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Psicanálise dos pais Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, n os 152/153, 42-69 Durval Checchinato E ste trabalho é testemunho de um atendimento que desenvolvemos há quase trinta anos. Lacan e Maud Mannoni afirmam que os problemas dos filhos têm sua origem nos pais. O filho é o sintoma dos problemas dos pais. Os sintomas da criança podem desaparecer quando os pais, em análise, conseguem resolver seus núcleos patógenos, causa dos sintomas da criança. Daí recebermos só os pais em análise, e não a criança. Palavras-chave: Psicanálise de pais, criança-sintoma, núcleo patógeno T his paper discusses the clinical treatment of parents through psychoanalysis. Jacques Lacan and Maud Mannoni have emphasized that children’s difficulties originate in their parents. In other words, the child is the symptom of the parents’ problems. Thus, the child’s symptoms may disappear when his or her parents, in analysis, are able to resolve their pathogenic nucleus, which is causing the child’s symptoms. This is why we receive only parents in analysis, and not the children. Key words: Psychoanalysis of parents, child-symptom, pathogenic nucleus À s’occuper uniquement de l’enfant, on le rejette en tant que sujet. M. Mannoni INTRODUÇÃO Este artigo é o testemunho de um traba- lho já de muitos anos. Trata-se de uma concepção teórica e prática inspirada na psicanalista francesa Maud Mannoni. Maud Mannoni é uma pessoa extraordi- nária com quem convivi, menos pes- 42

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Psicanálise dos pais

Pulsional Revista de Psicanálise, anos XIV/XV, nos 152/153, 42-69

Durval Checchinato

Este trabalho é testemunho de um atendimento que desenvolvemos há quasetrinta anos. Lacan e Maud Mannoni afirmam que os problemas dos filhos têm

sua origem nos pais. O filho é o sintoma dos problemas dos pais. Os sintomas dacriança podem desaparecer quando os pais, em análise, conseguem resolver seusnúcleos patógenos, causa dos sintomas da criança. Daí recebermos só os pais emanálise, e não a criança.Palavras-chave: Psicanálise de pais, criança-sintoma, núcleo patógeno

This paper discusses the clinical treatment of parents through psychoanalysis.Jacques Lacan and Maud Mannoni have emphasized that children’s

difficulties originate in their parents. In other words, the child is the symptom ofthe parents’ problems. Thus, the child’s symptoms may disappear when his or herparents, in analysis, are able to resolve their pathogenic nucleus, which iscausing the child’s symptoms.This is why we receive only parents in analysis, and not the children.Key words: Psychoanalysis of parents, child-symptom, pathogenic nucleus

À s’occuper uniquement de l’enfant, on le rejette en tant que sujet.

M. Mannoni

INTRODUÇÃO

Este artigo é o testemunho de um traba-lho já de muitos anos. Trata-se de uma

concepção teórica e prática inspirada napsicanalista francesa Maud Mannoni.Maud Mannoni é uma pessoa extraordi-nária com quem convivi, menos pes-

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soalmente que com seus textos recém-lançados e abordados página por páginana Faculdade de Psicologia, em Estras-burgo, sob a orientação da professoraFrançoise Hurstel. Devo a Mannoni mi-nha introdução na obra de Lacan. Ela fazparte de um grupo privilegiado que, tantosob o aspecto teórico como clínico, re-volucionou a abordagem da loucura,movimento que vai precisamente dosanos 1960 a 1980. Lacan, Clavreul, Sa-fouan, Leclaire, Perrier, Aulagnier, Fou-cault, Lévi Strauss, Oury, Dolto,Aubry... e tantos outros de que tínha-mos o privilégio de usufruir. Uma floradade rara originalidade e produtividade. Pa-ralelamente, as antipsiquiatrias italiana einglesa em plena efervescência: Cooper,Lang, Basaglia... a intrigante Mary Bar-thes... A dificuldade era dupla: assimilartudo isso e escolher a quem ouvir...Época de esplendor intelectual, teórico eclínico, hoje declinada em depressão ge-neralizada de grupos e subgrupos quenão se entendem e não se encontram.Anos difíceis esses que enfrentamos:sem liderança intelectual nem liderançapolítica. Um mundo globalizado, de in-cluídos e excluídos, que tenta se arru-mar como pode.Nesse desarranjo geral, a família vive umdesnorteamento sem par na história dahumanidade. A multiplicidade de formasde famílias atuais gera uma insegurançageneralizada na condução da união con-jugal e da educação dos filhos. As con-quistas da mulher na vida socialtrouxeram um desgaste nas funções dovarão, e a própria função paterna sofre

rebaixes consideráveis com conseqüên-cias severas para a subjetividade dascrianças.O certo é que não estamos mais na era(patriarcal ou matriarcal) das certezas;os pais estão a precisar e muito de umaajuda a fim de descobrirem os caminhosde seus desejos e assim conseguiremalicerçar uma geração possivelmentemenos neurótica, como sonhava Freudcom a descoberta da psicanálise.A psicanálise se presta particularmente aesse tipo de ajuda. A psicanálise se ca-racteriza como uma prática clínica abertaao novo, ao criativo, pois ela é a própriaprática do significante. Ela intervém se-gundo a regra da abstenção, isto é, sem-pre preocupada com a verdade doinconsciente, ela leva o psicanalista a seabster de intervenções no real, de emitirdiagnóstico, de sugerir ou indicar cami-nhos. Atuando sempre pelo princípio decastração, ela acredita (é a fé do cientis-ta) na virtualidade da palavra e na eficá-cia de seu poder. Os pais, iluminadospela descoberta de suas verdades, setransformam em sua subjetividade e,conseqüentemente, possibilitam mudan-ças subjetivas aos filhos.Opino que a análise dos pais é uma prá-tica hiper-oportuna. É preciso escutar ospais pós-modernos em suas angústiascheias de perplexidades. Se a função dopsicanalista é escutar a angústia de seutempo (Lacan), com maior razão impor-ta escutar os pais, pois o futuro da hu-manidade sempre estará comprometidocom a qualidade dos filhos que foremcapazes de criar.

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Freud soube fazer isso. O caso Hans éo primeiro caso de análise de pais, em-bora só o pai tenha comparecido ao con-sultório. Freud e, mais tarde, Lacandizem que o analista de Hans foi o paidele. Não concordo. Hans não teve ana-lista. Quem teve analista foi o pai deHans. E se um caminho se lhe abriu navida, foi porque seu pai, de alguma ma-neira, graças à análise com Freud, veioassumir a função paterna. Hans, deses-perado ante a falha dessa função, veio avivê-la na síndrome do pânico (que hojeé encarada como novidade na psicopato-logia!) do cavalo com um grande pipi,sobretudo o cavalo que caía. Na verda-de era seu pai que caía de sua funçãopaterna, deixava-o em pânico e ele nãosabia o que fazer com o próprio pipi di-ante das incursões de uma mãe que abu-sava de sua função materna. Única coisaa lamentar: vítima de preconceitos daépoca sobre a mulher (mãe), é pena queFreud não tivesse ouvido também a mãede Hans. Caso isso tivesse acontecido, aretificação de sua relação edípica com ofilho certamente teria sido facilitada econtribuído enormemente para o traba-lho de reestruturação subjetiva dele.Os tempos mudaram e hoje, felizmente,a mulher, a mãe, em pé de igualdadecom o homem na responsabilidade deeducar os filhos, é tão indispensável naescuta analítica quanto o pai.Foi preciso esperar quase um século paraque Lacan não só reconhecesse à mulherseu lugar, mas lhe atribuísse uma funçãoessencial na criação dos filhos: a própriafunção paterna depende do caso que ela,

a mãe, faz da palavra do pai.Vejamos o que Lacan e Maud Mannonipensam sobre isso:

LACAN: A CRIANÇA, SINTOMA DOS PAIS

Em duas notas manuscritas, em 1969,Jacques Lacan escrevia à Dra. Aubry,psicanalista de criança, membro daEcole Freudienne de Paris, mãe de Eliza-beth Roudinesco, uma síntese do que elejulgava importante levar em conta no sin-toma da criança. Eis aqui (em negrito) anota, seguida de meus comentários:“Na concepção que Jacques Lacan elabo-ra, o sintoma da criança se encontra nolugar de responder àquilo que há de sinto-mático na estrutura familiar”.(Lacan,1986: 13, 14)Lacan faz essa afirmativa tranqüilamen-te, como quem constatou o fato na clí-nica. Não lhe paira dúvida.O lugar da criança, na estrutura familiar,é sempre um lugar sintomático. É esselugar que nos ilumina na condução daanálise dos pais. A criança é alvo de pro-jeção dos ideais, das frustrações e dosproblemas dos pais. Esse lugar é um lu-gar de gozo, gozo da realização de de-sejos inconscientes e, às vezes,inconfessáveis dos pais, como gozo dacriança por sentir-se encaixada nosdesiderata que a determinam e subordi-nam. Há uma complacência mútua euma conivência tácita. Trata-se de ummodus vivendi possível em que a saídasintomática encarnada na criança res-ponde ao recalcado e aos ideais de egodos pais.Note-se: a posição da criança é sintomá-

