160
UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE AMADOU HAMPATÉ BÂ ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR PIRACICABA, SP (2014)

EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE … · Projeto. Agradeço ao Djop, Acácio e Dida pelo apoio com materiais de pesquisa. Agradeço aos funcionários,

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE

AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

PIRACICABA, SP (2014)

EDUCAÇÃO E ORALIDADE NO OESTE

AFRICANO PELA REPRESENTAÇÃO DE AMADOU HAMPATÉ BÂ

ANTONIO FILOGENIO DE PAULA JUNIOR

ORIENTADOR: PROF. DR.CESAR ROMERO AMARAL VIEIRA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIMEP como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação

PIRACICABA, SP (2014)

Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Unimep

Bibliotecária: Luciene Cristina Correa Ferreira CRB-8/8235

Paula Junior, Antonio Filogenio de.

P324e Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou Hampaté Bâ./

Antonio Filogenio De Paula Junior. – Piracicaba, SP: [s.n.], 2014.

158 f. ; il.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências Humanas / Programa

de Pós- Graduação em Educação - Universidade Metodista de Piracicaba. 2014.

Orientador: Dr. Cesar Romero Amaral Vieira.

Inclui Bibliografia

1. Educação. 2. Oralidade. 3. África. 4. Tradição. 5. História. I. Vieira, Cesar

Romero Amaral .II. Universidade Metodista de Piracicaba. III Título.

CDU 37

BANCA EXAMINADORA

Prof.Dr. Cesar Romero Amaral Vieira

Prof.Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos

ProfªDrª. Anna Maria Lunnardi Padilha

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela sua misericórdia.

Agradeço aos meus pais Etelvina e Antonio pela minha existência e educação. Esse

trabalho é dedicado a eles de todo o meu coração.

Agradeço a minha esposa Alexandra e o meu filho Kauê pelo apoio durante esta

jornada acadêmica. Agradeço a minha filha Luana que mesmo no ventre materno já

era fonte de inspiração e motivação.

Agradeço aos meus irmãos e mestres: Cosmo, Djop, Barcellos, Zequinha e

Lumumba. Aos amigos parceiros de caminhada: Vande, Vandeco, Mauro, Márcia,

Viviane, Elide e Dida.

Agradeço aos amigos da Biblioteca Pública Municipal: Lucila, Tite e Rosana pela

condição que me foi oferecida para realização do mestrado.

Agradeço ao meu amigo Alexandre Cruz por sua orientação na elaboração do

Projeto. Agradeço ao Djop, Acácio e Dida pelo apoio com materiais de pesquisa.

Agradeço aos funcionários, professores e alunos do PPGE – Unimep que sempre se

mostraram generosos e atenciosos as nossas necessidades.

Agradeço de maneira muito especial aos membros da banca: a Profª. Anna por sua

competência, cuidado e atenção, ao Prof. Acácio por me ajudar a compreender cada

vez mais uma África sujeito que ainda tem tanto a nos dizer. A sua amizade sempre

foi um grande incentivo.

Agradeço com muito carinho e respeito ao meu orientador Prof. César por me

acolher neste programa e por me dar a segurança intelectual e metodológica para o

desenvolvimento da pesquisa. A sua presença foi essencial.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

Pessoal de Nível Superior – CAPES – Brasil.

RESUMO

Educação e oralidade no oeste africano pela representação de Amadou

Hampaté Bâ

O trabalho tem como objetivo responder qual o papel da oralidade na educação do

oeste africano, tendo como objeto principal de investigação as ideias sobre

educação e oralidade contidas na obra Amkoullel, o menino fula do filósofo e mestre

tradicional do Mali, Amadou Hampaté Bâ (1900-1991). A tradição oral é uma das

fontes investigativas basilares para a historiografia da África. De acordo com o

historiador de Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), a oralidade ao lado da

escrita e da arqueologia, tendo como ciências auxiliares a linguística e a

antropologia, forma o material de pesquisa do historiador que investiga o continente

africano. Em nossa pesquisa buscamos perceber o papel que a tradição, conhecida

como tradição oral, desempenha na formação do homem africano. Esta pesquisa

justifica-se também pela necessidade de ampliar os conhecimentos sobre o

continente africano, já pensando na Lei Federal 10.639 de 2003, que institui a

obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas

do país. Deste modo, compreender melhor a África, também é reconhecer com mais

coerência a formação do nosso povo e suas matrizes culturais ampliando as

possibilidades do diálogo entre os povos.

Palavras-chave: Educação, Oralidade, África, Tradição e História

Abstract

Education and oral tradition in West African by the representation of Amadou Hampâté Bâ.

This study aims to answer what the role of orality in education of West African is,

whose the main object of research is the idea about education and orality that comes

from ‘Amkoullel, A Fula Child’. It is a literary work made by philosopher and traditional

master of Mali, Amadou Hampâté Bâ (1900-1991). The oral tradition is one of the

basic investigative sources for the historiography of Africa. According to the historian

of Burkina Faso, Joseph Ki Zerbo (1922-2006), the oral tradition along with writing

and archeology that have linguistics and anthropology as auxiliary sciences form the

historian's research material who investigates the African continent. In our research

we seek to understand the role that tradition, known as oral tradition, plays in the

formation of African man. This research is also justified by the need to expand the

knowledge about the African continent, already thinking of Federal Law 10,639 of

2003, establishing the obligation of history teaching, African and Afro-Brazilian

cultures at schools of the country. Therefore, a better understanding of Africa, it is

also to recognize with more consistency a training of our people and our cultural

matrixes by expanding the possibilities of dialog between peoples.

Keywords: Education, Orality, Africa, Tradition and History.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: A África no contexto de um mundo descentralizado..........09

Capitulo I: A representação africana: avanços e desafios.............................25

I.1-Desconstruindo imagens: unanismo e afropessimismo............................32

I.2 - A África sem ilusões: Racismo e Antirracismo........................................41

I.3 – A África no contexto mundial: História e Cultura....................................54

I.4 – Nação e representação..........................................................................59

Capítulo II: A questão da memória.................................................................67

II.1 – A memória coletiva................................................................................73

II.2 – Memória e História.................................................................................80

II.3 – Memória e Oralidade..............................................................................84

Capítulo III: Saberes e Práticas Culturais........................................................95

III.1 – Palavra e Tradição................................................................................107

III.2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão.................................................117

III.3 – África e Brasil: Diálogos culturais para a educação...............................125

CONCLUSÃO: Uma educação para emancipação do ser humano................133

BIBLIOGRAFIA e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................139

ANEXO.............................................................................................................153

Anexo:

Figura 1 - Amadou Hampaté Bâ em Treichville (Abidjan – Costa do Marfim) em

1966. Foto de Philippe Dupuich extraída de Sur les traces d´Amkoullel, L´enfant

peul, Actes Sud, 1998 ..............................................................................................154

Figura 2 - Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas apresentando algumas divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003) ....................................155

Figura 3 - Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu

a sua infância e adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles:

fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores, diwambés, entre outros. Imagem do livro

Amkoullel, o menino fula (2003) .............................................................................156

Figura 4 - Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que

destaca a cidade de Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003)

.................................................................................................................................157

Figura 5 - Mapa da África Ocidental........................................................................158

9

Introdução

A África no contexto de um mundo descentralizado

Na atualidade torna-se cada vez mais evidente a percepção de que o mundo -

e aqui se diga o mundo humano dos sentidos e significados - não suporta mais uma

perspectiva hegemônica. A ideia de uma visão única e centralizada sobre o mundo

torna-se assíncrona de um momento histórico contemporâneo, que tem evocado e

provocado múltiplos (des)encontros entre diferentes pessoas e lugares. É neste

cenário que nos reencontramos também com o continente africano.

Ao longo dos anos, em especial a partir da modernidade, o continente

africano tem sido retratado por um olhar externo, impregnado de elementos

ideológicos, constituídos dentro de uma visão de mundo que prioriza os dados

culturais oriundos da Europa.

A África tem sido, ao longo de muitos séculos, alvo de interesses variados; na

maioria das vezes esses interesses estiveram ligados à exploração. Nessa

perspectiva, não foi possível estabelecer-se uma relação de compreensão e

entendimento, na qual o respeito e a valorização dos aportes culturais africanos

fossem reconhecidos.

Em praticamente toda a sua extensão territorial, a África é descrita pelo

ocidente de maneira diversa, sendo essa descrição alheia ao que de fato acontece

internamente em suas culturas. Esse olhar exógeno esteve muitas vezes imbuído de

ideologias que justificassem a relação que se desenvolveria com as populações

africanas. É nesse sentido que ao menos duas dessas relações se tornaram

emblemáticas e, digamos, traumáticas para muitas ações que aconteceriam no

continente africano posteriormente. São elas: a escravização, com a consequente

disseminação dessas pessoas para o novo mundo, e a colonização que estabelece

heranças políticas e econômicas delicadas ao continente africano, visíveis até os

dias de hoje.

O continente africano visto dessa maneira acaba por não ser conhecido de

fato, já que nesse contexto de uma visão hegemônica e de uma descrição apenas

externa, existe uma dificuldade de aproximação com os traços culturais da África.

10

O contato com a África solicita a participação efetiva desse continente no

diálogo mundial atual, e para isso é preciso reconhecer as suas expressões e os

seus modos de pertencimento.

A noção de pertencimento e de identidade não é homogênea para os próprios

africanos. Assim, na proposta de irmos ao encontro da África através de alguns dos

seus autores, ou seja, da África descrita a partir de sua própria percepção,

procuramos trabalhar com autores que a descrevessem de maneira também

endógena.

Essa condição descritiva é enfatizada por Castiano (2010)1, que trata essa

questão sob a perspectiva do olhar externo, percebido como um olhar objetivo e do

olhar interno, denominado de subjetivo. É necessária essa retomada de si mesmo

para pensar-se a África no contexto mundial de relações, mas tendo como base a

condição de que os africanos se percebam, se reconheçam e passem a dizer quem

são e o que buscam, em uma perspectiva também interior de sua identidade. Essa

análise e proposta de Castiano coincidem com Fábio Leite2.

Vejamos a sua constatação dessa condição objetiva e subjetiva do

continente.

Esta visão periférica é ainda impactada negativamente pela pouca pesquisa de campo e fragilidade de dados realmente concretos, indispensáveis ao conhecimento das sociedades de que se deseja falar, ocorrendo pela combinação desses fatores à configuração da África-objeto a ser dissecada e observada nos microscópios equipados com lentes impróprias para não dizer partidas. (2013, p.36).

Então,

A essa visão periférica opõe-se outra corrente, que se pode denominar de visão interna, nascida de uma metodologia diferencial, isto é, uma metodologia cujos limites são estabelecidos por uma dada realidade concreta, seja ela qual for, e não por outra. Isso é decisivo no processo progressista de conhecimento de vez que faz captar a imagem da África-sujeito e liga-se a uma atitude que deseja conhecer tanto a estrutura como a dinâmica dos processos. (LEITE, 2013, p.36).

A nossa investigação parte deste princípio, de procurar ir ao encontro da

África para ouvir os seus agentes intelectuais, saber quem ela é, e, para isso, nos

voltamos para a obra “Amkoullel, o menino fula” (2003) como lugar privilegiado para

1 José Paulino Castiano é filósofo e historiador moçambicano do departamento de Filosofia da

Educação da Universidade Pedagógica de Maputo. 2 Sociólogo da USP, especialista em culturas africanas da costa ocidental.

11

obtermos essa percepção da África sujeito. Aproximamo-nos do texto como um

documento, no qual procuramos compreender a relação oralidade e educação no

oeste africano. Neste ponto é válido dizermos que o oeste africano é uma vasta

extensão territorial que não se constitui em uma unidade territorial, mas que

apresenta uma unidade cultural que estabelece uma proximidade entre os povos

que habitam esse local. De acordo com Hampaté Bâ (2003), aspectos como o valor

dado à palavra e o respeito aos mais velhos são comuns em todas as culturas.

Para realizarmos essa leitura da obra Amkoullel, o menino fula, precisamos

localizar o autor e suas memórias em um contexto histórico maior, procurando

compreender o que estava acontecendo na África no período de infância e juventude

de Amadou Hampaté Bâ. No período retratado na obra, aproximadamente de 1905 a

1921, pleno período colonial da África, o que estava acontecendo no local?

Temos na África nesse período, de acordo com Conceição (2006), a forma do

colonialismo contemporâneo, que fez por ampliar as bases europeias em território

africano e boa parte do território asiático. Essa colonização da África é estabelecida

pela Europa e procura a afirmação dos países europeus no cenário mundial. A

própria divisão territorial africana foi determinada por esses interesses

fundamentados em bases econômicas principalmente.

De acordo com Latouche

O ocidente fez mais que modificar seus modos de produção, ele destruiu o sentido de seu sistema social ao qual seus modos estavam fortemente aderidos. Desde então, o econômico tornou-se um campo autônomo da vida social e uma finalidade em si mesmo. As velhas forças onde predominava o ser mais foram substituídas pelo objetivo ocidental do ter mais. (1989, p.22)

Também somos levados a investigar o momento em que essas memórias são

trazidas à tona, já que Amadou Hampaté Bâ (1900-1991) coloca essas lembranças

no papel, já com a idade de 80 anos. Nessa idade, já havia assistido ao surgimento

de vários movimentos pela emancipação africana, em especial o movimento pan-

africanista e a negritude. Estes movimentos são fenômenos relevantes na

organização dos povos negros na África e nos países em que essa comunidade se

fez presente. Ambos buscam uma proposta de identificação de grupo em torno de

valores comuns, observáveis na cultura e na própria condição de exploração a que

são submetidos os negros em distintas sociedades. Hampaté Bâ é um intelectual

formado nesse contexto, tendo participado desses processos de maneira ativa. O

12

modo com que essas lembranças são trazidas à tona se torna bastante relevante

para termos uma noção mais apropriada do sentido de sua obra.

O texto Amkoullel, o menino fula é um registro autobiográfico da infância e

juventude de Hampaté Bâ, que foi publicado após a sua morte por Hélene

Heckmann, responsável por sua obra literária. O título original em francês é

Amkoullel, L´enfant peul. A palavra Amkoullel é o modo como Amadou Hampaté Bâ

era chamado quando criança e Fula ou Peul refere-se ao grupo étnico ao qual

pertence, que, de acordo com historiadores especialistas em etnias africanas, trata-

se de uma etnia que tem origem na África oriental e Península Arábica, mas que foi

migrando até o oeste africano em um longo percurso que permitiu que a cultura

desse povo seja complexa, revelando traços presentes em outros povos, ao mesmo

tempo que mantém as suas características próprias.

O autor escreveu doze obras ao longo de sua vida, tratando na maioria delas

sobre a cultura do oeste africano, com ênfase na sua região. Entre as obras escritas

por ele, podemos destacar: L´entrange destin de Wangrin; Oui, mon comandante;

Contes initiaques Peul; Contes des Sages d´Afrique; Vie e enseignement de Tierno

Bokar-Le sage de Bandiagara; Aspects de la civilisation africaine; Jesus vu par un

mulsuman; Kaidara; L´Empire peul du Macina, entre outras. Estas obras estão

publicadas em outros idiomas e mesmo na língua francesa estão disponíveis em

diversas edições. Porém, no Brasil apenas Amkoullel, o menino fula está disponível.

Hampaté Bâ era mestre tradicionalista, professor, historiador e filósofo

nascido em Bandiagara, no Mali, oeste da África, reconhecido no meio intelectual

dos pesquisadores sobre a África como uma das maiores referências sobre a

chamada cultura tradicional3. Concordando com Blaise (2012), podemos dizer que o

vasto conhecimento de Hampaté Bâ em várias áreas chega ser desconcertante. A

sua formação reunia o universo tradicional africano, o conhecimento islâmico e a

formação acadêmica europeia, tendo na Universidade Sorbonne, na França, a sua

base, o que lhe permitiu desenvolver e aprimorar uma reflexão relevante, capaz de

indicar possíveis caminhos para o diálogo entre as culturas tradicionais africanas, o

mundo islâmico e o mundo europeu, e assim, contribuir para a reconstrução de uma

imagem da África que saiba articular a perspectiva do olhar externo e interno.

3 A cultura tradicional está ligada à cultura nativa de transmissão oral.

13

A natureza desse encontro ou reencontro entre a África e o mundo ocidental

pode estar pautada na busca pelo ser humano, por aquilo que lhe seja mais caro,

talvez a ideia de felicidade, de beleza, que para Hampaté Bâ (2010) está

configurada na maneira com que o homem se coloca no mundo e no sentido que dá

a sua existência, que não é única, tampouco isolada. O homem é com o outro, é

com o mundo. Essa visão apresentada por Hampaté Bâ se coloca na contramão

daquela que Latouche chama atenção, que tem como característica o modo de

consumo estabelecido pelo ocidente, e o desconstrói “à potência mágica dos

brancos, ao status ligado a esse modo de vida” (1989, p.27). Um modo de vida que

privilegia o acúmulo de bens materiais.

A relevância de Amadou Hampaté Bâ para os estudos sobre a África já era

conhecida por seus contemporâneos, entre eles Joseph Ki Zerbo4, que reconhecia a

importância cultural e intelectual de Hampaté Bâ para que os dirigentes africanos e

os pensadores do continente pudessem refletir a África embasados em um universo

próprio de saberes, que já começava a se tornar desconhecido para as gerações

africanas mais jovens. Desse modo, nos diz que, “de tempos em tempos, tivemos

algumas luzes individuais que brilharam na noite, como faróis ou estrelas dos

pastores, como o historiador Amadou Hampaté Bâ, por exemplo.” (2009, p.137).

É nesta perspectiva de reconhecimento da obra desse autor que

procuraremos conduzir os estudos sobre a África do oeste sob a ótica da educação,

de modo a compreender o valor da educação tradicional africana no próprio

continente, assim como na formação da cultura brasileira, já que elementos dessas

culturas foram trazidos para o Brasil, através do processo escravista, e desse modo

foram sendo incorporados através das culturas negras aqui existentes ao universo

da cultura nacional. Conceição (2006) nos diz que o escravismo trouxe para o Brasil

cerca de 40% da população africana, o que deixa nítida a necessidade de

compreenderem-se os aspectos gerais dessa presença em território nacional com os

seus respectivos desdobramentos culturais, políticos, econômicos, sociais e

educacionais.

A cultura tradicional africana pauta-se essencialmente na transmissão oral

dos seus saberes. Aliás, segundo Ki Zerbo (2010), esse é um dos aspectos que

mais a tornam de difícil aceitação na lógica cartesiana ocidental, que entende a

4 Historiador de Burkina Fasso, país do oeste africano. Nasceu em 1922 e morreu em 2006.

14

tradição escrita como uma primazia e até mesmo uma condição superior de

civilização em relação aos povos de perspectiva oral. De acordo com Prins (1992,

p.163), “os historiadores das sociedades modernas, industriais e maciçamente

alfabetizadas – ou seja, a maior parte dos historiadores profissionais – em geral são

bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado”.

