos, So Paulo: Corrupio, 1987; Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil,
Braslia: Editora UNB, 2004, entre outros. 7 Ver, por exemplo, Lucilene Reginaldo, O Rosrio dos Angolas: irmandades negras, experincias escravas e
identidades africanas na Bahia setecentista, (Tese de doutorado em Histria Social, Universidade Estadual de Campinas, 2005); para o Rio de Janeiro, ver Soares, A capoeira escrava; Luis Felipe de Alencastro, O Trato dos
Viventes, formao do Brasil no Atlntico Sul, So Paulo, Companhia das Letras, 2000, entre outras.
12
nas Amricas, especificamente no Brasil, o grupo conhecido como Angola merece destaque
pela vastido da sua distribuio geogrfica no continente americano, e sua alta presena
numrica, alm das caractersticas que os tornam singulares, apesar dos vrios marcadores
identitrios tnicos oriundos da frica que os faziam diferentes entre si. Vrios estudiosos das
culturas africanas observaram que os africanos centro-ocidentais, independente da
diversidade, esto profundamente ligados cultural, lingstica e historicamente. Eles h mais
de dois mil anos, compartilham uma origem comum.8
Cabe aqui um parntese para a explicao do termo nao da forma como era usado
pelos traficantes de escravos. A nao dos africanos escravizados estava muitas vezes
relacionada ao porto onde os africanos fossem embarcados. Outras vezes estes nomes eram
ligados a etnnimos de grupos tnicos africanos restritos ou de regies internas, como
Cassange, a grande feira de venda de escravos do norte de Angola.9 Ao receberem o batismo
na frica ou na Amrica, pouco aps chegarem aqui recebiam etnnimos genricos que
muitas vezes no os identificava com nenhuma rea do interior de procedncia geogrfica ou
regional mais especfica. Na dispora os traficantes no tinham nenhuma preocupao quanto
s diferenas que caracterizavam cada etnia componente das diversas naes. Especificamente
quanto ao termo Angola, era aplicado indistintamente a todos aqueles embarcados no porto
de Luanda. Mas como chegamos a esta concluso? Quais autores nos levaram para este
caminho?
Nina Rodrigues, mdico fundador da antropologia criminal brasileira, foi o primeiro a
se preocupar com a problemtica dos africanos de nao Angola na Bahia, sem entrar no
mrito quanto sua viso preconceituosa, o que seria puro anacronismo. 10
Quando o fizemos
foi unicamente para enfatizar o porque da minha inquietao em querer reconhecer o lugar
dos Angolas na formao da nossa sociedade. Nina, por exemplo, fez eco s palavras de
Silvio Romero quando este afirma que os africanos oriundos da frica Central So gentes
ainda no perodo do fetichismo, brutais, submissos, robustos, os mais prprios para os rduos
8 Joseph C. Miller, Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade 1730-1830, Madison,
University of Wisconsin Press, 1988; Carlos Vogt e Peter Fry, A frica no Brasil: Cafund, Campinas, So
Paulo, Editora da Unicamp, 1996; Mary C. Karasch, Central Africans in Central Brazil, 1780-1835 in Heywood, (org.) Central Africans And Cultural Transformations In The American Diaspora, pp. 117-151, entre
outros. 9 o caso dos Nags, nome derivado dos Anagono, um dos grupos falantes de lnguas yoruba traficados
inicialmente na primeira metade do sculo XVIII pelos daomeanos para a Bahia. Ver Nicolau Pars, A nagoizao do candombl baiano in Ligia Belini, Everton Sales Souza e Gabriela Sampaio, Formas de crer: ensaios de histria religiosa do mundo afro-brasileiro, sculos XIV-XXI, Salvador, Edufba/Corrupio, 2006, pp.
299-329. 10
Rodrigues, Os africanos no Brasil.
13
trabalhos da nossa lavoura rudimentar.11 Apesar de Nina s ter encontrado, nos seus estudos
sobre os africanos na Salvador da virada do sculo XX uns trs congos e alguns Angolas,
no deixou de ver os negros da frica Central como parte importante da composio tnica do
povo brasileiro.
Seguindo os passos de Nina Rodrigues, mas preocupado em chamar a ateno para a
presena dos Angolas na formao da sociedade baiana, Manuel Querino, na virada do sculo
XIX para o XX, comenta a vida cultural e o legado dos africanos na Bahia, dando nfase aos
Angolas. Um dos seus legados era a capoeira Angola, forma de luta e folguedo sempre
presente nas festas de largo do incio do sculo XX.12
So estes os primeiros estudiosos a
localizar a presena dos Angolas na Bahia, confirmados por Jos Ramos Tinhoro quando
este nos informa das vrias manifestaes de matriz banto como os batuques e calundus, alm
de instrumentos musicais, como o berimbau, que at hoje encontramos em manifestaes
reconhecidamente de origem centro-ocidental.13
No meado do sculo XX, Edison Carneiro retoma o fio da meada com a publicao de
Negros Bantos, em cuja obra contesta o pouco caso de Nina Rodrigues quanto quantidade
de Angolas na Bahia. Apesar de Carneiro seguir Nina Rodrigues questionando a inteligncia e
cultura Angolas ele mencionou que os negros bantos no so assim para desprezar quanto ao
problema do negro na Bahia. Provam-no as festas populares do boi, identificadas por Artur
Ramos, como de influncia banta [...].14
Outro autor da poca que se ocupou dos Angolas foi Luis Vianna Filho, que destacou
a superioridade numrica deste grupo tnico nas importaes negreiras durante o sculo XVII,
denominada por ele de Ciclo de Angola.15 Este autor, mesmo deixando transparecer
apimentadas idias preconceituosas com relao aos Angolas, no deixou de observar toda
influncia das culturas bantos na formao da sociedade baiana apontando, como exemplo,
manifestaes de razes afro centrais como a congada, a capoeira, o culto a So Benedito e
Nossa Senhora do Rosrio. 16
Gilberto Freyre, em Recife, quando se preocupou com os Angolas, o fez mostrando a
importncia de se estudar os anncios de fugas de escravos como fonte preciosa da histria do
11
Silvio Romero apud, Ibid, p.34. 12
Manuel Querino, Costumes africanos no Brasil, Recife, Ed. Massangano, 1988, p. 43. 13
Jos Ramos Tinhoro, Os sons dos negros no Brasil, So Paulo: Art Editora, 1988 (1928), p.26. 14
Carneiro, Religies Negras. Negros bantos, p 29. 15
Luis Vianna Filho, O negro na Bahia, So Paulo, Livraria Jos Olmpio Editora, 1946, p.48. 16
Ibid., pp.56-57.
14
regime escravista e de suas vtimas africanas e afro descendentes, o que acredito vlido,
tambm, para a histria da Bahia.17
Nas ltimas dcadas, antroplogos e historiadores tm se voltado para a necessidade
de estudar a cultura Angola nas disporas, no podendo a Bahia ficar de fora desse interesse.
Todos estes estudiosos, norte-americanos em sua maioria, so concordes em afirmar o peso
considervel dos africanos de lnguas banto, na formao da moderna cultura afro-
americana.18
Para o Brasil, cabe-nos destacar Mary Karasch e Robert Slenes. A primeira escreveu
um trabalho clssico sobre escravido no Rio de Janeiro que mostra o largo predomnio dos
africanos centro-ocidentais na escravatura carioca.19
Mas o artigo de Robert Slenes que nos
mostra como os bantos construram uma identidade prpria em uma determinada regio do
sudeste brasileiro: o Vale do Paraba.20
Este processo pode tambm ter ocorrido na Bahia,
carecendo, unicamente, de investigao mais aprofundada. O artigo de Slenes um bom
argumento da forma possvel da organizao de uma identidade Angola na Bahia oitocentista.
Peter Fry e Carlos Vogt, num trabalho singular nos reporta ao que caracteriza a estreita
identidade entre os centro ocidentais a similaridade lingstica apresentando-nos uma
comunidade no sudeste brasileiro (Cafund em Sorocaba-SP) onde, at hoje, tm sido
preservados elementos lingsticos remanescentes da experincia do trfico negreiro.21
Os estudos sobre escravido, de Joo Reis sero tambm importantes para analisar as
relaes das vrias naes africanas, incluindo-se a os Angolas, durante o processo de
organizao de vrias revoltas. Reis, inclusive, critica os [...] historiadores e antroplogos
adeptos de evolucionismos de diversas espcies dando o exemplo de Palmares como prova
da aleivosia daqueles que acreditam ser os africanos da frica Central submissos e cordiais. 22
Os estudos de Maria Ins Oliveira nos ensinam como as identidades de Nao entre
africanos foram inventadas dentro da escravido na Amrica, no trazidas intactas da frica.