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tica. Ora, o sintoma não é doença. Onde,então, se encontra a doença, causa dosintoma da criança? Evidentemente na“estrutura familiar”. Mas quem constituiessa estrutura? Obviamente os pais quea priori a fundaram como marido e mu-lher, senão como genitores. Conclusão:o lugar do sintoma é a criança e o lugarda doença (causa) está nos pais. Dissodecorre com evidência que são os paisque precisam ser tratados e, tratados, osproblemas (sintomas) das crianças con-seqüentemente se dissiparão.“O sintoma, eis o fato fundamental da ex-periência analítica, se define nesse con-texto como representante da verdade”.“A psicanálise nunca é o discurso cien-tífico que dela fala”, diz Perrier. Porque? Porque a psicanálise em si, nelamesma, é uma experiência. Só quempassa por uma análise “sabe” o que é apsicanálise. E tomemos “sabe” em seusentido radical: o “gosto” dela só o temquem a ela se submete. Se tal alimentosabe a peixe ou a feijão, a psicanálisesabe a psicanálise. Isto é, a experiênciado encontro com o inconsciente (JLPdizia Lacan e não mais " J@:"J@<) é ab-solutamente única e regeneradora. É aliberdade de sujeito reconquistada. A vol-ta ao estado de saúde. Uma experiênciasubjetiva, uma experiência de ser sujei-to. Isto é absolutamente específico dapsicanálise: trata-se de uma experiênciado sujeito do inconsciente. Mas em queconsiste essa experiência? Consiste emdescobrir que o sintoma é o representan-te de uma verdade. A psicanálise é umaciência porque cuida de estabelecer uma

verdade: a verdade do sintoma.Como o sintoma pode ser verdade se eleé “apenas” um representante dela, umcamuflado, um representante da repre-sentação?Entramos aqui na própria prática da psi-canálise. É a transferência entre analis-ta e analisante (entre pais e analista) queenergiza a associação de idéias (troca designificantes) ao redor do sintoma, é atransferência, dizia eu, que possibilitaque a verdade re-presentada, escamotea-da, emerja como que pelo acaso. O sin-toma (o significante!) sempre antecede àverdade, ele é a própria “certeza anteci-pada” dela. O segredo da análise consisteem não largar (démordre) a presa do sin-toma.O grande projeto iluminista de Freud, nofim do século XIX, consistiu numa des-coberta estupenda: o inconsciente. Infe-lizmente, um século depois já não nosdeslumbramos com tamanho achado.Mas pensemos um pouco: após milharese milhares de anos da existência dos hu-manos, somente, apenas somente no fimdo século XIX Freud levantou o véu domistério desse continente, depositário,registro das verdades do sujeito. E o pa-radoxo dessa descoberta está no fato deque ele se aproveita dos rejeitos dessecontinente (sonhos, atos falhos, esque-cimentos...), sempre tão desprezadospela “ciência” e filosofia dos séculosprecedentes, para demonstrar que sãojustamente eles os portadores (embaixa-dores) das verdades desse universo atéentão desconhecido. Se de um lado oprojeto iluminista de Freud é um com-

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promisso com a verdade, especificamen-te com a verdade do inconsciente, deoutro ele responde à mais pura tradiçãotalmúdica da verdade.1 A proibição: “...não farás para ti imagem de escultura...não te prostrarás diante delas, não lhesprestarás culto” foi sempre, paradoxal-mente, a diretriz de Freud. Nunca fazerde uma verdade um ídolo, uma estátuafria, e muito menos adorá-lo, como úni-co. A verdade sempre é verdade em re-lação a outra verdade, jamais AVERDADE. A verdade da análise é sem-pre a do representante dela. A experiên-cia fundamental da psicanálise consistenum encontro, o encontro do sujeitocom uma verdade sua.“O sintoma pode representar a verdade docasal. Aí está o caso mais complexo, mastambém o mais aberto às intervenções”.O sintoma (da criança!) oculta uma ver-dade: a verdade do casal. É impressio-nante o que ocorre quando um casalconsegue descobrir a verdade deles. Namedida em que se abrem às interven-ções, exatamente na medida em que seabrem às palavras intervenientes natransferência, aparece a possibilidade detransformação numa família e... incrível,os sintomas da criança desaparecem.Embora os sintomas do casal sejam maiscomplexos, sem dúvida nenhuma elesestão mais abertos às intervenções. Umcasal psiquicamente disponível (não per-verso!), à procura de um rearranjo de

vida familiar, certamente se abre às inter-venções e se deixa tomar pelas verdadesque vão sendo descobertas. A análise depais visa pois, descobrir “a verdade docasal”.“A articulação se reduz muito quando osintoma que acaba dominando diz respeitoà subjetividade da mãe. Aqui é diretamen-te como correlativo de uma fantasia que acriança está interessada”.Lacan sempre assinala a importância damãe na questão da orientação da pulsãoda criança. Se o sintoma diz respeito aum núcleo neurótico ou psicótico damãe, a articulação dele se torna maiscomplicada. E se a mãe for perversa, ofilho praticamente fica sem saída. Prova-velmente só lhe resta, por sua vez, per-verter-se.A situação da criança fica difícil quandoela é mera expressão de uma fantasia damãe. A mãe não a tem em conta de umsujeito com direito ao próprio desejo. Amãe simplesmente a considera como umcorrelato de sua fantasia. E a criança aca-ba se submetendo a esse papel, afastan-do-se cada vez mais da própria subjeti-vidade e do desejo próprio. Ela passa aocupar um lugar perigoso: o do comple-mento da mãe. Nesse caso, a articulaçãode sua subjetividade se complica.“A distância entre a identificação com oideal de ego e a parte presa no desejo damãe, se ela não tiver mediação (aquela quenormalmente a função do pai assegura),

1. Fuks, Betty Bernardo: Freud e a judeidade: a vocação do exílio. Trata-se de uma obra origi-nal, muito rica. Revela-nos uma face de Freud que nos encanta e ao mesmo tempo nos iluminano entendimento de como a psicanálise pôde surgir.

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deixa a criança aberta a todas as tomadasfantasísticas. Ela se torna o “objeto” damãe e não tem mais função que revelar averdade desse objeto”.A complicação que supra explanamosprovém do conflito em que a criança ficamanietada ante o ego ideal de seu hori-zonte subjetivo, que tenta afirmar, e aprisão do ideal de ego dos desejos de suamãe, que lhe tolhem os passos.A saída possível do impasse seria umsocorro provindo da função paterna. Afunção paterna é a função terciária, é aintrodução do Outro nessa relação dualsem saída. Mas, como precisamente dizLacan (1967: 579): “... aquilo sobre oqual nós queremos insistir é que não éunicamente da maneira como a mãe seacomoda com a pessoa do pai que con-viria se ocupar, mas do caso que ela fazde sua fala, digamos a palavra, de suaautoridade, dito de outro modo, do lugarque ela reserva ao Nome-do-Pai na pro-moção da lei”. Caso, portanto, a mãe nãose deixe castrar pela função paterna, acriança estará em perigo, será presa fá-cil de todas as incursões dos desejos damãe. Ela não passará de um “objeto” aserviço e aos avatares das fantasias ma-ternas. A criança não terá outra funçãoque, como “objeto”, revelar a verdadedesse próprio “objeto”. Mas aí o que ficacomprometida é sua subjetividade. Nessecaso, abrem-se caminhos para todas aspatologias possíveis: psicoses, neurosesou perversões!“A criança realiza a presença daquilo queJacques Lacan designa como objeto a nafantasia”.

O objeto a foi uma descoberta genial deLacan. Um dia Serge Leclaire, no Rio,me disse que só essa descoberta seriasuficiente para consagrar Lacan comoinovador na psicanálise. E de fato, aopropor a relação de objeto de Abraãocomo uma álgebra – a de “autre”, outro– Lacan formalizou o conceito e permi-tiu que essa relação seja entendida demaneira adequada.Primeiro, fica evidente que toda relaçãode objeto é uma relação parcial, jamaisuma relação total ou totalizante. Ao no-mear o “objeto” de a, Lacan explicitouque o objeto sempre é parcial; que o ob-jeto é outro porque o que da realidade seimprime no inconsciente pelo processoprimário é sempre outro daquele que arealidade apresenta; que é verdadeira-mente um “outro” pois não o podemosver ou contemplar: que, como um outroque absolutamente nos escapa, lhe calhabem a simples denominação de “objetoa”; que esse objeto “a” não é único, masuma infinitude, pois de tudo que vemosou de tudo com que entramos em con-tato – tenhamos ou não consciência des-se “tudo” – “algo” se grava em nossoinconsciente mediante o processo primá-rio para nunca mais se apagar; que esse“objeto” gravado jamais fica parado,movimentado que está pela força da pul-são, “força constante”, e, tal como umastro que sempre ao perfazer seu périploretorna à mesma órbita, infalivelmente o“objeto a” retorna ao foco de nossa con-cupiscência; que esse retorno continua aser efetuado sempre que uma fantasia oualgo do mundo externo relacionado a ele

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entre no radar de nosso ego; que esse“objeto a” não é, logicamente,especularizável, sua presença se faz no-tar como um chamado concupiscente,um estímulo que, para nós humanos, seapresenta em forma de desejo; que, en-tão, a causa do desejo é o “objeto a” natela de nosso ego; que o objeto “a” nosdá a “garantia”, a certeza implícita deque estamos inseridos no mundo, na re-alidade; que, paradoxalmente, nos forne-ce a sensação de concretude de nossapresença nesse mundo. Ele é a ponte en-tre o Innenwelt e o Umwelt.Temos, então, que a criança (o ser hu-mano) é determinada pelo discurso pa-rental e pelos objetos a que a vãoestruturando em relação ao mundo. La-can desdobra essa afirmação da seguin-te maneira:

$ a

Entenda-se: $ = sujeito barrado a = objeto a = união – desunião junção – disjunção inclusão – exclusão

O sujeito se constitui por uma duplaface: de um lado pelo significante (essen-cialmente aquele que o nomeia), pois tra-ta-se de um fal’ente, um ente que fala,isto é, um ente cujo ser é a palavra. “Apalavra é a morada do ser”, dizia Hei-degger. Alienado de si, o ser humanoestá condenado a viver no exílio de simesmo, sempre dividido entre a repre-sentação e si mesmo. Seu lote é essen-cialmente a falta para ser.

Raimbault pôde escrever: “eu é outro”e Fernando Pessoa (1995: passim128,130) vivenciou essa verdade em inúme-ros versos. Sua obliqüidade sempre lhemostrou a realidade deste destino defal’ente:

Emissário de um rei desconhecidoEu cumpro informes, instruções de alémE as bruscas frases que aos meus lábiosvêmSoam-me a um outro e anômalo sentido...

x xQue destino se passa em mim na treva?Que parte de mim, que eu desconheço, éque me guia?O meu destino tem um sentido e tem um jeito,A minha vida segue uma nota e uma escala,Mas o consciente de mim é o esboço im-perfeitoDaquilo que faço e que sou; não me igualaNão me compreendo nem no que, compre-endendo, faço.Não atinjo o fim ao que faço, pensandonum fim.