Devido a esse olhar, a história da África ficou submersa, pois se suspeitava da

possibilidade de uma construção histórica sem bases escritas.

Desde o início da história (isto é, da história escrita segundo o método Ranke), a África tem sido vista como o continente a-histórico par-excellence. Esta opinião foi consistentemente sustentada, desde a sentença de Hegel em 1831, de que “ela não é parte histórica do mundo”, até a famosa observação de Hugh Trevor-Roper em 1965, que ofendeu por uma geração os clãs africanistas anticoloniais que rapidamente se proliferavam na época, declarando que a África não possuía história, apenas evoluções sem sentido e tribos bárbaras. (PRINS, 1992, p.164).

Hampaté Bâ (2013) relata que, quando foi falar aos europeus pela primeira

vez sobre as tradições orais do oeste africano, conseguiu apenas arrancar risos e

alguns chegavam a perguntar, em tom irônico, qual a utilidade dessas tradições para

a Europa. Naquele primeiro momento, e ainda sob o impacto dessa rejeição, ele

respondeu que seria a de devolver a alegria que a Europa havia perdido. Alguns

anos mais tarde, refletindo sobre essa resposta, também acrescentaria que uma

certa dimensão humana, pois a civilização tecnológica estaria fazendo

desaparecer o ser humano em sua totalidade. Essa visão demonstra o aspecto de

centralidade que esses intelectuais europeus atribuem a Europa: é como se o que

for estabelecido a partir dessa perspectiva é válido e o que for construído fora dela

não.

Essa situação a que Hampaté Bâ foi submetido não é diferente em muitas

instâncias do conhecimento, entre elas a filosofia e a história. Na filosofia podemos

verificar as análises de Martin Bernal (1987) em sua obra Black Athena em que

discute a pretensa origem grega do pensamento reflexivo. E na própria história oral

ainda existem desafios a serem superados para revelar e legitimar a oralidade no

campo da historiografia. Segundo Thompson (1992, p.45), “na verdade a história

oral é tão antiga quanto a própria história. Ela foi a primeira espécie de história. E

apenas muito recentemente é que a habilidade em usar a evidência oral deixou de

ser uma das marcas do grande historiador”. Nesse contexto, de acordo com Martin

Bernal, é interessante pensar que a base da civilização ocidental a partir de uma

15

tradição escrita revela fragilidade histórica em si mesma, já que a população grega,

assim como a população medieval eram iletradas em sua quase totalidade, o que

revela também uma base oral de sua cultura.

A história cultural enquanto escola historiográfica tem sido uma das vertentes

que não somente reconhece como também valoriza a investigação através da

história oral, sendo ela também uma das bases conceituais na formação de boa

parcela de historiadores africanos contemporâneos. Segundo François (2006, p.12),

“...a história oral tem uma função propriamente política de purgação da memória...”.

Este trabalho se insere no contexto investigativo da história cultural, tendo

nessa linha de pesquisa os elementos metodológicos que possibilitam avançar no

encontro com a obra de Hampaté Bâ.

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vários caminhos. O primeiro diz respeito a classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. (CHARTIER, 1999, p.16-17).

A história cultural tem influenciado muitos pesquisadores africanos

contemporâneos, não sendo diferente com Joseph Ki Zerbo. Dessa forma, tem sido

possível estabelecer um diálogo dessa corrente historiográfica nascida na Europa

com o modo de ser da África. Muitos pesquisadores africanos tem encontrado na

história cultural, e mesmo na história oral, os subsídios apropriados para realizar a

descrição da representação africana. Vejamos,

Os melhores historiadores reconhecem também que ser historiador é escolher o seu tema, os seus centros de documentação, as suas fontes, os seus argumentos, a sua apresentação, o seu estilo e o seu público. Todos estes fatores de eleição, sem contar com a força violenta e obscura do subconsciente e com o peso sútil do ambiente social e dos preconceitos, mostram bem a parte de subjetividade do trabalho histórico. A partir do momento em que escolhe a todos estes escalões, o historiador procura não somente a verdade, mas também a “sua” verdade. Foi por essa razão que os maiores historiadores sempre tomaram partido nos seus livros, como na sua vida. O grande prof. Marc Bloch, fuzilado pelos nazis, é um exemplo entre muitos outros. (KI ZERBO, 1999, p. 34).

De acordo com Pesavento (2004), a história cultural foi ao encontro do outro,

conferindo-lhe autenticidade e valorização histórica. Assumiu os desafios de lidar

com o diferente. Nesse contexto, os povos de tradição oral, a partir de suas

16

representações, colocam-se na história e fazem história. Ir ao encontro desses

povos é tomar posse dos instrumentos necessários para procurar compreendê-los, e

nesse aspecto os métodos da história oral têm muito a oferecer.

A diversidade existe, os homens, étnica e culturalmente, apresentam distinções e, nas relações sociais, de poder e econômicas, vivem e reproduzem assimetrias. Mas, em termos da História Cultural, importa resgatar como a diferença é percebida e representada pelos homens, o que implica uma outra abordagem. (PESAVENTO, 2004, p.60).

Pode-se pensar que a história oral “é antes um espaço de contato e influência

interdisciplinares; sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com ênfase nos

fenômenos e eventos que permitam, através da oralidade, oferecer interpretações

qualitativas de processos histórico-sociais” (LOZANO, 2006, p.16).

Joseph Ki Zerbo apresenta uma metodologia para se investigar a história da

África, em que aborda três aspectos de relevância: a arqueologia, a escrita e a

tradição oral5, tendo a tradição oral a grande marca de ser portadora de um saber

ancestral, imaginado como sendo talvez o que há de mais próprio da África,

refletindo uma possível essência do modo de ser africano. Daí a necessidade de

darmos a devida atenção a esse aspecto da história da África. A educação, assim

como a história do continente, não pode ser compreendida sem levar em

consideração a oralidade nesse universo cultural.

Ao elegermos a obra de Hampaté Bâ (2003), que transita em toda sua

narrativa pela tradição oral, como campo investigativo, pensamos estar nos

aproximando dessa África profunda, talvez ainda envolta em mistérios, escondida

sob véus para a cultura ocidental. O pesquisador Blaise (2010) também denomina

essa África da oralidade e da tradição de África profunda. Nesta busca

procuraremos esse desvelamento para que ela se diga em suas características.

Retomando a proposta de subjetivação e intersubjetivação6, indicada por

Castiano (2010), na qual está estabelecida a necessidade praticamente

fenomenológica de deixar a África expressar-se, é que buscamos na obra de

Hampaté Bâ uma maneira de nos aproximarmos do continente africano, para

responder a nossa questão: Qual o papel que a oralidade desempenha na educação

do oeste africano? Esta questão se apresenta como sendo basilar, pois dela parte a

5 Essa metodologia é descrita no primeiro volume da obra História Geral da África (2010).

6 Por intersubjetivação Castiano (2010) refere-se à necessidade do diálogo entre os próprios

africanos.

17

possibilidade de compreendermos não somente o papel da oralidade no continente

africano, mas também de nos referenciarmos de modo mais apropriado para

compreendermos a oralidade no contexto da cultura negra brasileira e sua utilização

nas práticas educativas no país.

É necessário repensar as práticas, os modos como a oralidade se dá no

cotidiano dos saberes culturais afro-brasileiros. Com isso pode-se pensar a sua

didatização e incorporação efetiva nas práticas pedagógicas. De acordo com Blaise

(2010, p.17), “todos os contingentes de escravos aos quais o Brasil deve a sua

vertente africana foram, sem exceção, filhos dessa tradição”. Ainda, segundo Blaise

essa constatação concorda com a análise do antropólogo Darcy Ribeiro que diz que

os negros do Brasil são oriundos em grande parte do oeste do continente africano.

Desse modo, a compreensão da oralidade no universo tradicional africano passa a

ter uma ligação direta com a cultura negra desenvolvida no Brasil, e

consequentemente precisa estar presente na escola não apenas como elemento

figurativo, mas como forma efetiva de uma representação dada a partir dos seus

membros. A oralidade é elemento formador da identidade e modo de ser da pessoa.

É neste ponto que percebemos também a relevância desta investigação.

Embora não seja nosso objetivo responder a questões de como essa implementação

da oralidade deverá ser feita na escola, esta pesquisa procura chamar a atenção

também para esse aspecto, pois o mesmo é necessário, mediante os desafios da

inserção das temáticas africanas e afro-brasileiras nas escolas do país. O

estranhamento ou a não compreensão dos aspectos da oralidade no continente

africano, em especial no oeste africano, tornam o entendimento das práticas

culturais recriadas no Brasil pelos escravizados ainda limitada em sua utilização nos

ambientes escolares. Dentre essas práticas pode-se pensar no samba, no maracatu,

no jongo, no batuque de umbigada, na congada, na capoeira e no maculelê, por

exemplo. Todas essas práticas trazem em seu conjunto algo muito mais profundo do

que os aspectos estéticos percebidos em um primeiro olhar.

Para a educação temos a oralidade como forma privilegiada na formação da

criança ou do adulto, já que, independente da alfabetização, ela garante não

somente a troca de informações - e com isso a transmissão de conhecimentos -

como também, segundo Ong (1998), efetiva de modo privilegiado o exercício da

memória e da reflexão sobre algo apreendido. Nesse sentido, é interessante

pensarmos sobre o trabalho educativo desenvolvido em comunidades quilombolas

18

no Brasil, entre elas as do Quilombo Ivaporonduva, localizado no vale do Ribeira no

estado de São Paulo, em que, de acordo com Luiz (2013), temos a preservação de

um saber ancestral conservado em grande parte devido à transmissão oral, que

mantém viva a memória da comunidade. Essas experiências educativas que

acontecem em comunidades tradicionais afro-brasileiras, tais como as comunidades

quilombolas, são heranças africanas recriadas no Brasil e que de algum modo

precisam ser reconhecidas nos conteúdos formais da escola. Observa-se que a

presença da oralidade na sala de aula pode ampliar as possibilidades do

conhecimento e da participação dos alunos nos processos de aprendizagem.

De acordo com Ferreira (2004, p.151),

Uma reflexão equilibrada sobre o oral não pode mais perpetuar a crença de que, por ser mais natural, mais comum no cotidiano, frequentemente mais espontâneo, é mais fácil do que o escrito e pode prescindir de aperfeiçoamento para a aprendizagem. O oral é a condição essencial para a existência de um idioma e esse atributo merece respeito: é vital no processo interacional humano e merece atenção pedagógica.

.

Essa atenção pedagógica se faz necessária, pois reflete a atenção histórica

que se procura dar às comunidades, aos povos de tradição oral.

Na década de 2000 nos deparamos com uma série de conquistas do

movimento negro brasileiro, entre elas, a aprovação da Lei Federal 10.639 de 09 de

janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-

brasileira nas escolas do país. Essa lei foi uma alteração na Lei Federal nº 9.394 de

20 de dezembro de 1996, que vai ao encontro de uma pendência histórica do Brasil

em relação a um dos grupos que constituem a sua formação, o negro. A existência

dessa lei impõe a necessidade de formação de quadros de educadores para que

seja atendida essa demanda, com isto esta pesquisa pode contribuir também com o

processo de formação do educador que trabalha com a temática africana, através de

um tema central para se entender o fenômeno educacional no contexto da tradição

africana. Pode-se, deste modo, potencializar a eficácia da LDB, já que estando

amparada pela reflexão atenta aos aspectos étnicos propicia de modo mais efetivo a

oportunidade da pesquisa e o reconhecimento de práticas socioeducativas oriundas

das experiências das culturas de origem africana.

Ainda tivemos a Resolução nº1, de 17 de junho de 2004, do Conselho

Nacional de Educação, fundamentada no Parecer do mesmo Conselho, de 10 de

março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

19

das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e

Africana7.

Nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da educação (...) de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos. (...) Estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade. (BRASIL, 2004, p.22).

De acordo com Kabengele Munanga8, quando se pensa a formação do

docente e do discente, ainda é necessário que se verifique qual África ensinar e

como ensinar, já que os estereótipos sobre a mesma ainda são vários, e a carga de

negatividades enorme, sendo muitos os preconceitos a serem vencidos.

A Lei 10.639/03 coloca aos educadores brasileiros uma questão prática ainda não totalmente equacionada. Trata-se de saber que África e que Brasil negro transmitir aos alunos dos Ensinos Básico e Médio. A África é tão complexa e diversa que fica difícil definir por onde começar, sobretudo quando se trata de uma disciplina de iniciação do jovem num terreno repleto de preconceitos acumulados durante o período escravista e colonial que pavimentou a historiografia oficial e persiste até hoje no imaginário. (MUNANGA, 2009, p.9).

É pensando também nessa questão bastante atual que a escolha pela obra

de Hampaté Bâ e pelo entendimento da tradição oral e sua ligação com a educação

no oeste africano nos parece ser uma porta de entrada válida, principalmente para

pensarmos uma história da África na perspectiva da educação brasileira.

No Brasil, sentiu-se durante muito tempo a carência de acesso a materiais

históricos e didáticos sobre o continente africano. Tal carência é minimizada na

década de 2000 quando leis, projetos e iniciativas públicas e privadas contribuíram

para o acesso a uma quantidade maior de material de pesquisa. Um exemplo desse

fato é a publicação na íntegra da coleção História Geral da África (2010), cujo

original era dos anos 80, mas que, no Brasil apenas eram encontrados em língua

portuguesa os três primeiros volumes. No entanto, em 2010, em uma iniciativa do

Ministério da Educação, UNESCO e UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)

foram disponibilizados em formato impresso e PDF os oito volumes da coleção, que

desde a sua proposta original tem sido um marco fundamental para os estudos

7 CNE/CP Resolução 1/2004. Diário Oficial da União. Brasília, 22 de junho de 2004, seção 2,p.11.

8 (1942-), nascido no Congo e professor da USP do departamento de ciências sociais /

antropologia. Também é do Centro de Estudos Africanos da USP.

20

sobre a África, já que se constitui em uma perspectiva subjetiva, em que os

pesquisadores africanos em sua grande maioria descreviam as principais

características do continente, proporcionando então um contato mais próximo com a

África. O próprio Amadou Hampaté Bâ é convidado para compor esse grupo de

pesquisadores, e no primeiro volume da coleção apresenta um texto emblemático,

que tem servido de base desde a sua publicação para compreendermos inicialmente

o universo tradicional africano. O texto chama-se Tradição Viva (2010); aliás, é

nesse contexto que Amadou Hampaté Bâ será reconhecido internacionalmente

como um legítimo membro das culturas tradicionais africanas e um sábio da velha

escola ancestral.

Vejamos o que nos dizem os senhores Vincent Defourny, representante da

UNESCO no Brasil e Fernando Haddad, então Ministro de Estado da Educação no

Brasil, em seu texto de apresentação da Coleção História Geral da África (2010).

A representação da UNESCO no Brasil e o Ministério da Educação têm a satisfação de disponibilizar em português a Coleção da História Geral da África. Em seus oito volumes, que cobrem desde a pré-história do continente africano até sua história recente, a coleção apresenta um amplo panorama das civilizações africanas. Com sua publicação em língua portuguesa, cumpre-se o objetivo inicial da obra de colaborar para uma nova leitura e melhor compreensão das sociedades e culturas africanas, e demonstrar a importância das contribuições da África para a história do mundo. Cumpre-se, também o intuito de contribuir para uma disseminação, de forma ampla, e para uma visão equilibrada e objetiva do importante e valioso papel da África para a humanidade, assim como para o estreitamento dos laços históricos existentes entre o Brasil e a África. (2010, p. 7).

Mesmo no campo literário, a dificuldade de encontrarem-se obras de autores

africanos no Brasil era elevada. Algumas iniciativas ainda dos anos 60 e 70 não

alcançaram os objetivos almejados, tornando-se pequenas experiências carregadas

de forte idealismo, mas sem apoio econômico e logístico adequado para o sucesso

das mesmas. Sendo assim, o acesso aos materiais, aos textos e autores

consagrados era restrito, tornando a temática algo muito distante da realidade da

maioria das pessoas e mesmo dos pesquisadores.

Porém, é necessário destacar o trabalho de intelectuais brasileiros e de

africanos radicados no Brasil, que sempre procuraram apresentar no meio

acadêmico e mesmo político a relevância da pesquisa sobre a África. É válido

ressaltar os pesquisadores Júlio Mourão, Kabengele Munanga, Fábio Leite, Alberto

da Costa e Silva, entre outros que há muitos anos cumprem a tarefa de manter viva

21

a pesquisa sobre a África no Brasil. Também a criação de vários centros de

pesquisa ligados a instituições acadêmicas fez com que estes pioneiros

conseguissem agregar discípulos oriundos dos mais variados cursos para compor

um quadro de pesquisadores de qualidade.

Ainda mais recentemente, em uma iniciativa também de pesquisadores

acadêmicos, vimos o nascimento da Casa das Áfricas, uma organização que tem

promovido em parceria com várias instituições nacionais e internacionais ações de

relevância no campo da pesquisa sobre a África, já trabalhando uma África diversa e

complexa em sua variedade cultural. É da Casa das Áfricas9, em parceria com as

editoras Palas Atena e UFBA (Universidade Federal da Bahia), que recebemos as

traduções da obra Amkoullel, o menino fula de Amadou Hampaté Bâ e África Negra:

Histórias e Civilizações Tomo I e Tomo II de Elikia M´Bokolo. Essas duas obras,

entre outras que estão sendo disponibilizadas em forma de textos online, estavam

disponíveis há muitos anos em idiomas como o inglês e o francês, mas não

despertavam o interesse de editoras brasileiras em sua tradução e publicação. É

necessário dizer que muitos textos foram traduzidos de forma voluntária pelos

iniciadores da Casa das Áfricas, entre eles o Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos

e a Profª. Drª. Daniela Moreau.

Sendo assim, desde o texto de Raymundo Nina Rodrigues, Os africanos no

Brasil de 1933, ainda repleto de uma visão europeizada, até agora tivemos um

aumento substancial na quantidade e na qualidade das obras publicadas, o que nos

permite uma segurança maior na realização de uma investigação cada vez mais

consistente a partir do modo de ser e pensar africano.

Hoje ao ter acesso a esses materiais e a boas traduções, a pesquisa pode ser

ampliada, e no nosso caso, esperamos colaborar com esta nova fase investigativa

sobre a África, já atendendo as nossas necessidades locais, contribuindo através da

educação nas relações África-Brasil.

A partir desse contexto, e procurando analisar melhor o aparecimento desse

tema enquanto pesquisa na área da história da educação, buscamos nos anais dos

congressos bienais da Sociedade Brasileira de História da Educação10 nos anos de

2002, 2004, 2006, 2008 e 2011 verificar a incidência da temática sobre a África nas

pesquisas.