A autora enfatiza a movimentao dos africanos dentro da comunidade dos parentes de
naes e tambm em situaes de oposio com outros grupos e com a sociedade dominante.
17
Gilberto Freyre, Os escravos nos anncios de jornais, Recife Ed. Massangano, 1988. 18
Uma excelente coletnea destes estudiosos de lngua inglesa est em Heywood (org.) Central Africans And Cultural Transformations In The American Diaspora. Um trabalho importante sobre a cultura afro-americana
Sidney Mintz e Richard Price, O nascimento da cultura afro-americana, Rio de Janeiro, Pallas, 2001. 19
Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808 1850, So Paulo, Companhia das Letras, 2000. 20
Robert Slenes Malungu NGoma Vem: frica encoberta e descoberta no Brasil, Luanda, Cadernos do Museu de Escravatura, 1995. 21
Vogt e Fry, A frica. 22
Reis. Rebelio escrava, p. 330
15
Conforme a autora, os africanos procuravam viver entre os seus a integrarem-se na
sociedade baiana [...].23 Alm de Maria Ins, outros estudiosos das relaes inter -tnicas na
Bahia abordam a questo a partir de diferentes contextos. Essas variadas abordagens so
cuidadosamente analisadas por ns e aplicadas no auxlio das interpretaes da
movimentao dos Angolas na cidade de Salvador em busca da liberdade. Nicolau Pars, por
exemplo, apontou as posies de assimilao e resistncia entre os africanos. Pars citou
tendncias de abrasileiramento dos Jejes no sculo XVIII e XIX:
[...] Dentro desse grupo tnico [jejes] existia a tendncia ao abrasileiramento, isto , indivduos que se ajustavam e tratavam de adotar aos novos costumes dominados pelos
valores de uma elite branca e a tendncia contrria de africanizao, mantida por aqueles indivduos que visavam manter e reproduzir, na medida do possvel, as prticas
e costumes da sua terra de origem.24
Como exemplo desse abrasileiramento o autor citou pessoas que adotaram o
catolicismo como religio. Segundo ele, essas assimilaes podiam variar de acordo com o
contexto poltico e as possibilidades de mobilidade e ascenso social.25 Porm importante
compreender que essa suposta assimilao est em constante relao com uma posio de
resistncia diante da sociedade branca. Em cada caso o contexto poltico precisa ser analisado
com cuidado, pois foi este elemento que nos deu instrumentos para entendermos a dinmica
social da populao africana em questo. No que concerne religiosidade de origem centro
ocidental pudemos observar as vrias estratgias usadas por estes africanos com o objetivo de
preservarem as suas relaes sociais neste lado do atlntico.
Em artigo recente Joseph Miller, ao estudar o incio do trfico escravo na frica
Centro Ocidental, no sculo XV, trata de maneira particularmente feliz da construo da
identidade de nao Congo em contraposio s identidades tnicas locais. Suas palavras
podem ser perfeitamente utilizadas para entender aquilo que chamamos a formao da nao
Angola:
Os centro-africanos teriam descoberto novas identidades sociais alm dessas locais, j
mltiplas, que se formaram ao longo de seu caminho de sofrimento em direo costa.
Acorrentados a outros de origem culturais lingsticas no familiares, eles devem ter
obtido um senso de familiaridade uns com os outros e criado alianas neste processo, que os europeus denominavam simplesmente de congo. Eles teriam ampliado essas caractersticas como base para a colaborao, por pura sobrevivncia, enquanto
permaneciam aprisionados perto da costa, juntamente com muitos outros, aguardando a
23
Maria Ins Corts de Oliveira. Viver e Morrer no meio dos seus. Revista USP, n28 (USP, dez/janfev, 1995-1996), PP174-193; Quem eram os negros da Guin?, Afro-Asia , 19-20(1997), p.193 24
Pars, A Formao do Candombl, p.93-94 25
Ibid., p.95
16
transferncia para os navios. Invenes europias e africanas totalmente separadas,
baseadas em aspectos diferentes do mesmo fundamento cultural, convergiram deste modo
para estimular comunidades tnicas como resultado das confrontaes desumanizadoras da escravido. As experincias subseqentes de confinamento durante a
Passagem do Meio (travessia do Atlntico) e as circunstncias especficas que
encontraram nas Amricas criaram incentivos para mudana [...] O significado de ser
congo na dispora mudou, concomitantemente, por intermdio das vidas individuais, de grupo em grupo, medida que aportavam e nas circunstncias variadas que
encontraram nas Amricas [...]. 26
Dentre os processos de formao das identidades tnicas africanas, sem dvida que as
irmandades religiosas representaram uma complexa teia de negociao e conflito. Os registros
de bitos da nossa pesquisa revelaram que determinadas irmandades negras como a do
Rosrio dos Pretos de Joo Pereira e a de So Benedito, instalada na Igreja de So Francisco
foram os locais procurados com freqncia para sepultamento dos Angolas, alm da
conhecida irmandade do Rosrio das Portas do Carmo. Nesta etapa, a excelente obra de
Lucilene Reginaldo foi de fundamental importncia por nos remeter a organizaes ligadas
realidade econmica e scio-poltica do escravismo no perodo colonial fundamentais para os
africanos da nao Angola, isto em moldes bastante parecidos com as organizaes da
atualidade; tendo como foco, a possvel aglutinao das diversas etnias africanas com o
objetivo de se organizarem e, posteriormente, planejarem aes em favor de direitos que s
seriam conseguidos atravs de uma organizao social paralela s da classe socialmente
dominante. Nos registros de bitos, detectamos diferentes rituais de sepultamento entre os
Angolas, o que demonstra que eles forjaram diferentes identidades sociais. Para a
interpretao desta questo, ser fundamental a mais importante obra que trata dos ritos
fnebres em Salvador no sculo XIX, de autoria de Joo Reis, cujo trabalho nos chama a
ateno para o significado das vestes fnebres, fosse para proteger o defunto na viagem de
encontro aos seus ancestrais ou para indicar, como j afirmamos, a sua posio social. Como
disse nosso autor, a documentao dos sepultos na Bahia oitocentista aponta um variado
guarda roupa fnebre, que inclua as diversas mortalhas de santo, fardas, batinas sacerdotais e
at roupas comuns.27
As abordagens tericas tiveram como suporte a leitura de obras de autores que
teorizam as interaes socioculturais. Para a Histria Social, recorri ajuda de E. P.
Thompson quando quis discutir os problemas de ordem cultural que a sociedade dominante
26
Joseph Miller. A frica Central durante a era do comrcio de escravizados, de 1490 1850 in Heywood Dispora negra no Brasil, p .53. 27
Joo Jos Reis, A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no sculo XIX, So Paulo: Companhia
das Letras, 2004, pp.104-115
17
no nosso caso a sociedade escravagista criava ao impedir que os pobres pudessem dar
continuidade a suas prticas culturais, que, em funo do longo tempo, j configuravam uma
espcie de lei costumeira. Acredita o autor que a lgica da sociedade passa a valer quando
alguma lei criada e esta assimilada pelos costumes sociais, no alterando-os, com pequeno
impacto para a comunidade.28
Vali-me da Antropologia para o entendimento de conceitos s melhor dissecados por
essa vertente cientfica. Foi de suma importncia, por exemplo, o trabalho de Roque Laraia
para o entendimento das vrias formas de determinismos dos quais foram vtimas os africanos
nas Amricas, principalmente os Angolas. No contexto da sociedade escravista da Bahia, do
sculo XIX, quando da preferncia dos senhores por africanos de outras naes para
determinadas tarefas, principalmente no ambiente urbano, em detrimento daqueles
denominados Angola, apresentando como justificativa para tal escolha a falta de capacidade
daqueles indivduos de origem centro-africanas.29
Conforme, ainda, o mesmo autor, no
possvel admitir a idia do determinismo geogrfico, ou seja, a admisso da ao mecnica
das foras naturais sobre uma humanidade puramente receptiva.30 Afirma profeticamente
Artur Ramos que No podemos erguer categorias de superioridades e inferioridades de um
povo em relao a outro. O que se considera uma aquisio cultural de grande vantagem para
uns, pode representar grandes inconvenientes para outros [...].31
Esta dissertao tem o objetivo de estudar a presena e a movimentao dos africanos
de nao Angola na cidade de Salvador no perodo de 1800 a 1864. A obra est dividida em
trs captulos. O primeiro, intitulado Alm da morte: padres de enterro de africanos
Angolas na cidade de Salvador, 1800-1850, traz um estudo da demografia da populao
africana em trs freguesias centrais da cidade de Salvador - S, Conceio da Praia e Santo
Antnio Alm do Carmo - a partir dos Livros de Registros de bitos da Cria Metropolitana
do Salvador. Neste estudo fazemos uma anlise quantitativa e qualitativa dos africanos
Angolas a partir da riqueza dessa documentao eclesistica. Encontramos nesta fonte ricas
variveis como nome, nao, condio jurdica, estado conjugal, idade, nome do proprietrio
quando escravo, local do sepultamento, as vestes com que foi sepultado o defunto, alm do
sqito que o acompanhou at a sua ltima morada. Estas informaes nos conduziram a
28 E.P Thompson, Senhores e caadores, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, pp. 352-353. 29
Roque de Barros Laraia, Cultura: um conceito antropolgico, Jorge Zahar Editor, 19 Edio, 2006, p.24. 30
Ibid. 31
Artur Ramos, Guerra e relaes de raa, Departamento Editorial da Unio Nacional dos Estudantes, Rio de
Janeiro, 1943, p.23.