De outro lado, o sujeito humano não épura representação. Movido que é nãopor instinto, mas por pulsão, essa repre-sentação inevitavelmente vem recheadade carga afetiva, concupiscente, comuma força especial que denominamosdesejo. Logo, é preciso entender a estru-tura do sujeito como apoiada, determina-da pelo objeto que sustenta esse desejo,isto é, o objeto a . É por isso que, tra-balhando o significante (a representação),simultaneamente alteramos, modifica-mos ou anulamos a carga afetiva que fazsofrer. E cessando o sofrimento cessa aanálise, pois a análise trata do “real en-

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quanto faz sofrer”. Com outras palavras,não nos ocupamos do afetivo e, sim, dosignificante que o encarna.O desejo, humana sina, simplesmenteporque o homem é um fal’ente, é porexcelência uma fatalidade inerente à lin-guagem, é a pulsão representada. Aquia falta para ser fecha o ciclo, pois o de-sejo é simplesmente insaciável. Sempreque pensamos realizá-lo, ele brota comenergia redobrada.Fernando Pessoa descreve o desejo demaneira admirável:

Sou o intervalo entre o que desejo ser e osoutros me fizeram.

x xO segredo da busca é que não se acha.

x xPara onde vai a minha vida e quem a leva?Por que faço eu sempre o que não queria?

x xNão sou eu quem descrevo. Eu sou a telaE oculta mão colora alguém em mim. (Ibid.:passim 413, 455, 129, 127)

Isso exposto, elucida-se que a fórmulalacaniana de fantasia é um rico achado.O sujeito, barrado (trata-se de umfal’ente), movido pelo desfile de objetosque constituem seus desejos, é chama-do a descrever sua órbita nesse mundocom a imposição ética de não abrir mãodeles, uma vez conhecidos: “... não ce-derás ao teu desejo”. Mannoni (1970:137,138) conclui: “O lugar do objeto nafantasia funciona como armadilha, emnível do desejo secundário. O desejo é,assim, invocado a se fracionar incessan-temente, e quando o objeto da demanda

é satisfeito opera-se uma parada no mo-vimento que porta o sujeito: a fantasiasurge no instante em que o desejo já nãoestá mais a fim de relançar o sujeito nocaminho do desejo do objeto substituti-vo. O sujeito marcado pelo significanteé, ao mesmo tempo, separado e encadea-do ( ) ao objeto da fantasia; em sua pro-cura ardilosa ele é conduzido a colocarno outro o objeto da fantasia, fazendodo outro o suporte e o sustentáculo deuma falta fundamental”.Ora, voltemos ao filho. Mesmo antes dea criança vir ao mundo ela já se consti-tui como objeto dos ideais dos pais, es-pecialmente da mãe. Nascida, à medidaque vai crescendo, ela vai se tornando aconcretização desses ideais e aí todos osacertos e falhas são possíveis. Ou seja:“A criança realiza (para a mãe) a presen-ça daquilo que Jacques Lacan designacomo objeto a na fantasia”, isto é, objetodo desejo da mãe. A luta do filho será ade concretizar seus próprios desejos,conciliando-os com os desejos dos paisou deles se libertando.“Ao substituir esse objeto, ela satura omodo de falta em que se especifica o dese-jo (da mãe), qualquer que seja a estrutu-ra especial: neurótica, perversa oupsicótica”.O desejo da mãe, como qualquer dese-jo, terá sempre uma falta, não fosse se-não a intenção de ter gerado o filho. Masé isso que pesa, pois trata-se de um su-jeito! O filho vem então como “preenchi-mento” dessa falta. O que, sabemos,será sempre uma leda ilusão. Mas pelofato de ser inconsciente nem por isso

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essa ilusão deixará de ter na prática maio-res ou menores conseqüências. Tudodepende da estrutura do desejo da mãe.Inclusive a geração de um filhonormativizado. Se essa estrutura forperversa ou psicótica as conseqüênciaspara o filho serão mais pesadas, senãodrásticas. Maud Mannoni diz que é pre-ciso três gerações para produzir um fi-lho psicótico. O mesmo, sabemos pelaclínica, se pode dizer de um sujeito per-verso.Ora, o trabalho com os pais pode inter-romper essa seqüência ou conseqüênciadesastrosa para a terceira geração. E issoé muito! Um homossexual não se faznuma só geração. Mas um obsessivo(talvez a mais terrível das conturbaçõespsíquicas) se faz em apenas uma gera-ção. Basta uma mãe que em tudo impo-nha seus desejos ao filho e o faça inca-paz de abrir mão desses seus desejos.De todo modo, o filho sempre será víti-ma e/ou beneficiário da estrutura psíqui-ca da mãe. Ele será convocado a ser osubstituto do objeto que falta à mãe(fálus) ou, caso tenha a felicidade de teruma mãe boa, isto é, aquela que sabeser suficientemente inútil, ele terá a fe-licidade de ter acesso crescente ao dese-jo próprio e à construção de suasubjetividade.“Ela aliena em si todo acesso possível damãe à sua própria verdade, dando-lhe cor-po, existência e mesmo exigência de serprotegida”.A posição da criança-sintoma é compro-metedora: ela simplesmente responde àfalta na mãe. Oferecendo-lhe o corpo

para a mãe cuidar, sempre manifestando-se incapaz para a higiene pessoal, para aalimentação ou para a escolha da roupa,consagrando-lhe a existência, nada arris-cando que não seja direcionado por elaou afetando que sem a proteção dela éimpossível subsistir, a criança (o filho)perpetua a sua infantilização e se incrustacomo tampão, impedindo a mãe de teracesso à verdade que ela, a criança,oculta: a verdade que ela paradoxalmentemanifesta como sintoma da falta na mãe.Mãe e filho, em conivência sintomática,num jogo de esconde-esconde, juram in-capacidade de modificar as coisas. Tudosacramentando num “não consigo” per-petuado.Tributo caro, este de ser sintoma essen-cialmente da mãe ou do discurso paren-tal. Talvez pudéssemos dizer que não hápossibilidade de ser pai e mãe sem que ofilho seja sintoma, com certeza genéticosenão psíquico dos pais. O problematodo está no peso ou na densidade daestrutura parental. Neurose, perversão epsicose são lotes possíveis de ser sujei-to humano; a questão toda está no quan-tum os pais podem preservar os filhos desuas mazelas, nem sobre eles lançandosuas falhas, nem deles usando para, ilu-soriamente, as preencher, e nem ospredeterminando em seus desejos a pontode os privar de ter acesso aos próprios.E o paradoxo dessa posição consiste emque a criança se constitui numa aliena-ção, isto é, num obstáculo para a mãedescobrir sua verdade.“O sintoma somático dá a máxima garan-tia a esse desconhecimento; ele é o recur-

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so inesgotável, conforme os casos, a teste-munhar culpabilidade, a servir de feitiço,a encarnar uma primordial recusa”.A alienação estrutural do fal’ente o con-dena a uma incessante e inescapável pro-cura da verdade. Mas a verdade – 80h0V – por definição, como disse Hei-degger, é por excelência des-ocultação.Tirar do 80h l – o rio do esquecimento.O sintoma do filho caminha no sentidocontrário: tem a finalidade de praticaruma ocultação, um desconhecimento deuma verdade perturbadora. Ora, todaverdade subjetiva perturba, pois ela ésempre um destronamento de nossas“certezas imaginárias”.Note-se que aqui Lacan explicita o sin-toma: trata-se do sintoma somático. Por-tanto, aquele que de uma maneira ou deoutra se aninha no corpo ou em sua fi-siologia, muitas vezes desafiando o diag-nóstico médico e as tentativas de soluçãodos pais. “Sintoma somático”: a dor decabeça inespecífica, o não conseguirdormir, o choro, o alimento “voluntaria-mente” vomitado, o cocô retido, o xixienurético, a garganta que não cede, afebre de repetição, a dermatite atópica, obalanceio, a automutilação, o ranger dedentes, o sono agitado ou intermitente, ador de barriga inesperada, o grudar-sena mãe em dia de festa, o morder a golada blusinha até molhá-la inteira... Umainfinidade tão infinda de sintomas comoinfindo é o sujeito humano... O sintomada criança alimentado pela mãeprecipuamente ou pelo pai (videSchereber!) se constitui numa fonteinsecável a jorrar culpabilidade: dívida

insaldável da mãe ou do pai com os pais,com a vida, a religião ou mesmo o bem-estar do filho. Este, então, recebe cuida-dos tais que se destinam à reparação ouà compensação de um saldo negativo ja-mais positivado. Mas nesse caso o filholeva a triste sina de ser moeda de troca.Isso não é infreqüente no caso em quea criança se destina a ocupar o lugar deoutro, que morreu. Sobretudo quandoleva o mesmo nome. Ingrato destino!Pior ainda quando o filho serve para co-brir a castração, driblá-la sem cessar, aoser constituído como feitiço da perver-são materna.Mas talvez o mais problemático se dê nocaso em que o filho é colocado comosintoma de uma recusa primordial, sim-plesmente a recusa de querer ser mãe ouo repúdio do filho por ser esperado(a)um(a) e ter nascido outra(o).Trata-se de uma criança rejeitada nonascedouro; ela já vem ao mundo semum lugar no discurso, ou melhor, no de-sejo da mãe ou do pai.Muitas vezes me pergunto por que asmães que não querem ser mães, não sedão o sagrado direito de assim agir!“Breve, a criança na relação dual com amãe lhe dá, imediatamente acessível, o quefalta ao sujeito masculino: o próprio obje-to de sua existência, aparecendo no real.Daí resulta que na medida daquilo que elaapresenta de real, ele se oferece a um su-borno maior na fantasia”.Lacan nos ensina que há dois tipos derelação na construção da subjetividadehumana: a relação dual e a relaçãoterciária. A relação dual é sempre uma

