Eca de Queiros_O Primo Basilio

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O Primo Baslio

O Primo BasliodeEa de QueirsCaptulo I Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Louis Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiou-se, bocejou e disse: Tu no te vais vestir, Lusa? Logo. Ficara sentada mesa, a ler o Dirio de Notcias. Roupo de manh de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botes de madreprola; o cabelo louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-se, torcido no alto da cabea pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancura tenra e lctea das louras: com o cotovelo encostado mesa acariciava a orelha, e, no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anis de rubis miudinhos davam cintilaes escarlates.Tinham acabado de almoar.A sala esteirada alegrava, com o seu tecto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em Julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerra das, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraas, escaldar a pedra da varanda; havia o silncio recolhido e sonolento de manh de missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo, ao p da gua; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canrios dormiam; um zumbido montono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chvenas sobre o acar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaqueto de flanela azul aberto, os olhos no tecto, ps-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. Era engenheiro de minas, no dia. seguinte devia partir para Beja, para vora, mais para o sul, at S. Domingos; e aquela jornada, em Julho, contrariava-o como uma interrupo, afligia-o como uma injustia. Que maada por um Vero daqueles! Ir dias e dias sacudido pelo chouto de um cavalo de aluguel, por esses descampados do Alentejo que no acabam nunca, cobertos de um restolho escuro, abafados num sol bao, onde os moscardos zumbem! Dormir nos montados, em quartos que cheiram a tijolo cozido, ouvindo em redor, na escurido da noite trrida, grunhir as varas dos porcos! A todo o momento sentir entra r pelas janelas, passar no ar o bafo quente das queimadas! E s!Tinha estado at ento no Ministrio, em comisso. Era a primeira vez que se separava de Lusa; e perdia-se j em saudades daquela salinha, que ele mesmo ajudara aforrar de papel novo nas vsperas do seu casamento, e onde, depois das felicidades da noite, os seus almoos se prolongavam em to suaves preguias! E cofiando a barba curta e fina, muito frisada, os seus olhos iam-se demorando, com uma ternura, naqueles mveis ntimos, que eram do tempo da mam: o velho guarda-loua envidraado, com as pratas muito tratadas a gesso-cr, resplandecendodecorativamente; o velho painel a leo, to querido, que vira desde pequeno, onde apenas se percebiam, num fundo lascado, os tons avermelhados de cobre de um bojo de caarola e os rosados desbotados de um molho de rabanetes! Defronte, na outra parede, era o retrato de seu pai: estava vestido moda de 1830, tinha a fisionomia redonda, o olho luzidio, o beio sensual; e sobre a sua casaca abotoada reluzia a comenda de Nossa Senhora da Conceio. Fora um antigo empregado do Ministrio da Fazenda, muito divertido, grande tocador de flauta. Nunca o conhecera, mas a mam afirmava-lhe que o retrato s lhe faltava falar. Vivera sempre naquela casa com sua me. Chamava-se Isaura: era uma senhora alta, de nariz afilado, muito apreensiva; bebia ao jantar gua quente; e ao voltar um dia do lausperene da Graa morrera de repente, sem um ai! Fisicamente, Jorge nunca se parecera com ela. Fora sempre robusto, de hbitos viris. Tinha os dentes admirveis de seu pai, os seus ombros fortes.De sua me herdara a placidez, o gnio manso. Quando era estudante na Politcnica, s oito horas recolhia-se, acendia o seu candeeiro de lato, abria os seus compndios. No frequentava botequins, nem fazia noitadas. S duas vezes por semana, regularmente, ia ver uma rapariguita costureira, a Eufrsia, que vivia ao Borratm, e nos dias em que o brasileiro, o seu homem, ia jogar o boston ao clube, recebia Jorge com grandes cautelas e palavras muito exaltadas; era enjeitada, e no seu corpinho fino e magro havia sempre o cheiro relentado de uma pontinha de febre. Jorge achava-a romanesca e censurava-lho. Ele nunca fora sentimental: os seus condiscpulos, que liam Alfred de Musset suspirando e desejavam ter amado Margarida Gautier, chamavam-lhe proseiro, burgus; Jorge ria; no lhe faltava um boto nas camisas, era muito escarolado, admirava Louis Figuier, Bastiat e Castilho, tinha horror a dividas, e sentia se feliz.Quando sua me morreu, porm, comeou a achar-se s: era no Inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco desamparado, recebia as rajadas do vento na sua prolongao uivada e triste; sobretudo noite, quando estava debruado sobre o compndio, os ps no capacho, vinham-lhe melancolias lnguidas; estirava os braos, com o peito cheio de um desejo; quereria enlaar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frufru de um vestido! Decidiu casar. Conheceu Lusa, no Vero, noite, no Passeio.Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira de andar, pelos seus olhos castanhos muito grandes. No Inverno seguinte foi despachado, e casou. Sebastio, o seu ntimo, o bom Sebastio, o Sebastiarro, tinha dito, com uma oscilao grave da cabea, esfregando vagarosamente as mos: Casou no ar! Casou um bocado no ar! Mas Lusa, a Luisinha, saiu muito boa dona de casa: tinha cuidados muito simpticos nos seus arranjos; era asseada, alegre como um passarinho, como um passarinho amiga do ninho e das carcias do macho: e aquele serzinho louro e meigo veio dar sua casa um encanto srio. um anjinho cheio de dignidade! dizia ento Sebastio, o bom Sebastio, coma sua voz profunda de basso. Estavam casados havia trs anos. Que bom que tinha sido! Ele prprio melhorara; achava-se mais inteligente, mais alegreE, recordando aquela existncia fcil e doce, soprava o fumo do cigarro, a perna traada, a alma dilatada, sentindo-se to bem na vida como no seu jaqueto de flanela! Ah! fez Lusa de repente, toda admirada para o jornal, sorrindo. Que ? o primo Baslio que chega! E leu alto, logo: Deve chegar por estes dias a Lisboa, vindo de Bordus, o Sr. Baslio de Brito, bem conhecido da nossa sociedade. Sua Excelncia, que, como sabido, tinha partido para o Brasil, onde se diz reconstitura a sua fortuna com um honrado trabalho, anda viajando pela Europa desde o comeo do ano passado. A sua volta capital um verdadeiro jbilo para os amigos de Sua Excelncia, que so numerosos. E so! disse Lusa, muito convencida.- Estimo, coitado! fez Jorge, fumando, anediando a barba com a palma da mo. E vem com fortuna, hem? Parece.Olhou os anncios, bebeu um gole de ch, levantou-se, foi abrir uma das portadas da janela.- Oh, Jorge, que calor que l vai fora, santo Deus! Batia as plpebras sob a radiao da luz crua e branca.A sala, nas traseiras da casa, dava para um terreno vago, cercado de um tabuado baixo, cheio de ervas altas e de uma vegetao de acaso; aqui, ali, naquela verdura crestada do Vero, largas pedras faiscavam, batidas do sol perpendicular; e uma velha figueira brava, isolada no meio do terreno, estendia a sua grossa folhagem imvel, que, na brancura da luz, tinha os tons escuros do bronze. Para alm eram as traseiras de outras casas, com varandas, roupas secando em canas, muros brancos de quintais, rvores esguias. Uma vaga poeira embaciava, tornava espesso o ar luminoso. Caem os pssaros! disse ela cerrando a janela. Olha tu pelo Alentejo, agora! Veio encostar-se voltaire de Jorge, passou-lhe lentamente a mo sobre o cabelo preto e anelado. Jorge olhou-a, triste j da separao: os dois primeiros botes do seu roupo estavam desapertados; via-se o comeo do peito de uma brancura muito tenra, a rendinha da camisa: muito castamente, Jorge abotoou-lhos. E os meus coletes brancos? disse.- Devem estar prontos. Para se certificar, chamou Juliana. Houve um rudo domingueiro de saias engomadas. Juliana entrou, arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos, era muitssimo magra. As feies, midas, espremidas, tinham a amarelido de tons baos das doenas de corao.Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietao, numa curiosidade, raiados de sangue, entre plpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrs imitando tranas, que lhe fazia a cabea enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado pela goma das saias mostrava um p pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.Os coletes no estavam prontos, disse com uma voz muito lisboeta, no tivera tempo de os meter em goma. Tanto lhe recomendei, Juliana! disse Lusa. Bem, v. Veja como se arranja! Os coletes ho-de ficar noite na mala!E apenas ela saiu:- Estou a tomar dio a esta criatura, Jorge! H dois meses que a tinha em casa, e no se pudera acostumar sua fealdade, aos seus trejeitos, maneira aflautada de dizer chapieu, tisoiras, de arrastar um pouco os rr, ao rudo dos seus taces, que tinham laminazinhas de metal; ao domingo, a cuia, o pretensioso do p, as luvas de pelica preta, arrepiavam-lhe os nervos.- Que antiptica!Jorge riu: Coitada, uma pobre de Cristo! E depois que engomadeira admirvel! No Ministrio examinavam com espanto os seus peitilhos. O Julio diz bem, eu no ando engomado, ando esmaltado! No simptica, no, mas asseada, apropositada...E levantando-se, com as mos nos bolsos das suas largas calas de flanela: E, enfim, minha filha, a maneira como ela se portou na doena da tia Virgnia... Foi um anjo para ela! Repetiu com solenidade: De dia, de noite, foi um anjo para ela! Estamos-lhe em divida, minha filha! E comeou a enrolar outro cigarro, com a fisionomia muito sria.Lusa, calada, fazia saltar com a pontinha da chinela a orla do roupo; e examinando fixamente as unhas, a testa um pouco franzida, ps-se a dizer: Mas enfim, se eu embirro com ela, no me importa, posso bem mand-la embora.Jorge parou; e raspando um fsforo na sola do sapato:- Se eu consentir, minha rica. que uma questo de gratido, para mim! Ficaram calados. O cuco cantou meio-dia. Bem, vou vida disse Jorge. Chegou-se ao p dela, tomou-lhe a cabea entre as mos. Viborazinha! murmurou, fitando-a muito meigamente.Ela riu. Ergueu para ele os seus magnficos olhos castanhos, luminosos e meigos. Jorge enterneceu-se, ps-lhe sobre as plpebras dois beijos chilreados. E torcendo-lhe o beicinho, com uma meiguice:- Queres alguma coisa de fora, amor?Que no viesse muito tarde.Ia deixar uns bilhetes, ia numa tipia, era um pulo... E saiu, feliz, cantando com a sua boa voz de bartono: Dio dei oro, Del mundo signor La la ra, la ra.Lusa espreguiou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mrmore cor-de-rosa, em gua tpida, perfumada, e adormecer! Ou numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo msica! Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu p pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em trs guardanapos que a lavadeira perdera...Tornou a espreguiar-se. E, saltando na ponta do p descalo, foi buscar ao aparador por detrs de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, comeou a ler, toda interessada.Era A Dama das Camlias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao ms. Em solteira, aos dezoito anos, entusiasmara-se por Walter Scott e pela Esccia; desejara ento viver num daqueles castelos escoceses, que tm sobre as ogivas os brases do cl, mobilados com arcas gticas e trofus de armas, forrados de largas tapearias, onde esto bordadas legendas hericas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e Ivanhoe, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de guia, presa ao lado pelo cardo da Esccia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a cativava: Paris, as suas moblias, as suas sentimentalidades. Ria-se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors; e os homens ideais apareciam-lhe de gravata branca, nas umbreiras das salas de baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixo, tendo palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por Margarida Gautier: o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia enevoada: via-a alta e magra, com, o seu longo xale de caxemira, os olhos negros cheios da avidez da paixo e dos ardores da tsica; nos nomes mesmo do livro Jlia Duprat, Armando, Prudncia, achava o sabor potico de uma vi da intensamente amorosa; e todo aquele destino se agitava, como numa msica triste, com ceias, noites delirantes, aflies de dinheiro, e dias de melancolia no fundo de um coup, quando nas avenidas do Bois, sob um cu pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves.- At logo, Zizi gritou Jorge do corredor, ao sair. Olha! Ele veio, com a bengala debaixo do brao, apertando as luvas.- No apareas muito tarde, hem? Escuta-me, traze-me uns bolos do Baltreschi para a D. Felicidade. Ouve. V se passas pela Madame Franois, que me mande o chapu. Escuta. Que mais, bom Deus? Ah!, no! Era para ires pelo livreiro, que me mande mais romances... Mas est fechado!Foi com duas lgrimas a tremer-lhe nas plpebras que acabou as pginas d'A Dama das Camlias. E estendida na voltaire, com o livro cado no regao, fazendo recuar a pelcula das unhas, ps-se a cantar baixinho, com ternura, a ria final da Traviata:Addio, del passato... Lembrou-lhe de repente a notcia do jornal, a chegada do primo Baslio...Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. Fora o seu primeiro namoro, o primo Baslio! Tinha ela ento dezoito anos! Ningum o sabia, nem Jorge, nem SebastioDe resto, fora uma criancice: ela mesmo, s vezes, ria, recordando as pieguices ternas de ento, certas lgrimas exageradas! Devia estar mudado, o primo Baslio.Lembrava-se bem dele -alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mos nos bolsos das calas fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo comeara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio Joo de Brito, em Colares. Baslio tinha chegado ento de Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraada abria para o jardim, sobre trs degraus de pedra. Em roda do repuxo havia romzeiras, onde ele apanhava flores escarlates. A folhagem verde-escura e polida dos arbustos de camlias fazia ruazinhas sombrias; pedaos de sol faiscavam, tremiam na gua do tanque; duas rolas, num gaiola de vime, arrulhavam docemente; e, no silncio aldeo da quinta, o ru do seco das bolas de bilhar tinha um tom aristocrtico.Depois vieram todos os episdios clssicos dos amores lisboetas passados em Sintra: os passeios em Seteais ao luar, devagar, sobre a relva plida, com grandes descansos calados no Penedo da Saudade, vendo o vale, as areias ao longe, cheias de uma luz saudosa, idealizadora e branca; as sestas quentes, nas sombras da Penha Verde, ouvindo o rumor fresco e gotejante das guas que vo de pedra em pedra; as tardes na vrzea de Colares, remando num velho bote, sobre a gua escura da sombra dos freixos e que risadas quando iam encalhar nas ervagens altas e o seu chapu de palha se prendia aos ramos baixos dos choupos! Sempre gostara muito de Sintra! Logo ao entrar, os arvoredos escuros e murmurosos do Ramalho lhe davam uma melancolia feliz! Tinham muita liberdade, ela e o primo Baslio. A mam, coitadinha, toda cismtica, com reumatismo, egosta, deixava-os, sor ria, dormitava: Baslio era rico, ento, chamava-lhe tia Joj, trazia-lhe cartuchos de doceVeio o Inverno, e aquele amor foi-se abrigar na velha sala for rada de papel sangue-de-boi da Rua da Madalena. Que bons seres ali! A mam ressonava baixo, comos ps embrulhados numa manta, o volume da Biblioteca das Damas cado sobre o regao. E eles, muito chegados, muito felizes, no sof! O sof! Quan tas recordaes! Era estreito e baixo, estofado de casimira clara, com uma tira ao centro, bordada por ela,amores-perfeitos amarelos e roxos sobre um fundo negro. Um dia veio o final. Joo de Brito, que fazia parte da firma Bastos & Brito, faliu. A casa de Almada, a quinta deColares, foram vendidas.Baslio estava pobre, partiu para o Brasil. Que saudades! Pas sou os primeiros dias sentada no sof querido, soluando baixo, com a fotografia dele entre as mos. Vieramento os sobressaltos das cartas esperadas, os recados impacientes ao escritrio da companhia, quando os paquetes tardavam...Passou um ano. Uma manh, depois de um grande silncio de Baslio, recebeu da Baa um longa carta, que comeava:Tenho pensado muito e entendo que devemos considerar a nossa inclinao como uma criancice...Desmaiou logo. Baslio afectava muita dor em duas laudas cheias de explicaes: que estava ainda pobre; que teria de lutar muito antes de ter para dois; o clima erahorrvel; no a queria sa crificar, pobre anjo; chamava-lhe minha pomba e assinava o seu nome todo, com uma firma complicada.Viveu triste durante meses. Era no Inverno; e sentada janela, por dentro dos vidros, com o seu bordado de l, julgava-se desilu dida, pensava no convento, seguindo com um olhar melanclico os guarda-chuvas gotejantes que passavam sob as cordas degua; ou sentando-se ao piano, ao anoitecer, cantava Soares de Passos:Ai!, adeus, acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado... ou o final da Traviata, ou o Fado do Vimioso, muito triste, que ele lhe ensinara.Mas ento o catarro da manh agravou-se; vieram os sustos, as noites veladas. Naconvalescena foram para Belas: ligou-se ali muito com as Cardosos, duas irms magras, estouvadas e esguias, sempre coladas uma outra, com um passinho trotado e seco, como um casal de galgos. O que riam, Jesus! O que falavam dos homens! Umtenente de artilharia tinha-se apaixonado por ela. Era vesgo, mandou-lhe uns versos, Ao Lrio de Belas:Sobre a encosta da colina Cresce o lrio virginal...Foi um tempo muito alegre, cheio de consolaes.Quando voltaram no Inverno tinha engordado, trazia boas co res. E um dia, tendo achado numa gaveta uma fotografia que logo ao princpio Baslio lhe mandara da Baa, de cala branca e chapu panam, fitou-a, encolhendo os ombros:- E o que eu me ralei por esta figura! Que tola!Tinham passado trs anos quando conheceu o Jorge. Ao prin cpio no lheagradou. No gostava dos homens barbados: depois percebeu que era a primeira barba, fina, rente, muito macia de certo; comeou a admirar os seus olhos, a sua frescura. E, sem o amar, sentia ao p dele como uma franqueza, uma dependncia e uma quebreira,uma vontade de adormecer encostada ao seu om bro, e de ficar assim muitos anos, confortvel, sem receio de na da. Que sensao quando ele lhe disse: Vamos casar,hem! Viu de repente o rosto barbado, com os olhos muito luzidios, sobre o mesmo travesseiro, ao p do seu! Fez-se escarlate. Jorge tinha-lhe tomado a mo: ela sentia o calor daquela palma larga penetr-la, tomar posse dela; disse que sim, ficou comoidiota, e sentia debai xo do vestido de merino dilatarem-se docemente os seus seios.Estava noiva, enfim! Que alegria, que descanso para a mam!Casaram s oito horas, numa manh de nevoeiro. Foi necess rio acender luz para lhe pr a coroa e o vu de tule. Todo aquele dia lhe aparecia como enevoado, sem contornos, maneira de um sonho antigo onde destacava a cara balofa e amarelada dopadre e a figura medonha de uma velha, que estendia a mo adunca, com uma sofreguido colrica, empurrando, rogando pragas, quando, porta da igreja, Jorge,comovido, distribua patacos. Os sapatos de cetim apertavam-na. Sentira-se enjoada da madrugada, fora necessrio fazer-lhe ch verde muito forte. E to cansa da noite naquela casa nova, depois de desfazer os seus bas! Quando Jorge apagou a vela, comum sopro trmulo, ss luminosos faiscavam, corriam-lhe diante dos olhos. Mas era o seu marido, era novo, era forte, era alegre: ps-se a ador-lo. Tinha umacuriosidade constante da sua pessoa e das suas coisas, mexia-lhe no cabelo, na roupa, nas pistolas, nos pa pis. Olhava muito para os maridos das outras, comparava, tinha orgulho nele. Jorge envolvia-se em delicadezas de amante, ajoe lhava-se aos seus ps,era muito dengueiro. E sempre de bom hu mor, com muita gra a: mas nas coisas da sua profisso ou do seu brio tinha severidades exageradas, e punha ento nas palavras, nosmodos, uma solenidade carrancuda. Uma amiga dela, romanesca, que via em tudo dramas, tinha-lhe dito: homem para te dar uma punhalada. Ela, que no conhecia ainda ento o tempera mento plcido de Jorge, acreditou, e isso mesmo criou uma exal-tao no seu amor por ele. Era o seu tudo a sua fora, o seu fim, o seu destino, a sua religio, o seu homem! Ps-se a pensar o que teria sucedido se tivesse casado com oprimo Baslio. Que des graa, hem! Onde estaria? Perdia-se em suposies de outros destinos, que se desenrolavam, como panos de teatro: via-se no Bra sil, entre coqueiros, embalada numa rede, cercada de negrinhos, vendo voar papagaios!- Est ali a Sr D. Leopoldina veio dizer Juliana.Lusa ergueu-se, surpreendida.- Hem? A Sr D. Leopoldina? Para que mandou entrar? Ps-se a abotoar pressa o roupo. Jesus! Olha se Jorge soubesse! Ele que lhe tinha dito tantas vezes que a no queria em casa! Mas se j estava na sala, agora, coitada!- Est bom, diga-lhe que j vou.Era a sua ntima amiga. Tinham sido vizinhas, em solteiras, na Rua da Madalena,e estudado no mesmo colgio, Patriarcal, na Rita Pessoa, a coxa. Leopoldina era a filha nica do visconde de Quebrais, o devasso, o caquctico, que fora pajem de D. Miguel. Tinha feito um casamento infeliz com um Joo Noronha, empre gado daAlfndega. Chamavam-lhe a Quebrais: chamavam-lhe tambm a Po e Queijo.Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vcios. Jorge odiava-a. E disseramuitas vezes a Lusa: Tudo, menos a Leopol dina!Leopoldina tinha ento vinte e sete anos. No era alta, mas passava por ser amulher mais bem feita de Lisboa. Usava sempre vestidos muito colados, com uma justeza que acusava, modelava o corpo como uma pelica, sem largueza de roda,apanhados atrs. Dizia-se dela, com os olhos em alvo: uma esttua, uma V nus! Tinha ombros de modelo, de uma redondeza descada e cheia; sentia-se nos seus seios, mesmo atravs do corpete, o desenho rijo e harmonioso de duas belas metades de limo;a linha dos quadris rica e firme, certos quebrados vibrantes de cintura faziam voltar os olhares acesos dos homens. A cara era um pouco grossei ra; as asas do nariz tinham umadilatao carnuda; na pele, muito fina, de um trigueiro quente e corado, havia sinaizinhos desvanecidos de antigas bexigas. A sua beleza eram os olhos, de uma negrura intensa, afogados num fluido, muito quebrados, com grandes pestanas.Lusa veio para ela com os braos abertos, beijaram-se muito. E Leopoldina, sentada no sof, enrolando devagarinho a seda cla ra do guarda-sol, comeou a queixar-se. Tinha estado adoentada, muito secada, com tonturas. O calor matava-a. E que tinha ela feito? Achava-a mais gorda.Como era um pouco curta de vista, para se afirmar piscava li geiramente os olhos,descerrando os beios gordinhos, de um ver melho clido. A felicidade d tudo, at boas cores! disse, sorrindo.O que a trazia era perguntar-lhe a morada da francesa que lhe fazia os chapus. E h tanto tempo que a no via, j tinha sauda des, tambm! Mas no imaginas! Que calor! Venho morta.E deixou-se cair sobre a almofada do sof, encalmada, com um sorriso aberto, mostrando os dentes brancos e grandes.Lusa disse-lhe a morada da francesa, gabou-lha; era barateira e tinha bom gosto. Como a sala estava escura, foi entreabrir um pouco as portadas da janela. Os estofos das cadeiras e as bambi nelas eram de repes verde-escuro; o papel e o tapete com desenhosde ramagens tinham o mesmo tom, e naquela decorao sombria destacavam muito as molduras douradas e pesadas de duas gravu ras (a Medeia, de Delacroix, e a Mrtir, deDelaroche), as encadernaes escarlates dos dois vastos volumes do Dante, de G. Dor,e entre as janelas o oval de um espelho onde se reflectia um napoli tano de biscuit que, na console, danava a tarantela.Por cima do sof pendia o retrato da me de Jorge, a leo. Es tava sentada, vestida ricamente de preto, direita no seu corpete es partilhado e seco: uma das mos, de umlvido morto, pousava nos joelhos sobrecarregada de anis; a outra perdia-se entre as rendas muito trabalhadas de um mantelete de cetim; e aquela figu ra longa, macilenta, com grandes olhos carregados de negro, des tacava sob re uma cortina escarlate, corridaem pregas copiosamente quebradas, deixando ver para alm cus azulados e redon dezas de arvoredos.- E teu marido? perguntou Lusa, vindo sentar-se muito junto de Leopoldina. Como sempre. Pouco divertido respondeu, rindo. E, com ar srio, a testa um pouco franzida: Sabes que acabei com o Mendona?Lusa fez-se ligeiramente vermelha. Sim?Leopoldina deu logo detalhes. Era muito indiscreta, falava muito de si, das suas sensaes, da sua alcova, das duas contas. Nunca tivera segredos para Lusa; e na sua necessidade de fazerconfidncias, de gozar a admirao dela, descrevia-lhe os seus amantes, as opinies deles, as maneiras de amar, os tiques, a roupa, com grandes exageraes! Aquilo erasempre muito picante, cochichado ao canto de um sof, entre risinhos: Lusa costumava escutar, toda interessada, as mas do ros to um pouco envergonhadas, pasmada, saboreando, com um arzinho beato. Achava to curioso!- Desta vez que bem posso dizer que me enganei, minha rica filha! exclamouLeopoldina erguendo os olhos desoladamente.Lusa riu. Tu enganas-te quase sempre! Era verdade! Era infeliz!- Que queres tu? De cada vez imagino que uma paixo, e de cada vez me sai uma maada.E picando o tapete com a ponta da sombrinha: Mas se um dia acerto! V se acertas disse Lusa. J tempo!s vezes, na sua conscincia, achava Leopoldina indecente; mas tinha um fraco por ela: sempre admirara muito a beleza do seu corpo, que quase lhe inspirava umaatraco fsica. Depois desculpava-a: era to infeliz com o marido! Ia atrs da paixo, coitada! E aquela grande palavra, faiscante e misteriosa, donde a felicidade escorre como a gua de uma taa muito cheia, satisfazia Lusa como uma justificao suficiente:quase lhe parecia uma he rona; e olhava-a com espanto como se consideram os que chegam de alguma viagem maravilhosa e difcil, de episdios excitantes. S nogostava de certo cheiro de tabaco misturado de feno que trazia sempre nos vestidos. Leopoldina fumava. E que fez ele, o Mendona?Leopoldina encolheu os ombros, com um grande tdio: Escreveu-me uma carta muito tola, que afinal bem conside rado era melhor queacabasse tudo, porque no estava para se me ter em camisa de onze varas! Que imbecil! At devo ter aqui a carta.Procurou na algibeira do vestido: tirou o leno, uma carteirinha, chaves, umacaixinha de p-de-arroz; mas encontrou apenas um programa do Price.Falou ento do circo. Uma sensaboria. O melhor era um ra paz que trabalhava notrapzio. Lindo rapaz, bem feito, uma per feio! E de repente: Ento teu primo Baslio chega? Assim li hoje no Dirio de Notcias. Fiquei pasmada! Ah!, outra coisa que te queria perguntar antes que me es quea. Com queguarneceste tu aquele teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer um assim.Tinha-o guarnecido de azul tambm, um azul mais escuro. Vem ver. Vem c dentro.Entraram no quarto. Lusa foi descerrar a janela, abrir o guar da-vestidos. Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones de um azul plido. Tinha um tapete barato,de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado de frascos faceta dos. Entre as bambinelas, em mesas redondas de p-de-galo, plan tas espessas, b egnias, macoamas, dobravamdecorativamente a sua folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho vidrado.Aqueles arranjos confortveis lembraram decerto a Leopoldi na felicidadestranquilas. Ps-se a dizer devagar, olhando em roda: E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, hem? Fazes bem, filha, tu que fazes bem!Foi defronte do toucador, aplicar p-de-arroz no pescoo, nas faces. Tu que fazes bem! repetia. Mas v l uma mulher prender-se a um homem como o meu! Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas habituais sobre seu marido. Era to grosseiro! Era to egosta!- Acreditars que h tempos para c, se no estou em casa s quatro horas, no espera, pe-se mesa, janta, deixa-me os res tos! E depois desleixado, enxovalhado,sempre a cuspir nas esteiras... O quarto dele ns temos dois quartos, como tu sabes um chiqueiro! Lusa disse com severidade:- Que horror! A culpa tambm tua. Minha! E endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos, mais negros. Nome faltava mais nada seno ocupar-me do quarto do homem! Ah!, era muito desgraada, era a mulher mais desgraada que havia no mundo! Nem cimes tem, o bruto!Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o colar e o bro che: A senhora sempre quer que engome os coletes todos? Todos, j lhe disse. Ho-de ficar noite na mala antes de se ir deitar. Que mala? Quem parte? perguntou Leopoldina. O Jorge. Vai s minas, ao Alentejo.- Ento ests s, posso vir ver-te! Ainda bem!E sentou-se logo ao p dela, com um olhar que se fizera doce.- que tenho tanto que contar! Se tu soubesses, filha! O qu? Outra paixo? fez Lusa rindo. A face de Leopoldina tornou-se grave.No era pra rir. Estava de todo! Era por isso at que tinha vin do, Sentira-se to s em casa, to nervosa! Vou at Lusa, vou palrar um bocado!E com voz mais baixa, quase solene: Desta vez srio, Lusa! Deu os detalhes. Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! poeta! Dizia a palavra com devoo, prolongando o som das slabas. - poeta!Desapertou devagar dois botes do corpete, tirou do seio um papel dobrado. Eramversos. E muito chegada para Lusa, com as narinas dilatadas pela de lcia da sensao, leu baixo, com orgulho, com pompa:A TIFarol da Guia, 5 de Junho Quando cismo hora do poente Sobre os rochedos onde brame o mar...Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas con templaes em que a via a ela, Leopoldina, viso radiosa que des lizas leve, nas guas dormentes, nasvermelhides do ocaso, na brancura das espumas. Era uma composio delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tsico, muito lisboeta, cheia de versos errados. Eterminando dizia-lhe que no era nos esplendo res das salas ou nos bailes febricitantes que gostava de a ver: era ali, naqueles rochedos.Onde todos os dias ao sol-posto Eu vejo adormecer o mar gigante. Que bonito, hem! Ficaram caladas, com uma comoozinha. Leopoldina, com os olhos perturbados,repetia a data, amorosamente: Farol da Guia, 5 de Junho!Mas o relgio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, meteu o poema no seio. Tinha de se ir j! Fazia-se tarde, seno o outro punha-se me sa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a coisa mais estpida!- Adeus. At breve, no? E agora, que Jorge ia para fora, havia de vir muito. Adeus. Ento a francesa, Rua do Ouro, por cima do estanco?Lusa foi com ela at ao patamar. Leopoldina, j no fundo da escada, ainda parou, gritou: Sempre te parece que guarnea o vestido de azul, hem?Lusa debruou-se sobre o corrimo: Eu assim fiz, o melhor- Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanco. Sim. Rua do Ouro. Adeus. E com um gritinho: Porta direita, Madame Franois.Jorge voltou s cinco horas, e logo da porta do quarto, pondo a bengala a um canto:- J sei que tiveste c uma visita.Lusa voltou-se, um pouco corada. Estava diante do toucador, j penteada, com um vestido de linho branco, guarnecido de rendas.Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana mandara-a en trar... Ficara mais contrariada! Era por causa da adresse da francesa dos chapus. Tinha-se demorado dezminutos. Quem te disse? Foi a Juliana: que a Sr D. Leopoldina tinha estado toda a tarde. Toda a tarde! Que tolice, esteve dez minutos, se tanto!Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se janela, ps-se a sa cudir as duras folhas de uma begnia malhada de um vermelho doente, com uma baba prateada. Assobiavabaixo; e parecia todo ocupado em conchegar um boto de amarlis aninhado entre a sua folhagem luzidia, como um pequenino corao assustado.Lusa ia passando o seu medalho de ouro numa longa fita de veludo preto: tinhauma tremura nas mos, estava vermelha. O calor tem-lhes feito mal disse.Jorge no respondeu. Assobiou mais alto, foi outra janela, bateu com os dedos nas folhas elsticas de uma macoama de tons verdes e sanguneos, e, alargando impacientemente o colarinho como um homem sufocado:- Ouve l, necessrio que deixes por uma vez de receber essa criatura. necessrio acabar por uma vez!Lusa fez-se escarlate. por causa de ti! E por causa dos vizinhos! por causa da decncia! Mas foi a Juliana... balbuciou Lusa.- Mandasse-la sair outra vez. Que estavas fora! Que estavas na China! Que estavas doente!Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braos: Minha rica filha, que todo o mundo a conhece. a Que brais! a Po e Queijo! uma vergonha!Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode cado, que escrevia comdias para o Ginsio!, o Santos Madeira, o picado das bexigas,com uma gaforinha!, o Melchior vadio, um gingo desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha!, o Pedro C mara, o bonito!, o Mendona dos calos! Tutti quanti!E encolhendo os ombros, exasperado: Como se eu no percebesse que ela esteve aqui! S pelo cheiro! Este horrvelcheiro de feno! Vocs foram criadas juntas, etc., tudo isso muito bom. Hs-de desculpar, mas se a encontro na escada, corro-a! Corro-a! Parou um momento, e comovido:- Ora, vamos, Lusa, confessa. Tenho ou no razo? Lusa punha os brincos, ao espelho, atarantada:- Tens disse. Ah, bem! E saiu, furioso.Lusa ficou imvel. Uma lagrimazinha redonda, clara, rolava-lhe pela asa do nariz. Assoou-se muito doloridamente. Aquela Ju liana! Aquela bisbilhoteira! De m!Para fazer ciznia!Veio-lhe ento uma clera. Foi ao quarto dos engomados, atirou com a porta: Para que foi voc dizer quem esteve ou quem deixou de estar?Juliana, muito surpreendida, passou a ferro: Pensei que no era segredo, minha senhora.- Est claro que no! Tola! Quem lhe diz que era segredo? E para que mandou entrar? No lhe tenho dito muitas vezes que no recebo a Sr D. Leopoldina? A senhora nunca me disse nada replicou, toda ofendida, cheia de verdade.- Mente! Cale-se!Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito nervosa, foi encostar-se vidraa.O sol desaparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento; pelas casas, de uma edificao velha, escuras, es tavam abertas as varandas, onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miservel, manjerico ou cravo; ouvia-se, no teclado melanclico de um piano, a Orao de Uma Virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janela, defronte, as quatrofilhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo olhando para a rua, para o ar, para as janelas vizinhas, cochichando se viam passar um homem ou debruadas, com uma atenoidiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calada.Jorge tinha razo, coitado!, pensava Lusa. Mas, tambm, que podia ela fazer? Jno ia a casa da Leopoldina, tirara o seu retra to do lbum da sala, vi ra-se obrigada a confessar-lhe a repugnncia do Jorge, tinham chorado ambas, at! Coitada! S a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E enfim, depois de ela estar na sala, no ahavia de ir empurrar pela escada abaixo!Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu ento aoalto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, ps-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste de dentes brancos, e a Casta Diva, com uma sonoridade metlica e seca, muito tremida, espalhou-se pela rua.Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de Matemtica, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida;adiante, na sacada aberta de um segundo andar, debruou-se a figura do Cunha Ro sado, magro e chupado, com um bon de borla, o aspecto descon solado do doente de intestinos, conchegando com as mos trans parentes o robe de chambre ao ventre.Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.Na rua, a estanqueira chegou-se porta, vestida de luto, esten dendo o seu carovivo, os braos cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa do Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara oleosa e enfarruscada, com trspequenos meio nus, quase negros, chores e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se at ao meio da rua; a pala deverniz do seu bon de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mos, como para ser mais reservado, por trs das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calca nhar sujo da meia saa-lhe para fora da chinela bordada amissanga; e fazia roncar o seu pigarro crnico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado das coisas pblicas enfure cia-o. Assobiava frequentemente a Maria da Fonte; e mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriotaexasperado.O homem do realejo tirou o seu largo chapu desabado e, to cando sempre, ia-oestendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As Azevedos tinham logo fechado violentamen te a vidraa. A carvoeira deu-l he uma moeda de cobre; masinterrogou-o; quis decerto saber de que pas era, por que estradas tinha vindo e quantas peas tinha o instrumento.Gente endomingada comeava a recolher, com um ar derreado do longo passeio,as botas empoeiradas: mulheres de xale, vindas das hortas, traziam ao colo as crianas adormecidas da caminhada e do calor; velhos plcidos, de cala branca, o chapu namo, go zavam a frescura, dando um giro no bairro; pelas janelas, bocejava-se; o cu tomava uma cor azulada e polida, como uma porcela na; um sino repicava a distncia o fim de alguma festa de igreja; e o domingo terminava, com uma serenidade cansada etriste. Lusa disse a voz de Jorge.Ela voltou-se, com um vago: Hem? Vamos jantar, filha; so sete horas. No meio do quarto, tomou-a pela cinta, e falando-lhe baixo, junto face:- Tu zangaste-te h bocado? No! Tu tens razo. Conheo que tens razo.- Ah! fez ele com um tom vitorioso, muito satisfeito. Est claro, Quem melhor conselheiro e bom amigo Que o marido que a alma me escolheu?E com uma ternura grave:- Minha querida filha, esta nossa casinha to honesta que uma dor de alma ver entrar essa mulher aqui, com o cheiro do fe no, do cigarro e do resto!... M, di questo no parlaremo pi, o donna mia! sopa!

Captulo II Aos domingos noite havia em casa de Jorge uma pequena reunio, umacavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os ntimos. O enge nheiro, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, semvisitas. Tomava-se ch, palrava-se. Era um pouco estudante. Lusa fazia croch, Jorge cachimbava.O primeiro a chegar era Julio Zusarte, um parente muito afastado de Jorge, e seu antigo condiscpulo nos primeiros anos da Politcnica. Era um homem seco e nervoso, com lunetas azuis, os cabelos compridos cados sobre a gola. Tinha o curso de cirurgioda Escola. Muito inteligente, estudava desesperadamente, mas, como ele dizia, era umtumba. Aos trinta anos, pobre, com d vidas, sem clientela, comeava a es tar farto doseu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de doze vintns, do seu palet coado de alamares; e, entalado na sua vida mesquinha, via os outros, os medocres, os superficiais, furar, subir, instalar-se larga na prosperidade! Falta de chance,dizia. Podia ter aceitado um partido da cmara numa vila da provncia, com pulso livre, ter uma casa sua, a sua criao no quintal. Mas tinha um orgulho resistente, muita f nassuas faculdades, na sua cincia, e no se queria ir enterrar numa terriola adormecida e lgubre, com trs ruas onde os porcos foam. Toda a provncia o aterrava; via-se l obscuro, jogando a manilha na Assembleia, morrendo de caque xia. Por isso noarredava p; e esperava, com a tenacidade do plebeu sfrego, uma clientela rica, uma cadeira na Escola, um coup para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha a cer tezado seu direito a estas felicidades, e como elas tardavam a che gar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vi da; cada dia se prolongavam mais os seus silncios hostis, roendo as unhas, e nos dias melhores no cessava de ter ditos secos,tiradas azedas em que a sua voz desagradvel caa como um gume gelado.Lusa no gostava dele; achava-lhe um ar nordeste, detesta va o seu tom depedagogo, os reflexos negros da luneta, as calas curtas que mostravam o elstico roto das botas. Mas disfarava, sorria-lhe, porque Jorge admirava-o, dizia sempre dele: Tem muito esprito! Tem muito talento! Grande homem!Como vinha mais cedo, ia sala de jantar, tomava a sua ch vena de caf; e tinha sempre um olhar de lado para as pratas do aparador e para as toilettes frescas de Lusa.Aquele parente, um medocre, que vivia confortavelmente, bem casado, com a car ne contente, estimado no Ministrio, com alguns contos de ris em inscries parecia-lhe uma injustia e pesava-lhe como uma hu milhao. Mas afectava estim-lo: ia sempre snoites, aos domingos; escondia ento as suas preocupaes, cavaqueava, tinha pi lhrias metendo a cada momento os dedos pelos seus cabelos compridos, secos e cheios decaspa.As nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de No ronha, Vinha logo da porta com os braos estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinquenta anos, eramuito nutrida, e, co mo sofria d e dispepsia e de gases, quela hora no se podia espartilhar e as suas formas transbordavam. J se viam alguns fios brancos nos seus cabeloslevemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baa e mole de freira; nos olhos pa pudos, com a pele j engelhada em redor, luzia uma pupila negra e hmida, muito mbil; e aos cantos da boca uns plos de buo pareciam traos leves ecircunflexos de uma pena muito fina. Fora a ntima amiga da me de Lusa e tomara aquele hbito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas deRedondela, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnao.Mal entrava, ao pr um beijo muito cantado na face de Lusa, perguntava-lhe baixo, com inquietao:- Vem? O conselheiro? Vem.Lusa sabia-o. Porque o conselheiro, o conselheiro Accio, nunca vinha aos chs de D. Lusa, como ele dizia, sem ter ido na vspera ao Ministrio das Obras Pblicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:- Jorge, meu amigo, amanh l irei pedir a sua boa esposa a minha chvena de ch. Ordinariamente, acrescentava: E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a Sua Excelncia. Os meus respeitos a esse formoso talento!E saa, pisando com solenidade os corredores enxovalhados. Havia cinco anos queD. Felicidade o amava. Em casa de Jor ge riam-se um pouco com aquela chama. Lusadizia: Ora!, uma caturrice dela! Viam-na corada e nutrida e no suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, quei mando em silncio, a ia devastando como uma doena e desmora lizando como um vcio. Todos os seus ardoresat a tinham sido inutilizados. Amara um oficial de lanceiros, que morrera, e apenas conservava o seu daguerretipo. Depois apaixonara-se muito ocul tamente por um rapazpadeiro, da vizinhana, e vira-o casar. De ra-se ento toda a um co, o Bilro; uma criadadespedida deu-lhe por vingana rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do conselheiro viera de repen te, um dia, pegar fogoqueles desejos, sobrepostos como combustveis antigos Accio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloqun cia,achava-o numa linda posio. O conselheiro era a sua am bio e o seu vcio! Havia sobretudo nele uma beleza, cuja con templao demorada a estonteava como um vinho forte: era a cal va. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva doshomens, e aquele apetite insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do conselheiro, larga, re donda, polida, brilhante s luzes, uma transpiraoansiosa hume decia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade ab surda, vida, de lhe deitar as mos, palp-la, sentir-lhe as for mas, amass-la, penetrar-se dela! Mas disfarava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-seconvulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoo. Ia para casa rezar es taes, impunha-se penitncias de muitas coroas Virgem; mas, apenas asoraes findavam, comeava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade, tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias do histerismo velho! A indiferena do conselheiro irri tava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelaoamorosa o comovia! Era para com ela glacial e polido. Tinham-se s vezes encontrado a ss, parte, no vo favorvel de uma jane la, no isolamento mal alumiado de um cantodo sof mas ape nas ela fazia uma demonstrao sentimental, ele erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ela julgara perceber que, por trs das suas lunetas escuras, o conselheiro lhe deitava de revs um olhar apreciador para aabundncia do seio; fora mais clara, mais urgente, falara em paixo, disse-lhe baixo:Accio!... Mas ele com um gesto gelou-a e de p, grave:- Minha senhora, As neves que na fronte se acumulam Terminam por cair no corao... intil, minha senhora!O martrio de D. Felicidade era muito oculto, muito disfara do; ningum o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimen to, ignoravam-lhe as torturas do desejo. Eum dia Lusa ficou at nita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mo hmida e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no conselheiro:- Que regalo de homem!Falava-se nessa noite do Alentejo, de vora e das suas rique zas, da Capela dos Ossos, quando o conselheiro entrou com o pa let no brao. Foi-o dobrar solicitamentenuma cadeira a um can to e, no seu passo aprumado e oficial, veio apertar as mos ambas de Lusa, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:- Minha boa Sr D. Lusa, de perfeita sade, no? O nosso Jorge tinha-mo dito. Ainda bem! Ainda bem!Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoo entala do num colarinhodireito. O rosto aguado no queixo ia-se alar gando at calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha outra lhe faziam colar por trsda nuca e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho calva; mas no tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, cado aos cantos da boca. Era muito plido; nunca tirava as lune tas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas grandesmuito despegadas do crnio.Fora, outrora, director-geral do Ministrio do Reino e sempre que dizia El-Rei!erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rap. Nunca usava palavras triviais; no dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre o nosso Garrett, o nosso Herculano. Citava muito. Era autor. Esem famlia, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia poltica: tinha composto os Elementos Genricos da Cincia da Riqueza e Sua Distribuio, segundo os Melhores Autores, e como subttulo: Leituras do Sero. Havia apenas meses publicara a Relao de Todos os Ministros de Estado desde o Grande Marqus de Pombal at Nossos Dias, com Datas Cuidadosamente Averiguadas de Seus Nascimentos e bitos. J esteve no Alentejo, conselheiro? perguntou-lhe Lusa.- Nunca, minha senhora. E curvou-se. Nunca! E tenho pena! Sempre desejei l ir, porque me dizem que as suas curiosida des so de primeira ordem.Tomou uma pitada de uma caixa dourada, entre os dedos, de licadamente, eacrescentou com pompa: De resto, pas de grande riqueza suma!- Jorge, averigua quanto o partido da Cmara em vora disse Julio do canto do sof.O conselheiro acudiu, cheio de informaes, com a pitada sus pensa:- Devem ser seiscentos mil ris, Sr. Zusarte, e pulso livre. Te nho-o nos meus apontamentos. Porqu, Sr. Zusarte, quer deixar Lisboa? Talvez!...Todos desaprovaram. Ah!, Lisboa sempre Lisboa! suspirou D. Felicidade.- Cidade de mrmore e de granito, na frase sublime do nosso grande historiador! disse solenemente o conselheiro.E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.D. Felicidade disse ento: Quem no era capaz de deixar Lisboa, nem mo de Deus Padre, era oconselheiro!O conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:- Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta de alma! O conselheiro lembrou Jorge nasceu na Rua de S. Jos.- Nmero setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada quela em que viveu, atcasar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Ge raldo! Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Accio fora o seu ntimo. Eramvizinhos. Accio tocava ento rebeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo Filarm nica da Rua de S. Jos. Depois, Accio, quando entrou nas reparties do Estado, por escrpulo e por dignidade, abandonou a rebeca, ossentimentos ternos, os seres joviais da Filarmnica. Entregou-se todo estatstica. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante;fora padrinho do seu casamento, vinha v-lo todos os domingos, e, no dia dos seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitaes, uma lampreia de ovos. Aqui nasci repetiu, desdobrando o seu belo leno de seda da ndia e aquiconto morrer.E assoou-se discretamente.- Isso ainda vem longe, conselheiro! Ele disse, com uma melancolia grave: No me arreceio dela, meu Jorge. At j fiz construir, sem vacilar, no Alto de S.Joo, a minha ltima morada. Modesta, mas decente. E ao entrar, no arruamento direita, num lugar abrigado, ao p da choa dos Verssimos amigos.- E j comps o seu epitfio, Sr. Conselheiro? perguntou Julio, do canto, irnico. No o quero, Sr. Zusarte. Na minha sepultura no quero elogios. Se os meusamigos, os meus patrcios, entenderem que eu fiz alguns servios, tm outros meios para os comemorar; l tm a imprensa, o comunicado, o necrolgio, a poesia mesmo!Por minha vontade, quero apenas sobre a lpide lisa, em letras negras, o meu nome com a minha designao de conselheiro -, a data do meu nascimento e a data do meu bito. E com um tom demorado, de reflexo: No me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em le tras menores: Oraipor ele. Houve um silncio comovido, e porta uma voz fina disse: Do licena? Oh, Ernestinho! esclamou Jorge.Com um passo miudinho e rpido, Ernestinho veio abra-lo pela cintura:- Eu soube que tu partias, primo Jorge... Como est, prima Lusa? Era primo de Jorge. Pequenino, linftico, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto dbil de co legial; o buo, delgado, empastado em cera moustache, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e, na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Traziasapatos de verniz com grandes laos de fita; so bre o colete branco, a cadeia do relgio sustentava um medalho enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma actrizita do Ginsio, uma magra, cor de melo, com o cabelo muitoriado, o ar tsico e escrevia para o teatro. Tinha tradues, dois originais num acto, uma comdia, em calembourgs. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades umaobra considervel, um drama em cinco actos, a Honra e Paixo. Era a sua estreia sria.E desde ento viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscritos, com localistas, com actores, muito prdigo de cafs e de conhaques, o chapu ao lado, desco-rado e dizendo a todos: Esta vida mata-me! Escrevia todavia por paixo entranhada pela Arte porque era empregado na Al fndega, com bom vencimento, e tinhaquinhentos mil ris de ren da das suas inscries. A Arte mesmo, dizia, obrigava-o a desembolsos: para o acto do baile da Honra e Paixo mandara fazer, sua custa, botas de verniz para o gal, botas de verniz para o pai- nobre! O seu nome de famlia eraLedesma.Deram-lhe um lugar, e Lusa notou logo, pousando o borda do, que estava abatido!Queixou-se ento das suas fadigas: os en saios arrasavam-no, tinha turras com o empresrio; na vspera, vi ra-se forado a refazer todo o final de um acto! Todo! tudo isto acrescentou muito exaltado porque um pelintra, um parvo, equer que se passe numa sala o acto que se passava num abismo! Num qu? perguntou, surpreendida, D. Felicidade.O conselheiro, muito corts, explicou: Num abismo, D. Felicidade, num despenhadeiro. Tambm se diz, em bom vernculo, um vrtice. Citou: Num espumoso vrtice se arroja... Num abismo? perguntaram. Porqu? O conselheiro quis conhecer o lance.Ernestinho, radioso, esboou largamente o enredo. Era uma mulher casada. EmSintra tinha-se encontrado com um ho mem fatal, o conde de Monte Redondo. O marido, arruinado, devia cem cont os de ris ao jogo! Estava desonrado, ia ser preso. A mulher,louca, corre a umas runas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o vu, conta-lhe a catstrofe. O conde lana o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em queos beleguins vo leva r o homem. uma cena muito comovente di zia. de noite, ao luar! O conde desembua-se, atira uma bol sa de ouro aos ps dos beleguins, gritando-lhes: Saciai-vos, abutres!...- Belo final! murmurou o conselheiro. Enfim acrescentou Ernesto, resumindo -, aqui h um enredo complicado: oconde de Monte Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos ps do conde e mata a esposa. Como? perguntaram.- Atira-a ao abismo. no quinto acto. O conde v, corre, ati ra-se tambm. O marido cruza os braos e d uma gargalhada in fernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!Calou-se, ofegante: e, abanando-se com o leno, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os de um peixe morto. uma obra de cunho, embatem-se grandes paixes! disse o conselheiro,passando as mos sobre a calva. Os meus para bns, Sr. Ledesma! Mas que quer o empresrio? perguntou Julio, que es cutara de p, atnito. -Que quer ele? Quer o abismo num primeiro andar, mobilado pelo Gard? Ernestinho voltou-se, muito afectuosamente: No, Sr. Zusarte a sua voz era quase meiga -, quer o desfecho numa sala. Demodo que eu e fazia um gesto resig nado -, a gente tem de condescender, tive de escrever outro final. Passei a noite em claro. Tomei trs chvenas de caf!O conselheiro acudiu, com a mo espalmada: Cuidado, Sr. Ledesma, cuidado! Prudncia com esses exci tantes! Por quem , prudncia!- A mim no me faz mal, Sr. Conselheiro disse sorrindo. Escrevi-o em trs horas! Venho de lho mostrar agora. At o te nho aqui...- Leia Sr. Ernesto, leia! exclamou logo D. Felicidade. Que lesse! Que lesse! Porque no lia? Era uma maada!... Era um rascunho!... Enfim, como que riam!... E, radiante,desdobrou, no silncio, uma grande folha de papel azul pautado. Eu peo desculpa. Isto apenas um borro. A coisa no es t ainda com todos os ff e rr. Fez ento voz teatral: Agatha!... a mulher, isto aqui a cena com o marido,o marido j sabe tudo...