18
importantes aspectos culturais e identitrios dessa populao ainda timidamente estudada pela
historiografia baiana.
No segundo captulo No caminho da liberdade: os angolas na imprensa e nas fontes
policiais da cidade de Salvador da primeira metade do sculo XIX, priorizamos estudar outra
dimenso dos Angolas em Salvador, atravs dos anncios de escravos publicados em jornais
da Bahia de onde foi possvel interpretar as estratgias de resistncia e as imagens identitrias
que estes africanos carregavam na viso senhorial. Tambm procuramos rastrear os Angolas
na documentao policial e das cadeias, bem como na correspondncia da presidncia da
provncia, o que resultou em fragmentos de histrias desses Angolas frente represso
policial e senhorial.
No ltimo captulo Os derradeiros malungos: africanos livres da nao Angola na
Bahia 1851-1864, fazemos uma abordagem sobre os africanos livres apreendidos na Bahia
no perodo de 1851 a 1864, destacando aqueles de nao Angola. Acompanhamos a trajetria
de alguns africanos livres de nao Angola nas diversas instituies pblicas de Salvador,
onde eram forados a trabalhar para o governo da provncia. Quando, tambm, so discutidas
variveis como faixa etria, comportamento, etnia, local de trabalho, datas de apreenso e
concesso. Por fim fao uma anlise das fugas e peties desses africanos livres s
autoridades, cujos documentos objetivavam reivindicarem respeito s leis que lhes concediam
direitos.
Assim, estes captulos buscam abrir caminho em um tema ainda pouco trabalhado pela
historiografia baiana: o mistrio dos Angolas na cidade de Salvador durante o sculo XIX.
19
20
Captulo 1 - Alm da morte: padres de enterro de africanos Angolas na
cidade de Salvador, 1800-1850.
Pelos smbolos delimitam-se as fronteiras de uma
comunidade. Ante os smbolos, os homens se dividem:
aparecem cheios de sentido para uns, enquanto que para
outros permanecem indecifrveis. Assim o capital simblico,
que define cada sociedade, revela-se nos comportamentos
marcados tpicos, distinguindo-os dos estranhos.32
Para diferentes sociedades existem vrios mitos explicando a origem da morte. E no
seria diferente para os africanos, em funo das suas diversidades culturais. Para cada uma
das etnias africanas da era do trfico atlntico, uma narrativa diferente contada para
justificar o fim do ciclo vital. Inclusive, na maioria das vezes, os extremos, vida e morte, so
adotados como duas vidas. A morte pode ser vista como uma falha das foras positivas e a
desintegrao do muntu, no caso dos africanos centrais, nas suas partes constituintes. Para os
africanos em geral morrer significa reencontrar-se com os seus ancestrais, uma passagem para
um novo palco da vida. Para os falantes de lnguas bantos, algumas especificidades so
observadas na relao destes com a morte.
Tomando os bacongos como exemplo, Margaret Creel observa que, para estas
sociedades, dotadas de um dos mais elaborados conceitos de vida e morte, morrer no o
fim da vida, nem o cemitrio, o ltimo lugar de descanso.33 A kalunga - o mar o reino
da morte. a intercesso entre o princpio e o fim. Portanto, segundo Slenes, atravessar a
kalunga poderia significar o viver ou renascer da morte, a depender do sentido vetorial da
viagem.34 Da no nos deixar dvidas qual o sentimento que os africanos, em especial os
centro-africanos, tinham ao terem que, forosamente, atravessar o atlntico em direo s
Amricas.
Sendo os Angolas uma das maiores naes da frica Centro Ocidental nas Amricas,
no deixariam estes de transportar para a dispora costumes tnicos que caracterizavam as
suas diferenas diante das outras culturas da frica, principalmente no que concerne vida
alm-tmulo. Joo Reis destaca que entre os angolanos, os espritos ancestrais chegavam
32
Raul Ruiz de Ass Altuna, A cultura tradicional banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral,
1985, p.88 33
Margaret Washington Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death, in Joseph E. Holloway (org), Africanism in American Culture, (Bloomington Indianapolis, Indiana University, 1990), p.82. 34
Slenes, Malungo Ngoma vem!, p.10.
21
mesmo a influir mais no dia a - dia do que as prprias divindades. 35 Apesar desta
evidncia apresentada por Reis, no nos deparamos com uma produo bibliogrfica
brasileira que nos orientasse para a existncia, tambm, de uma cosmogonia banto36
. at
possvel observarmos, em alguns trabalhos que se propem a tratar do tema, de forma
genrica, a preocupao, sempre, em colocar em evidncia uma hegemonia da frica
Ocidental, at mesmo no trato com os mistrios da morte, afirmando serem os nags, dentre
os diversos grupos tnicos africanos, dos mais cnscios de sua identidade cultural [...].37
Creel faz afirmao semelhante referindo-se aos bakongos, quando diz que o povo bakongo
tinha o mais elaborado e complexo sistema de crenas ps-mortem, e estas crenas eram o
centro de suas tradies religiosas.38 No dando crdito a esse silncio, fomos em busca de
documentos que nos orientassem para a maneira como os Angolas se organizavam em
Salvador, para o momento em que teriam de ir ao encontro dos seus ancestrais.
Como estratgia, analisamos os livros de registros de bitos das freguesias da
Conceio da Praia, Santo Antnio Alm do Carmo e da S, no perodo de 1800 a 1850,
levando-se em considerao que o processo de deteriorizao nos impediu que tivssemos
acesso a alguns livros da freguesia da Conceio da Praia.39
Esses registros de bitos nos
contemplam a data do bito, o que o ocasionou, nome, nao, condio jurdica, estado
conjugal, idade, nome do proprietrio quando escravo, local do sepultamento, as vestes
com que foi sepultado o defunto, alm do sqito que o acompanhou at sua ltima morada.
So informaes que nos permitem uma garimpagem dos elementos que sugerem a presena
de mais um dos aspectos da cultura Angola na sociedade baiana. Enquanto valor informativo,
nenhuma destas variveis se sobrepe s outras j que atravs do cruzamento destas
informaes que acreditamos chegar ao nosso objetivo. Essa documentao possibilita-nos
tambm fazer uma interpretao dos elementos que marcam as singularidades nas relaes
identitrias. Principalmente no que concerne nao em estudo. Somos cnscios de que
alguns destes documentos omitem informaes que seriam de extrema importncia para a
comparao com as outras variveis.
35
Reis, A morte uma festa, p.90. 36
Ver artigo de John Thornton, Religio e vida cerimonial no Congo e reas Umbundo de 1500 a 1700 in Linda M. Heywood, Dispora negra no Brasil, (So Paulo, Contexto, 2008), pp. 81-100. 37
Maria Ins Crtes de Oliveira, O Liberto: o seu mundo e os outros, Salvador, 1790-1890 So Paulo, Corrupio,
1988, p.89. 38
Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death, p. 82 39
A pesquisa nos Livros de Registros de bitos do Arquivo da Cria Metropolitana de Salvador foi realizada no
Laboratrio Reitor Eugnio Veiga/UCSAL e na Igreja dos Mrmons no Bairro de Amaralina.