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relação sem saída em que pese a pro-posta de Hegel de que a luta de prestígiodo senhor e do escravo teria uma solu-ção no final da história. A relação dual ésem saída porque ela gera o impasse dasubmissão do outro e, daí, a morte (sub-jetiva ou física) do outro. A criança sub-metida ao desejo da mãe, a criança“aparecendo no real” como “objeto desua existência” fica sem acesso à subje-tividade, pleno se for autista, em parte sefor neurótico ou psicótico. Quanto maisa criança se presta a essa seduçãoinescapável mais ela será subornada nafantasia com a ilusão de poder ser ama-da, compreendida e, em contrapartida,poder preencher a falta da mãe. Relaçãomortífera, pois a criança dela não temsaída, ou seja, ela fica sem acesso aodesejo próprio, à própria subjetividade.A relação terciária, entretanto, aquela emque a mãe “faz caso da palavra do pai”,é uma relação benfazeja, que o coloca nalinguagem, numa “inscrição” terceira.Terciária porque a mãe, castrada, nãopermite que o filho ocupe o lugar da faltaou do complemento que ela não tem.Ocupando o lugar terceiro a criança seencontra no ápice da relação triangulardo Édipo, em eqüidistância do pai e damãe, deles se separando na medida emque puder dispensá-los. Daí decorre quea mãe ideal é aquela que sabe ser inútilpara a criança na hora e na idade certas.Apenas a relação terceira permite que acriança tenha acesso ao seu desejo e as-sim vá constituindo sua subjetividade. Anomeação (do nome do pai) é o primei-ro passo para que a criança se ordene

nessa relação. O nome que ela porta eque a porta, coloca-a como terceira en-tre pai e mãe, entre ela e o outro. A fun-ção paterna é o princípio ordenador quesepara a criança do desejo da mãe, ins-titui a diferença sexual e lhe concedeacesso ao próprio desejo. Propriamentedito, é nisso que se constitui a castração.Ora, a castração é simplesmente deter-minante, como diz Lacan, para a norma-lidade e a anormalidade.Resumindo: a relação dual é sempre pre-judicial para a criança, como o é em te-rapia. Nessa relação o sujeito masculino,aquele a quem falta a possibilidade degerar, de produzir um real-corpo, sepresta de maneira particularmente propí-cia a um suborno maior por parte da mãe.Ele funciona como um obturador da faltada mãe uma vez que se apresenta nãoapenas na fantasia dela, mas no real daexistência. Resultado: na fragilidade dasua existência, na sua impotência radical(helplessness), a criança quando não res-peitada como sujeito se torna presa fácildas falhas da mãe e não terá outra saí-da que ser sintoma dos problemas dela.“Vendo o fracasso das utopias comunitá-rias, parece que a posição de Lacan noslembra a dimensão do que segue”.“A função de resíduo que sustenta (e aomesmo tempo mantém) a família conjugalna evolução das sociedades coloca comovalor o irredutível de uma transmissão –que é de outra ordem que aquela da vidasegundo as satisfações das necessidades –mas que é de uma constituição subjetiva,implicando a relação com um desejo quenão seja anônimo”.

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Todas as tentativas de criar a criança emcomunidades coletivas (experiência, porexemplo, na Alemanha de Hitler ou daRússia comunista) fracassaram redon-damente. De outro lado crianças de paismortos na guerra e criadas em creche,ou, mesmo em dias de hoje, crianças emcreche, tratadas de maneira coletivacom rodízio de pajens ou enfermeiras,apresentam severas patologias dehospitalismo: incapacidade de alcançar aestrutura do Eu, ausência da dimensãodo outro, impossibilidade de usufruir dasubjetividade e do acesso ao desejo pró-prio, ausência do Outro com severa con-seqüência para a dimensão simbólica.Sem a estrutura imaginária e o registrodo simbólico essas crianças apresentamsintomas que são a prova concreta dafalta do Outro: transitivismo prolongado,automutilação, mordidas no próprio cor-po, balanceio, auto-erotismo instintual,descontrole fecal e urinário, facies para-lisado, sem expressão de alegria ou vida,olhar vago, muitas vezes, marasmo emorte!Lacan constata que dificilmente o serhumano tem saída fora da estrutura fa-miliar. As experiências fora dessa estru-tura e as patologias constatadas parecemcomprovar a fundamentação dessa con-cepção. A família, minimamente família,é absolutamente necessária para aviabilização do sujeito humano. A cons-trução da subjetividade humana é algomuito complexo. Ela só pode se efetuarpela referência constante à mãe e ao pai,ou aos que tais possam ser.Com o processo da globalização vive-

mos num mundo literalmente desmonta-do. A família tomou tantas formas que jánão podemos falar de “a família”. A“produção independente” se multiplicoumundo afora. O pai como “chefe” defamília tornou-se um conceito fluido.Cada vez mais, como observou Lacan, afunção paterna se dilui em todas as so-ciedades. A mulher, por sua vez, sempremais conquistando posições no mundo,na sociedade, na esfera das funções pú-blicas e liberais, está longe de ter con-quistado um lugar que lhe permita umaidentidade tranqüila. Exemplo disso éaquilo que se achou por bem de designarcomo “dupla jornada”. Hoje já não fala-mos em paterfamílias ou no pátrio poder.Falamos simplesmente de autoridadeparental, valendo tanto para o pai quantopara a mãe.As relações conjugais tornaram-se maistensas, com, no fundo, uma disputa depapéis e de poder, ou talvez com umaindefinição das funções ou mistura delas.Hoje há múltiplas formas de família quefogem aos modelos matriarcal e patriar-cal.Mas talvez a característica mais acentu-ada das famílias pós-modernas seja aflacidez de vínculo matrimonial. Note-setambém a tendência de se constituíremcasais temporais sem muita preocupaçãocom a efetivação legal da ligação.Além disso, a pós-modernidade, sobre-tudo com a globalização, diluiu os limi-tes dos hábitos e costumes dos povos ea intercultura faz parte de nosso cotidi-ano. Os limites de pátria, de língua e depovos estão ruindo como simbolicamente

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ruiu o muro de Berlim, símbolo máximode uma impostura desavergonhada sepa-rando um mesmo povo em dois. Umpouco antes, maio de 1968, na França,representou a mudança radical da mo-dernidade para a pós-modernidade. É apartir daí que 1970 é considerado fim doséculo XX. Maio de 1968, com a subse-qüente renúncia do grande General DeGaulle, teve conseqüências definitivas napassagem da modernidade para a pós-modernidade. Na França, o reflexo des-sa verdadeira convulsão social estáexplodindo na geração atual dos adoles-centes e das crianças. Disciplina, respei-to aos pais e aos professores estão cadavez mais ausentes nas novas gerações.A pergunta feita então, e agora repetida,é a mesma: que efeito terá sobre as ge-rações montantes essa incrível quebraou atenuação da função paterna? É inte-ressante verificar como cada vez mais opai pós-moderno não raro se apresentacomo uma figura assustada, atônita, àsvezes até imbecil, e a mulher, a mulher-mãe, a tomar a dianteira.Se de um lado Lacan verifica o fracas-so das “utopias comunitárias” que pen-sar dessa posição da função paterna infading? Ele não hesita em mostrar suapreocupação:

... Mas um grande número de efeitos psico-lógicos nos parecem depender de um declí-nio social da imago paterna. Declíniocondicionado pelo retorno de efeitos extre-mos do progresso social no indivíduo, de-clínio que marca sobretudo, em nossosdias, nas coletividades que mais sofreramesses efeitos: concentração econômica,

catástrofes políticas...... Declínio mais intimamente ligado à dialé-tica da família conjugal, já que se operapelo crescimento relativo muito sensível,por exemplo, na vida americana, das exi-gências matrimoniais.Qualquer que seja seu futuro, esse declínioconstitui uma crise psicológica. (Lacan,1987: 60)

Se nossa função de psicanalistas é a de,incondicionalmente, acolher o paciente(ou a família) cujo real o (a) faz sofrer,com Freud continuamos a desconfiar doprogresso. Ele é inevitável mas, incrivel-mente, pouco tem contribuído para a jus-tiça, a igualdade e a paz entre oshomens. Mais ainda, o mundo atual,com imensos avanços em todos os cam-pos da ciência e da técnica, está a impora mais cruel e impiedosa divisão entre oshomens, a tenebrosa partilha entre os in-cluídos e os desesperadamente excluí-dos. O mal-estar da civilização atual(fome, violência, culto do imaginário,guerras, fanatismos religiosos, AIDS...)é extremamente perturbante! A verdadeé que nós, psicanalistas, diante de tantas“mutações”, temos mais perguntas querespostas.Que será dessa geração onde a funçãopaterna pouco se faz presente ou estásimplesmente ausente?Que subjetividade terão, exempli gratia,os filhos da homopaternidade? Que iden-tificação sexual lhes será facultada, ondenão há um homem e uma mulher paramarcar a diferença sexual?O transporte puro e simples de signifi-cantes (“casal”, “marido”, “mulher”,

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“pai”, “mãe”, “filho”...) que apreendema relação heterossexual da família para aunião homoerótica é inepto e ilusório.Não se brinca com as palavras. Elasapreendem o real delimitando a realidade.Haveria de se inventar outros significan-tes que consigam apreender outras for-mas de união! Como, por exemplo,ficará a função paterna encarnada numamulher que diz ser o pai da criança? Queidentificação está se oferecendo se aocrescer ela verá claramente entre osseus colegas que a paternidade é exerci-da por um homem e a maternidade poruma mulher tout court? Que será de umadolescente crescido nessas condições,ao verificar que o homoerotismo nãotem possibilidade de gerar um filho?Perguntas, perguntas... Uma coisa é de-fender uma idéia acadêmica, ou mesmouma ideologia, outra é aquela com quelidamos diuturnamente na clínica: o realinsuportável, dolorosamente insuportáveldo sofrimento humano.Que pensar da subjetividade de filhos delaboratório, cuja paternidade se restringea um espermatozóide descongelado?Como viverão estas crianças na socieda-de? Que castração alcançarão elas paranormativizar a pulsão e transformá-la emenergia sublimatória?Toda paternidade (ou maternidade) temque ser responsável, pois trata-se da fe-licidade ou infelicidade de um ser huma-no inocente, radicalmente incapaz detraçar o destino de seu desejo. Toda con-quista dos discriminados só tem sentidose ela for vivida como realização huma-na, subjetiva. Desde que seja vivenciada

como desafio, provocação, luta de pres-tígio, trata-se mais de uma reivindicaçãoou de uma desforra do que realizaçãosubjetiva e social. Se a adoção de filhospor homossexuais se caracterizar poresse imaginário, certamente terá conse-qüências com prognósticos sombrios.Por mais que a crise se instale, Lacannão deixa de insistir sobre a necessida-de da família (por mínima que seja)como sustentação da criança e da for-mação do homem.Em Os complexos familiares (p. 52), eleinsiste: “Entre todos os grupos humanos,a família desempenha um papel primor-dial na transmissão da cultura. Se as tra-dições espirituais, a manutenção dosritos e dos costumes, a conservação dastécnicas e do patrimônio são com ela dis-putados por outros grupos sociais, a fa-mília prevalece na primeira educação, narepressão das pulsões, na aquisição dalíngua acertadamente chamada materna.Com isso, ela preside os processos fun-damentais do desenvolvimento psíquico,preside essa organização das emoçõessegundo tipos condicionados pelo meioambiente, que é a base dos sentimentos,segundo Shand; mais amplamente, elatransmite estruturas de comportamentoe de representação cujo jogo ultrapassaos limites da consciência. Ela estabelecedesse modo, entre as gerações, umacontinuidade psíquica cuja causalidade éde ordem mental.”Continuando nosso comentário, podere-mos constatar que Lacan explana o queele entende por “causalidade de ordempsíquica” da família.