9 Ver www.casadasafricas.org.br

10 Ver www.sbhe.org.br

22

A pesquisa revelou o fato de que a temática africana não aparece em nenhum

trabalho. Apenas no ano de 2002 temos um trabalho que transita com uma pequena

proximidade com a questão, ao investigar alguns grupos africanos no Brasil e seus

descendentes, sem contudo fazer uma menção direta ao continente africano ou

mesmo a algum autor africano que realize uma análise educativa sobre a África.

As pesquisas encontradas reúnem discussões acerca da condição do negro

no Brasil, sendo a maioria voltada à perspectiva de entendimento das relações

étnico-raciais na educação, práticas de discriminação e ações voltadas à formação

de professores para atuação nessa área. Os trabalhos envolvem pesquisas de

campo, análise de documentos e bibliografia.

Entendemos que o maior conhecimento sobre o continente africano,

principalmente já especificando alguns tópicos de interesse, poderá não somente

fomentar a implementação da lei no Brasil, assim como apontar de algum modo,

como já dissemos, outros caminhos para a prática pedagógica no país, ao

reconhecer os pontos de correspondência das culturas negras no Brasil e sua

proximidade com as culturas tradicionais africanas.

Na atualidade quando se fala em África não se pode mais cometer o equívoco

da generalização; a África deve ser compreendida em suas múltiplas nuances,

oriundas da sua diversidade geográfica, humana e cultural. Sabe-se o quanto tais

dimensões foram minimizadas e estereotipadas em nome de uma homogeneidade.

Um olhar que não realizava distinções entre grupos humanos com experiências

civilizatórias trilhadas por caminhos próprios. Ao destituir essas diferenciações da

categoria de relevância para se estudar o continente, acaba-se por generalizá-lo de

tal modo que o melhor que se consegue é então apresentar uma caricatura de sua

gente e de suas expressões culturais. Para pesquisadores como Valentin Yves

Mudimbe esta é uma das características de uma África inventada.

Dessa maneira, e procurando ser mais coerente com a pesquisa, o presente

trabalho será então dividido em três capítulos. No primeiro capítulo procuraremos

reapresentar a África de modo subjetivo, através principalmente dos conceitos de

imaginário e representação11. A partir desses conceitos, outros surgem como

11

Conceitos importantes da história cultural que trabalharemos no primeiro capítulo com o suporte teórico de Sandra Jatahí Pesavento e Roger Chartier.

23

suporte de análise, tais como: o unanismo e afropessimismo12, dois conceitos

bastante utilizados por pesquisadores do continente e que tem sido alvo de extensas

discussões entre os estudiosos.

Analisaremos o continente procurando conduzir a pesquisa sem cairmos em

outro campo perigoso, a da idealização fantasiosa, algo que já passa a ser discutido

como um afrocentrismo13, uma posição dialética, porém ingênua e equivocada em

relação ao eurocentrismo14. Dessa maneira, verificaremos como então têm sido as

relações da África com o mundo.

E na obra de Amadou Hampaté Bâ localizaremos o processo histórico colonial

e sua implicação para a cultura africana, verificando os impactos socioculturais que

colaboraram na formação da identidade africana. Teremos na análise de Ali

Mazrui,15 Elikia M´Bokolo16, Kabengele Munanga e de Kwame Anthony Appiah17 e

dos historiadores Serge Gruzinski18, Roger Chartier19 e Michel de Certeau20, entre

outros, os auxiliares nesta caminhada.

No segundo capítulo adentraremos a questão da memória, e para isto

procuraremos entender o papel e a relevância da memória para a cultura tradicional.

Verificaremos através das pesquisas de Paul Ricouer21, Maurice Halbwachs22 e

Amadou Hampaté Bâ contribuições para se compreenderem as características da

memória para a tradição africana, entendendo o conceito de memória coletiva,

relacionando memória e história e memória e oralidade.

No terceiro capítulo procuraremos através das práticas e saberes culturais do

oeste africano, identificar a questão da palavra na tradição, entendendo a sua

ligação com o universo amplo da tradição oral, com a cosmovisão e a

espiritualidade, dando ênfase à presença do islamismo nessa região da África e na

própria vida de Amadou Hampaté Bâ, que terá nesse universo de formação fortes

12

Estes conceitos também serão tratados no primeiro capítulo. 13

Termo conceitual que se refere à tendência de ter a África como centro. Este conceito também será melhor compreendido no primeiro capítulo. 14

O modo como a Europa se coloca como centro do mundo. O local de onde parte os pensamentos e os processos civilizatórios. Um modelo dado e estabelecido. 15

Historiador queniano nascido em 1933. 16

Historiador congolês nascido em 1944. Atualmente é professor na Sorbonne. 17

Filósofo inglês, filho de mãe inglesa e pai ganense nascido em 1954. Atualmente é professor de filosofia na Universidade de Princeton nos USA. 18

Historiador francês nascido em 1949. 19

Nascido em 1943. É também um dos nomes mais conhecidos da história cultural francesa. 20

Historiador de origem jesuíta (1925-1986). 21

Filósofo francês da corrente fenomenológica (1913 -2002). 22

Sociólogo francês (1877-1945).

24

elementos impressos no seu modo de ser e na maneira de conceber a sua

identidade. Com isto, esperamos responder a nossa questão em relação à oralidade

e à educação no oeste africano.

O desafio para esta jornada não é fácil, tampouco tranquilo. E nesta

perspectiva lembramos Ki Zerbo quando fala da função do historiador da África.

O historiador da África, sem ser um mercador de ódio, deve dar à opressão do tráfico de escravos e à exploração imperialista o lugar que elas realmente ocuparam na evolução do continente e que tantas vezes e tão habilmente é minimizado por certos historiadores europeus, com resultados terríveis para a mentalidade dos jovens africanos que nos bancos das escolas se alimentaram destes manjares envenenados. (1999, p.35).

O presente trabalho não é um trabalho de história da África, é antes de tudo

uma investigação histórico-filosófica que pretende apresentar a África através de

outras possibilidades oriundas da cultura, buscando com isso alcançar as propostas:

de reapresentação da África por meio dos seus autores; compreender a oralidade na

educação do oeste africano; compreender o valor da educação tradicional africana;

auxiliar na formação de quadros de educadores para o trabalho com a temática

africana nas escolas; perceber a história da África na perspectiva da educação

brasileira e revelar a diversidade africana escapando das generalizações a ela

atribuídas.

Este é o desafio de trazer à tona aspectos desta história, já que ao estar

ainda muito presente na realidade das pessoas, quer seja na África ou no Brasil, e,

portanto, capaz de despertar sentimentos dos mais variados tipos, precisa manter-se

aberta ao diálogo, não fomentando a diferença como barreira, tampouco o

preconceito como caminho. Aliás, algo que, apesar das dificuldades sociais ainda

existentes, a própria cultura africana em sua dimensão artística tem sabido realizar.

Sendo assim, o campo da pesquisa investigativa e das relações sociais como um

todo pode promover o reconhecimento desses legados históricos como forma de

ampliação do olhar contemporâneo sobre a condição humana, e com isso

possibilitar novas contextualizações que sejam significativas para a humanidade,

colaborando para a proposta de novos caminhos para a educação.

25

Capítulo I

A representação africana: avanços e desafios

Olhei para frente. A proa da embarcação fendia as águas sedosas e límpidas do velho rio cuja corrente nos

levava, como que para me arrastar mais depressa em direção ao mundo desconhecido que me esperava, à grande aventura

de minha vida de homem. (Amadou Hampaté Bâ)

Um dos desafios impostos ao continente africano através da Europa tem sido

o de romper com estereótipos que carregam em si as marcas do colonialismo, o que

determina a elaboração de pensamentos e ações que visam à opressão e controle

da vida social do colonizado. A imagem e a representação que o colonizador tem de

si tende a ser sobreposta à imagem e representação do colonizado.

Segundo Pesavento, “entende-se por imaginário um sistema de ideias e

imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas,

construíram para si, dando sentido ao mundo“ (2004, p.43).

E ainda,

A ideia de imaginário como sistema remete à compreensão de que ele constitui um conjunto dotado de relativa coesão e articulação. A referência de que se trata de um sistema de representações coletivas tanto dá a ideia de que se trata da construção de um mundo paralelo de sinais que se constrói sobre a realidade, como aponta para o fato de que essa construção é social e histórica. (PESAVENTO, 2004, p.43).

Segundo o filósofo e historiador polonês Bronislaw Baczko, em seu texto

Imaginação Social (1985), durante muito tempo a palavra imaginação esteve ligada

a algo ilusório ou quimérico e agora passa a ocupar o lugar das coisas reais,

mensuráveis e perceptíveis na história do homem. É nesse contexto que tomamos

contato com a ideia de imaginário23, e consequentemente com a ideia de

representação, ou seja, como representamos estas imagens.

23

Ainda sobre o imaginário podemos pensar: “O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. [...] O imaginário social é, pois, uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais.” (BACZKO, 1985. p.310). “O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível

26

A representação assim formulada é algo fixado sobre si mesmo, mas que está

permeando as relações com o outro. Desse modo, a representação da Europa sobre

si mesma tende a se sobrepor aos valores de representação da África, ou interfere

no modo como estas representações se efetivam. Assim, os africanos tendem a

representar-se influenciados através do retrato de um contexto social construído

pelo mundo ocidental, ora agregando valores positivos, quando se refere às riquezas

naturais do continente, ora negativos, quando se refere às pessoas e culturas

africanas. Essa representação assim dada estabelece o surgimento de outras

características que tendem a reforçar estereótipos, entre eles a própria

desvalorização cultural e simbólica. É neste sentido que de forma violenta e perigosa

percebe-se a modificação temporal de velhos (pré) conceitos, que vão adaptando-se

às características contemporâneas.

As representações do mundo sociais assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (CHARTIER, 2002, p.17).

Através da análise de Chartier pode-se então notar o quanto a constituição da

representação europeia exerceu influência e domínio na constituição da

representação africana.

De acordo com Pesavento (2004, p.41),

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que construídos social e historicamente, se internalizam no inconsciente coletivo, e se apresentam como naturais, dispensando reflexão.

Face a essa condição a descrição que se constrói sobre a África, ainda

continua ligada a uma perspectiva oriunda do olhar construído na Europa. Mudimbe

evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção?” (PESAVENTO, 1995, p. 24). “[...] uma realidade tão presente quanto aquilo a que poderíamos chamar de vida concreta, uma dimensão tão significativa das sociedades humanas como aquilo que corriqueiramente é encarado como realidade efetiva [...] sistema ou universo complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais, mentais, verbais, incorporando sistemas simbólicos diversificados e atuando na construção de representações diversas.” (BARROS, 2004, p. 92-94).

27

(1988) dedicou boa parte de suas pesquisas para entender este fenômeno e o

quanto ele ainda afeta a vida africana.

Nesta relação dialética na qual os valores da cultura europeia são

intencionalmente sobrepostos aos traços culturais dos povos africanos, existe pouco

espaço para transformação do modo como se observam os fatos. Esta situação era

imposta tanto no período colonial quanto no pós-colonial. Portanto, estava presente

no universo vivido por Amadou Hampaté Bâ.

Um empreendimento de colonização nunca é filantrópico, a não ser em palavras. Um dos objetivos de toda colonização, sob qualquer céu e em qualquer época, sempre foi começar por decifrar o território conquistado, porque não se semeia a contento nem em terreno já plantado, nem em alqueive. É preciso primeiro arrancar do espírito, como se fossem ervas daninhas, valores, costumes e culturas locais, para poder semear em seu lugar os valores, costumes e cultura do colonizador considerados superiores e os únicos válidos. E que melhor maneira de alcançar este propósito do que a escola? (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.326-327).

Percebe-se nesta reflexão o quanto a representação europeia, forjada ao

longo de séculos, fez com que uma série de crenças e valores próprios fossem

justificados como válidos, não somente para si mesmo, mas também para o outro.

Por isso, a necessidade de darmos atenção a esta relação que se efetiva na prática

colonial, pois a partir do colonialismo é que a Europa procura influenciar o modo de

ser do africano, e faz isto tendo como aliada também a escola implantada em acordo

com o modelo europeu.

Esta reflexão demonstra o quanto a educação é responsável pela reprodução

de discursos, e neste caso a substituição de um modelo africano por um modelo

europeu de educação carregada de valores culturais próprios se torna auxiliar na

constituição de uma representação africana exógena a sua cultura.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por ela menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são seus e o seu domínio. (CHARTIER, 2002, p.17).

28

Esses conceitos são fundamentais para o nosso olhar para o continente, e

principalmente como Hampaté Bâ (2003) irá procurar dar ênfase à busca pelos

elementos culturais africanos para retomar uma educação própria, caso contrário, a

representação africana sempre estaria desfocada de si mesma, e assim acabaria

por ser projetada à revelia dos símbolos e valores do continente.

Sendo assim, qual a imagem que normalmente se tem da África? Como ela

ainda é vista, percebida pelo ocidente? Estas questões nos colocam diante da

condição africana, no sentido de buscarmos percebê-la não mais a partir das

categorias a ela atribuídas, mas a partir da maneira como ela própria procura

apresentar-se (representar-se), a partir dos seus próprios atores, dos seus próprios

sujeitos, de suas próprias referências e pertencimento.

Essa noção de pertencimento se dá na perspectiva da relação com o outro,

seja ele pertencente ao continente africano ou não. É necessário refletir que tal

perspectiva interna, própria do continente africano, não é homogênea, e, portanto,

apresenta o que está sendo discutido pelos africanos em relação a sua identidade,

local de pertença e consequentemente na maneira como procuram representar-se.

De acordo com Castiano (2010), esta subjetivação e intersubjetivação

africana é uma necessidade para rearticulação de sua própria imagem e

representação. A subjetivação, que tem por base principal a ideia de que os

africanos devem procurar em sua história e experiência civilizatória os elementos

que os constituem, se relaciona com a ideia de representação de Chartier (1999),

pois exige a análise criteriosa do seu lugar de pertencimento, do lugar que a África

se atribui na sua relação consigo mesma, daí também a necessidade da

intersubjetivação, ou do diálogo com os seus próprios atores, mas também com o

mundo a sua volta. A representação africana requer a apropriação eficiente e

consciente de si mesma, e para tanto não pode estar refém apenas do olhar que o

ocidente lhe atribui e com o qual a categoriza.

No caso da África, nota-se a necessidade de ouvi-la, para que se possa então

estabelecer mecanismos mais eficazes para se pensar a sua inserção no mundo,

assim como as suas condições de desenvolvimento, tendo a educação como vetor

principal para o desencadeamento desse processo. E, como nos diz Kabengele

Munanga, “é através da educação que a herança social de um povo é legada às

gerações futuras e inscrita na história” (2010, p.35). Nesse contexto, Hampaté Bâ

(2003) nos diz que a retomada do modelo de educação da África tradicional é um

29

dos caminhos possíveis e necessários para que essa construção da representação

africana a partir de si mesma possa ser feita a contento. A escola ou núcleo de

formação tradicional é uma possibilidade concreta de recondução do africano para o

continente africano. De acordo com a análise de Hampaté Bâ, pode-se dizer que o

processo colonialista na África teve além da exploração material do ambiente a

intenção de modificar o olhar do africano para si mesmo, para a sua cultura,

estabelecendo então condições de estranhamento e descontentamento de sua

própria cultura, em favor da cultura europeia.

Ainda sob essa perspectiva da educação é válido ressaltar que os povos e

culturas que passaram ou passam pela opressão acabam por estabelecer

mecanismos de resposta à condição a que são submetidos, a princípio como táticas

individuais, mas depois existe a organização dessas respostas e a constituição de

um espaço de confronto, de onde permite a sua articulação, agora como uma

estratégia, mesmo diante do quadro da negação ou subordinação impostos a esses

grupos pela cultura dominante. Nesse sentido, de acordo com Michel de Certeau

(2004), temos estabelecida uma lógica de invenção, na qual o sujeito explorado

redesenha o seu destino com criatividade, estabelecendo então um sentido de vida

em que se utiliza e aproveita daquilo que outrora seria um mero mecanismo de

poder e exploração. Essas culturas assim adaptadas, e permanentemente sendo

modificadas em acordo com a dinâmica existencial, possibilitam uma ruptura nas

ordenações do poder e na maneira como este tenta estabelecer um controle sobre a

sociedade.

Os conceitos de tática e de estratégia são categorias desenvolvidas por

Certeau para analisar as relações sociais estabelecidas e o modo como as pessoas

em condição de subjugação social e cultural conseguem transformar o seu cotidiano,

reinventando modos de fazer e operar com as coisas dadas em acordo com as

condições disponíveis. A isto Certeau denominou tática. Já o conceito de estratégia

é atribuído a quem está no poder, aquele que desfruta de um local do qual projeta o

seu olhar para o outro e com isso articula e procura formular os mecanismos de

controle social e cultural. No entanto, quando os grupos dominados se organizam e

se articulam, eles também passam a elaborar estratégias de resposta ao dominador,

e aí sim estabelecem uma condição de confronto que visa a modificações nos

quadros dados. No caso da educação como apresentada por Hampaté Bâ (2003) é

uma condição essencial da organização africana em torno de sua cultura, a

30

reapropriação da condição necessária de garantir a educação dos africanos voltados

para África, e assim prepará-los para dialogar com o outro, com o mundo.

É também com essa perspectiva de reinvenção do seu cotidiano que a África

e os seus filhos na diáspora fizeram por elaborar uma nova estrutura de participação

e discussão de sua condição no mundo. Essa representação do continente passa

então a ser da maior valia nas relações a serem estabelecidas com o mundo

ocidental, já que nesse contexto a compreensão do africano sobre si mesmo passa

não mais a ser permeada por valores apenas constituídos na Europa, normalmente

valores que os destituem de uma condição civilizatória. O que se tem a partir dessa

apresentação de Hampaté Bâ (2003) é a oportunidade e o direito de o africano

reconhecer-se e apropriar-se de sua história e dos seus traços civilizatórios a partir

do reconhecimento de elementos próprios oriundos de sua cultura.

A partir dessa percepção vários processos de resistência à opressão infligida

ao continente tiveram como vetor principal a ideia de recuperação e preservação de

traços culturais comuns que garantiam a dignidade da condição humana, mesmo em

um contexto de colonização. Nesse momento, a intensidade na busca por essa nova

representação africana se fez cada vez mais frequente. Amadou Hampaté Bâ tem

sua contribuição efetiva nesse contexto, principalmente ao afirmar o valor da

tradição africana e a sua forma de transmissão, o seu modo de promover a

educação, cuja chave é a oralidade.