22
Tabela 1
Africanos por nao em termos de bitos das Freguesias da Conceio da Praia, Santo Antnio
Alm do Carmo e S 1800-1850.
Regio Nao Freqncia %
frica Central
Angola 336 15,31
Cabinda 32 1,46
Benguela 21 0,96
Congo 15 0,68
So Tom 3 0,14
Cassange 1 0,05
Agoni 1 0,05
409 18,64
frica Ocidental
Jeje 772 35,19
Nago 215 9,80
Mina 98 4,47
Hauss 87 3,97
Tapa 19 0,87
Bornu 11 0,50
Benin 4 0,18
Calabar 4 0,18
Mandobi 4 0,18
Catacori 4 0,18
Barla 3 0,14
Codovi 2 0,09
Fulani 1 0,05
Mudovi 1 0,05
Ardra 1 0,05
Costa da Guin 1 0,05
Grum 1 0,05
1228 55,97
frica Oriental
Moambique 16 0,73
16 0,73
No identificadas
Bad 4 0,18
Panda* 3 0,14
7 0,32
Africano 534 24,34
534 24,34
Total 2194 100,00
Fonte: ACMS, Livros de bitos das freguesias da Conceio da Praia, Santo Antonio Alm do Carmo e
S no perodo de 1800-1850
Do total de 2.194 bitos de africanos levantados naquelas freguesias encontramos 336
equivalente a 15,31% de nao Angola, distribudos nas trs freguesias que, numericamente,
23
s foram superados pelos jejes que se apresentaram num total de 772.40
Contudo nossos
Angolas superam a presena dos africanos de nao nag que constituem 215 do total de
bitos levantados. Para uma avaliao da representatividade numrica da populao africana
de Salvador tomo Joo Reis como referncia quem encontrou em 1835 uma populao de
65.500 habitantes e, dentre estes, 21.940 eram africanos distribudos entre 17.325 escravos e
4.615 libertos. Ressaltamos que entre os 336 Angolas que levantamos, 278 (82,7%) eram
escravos, 39 libertos (11,6%) e 19 bitos no contemplaram a condio legal. Nmeros que
acompanham o padro da hegemonia escrava da populao da cidade de 1835.
A Tabela 1 tambm nos mostra 514 bitos cujos defuntos foram identificados
genericamente como africanos, conforme observamos na Tabela 1. Isto pode estar ligado ao
medo do importador de africanos com a perseguio ao trfico. Dentre esses casos, conforme
Oliveira, possvel que encontremos alguns africanos centro ocidentais, cuja autora apresenta
como justificativa o fato de os bantos no pertencerem ao grupo de revoltosos, da a sua
menor incidncia nos registros.41 J para Andrade, tal generalizao soa como estratgia do
trfico para [...] esconder das autoridades a real origem dos escravos que vendia.42 Neste
contexto, prefiro alinhar-me com Pars para quem o significado dos nomes de nao, antes de
1850, em estreita ligao com o trfico, vai perdendo espao para uma sociedade cada vez
mais crioula e racialmente miscigenada.43
Dos 336 Angolas encontrados em nossas pesquisas, no universo de 2.194 bitos
pesquisados, 152 ou 11,8% deles estavam na freguesia da S, e 391 (30,4%) jejes. Para a
freguesia de Santo Antnio Alm do Carmo encontramos 158 (23,13%) Angolas, mais uma
vez superados pelos jejes, para os quais encontramos o total de 306 (44,80%). Na Conceio
da Praia, apesar de no chegar a um montante, nem aproximado, aos das freguesias anteriores,
os jejes e Angolas continuam superando as outras etnias: os jejes com 75 (33,33%)
representantes, e os Angolas com 26 (11,56%). A partir dos nmeros podemos concluir que os
Angolas, na S, ficaram em terceiro lugar; na de Santo Antonio, ficaram em segundo lugar, o
mesmo se dando na freguesia da Conceio da Praia, cuja baixa incidncia populacional
justificvel j que apesar de ser nos olhos dos viajantes a parte mais densamente povoada da
40
Pars, A Formao do Candombl, p. 69. 41
Maria Ins Crtes de Oliveira, Retrouver une identit: jeux sociaux des africains de Bahia vers 1790-1890 (Tese de Doutorado em histria, Universit SorbonneIV. Paris, 1992) p.104. 42
Maria Jos de Souza Andrade, A mo-de-obra escrava em Salvador, 1811-1860, Editora Corrupio, Salvador,
1988 (1975) p.106. 43
Pars, A Formao do Candombl p.75.
24
cidade, na realidade so relativamente poucos os habitantes ali residentes e os que ali residem,
literalmente amontoam-se uns sobre os outros em inverossmeis condies de inconforto.44
Tabela 2
Freguesias de enterro de africanos de nao Angola em Salvador, 1800-1850
Freguesia Freqncia %
Santo Antonio Alm do Carmo 158 47,0%
S 152 45,2%
Conceio da Praia 26 7,7%
Total 336 100,0%
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Motivo da morte
A morte de um escravo significava para o seu proprietrio um prejuzo tal, que
justificativas como obra do destino ou a vontade de Deus no serviam como consolo.
Mas, mesmo diante desse prejuzo, muitos senhores negligenciavam quanto ao mnimo
necessrio, nesse contexto representado pela sade, para que os africanos escravizados
tivessem reduzidos os seus sofrimentos, resultantes da escravido. Os africanos eram
acometidos de vrias doenas, resultantes das condies vividas por estes que, fatalmente, os
levariam a bito. Dentre os possveis causadores de doenas, podemos citar a alimentao de
baixa qualidade. Karasch, apoiada na perspectiva mdica do sculo XX, aponta para os vrios
problemas que estimulavam as doenas nos africanos, no concordando com as simples
interpretaes mdicas apresentadas por aqueles que redigiam os bitos. Inclusive aponta que
a maioria dos escravos, se no todos, sofria de um ou mais problemas gastrintestinais em
algum momento de suas vidas.45
A competente pesquisadora desconhecia que, no sculo anterior, a medicina aloptica
j comeava a apresentar a alimentao inadequada como fato gerador dos problemas
intestinais sofridos pelos escravos. No incio do sculo XIX, o reverendo Robert Walsh viu,
como causa do permanente estado doentio do estmago do escravo, no a comida, mas o
comportamento destes de comerem terra e cal. Mas o referido reverendo teve tempo para
44
Katia M. de Queirs Mattoso, Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no sculo XIX. So Paulo,
Secretaria Municipal de Educao e Cultura, 1978. p.175. 45
Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850, p. 207.
25
observar que esta no era nada alm de mais uma estratgia escrava para fugir da escravido.
Mesmo que para isso tivesse que pagar com a vida. Em 1852, O doutor Joo Bittencourt,
encarregado da enfermaria que cuidava dos africanos livres, recm-desembarcados na
provncia da Bahia, j via a necessidade de uma mudana na alimentao dos africanos devido
a predisposio destes s doenas do tubo digestivo pela m alimentao e aguada, que
costumo fornecer-lhes a bordo durante a viagem.46 Pelo menos no que concerne gua, o
problema da m qualidade desta no estava restrito ao espao martimo. Vale frisar que,
cinqenta e seis anos aps as observaes de Joo Bittencourt, a qualidade da gua consumida
em Salvador ainda era motivo de discusses acaloradas, sendo o carregador da gua,
associado falta de higiene do local onde a gua era adquirida, como os responsveis pelos
problemas.47
Tabela 3
Causa da morte dos africanos de nao Angola das Freguesias da S, Santo Antnio Alm do
Carmo e Conceio da Praia 1800-1850.
Motivo da morte Mulheres Homens Total %
Infecto-parasticas 22 10 32 9,5%
Sistema digestivo 4 4 8 2,4%
Sistema respiratrio 5 5 10 3,0%
Pele 0 4 4 1,2%
Sistema nervoso 4 4 8 2,4%
Mal definida 83 67 150 44,6%
Violenta ou acidental 0 6 6 1,8%
Parto e gravidez 2 0 2 0,6%
No informa 61 55 116 34,5%
Total 181 155 336 100,0
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Dentre os tipos de doenas elencadas nos bitos algumas nos despertam a ateno pela
forma negligente com que so classificadas, levando-nos a traduzir tal comportamento da
medicina, da poca, como incompetente para a apresentao de diagnsticos mais objetivos.