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Aqui, no texto que tentamos explicitar,ele fala de um resíduo que sustenta emantém a família, um resíduo que não éda ordem biológica ou da ordem da ne-cessidade (isso é simplesmente suposto)e, sim, da ordem psíquica. A pulsão nãoencontra saída senão na família humana.Trata-se de um valor de ordem da trans-missão de gerações – algo simplesmen-te irredutível ao biológico ou ao social,algo que diz respeito ao desejo nominadode formar uma parceria conjugal, paren-tal, de ter um filho que seja a continui-dade da vida e dos ideais do casal. Oirredutível desse elo de vida que sustentaa família é o desejo, aquilo que é espe-cífico à ordem humana e que a susten-ta. Ora, paradoxalmente, é o desejo queacarreta todos os perigos e todas aschances para o filho.Dito isso, fica evidente a necessidade im-periosa de escutar os pais quanto aosdesejos que os sustentam ou não, queos mantêm ou não como pais. Os sinto-mas dos filhos serão, com certeza clíni-ca, respostas aos desejos inconscientesdeles.Notamos uma certa imaturidade prolon-gada no homem pós-moderno a pontode ter-se-lhe atribuído o termo adultes-cente. Assumir uma mulher, um casa-mento, ter filhos são coisas que o espan-ta. O homem está fugindo diante das in-cursões da mulher pós-moderna. De umlado, grande parte das mulheres se tor-nou invasiva. E isto de certa maneirabota os homens em retirada. O relacio-namento sexual ou afetivo que não sabea conquista mútua é desconstrutivo, re-

tira o encanto da descoberta e a admira-ção mútua. De outro lado, ao seassenhorarem do poder ou funções quedurante muito tempo foram exclusivida-de dos homens, as mulheres se torna-ram um tanto impositivas senão ousadas.Passaram à ofensiva. Os homens, mui-tas vezes meio perplexos, entramreativamente na defensiva. Ora, nadamais desagrada uma verdadeira mulher,uma mulher verdadeiramente feminina,do que um homem pouco homem, umhomem não verdadeiramente homem. Eaí o círculo vicioso se fecha, as incerte-zas tomam conta de todos. Em casos taisque não é de admirar que a função pater-na fique comprometida.“É segundo tal necessidade que se julgamas funções da mãe e do pai. Da mãe, en-quanto seus cuidados portam a marca deum interesse particularizado, fosse elepela via de suas próprias falhas. Do pai:enquanto seu nome é o vetor de uma encar-nação da Lei no desejo”.Não deixa de causar estranheza que La-can fale aqui de “é segundo tal necessi-dade... ” quando na frase anterior falavade um resíduo de sustentação e manu-tenção da família, resíduo esse ligado auma transmissão que não é da ordem dasnecessidades biológicas e, sim, de um“desejo”, não “anônimo”, assumido porum homem e uma mulher. Talvez issomostre a plena convicção de Lacan deque a criança, fora da triangulação como pai e a mãe, tenha um futuro com-prometido, com oportunidade diminutade um desabrochar especificamente hu-mano.

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A transmissão da filiação, muito além datramitação biológica, se passa em nívelda transferência, graças ao grande Ou-tro encarnado nos pais, sobretudo no pai.Trata-se de uma obra da cultura, e nãoda carne.Realmente são os cuidados da mãe quepossibilitam que a criança encontre umamatriz benfazeja para a fundação de suasubjetividade. As faltas da mãe com cer-teza propiciam que a criança tenha aces-so a seus desejos. O jogo de presença eausência enseja, como Freud o demons-trou no caso de seu neto, a inscrição dafalta em significantes que sustentam asubjetividade.De outro lado, as funções do pai se con-cretizam na vetorização da encarnação deLei. Lei que, ao nomear a criança com onome do pai, a define como não sendopara a mãe e, sim, para a continuidade dafamília, da cultura, da civilização. Onome-do-pai “encarna a Lei no desejo dacriança”, arrancando-a da ordem doacasalamento e inserindo-a na ordemhumana como um socius de direitos edeveres.

MAUD MANNONI:A CRIANÇA, SINTOMA DOS PAIS

Retornemos a Maud Mannoni: Mannonié uma criatura privilegiada da psicanáli-se, encadeando-se com Klein e Dolto.Criaturas realmente inspiradas, com umconhecimento profundamente femininodo ser humano, sua estrutura, seus limi-tes, suas fraquezas, suas falhas traumá-ticas, definidoras de uma históriadramática, arrebentando-se contra o

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mundo da neurose e, mais ainda, o dapsicose.Mannoni, em especial, é aquela das trêsque mais se deixou interrogar pelas diver-sas correntes da psicanálise e, sobretu-do, aquela que mais se permitiuinterpelar pela loucura. Em seu livro Opsiquiatra, seu “louco” e a psicanálise(em má tradução vernácula), ela lança,nas pegadas de Freud, um grito de aler-ta: a loucura precisa ser acolhida, o de-lírio é uma tentativa de cura, ele precisaser suportado.Sob a influência direta de Lang, ela nãocai na ilusão de que a “viagem” da lou-cura possa ser feita pelo próprio pacien-te, sozinho. Mannoni conhece profunda-mente Lacan e sua contribuição para apsicanálise. Aliás, nenhum colega foi tãoelogiado por Lacan em seus semináriosquanto Maud Mannoni.Ela sabe que esse ser fundamentalmen-te desamparado em sua prematuridadesó pode vir a ser sujeito se o outro e oOutro o tornarem ser humano. Isto é, nalinha direta de Freud, Mannoni vai cen-trar toda sua concepção de “doença” psí-quica dentro do complexo de Édipo. Éinteressante notar como Freud, na medi-da em que foi amadurecendo e aperfei-çoando seu pensamento, acaboucentrando a formação do aparelho psí-quico da segunda tópica, inteira dentrodo Édipo. Id, ego e superego só são pos-síveis de serem concebidos teoricamenteporque a singularidade do sujeito se for-ja, se estrutura dentro da evolução edí-pica. Freud deixa a concepção daschamadas fases e, simplesmente, revê

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sua descoberta do aparelho psíquico e arecoloca em termos de estruturação e deestrutura. Ora, Mannoni, inspirada emLacan, vai levar às últimas conseqüên-cias a questão da configuração dos dis-túrbios psíquicos, implantando-osexclusivamente no âmbito do Édipo e dacastração. Lacan radicalizou essa con-cepção: o edifício da psicanálise, diz ele,rui por terra se eliminarmos o Édipo e acastração. Por isso toda psicanálise quese pretenda como tal e se afaste dessesdois eixos, que não são outros que os ei-xos da diacronia e da sincronia, extravia-se da episteme que lhe é própria e aleitura do inconsciente é deixada ao lar-go. Daí que a psicanálise hic et nunc,tendo em vista a contribuição radical edisruptiva de Freud, nos deixa perplexos.Mannoni vai a fundo e aos pormenoresda historização de cada paciente. O pa-ciente é mero sintoma dos problemas dospais. A firmeza teórica de Mannoni sedeve a que sua teoria, à semelhança dade Freud, dimana diretamente de sua clí-nica. No frontispício de suas colocaçõesresplendem dois princípios fundamen-tais:1) “Nada pode ser compreendido na psico-se, se não se situa a maneira segundo aqual o sujeito (desde antes de seu nasci-mento) foi preso em certo feixe de palavrasparentais”. (1970: 53)2) “A gravidade das desordens psicóticasda criança está ligada à maneira segundoa qual, muito cedo em sua vida, defrontou-se com uma palavra mortífera”. (Ibid.: 52)Dois princípios básicos que, de verdade,um cobre o outro. Um louco não se faz

numa só geração. Exceto traumatismoscatastróficos, normalmente são necessá-rias várias gerações para que surja umdoente psíquico numa família. Para Man-noni fica, pois, evidente que não é a doen-ça que conta e sim o doente. A doençafunciona para ela como um sintoma, umsintoma que denuncia o estado psíquicoem que o sujeito foi concebido, gerado,e “alimentado” em seu desenvolvimentopsíquico. Já bem antes que venha aomundo, antes mesmo que seus pais seconheçam, a base da trama edípica estápronta. À medida que os pais tecem seusprojetos, inclusive, ou sobretudo, o dosfilhos, estes estão com a sorte lançada.“Certo feixe de palavras” é o discurso darepetição sintomática, o discurso que ali-menta a estrutura neurótica ou que fa-culta a psicose. Para Mannoni,teoricamente falando, e pela minha prá-tica clínica, se não for inútil tratar dacriança-sintoma, será pelo menos umtrabalho hercúleo com pouca chance deprognóstico. E a razão é simples: pormais que trabalhemos a criança (ou oadolescente doente!) ao voltar para casaela estará sempre às voltas com “essefeixe de palavras parentais”. Ora, é esse“feixe” que é a causa e a sustentação deseus sintomas. A criança, se tiver aoportunidade de uma verdadeira análise,na medida em que passe da repetição àlembrança, da lembrança à rememoraçãoe da rememoração à elaboração, entraráno impasse de uma angústia crescente.Só na medida em que conseguirmos de-sarticular o discurso parental que man-tém a profecia, o voto, os oráculos ou os

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juramentos que sustentam a alienação dodesejo do filho, é que este começará ater acesso ao seu desejo. Como o filhopode querer desejar se o desejo dos pais,ou de um deles, é tão imperativo que sólhe resta a saída da conformação, da có-pia, ou da oposição?Há palavras que são verdadeiramentemal-ditas, no sentido em que entendemosmaldição. Mas a maldição não vem nematua via qualquer castigo de Deus. A for-ça dela dimana exatamente da força dapalavra. E palavra de pai, palavra demãe! O filho, enquanto estiver sob essapalavra mal-dita (Mannoni a chama demortífera), tem chance reduzida de teracesso ao desejo próprio. À medida queessa “palavra mortífera” for detectada nodiscurso, mais ainda no desejo dos paisou de um deles (o genitor patogênico),proporcionalmente ocorrerá umadesimpressão dessa “marca ao nível docorpo da criança” e “o acesso a um cor-po simbólico” será franqueado. Trata-sede uma operação logicisante como o étoda intervenção adequadamente psica-nalítica. O desejo constitui o sujeito, maspara se ter acesso a ele é necessário quea palavra que o constitui seja liberada,pois ela está bloqueada por “um feixe depalavras parentais” que exprimem o de-sejo dos pais e encobrem o desejo do fi-lho. O filho só tem uma saída diantedessa intrusão parcial ou maciça: respon-der como sintoma dela. O conflito entreter que responder ao desejo parental e ovislumbre de poder despertar o desejopróprio desencadeiam uma cascata deinfinitas patologias possíveis.