Porém, antes de avançar sobre esta questão é pertinente ainda compreender

um pouco mais o que ocorreu historicamente no continente africano, e mesmo dos

negros na diáspora, na busca pela constituição da sua representação, os caminhos

pelos quais ela foi forjada, os seus desafios e principalmente por que a perspectiva

de Hampaté Bâ em favor dessa representação é válida, seja na África ou aos negros

na diáspora.

Através da narrativa de Amadou Hampaté Bâ no conjunto de suas obras,

aquelas com as quais nos deparamos e investigamos, em especial Amkoullel, o

menino fula (2003), assim como através de outros autores que nos auxiliam neste

percurso, procuramos então propor um trajeto que consideramos válido e relevante

em termos históricos no sentido de compreender por que determinadas palavras e

ações foram ditas e realizadas na busca por essa representação, a isto nos

referimos a própria organização dos movimentos negros e africanistas. O impacto

desses movimentos, seja no continente africano ou na diáspora é significativo,

31

marcando o início dos processos de independência desses países. Assim como

ajudam a organizar em torno de um símbolo comum a condição racial, as mesmas

angústias e traumas oriundos do processo escravista e colonial. Nesse aspecto,

verificaremos ainda como hoje tem sido discutida pelos intelectuais africanos ou

africanistas a proposta de uma unidade africana baseada no conceito racial e como

ela é apropriada pelos negros na diáspora.

A história da África, assim como a história dos negros, passa a ser reescrita

por eles mesmos a partir daquilo que lhes era mais próximo em suas culturas, com

os valores e símbolos que revelam uma identificação comum e a possibilidade de

uma identidade africana.

Esse cenário assim constituído nos dá uma dimensão mais pormenorizada do

pensamento de Hampaté Bâ, já que ele não somente viveu a sua infância e

juventude no período colonial africano, como viveu a experiência da educação

tradicional na África e a educação europeia, assim como o ápice de criação e

manifestação dos movimentos de identidade negra. Desta maneira, esteve

convivendo com essas discussões, sendo bastante ativo nesse universo por ser um

dos poucos representantes da cultura tradicional africana aptos a dizer o que ela é e

o que significa. Hampaté Bâ assistiu aos processos de independência dos países

africanos e às dificuldades na consolidação dos novos estados-nação. Portanto,

esse trajeto se faz pertinente para nos aproximarmos do continente africano e mais

ainda da África do oeste.

É necessário ter uma maior proximidade com o lugar de pertença de Hampaté

Bâ, o que nos prepara para investigar a oralidade na educação, a partir então de

algo factível, acessível a nossa condição, por não estarmos pisando no solo

africano, de não estarmos em campo no sentido prático do termo. Para entendermos

melhor o desafio dessa distância cultural e geográfica é válido entender o que afirma

Appiah,

A maioria das pessoas de hoje sabe como é difícil avaliar a vida e as pretensões de outras culturas e tradições sem cair presa dos preconceitos decorrentes das perspectivas das nossas. Quando deixamos de avaliar os outros com imparcialidade, torna-se muito improvável receber deles tratamento imparcial. Esse tipo de etnocentrismo

24, por mais que nos aflija,

já não tem como nos surpreender. (1997, p.22).

24

De acordo com Paula Carvalho (1994) o etnocentrismo consiste em dar privilégio a um universo de representações, propondo que o mesmo seja um modelo a ser seguido. Com isto, reduzem-se à insignificância os outros universos e culturas.

32

Essa análise de Appiah faz com que tenhamos o cuidado necessário para nos

aproximarmos do outro, já que estando imbuídos de valores culturais próprios

tendemos a estabelecer um juízo de valor à outra cultura baseando-nos na nossa

própria cultura e referência civilizatória, o que faz com que uma representação

acabe por sobrepor-se à outra, influenciando a sua constituição. A responsabilidade

científica, em especial nas ciências humanas, exige que se tenha essa atenção

despertada. Portanto, essa aproximação requer critérios e métodos próprios, que ao

serem estabelecidos permitem a condição de um diagnóstico coerente e sensato a

partir do nosso lugar. Nesse cenário é sempre fundamental compreender a

representação no seu contexto, na sua perspectiva dada, como afirma Chartier

(1999).

No entanto, parece que para o objetivo que se pretende alcançar, que é o de

responder qual o papel da oralidade na educação africana, a partir da obra

supracitada, o que se faz necessário é compreender o contexto dessa cultura, e isto

já foi dado por intelectuais africanos em obras que ainda carecem de mais estudos.

A proposta de avançar em uma investigação sobre a África, a partir de um

fenômeno específico, neste caso a oralidade, requer que se entenda a sua

construção, o que de fato levou aquela determinada estruturação simbólica e

representativa. Sendo assim, para entender o que Hampaté Bâ (2003) diz sobre a

tradição e a sua veemência em validar a relevância dessa prática é essencial tentar

compreender o que ele vislumbrou ao deparar-se com as condições tanto coloniais

como pós-coloniais, e quais aspectos educacionais que sentiu ser necessários para

a constituição dessa identidade africana tão almejada pelos líderes africanos no

período pós-colonial.

I.1 - Desconstruindo imagens: Unanismo e Afropessimismo

A partir da análise do olhar que o ocidente tem sobre o continente africano,

foram construídas duas imagens que corriqueiramente são acionadas. São elas: o

unanismo e o afropessimismo.

O conceito de unanismo, segundo o filósofo inglês Kwame Anthony Appiah,

na sua obra Na casa do meu pai (1997), foi cunhado pelo filósofo do Benin Paulin

33

Houtundji na obra Sur la philosophi africaine (1976) para explicitar a forma como

muitas vezes se vê a África, como um continente único, sem distinções, sem

diversidade cultural, sem características continentais.

O conceito de afropessimismo também é refletido por Paulin Houtundji (1976)

na mesma obra supracitada, e trata-se de antecipadamente atribuir-se uma negação

ao continente africano; consiste na afirmação da incapacidade africana na

superação dos seus problemas históricos e dificuldades emergenciais.

O unanismo é construído social e ideologicamente e impede uma

aproximação com o continente africano dificultando o entendimento das culturas e

dos povos, impossibilitando desta forma qualquer avanço na comunicação. De

acordo com Hountundji, o unanismo deve ser desconstruído de maneira emergencial

para que se avance nas possibilidades de um diálogo. A representação africana é

fragilizada quando permeada por estes dados, já que eles tendem a despersonalizar

as características próprias de cada país africano, de cada cultura africana.

Appiah afirma que toda e qualquer forma de construção ou reconstrução da

identidade africana deve procurar superar a ideia reducionista do unanismo e da

desvalorização contida no afropessimismo.

Esses conceitos devem ser analisados quando introjetados pelos próprios

africanos. Tal reflexão é alertada por Appiah, que chama a atenção sobre os

discursos de unidade africana que muitas vezes podem estar sendo cooptados pela

perspectiva do unanismo, o que retira de cada um desses povos a reflexão histórica

própria e as particularidades de sua cultura. Para Appiah, o discurso de unidade

africana deve ser pautado nas perspectivas socioeconômicas que colocam hoje

grande parte dos países africanos após a experiência colonial em condição bastante

assemelhada entre si, no sentido de ocupação de espaço efetivo no cenário político

e econômico mundial.

O unanimo é perigoso, pois pode manifestar-se de modo estratégico nas mais

variadas instâncias, desde as mais evidentes, tais como a percepção cultural

africana em sua forma estética, que tende a organizar ritos e símbolos africanos de

grupos étnicos distintos em um lugar comum, até as mais sutis, ligadas ao

pensamento africano que muitas vezes são quase imperceptíveis ao primeiro olhar.

Essa maneira de observar o continente africano tem em alguns dos modelos

educacionais ocidentais uma excelente forma de propagação. O mesmo acontece

com modelos de educação que apenas retratam a África como um continente

34

atrasado e selvagem, que, quer seja por ignorância ou intencionalidade, faz com que

a imagem africana permaneça em uma esfera única.

Da mesma maneira acontece quando se olha para os seus povos, sendo

todos igualados e nivelados em um ambiente comum, sem distinções de nenhum

tipo, e quando essas distinções parecem surgir, são então colocadas em outra

perspectiva comum, a diferença igualada no atraso civilizacional que representam.

Vejamos o que nos diz o historiador brasileiro, especialista em África, Anderson

Ribeiro Oliva,

Dessa relação de estranhamento versus entendimento, gerou-se uma postura mais ou menos usual de filtragem cultural, ou seja, o uso de um instrumental composto por valores, códigos e categorias comuns à cultura do observador que contaminam ou influenciam o seu olhar sobre o observado, e das interações entre os mesmos ao longo do tempo. (2007, p.29).

A representação africana colocada diante da representação europeia pode

ficar fragilizada, já que os conceitos de negação construídos através da

representação europeia fazem com que uma força ideológica a partir da Europa

procure estar sobreposta à representação africana. Nesse sentido, a representação

africana estaria sendo efetivada a partir do interesse da representação europeia.

No entanto, de acordo com Appiah (1997) deve-se também rejeitar as contra

argumentações que apenas evoquem a ideia de uma África vitimada. Ela existe na

história, mas esta mesma África tem também em seu conjunto civilizatório uma

quantidade enorme de elementos socioculturais a serem refletidos e compartilhados.

É relevante o reconhecimento dessas contribuições pelos próprios africanos; é

necessário voltar-se para alguns traços de suas culturas, expressas na sua

diversidade e não em uma pretensa unidade, incapaz de revelar essa natureza vasta

de suas expressões culturais. É a partir desse reencontro com seus elementos

culturais que a África poderá construir uma representação valorativa de si mesma.

Hampaté Bâ (2003;2010) ao refletir essa questão, faz questão de afirmar a cultura

tradicional, a oralidade, como sendo esse alicerce do qual não se deve fugir.

De acordo com Oliva,

É certo também que, se esse exercício de interpretar outra cultura teve encaminhamentos e consequências diversas ao longo dos tempos, alguns de seus resultados se aproximam na perspectiva da exclusão ou inferiorização do Outro/observado, principalmente daqueles que se encontram física ou culturalmente em situação de grande divergência em

35

relação ao observador, ou da óbvia discussão de que o Outro assume, muitas vezes, a condição de observador ou se apropria e manipula a condição de observado. (2007, p.29).

A construção da representação africana, pelo que podemos apreender de

Appiah, não pode se dar a partir de uma imagem de vitimização, mas sim, a partir do

reconhecimento dos traços culturais africanos, dos seus valores, mas também da

reflexão crítica dos mesmos. Essa análise crítica deve ser feita pelos africanos e a

partir daí estabelecer o diálogo interno, intersubjetivo, tal como apresenta Castiano

(2010), e também o diálogo externo, mas em uma perspectiva de encontro entre

pares e não entre superiores ou inferiores em que as distintas representações sejam

reveladas apenas como forças dialéticas em busca do poder.

A reflexão de Oliva (2007) se aproxima da análise de Appiah (1997) e sugere

o conhecimento de suas referências culturais para que aquilo que Serge Gruzinski

(2001) percebe como encontro cultural, ou processo de mestiçagem, possa de fato

acontecer, mas de modo recíproco e qualitativo, em que os diferentes pares não

sejam desqualificados em suas contribuições, tampouco supervalorizados. Gruzinski

nos traz em suas reflexões a ideia da dinâmica cultural, do estabelecimento de

interfaces que se processam no encontro entre as pessoas, dos povos. De acordo

com essa perspectiva a cultura é alterada de modo dinâmico e constante, mas para

que a mesma se efetive de modo mais consistente é relevante conhecer o local de

onde elas partem, as suas referências anteriores, a partir dos seus atores e

produtores, ou seja, se um determinado grupo se vê subjugado ou alijado da

condição de conhecer ou reconhecer a sua própria cultura, existirá a tendência da

sobreposição do outro. A ideia aqui se refere à condição de representação, na qual o

sujeito ou grupo específico, precisa ter garantido o acesso a suas referências

históricas, sociais e culturais, e não somente àquelas a eles atribuídas. É essa

condição que Castiano (2010) e Leite (2013) defendem como o olhar interno,

subjetivo da África.

No entanto, em virtude do olhar negativo sobre a África e seus povos, oriundo

dos países do ocidente e a introjeção desse olhar por parte dos africanos, o que

Houtundji denominou de afropessimismo, o olhar negativo sobre o continente pode

levar à apatia em relação ao que se pensa sobre a África, assim como, em relação

às políticas de desenvolvimento humano a ela destinado ou das políticas

promovidas no próprio continente, que podem ocorrer em descompasso com as

36

realidades culturais locais, já que estão baseadas na representação do outro como

referência e não na construção efetiva da representação pautada na própria cultura

e os desafios que isso acarreta.

De acordo com Oliva (2007) essa visão afropessimista é reafirmada em

grande parte pelos meios de comunicação ao associarem o continente africano

somente à fome, à miséria, aos conflitos interétnicos e a AIDS por exemplo.

Raramente é mostrado algo de valor da civilização africana, algo como os seus

modos de percepção do mundo e do ser.

O conceito de afropessimismo como visto anteriormente é analisado tanto

pelo olhar externo como pelo olhar interno, sendo neste último caso mais complexo

e difícil, pois conduz a população a uma autoestima negativa25, a negação de sua

própria história e cultura, a negação de sua imagem. Essa autoimagem inferiorizada

é construída pela representação afirmada do outro, que sempre se coloca como

centro referencial, de modelo a ser seguido. Embora o tempo todo especifique as

suas marcas de pertença, de grupo, do qual o outro subjugado não faz parte, ou

seja, mesmo que procure seguir ou imitar este modelo estabelecido nunca terá a

mesma condição desse modelo criado. Esse conceito declara uma condição de

permanência, de estado, tal qual foi um dia a ideia que se fazia crer do negro

escravo, como se fosse uma condição natural, sendo que na realidade eram

pessoas tornadas escravas, portanto escravizadas em um momento, em uma

condição, em um espaço.

O afropessimismo toma diferentes roupagens estratégicas e pode ser

pensado também em suas adaptações já destinadas aos negros na diáspora. Isso

ocorreu no Brasil de maneira bastante violenta e eficaz. Esse conceito é estendido a

tudo o que provém da África, em especial as pessoas, e nesse caso, essa marca

negativa que tem origem no colonialismo é então destinada aos negros em todos os

lugares em que eles estejam. Como adverte Munanga,

A desvalorização do negro colonizado não se limitará apenas a esse racismo doutrinal, transparente, congelado em ideias, à primeira vista quase sem paixão. Além da teoria existe a prática, pois o colonialista é um homem de ação, que tira partido da experiência. Vive-se o preconceito cotidianamente. Conjunto de condutas, de reflexos adquiridos desde a

25

Este termo refere-se ao processo de negação das próprias características, da própria imagem. No caso dos africanos e seus descendentes, refere-se à negação ou vergonha da própria cultura e da cor da pele. Para saber mais sobre este fenômeno é relevante a leitura da obra Pele negra, máscaras brancas (2008) do psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961).

37

primeira infância e valorizado pela educação, o racismo colonial incorporou-se tão naturalmente aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que parece constituir uma das mais sólidas estruturas da personalidade colonialista. (2009, p. 33).

O afropessimismo tem levado ao limite do absurdo a expectativa de dignidade

no continente africano. Infelizmente, esse conceito quando naturalizado retira do

homem uma de suas principais características, a esperança. Esse homem assim

constituído é esvaziado de um sentido de vida, no qual não cabe projeto algum, já

que nada há de se esperar de algo já condenado. A eficiência psicológica do

afropessimismo e seus aplicativos destinados aos negros na diáspora são ainda

hoje um dos maiores desafios dos movimentos de direitos humanos. Por exemplo,

no caso do movimento negro existe uma série de dificuldades para recuperar jovens

e adultos de um trauma histórico, alimentado muitas vezes em sala aula, já na

primeira infância.26 Vejamos o relato de Hampaté Bâ ao descrever a sua convocação

para frequentar a escola ocidental.

Quando, de volta a Bandiagara, a vida parecia afinal retomar o seu curso normal, sou brutalmente arrancado de minhas ocupações tradicionais que sem dúvida me teriam conduzido a uma carreira clássica de marabu-professor, para ser enviado a força à “escola dos brancos”, considerada então pela grande maioria dos muçulmanos como o caminho mais rápido para o inferno! (2003, p.209).

Essa experiência de Hampaté Bâ marcou profundamente a sua visão de

mundo e a busca pela desconstrução de imaginários depreciativos, seja pelo lado

africano ou pelo lado ocidental europeu na busca de um respeito mútuo e

aprendizado comum.

É possível perceber nesse relato de Hampaté Bâ o quanto é tendenciosa, na

constituição desse lugar de poder, de representação dada pela Europa, a negação

da cultura do outro a ser dominado. Os velhos sábios africanos viam no modelo

educacional proposto pela Europa um dos instrumentos mais eficazes dentro das

aldeias na despersonalização da criança africana, daí a expressão “de caminho mais

rápido para o inferno”, o que para eles significava estar apartado de si mesmo, de

sua própria história e cultura.

Na escola - seja no continente africano no período colonial, em que a

negação da língua e dos valores culturais locais era total no ambiente das escolas

26

Sobre racismo e educação infantil, é recomendada a leitura da obra Do silêncio do lar, ao silêncio escolar (2006) da educadora brasileira Eliane dos Santos Cavalleiro.

38

dos colonizadores, ou no Brasil, por todo o período, ainda bastante recente, em que

os materiais escolares que se referiam à África apenas como um paraíso selvagem,

a terra dos grandes animais e dos homens nus -, a estratégia de não permitir ou

possibilitar ao negro o acesso a sua cultura e história, foi eficientemente

desenvolvida, momento em que se efetiva um olhar e se fortalece uma

representação a ser seguida.

De acordo, com o que diz Eliane dos Santos Cavalleiro,

Em estudos anteriores, foi possível comprovar que a existência do racismo, do preconceito e da discriminação raciais na sociedade brasileira e, em especial, no cotidiano escolar acarretaram aos indivíduos negros: auto rejeição, desenvolvimento de baixa autoestima com ausência de reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de aula; ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial; dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e, consequentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade, proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública. (2005, p.12).

Para Cavalleiro a baixa autoestima de alunos negros no Brasil teve origem

não somente no contexto geral da sociedade, mas também em uma forte e basilar

referência na escola formal, já que, ao não tematizar questões de formação, tais

como o preconceito e a diversidade, acabam por expor os alunos negros a uma

representação sempre forjada para além de suas possibilidades.