Como exemplo, as doenas de causa mal definida apareceram em 150 (44,6%) bitos o que
significa quase metade do total de 336 bitos levantados, seguida pela omisso da informao
46
Dr. Joo Ferreira Bittencourt para o Presidente da Provncia, (16/02/1856), Arquivo Pblico do Estado da
Bahia ( doravante APEBa), Casa de Priso, mao 3083. 47
Otvio da Silva Torres, A cidade de Salvador perante a hygiene, These apresentada Faculdade de Medicina
da Bahia.Tipografia Moderna, 1908, pp. 9 -10.
26
da causa mortis, no subscritas em 116 (34,5%) deles. Tais valores, relacionados a estas
variveis, sugerem tambm a pouca preocupao para com os problemas de sade que
afligiam os escravos. Problemas esses, muitas vezes originados pelo mau trato, m
alimentao, falta de tratamento mdico, o que transformava os seus corpos em porta de
entrada para os mais variados tipos de doenas.
Dentre as 32 doenas infecto-parasticas, a tuberculose lidera com 22 casos, indicados
nas suas mais variadas denominaes, como tsica, tica, entre outras. Em seguida temos trs
bitos causados por bexigas ou varola, um por clera, quatro por erisipela, um por sarampo e
um no qual o Proco registrou como infestada de chagas, talvez fosse mais um caso de
bexigas. Confesso ao leitor a intencionalidade ao deixar para o final deste pargrafo o
comentrio a respeito dessa ltima enfermidade devido a uma especificidade da mesma com
elementos da religiosidade africana. inconteste a adoo, pelos africanos, de santos do
panteo catlico que os protegessem de doenas e de maus pressgios, mas dois destes santos
tinham, para os africanos, um significado especial: So Roque e So Lzaro os quais, quando
invocados no mbito das religies afro-brasileiras eram, e so at hoje, identificados como
Omolu ou Obaluai.48
Estas doenas infecto-parasticas estavam diretamente relacionadas ao
modo de vida africano. Nas suas labutas dirias, vivendo em uma cidade onde um mnimo de
higiene dependia da participao direta dos escravos, ficando esses estes em contato estreito
com os agentes causadores de doenas infecciosas. Seja transportando pipas de madeira
carregadas de excrementos para serem lanados nos rios, ou em tempos de epidemias,
carregando os mortos que eram abandonados nas sarjetas com a certeza que quando
encontrados teriam alguma forma de sepultamento.49
Associado a esse ambiente to propcio s doenas, acrescente-se a chegada de pessoas
trazidas nos navios que chegavam de vrios lugares do mundo e descarregavam no s
mercadorias provindas de alm-mar, mas tambm doenas variadas. Quando agrupadas a
partir das caractersticas, observamos que as doenas infecto-parasticas como tuberculose,
disenteria e varola ocupam o terceiro lugar na nossa pesquisa referente aos Angolas de
48
Para maiores informaes sobre como os africanos relacionavam, no Rio de Janeiro do sculo XIX, os santos
s doenas, ver Karasch , A vida dos escravos no Rio de Janeiro, pp.358360. Obaluai ou Omulu quando incorporado em um iniciado, veste-se completamente da cabea aos ps com mariwo (palha da costa), para que o
seu rosto, coberto de pstulas, no seja visto. As vestes de mariwo encobrem, segundo Elbein, a existncia de alguma coisa que deve ficar oculta, de alguma coisa proibida que inspira grande respeito e medo, alguma coisa
secreta que s pode ser compartilhada pelos que foram especialmente iniciados. O respeito dispensado a esses deuses, pelos adeptos do candombl, diz muito do lugar que eles sempre ocuparam na mentalidade do africano.
Juana Elbein dos Santos, Os Nag e a Morte, Petrpolis, Editora Vozes, 1976, p. 98. 49
Ventia Durando Braga Rios, Entre a vida e a morte: mdicos, medicina e medicalizao na cidade de Salvador -18601880 ( Dissertao de Mestrado, UFBA, 2001), p.24.
27
Salvador Karasch encontrou esta mesma posio para o Rio de Janeiro - revelando-nos as
conseqncias de quando no observada a relao entre sade e exposio fsica aos
costumes e hbitos que contrastam com as exigncias da cincia higinica.50
Quanto tuberculose, de nada adiantava escamotear a sua incidncia denominando-a
com diferentes terminologias. Fosse tsica, tica, jato de sangue, molstia de jatos, pletsica ou
qualquer denominao que a ela fosse atribuda, a realidade que, junto s demais doenas do
sistema respiratrio esta, segundo Maria Renilda Barreto, [...] figurava no rol das doenas
longitudinais (endmicas e crnicas) quando no se apresentavam nas formas epidmicas
[...].51 Ainda com relao a esta molstia, no que se refere aos nossos Angolas, coincidindo
com as pesquisas de Karasch para o Rio de Janeiro, observamos que um nmero significativo
de mulheres foi atingido por este tipo de doena nas freguesias em questo. (vide Tabela 3).
No que concerne s doenas agrupadas como do sistema digestivo, elas aparecem em
nmero de oito casos representados por dois de constipao, dois de fatos, ou doena
intestinal, um de dor no estmago, um de dor no ventre e um de inflamao nos bofes,
apresentando-nos um percentual de (2,4%) para a incidncia desta doena no total de bitos
referente aos Angolas. As causas dessas doenas estavam diretamente relacionadas baixa
qualidade do que era ingerido como alimento que, desprovido de protenas e vitaminas, alm
da inexistncia de um sistema de conservao adequado o que tornava o ambiente gstrico um
espao propcio ao desenvolvimento de vermes, resultando assim em doenas do trato
intestinal. Chama a nossa ateno, mais uma vez, a forma irresponsvel como eram
diagnosticadas, naquele momento, as causa mortis. Nos possvel observar que os
diagnsticos so determinados sem nenhuma anlise etiolgica prvia. Inclusive, como bem
observou Trindade, algumas doenas pertencentes a um grupo classificatrio poderiam estar
em outro grupo, em funo das suas caractersticas e dos fatos que geraram o seu
surgimento.52
Os bitos, justificados como sendo causados por doenas mal definidas, foram os
que mais nos orientaram para uma interpretao crtica quanto forma como, era
caracterizada a causa morti. Compondo este grupo de doenas, encontramos 150 casos o que
representa (45,8%) dos 336 bitos analisados. Essa caracterizao pode ser justificada pela
50
Rios, Entre a vida e a morte, p. 24. 51
Maria Renilda Nery Barreto, A Medicina luso-brasileira: instituies, mdicos, e populaes enfermas em Salvador e Lisboa, 1808-1851 (Tese de Doutorado em Histria das Cincias da Sade, Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz, 2005) p. 216. 52
Claudia Moraes Trindade, A Casa de Priso com Trabalho da Bahia, 1833-1865, (Dissertao de Mestrado em Histria, UFBA, 2007), p.138.
28
indefinio, no documento, quanto ao rgo acometido pela doena. Como exemplo, um dos
diagnsticos encontrado neste grupo das doenas mal definidas est a molstia interna com
105 casos e as mortes repentinas com 14. Sem citar outras doenas que, devido baixa
incidncia, no apresentam relevncia no universo dos bitos analisados. A maioria com,
somente, um caso.
As doenas do sistema nervoso aparecem em oito casos: um de apoplexia, dois de
convulses, trs de estupor, um de paralisia e um de gota coral.53
No Rio de Janeiro, Karasch
se reporta ao Doutor Sigaud para afirmar que essas molstias tinham um carter especial e
evolues mais marcantes em negros do que em brancos.54 Para Salvador, associada
estratificao social da poca e da indefinio quanto a um local para se instalar o asilo, no
havia ainda um projeto da medicina para o tratamento destas doenas. Conforme Renilda, O
tratamento da alienao era um terreno movedio e desconhecido, concentrando-se
basicamente no isolamento e na vigilncia, associado s sangrias espordicas.55 A
precariedade dos espaos destinados ao recolhimento dessa miserenda classe de pacientes
foi, tambm, um motivador das discusses sobre as doenas do sistema nervoso durante a
segunda metade do sculo XIX, resultando finalmente de tais discusses na inaugurao do
Asilo de S. Joo de Deus em 24 de junho de 1874.56
Como j dissemos anteriormente, os africanos tinham os seus santos catlicos os quais
eram invocados na hora de infortnios ou para ajudar na cura de doenas. Creditavam os
africanos, a Nossa Senhora da Cabea, por exemplo, que esta poderia curar ou amenizar o
sofrimento dos despossuidos da razo pelo fato de sua imagem ser representada segurando
uma cabea humana. Ou atribuir a Santa Luzia a graa da recuperao da viso perdida.