Mannoni (1967: 117) reduz esse discur-so parental a duas chaves:1o) “Um discurso fechado”.2o) “Um discurso dramático”.O “discurso fechado” compreende o“mito familiar” ou, como Lacan escre-via, “os complexos familiares”. O mito éa primeira maneira, a mais primitiva defazer ciência. É o modo como a famíliase concebe em sua história independen-temente do real. É a leitura que dele a fa-mília consegue fazer para melhor seadaptar às angústias do retorno do recal-cado. “Discurso fechado” porque é sem-pre o retorno do mesmo e a leitura únicaque atravessa gerações. “A criança doen-te é o representante ou o suporte do mal-estar parental, mas de um mal-estar quese quer guardar fechado” (Ibid.: 116). Omilagre da análise é poder romper essaseqüência, é impedir que a próxima ge-ração venha a ser lida sob os mesmosângulos e as mesmas taras familiares. Aanálise é ruptura, disrupção, nessa con-tinuidade muitas vezes devastadora.O complexo é um conjunto de atitudesou de concepções das coisas que o su-jeito sempre vai repetir diante de certascircunstâncias. Possibilitar aos pais e aosfilhos que esse mito seja interpretado,rompê-lo graças à nova leitura da inter-venção analítica, pode mudar de imedi-ato o arranjo inconsciente, possibilitandoque certos núcleos patógenos se desar-ticulem, se dissipem, e novas cadeias seestruturem num rearranjo que cesse arealimentação patógena. Uma coisa é cer-ta, a partir do momento que tiradascomo “meu filho não dorme”, “eu não

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consigo dormir tranqüila em meu quar-to”, “ele é nervoso porque toda minhafamília é nervosa”, “ele faz xixi na camacom oito anos porque eu também fiz”,“eu vou ter câncer porque as mulheresde minha família morrem de câncer”,etc., etc., se impõem pela linguagem dospais, elas selam um passado e impedemo filho de ser portador de seu próprio de-sejo no presente. “E é por falta de poderse situar em relação a eles (os pais) queo sujeito desenvolve os seus sintomas.Na relação mãe-filho tudo o que toca asnoções de dependência, frustração, nãoé na realidade senão a colocação da re-lação fundamental do sujeito à coisa”(Mannoni, 1970: 125), ou seja, à mãe ouao soberano bem que é interdito. Ora, éo interdito do incesto que, separando acriança da lei da mãe, permite-lhe oacesso à lei do pai que consiste no ad-vento da ordem, da cultura, da lingua-gem; por isso mesmo “Freud ao insistirsobre o Édipo, mostra que nada podeser articulado sobre a sexualidade dohomem se ela não passar pela lei da sim-bolização... E o que é rejeitado no sim-bólico reaparece no mundo exterior (oreal) sob forma de alucinação. Segue-seuma espécie de degradação em cadeiaque se chama delírio”. (Ibid.: 126)Daí que ao receber os pais, importa dis-criminar qual é a demanda dos pais equal é a demanda do filho. A demanda,por se articular com o significante, sem-pre é demanda de outra coisa, “e o de-sejo aparece como suporte daquilo quequer dizer a demanda, além daquilo queela formula” (Ibid.: 127). O traquejo do

analista o conduzirá à escuta do que odiscurso do pai ou da mãe ou de ambosveiculam. Que genitor é patogênico?Com tempo e prática logo podemos ve-rificar, dentro da estrutura edípica, quelugar ocupa a criança. Ir mal na escola,irrequieto, hipercinético, dorminhoco,“preguiçoso”, agressivo, mordedor,alheio a tudo, desligado, incapacidade deconcentração, escrupuloso, lavar asmãos sem parar, trocar de letra, dificul-dade em se alfabetizar, problemas com amatemática, indisciplina na escola, inibi-ções, insegurança, insociabilidade, se-xualidade hipertrofiada, masturbaçãocontínua, droga, fumo... e outros sinto-mas são sempre e invariavelmente sinto-mas de um “discurso fechado”. Acriança nasce na absoluta indiferencia-ção: são os pais que lhe fornecem signi-ficantes que lhe estruturam e fixam adiferença, sexual, subjetiva. “A posiçãodo psicótico face ao desejo tem algumarelação com a maneira como é chamadoa se ocupar de uma função na constela-ção familiar... é suficiente um “louco”que expie para preservar o equilíbrio dafratria e dos pais... se o doente se instalano não-desejo, isso corresponde de fatoao voto profundo da família. (Ibid.: 127,128). E isto é tão verdade que quando aanálise alcança uma mudança nesse qua-dro, na medida em que o filho doente serecupera, outro membro da famíliaadoece. A conclusão de Mannoni dian-te dessas constatações clínicas vemcomo seqüência lógica: “o quadro, depo-sitário do mundo fantasístico do pacien-te, deve portanto tornar-se objeto de

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análise para permitir que se desatem oslaços psicóticos estabelecidos pelo pa-ciente com a instituição psicanalítica ousocial. A análise do quadro é a coloca-ção às claras daquilo que, na imagem docorpo do paciente, permaneceuespedaçado”. (Ibid.: 139)E é essa leitura do quadro do psicóticoque, salvas as diferenças, tenho feitotambém no caso de neuróticos.Enfim, o discurso dramático. “O dramaa que somos remetidos não é o da doen-ça da criança e, sim, o drama de existirpara os pais”(Mannoni, 1967: 117). Essediscurso estará sempre ligado ao temado abandono, da morte, da destruição eda condenação. Não raro trata-se de umepisódio real ou imaginário, mas de qual-quer modo violento, disruptivo, implan-tando no inconsciente um núcleopatógeno qual vulcão adormecido e que,diante de situações precisas, fará seu re-torno com o montante de angústia sufi-ciente para abalar o sujeito. O discursodramático toma formas de ameaças, “as-sassinato de almas”, catástrofes, fim domundo, violentação, morte... o dramasempre se encontra ligado a um traumae o trauma para o ser humano é básico:consiste simplesmente no fato de que acriança tem que se separar da mãe. Eesse trauma será tanto mais aberto à so-lução quanto mais a mãe se abrir aosefeitos da função paterna. É o caso quea mãe faz do discurso do pai, diz Lacan,que vai permitir que a criança passe poresse trauma de maneira equilibrada oudesastrosa. Na realidade, as patologiastêm aí seu fundamento e origem. O ana-

lista atento saberá esquadrinhar o quadroda concepção, nascimento e desenvolvi-mento da criança, “pois não o diremosde novo jamais o bastante: é no momen-to em que o psicótico é chamado a de-ver se acordar a significantes, que elefaz, em condições precisas, um esforçoque acaba no desenvolvimento de umapsicose” (Mannoni, 1970: 195). O trau-ma é inevitável e o que a clínica demons-tra é que ele no mínimo deixa sua marca,só que para uns mortífera e para outrosmenos dramática.O trauma é sempre um mau encontrocom o real. Ele forma o que chamo denúcleo patógeno. Assim como todo equalquer patógeno é gerador deinfectação, o núcleo patógeno consisteem concentrações endurecidas, cristali-zadas, de significantes que não circulamlivremente nas redes do inconsciente ecujo conhecimento nos chega apenaspelas manifestações sintomáticas. O nú-cleo patógeno tem que ser jateado porintervenções adequadas, desfolhadocomo uma cebola para que seu conteú-do possa circular livremente nas redes designificantes. O núcleo patógeno é umtumor que precisa ser drenado para queseus tecidos envolventes voltem a umasuperfície normal permitindo uma circu-lação renormativizada.

A PRÁTICA DE ANÁLISE DE PAIS

Tendo justificado do ponto de vista teó-rico a análise dos pais, vejamos agora oatendimento.Partimos, pois, da idéia de que recebe-mos os pais em análise. Do que prece-

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de fica evidente porque os recebemos enão a criança. Abriríamos exceção paracasos extremos, casos já avançados decrianças francamente psicóticas ou casode sintomas provenientes de limitaçãofísica como, por exemplo, uma criançaque nasceu sem o centro de controle dosono e, por excesso de intervenção mé-dica, não conseguiu ter uma imagemunificada de corpo (esquema corporalpróprio) aos cinco anos, portanto, semter alcançado a formação do Eu. Seriaexceção também a necessidade de recu-peração escolar, deficiência não superá-vel a não ser com o auxílio de umapedagoga ou outros casos semelhantes.Esses casos são encarados, metaforica-mente falando, como se a criança tives-se a necessidade de uma suplementaçãoalimentar.Em princípio partimos sempre do fatode que os pais, até nova ordem, são osformadores e educadores suficientes dasubjetividade do filho. Se as perturba-ções, os sintomas, surgem é porque emalgo, em algum aspecto, a trama de sig-nificantes parentais está emperrada. Des-de que não sejam perversos ouextremamente rebaixados de intelecção,a análise dos pais, no nosso entender,deve ser tentada.Toda intervenção interdisciplinar simul-tânea reputamos inútil e prejudicial. Sóagrava o problema da criança. Há duasrazões para isso: primeiro, não é possí-vel que a criança (aliás, o adulto tam-bém) consiga sustentar um tratamentocom várias transferências ao mesmotempo e, segundo, nenhum dos profis-

sionais entra em pleno na transferênciauma vez que sempre um espera que ooutro consiga o que ele não alcança. Amultiplicidade de transferências simples-mente impossibilita o trabalho de umaverdadeira cura. Nas diversas alternati-vas simultâneas a criança fica dividida, ecorre-se o risco de não ir à causa dossintomas: os sintomas da criança quan-do muito receberão apenas um tratamen-to sintomático. Essa prática leva a crian-ça a patinar em sua problemática comperigo de cronificação para o resto davida. O tratamento multidisciplinar sebaseia na ilusão do mito da totalidade.Vive-se a impressão de que a problemá-tica fica circunscrita sob todos os as-pectos sintomáticos. “Na relação com opsicótico – diz Mannoni – “aquele quedele cuida (le soignant) geralmente fogeda transferência (isto é, de tudo o que opaciente veicula com relação à morte, aosexo e ao corpo); o medicamento vem aíproteger o médico, é a resposta que eleoferece ao sintoma; pode assim ignoraro que no outro procura falar (e que nãoé outra coisa senão o retorno do recal-cado em nós)”. (Ibid.: 129)A completude é um sonho vão e perni-cioso: a análise demonstra pela castraçãoque o sujeito humano é sujeito barrado eé enquanto barrado que consegue serverdadeiramente sujeito. A totalidade éideal de ego puramente da ordem da fan-tasia, tão em voga em nossa sociedadedo imaginário, do consumo. Enfim, umaúltima consideração prática: todas as ve-zes que vi procurarem a multidisciplina-ridade com criança, resultou exatamente