AGATHA (caindo de joelhos aos ps de Jlio) Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a morte que ver, com essesdesprezos, o corao rasgado fibra a fi bra!JLIO E no me rasgaste tu tambm o corao? Tiveste tu pie dade? No. Retalhaste-mo! Meu Deus, eu que a julgava pura, nessas horas em que arrebatados...O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar de chve nas. Era Juliana, de avental branco, com o ch.- Que pena! exclamou Lusa. Depois do ch se l. De pois do ch.Ernesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado para Juliana, rancoroso: Ora essa! lindo! afirmou D. Felicidade.Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoitos de Oeiras, os bolos do Coc.- Aqui tem o seu ch fraco, Conselheiro dizia Lusa. Sirva-se, Julio. As torradas ao Sr. Julio! Mais acar? Quem quer? Uma torrada, Conselheiro? Estou amplamente servido, minha prezada senhora repli cou, curvando-se.E declarou, voltado para Ernestinho, que achava o dilogo opulento. Mas perguntaram o que quer o empresrio mais ago ra? J tem a sala...Ernestinho, de p, excitado, com um bolo de ovos na ponta dos dedos, explicou: O que o empresrio quer que o marido lhe perdoe... Foi um espanto:- Ora essa! extraordinrio! Porqu? Ento! exclamou Ernestinho, encolhendo os ombros. Diz que o pblico queno gosta! Que no so coisas c para o nosso pas. A falar verdade disse o conselheiro -, a falar a verdade Sr. Ledesma, o nosso pblico no geralmente afecto a cenas de sangue.- Mas no h sangue, Sr. Conselheiro! protestava Ernestinho, erguendo-se sobre os bicos dos sapatos. Mas no h san gue! E com um tiro. E com um tiro pelas costas,Sr. Conselheiro!Lusa fez a D. Felicidade Pst! e, num aparte, com um sorriso: Desses bolinhos de ovos. So muito frescos!Ela respondeu, com uma voz lamentosa: Ai, filha, no!E indicou o estmago, compungidamente. No entanto, o conselheiro aconselhava a Ernestinho a clemncia: tinha-lhe posto a mo no ombro paternalmente, e com uma voz persuasiva:- D mais alegria pea, Sr. Ledesma. O espectador sai mais aliviado! Deixe sair o espectador aliviado!- Mais um bolinho, conselheiro? Estou repleto, minha prezada senhora. E ento invocou a opinio de Jorge. No lhe parecia que o bom Ernesto deviaperdoar? Eu, conselheiro? De modo nenhum. Sou pela morte. Sou inteiramente pelamorte! E exijo que a mates, Ernestinho! D. Felicidade acudiu, toda bondosa: Deixe falar, Sr. Ledesma. Est a brincar. E ele ento que um corao de anjo!- Est enganada, D. Felicidade disse Jorge, de p, diante dela. Falo srio e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abismo, na sala, na rua, mas que amate. Posso l con sentir que, num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha famlia, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! No! Mata-a! E um princpio de famlia. Mata-a quanto antes!- Aqui tem um lpis, Sr. Ledesma gritou Julio, estendo-lhe uma lapiseira.O conselheiro, ento, interveio, grave:- No disse -, no creio que o nosso Jorge fale srio. muito instrudo para ter ideias to...Hesitou, procurou o adjectivo. Juliana ps-se-lhe diante com uma bandeja, ondeum macaco de prata se agachava comicamen te, sob um vasto guarda-sol eriado de palitos. Tomou um, curvou-se e concluiu:- To anticivilizadoras. Pois est enganado, conselheiro, tenho-as afirmou Jorge. So as minhas ideias. E aqui tem, se, em lugar de se tratar de um final de acto,fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: Sabes, encontrei minha mulher...- Oh, Jorge! disseram, repreensivamente. Bem, suponhamos, se ele mo viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra de honra que lhe respondia o mesmo: Mata-a!Protestaram. Chamaram-lhe tigre, Otelo, Barba-Azul. Ele ria, enchendo muito sossegadamente o seu cachimbo.Lusa bordava, calada: a luz do candeeiro, abatida pelo abat-jour, dava aos seuscabelos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca como sobre um marfim muito polido.- Que dizes tu a isto? disse-lhe D. Felicidade.Ela ergueu o rosto, risonha, encolheu os ombros.E o conselheiro logo: A Sr. D. Lusa diz com orgulho o que dizem as verdadeiras mes de famlia: Impurezas do mundo no me roam Nem a fmbria da tnica sequer. Ora muito boas noites disse, porta, uma voz grossa. Voltaram-se.- O Sebastio! Sr. Sebastio! Sebastiarro!Era ele, Sebastio, o grande Sebastio, o Sebastiarro, Sebastio-tronco de rvore- o ntimo, o camarada, o inseparvel de Jorge, desde o Latim, na aula de Frei Librio,aos Paulistas.Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapu moledesabado na mo. Comeava a perder um pouco na frente os seus cabelos castanhos e finos. Tinha a pele muito branca, a barba alourada e curta.Veio sentar-se ao p de Lusa. Ento donde vem? Donde vem? Vinha do Price. Rira muito com os palhaos. Houvera a brincadeira da pipa.O seu rosto, em plena luz, tinha uma expresso honesta, sim ples, aberta; os olhos pequenos, azuis de um azul-claro, de uma suavidade sria, adoavam-se muito quandosorria; e os beios escarlates, sem pelculas secas, os dentes luzidios, revelavam uma vida saudvel e hbitos castos. Falava devagar, baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua chvena, e remexendo o acar com colher direita, os olhos ainda a rir, um sorriso bom: A pipa tem muita graa. Muita graa!Sorveu um gole de ch e depois de um momento: E tu, maroto, sempre partes amanh? No h umas tentaezinhas de ir por a fora com ele, minha cara amiga?Lusa sorriu. Tomara ela! Quem dera! Mas era uma jornada to incmoda! Depois a casa no podia ficar s, no havia que fiar em criados...- Est claro, est claro disse ele.Jorge, ento, que abrira a porta do escritrio, chamou-o: O Sebastio! Fazes favor?Ele foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado: as abas do seu casaco mal feito tinham um comprimento eclesistico.Entraram para o escritrio.Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraada, tendo em cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, de uma bacante em delrio. A mesa, com umantigo tinteiro de prata que fora de seu av, estava ao p da janela; uma coleco empilhada de Dirios do Governo branquejava a um canto; por cima da ca deira demarroquim escuro pendia, num caixilho preto, uma larga fotografia de Jorge; e sobre o quadro duas espadas encruzadas re luziam. Uma porta, no fundo, coberta com um reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.- Sabes quem esteve a de tarde? disse logo Jorge, acenden do o cachimbo. -Aquela desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hem? E entrou? perguntou Sebastio, baixo, correndo por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada. Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quis! A Leopoldina, a Po eQueijo!E arremessando o fsforo violentamente:- Quando penso que aquela desavergonhada vem a minha casa! Uma criatura que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dafundo em troas, que passeava nos bailes, este ano, de domin, com um tenor! A mulher do Zagalo, um devasso que falsi-ficou uma letra!E quase ao ouvido de Sebastio:- Uma mulher que dormiu com o Mendona dos calos! Aque le sebento do Mendona dos calos!Teve um gesto furioso, exclamou:- E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras, abraa minha mulher, respira o meu ar!... Palavra de honra, Sebastio, se a pi lho procurou mentalmente, com o olharaceso, um castigo suficiente -, dou-lhe aoites!Sebastio disse devagar: E o pior a vizinhana.- Est claro que ! exclamou Jorge. Toda essa gente a pela rua abaixo sabe quem ela ! Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os stios. a Po e Queijo! Todo omundo conhece a Po e Queijo. M vizinhana disse Sebastio. De tremer.Mas ento! Estava acostumado casa, era sua, tinha-a arran jado, era uma economia...- Seno! No parava aqui um dia!Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhana a postos, vida de mexericos! Qualquer bagatela, o trotar de uma tipia, eaparecia por trs de cada vidro um par de olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar de ln guas por a abaixo, e concilibulos, e opinies formadas! Fulano indecente, fulano bbado! o diabo! disse Sebastio. A Lusa um anjo, coitada dizia Jorge, passeando pela saleta -, mas temcoisas em que criana! No v o mal. muito boa, deixa-se ir. Com este caso daLeopoldina, por exemplo; fo ram criadas de pequenas, eram amigas, no tem coragemagora para a pr fora. acanhamento, bondade. Ele compreende-se! Mas enfim as leis da vida tm as suas exigncias!E depois de uma pausa: Por isso, Sebastio, enquanto eu estiver fora, se te constar que a Leopoldina vem por c, avisa a Lusa! Porque ela assim: esquece-se, no reflexiona. necessrioalgum que a advirta, que lhe diga: Alto l, isso no pode ser! Que ento cai logo em si, e a primeira!... Vens por a, fazes-lhe companhia, fazes-lhe msi ca, e se vires que a Leopoldina aparece ao largo, tu logo: Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso no!Que ela, sentindo-se apoiada, tem deciso. Seno, acanha-se, deixa-a vir. Sofre com isso, mas no tem coragem de lhe dizer: No te quero ver, vai-te! No tem coragempara nada: comeam as mos a tremer-lhe, a se car-se-lhe a boca... mulher, muito mulher!... No te esqueas, hem, Sebastio? Ento havia de me esquecer, homem?Sentiram ento o piano da sala, e a voz de Lusa ergueu-se, fresca e clara, cantando a Mandolinata:Amici, la notte e` bella, La luna va spontari... Fica to s, coitada!... disse Jorge.Deu alguns passos pelo escritrio, fumando, com a cabea baixa: Todo o casal bem organizado, Sebastio, deve ter dois fi lhos! Deve ter pelo menos um!...Sebastio coou a barba em silncio e a voz de Lusa, ele vando-se com um certo esforo spero, nos altos da melodia:Di c, di l, per la cit Andiami a transnottari...Era uma tristeza secreta de Jorge no ter um filho! Deseja va-o tanto! Ainda emsolteiro, nas vsperas do casamento, j so nhava aquela felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com as suas perninhas vermelhas, cheias de roscas, e os cabelos anelados, finos como fios de seda; ou rapaz forte, en trando da escola com oslivros, alegre e de olho vivo, vindo mos trar-lhe as boas notas dos mestres: ou, melhor , rapariga crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranas cadas, vindopousar as mos nos seus cabelos j grisalhosVinha-lhe, s vezes, um medo de morrer sem ter tido aquela felicidade completadora!Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava; depois, no piano, Lusa recomeou a Mandolinata, com um brio jovial.A porta do escritrio abriu-se, Julio entrou: Que esto vocs aqui a conspirar? Vou-me safar, que tar de! At volta, meu velho, hem? Tambm ia contigo tomar ar, respirar, ver campos, mas...E sorriu com amargura. Addio! Addio! Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abra-lo outra vez. Se qui sesse alguma coisa doAlentejoJulio carregou o chapu na cabea: D c outro charuto, por despedida! D c dois!- Leva a caixa! Eu em viagem s fumo cachimbo. Leva a cai xa, homem!Embrulhou-lha num Dirio de Notcias; Julio meteu-a de baixo do brao, edescendo os degraus: Cuidado com as sezes, e descobre uma mina de ouro! Jorge e Sebastio entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano, torcia as guiasdo bigodinho, e Lusa comeava uma valsa de Strauss o Danbio Azul. Jorge disse, rindo, estendendo os braos:- Ela voltou-se, com um sorriso. E porque no? Em nova era falada! Citou logo a valsa que danara com o Sr. D. Fernando, no tempo da regncia, nas Necessidades. Era uma valsa linda, dessa poca: A Prola de Ofir.Estava sentada ao p do conselheiro, no sof. E como reto mando um dilogo mais querido continuou, baixo para ele, com uma voz meiga:- Pois creia, acho-a com ptimas cores.O conselheiro enrolava vagarosamente o seu leno de seda da ndia. Na estao calmosa passo sempre melhor. E a D. Felici dade? Ai! Estou outra, conselheiro! Muito boas digestes, muito livre de gases... Estou outra!