Mas algumas mulheres Angolas no foram agraciadas com a proteo da Virgem
Maria, enquanto Nossa Senhora do Parto. Nas nossas pesquisas encontramos duas dessas
mulheres. Uma, cuja causa morte foi diagnosticada como bucho na barriga, e outra que
morreu de fluxo de sangue sobre o parto.Talvez esse ltimo diagnstico seja somente um
pleonasmo para falar de hemorragia.
53
Estupor significa estado mrbido em que, embora se ache desperta a conscincia, o doente no reage a excitao alguma, mantendo-se imvel na mesma posio. Popularmente, qualquer paralisia repentina, Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionrio, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975, p. 590. 54
Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p.244 55
Barreto, A Medicina luso-brasileira, p.222. 56
Sobre o Asilo So Joo de Deus e a loucura na cidade de Salvador ver Ventia Durando Braga Rios, O Asylo de So Joo de Deos: as faces da loucura (Tese de Doutorado em Histria, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2006).
29
Num universo de 336 Angolas 10 foram a bito vtimas de doenas respiratrias,
sendo oito de cansao, um de pleuris e um de tosse no peito. Acredito que outras doenas
inclusas no grupo das infecto-parasticas bem que se confundem com as constantes no grupo
das respiratrias como, por exemplo, a tuberculose. Para o Rio de Janeiro, Karasch apresenta
a tuberculose (tsica) como molstia infecto-parastica apresentando o estresse como uma das
causas da doena, alm de ter observado um percentual de vtimas femininas maior que de
masculinas.57
Para Renilda, alm de concordar com Karasch quanto relao doena e gnero, para
Salvador, nos apresenta a tsica ou tuberculose pulmonar denominao utilizada a partir do
final do sculo XIX como do sistema respiratrio. Esta doena, conforme a autora, estava
relacionada aos baixos padres socioeconmicos de existncia, da a sua incidncia maior ter
se dado, em Salvador, em momentos de recesso. Ainda a pesquisadora observou que, durante
o sculo XIX, a Bahia foi vitimada por secas que resultaram na carestia de vveres e a
escassez de alimentos, principalmente a farinha, o gnero mais consumido na dieta dos
baianos, e continua afirmando que esta tendncia reflete-se no Hospital So Cristvo, onde
este item era o mais adquirido para alimentar enfermos, escravos e funcionrios.
Etiologicamente, a tsica dominou as discusses em grande parte do sculo XIX. Os mdicos
baianos, alm de comungarem com a idia de ser a tuberculose hereditria, atribuiram-lhe
outras causas que duraram ao longo dos tempos. Dentre vrias outras, o abuso da masturbao
e o tabagismo.
As mortes acidentais ou causadas por qualquer tipo de violncia apareceram em
nmero de seis, mas observamos que alguns acidentes precisariam de mais clareza quanto
doena que realmente causou o bito. Um dos exemplos o caso de um escravo que morreu
porque espetou no p espinha de cazoup.58 Provavelmente, uma enfermidade resultante do
acidente deve ter vitimado o infeliz, mas o documento no nos fornece tal informao. Assim
como o escravo que morreu devido a uma perna que teve quebrada porque caiu de uma
sacada, ou os dois que faleceram de quebradura.59 Diferente do que morreu de molstia
procedida de uma bala que lhe meteram em uma coxa.60
57
Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p.211. 58
No conseguimos o significado do termo. 59
Arquivo da Cria Metropolitana do Salvador (doravante ACMS), Livro de bitos da Freguesia da S, 1797-
1816, fls 61v e 70r. 60
Ibid., fl. 84r.
30
Outro caso que nos chama a ateno o do escravo que atravessou a calunga, depois
de ser enforcado por suas prprias mos. 61 Acreditamos que ele tenha cometido suicdio.
Sabemos que muitos foram os escravos e escravas que, se no conseguiam a liberdade em
vida, buscavam-na na morte. As formas de suicdio variavam do comer terra ao afogamento.
Segundo Slenes, africanos falantes de kikongo buscavam a morte no afogamento acreditando
estes terem a Calunga, o mar, como uma linha divisria entre a vida e a morte.62
Morrer
afogado era estar se reunido aos ancestrais. Tambm para os bakongos, conforme Creel, os
ancestrais so criaturas brancas e so conhecidas como bakulu e vivem numa terra onde tudo
branco. Esta morada dos mortos se encontra nos leitos dos rios e nos lagos. A transparncia
espiritual branca do bakulu lhes facilita o retorno ao mundo dos vivos sem serem
detectados.63
Quanto ao enforcamento, alm de ser uma forma de punio para o escravo que
cometesse crimes de morte nesse caso a punio era aplicada pela autoridade judiciria era
tambm um meio utilizado pelos escravos para cometerem suicdio para se livrarem das
punies insuportveis da escravido. O medo dessas torturas levava os escravos ao suicdio
[...], e o enforcamento era uma das formas utilizadas pelos escravos, perdendo esses suicidas
o direito de ser sepultado em lugares sagrados. 64
Conforme Joo Reis, a proximidade fsica entre cadver e imagens divinas, aqui
embaixo, representava um modelo da contigidade espiritual que se desejava obter, l em
cima, entre as almas e as divindades. A igreja era uma das portas de entrada do paraso.65 O
que no deixava tambm de ser uma oportunidade de manuteno do contato, pelo menos nas
missas dominicais, entre os que se foram e os que ficaram.No desfrutou desses privilgios
Joo Angola, escravo de Jeronima Maria da Gloria, que resolveu, em 1821, no sabemos
porque cargas- dgua, enforcar-se com as prprias mos.66 Tendo seu gesto interpretado
como suicdio, teve o seu corpo embrulhado em uma esteira e foi sepultado no cemitrio do
Campo da Plvora para onde, alm dos suicidas, eram enviados os escravos e indigentes.
Um detalhe que nos impele para uma ateno mais apurada para o caso de Joo, que
ele no foi o nico sepultado envolto em uma esteira. No universo de 336 Angolas
encontramos treze africanos cujo sepultamento foi caracterizado pelo uso da esteira como
vestes, e isso nos leva a acreditar que tal prtica tem relao com a cultura banto. Desses 13
61
ACMS, Livro de bitos da Freguesia de Sto. Antonio Alm do Carmo, 1819-1827, fl.56. 62
Slenes, Malungu, Ngoma Vem!, p.10. 63
Creel, Gullah Attitudes toward Life and Death. p. 90 64
Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, p. 174. 65
Reis, A morte uma festa, p.171. 66
ACMS, Livro de bitos da Freguesia de Sto. Antonio Alm do Carmo, 1819-1827 fl. 56
31
bitos, quatro eram crianas sendo: trs de 12 anos e uma de 10. Pode ser que os seus restos
mortais tenham sido utilizados como ingredientes de bolsas de mandinga e outras prticas
mgicas.67 Os outros so adultos com idades que variam de 30 a 60 anos, sem falar de dois
adultos cujas idades no foram reveladas no documento. Atravs de informaes, provindas
de autores que se debruaram em pesquisas sobre as culturas bantas, tivemos as nossas
dvidas quase sanadas quanto a ser a esteira um sinal diacrtico da cultura Angola.
Ao descrever um ritual fnebre banto, o padre Altuna informa que o defunto coberto
com um pano, manto ou pele de boi e fica sentado numa esteira.68 Em 1829, o Juiz
Presidente da Cmara da Corte, Luiz Paulo de Arajo Bastos, ao responsabilizar e cobrar da
Cmara a remoo dos enterros para fora das igrejas, alm de externar a sua preocupao com
a sade pblica, descreveu o cemitrio dos pretos novos chamando a ateno para corpos
cheio todo em roda de esteiras, que de ordinrias sempre recebem alguma cousa de
corrupo dos corpos nelas envolvidos.69
Ao deixar a vida terrena, o poder continuaria sendo simbolizado pelas pompas
dispensadas ao defunto que, em vida, tenha tido a oportunidade de uma vida menos miservel.