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no status quo, senão com uma agravan-te: a cristalização do sintoma.Igualmente, a chamada ludoterapia. Aolongo de minha vida de psicanalista sótive decepções com os casos de criançastratadas por essa técnica psicológica. Ameu ver, trata-se de mais uma práticapsicoterápica de “imaginário sugerido”.A análise dos pais resulta em outra van-tagem apreciável. Com ela se evita a psi-quiatrização dos sintomas. A criançapassa por mudanças graças a um discur-so que mudou, desatando-a de “leis” esentenças que lhe impunham uma res-posta sintomática.Nosso ponto de vista, portanto, é de queos pais são necessários para a educaçãodos filhos, mas suficientes. São os paisque, ao acolher a criança, a inscrevemno mundo da linguagem, no mundo sim-bólico e, ao assim fazer, transpõem osfilhos do mundo do acasalamento para omundo da cultura. Os pais são os con-dutores (necessários) das pulsões deseus filhos. E, dada a plasticidade da pul-são e sua indeterminação quanto ao fim,com exceção de que está à procura desatisfação, conduzi-la é questão de abso-luta necessidade, pois sem isso não sehominiza, não se humaniza, fica-se semchance de sublimar.Isto, em termos psicanalíticos, quer di-zer que a castração é o único instrumen-to de normativização da pulsão e é anormativização da pulsão que permiteque o sujeito seja sujeito e usufrua de umestado psíquico o menos neurótico pos-sível. Abre-se-lhe o caminho da sublima-ção. Freud não hesita em afirmar que a

civilização é fruto da repressão.Na escuta dos pais importa detectarcomo a função paterna agiu ou está agin-do. Qual é a posição da criança no Édi-po? Onde falha a triangulação? Do ladodo pai? Do lado da mãe ou de ambos?Qual é o genitor patogênico? Haveriauma inversão da relação triangular pen-dendo do lado da mãe ou do lado do pai?Que posição ocupa a mãe em relação àfunção paterna? Nunca nos esqueçamosde que tudo depende da mãe: “... é ocaso que ela faz da palavra do pai”. Nofundo as patologias dependem do posi-cionamento da mãe em relação à funçãopaterna.De outro lado podemos, ao menos doponto de vista teórico, afirmar que umamãe solteira, ou de produção independen-te, pode fazer valer a função paterna, in-troduzindo a figura masculina, seja deum parente, de um amigo ou conhecido.Nunca podemos esquecer que a funçãopaterna é da ordem do simbólico e elavai estar presente sempre que a diferençasexual se mantiver respeitada.Podemos também verificar de que ladoou onde está o gozo do sintoma da crian-ça. O gozo é determinante no desvela-mento do sintoma. Se soubermos desmon-tar onde está o gozo, o sintoma pode vira desaparecer pelo efeito a posteriori.Assim, a briga entre irmãos, que é umacoisa saudável, sempre vem acompa-nhada do gozo de ver os pais tomarempartido por um deles. O mesmo se digada criança que mercadeja seu escíbalo.Os pais sempre nos procuram por cau-sa dos sintomas de seus filhos. Aqui,

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como na análise individual, importa nãose preocupar com a queixa, por maisque os pais insistam. Os sintomas sãonossos guias, significantes que remetema criança a outros sintomas ou signifi-cantes cujo sentido virá tranqüilamenteno decorrer do processo analítico.As intervenções do analista serão sempree exclusivamente no discurso dos pais.Preservar a subjetividade dos pais é osegredo da análise dos pais. Isto é evi-dente por si, pois a análise, como dizFreud, é per via de levare e não de pore.Não compete ao analista o processo deeducação dos filhos, os pais são bastantedesde que a análise venha fazer luz so-bre a trama dos sintomas. O analista seabsterá de dar orientação, conselho, poisisso, além de criar uma relação de depen-dência dos pais, é frontalmente contrá-rio à regra de abstenção e perfeitamentedispensável uma vez que os pais interes-sados são suficientes para dar conta doprocesso.A análise caminha sempre no sentido daretificação das relações edípicas, o quepermite “integrar a relação subjetiva”. Eisto é tão verdade que o efeito sobre ofilho (e aí nós temos uma prova clínicade que estamos a caminho da cura)acontece a partir da mudança subjetivados pais, sem que necessariamente te-nham agido no real. Os pais, não raro, seassustam diante da mudança efetiva dacriança, graças ao tratamento deles. Aeficácia da palavra ou do simbólico, tãoacentuada por Lacan, é uma eficácia aposteriori e ela só se realiza por umamovimentação, um rearranjo dos signifi-

cantes do inconsciente.Nunca é demasiado ressaltar que nisto oanalista está absolutamente incônscio. Sóhá trabalho com o inconsciente quandose trabalham suas manifestações ou, poroutra, o rearranjo de suas redes de sig-nificantes só acontece por uma interven-ção na transferência cuja conseqüêncianos escapa. Só a posteriori podemosconstatar, se é que conseguimos, que aintervenção foi eficaz.Não está na mão do analista perceber deantemão que intervenção frutificará ounão. Só o a posteriori lhe dará ciência sehouve ou não encaminhamento do trata-mento para a cura. Lacan, apropriada-mente, dizia que quando o paciente secura, é “apesar” de nós, analistas! O re-torno que o paciente nos dá na sessãoseguinte, normalmente nos coloca numaposição humilhante: a eficácia simbólicaagiu onde nós nem sequer pensamos quepudéssemos atuar.Mas não estamos totalmente sem recur-sos para constatar que uma análise cami-nha bem. Há três sinais que nos colocamem certeza clínica: primeiro, é a agrava-ção do sintoma; segundo, é o surgimentoda agressividade; Lacan diz explicita-mente que ela é a mola da análise e, ter-ceiro, quando a criança-“problema”,deixa de ocupar o lugar de “doente” oude “bode expiatório” da família, outromembro da família adoece. A curaacontecerá quando esse movimento degangorra cessar.Quando falo de reestruturação edípicaquero dizer: os pais, iluminados pelas in-tervenções na transferência, se abrem ao

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encaminhamento de novos significantesque facultam à criança o não respondermais, do mesmo lugar, ao discurso pa-rental. Liberada do “discurso fechado”ou “dramático”, a criança se expande naalegria do exercício da subjetividade pró-pria. “A análise”, diz Mannoni, “desalo-ja a criança do lugar que ela ocupa noreal (ela é, no real, a fantasia materna, éassim que ela tapa a angústia ou enche afalta da mãe) e isso não se pode fazer anão ser ajudando o (a) genitor (ra) pato-gênico (a) a quem a criança está ligada”.(1967: 95)A função essencial da palavra é nomear,ou se quiser, re-velar. Trazer a verdade– 80h0 " – do sintoma à luz, des-cobriro núcleo patógeno que o sintoma anun-cia e cobre. A intervenção da palavracerta na hora certa da transferência dis-sipa o núcleo patógeno, a rede de signi-ficantes se destrava do “discursofechado” e a verdade (libertadora) pas-sa a circular.Os pais nos procuram com muita an-siedade. Há todos os tipos de sentimen-to e apreensões ao procurar umpsicanalista. Muitos pais nos procurampor vez primeira, mas muitos outros jávêm desanimados, armados de defesas emesmo revoltados de tantas tentativas decura.É preciso descontrair os pais, pois te-mos que partir do princípio que é impos-sível saber o que é ser pai, ser mãe.Importa acolher a demanda dos pais e aqueixa que formulam. Acolher, mas ja-mais responder à demanda. O próprioprogresso da análise se encarregará de

demonstrar que a demanda é demandade outra coisa. Ela é um sintoma queaflora. Na verdade, a demanda é deman-da de uma ordenação subjetiva que elesmesmos não conseguem alcançar.Temos que fechar em cima de trabalharexclusivamente com o discurso dos paise se jamais devemos responder à deman-da, fica patente que não se trata de teo-rizar com eles, sobretudo repetindojargões de psicologia ou psicanálise.Sempre que os pacientes (sobretudo sesão médicos ou psicólogos) encaminhamo discurso para esse lado importa ouvi-los, e não partir para a discussão, massim relançar o discurso parental inter-rompido. Nunca esquecermos que nos-sa especialidade é dar tratos à“psicopatologia da vida cotidiana”.Faz pensar a maneira como os pais en-tram pela primeira vez em nossa sala.Trata-se de entender como vivem a vidacotidiana. É um pai que se adianta à mu-lher e inicia o discurso ou, ao contrário,uma mulher que toma a dianteira emtudo e o marido, o pai, é uma figura porela pouco ou nada considerada. Então, tercomo princípio fazer com que o casal as-socie essa maneira de agir e jamais ou-vir apenas um lado do discurso parental.Muitas vezes somos solicitados a darnossa opinião. Repito, como a psicaná-lise é per via de levare qualquer suges-tão ou opinião quebra a regra deabstenção e o vínculo transferencial cujaessência é promover a subjetividade dopaciente. Diante dessa solicitação, sem-pre podemos remeter os pais a um frag-mento anterior do discurso ou, caso se