Pode-se considerar que os ideais civilizatórios constitutivos no modelo

educacional não davam conta de revelar a origem e história dos negros, e com isso

a sua autoestima é constituída por valores que se constroem externamente a sua

condição histórico-cultural. A imagem projetada não se refere à imagem que se tem

de si mesmo e a representação dessa imagem desfigura ainda mais a condição do

ser negro. Por isso tornarem-se comuns as ideias construídas na Europa de que a

África, os africanos, ou mesmo os negros de modo geral são portadores de uma

condição inferior em termos intelectuais e civilizatórios. Esses aspectos

educacionais, sejam eles destinados aos africanos no período colonial ou aos

negros da diáspora, incluindo o Brasil, geram a negativação do indivíduo, o seu

enfraquecimento. Para Oliveira (2009), no Brasil sociólogos como Silvio Romero

fizeram questão de afirmar a herança trágica que a África deixa no Brasil,

39

procurando destacar aspectos como a preguiça, a desorganização e a falta de

criatividade como aspectos oriundos da presença africana em solo brasileiro.

É interessante que nesse aspecto poderíamos pensar em outra perspectiva

de imaginação distinta daquela pela qual estamos trabalhando, mas que nos auxilia

a entender a dimensão do impacto a que essa estratégia de dominação pode

conduzir o indivíduo. Este tipo de imaginação a que nos referimos agora tem a ver

com a psicologia e procura colocar o homem em contato com seu mundo interior de

imagens e representações e tem sido utilizado com eficácia em algumas terapias no

ocidente. Este tipo de terapia trabalha com aquilo que pode ser chamado de mundo

interior.

Poucos são os que sabem que, em princípio, é possível viver alternadamente em dois mundos: no mundo interior e no exterior. Estamos acostumados a viver somente no mundo exterior, e esse é o foco de nossa vida. Empenhamo-nos em conhecer tanto desse mundo quanto nos seja possível, e nossos pais e professores fizeram de tudo para nos explicar como esse mundo é constituído e de que maneira se pode sobreviver melhor nele. No entanto, também existe um mundo interior, embora atualmente o tenhamos até certo ponto perdido de vista. Esse mundo continua existindo e, sob certas circunstâncias, é possível que novamente entremos em contato com ele. Isso acontece em várias formas de psicoterapia; por exemplo, na terapia pela imaginação. (MIDDELKOOP, 1996, p. 9)

27.

Nessa perspectiva de terapia que agrega elementos simbólicos oriundos do

universo cultural e interior da própria pessoa, que talvez façam sentido apenas para

ela, é possível reconduzi-la ao equilíbrio de si mesma. No caso dos modelos

oriundos do negativismo com o qual a África e o negro em si são vistos, tem-se

assistido ao fenômeno da autoestima negativa como uma rejeição passiva ou ativa

do que se é. Esse tipo de terapia que recompõe este universo imaginário em diálogo

com a realidade tem sido um aliado nessas situações. E, o mais interessante, é que

tal perspectiva de abordagem do ser humano é capaz de conformar a sua cultura e a

sua história ao que ele é objetiva e subjetivamente.

Essa análise nos ajuda a perceber o quanto a constituição da representação

do negro na África ou na diáspora tem sofrido o impacto da interpretação externa a

que são submetidos. O olhar objetivo que Castiano (2010) chama a atenção. Essa

marca que se expressa na constituição sociológica do racismo e que traz em si uma

série de estereótipos destinados ao negro produz várias problemáticas que podem

27

Psicoterapeuta de origem holandesa.

40

levar ao extremo a autoaceitação, e com isso, a elaboração de uma representação

negativa, no qual se percebe em muitos aspectos a fixação em formas de pensar e

agir que dificultam que este indivíduo consiga superar as condições sociais a que é

submetido. No Brasil, o Instituto AMMA Psique e Negritude28 tem desenvolvido um

trabalho de referência sobre os efeitos psicossociais do racismo, procurando

elaborar a partir da cultura negra a valorização do sujeito, revelando a sua história

em uma dimensão livre das conceituações negativas exteriores. Através disso tem

sido estabelecida uma possibilidade de reconstrução desta autoestima, e com isso a

construção de uma representação positiva da criança negra.

Essa atenção que vem sendo dada ao aspecto psicológico da criança negra

no Brasil é estabelecida na tradição africana. Segundo Hampaté Bâ (2010), no

universo da cultura tradicional, da oralidade, o ser humano é visto em totalidade29,

em seu conjunto. Essa visão integrada do ser humano recupera no ser o sentido de

sua existência e com isso a autoestima. Aqui já podemos perceber com maior

clareza o porquê de Hampaté Bâ ter dado tanta importância a essa cultura na

constituição da imagem e representação africana. Ela é um contraponto à ideia

racial imposta pelo colonizador, que conduziu a reconstrução africana a modelos de

representação que estiveram pautados essencialmente na ideia de raças humanas,

um conceito hoje bastante discutido e presente na sociedade, mas que, se por um

lado aproxima os africanos em torno de uma ideia de raça a que foram colocados,

normalmente não dá conta de expressar a diversidade cultural que trazem em suas

experiências civilizatórias. Portanto, entender essa resposta forjada pelos negros ao

racismo que foram submetidos, nos permite entender essa primeira representação

pós-colonial e diaspórica que fez com que houvesse uma aproximação do ser negro,

seja no continente africano ou fora dele, em busca do estabelecimento de sua

condição humana no mundo. Contudo, é imprescindível entender os desafios

posteriores que esta representação impôs, principalmente a África.

28

Algumas reflexões sobre essa temática podem ser conferidas no livro Psique e Negritude: Os efeitos psicossociais do racismo (2008), que reúne entrevistas e depoimentos das experiências de trabalho do Instituto AMMA organizados pela sua diretora Maria Lúcia da Silva. 29

Esse conceito é trabalhado de modo parecido com o olhar africano na antropologia filosófica de Max Scheler (1874-1928).

41

I.2 - A África sem ilusões: Racismo e Antirracismo

A descrição que foi feita da África, assim como a ideia a ela atribuída, tem

como marca fundamental a noção de raças humanas30, e nesse contexto a

classificação racial entre superiores e inferiores. De acordo com M´Bokolo (2009), o

olhar para África foi, e muitas vezes ainda continua sendo, um olhar de racialização,

no qual estão embutidos valores construídos ao longo dos séculos e que procuraram

de maneira pseudocientífica justificar e autorizar a invasão e dominação dos países

africanos. Essa estratégia, de acordo com Certeau, é a marca de quem está no

poder, e com isso profere um discurso de legitimação. Esta análise coincide com o

que Chartier (1999) procura despertar a atenção para que as relações de

representação sejam devidamente analisadas em seus contextos. Nesse caso, a

representação feita pela Europa para si mesma foi a da superioridade intelectual e

espiritual, já a África e outros povos do mundo fariam parte da barbárie e da

selvageria. A percepção social que cada povo tem de si e que se coloca num lugar

central de onde profere seu discurso se enuncia nos dizeres de Chartier,

Não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (1999, p. 17).

A ideia de que um homem seja superior ao outro ainda prevalece em muitas

ocasiões, revelando um aspecto delicado da condição humana, a luta pelo poder em

detrimento do seu semelhante.

Munanga reconhece no período colonial as marcas da superioridade racial

presentes como justificativa das estratégias e práticas de dominação.

Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que deles tiravam. A ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos entre duas sociedades que se confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econômicas da exploração predispuseram o espirito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptidões intelectuais. (2009, p.24).

30

Sobre a questão racial, especialmente no Brasil, indicamos o livro O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930) da historiadora e antropóloga Dra.Lilia Moritz Schwarcz.

42

A partir deste contexto, as relações entre estes grupos passam a ser

motivadas principalmente pela condição social construída, a ideia racial, que então

se torna a principal referência para ambos os grupos no seu processo de

identificação. Estava então estabelecido o mundo branco e o mundo negro, que

tomaria proporções ideológicas cada vez mais sofisticadas, transcendendo a

questão da cor da pele, como atesta Munanga:

O negro torna-se, então, sinônimo de ser primitivo, inferior, dotado de uma mentalidade pré-lógica. E, como o ser humano toma sempre o cuidado de justificar a sua conduta, a condição social do negro no mundo moderno criará uma literatura descritiva dos seus pretendidos caracteres menores. O espirito de muitas gerações europeias foi progressivamente alterado. A opinião ocidental cristalizara-se e admitia de antemão a verdade revelada negro=humanidade inferior. À colonização apresentada como um dever, invocando a missão civilizadora do Ocidente, competia a responsabilidade de levar o africano ao nível dos outros homens. (2009, p.24).

Esse olhar foi muito bem constituído ao longo da história por renomados

intelectuais europeus, que em sua necessidade de atender a interesses de uma

época souberam eficazmente construir ideologias que pudessem dar conta de

minimizar ou destituir essa região do globo e seus povos de uma condição humana

legítima. Aqui é interessante analisar o tom incisivo do militante negro Stokely

Carmichael31,

Portanto, a situação que temos é que a história foi escrita, mas na realidade ela foi assim distorcida. Acho que uma das maiores mentiras que a sociedade ocidental podia ter dito era de dar a si própria o nome de civilização ocidental. Agora por toda a história vimos estudando a civilização ocidental, e isso significava que tudo o mais era incivilizado. E as crianças brancas que hoje leem isto, jamais reconhecem que lhes estão dizendo que elas são superiores a todos os outros porque produziram a civilização (...) sim a civilização ocidental tem sido tudo, menos civilizada. Na verdade, tem sido extremamente bárbara. Somos informados de que a civilização ocidental começa com os gregos, e o epítome disso é Alexandre Magno. Só que posso lembrar a respeito de Alexandre Magno é que aos 26 anos de idade, ele chorou porque não tinha mais gente para matar, assassinar e saquear. E isso é a epítome da Civilização Ocidental. (1968, p.50).

Os anos de 1960 foram marcantes na história do movimento negro nos

Estados Unidos, pois era o ápice das discussões e dos embates pelos direitos

humanos naquele país. Esse período também coincide com o das lutas de

31

Stokely Standiford Churchill Carmichael (1941 – 1998) foi um dos fundadores do grupo Panteras Negras. Ao final de sua vida distanciou-se das ideias radicais dos panteras, e junto com sua esposa Miriam Makeba (cantora da Africa do Sul), mudou-se para a Guiné, onde se tornou assessor do presidente Ahmed Sekou Touré.

43

independência dos países africanos. Foi um momento em que as buscas pela

identidade africana e negra foram intensificadas, a luta pela representação se

fortalecia. É nesse contexto que vários movimentos se apresentam nos Estados

Unidos influenciando outras ações em outros países, inclusive no continente

africano. Entre esses movimentos temos: os liderados por Martin Luther King32, os

muçulmanos negros com Elijah Mohammad33 e Malcom X34 e os próprios Panteras

Negras com Stokely Carmichael. Esses movimentos com formas de organização e

ação diferenciadas tinham em comum a luta pela questão dos direitos dos negros

naquele país e o reconhecimento e valorização de uma identidade negro-africana no

mundo. Era uma representação construída em oposição ao racismo ideológico da

Europa, em torno de uma identidade negra.

De acordo com Appiah (1997) a construção ideológica do racismo por parte

da Europa é histórica. É desse modo que Descartes, Locke, e mesmo Kant

considerado um humanista, não souberam poupar em suas reflexões a abordagem

de que esse lugar do mundo era o palco da penumbra. O filósofo alemão Hegel em

seus famosos cursos de história da filosofia chega a dizer que a África é um

continente destituído de história.

Vejamos,

At this point we leave Africa, not to mention it again. For it is no historical part of the world; it has no movement or development to exhibit. Historical movements in it-that is in its northern part belong to the Asiatic or European world. (HEGEL, 1956, p.99).

O universo religioso também se fez exemplar nessa posição, veja-se a bula

papal Romanus Pontifex (1454) do então Papa Nicolau V, Tommaso Parentucelli,

que dizia da inferioridade de negros e índios. Ainda no universo religioso é possível

encontrar traços não menos marcantes em várias tendências religiosas do ocidente.

De modo geral, pensa-se que a espiritualidade seja um patrimônio do ocidente, e

32

(1929-1968) – Um dos mais importantes líderes mundiais no enfrentamento do racismo e na busca pelos direitos humanos. 33

(1897-1975) Líder religioso de um seguimento dissidente do Islã, chamado Nação do Islã, que pregava uma ideia de separação racial. 34

Al Hajj Malik Al-Shabazz é conhecido como Malcolm X (1925-1965), um dos mais representativos líderes da comunidade negra norte-americana. Abandonou métodos radicais para seguir uma perspectiva de diálogo entre os homens. Sua visão de mundo foi alterada quando fez a sua peregrinação a Meca, cumprindo o ritual do hajj, e lá viu pessoas de diferentes culturas e origens étnicas convivendo em igualdade e respeito.

44

que as formas mais elaboradas de expressão religiosa sejam daí decorrentes.

Vejamos o que nos diz o teólogo suíço Hans Kung,

Nós europeus não temos nenhuma razão para nos considerarmos superiores, pois... De onde viemos? Também nós, por evolução, procedemos da natureza. E o que existia entre nós antes da escrita, antes da história escrita, antes da ciência? Primeiramente na fria Europa da idade do gelo, o primitivo homem de Neandertal. Com sua fronte diminuta e uma herança genética em parte diferente da nossa, ele não foi nosso ancestral direto, mas de qualquer modo era um parente do homo sapiens. Também ele já possuía uma admirável e elevada cultura: sepultava seus mortos, cuidava dos idosos e dos doentes, presume-se que possuísse uma linguagem evoluída. Extinguiu-se há cerca de trinta mil anos, deixando o lugar para o homo sapiens, o homem atual. Causa-nos surpresa saber que também na Austrália foi encontrado o esqueleto de um homo sapiens do sexo masculino com trinta mil anos de idade. Estava coberto de ocre, o sinal mundialmente difundido da ideia de uma vida após a morte. Ou seja, esse homem, ao que tudo indica, foi sepultado ritualmente. Um primeiro testemunho claro da cultura e da religião entre os primitivos! Então o que é cultura? Na cultura ou civilização, em sentido lato, a religião sempre está incluída. Cultura é o conjunto de conhecimentos e procedimentos que caracterizam uma determinada sociedade humana, sejam eles de natureza técnica, econômica, científica, social ou religiosa. (2004, p. 22).

Hans Kung ainda reflete que a base do pensamento religioso está no

continente africano, pois este é o berço da humanidade. Vejamos,

O homem é um ser que incessantemente reflete sobre suas origens na religião, na filosofia, nas ciências. Muitos sábios acreditam que o homo sapiens, o homem assim como ele é hoje, se teria desenvolvido em diversos lugares do mundo. A maioria dos pesquisadores, no entanto, com base em convincentes e também recentíssimas descobertas, estão convencidos disso: o homo sapiens provém da quente e selvosa África tropical e subtropical, muito provavelmente do Great Rift Valley siro – africano ao norte do Zambeze. A África é, pois, nossa origem comum. (2004, p.38).

Na história ocidental um dos mitos mais conhecidos e utilizados ainda na

construção e legitimação dessas distinções raciais talvez seja o mito camítico. De

acordo com Munanga (2009,p.29), “segundo ele, os negros são descendentes de

Cam, filho de Noé, amaldiçoado pelo pai por tê-lo desrespeitado quando este o

encontrou embriagado, numa postura indecente”. A partir de uma interpretação

intencional e não contextualizada do texto bíblico, a maldição de Noé destinada ao

filho Cam, descrita em Gênesis cap.9:22-27, estava legitimada a condenação do

negro.

45

Segundo Edwin Black em sua obra “Guerra contra os fracos” (2003)35, quando

Francis Galton, primo irmão de Charles Darwin, emprestou muitos dos elementos da

teoria da evolução das espécies para criar a sua própria teoria de evolução do

homem, soube também com muita propriedade caricaturar com nome de ciência

uma ideologia que pretendeu legitimar a superioridade dos povos não negros sobre

os demais. Essa teoria foi bem desenvolvida atingindo outros povos, sendo

financiada por empresas conhecidas no cenário mundial, entre elas a IBM36 e a

Ford, ajudando nos investimentos dessa pesquisa inventada sobre dados imprecisos

e irreais, que declarava explicitamente a valorização de um ser humano sobre outro,

pautada em valores terminantemente raciais, dividindo a espécie humana em raças,

cujas funções sociais eram estabelecidas pela maior ou menor possibilidade do uso

da razão. Tal empreita não atinge mais somente os povos africanos e negros de

modo geral, mas também ciganos, entre outros, que, quer seja por uma atribuição

racial, opção sexual ou religiosa, estavam marcados pela condenação diante de uma

sociedade estruturada em valores ideológicos homogêneos e fechados.

Nos Estados Unidos, a campanha de extermínio de grupos étnicos inteiros não foi empreendida por exércitos bem armados nem por seitas que cultuam ódio as minorias. Ao contrário, essa perniciosa guerra enluvada foi promovida por respeitados professores, universidades de elite, ricos industriais e funcionários do governo que conspiraram um movimento racista e pseudocientífico denominado eugenia. O objetivo: criar uma raça nórdica superior. (BLACK, 2003, p. 19).

O historiador Elikia M`bokolo, reafirma essa mesma opinião.

O trabalho dos homens de ciência produziu também de maneira mais insidiosa, ao lado das reconstruções históricas mais refletidas e mais duradouras, estereótipos tanto mais persistentes, pois apareciam aparelhados com todos os emblemas da legitimidade “científica“ ou acadêmica, ao mesmo tempo em que confortavam as falsas evidências do senso comum. Será um dia necessário, no próprio interesse do desenvolvimento do trabalho histórico na África mais do que pela busca de uma polêmica, empenhar-se em dilucidar a arqueologia mais antiga destas teorias e mitos “científicos”, a sua genealogia, a sua filiação até os nossos dias. (2009, p.49).

Um dos momentos mais críticos da história humana, e que ao mesmo tempo

foi a apoteose do pensamento racial de caráter eugênico, se dá com o advento e a

35

Nesta obra Edwin Black trata do pensamento eugenista e dos seus desdobramentos na sociedade contemporânea. 36

Ver também de Edwin Black a obra A IBM e o holocausto (2001).

46

plenitude do nazismo sob a égide endeusada de Adolf Hitler37, que fez revelar ao

mundo, à custa de uma estética distorcida, aquilo que pretendia ser uma raça

perfeita, a raça ariana. Esse momento da história traduziu muito bem a ambiguidade

da condição humana, a da sapiência e a da demência. Se somos capazes de amar e

criar, somos capazes de odiar e destruir; estava, pois, dada a fragilidade de muitas

de nossas reflexões.

Porém, a experiência eugênica teve na África o seu início mais aterrorizador.

Autores como Catherine Coquery Vidrovitch38 desenvolvem pesquisas que revelam

que foi no massacre do povo herero da Namíbia que as experiências com campos

de concentração tiveram início. Nesse país foram desenvolvidas pesquisas em seres

humanos, levando muitos deles à morte. A Namíbia sofreu com esta ação em 1840,

ou seja, 100 anos antes do episódio nazista. No entanto, o massacre do povo herero

ainda é pouco conhecido e divulgado.