Sebastio Xavier Botelho descreve o funeral de um rei, ou prncipe, em Moambique onde a
esteira um dos componentes do ritual. E o cadver nu he estendido em uma Sanja, espcie
de Esteira de Varinhas groas ligadas humas s outras, e cuberto com um pano.70 Ao
compararmos duas descries de diferentes autores, em pocas e lugares diferentes,
conclumos que a africanidade banto, dos rituais fnebres dos Angolas uma realidade.
Segundo o padre Altuna, Os escravos no tinham honras fnebres visto que a sua
nula influncia social no os tornava temidos nem havia interesse algum em os prestigiar
como antepassados.71 Clvis Moura tambm nos chama a ateno para o fato de que nos
primeiros anos da escravido no Brasil, o escravo morto era jogado na praia ou enrolado
numa esteira e atirado em algum recanto deserto para ser devorado pelos urubus ou por outros
animais.72 Detectamos nos dois relatos um fio de irresponsabilidade quanto observncia do
princpio da transferncia cultural por parte dos africanos centrais, nesse caso especfico. Mas
67
Reis, A morte uma festa, p. 123. 68
Altuna, A cultura tradicional banto, p.449. 69
Jlio Csar Medeiros da Silva Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no Rio de Janeiro. Ed.
Garamond Universitria: IPHAN, 2007, p. 92. 70
Joo Julio da Silva, Memrias de Sofala. Etnografia e Histria das identidades e da violncia entre os
diferentes poderes no centro de Moambique, sculos XVII e XIX. Comisso nacional para as comemoraes dos
descobrimentos portugueses, frica, 1998, citado por Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no
Rio de Janeiro, p. 167. 71
Altuna, A cultura tradicional banto, p.447. 72
Clvis Moura, Dicionrio da Escravido Negra no Brasil, So Paulo, Edusp, 2004, p.147, (Grifo nosso)
32
no nos deixaremos ser enganados pela viso reducionista desses dois autores quanto
utilizao da esteira nos rituais de enterramento quando o defunto era um escravo.
Contrariando as afirmaes do padre Altuna, Pereira defende a utilizao da esteira
no a relacionando condio legal do africano, mas tradio africana banto ao lidar com os
seus mortos. Citando Joo Julio da Silva, que testemunhou alguns ritos funerrios em
Moambique, Pereira toma como referncia um desses eventos: Logo que tiver falecido
qualquer pessoa, homem ou mulher. lavo o cadver com gua morna: e depois de vestido
dobram as pernas e o fazem deitar do lado direito com a mo direita debaixo da cabea, na
forma que costuma dormir. Se o falecido no pertencer a outrem o amortalho com hum pano
branco, e depois envolve em huma esteira [...].73Vejo mais como reflexo da presena de
elementos das culturas bantos nas disporas do que uma simples coincidncia com o que foi
testemunhado por Julio, em Moambique, o caso de Joo Angola, forro, morto em 1819, que
foi sepultado na Matriz de Santo Antonio, envolto em mortalha branca e esteira,
acompanhado de proco e sacristo. Muitos costumes morturios da frica foram mantidos
pelos escravos no Brasil, apesar das mudanas que neles se foram operando ao longo da
escravido, [...], orienta Reis.74
Quanto a Clvis Moura, as nossas pesquisas demonstram que aqui na dispora,
tambm, a utilizao da esteira no estava ligada situao social do africano. Encontramos,
sim, 12 escravos que foram envoltos em esteira e todos foram acompanhados por proco e
sacristo, nenhum deles teve o tratamento ignbil relatado por Moura. Nem mesmo aquele
que decidiu por adiantar-se no tempo quanto ao reencontro com os seus ancestrais. No vale
s para os nags a afirmao de Ziegler de que o morto que no recebe os cuidados
necessrios, corre o risco de perder sua identidade no caminho que deve lev-lo ao Orum e
transformar-se em Egum errante pelo mundo.75 Os bantos tm, tambm, um significado
lingstico distinto para os elementos simblicos da sua cosmogonia. Nesse caso especfico,
para o kimbundo, Orum seria substitudo por Dilu e Egun por Nzumbi.
Conforme Oliveira, a pompa era uma das caractersticas dos enterros na primeira
metade do sculo XIX estando presente em todas as camadas sociais, da no concordarmos
com a idia de que os escravos no estavam inclusos no processo de continuidade de um dos
princpios que regem a identidade africana.76
O luxo era uma forma de representar o poder e a
73
Silva, Memrias de Sofala, citado por Pereira, flor da terra: o cemitrio dos pretos novos no Rio de Janeiro,
p.171. 74
Joo Reis, A morte uma festa, p.160. 75
Jean Ziegler, Os vivos e a morte, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p.32. 76
Oliveira, O liberto: o seu mundo e os outros, p. 90.
33
riqueza. No caso do escravo, essa representao simblica ficava sob a responsabilidade do
seu senhor ou da irmandade a que o escravo estivesse filiado. Interessava ao seu proprietrio
ostentar poder scio-econmico atravs da suntuosidade que desse ao evento fnebre.
As esteiras no simbolizaram um elemento de limitao na participao dos Angolas
no cadinho cultural de tradies africanas na dispora, mas transferiram mais uma forma
diferente de se vestirem para ir de encontro aos ancestrais. Assim como os escravos de outras
naes, os Angolas transitaram por outras simbologias que lhes conferissem nivelamento
social j que o conflito era evidente, materializado pelo luxo excessivo dos enterros, das
igrejas e das irmandades religiosas, segundo Oliveira.77
Tambm para os africanos centrais, a
simbologia das cores j estava associada s suas cosmogonias. Para Altuna, as cores tm um
profundo significado nos ritos sagrados dos bantos, e destaca a cor branca como a cor dos
antepassados, alm de ter o poder de afastar os perigos fatais e simboliza a inocncia, a
bondade, a alegria, a pureza e a vitria.78 Newell Booth, ao falar do significado das cores
para os africanos centrais, cita a cor branca como o mago dos segredos, e acrescenta que em
vrias reas do Kongo, a cor branca simbolizada pela argila do rio (mpemba), geralmente
utilizada para conotar o alm.79
E d como exemplo que, para evitar falar na morte,
metaforizam dizendo que fulano est indo, ou foi, para mpemba. Na realidade no a gua
que est sendo caracterizada, mas a clareza, a sinceridade, a verdade, e a visibilidade do
mistrio.80
Reis, tambm, apesar de no especificar os africanos centrais, muito nos auxilia ao
nos orientar para o significado das cores para o africano, afirmando inclusive que vrias
naes africanas da Bahia faziam do branco a cor morturia, e cita os edos do Benim, para os
quais o branco simbolizava pureza ritual e paz.81
Oliveira no conseguiu detectar no africano
o significado da cor branca para as vestes do morto. Sugeriu hipteses como: o uso da roupa
branca pela falta de condies do africano para adquirir um dos hbitos de tradio catlica,
ou a roupa branca tinha um significado nitidamente africano.
No universo de 336 Angolas, cujos bitos analisamos, 145 escravos e 26 forros foram
sepultados envoltos em mortalha branca, alm de 12 cujos bitos no revelaram a condio
legal. Outros tipos de vestes foram utilizados, mas sem a constncia observada para a
77
Ibid., p. 90. 78
Altuna, A cultura tradicional banto, p.93. 79
Termo banto que denomina um p branco usado como giz nas cerimnias para, na Umbanda, riscar os
pontos dos Exus e Pretos velhos. A preparao deste p carece de rituais que s pode ter a participao de iniciados. 80
John M. Janzen, The Tradition of Renewal in Kongo Religion, in Newell S. Booth (org) African Religions: a Symposium, (New York London Lagos, NOK Publishers, 1977), p. 90. 81
Reis, A morte uma festa, p.118.
34
mortalha branca. Encontramos 102 bitos de Angolas que no tiveram declarado o tipo de
veste que os acompanhou sepultura. Destes, 89 escravos, 10 forros, e trs no tiveram
declarada a sua condio legal.