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trate de algo fora de nossa alçada,remetê-los a quem de direito ou de ofí-cio.Na condução da análise dos pais, alémdo princípio de retificação edípica emvirtude da função paterna, devemos le-var em conta que essa retificação só épossível se vamos em busca da Lei. Leicom letra maiúscula. O fato de o ho-mem estar sob a Lei da fala faz com quetudo, absolutamente tudo, nele esteja soba ordenação da Lei. Do dormir ao acor-dar, do acordar ao dormir, ele é regidopela Lei. Fal’ente, ente que fala, entecujo ser é fruto da fala, “a palavra é seuhabitáculo”. Essa Lei lhe impõe ordensàs vinte e quatro horas do dia e, além dis-so, inclui o passado e o futuro. É a Leida fala que faz o Homem. Sem Lei, apulsão fica “desatada”, se enlouquece,não há desejo, não se humaniza. O serhumano sem Lei se degenera comosujeito e não consegue ocupar um lu-gar como socius. Receber os pais emanálise, e não a criança, importa procu-rar onde está a Lei. Que discurso a sus-tenta ou a distorce. Procurar a Lei, eis osegredo! Só a castração garante a éti-ca do desejo (“não cederás ao teu dese-jo” uma vez que o conheceste), e oacesso a ele ou a renúncia consciente,sublimante, é a sua possível realização.Esteja o analista atento à localização daproblemática exposta na queixa. Jamaisconfundir conflitos do casal, da vidaconjugal, com problemas relacionados àpaternidade ou à maternidade. Que nãopaguem os filhos a dívida que onera ocasal. Todo casal que nos procura por

causa dos filhos, após algumas sessõespassa a tratar dos verdadeiros proble-mas: os problemas de relacionamentoconjugal. Esses problemas em geral seradicam nas famílias de origem. Aoconstituir a terceira família, um ou outrocônjuge (senão os dois) continua sinto-maticamente ligado às estruturas neuró-ticas atávicas. E isto, não raro, impede aunião de um homem e de uma mulher.Os pais minimamente neuróticos sãoaqueles que têm consciência das ciladasque a dívida edípica lhes arma. Conse-guir formar uma terceira família, alémdas duas famílias de origem, é coisa davida toda, é renúncia sem interrupção.Mas isso não seria condição de maturi-dade? Talvez de felicidade na vida adois?Existem apenas duas leis no relaciona-mento humano, sobretudo entre homeme mulher: a lei do amor e a lei do ódio.Trata-se de dois extremos de uma réguasó. O “agir contra” ou atuar para “mos-trar para o outro”, o atuar projetivamen-te, é império da luta de prestígio. Ora, aluta de prestígio só tem um destino: amorte.Escutar o casal justamente onde ele nãoconsegue mais se escutar, eis o segredoda análise de pais.Concluamos com a mensagem lapidar deM. Mannoni (1970: 120): “A loucura,sob a máscara mais impenetrável, nosremete, então, àquilo que de nós é alie-nável, mas também àquilo que em nósresta como núcleo “inanalisável”; é comesse núcleo que estamos às voltas quan-do nossa interrogação se porta sobre o

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outro. É naquilo que de nosso ser nosescapa que a loucura nos interroga”.

CONCLUSÃO

Se os pais são a causa (inconsciente éevidente!) dos sintomas dos filhos, valeaqui o antigo adágio: “Remota causa,tollitur effectus”... removida a causa,tira-se o efeito.Os pais, movidos pela angústia do pro-blema do filho, [a não ser que sejamambos (ou um deles) perversos] facil-mente entram em transferência e o pro-cesso de análise se desencadeia devagar,mas firme. É notável como a mudançado quadro resulta na imediata mudançada criança.Sabemos que, se a análise caminha sem-pre dentro dos dois eixos da diacronia eda sincronia, na verdade quem a sustentaé o significante. A cadeia da historizaçãodo sujeito é estruturada e articulada pelomovimento do significante. O significan-te é “diferença pura”, ele é “o ovo” dapsicanálise. A descoberta do inconscien-te em Freud não é outra coisa que a des-coberta de que a rede de significantesestrutura a pulsão, articula a demanda esuporta o desejo. O significante é o ele-mento epistêmico e heurístico que per-mite a articulação da psicanálise comouma ciência (embora do indivíduo) sepa-rada das demais ciências que abordam oser humano. Só existe singularidade dosujeito porque o significante o determi-na de maneira original, como nunca hou-ve um antes nem haverá outro depois.Descobrir na escuta dos pais quais sãoos significantes do mito familiar, quais

são os significantes que organizam emovimentam a família, aqueles quefreiam a criança em seu desenvolvimentopsíquico, é uma descoberta preciosa, umtesouro clínico. A partir daí tudo podemudar na vida de uma criança sem quesequer a vejamos. Poderia multiplicar osexemplos da clínica. Gostaria de mencio-nar que mesmo em casos de crianças ouadolescentes em surto psicótico, temostrabalhado exclusivamente com a análi-se dos pais. Jamais vemos os filhos!Toda análise se baseia no princípio dacastração. Que é a castração? Lacan acolocou lucidamente na articulação dafunção paterna. A função paterna é oeixo ao redor do qual toda análise gira. Éa função paterna que opera a separaçãoda criança do desejo da mãe e, ipso fac-to, lhe possibilita que seu desejo seconstitua no inconsciente e, a partir daí,ela possa se tornar por sua vez um serdesejante, isto é, um sujeito. Ocupar aposição terceira, eqüidistante na triangu-lação, com o pai e com a mãe, é a condi-ção de normativização do sujeito. Caso essaposição não seja eqüidistante, os maisdiversos distúrbios podem ocorrer. Aí sur-gem os sintomas. Os sintomas são merasmetáforas dos núcleos patógenos. Nãohá de se preocupar com eles. Jamais abafá-los. Quanto menos se incomodar com elesmais rapidamente desaparecerão. Os sin-tomas são estruturas necessárias para asobrevivência do sujeito. Abafá-los,como tenta fazer a psiquiatria ou a psi-cologia do ego ou as terapias comporta-mentais, é um equívoco para o pacienteque, neles, tem meios de sobreviver.

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“Mostramos alhures”, diz Mannoni, “quenão se pode isolar o sintoma da criançadoente não apenas de seu próprio dis-curso, mas também do discurso que aconstituiu, essencialmente o discursoparental. O sintoma da criança colmata,no discurso familiar, o vazio onde umaverdade que não é dita é criada. Assim,esse sintoma é necessário àqueles quetêm que se proteger contra o saber daverdade em questão”. E aí a autora con-clui dentro da mais pura lógica de suaconcepção: “... a querer tratar o sintoma,é a criança que se rejeita”. (Ibid.: 184)Maud Mannoni conclui sua experiên-cia: “O trabalho clínico do psicanalistapode se inscrever, em nossos dias, numsistema médico-administrativo queparticipa de uma alienação social.‘Psicoterapisam-se’ em cadeia criançasque não sabem por que são conduzidasao dispensário. Os pais se encontram ge-ralmente colocados fora da empreitada;os analistas, mulheres em maior parte,têm a tendência, inconscientemente, de‘raptar’ a criança do mau pai (ou mãe),muitas vezes substituindo o pai avaliadocomo fraco demais, forte demais, ausen-te demais, breve, sempre demais qual-quer coisa – é um incômodo”. (Ibid.:232)Em nosso entender e segundo temosconstatado ao longo de nossa prática,prejudicamos a criança quando a trata-mos e ignoramos os pais. É simplesmen-te admirável a força de reordenaçãoedípica que os pais têm em mãos desdeque essas mãos sejam desmanietadas dossignificantes que as retêm. Casos gra-

ves, como uma psicose incipiente comalucinações visuais, vozes, podem serrevertidos radicalmente apenas pela aná-lise dos pais. O que faz mudar a situa-ção, o que produz ato, não é umamudança comportamental dos pais que,sem dúvida, tem seu valor, mas sim a“retificação subjetiva” deles em funçãodo filho. Muito pode mudar numa crian-ça ou num adolescente quando os paistomam uma posição retificante de seusdesejos. É essa “retificação subjetiva”,portanto essa mudança interior dos pais,que produz ato no inconsciente dos fi-lhos, desatando-os do discurso fechadoou dramatizado. Trata-se de um proces-so cujo efeito sempre é a posteriori, masque dificilmente (mais uma vez excetono caso de pais perversos) não produzaefeitos de cura.É muito importante que os pais sejam ti-dos em conta de ser os verdadeiros con-dutores da hominização de seus filhos.Eles precisam dessa consciência. Ospais não podem passar a responsabilidadedaquilo que é da alçada e do alcance de-les na educação dos filhos a profissio-nais, sobretudo aos profissionais PSI,que podem lhes fornecer um imaginárioperfunctório de que estão a fazer o me-lhor para seus rebentos. Esse é mais ummotivo porque a multidisciplinaridade noatendimento da criança é infrutífera, se-não desastrosa.A castração sempre é corte, consistesempre na introdução do significante láonde a paixão, a desordem, a pulsão sol-ta operam seu desserviço. Os pais, ilumi-nados em sua própria história e em seu

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discurso, atuam com firmeza produzin-do a retificação necessária. Basta acredi-tar neles, acreditar no filho. Opsicanalista é alguém que cada vez maisna vida desconfia de si, das irrupções deseu próprio inconsciente e cada vez maisacredita nas virtualidades do outro, gra-ças ao infindo poder criativo do Outro.Muito cedo, às vezes após a primeirasessão, os pais se dão conta de que oproblema está neles, e não no filho. E édeveras interessante como a partir daíeles passam a expor seus conflitos, ousuas contradições, que os impedem de seentender em relação ao filho e, evidente-mente, em relação a eles mesmos. É apartir daí que a análise de pais toma seurumo.Atender os pais propicia-lhes a reafir-mação das relações a dois, a resoluçãoou o amainar dos conflitos, não raro apreservação da família, o encaminha-mento do filho, evitando-lhe a cronifica-ção dos sintomas ou, quiçá, a análiselhes possibilite o rompimento de relaçõesinsustentáveis. Uma coisa é certa: o tra-

balho com os pais é um trabalho gratifi-cante.

REFERÊNCIAS

FUKS, Betty Bernardo. Freud e ajudeidade: a vocação do exílio. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2000.

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freudien. Paris: Navarin, no 37, 1986.____ Os complexos familiares na for-

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MANNONI, Maud. L’enfant, sa “maladie”et les autres. Paris: Seuil, 1967.

____ Le psychiatre, son “Fou” et lapsychoanalyse. Paris: Seuil, 1970.

____ O psiquiatra, seu “louco” e a psi-canálise. Rio de Janeiro: Zahar Edito-res, 1971.

____ A criança, sua “doença” e os ou-tros. São Paulo: Via Lettera, 1999.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio deJaneiro: Nova Aguilar, 1995.

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Artigo recebido em setembro/2001Versão aprovada em novembro/2001

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