Essa representação forjada ao longo de séculos na Europa foi imposta ao

mundo pela força militar, pela mídia, pela educação e cultura. O que temos então é

um cenário constituído por uma representação que, mesmo já estando desgastada

em muitos aspectos, não deixa de se sobrepor as outras.

Tem-se ainda a busca pelas constituições de representações dos outros

grupos, mas ainda fortemente influenciados pelas características deixadas e

herdadas da perspectiva europeia. Hampaté Bâ (2004) reflete essa situação como

um confronto cultural em que os grupos subordinados procuram com um esforço

muito grande lembrar-se do que são, da cultura que possuem, mas também é

enorme o esforço daquele que a todo preço insiste em ocupar a posição de

centralidade e referência.

O teólogo e filósofo Leonardo Boff, na sua obra A voz do Arco Irís (1998), fala

da necessidade do outro, em que as diferenças entre as pessoas não deveriam, e

não devem ser utilizadas como muros que as separam, mas sim, como pontes para

novos encontros.

37

Sobre o pensamento de Hitler é indicada a leitura de seu texto autoral Mein Kampf: Minha luta, no qual descreve as suas motivações e esclarece a maneira eugênica pela qual acreditava que a sociedade alemã devesse ser estabelecida. 38

Historiadora francesa especialista em estudos sobre a África. Autora de vários livros sobre a

temática da colonização e o seu impacto nas civilizações africanas. Entre estas obras estão Afrique Noire: permanences et ruptures ( 1985 ) e L´Afrique occidentale au temps des Français, colonisateurs et colonisés: 1860 – 1960 ( 1992 ).

47

Gruzinski (2001, p.16) afirma que “a mestiçagem seria a extensão calculada

ou suportada da globalização no campo cultural, ao passo que a defesa das

identidades se ergueria contra o novo Moloch universal“. O conceito de mestiçagem

ajuda a refletir a natureza desses encontros, assim como possibilita verificar e

entender melhor a necessidade do reconhecimento cultural oriundo da diversidade

humana, frente a formas de representação centralizadas e homogêneas.

É esse cenário que, quando não discutido e refletido, permite que muitos

povos no mundo sejam observados por valores e categorias que os destituem da

condição humana. São olhares construídos por métodos das ciências, da filosofia,

da própria história, que possibilitaram que fosse constituída uma educação da

inferiorização e da negação. Desse modo, a marginalização ou mesmo a

invisibilidade do outro foi propagada.

A partir das reflexões de Cavalleiro (2005) pode-se pensar que no Brasil a

formação do educador que trabalha com uma realidade pluricultural que revela a

diversidade do povo brasileiro deve tomar o cuidado de sensibilizá-lo, sendo

provocadora de uma consciência crítica sobre a condição humana. Nesse caso,

essa diversidade deve ser vista como um fenômeno o qual se abraça com o intuito

da inclusão e da participação comum na construção de uma sociedade em que

todos se sintam participantes. Esses encontros historicamente acontecidos em solo

brasileiro retratam de modo especial o que Gruzinski analisou sob a ideia de

pensamento mestiço. Aliás, é necessário certo cuidado com o entendimento deste

conceito de Gruzinski, pois ele não diz respeito à banalização dessa mistura, mas,

pelo contrário, diz respeito ao entendimento e à valorização dessas diferenças

culturais e à interação entre elas dentro de uma dinâmica existencial própria da

cultura, e que esta sim torna o ser humano mais capaz para seu desenvolvimento.

As ciências sociais começam a nos fornecer pistas e luzes sobre a questão. Uma antropologia livre enfim de seu fascínio pelos povos selvagens e uma sociologia sensibilizada pela mistura dos modos de vida e imaginários têm muito a nos ensinar sobre o alcance e o sentido das mestiçagens que se desenvolvem por toda parte diante dos olhos. (GRUZINSKI, 2001, p.44).

A análise de Gruzinski procura dar conta de um fenômeno intenso que

estamos vivendo oriundo de um momento da história atual, no qual as relações

humanas e os contatos entre os povos foram intensificados devido aos meios de

comunicação e tecnologias avançadas. No entanto, essa comunicação não alterou

48

de fato a natureza profunda dessas relações e os nichos de poder estabelecidos

pelas formas de representação centralizadas que ainda são motivadores da forma

como se estabelecem a natureza desses encontros. Para Gruzinski um dos desafios

de hoje é exatamente compreender a relevância desses encontros, as modificações

no cenário cultural que são propostas e a procura por garantir que as diferentes

culturas sejam reconhecidas nesse cenário de mudanças.

No entanto, a questão racial é ainda bastante complexa, tanto para estudar as

civilizações africanas como também as relações étnicas no Brasil, pois se não

existem raças efetivamente falando em termos biológicos, essas ideias raciais

fizeram por gerar o racismo, no qual grande parte da organização social se

constituiu, delimitando lugares sociais bastante formais para os diferentes grupos

humanos, inclusive no Brasil. A representação racial através da ideia do “ser

branco”, estabeleceu lugares e posições nítidas na sociedade que ainda insistem na

sua condição de poder.

Embora alguns sociólogos, antropólogos e historiadores no Brasil e no mundo

rejeitem a ideia racial, entre eles Yvone Maggie39, Demétrio Martinelli Magnoli40,

propondo que o que ocorreu nesses processos de conquista e dominação foi

caracterizado por motivos sociais e não raciais, o fato é que se o mesmo não tivesse

ocorrido o fenômeno de reorganização mundial dessas pessoas a partir da ideia de

raça não teria acontecido. Aliás, como diz Munanga (2009), se a raça é

biologicamente rejeitada em comprovação científica, ela é sociologicamente

comprovada pelo que gerou o racismo, no qual pautaram-se as ideologias de

desenvolvimento político e econômico que moveram por séculos os países europeus

em relação à escravização e à colonização da África e ao “descobrimento“ da

América e Caribe.

Dizer que não somos racistas é negar uma infinidade de vivências e evidências que estão por todos os lados. Como tantos de nós, sei de casos de racismo contra pessoas de alta renda e/ou alta escolaridade – professor universitário negro barrado por porteiro na portaria da faculdade em que trabalha, estudante negro da graduação abordado e agredido por policiais, aluna negra da pós-graduação associada a ocupação manual que não exige nenhuma escolaridade. Nesse sentido, estar sentada na minha confortável

39

(1944-). A autora é uma especialista em religiões afro-brasileiras, possuindo trabalhos de relevância nesta área. No entanto, questiona de modo incisivo as políticas de ação afirmativa, em especial as cotas. Para saber mais http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/03/em-entrevista-professora-yvonne-maggie-afirma-racas-nao-existem.html acesso em 20/08/13. 40

O autor nasceu em 1958. Ver a obra Uma gota de sangue: história do pensamento racial no Brasil (2009).

49

posição de branca me dá uma enorme vantagem: ninguém pode me acusar de estar sendo passional, de ser mais uma das “vozes iradas do Movimento Negro”, expressão que li, indignada, numa resenha sobre o livro, ou de estar tentando dar aos casos da minha vida privada uma conotação científica, argumento barato com que se tenta com frequência, desconstruir o que dizem os acadêmicos negros sobre racismo. (MIRANDA-RIBEIRO, 2006, p.377).

Este é o trecho de um texto intitulado Somos racistas (2006), em forma de

resenha crítica sobre o livro Não somos racistas (2006), do jornalista e sociólogo Ali

Kamel, responsável pelo setor de jornalismo da rede Globo de televisão, no qual o

autor defende com veemência a não existência de racismo no Brasil, procurando

com isso desconstruir as políticas de ação afirmativa41 conquistadas ao longo de um

processo histórico do movimento negro e que visam à cidadania plena e uma real

inserção social do negro no Brasil. Lembrando que a Lei Áurea42 em seus dois

artigos não garante em nenhum momento as condições de vida social e econômica

para a população negra. Adentramos a república no ano de 1889 e essa situação se

mantém. Somente na década de 2000 é que começam a se constituir oficialmente

no país as políticas reparatórias dos danos causados pela escravidão da população

negra e genocídio das populações indígenas, estes últimos têm, com a inclusão da

obrigatoriedade do ensino de sua história e cultura na atual Lei Federal 11.645 de 10

de março de 2008, o início de um reconhecimento formal na educação brasileira.

Ainda no caso brasileiro, somente se faz notar com a argumentação desses

autores contemporâneos um velho conceito, o da democracia racial, que aparece

em obras literárias e acadêmicas que reforçavam a ideia de uma igualdade social

entre negros e brancos pautada na cordialidade e boa convivência. Essa teoria, que

aparece na obra Casa Grande e Senzala (1994) e também em Sobrados e

Mocambos (1961) do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, foi desconstruída, e é hoje

41

As políticas de ação afirmativa representam o resultado de anos de lutas do movimento negro em busca da condição de uma cidadania plena. Essas políticas visam atender as principais necessidades desse seguimento da população, oriundas tanto do processo escravista quanto de uma república que não garantiu direitos legítimos à educação, ao trabalho, à moradia e à saúde. Em um processo bastante tardio no Brasil essas políticas passaram a fazer parte da realidade das discussões públicas voltadas à população negra. As cotas universitárias são apenas um exemplo de políticas de ação afirmativa. Vale dizer que o termo cota tem causado estranhamento em boa parte da população brasileira, porém se o entendermos como reserva, notamos que a sua prática é histórica no Brasil. Veja por exemplo a reserva para trabalho, moradia e educação destinadas aos imigrantes que vieram para o país. Ver Decreto nº 4.228, de 13 de maio de 2002 que institui, no âmbito da Administração Pública Federal, o Programa Nacional de Ações Afirmativas e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4228.htm Acesso em 20/08/13. 42

Ver Lei n. 3353 de 13 de maio de 1888.

50

denominada pelos estudiosos como o mito da democracia racial. A posição desses

intelectuais apenas faz afirmar antigos estereótipos construídos ideologicamente,

movidos por interesses elaborados em uma estratégia de dominação ligada à ideia

de representação, primeiro destinada ao continente africano e depois aos negros na

diáspora.

Sendo assim, não somente para entender a pertinência dessa questão no

contexto da realidade africana em busca de suas identidades, também

consideramos relevante notar que no Brasil ainda existem intelectuais que procuram

desconsiderar a pertinência da temática racial, ao analisar aspectos sociais no país.

Como este trabalho também tem como finalidade o auxílio na formação do professor

no contexto das Leis Federais 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornam obrigatório o

ensino sobre a história e cultura da África, dos afro-brasileiros e indígenas,

procuramos salientar a questão racial para que a mesma seja motivo de atenção e

cuidado ao refletirmos sobre a África a partir do local em que estamos e das

imagens que ainda persistem sobre temas relacionados ao continente. Entender a

natureza dessas culturas no Brasil é também nos aproximarmos da necessidade de

se compreender a África e suas culturas, através da via mais próxima de acesso ao

continente africano, neste caso por meio da cultura negra do país.

É neste contexto de racialização que em parte o continente africano e os

negros na diáspora reorganizaram a sua identidade procurando elaborar a sua

própria representação, transformando o imaginário sobre si mesmo. De algum modo,

era necessário retornar as raízes culturais originais e a valorização de suas culturas,

já que a ideia racial branca apenas fazia sucumbir a noção de pessoa, fazendo do

ser humano um ser tornado negro, consequentemente inferior.

No intuito de entender melhor esse fenômeno histórico, devidamente

registrado e passível de reconhecimento, vamos então analisar o movimento pan-

africanista e o movimento de negritude. Ambos os movimentos tiveram e têm forte

impacto nas organizações negras africanas e também na diáspora. Hampaté Bâ

(2004) revela o quanto esses movimentos foram relevantes na formação de

intelectuais e líderes políticos africanos. Essa opinião é compartilhada também por

Joseph Ki Zerbo. De acordo com Munanga (2009) esses movimentos que

postulavam a volta às origens, baseando-se na identidade cultural de todos os

africanos negros, não foram concebidos no continente africano.

51

O vento que as levou soprou a partir das Américas, tendo como origem provável os Estados Unidos, passando pelo Haiti, seguindo seu caminho até a Europa, manifestando-se na Inglaterra para se cristalizar, enfim, na França, em Paris, no Quartier Latin. A partir daí alastra-se, cobrindo toda a África negra e os negros da diáspora, isto é, as Américas. (MUNANGA, 2009, p.45).

Um dos primeiros movimentos de busca por uma identidade após a

colonização europeia foi o movimento pan-africanista, que teve na pessoa do filósofo

e sociólogo estadunidense Prof. Dr. William Edward Burghardt Dubois, uma de suas

maiores referências. No ano de 1900, Dubois foi nomeado secretário do primeiro

Congresso Pan-Africano, realizado em Londres.

O Prof. W. E. B. Dubois, como é mais conhecido, foi o responsável por

chamar a atenção sobre a política imperialista na África, refletir sobre a

independência dos países africanos, a partir de uma unidade entre todos os

territórios africanos na busca pela sua integridade. “Sem pregar a volta à África dos

negros americanos, defendia os direitos deles enquanto cidadãos da América e

exortava os africanos a se libertarem em sua própria terra” (MUNANGA, 2009, p.46).

O pan-africanismo se tornou um dos movimentos mais marcantes no

processo de reconstrução africana e de identidade negra fora da África. Através dele

se reconhecia um lugar comum, a África e as pessoas então passavam a ter uma

ligação com um espaço físico que representava uma herança cultural e histórica,

agora valorizada. A partir dessa ideia os valores culturais africanos e também

aqueles construídos pelos negros na diáspora ganhavam forma de representação

afirmada de um modo de ser, da qual todas essas pessoas se sentiam parte e que,

portanto, lhes conferia uma condição de pertencimento e também de comunidade,

independente do lugar em que estivessem. Se os brancos se afirmavam pelos

valores civilizatórios oriundos da Europa, os negros também se afirmavam pelos

valores civilizatórios oriundos da África.

De acordo com Munanga, as reflexões e indagações de Dubois tiveram

grande influência sobre as personalidades africanas ligadas tanto ao meio político

como intelectual, entre eles Asikiwe Nandi, que se tornou presidente da Nigéria,

Kwame N`Krumah, primeiro presidente de Gana e Jomo Kenyatta, primeiro

presidente do Quênia.

A influência do pensamento Pan-africano repercutiu na Europa,

especialmente em Paris, onde muitos estudantes universitários africanos

52

começaram a questionar a ideia da superioridade da civilização europeia, a sua

representação. Ao perceberem os muitos conflitos entre os países europeus, entre

eles os que motivaram as duas guerras mundiais, verificaram a fragilidade de muitos

dos discursos desenvolvidos, em que a lógica de superioridade caía por terra. Como

povos ditos tão civilizados e de espírito tão nobre promoveram enormes chacinas

entre si? Como o homem branco em seu ideal de pureza e nobreza foi capaz de

fomentar o nazismo? Enfim, estas e outras questões revelavam de maneira bastante

convincente a fragilidade da condição europeia, do seu modelo de representação,

assim como uma mentira tornada verdade como a hierarquização humana a partir

de conceitos raciais, tendo como único intuito a dominação dos outros povos. De

acordo com Munanga, esse movimento que começava acontecer, já influenciado

também pelo pan-africanismo, fez surgir a negritude.

De acordo com Oliveira,

Em 1934, na França, Leopold Sedar Senghor, juntamente com Aimé Césaire e outros, fundaram a revista “L´Etudiant Noir”, com o objetivo de unir estudantes martiniqueses, guadalupenses, guianos, africanos, malgaches, etc em torno de ideias e ideais comuns. A França das décadas de 1930 e 1940 mantinha muitos imigrantes africanos e antilhenses, todos eles registrados como “negros”, e não por suas nacionalidades. Foi na revista “LÉtucdiant Noir” que Césaire usou o termo “ négritude” pela primeira vez. (2004, p.123).

A negritude começou a arregimentar estudantes de vários países africanos e

de outras colônias francesas do Caribe, no chamado Quartier Latin43, em Paris, isto

já nos anos 30. Nesse local lhes era imposta pelo dominador europeu a aceitação de

que não eram portadores de uma civilização e de que nada acrescentariam à

história do mundo. Foi então neste cenário que esses estudantes das colônias

começaram a responder estas afirmações, questionando-as uma a uma, refazendo

assim uma trajetória histórica, estabelecendo uma representação africana que

pudesse contra argumentar os conceitos a eles atribuídos pelos europeus.

É nesse aspecto que Hampaté Bâ (2004) também confrontava a ideia de que a

civilização oral fosse inferior em relação à civilização escrita e tinha neste aspecto

da cultura africana a base de sustentação de sua argumentação. No entanto, todos

os africanos realizavam esta ação, estudando cuidadosamente cada ideia e conceito

europeu para refutá-lo a altura. Assim, Munanga (2009, p.51) explica, “Um novo

43

Região de Paris que abriga escolas e fica próxima a Universidade Sorbonne.

53

nome, um conceito, todo um vocabulário nasce neste contexto, para onde se

canalizavam os debates: a negritude, quer dizer, a personalidade negra, a

consciência negra”. De acordo com Munanga, a negritude tem como objetivos

principais buscar uma identidade africana, uma representação de si, a partir do

universo cultural africano, dito original; protestar contra a ordem colonial; buscar a

emancipação dos povos africanos oprimidos e estabelecer os caminhos para uma

civilização universal a partir do reconhecimento dos seus diferentes grupos e

pessoas, e não nos moldes estabelecidos em uma perspectiva de origem europeia.

Aqui se percebe que a tônica do discurso evocava a busca pelo outro, a

alteridade, mesmo estando esses jovens estudantes submetidos ao constante

desafio de negação de sua origem. A resposta na maioria dos casos não era a

ruptura, mas o diálogo. O próprio Hampaté Bâ (2003) disse dessa sua busca por

aprender com o outro, por dialogar, e o quanto isto foi importante para sua vida e os

encontros que teria no mundo europeu.

A ideia racial ao ser reapropriada pelos negros estabelece de acordo com o

filósofo francês Jean Paul Sartre em seu texto Orfeu Negro (1968), o conceito de

antirracismo. Obviamente temos aqui configurada uma relação dialética na qual se

utiliza contrariamente o pressuposto racial criado pelo opressor para tentar

responder o tom de suas argumentações. O antirracismo foi o primeiro grande

instrumento desenvolvido para responder à condição imposta aos negros, seja na

África ou na diáspora.