Tabela 4
Vestes do enterro de africanos Angolas na cidade de Salvador 1800-1850
Veste Escravo Forro No
informa Total
Mortalha branca 145 26 12 183
Hbito franciscano 15 5 4 24
Esteira 12 1 0 13
Mortalha preta 5 1 0 6
Cobertor 2 0 0 2
Hbito branco da Irmandade do
Rosrio
1 0 0 1
Hbito dos Irmos dos Perdes 1 0 0 1
Coberta de Chita 1 0 0 1
Baeta vermelha 1 0 0 1
Amortalhado sem mortalha
branca
1 0 0 1
Mortalha parda 1 0 0 1
No informa 89 10 3 102
Total 278 39 23 336
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Nossas descobertas levam-me a acreditar que os meus escravos Angolas eram mais
bem apossados que os africanos libertos de Oliveira j que, pelo menos, 15 daqueles foram
sepultados com o hbito franciscano, contrariando uma das hipteses da pesquisadora para a
preferncia dos africanos pelas vestes brancas. Somente cinco forros tiveram o privilgio de
seguir vestidos de salvadores de almas do purgatrio, e quatro no tiveram as suas condies
legais informadas. Reis d nfase simbologia existente na relao entre os ritos fnebres e a
imagem de So Francisco chamando, inclusive, a nossa ateno para a herana ibrica desse
costume.82
Outros Angolas preferiram ser diferentes na hora de ir para mpemba. Seis
seguiram de mortalha preta, um de baeta vermelha, um de hbito branco da Irmandade do
Rosrio, um coberto de chita, dois que seguiram envoltos em um cobertor sem maiores
especificaes, um de mortalha parda e um que, estranhamente, foi amortalhado sem
82
Ibid., p.117.
35
mortalha branca. A pompa no se limitava s vestes. O local do enterramento era tambm
referncia de poder, associado quantidade e tipo de pblico que acompanhava o defunto.
Uma escrava Angola um desses exemplos de que, no s libertos ou forros de
determinadas naes tinham o privilgio de mostrar poder scio-econmico, seja patrocinado
pela irmandade ou pelo seu senhor, a quem interessava mostrar que no era somente mais um
no meio daqueles, cuja opulncia era simbolizada pela quantidade de escravos que possusse.
Clara, de 40 anos, escrava de Thereza de Jesus, foi sepultada na Igreja da Irmandade
de N. Senhora do Rosrio da Baixa dos Sapateiros vestida de hbito franciscano, e foi
acompanhada por proco, sacristo e seis padres.
Tabela 5
Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia de Santo
Antnio Alm do Carmo 1800-1850
Local Freqncia %
Matriz de Santo Antnio 123 77,8%
Cemitrios 7 4,4%
Convento do Carmo 5 3,2%
Igreja dos Perdes 5 3,2%
Capela da N. Sra. da Lapa 4 2,5%
Demolida Matriz 3 1,9%
Igreja do Convento de So Francisco 2 1,3%
Capela da Quinta dos Lzaros 2 1,3%
Capela S. Joo Itapagipe de Cima 1 0,6%
Capela do Convento do Boqueiro 1 0,6%
Capela do Seminrio 1 0,6%
No informa 4 2,5%
Total 158 100,0%
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Conforme nos mostra a Tabela 5, de um total de 158 bitos atestados para a Freguesia
de Santo Antnio Alm do Carmo, 123 Angolas foram sepultados na Igreja da Matriz
representando a maioria de sepultados. Do total geral, sete foram enterrados nos vrios
cemitrios, alguns administrados pela Santa Casa da Misericrdia, como era o caso do
Cemitrio do Campo da Plvora.83
Outros defuntos foram distribudos pelas vrias igrejas que
faziam parte desta Freguesia ou, sepultados nas igrejas que sediavam as suas Irmandades em
83
Ibid., p.196.
36
outras freguesias. Como foi o caso de Antonio Angola, falecido em 1808, escravo de Incia
Domingos de Barros que, apesar de ter ido a bito na Freguesia de Santo Antnio Alm do
Carmo, foi sepultado na Igreja do Convento de So Francisco. Podemos inferir, a partir desta
informao, que Antonio fosse um dos irmos da Irmandade de So Benedito, sediada
naquela Igreja. Maria Joaquina, Angola forra de 40 anos, falecida em 1824, tambm foi
sepultada em lugar diferente da sua Freguesia. Como Antonio, foi sepultada na Igreja do
convento de So Francisco, na freguesia da S, acompanhada por dois padres, alm de seguir
vestida com o hbito do santo. Pode ser que a veste tenha sido comprada com antecedncia,
nas mos dos frades franciscanos que, segundo Joo Reis, s no ano de 1822 eles venderam
150 dessas roupas, e 73 entre julho e setembro de 1823.84
Tabela 6
Local de sepultamento dos Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da S
Local Freqncia %
Igreja da S 74 48,7%
Igreja das Portas do Carmo 27 17,8%
Igreja do Convento de So Francisco 17 11,2%
Igreja do Colgio 6 3,9%
Igreja N. Sra. da Ajuda 6 3,9%
Igreja N. Sra. do Rosrio da Rua de Joo Pereira 5 3,3%
Igreja de Santana 5 3,3%
Capela de So Miguel 1 0,7%
Igreja N. Sra. de Guadalupe 1 0,7%
Matriz de Santo Antnio 1 0,7%
Cemitrios 1 0,7%
No informa 8 5,3%
Total 152 100,0%
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Na freguesia da S foram sepultados 152 Angolas, sendo que a maioria foi sepultada
na Igreja da Matriz com 74 sepultamentos, seguida pelas Igrejas das Portas do Carmo e Igreja
do Convento de So Francisco que receberam 27 e 17 defuntos, respectivamente. O restante
foi diludo em outras igrejas da freguesia ou foram carregados para lugares mais distantes,
outras freguesias, a fim de cumprirem suas obrigaes religiosas assumidas em vida. Como
exemplo, temos o caso de Gracia da Costa Covelo, Angola forro, que faleceu de molstia
84
Ibid, p.118.
37
interna aos 40 anos na Freguesia da S, mas foi sepultado na Irmandade do Rosrio da Matriz
de Santo Antonio, vestido com o hbito franciscano. Nem todos tiveram o privilgio de ser
sepultado mais prximo da salvao. Antonio Angola, escravo de Dona Ursula Maria das
Virgens, vivia e morreu aos 30 anos em 1809 na Freguesia da S, e foi sepultado no Cemitrio
da Cidade Campo da Plvora , vestido com mortalha branca.
Um dos Angolas, que foi a bito na S, foi enterrado na Igreja de N.Sra. do Rosrio da
Rua de Joo Pereira, local que acolhia a Irmandade do mesmo nome. Essa igreja estava
localizada na Freguesia de So Pedro Velho. A respeito dessa Irmandade, Reis conta que em
1784 os cargos da mesa diretora daquela confraria eram divididos entre jejes e benguelas, em
resposta dos jejes aos Angolas pela opo de parceria que estes fizeram com os crioulos, na
administrao da Irmandade do Rosrio do Pelourinho.85
Isso nos revela a existncia de
alianas e hostilidades entre as diversos naes africanas.
Tabela 7
Local de sepultamento de Angolas registrados nos livros de bitos da Freguesia da Conceio da
Praia, 1800-1850
Local Freqncia
Igreja da Conceio da Praia 23
Igreja do Convento de So Francisco 1
No informa 2
Total 26
Fonte: ACMS, Livros de Registro de bitos das Freguesias de Sto. Antnio Alm do Carmo, S e Conceio da
Praia, 1800-1850.
Da matriz da Freguesia da Conceio da Praia, devemos tomar conhecimento de
algumas curiosidades que a torna especial frente s outras. Esta foi uma das primeiras, se no
a primeira, a ser construda na Cidade de Salvador. Conforme Nascimento, a igreja que hoje
conhecemos no aquela construda quando aqui chegou Tom de Souza, a qual foi para dar
lugar atual, construda a partir de mdulos de pedra trazidos da metrpole, anteriormente
numerados, para ter facilitado a ordem da montagem86
.
Na Freguesia da Conceio da Praia aconteceram 26 sepultamentos, sendo que 23
aconteceram na matriz, um na igreja do Convento de So Francisco, enquanto dois no
tiveram informado o local onde foram sepultados. Importa informar que a maioria dos
Angolas enterrados na igreja da Conceio da Praia era escrava, e s dois forros. Quanto ao