- Deus o queira, minha senhora, Deus o queira disse o conselheiro esfregando lentamente as mos.Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade ps-se a dizer:- Espero que esse interesse seja verdadeiro...Corou. O corpete flcido do vestido de seda preta enchia-se-lhe com o arfar dopeito. O conselheiro recaiu lentamente no sof e com as mos nos joelhos: D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo sincero... Ela levantou para eleos seus olhos pisados, donde saam revelaes de paixo e splicas de felicidade: E eu, conselheiro!Deu um grande suspiro, ps o leque sobre o rosto. O conselheiro ergueu-se secamente. E com a cabea alta, as mos atrs das costas, foi ao piano, perguntou a Lusa, curvando-se:- alguma cano do Tirol, D. Lusa? Uma valsa de Strauss murmurou-lhe Ernestinho, em bicos de ps, ao ouvido.- Ah! Muita fama! Grande autor! Tirou ento o relgio. Eram horas, disse, de ir coordenar al guns apontamentos. Aproximou-se de Jorge, com solenidade:- Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com esse Alentejo! O clima nocivo, a estao traioeira!E apertou-o nos braos com uma presso comovida.D. Felicidade punha a sua manta de renda negra. J, D. Felicidade? disse Lusa.Ela explicou-lhe, ao ouvido: J, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas bajes e tenho estado!... Eaquele homem, aquele gelo! O Sr. Ernesto vem para os meus stios, hem? Como um fuso, minha senhora!Tinha vestido o seu palet de alpaca clara, fumava chupando, com as facesencovadas, por uma boquilha enorme, onde uma V nus se torcia sobre o dorso de um leo domado.- Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro, hem? Adeus. Quando for a Honra e Paixo c mando um camarote prima Lusa. Adeus! Saudinha!Iam a sair. Mas o conselheiro, porta, voltando-se subitamen te, com as abas dopalet deitadas para trs, a mo pomposamen te apoiada no casto de prata da bengala que representava uma cabea de mouro, disse, com gravidade:- Esquecia-me, Jorge! Tanto em vora, como em Beja, visite os governadores civis! E eu lhe digo porqu: deve-lho como primeiros funcionrios do distrito, e podemlhe ser de muita utilida de nas suas peregrinaes cientficas!E curvando-se profundamente: Al rivedere, como se diz em Itlia. Sebastio tinha ficado. Para arejar do fumo de tabaco, Lusa foi abrir as janelas; a noite estava quente e imvel, de luar.Sebastio pusera-se ao piano e, com a cabea curvada, corria devagar o teclado.Tocava admiravelmente, com uma compreenso muito fina da msica. Outroracompusera mesmo uma meditao, duas val sas, uma balada: mas eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscncias, sem estilo. Da cachimnia no me sai nada, costumava ele dizer com bonomia, batendo na testa, sorrindo, mas l com os dedos!...Ps-se a tocar um nocturno de Chopin. Jorge sentara-se no sof ao p de Lusa. J tens pronto o teu farnelzinho! disse-lhe ela.- Bastam umas bolachas, filha. O que quero o cantil com conhaque. E no te esqueas de mandar um telegrama logo que che gues! Pudera!- Tu daqui a quinze dias vens? Talvez...Ela teve um gesto amuado. Ah, bem! Se no vieres, vou ter contigo! A culpa tua. E olhando em redor:- Que s que vou ficar!Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente, com a voz ainda triste:- Pst, Sebastio! A malaguenha, faz favor? Sebastio comeou a tocar a malaguenha. Aquela melodia cli da, muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe estar em Mlaga, ou em Granada, no sabia: era sob aslaranjeiras, mil estrelinhas lu zem; a noite quente, o ar cheira bem; por baixo de um lampio suspenso a um ramo, um cantador sentado na tripea mourisca faz gemer aguitarra; em redor, as mulheres, com os seus corpetes de veludilho encarnado, batem as mos em cadncia; e ao largo dorme uma Andaluzia de romance e de zarzuela, quente e sensual, onde tudo so braos brancos que se abrem para o amor, capas romnticas queroam as paredes, sombrias vielas onde luz o ni cho do santo e se repenica a viola, serenos que invocam a Virgem Santssima cantando as horas...- Muito bem, Sebastio! Gracias!Ele sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o piano, e indo buscar o seu chapu desabado:- Ento amanh s sete? C estou, e vou-te acompanhar at ao Barreiro.Bom Sebastio!Foram debruar-se na varanda para o ver sair. A noite fazia um silncio alto, de uma melancolia plcida; o gs dos candeeiros parecia mortio; a sombra que se recortava na rua, com uma niti dez brusca, tinha um tom quente e doce; a luz punha nasfachadas brancas claridades vivas, e nas pedras da calada faiscaes vidra das; uma clarabia reluzia, a distncia, como uma velha lmina de prata; nada se movia; einstintivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a Lua branca, muito sria. Que linda noite!A porta bateu, e Sebastio de baixo, na sombra: D vontade de passear, hem? Linda! Ficaram varanda preguiosamente, olhando, detidos pela tranquilidade, pela luz. Puseram-se a falar baixo da jornada. quela hora onde estaria ele? J em vora, numquarto de estala gem, passeando monotonamente sobre um cho de tijolo . Mas voltaria breve; esperava fazer um bom negcio com o Paco, o es panhol das minas de Portel,trazer talvez alguns centos de mil-ris, e teriam ento a doura do ms de Setembro; poderiam fazer uma jornada ao Norte, ir ao Buaco, trepar aos altos, beber a gua fresca das rochas, sob a espessura hmida das folhagens; ir a Espi nho, e, pelas praias, sentar-sena areia, no bom ar cheio de azote, vendo o mar unido, de um azul metlico e faiscante, o mar do Ve ro, com algum fumo de paquete que passa para o s ul ao longe muitoadelgaado. Faziam outros planos com os ombros muito chegados: uma felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge disse: Se houvesse um pequerrucho, j no ficavas to s!Ela suspirou. Tambm o desejava tanto! Chamar-se-ia Carlos Eduardo. E via-o no seu bero dormindo, ou no colo, nu, agar rando com a mozinha o dedo do p, mamandoa ponta rosada do seu peito... Um estremecimento de um deleite infinito correu-lhe no corpo. Passou o brao pela cinta de Jorge. Um dia seria, teria um filho decerto! E no compreendia o seu filho homem nem Jorge velho: via-os ambos do mesmo modo: umsempre amante, novo, forte; o outro sempre dependente do seu peito, da maminha, ou gatinhando e palrando, louro e cor-de-rosa. E a vida aparecia-lhe infindvel, de umadoura igual, atravessada do mes mo enternecimento amoroso, quente, calma e luminosa como a noite que os cobria. A que horas quer a senhora que a venha acordar? disse a voz seca de Juliana.Lusa voltou-se: As sete, j lhe disse h pouco, criatura.Fecharam a janela. Em torno das velas uma borboleta branca esvoaava. Era bom agouro!Jorge prendeu-a nos braos.- Vai ficar sem o seu maridinho, hem? disse tristemente. Ela deixou pesar o corpo sobre as mos dele cruzadas, olhou-o com um longo olhar que se enevoava eescurecia, e, envolvendo-lhe o pescoo com o gesto lento, harmonioso e solene dos braos, pousou-lhe na boca um beijo grave e profundo. Um vago soluo levantou-lhe o peito. Jorge! Querido! murmurou.

Captulo III Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Lusavestia-se para ir a casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse, no havia de gostar, no! Mas estava to farta de estar s! Aborrecia-se tanto! De manh, ainda tinha os arranjos, acostura, a toilette, algum romance... Mas de tarde! hora em que Jorge costumava voltar do Ministrio, a soli do parecia alargar-seem torno dela. Fazia-lhe tanta falta o seu toque da campainha, os seus passos nocorredor!Ao crepsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razo, caa numa vagasentimentalidade: sentava-se ao piano, e os fados tris tes, as cavatinas apaixonadas, gemiam instintivamente no teclado, sob os seus dedos preguiosos, no movimentoabandonado dos seus braos moles. O que pensava em tolices ento! E noite, s, na larga cama francesa, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores, palpites de viuvez.No estava acostumada, no podia estar s. At se lembrara de chamar a TiaPatrocnio, uma velha parenta pobre que vivia em Belm: ao menos era algum; masreceou aborrecer-se mais ao p da sua longa figura de viva taciturna, sempre a fazer meia, com enormes culos de tartaruga sobre o nariz de guia.Naquela manh pensara em Leopoldina, toda contente de ir tagarelar, rir, segredar,passar as horas do calor. Penteava-se em colete e saia branca: a camisinha decotada descobria os ombros alvos de uma redondeza macia, o colo branco e tenro, azulado deveiazinhas finas; e os seus braos redondinhos, um pouco verme lhos no cotovelo, descobriam por baixo, quando se erguiam pren dendo as tranas, fiozinhos louros, frisando e fazendo ninho.A sua pele conservava ainda o rosado hmido da gua fria; ha via no quarto um cheiro agudo de vinagre de toilette; os transparentes de linho branco descidos davamuma luz baa, com tons de leite.Ah, positivamente devia escrever a Jorge, que voltasse depres sa! Que o que tinha graa era ir surpreend-lo a vora, cair-lhe no Tabaquinho, um dia, s trs horas! Equando ele entrasse empoeirado e encalmado, de lunetas azuis, atirar-se-lhe ao pescoo!E tardinha, pelo brao dele, ainda quebrada da jornada, com um vestido fresco, ir ver acidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na muito. Os homens vinham s portas das lojas. Quem seria? de Lisboa. a do engenheiro. E diante do touca dor, apertando o corpete do vestido, sorria quelas imaginaes, e ao seu rosto, no espelho.A porta do quarto rangeu devagarinho. Que ?A voz de Juliana, plangente, disse: A senhora d licena que eu v logo ao mdico? V, mas no se demore. Puxe-me essa saia atrs. Mais. O que que voc tem? Enjoos, minha senhora, peso no corao. Passei a noite em claro.Estava mais amarela, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestidode merino preto escoado e a cuia da semana de cabelos velhos. Pois sim, v disse Lusa. Mas arranje tudo antes. E no se demore, hem? Juliana subiu logo cozinha. Era no segundo andar, com duas janelas de sacadapara as traseiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogo. Diz que sim, Sr Joana disse cozinheira -, que podia ir. Vou-me vestir. Elatambm est quase pronta. Fica vossemec com a casa por sua! A cozinheira fez-se vermelha, ps-se a cantar, foi logo sacudir, estender na varanda um velho tapete esfiado; e os seus olhos no deixavam, defronte, uma casabaixa, pintada de amarelo, com um portal largo a loja de marceneiro do Tio Joo Galho, onde trabalhava o Pedro, o seu amante. A pobre Joana babava-se por ele. Era umrapazola plido e afadistado; Joana era minhota, de Avintes, de famlia de um lavrador, e aquela figura delgada de lisboeta anmico seduzia-a com uma violncia abrasada. Como no podia sair semana, metia-o em casa, pela porta de trs, quando estava s;estendia ento na varanda para dar sinal o velho tapete desbo tado, onde ainda se percebiam os paus de um veado.Era uma rapariga muito forte, com peitos de ama, o cabelo como azeviche, todo lustroso do leo de amndoas doces. Tinha a testa curta de plebeia teimosa. E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer o olhar mais negro.