Atualmente intelectuais como Elikia M´Bokolo, na França, e Kwame Anthony

Appiah, nos Estados Unidos, têm se dedicado a também discutir se a apropriação do

conceito racial ainda é válida no sentido de se pensar uma unidade africana ou

unidade negra a partir dele. Esses autores têm provocado uma discussão em torno

dessas identidades, pensando com isto a diversidade cultural africana, a autonomia

dos seus povos e dos seus processos civilizatórios. No entanto, ao realizarem essa

reflexão, não descartam os efeitos da racialização, entre eles o racismo, utilizado

como instrumento de dominação. No Brasil, Kabengele Munanga e a historiadora e

antropóloga Lilia Katri Moritz Schwarcz têm se destacado na elaboração conceitual

dessa discussão, fazendo perceber a pertinência ainda, em especial nos países da

diáspora, do conceito racial, em virtude da construção social do racismo, que ainda

vigora com grande impacto nas relações sociais brasileiras. Porém, todos eles

reconhecem que a representação africana hoje requer uma apropriação maior dos

54

aspectos culturais que compõem os povos africanos e que a ideia racial não dá mais

conta de dizer o que são estes povos e suas civilizações.

O ideal desses intelectuais talvez seja pensar um dia a identidade não mais a

partir da questão racial, já que esse pressuposto carrega marcas bastante

complexas para serem trabalhadas, oriundas de uma falsa perspectiva científica.

Porém, negar a existência do racismo e do mote racial nos processos de dominação

como querem alguns intelectuais é, segundo Munanga (2009), tentar apagar os

traços de responsabilidade social que têm sua origem nesse contexto e se refletem

até os dias de hoje.

I.3 – A África no contexto mundial: História e Cultura

A África a partir da modernidade estabeleceu no contexto mundial das

relações internacionais papéis sociais, culturais e políticos complexos, já que num

primeiro momento, foi alvo do interesse do colonizador no intuito de buscar a mão de

obra, para as suas colônias na América e Caribe. Em um segundo momento foi

ocupada pelo colonizador que pretendia estabelecer sobre o continente a extensão

territorial dos seus impérios. E em um terceiro momento se verificaram as lutas pela

independência dos países colonizados e com isso a busca pelo estabelecimento dos

seus estados nacionais.

Esse processo da história da África44 mais recente pode também ser dividido

como história colonial e história pós-colonial. Porém, alguns pesquisadores têm

estudado outras maneiras de se entender e interpretar a história da África, entre eles

está Ferran Iniesta professor de história da África na Universidade de Barcelona,

propondo outras maneiras de realizar a divisão dos momentos históricos.

De acordo com Boahen,

44

Sobre a história da África é relevante alertarmos que o nosso trabalho não visa traçar um panorama amplo dessa história, mas sim localizar a África no período colonial da infância e juventude de Amadou Hampaté Bâ e pós-colonial, período em que o autor registra as suas memórias na obra Amkoullel, o menino fula (2003). Para aprofundar essa temática recomendamos a leitura da obra completa da História Geral da África (2010), disponível em versão PDF para download. Também é significativa a obra de autores como Elikia M`bokolo com África Negra: História e Civilizações tomo 1 (2009), África Negra: História e civilizações tomo 2 (2011), ambos publicados pela Casa das Áfricas e Alberto da Costa e Silva com as obras a Enxada e a Lança (2006), A manilha e o libambo (2002), entre outros. Estes textos estão disponíveis em língua portuguesa, o que torna o acesso facilitado principalmente para alunos de graduação, trabalhos de extensão e formação/capacitação de professores para o ensino fundamental e médio.

55

Na história da África jamais se sucederam tantas e tão rápidas mudanças como durante o período de 1880 e 1935. Na verdade, as mudanças mais importantes, mais espetaculares e também mais trágicas, ocorreram num lapso de tempo bem mais curto, de 1880 a 1910, marcado pela conquista e ocupação de quase todo continente africano pelas potências imperialistas e, depois, pela instauração do sistema colonial. A fase posterior a 1910 caracterizou-se essencialmente pela consolidação e exploração do sistema. (2010, p.1).

Nesse período colonial pelo relato de Hampaté Bâ (2003) estamos imersos

em relações ainda mais delicadas entre a África e o colonizador. Os africanos desde

a mais tenra idade eram induzidos, e muitas vezes de fato conduzidos a aceitar a

cultura europeia como formação, mesmo que uma formação para produção de base.

Nesse sentido, o esquecimento de alguns traços da cultura passa a ser fundamental

para que se consolide uma possível perda de uma identidade africana como

elemento valorativo. Ainda segundo Boahen,

Até 1880, em cerca de 80% do seu território, a África era governada por seus próprios reis, rainhas, chefes de clãs e de linhagens, em impérios, reinos, comunidades, e unidades políticas de porte e natureza variados. No entanto, nos 30 anos seguintes, assiste-se a uma transmutação extraordinária, para não dizer radical, dessa situação. Em 1914, com a única exceção da Etiópia e da Libéria, a África inteira vê-se submetida à dominação de potências europeias e dividida em colônias de dimensões diversas, mas de modo geral, muito mais extensas do que as formações políticas preexistentes e, muitas vezes, com pouca ou nenhuma relação com elas. Nessa época, aliás, a África não é assaltada apenas na sua soberania e na sua independência, mas também em seus valores culturais. (2010, p.3).

A análise histórica de Boahen colabora para a compreensão dos fenômenos

descritos por Hampaté Bâ, que revelam uma série de situações em que através da

presença europeia no continente era imposto um modo de ser. Essa característica

pode ser refletida aqui com o auxílio do conceito de dominação de Weber. Para

Weber (1991,p.139) chama-se de “dominação a probabilidade de encontrar

obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de

pessoas”.

Este autor ainda reflete que existem três tipos de dominação: a de caráter

racional, que se baseia na crença legítima das ordens e direito de mando daqueles

que são imbuídos para dominar; a de caráter tradicional, que está baseada na

crença em valores constituídos ao logo da história da comunidade; e a de caráter

carismático que se baseia em algum tipo de veneração. Destes tipos de dominação,

56

pode-se notar que a relação que a Europa constituiu com a África em seu período

colonial baseia-se especialmente no primeiro tipo, a de caráter racional, já que foi

planejada e calculada e concentra-se em um tipo de representação que justifica e

legitima tais atos. De acordo com Vieira45 (2006, p.47) “a sociologia da dominação

de Weber tem como centralidade a preocupação latente pelo entendimento do

exercício do poder e do conceito de dominação social”. É exatamente esta questão

que se coloca em questão para entendermos os reflexos do colonialismo no

continente africano.

A África sob o jugo europeu estava à mercê não de suas necessidades, mas

das necessidades que o colonizador lhe impunha. Este fardo sufocava em grande

parte a possibilidade de uma identidade africana consolidar-se de modo efetivo. A

própria imagem da África para os africanos estava diluída na perspectiva do

negativismo, da ausência do espaço político e da desvalorização cultural imposta

pelos europeus. De acordo com Hampaté Bâ (2003) era comum que aqueles

africanos ainda próximos às suas heranças culturais denominassem os africanos

que passavam a seguir os padrões da cultura externa ou de certa forma afastavam-

se de suas culturas originais de “negros – brancos“.

Para Hampaté Bâ (2004) essa rejeição da própria cultura tem levado ao poder

líderes descompromissados com a realidade africana, que, por não acreditarem na

capacidade dos seus próprios países e seus povos superarem crises, acabam por

desenvolver governos que atendam interesses pessoais, constituindo verdadeiras

fortunas que são soberbamente alimentadas por capitais estrangeiros que procuram

estabelecer seus interesses nas economias internas desses países. Aliás, esse

quadro tem permitido que os modelos coloniais, agora sob uma nova bandeira

neocolonial, continuem mantendo seus monopólios na África. Dessa maneira,

possibilitaram o surgimento de governos ditatoriais.

Esses governos podem ser refletidos a partir de outro conceito associado a

Weber, o patrimonialismo, que diz respeito à perda da noção do público com o

privado, ou seja, a posse de um determinado espaço político de representação

pública é vista apenas como extensão de interesses particulares, e em decorrência

disso as ações desses governantes passam a se perder do comprometimento com o

45

O Prof. Dr. César Romero Amaral Vieira é o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba e tem pesquisas relacionadas a instituições e suas representações sociais.

57

povo que representam, mas antes passam a seguir uma perspectiva pessoal, de

interesses particulares. No entanto, esse conceito estaria mais ligado à perspectiva

das relações tradicionais e poderia ser melhor refletido nos governos antigos e

medievais, nos quais na realidade essa noção pública e privada nem sempre era

definida. Essa noção de distinção está mais presente nos governos atuais. No caso

dos governos africanos contemporâneos Bruhns (2012) faz-se perceber que o uso

do termo neopatrimonialismo seria mais apropriado para analisar esses governos, já

que esse conceito tem condições melhores de observar os diferentes e múltiplos

fenômenos sociais que ocorrem em um estado contemporâneo.

E desse modo Hampaté Bâ afirma,

Qualquer ditadura preocupa, seja na África ou em outro lugar, sobretudo quando constatamos que a maioria dessas ditaduras só parece ter como finalidade satisfazer um punhado de homens, ou certa categoria de homens, e nunca o povo em seu conjunto. O povo, aliás, sente-se geralmente estranho ao que acontece na cúpula e as lutas pelo poder. Sejam intelectuais ou militares, para eles são toubaboumoro, “gente dos brancos”, isto é, gente que imita os brancos, pensa e age como os brancos e não segundo a tradição africana. (2004, p.9).

O relato de Hampaté Bâ (2003) coloca-nos diante de um dos desafios a que a

África estará submetida desde a sua colonização até os dias de hoje. A construção

da representação africana é desafiada pela necessidade da África compreender-se

em si mesma, mas em diálogo também com o colonizador. Nesse contexto é

necessário pensar que a África sob o jugo europeu e já tendo incorporado os

elementos também dessa cultura, começa um processo de autoentendimento, no

qual se configura um pensamento já mestiço. A ideia de pensamento mestiço deriva

do fato de que por meio desses encontros socioculturais, todos os envolvidos são

transformados. De acordo com Gruzinski (2001) “a identidade define-se sempre,

pois, a partir de relações e interações múltiplas“. Nessa reflexão, pode-se dizer que

somente somos o que somos com e pelo outro, até mesmo aquele que rejeitamos.

E se pensamos este fato também com a análise de Certeau (2004) percebe-

se que a modificação do espaço cultural dado a partir da colonização se dá com o

instrumental estrategicamente pensado pelo colonizador, mas adaptado e

transformado no cotidiano das pessoas na busca pela sua sobrevivência e

dignidade. O encontro entre os povos e suas culturas como analisado por Gruzinski,

teve no caso africano, ou das culturas africanas um impacto considerável no mundo.

Na análise do historiador Ali Mazrui (2010) as antigas aldeias africanas foram

58

invadidas pelo colonizador, mas estes colonizadores não perceberam que com esta

ação, juntamente com o processo de escravização, fizeram por conduzir estas

aldeias para o mundo, e este seria transformado de um modo significativo. Esses

encontros culturais nunca são inertes. Esta análise tem correspondência com a

composição de Gilberto Gil chamada Chuck Berry Fields Forever = Eternos campos

de Chuck Berry46.

Esta composição de Gilberto Gil faz menção com o título da letra dos Beatles,

chamada Strawberry Fields Forever ou os Eternos campos de morango. A letra de

Gil fala da música africana chegando a Europa e sendo transformada nas Américas

e Caribe.

Vejamos a letra desta música, Trazidos d´África pra Américas de norte e sul Tambor de tinto timbre tanto tonto tom tocou E neve, garça branca valsa do Danúbio Azul.

Tonta de tanto embalo, num estalo desmaiou. Vertigem verga, a virgem branca tomba sob o sol.

Rachado em mil raios de Xangô E assim gerados, a rumba, o mambo, o samba, o rhythm´n blues

Tornaram-se os ancestrais, os pais do Rock and Roll Rock é o nosso tempo, baby

Rock and roll é isso Chuck Berry Fields Forever

Os quatro cavaleiros do após calypso O após calypso

Rock and Roll Capítulo um

Versículo vinte Sículo vinte

Século vinte e um Versículo vinte

Sículo vinte Século vinte e um

(RENNÓ, 1996)

É válido também pensar que o retorno para a África dessas culturas

transformadas na diáspora foi bastante intenso, e que elas ajudaram a constituir

outras formas culturais no continente. Um exemplo bastante interessante dessas

possibilidades é o caso dos Agudás47 no Benin, que se constitui como um novo

grupo étnico formado a partir de descendentes de africanos que foram escravizados

no Brasil e que retornam ao Benin levando costumes brasileiros. Temos nesse caso

um fenômeno marcante que influenciou também na organização sociocultural

46

O cantor e instrumentista negro estadunidense Charles Edward Anderson Berry (1926- ), conhecido como Chuck Berry, é considerado o pai do rock in roll. 47

Ver as obras: Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua volta à África (2012) de Manuela Carneiro da Cunha e Agudás, os brasileiros do Benin (2000) de Milton Guran.

59

desses países, já que ao retornarem ao continente africano, essas pessoas não

eram mais absorvidas em suas culturas originais, em seus respectivos grupos

étnicos, pois ao assumirem uma identidade cultural distinta da original, na qual se

inclui o idioma, a religião entre outros, eram vistos como um grupo estranho em seu

próprio território de origem, e desse modo, passaram a constituir-se, a organizar-se

em torno da própria noção de etnia, fazendo então surgir um novo grupo étnico.

Essas características da organização nativa africana são fundamentais na

perspectiva de Hampaté Bâ (2004) para se entender os desafios na constituição dos

estados africanos contemporâneos, já que descrevem um modo de ser distinto

daqueles baseados no modelo europeu.

I.4 – Nação e representação

A luta pela constituição das representações africanas culminou nos processos

de independência e no estabelecimento dos respectivos países africanos. De acordo

com Ki Zerbo (2009), uma das principais necessidades do continente africano talvez

seja o estabelecimento dos Estados-nação, a partir do que fora deixado como

divisão territorial da África na colonização. Tal necessidade se dá pelo fato de que

essas nações, originadas da campanha expansionista e escravista europeia,

forjaram encontros que outrora talvez não existissem, estabelecendo novas

fronteiras culturais, políticas e econômicas aos próprios africanos, e

consequentemente desestruturando organizações sociais anteriores. Tal

empreendimento deixou uma carga de dificuldades aos africanos, o que acarreta

inúmeros problemas a serem resolvidos.

Ainda segundo Ki Zerbo a busca pela construção dos diferentes Estados

africanos deveria perpassar a perspectiva ética de solidariedade e cidadania,

enquanto estados autônomos, os quais habita um conjunto vasto de culturas

humanas que devem e precisam confluir. E, a partir das suas próprias culturas,

constituírem um estado contemporâneo de direito.

Esses desafios conduzem à ideia de uma identidade africana nos Estados

Nação48 que ainda não se consolidou de fato, embora várias medidas tenham sido

48

Sobre esta discussão e o que tem sido feito mais recentemente para promover o avanço dos países africanos é relevante visitar o site da UA – União Africana no seguinte endereço www.au.int

60

incentivadas, mas que na atualidade sofrem as restrições de avanço e aplicabilidade

que talvez não estivessem nítidas inicialmente.

De acordo com Hampaté Bâ, o conceito de nação é um conceito que foi

importado de outra realidade histórica. Trata-se de um conceito moderno que não

atende a compreensão geográfica forjada pela tradição africana. A esse conceito

caracteristicamente geográfico ele contrapõe com o conceito de etnias.

A África conheceu Estados, reinos, impérios, mas não “nações” na perspectiva geográfica e moderna da palavra. Os grandes conjuntos que se reivindicava e aos quais se sentia pertencer eram as etnias. Estas, muitas vezes móveis, podiam cobrir vastos territórios. Um fula de Macina podia viajar para a Costa do Marfim; lá, encontrava outros fulas e se sentia em família. Um senufo da Costa do Marfim que viesse para o Mali encontrava os seus. Cada grande cidade comportava bairros consagrados às diferentes etnias, de maneira que o viajante tinha certeza de sempre encontrar nelas irmãos. (2004, p.11).

Refletindo sobre a condição deixada pelos europeus ao continente africano,

Hampaté Bâ nos diz que não houve escolha, o continente recebeu uma herança. No

entanto, é importante que se retome esse início para que se possa perceber o que é

relevante para a África e o que não é, e assim se possam fazer as distinções entre o

parecer e o ser ela mesma.

E ainda,

Mas a dificuldade é que a África não pode viver a sua vida sem levar em consideração as contingências internacionais. Aliás, nenhum país pode mais, no mundo de hoje. Somos todos interdependentes. A revisão do início, bem como a revisão do processo em curso, precisa ser universal, e não reservada apenas à África. É um problema mundial. (2004, p.11-12).

Se pensarmos esta situação em acordo com a reflexão de Hampaté Bâ,

perceberemos que a civilização deve pautar-se na noção ética de reciprocidade e

compartilhamento; a negação do outro, ou mesmo a sua não oportunidade de

pertença decisória no mundo contemporâneo, torna as relações empobrecidas. Essa

ideia defendida por Hampaté Bâ (2004), assim como por Ki Zerbo (2009), leva em

consideração que a própria instituição dos países africanos deve ser apresentada e

organizada levando-se em conta a sua autonomia, o seu modo de organizar a

economia e a maneira como devem ser estabelecidas as suas fronteiras geográficas

a partir do que lhes foi delimitado. No entanto, a interferência externa sem diálogo,

sem o devido respeito às características internas do continente africano, apenas

61

dificulta o estabelecimento de relações contributivas no âmbito internacional. Esses

autores ponderam que a posição da África no mundo deve ser ocupada pelo diálogo,

e na concepção de Hampaté Bâ, a condição deste diálogo se dá a partir do

momento em que o continente africano possa apresentar-se a partir de suas

culturas, dos seus referenciais civilizatórios, entre eles a tradição oral.

Esse diálogo é simultâneo: se por um lado é necessário garanti-lo

internamente, é também necessário efetivá-lo externamente, ou seja, da África para

o mundo. No entanto, o estabelecimento das identidades nacionais e suas

representações internas requer que os líderes africanos tomem contato com as

várias representações étnicas nacionais, o que determina, por exemplo, a maneira

como o africano estabelece a sua economia doméstica. Em alguns grupos étnicos a

pecuária ainda é o grande vetor de sustentação do grupo, independente das

mudanças sociais existentes. Este é o caso, por exemplo, dos Massai49 do Quênia.

Nesse sentido, qualquer governo africano que não perceba e entenda esses pontos

estará fadado ao fracasso. Segundo Ki Zerbo (2009) o estado africano precisa gerir

e aperfeiçoar o seu espaço territorial através da estruturação do estado federal, que

desse conta do caráter amplo do espaço ocupado pelos diferentes grupos étnicos e

das suas características culturais.

O Estado atual, instância média, seria uma federação dos poderes que operam na base e que correspondem às realidades concretas. Assim, não seria preciso destruir as fronteiras atuais, mas superá-las. Como levar em conta, por exemplo, os fatos senufo, haussá e sonrai num reordenamento da África Ocidental? É difícil gerir certas realidades em que há tensões atualmente. Ora, será necessário tornar as fronteiras atuais o mais leves possível, fazendo delas linhas pontilhadas em vez de muros de concreto, e transformá-las, de estruturas belígeras, em fontes de prosperidade e locomotivas de novas configurações. (KI ZERBO, 2009, p.82-83).