- Ai! suspirou Juliana. A Sr Joana que a leva!A rapariga ficou escarlate.Mas Juliana acudiu logo: Olha o mal!, fosse eu! Boa!, faz muito bem! Juliana lisonjeava sempre a cozinheira: dependia dela; Joana dava-lhe caldinhoss horas da debilidade, ou, quando ela estava mais adoentada, fazia-lhe um bife s escondidas da senhora. Julia na tinha um grande medo de cair em fraqueza e a cadamomento precisava tomar a sustncia. Decerto, como feia e solteirona, de testava aquele escndalo do carpinteiro; mas protegia-o, por que ele valia muitos regalos aos seus fracos de gulosa.- Fosse eu! repetiu. Dava-lhe o melhor da panela! Se a gente ia a ter escrpulos por causa dos amos, boa! Olha quem! Vem uma pessoa morrer, e comofosse um co.E com um risinho amargo: Diz que me no demorasse no mdico. como quem diz:cura-te depressa ou espicha depressa!Foi buscar a vassoura a um canto, e com um suspiro agudo:- Todas o mesmo, uma rcua! Desceu, comeou a varrer o corredor. Toda a noite estivera doente: o quarto no sto, debaixo das telhas, muito abafado, com um cheiro de tijolo cozido, dava-lheenjoos, faltas de ar, desde o comeo do Vero; na vspera at vomitara! E j levantada s seis horas, no descansara, limpando, engomando, despejando, com a pontada nolado e todo o estmago embrulhado! Tinha escancarado a cancela, e, com grandes ais, atirava vassouradas furiosas contra as grades do corrimo. A Sr D. Lusa est em casa?Voltou-se. Nos ltimos degraus da escada estava um sujeito, que lhe pareceuestrangeirado. Era trigueiro, alto, tinha um bi gode pequeno levantado, um ramo nasobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia. A senhora vai sair disse ela olhando-o muito. Faz fa vor de dizer quem ? O indivduo sorriu:- Diga-lhe que um sujeito para um negcio. Um negcio de minas.Lusa, diante do toucador, j de chapu, metia numa casa do corpete dois botesde rosa-de-ch. Um negcio! disse muito surpreendida. Deve ser algum recado para o Sr. Jorge, decerto! Mande entrar. Que espcie de homem ? Um janota!Lusa desceu o vu branco, calou devagar as luvas de peau de sue`de claras, deuduas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou, fez Ah!, toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Baslio. Houve um shake-hands demorado, um pouco trmulo. Estavam ambos calados ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as pala vras, as perguntas, vieram logo, muito precipitadamente: -Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela? Chegara na vspera no paquete de Bordus. Perguntara no Mi nistrio: disseramlhe que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...- Como tu ests mudada, santo Deus! Velha? Bonita!- Ora!E ele, que tinha feito? Demorava-se?Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Ele no sof, muito languidamente; ela ao p, pousada de leve beira de uma poltrona, toda nervosa.Tinha deixado o degredo disse ele. Viera respirar um pouco velha Europa.Estivera em Constantinopla, na Terra San ta, em Roma. O ltimo ano passara-o emParis. Vinha de l, da quela aldeola de Paris! Falava devagar, recostado, com um ar nti-mo, estendendo sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.Lusa olhava-o. Achava-o mais varonil, mais trigueiro. No ca belo preto anelado havia agora alguns fios brancos, mas o bigode pequeno tinha o antigo ar moo,orgulhoso e intrpido; os olhos, quando ria, a mesma doura amolecida, banhada num fluido. Re parou na ferradura de prolas da sua gravata de cetim preto, nas pequeninasestrelas brancas bordadas nas suas meias de seda. A Baa no o vulgarizara. Voltava mais interessante! Mas tu, conta-me de ti dizia ele com um sorriso, inclina do para ela. s feliz,tens um pequerrucho No- exclamou Lusa rindo. No tenho! Quem te disse? Tinham-me dito. E teu marido demora-se? Trs, quatro semanas, creio. Quatro semanas! Era uma viuvez! Ofereceu-se logo para a vir ver mais vezes,palrar um momento, pela manh Pudera, no! s o nico parente que tenho, agora...Era verdade!... E a conversao tomou uma intimidade melan clica: falaram da me de Lusa, a tia Joj, como lhe chamava Baslio. Lusa contou a sua morte, muito doce, na poltrona, sem um ai...- Onde est sepultada? perguntou Baslio com uma voz grave; e acrescentou, puxando o punho da camisa de chita:- Est no nosso jazigo? Est. Hei-de ir l. Pobre tia Joj!Houve um silncio. Mas tu ias sair! disse Baslio de repente, querendo erguer-se.- No! exclamou. No! Estava aborrecida, no tinha na da que fazer. Ia tomar ar. No saio j.Ele ainda disse:- No te prendas Que tolice! Ia a casa de uma amiga passar um momento.Tirou logo o chapu; naquele movimento os braos erguidos repuxaram o corpete justo, as formas do seio acusaram-se suavemente. Baslio torcia a ponta do bigode devagar; e vendo-a descalar as luvas:- Era eu antigamente quem te calava e descalava as luvas... Lembras-te?... Ainda tenho esse privilgio exclusivo, creio eu...Ela riu-se. Decerto que no... Baslio disse ento, lentamente, fitando o cho:- Ah! Outros tempos!E ps-se a falar de Colares: a sua primeira ideia, mal chegara, tinha sido tomaruma tipia e ir l: queria ver a quinta. Ainda existiria o balouo debaixo do castanheiro? Ainda haveria o cara mancho de rosinhas brancas, ao p do cupido de gesso que tinha uma asa quebrada?...Lusa ouvira dizer que a quinta pertencia agora a um brasilei ro: sobre a estrada havia um mirante com um tecto chins, ornado de bolas de vidro; e a velha casamorgada fora reconstruda e mo bilada pelo Gard. A nossa pobre sala de bilhar, cor de oca, com grinaldas de rosas! disse Baslio. E fitando-a: Lembras-te das nossas par tidas de bilhar?Lusa, um pouco vermelha, torcia os dedos das luvas; ergueu os olhos para ele, disse, sorrindo:- ramos duas crianas!Baslio encolheu tristemente os ombros, fitou as ramagens do tapete: parecia abandonar-se a uma saudade remota. E com uma voz sentida:- Foi o bom tempo! Foi o meu bom tempo!Ela via a sua cabea bem feita, descada naquela melancolia das felicidadespassadas, com uma risca muito fina, e os cabelos brancos que lhe dera a separao. Sentia tambm uma vaga saudade encher-lhe o peito: ergueu-se, foi abrir a outra janela, como para dissipar na luz viva e forte aquela perturbao. Perguntou-lhe ento pelasviagens, por Paris, por Constantinopla.Fora sempre o seu desejo viajar dizia -, ir ao Oriente. Quereria andar emcaravanas, balouada no dorso dos camelos; e no teria medo, nem do deserto, nem das feras... Ests muito valente! disse Baslio. Tu eras uma mari cas, tinhas medo detudo... At da adega, na casa do pap, em Almada!Ela corou. Lembrava-se bem da adega, com a sua frialdade subterrnea que davaarrepios! A candeia de azeite pendurada na parede alumiava com uma luz avermelhada e fumosa as grossas traves cheias de teias de aranha, e a fileira tenebrosa das pipas bojudas. Havia ali s vezes, pelos cantos, beijos furtadosQuis saber ento o que tinha feito em Jerusalm, se era bonito. Era curioso. Ia pela manh um bocado ao Santo Sepulcro; de pois do almoo montava a cavalo... No seestava mal no hotel, inglesas bonitas... Tinha algumas intimidades ilustres...Falava delas, devagar, traando a perna: o seu amigo o pa triarca de Jerusalm, a sua velha amiga a princesa de La Tour d'Auvergne! Mas o melhor do dia era de tarde -dizia -, no Jardim das Oliveiras, vendo defronte as muralhas do templo de Salo mo, ao p a aldeia escura de Betnia, onde Marta fiava aos ps de Jesus, e mais longe faiscandoimvel sob o sol, o mar Morto! E ali passava sentado num banco, fumando tranquilamente o seu cachimbo!Se tinha corrido perigos?Decerto. Uma tempestade de areia no deserto de Petra! Horr vel! Mas que linda viagem, as caravanas, os acampamentos! Des creveu a sua toilette: uma manta de pelede camelo s listras ver melhas e pretas, um punhal de Damasco num a cinta de Bagdade e uma lana comprida dos bedunos. Devia-te ficar bem!- Muito bem. Tenho fotografias. Prometeu dar-lhe uma, e acrescentou:- Sabes que te trago presentes? Trazes? E os seus olhos brilhavam. O melhor era um rosrio...- Um rosrio? Uma relquia! Foi benzido primeiro pelo patriarca de Jeru salm sobre o tmulode Cristo, depois pelo papa... Ah! Porque tinha estado com o papa! Um velhinho muito as seado, j todo branquinho, vestido de branco, muito amvel!- Tu dantes no eras muito devota disse. No, no sou muito caturra nessas coisas respondeu rindo.- Lembras-te da capela da nossa casa em Almada? Tinham passado ali lindas tardes! Ao p da velha capela mor gada havia um adro todo cheio de altas ervas floridas e as pa poula s, quando vinha a aragem, agitavam-secomo asas vermelhas de borboletas pousadas... E a tlia, lembras-te, onde eu fazia ginstica? No falemos no que l vai! Em que queria ela ento que ele falasse? Era a sua mocidade, o melhor que tivera na vida...Ela sorriu, perguntou: E no Brasil?Um horror! At fizera a corte a uma mulata. E porque te no casaste? Estava a mangar! Uma mulata!- E de resto acrescentou com a voz de um arrependimento triste -, j que me no casei quando devia encolheu os ombros melancolicamente -, acabou-se... Perdi avez. Ficarei solteiro.Lusa fez-se escarlate. Houve um silncio. E qual o outro presente, ento, alm do rosrio? Ah! Luvas. Luvas de Vero, de peau de sue`de, de oito bo tes. Luvas decentes. Vocs aqui usam umas luvitas de dois botes, a ver-se o punho, um horror!De resto, pelo que tinha visto, as mulheres de Lisboa cada dia se vestiam pior! Era atroz! No dizia por ela; at aquele vestido ti nha chique, era simples, era honesto. Mas em geral, era um hor ror. Em Paris! Que deliciosas, que frescas, as toilettes daqueleVero! Oh!, mas em Paris!... Tudo superior! Por exemplo, desde que chegara ainda no pudera comer. Positivamente, no podia comer!- S em Paris se come resumiu.Lusa voltava entre os dedos o seu medalho de ouro, preso ao pescoo por uma fita de veludo preto.- E estiveste ento um ano em Paris?Um ano divino. Tinha um apartamento lindssimo, que perten cera a LordeFalmouth, Rue Saint-Florentin, tinha trs cavalos... E recostando-se muito, com as mos nos bolsos: Enfim, fazer este vale de lgrimas o mais confortvel poss vel!... Dize c, tensalgum retrato nesse medalho? O retrato de meu marido.- Ah!, deixa ver! Lusa abriu o medalho. Ele debruou-se; tinha o rosto quase sobre o peito dela. Lusa sentia o aroma fino que vinha dos seus cabelos.- Muito bem, muito bem! fez Baslio.Ficaram calados.- Que calor que est! disse Lusa. Abafa-se, hem! Levantou-se, foi abrir um pouco uma vidraa. O sol deixara a varanda. Uma aragem suave encheu as pregas grossas das bambi nelas. o calor do Brasil disse ele.- Sabes que ests mais crescida?Lusa estava de p. O olhar de Baslio corria-lhe as linhas do corpo; e com a vozmuito ntima, os cotovelos sobre os joelhos, o rosto erguido para ela: Mas, francamente, dize c, pensaste que eu te viria ver? Ora essa! Realmente, se no viesses zangava-me. s o meu nico parente... Oque tenho pena que meu marido no esteja... Eu acudiu Baslio foi justamente por ele no estarLusa fez-se escarlate. Baslio emendou logo, um pouco corado tambm: Quero dizer... talvez ele saiba que houve entre ns Ela interrompeu:- Tolices! ramos duas crianas. Onde isso vai! Eu tinha vinte e sete anos observou ele, curvando-se.Ficaram calados, um pouco embaraados. Baslio cofiava o bi gode, olhando vagamente em redor: Ests muito bem instalada aqui disse.No estava mal... A casa era pequena, mas muito cmoda. Pertencia-lhes. Ah!, ests perfeitamente! Quem esta senhora, com uma luneta de ouro?E indicava o retrato por cima do sof. A me de meu marido. Ah! Vive ainda? Morreu. o que uma sogra pode