Essa situação ocorre em todos os países africanos, com maior ou menor

intensidade. De acordo com Ki Zerbo a proposta de uma emancipação política e

econômica não acontecerá se não levar em conta a diversidade que se encerra

nesses países. E tentar propor políticas públicas comuns terá sempre o desafio de

atender algumas especificidades regionais, locais.

Por isso, segundo Hampaté Bâ (2004) e Ki Zerbo (2009), haver a

necessidade de entender as políticas organizacionais externas, mas também a

necessidade de ter despertada a autonomia para o desenvolvimento de políticas que

49

Grupo étnico.

62

estejam amparadas na realidade local. Embora este seja um dado facilmente

perceptível, contudo não é facilmente aplicado e desenvolvido, e depara sempre no

desafio do diálogo intersubjetivo.

Essas condições internas, inerentes ao continente africano hoje, estão muitas

vezes longe da percepção externa, que, de acordo com a socióloga malinesa

Aminata Traoré (2004), infelizmente ao não compreender tais situações ainda insiste

muitas vezes em descrevê-la envolta em determinados estereótipos negativos, entre

eles a fome, a miséria e os conflitos interétnicos, também denominados de conflitos

tribais - aliás, um conceito ainda bastante marcado pela visão eurocêntrica de

civilização, no qual o termo tribo é destinado a povos tidos como inferiores

culturalmente, e consequentemente destituídos de uma noção mais elaborada de

civilização.

Também é válido notar que esse juízo destinado ao continente africano cabe

também a Europa, já que conflitos semelhantes acontecem ou aconteceram dentro

dos países europeus, veja-se o exemplo do país Basco na Espanha, os históricos

conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda ou mesmo a separação belga entre

descendentes de franceses e descendentes de holandeses. Enfim, muitos outros

exemplos poderiam ser trazidos, todos com significado histórico. Porém, ao analisar

o contexto africano, esses exemplos exteriores são intencionalmente esquecidos, e

esta característica humana é atribuída apenas aos povos africanos, então como

exemplo de atraso, daí o termo tribo. Essa análise é relevante, pois segundo

Munanga (2009) ela carrega intenções, motivações que deslocam a reflexão sobre a

condição humana como um todo, fazendo uma atribuição específica ao universo

africano, principalmente quando o mesmo apresenta-se como um fenômeno alvo de

críticas por parte de valores sóciomorais estabelecidos.

Do mesmo modo, pode-se pensar o estabelecimento dos estados federais,

tais como propostos por Ki Zerbo (2009) quando propõe uma maior maleabilidade na

delimitação de suas fronteiras. Essa proposta pode ser observada no

estabelecimento, por exemplo, da União Europeia, que também procura romper com

a ideia de fronteiras geográficas fixas na busca pela consolidação de um espaço

ampliado de relações econômicas, políticas e culturais que esteja para além das

delimitações geográficas dos países membros. Dessa maneira, a ideia de Ki Zerbo

não é estranha e baseia-se em aspectos já experimentados e vivenciados nos

antigos impérios africanos e compartilhada com as etnias.

63

A partir da análise que Hampaté Bâ (2010) faz da cultura, pode-se pensar que

os valores culturais africanos estão permeando as suas civilizações, em especial as

chamadas populações tradicionais. Esses mesmos valores podem e devem,

segundo o autor, ser colocados à disposição do homem contemporâneo, pois muitos

deles encerram valores universais, cabíveis à constituição do ser humano.

De acordo com o que pudemos apreender com Hampaté Bâ (2003) o ser

humano é em sua vida, e esta vida é qualificada pela sua capacidade de elaborar

encontros e dar sentido a sua jornada. Essa noção permite que se reconheça que o

ser humano não nasce pronto, mas que ele se faz ao longo de sua vida, daí a

relevância e a necessidade da educação. Essa perspectiva de análise é válida tanto

ao olhar para os sujeitos individuais, quanto para as culturas e civilizações

existentes. As experiências civilizatórias e suas respectivas culturas vão sendo

maturadas através de processos de interação, de capacidade de reciprocidade e

autoavaliação dos seus processos históricos.

No caso da África, não se pode destituí-la dos seus problemas, e

consequentemente da responsabilidade que se deve ter sobre eles. De acordo com

Appiah (1997) o não reconhecimento e enfrentamento desses problemas pode

ocasionar uma limitação no entendimento de algumas discussões já universalizadas,

que transcendem aspectos específicos de uma determinada cultura.

Um exemplo desta questão registra-se em alguns grupos étnicos em que a

prática da infibulação50 e extirpação do clitóris nas meninas ainda em sua primeira

infância é justificada em nome de uma cultura com caráter religioso e social. Esta

prática tem levado muitas meninas à morte precoce, até mesmo pela precariedade

com que é realizado o ato, na grande maioria das vezes sem nenhum recurso

médico ou sanitário mais adequado. Além disso, mesmo as meninas que

sobrevivem a tal manipulação, ao crescerem não podem vivenciar o sexo livre de

dores, na qual a ausência do prazer é bastante comum. A prática da infibulação

ainda se faz presente em algumas culturas também na África ocidental. Embora

esse tema não apareça no relato de Hampaté Bâ (2003), neste está contido um

cenário a ser investigado sobre a condição da mulher na sociedade do oeste

africano tradicional e na contemporaneidade.

50

A infibulação feminina consiste na costura dos lábios vaginais e do clitóris. A extirpação do clitóris é a remoção desse órgão. Ver o caso da modelo somali Waris Dirie (1965- ), descrito na obra Flor do deserto(2001). E também http://jus.com.br/artigos/21078/flor-do-deserto-mutilacao-genital-feminina-e-direitos-humanos#ixzz2cNAf4AKT

64

Temos ainda, algumas práticas tradicionais ligadas ao universo mítico-místico

que muitas vezes, por não dialogarem com novos conhecimentos oriundos da

ciência, têm impedido que métodos mais eficazes de tratamento de saúde sejam

desenvolvidos, levando assim muitas pessoas à morte51. Na perspectiva de Appiah

(1997) devem-se repensar estes saberes na condição de pertencerem a um

universo cultural distinto, mas que na busca pelo diálogo devem estar inseridos em

uma ética universal que se firma a partir desses encontros, e que somente será

fortalecida no momento em que todas as culturas também mediadas pelas outras,

consigam tornar-se autocríticas e consequentemente avaliativas dos seus processos

histórico-culturais. Tais análises quando bem conduzidas devem reconduzir aos

sentidos dessas práticas e, com isso, recuperar sentidos de fato relevantes, mas que

com o passar do tempo tornam-se invisíveis em nome de uma prática milenar que

deixou de ser pensada. Com essa noção a própria educação é fortalecida, já que a

cultura será refletida de maneira mais incisiva e sua transmissão, mesmo na

tradição, será garantida no diálogo e na interação com o todo à sua volta, e neste

todo, agora se inclui o outro modelo civilizatório, outrora tão distante, mas agora

possível de ser pensado e compreendido através da acessibilidade proporcionada

pela melhor condição dos meios de comunicação disponíveis, assim como através

da tecnologia por eles utilizada. Esta proposta é compartilhada por Hampaté Bâ

(2010) ao falar da tradição como um caminho de diálogo permanente com a

contemporaneidade, já que essa cultura é dinâmica e atual, mesmo preservando

valores ancestrais.

Ki Zerbo também faz um alerta semelhante ao de Appiah (1997) para o fato

de que a África é um conjunto de problemáticas internas que precisam ser mais bem

refletidas para que se estabeleçam as condições favoráveis ao diálogo externo. “Os

africanos têm interesse em resolver eles próprios os seus problemas.” (KI ZERBO,

2009, p.58).

Deve-se descartar qualquer possibilidade de romantismo e ingenuidade em

relação ao continente africano, para que se possa estabelecer uma reflexão

coerente, um olhar atento sobre os seus povos e civilizações. Caso contrário, pode-

se migrar do eurocentrismo52 para um afrocentrismo53. A África é dessa maneira alvo

51

O Prof. Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos da Casa das Áfricas tem desenvolvido estudos nesta área, em especial na Costa do Marfim. 52

Ver AMIN, Samir. Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. Lisboa: Dinossauro, 1994.

65

de múltiplos interesses, de muitas ideologias que a ela se referem de maneira tão

díspar, seja ao negativá-la, ou ao positivá-la. A África é em si mesma um continente

de contrastes, tal como qualquer outro: a sua gente é humana como qualquer outra,

portanto passível da ambiguidade presente nesta condição. No entanto, o que se

coloca na pauta das reflexões é o seu papel na história da civilização humana, as

suas experiências, os seus pensamentos, as suas culturas, que podem, segundo

Hampaté Bâ (2004), oferecer mais elementos para serem dialogados e com isto

ampliar as possibilidades reflexivas do homem sobre si mesmo. E, nesse sentido, as

contribuições são difíceis de ser mensuradas. Ki Zerbo afirma,

É por isso que é preciso favorecer as redes de grupos que criem um projeto para “o homem novo“ no séc. XXI. Um homem aberto a alteridade e que, sobre uma base econômica e social mínima esteja aberto às relações, às ligações humanas, a uma ética universal e aos valores. Quando falo de valores, penso nos valores morais, psicológicos, ideológicos e religiosos, mas não só. Proponho, pois, um projeto que seja como um foguete com três estágios: os bens econômicos, as ligações sociais (que compreendem as relações humanas, os serviços e a organização humana) e os valores. Esse projeto humano não visa simplesmente maximizar o consumo material. Será construído com base nos valores da solidariedade, convivência, alteridade, compaixão, autocontrole, piedade e equilíbrio... (2009, p.156-157).

O educador Paulo Freire (2003), quando de sua experiência no continente

africano, nos diz sobre o quanto a África e suas culturas têm a nos ensinar, a

começar pela maneira respeitosa de olhar para a natureza, em que o homem não se

vê acima da natureza, mas com ela, assumindo responsabilidades em cuidar dela.

Destaca também a noção integral do ser humano: o homem é um todo que é razão,

emoção, corpo, alma, enfim, uma inteireza que se comunica por completo.

É nesse sentido que buscamos nas reflexões de Hampaté Bâ as condições

de entender o papel da oralidade na educação, procurando nessa perspectiva local

algo que possa ser relevante para refletirmos a educação no Brasil.

Assim, nada de desespero nem catastrofismo. As duas correntes existem: a positiva e a negativa. Em toda parte há homens que lutam para despertar as consciências, e eles encontram quem os ouça. O que é importante é nunca deixar de lutar. Qualquer esforço conta. A aparente pequenez de um esforço não impede que ele possa ter consequências consideráveis. Como dizia meu mestre Tierno Bokar: apesar de sua envergadura gigantesca, o baobá é engendrado por uma semente que não é maior que um grão de café. (Hampaté Bâ, 2004, p.12).

53

Ver FARIAS, P. F. de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica universalista e o relativismo cultural. Afro-Ásia, 29;30. Salvador, 2003, p. 317-343.

66

De acordo com Ki Zerbo (2009) e Hampaté Bâ (2004) essas culturas

funcionam como um novo fôlego para o estado tênue da civilização humana e do

homem enquanto sujeito existencial. Elas não seriam soluções em si mesmas para

problemas hoje globais, mas são fundamentais para que a heterogeneidade humana

seja manifesta.

67

Capítulo II

A questão da memória

A tradição transmitida oralmente é tão precisa e tão rigorosa que se pode, com diversas confirmações, reconstituir

os grandes acontecimentos dos séculos passados nos mínimos detalhes, especialmente a vida dos grandes impérios

ou dos grandes homens que ilustraram a história africana. (Amadou Hampaté Bâ).

Na tradição africana a memória ocupa um papel de destaque, já que para os

povos de cultura oral ela é fundamental. No entanto, ao longo da história da

humanidade, a relação com a memória sempre foi complexa, pois implica vários

aspectos, entre eles a imaginação e o esquecimento. É nesse sentido, e tentando

compreender o que seja a memória, é que recorremos ao filósofo francês da

fenomenologia hermenêutica Paul Ricouer. Através desse autor procuramos

compreender o papel e a relevância da memória para a história, e mesmo para

educação. Assim vamos em diálogo com o sociólogo francês Maurice Halbwachs

compreender o conceito de memória coletiva. Depois desse percurso chegaremos

então à memória no contexto da cultura tradicional africana; aqui teremos contato

com as reflexões de Amadou Hampaté Bâ e do historiador belga Jan Vansina.

Para Paul Ricouer (2007), essa relação da memória e a história ocupa um

lugar especial em suas reflexões sobre a memória em si, em uma abordagem

conceitual oriunda da fenomenologia, a relação noesis54 e noema55 se refere ao

sujeito que investiga e o objeto investigado no ato mesmo de tomar consciência de

algo. Deste modo, a memória é observada como fenômeno a ser desvelado. Essa

abordagem é própria da fenomenologia husserliana56.

De acordo com Paul Ricouer, a memória é um recurso que existe para o

homem e o identifica pela lembrança a um passado ou a fatos já acontecidos. A

memória é a possibilidade também do entendimento da temporalidade e

espacialidade através dela mesma; sendo assim, ela é significativa para o homem

na constituição do seu conhecimento e da sua história. Porém, a memória ao

54

Noesis (ai.noesis). Na terminologia de Husserl, o aspecto subjetivo da vivência, constituído por todos os atos de compreensão que visam apreender o objeto, tais como perceber, lembrar, imaginar, etc.(ABBAGNANO, 2007, p.724). 55

Noema (ai.noema). Na terminologia de Husserl, o aspecto objetivo da vivência, ou seja, o objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado. (ABBAGNANO, 2007, p.724). 56

Filósofo alemão de origem judia Edmund Husserl (1859-1938), considerado o mentor da fenomenologia.

68

oferecer através da lembrança a rememoração dos fatos acontecidos é desafiadora,

no sentido de possibilitar também o esquecimento. Dessa maneira, um dos

problemas está no esquecimento e no falseamento das coisas rememoradas, pois

ao reconstruir algo do passado, pode-se, intencionalmente ou não, apagá-las,

configurá-las ou reconstruí-las. Essas possibilidades lidam com campos do ser

humano que extrapolam a perspectiva da razão, lidam com campos mentais ligados

à emoção, ao sono, enfim, a outras dimensões humanas que tornam a relação com

a memória bastante complexa. Os estudos sobre a memória ocupam várias áreas do

conhecimento humano, cada qual gerando as suas próprias concepções e

argumentos científicos.

Aqui se procura destacar a função da oralidade na educação do oeste

africano, a partir da interpretação de dados, fontes, argumentos e textos

selecionados. Em nosso caso, a memória não é somente vista no contexto mais

amplo da cultura africana, mas também através de sua contribuição para a

historiografia onde ocupa um lugar relevante, já que, de acordo com Ki Zerbo (2010),

não se faz história da África sem levar-se em conta a oralidade e a oralidade é

pautada na memória. Neste ponto, vale ressaltar que para pesquisadores como

Maurice Halbwachs (2006) a memória antecede a história e para outros, como o

próprio Ki Zerbo, a memória é um dos instrumentos do historiador. Enquanto que

para Ricouer existe um conflito entre a história e a memória.

De fato, ela caracteriza também a operação historiográfica enquanto prática teórica. O historiador empreende “fazer história“, como cada um de nós se dedica a “fazer memória”. O confronto entre memória e história se dará, quanto ao essencial, no nível dessas duas operações indivisamente cognitivas e práticas. (RICOUER, 2007, p.72)

A história oral tem sido um campo de investigação de relevância para a

história cultural, já que a história cultural tem utilizado os métodos investigativos da

história oral para lidar com diferentes povos e culturas. Dessa forma, segundo

Pesavento (2004), a história cultural vai ao encontro do outro tendo por base o

reconhecimento do valor inerente à cultura de cada um. No caso africano, nota-se

que a oralidade é um traço essencial dessa cultura e a história dos povos africanos

não é completa se for destituída a oralidade dessa condição de importância.

Entretanto, uma questão que incomoda os pesquisadores que lidam com o

conceito de memória é a questão de sua autenticidade enquanto preservadora de

69

um dado temporal. Nesse sentido, podemos pensar também uma relação com a

linguística, pois será que tudo o que é lembrado pode ser falado? Já que a memória

se realiza não no passado, mas no presente de uma situação, de uma relação, de

uma ação.

Assim, se discute se dados que foram rememorados são de fato descritos tal

como aconteceram, caso haja algum impedimento social ou mesmo moral que

impossibilite essa descrição tal como tenha acontecido. Além do mais, pensa-se

ainda que mesmo que se diga de fato aquilo que se viu, ao relatá-lo em um presente

as impressões do sujeito que se lembra, o lugar de onde se lembra e como se

lembra já não alterariam essa descrição?

Nota-se que o desafio da memória não é tão simples de ser resolvido, e,

portanto, o pesquisador, ao aprofundar o seu caminho de investigação através da

memória, deve assegurar-se de alguns cuidados e limites. Paul Ricouer, na sua obra

A memória, a história e o esquecimento (2007), dirá

A aposta última da investigação que se segue é o destino do voto de fidelidade, que vimos ligado ao alvo da memória enquanto guardiã da profundeza do tempo e da distância temporal. De que maneira, quanto a essa aposta, as vicissitudes da memória exercitada são susceptíveis de interferir na ambição veritativa da memória? Respondamos numa palavra: o exercício da memória é o seu uso; ora, o uso comporta a possibilidade do abuso. Entre uso e abuso insinua-se o espectro da “mimética” incorreta. É pelo viés do abuso que o alvo veritativo da memória está maciçamente ameaçado. (p.72).

No entanto, nos parece cabível perceber que esse abuso da memória se

refere também a um abuso de intencionalidade e a questão pode ser comparada ao

abuso também sobre outras fontes utilizadas pela historiografia, entre elas o próprio

documento escrito. Parece-nos que a questão colocada serve de alerta ao bom

senso na utilização das fontes e à maneira como as mesmas são transmitidas ao

pesquisador. Essa questão torna-se relevante ao pensarmos sobre a memória no

oeste africano e a necessidade de uma transmissão mais próxima possível do real,

amparada em pressupostos valorativos próprios, tais como a espiritualidade e a

ancestralidade, já que, de acordo com Hampaté Bâ (2010), para estes povos, ao

relacionarem a palavra a um universo de sacralidade na qual todas as coisas se

conectam, acabam por ter no âmbito da tradição oral um solo de segurança em

relação à coerência e autenticidade dos relatos. Provavelmente esse aspecto não

resolve as dúvidas quanto à validade da tradição oral, quando observada pelo

70

ocidente, mas apresentam justificativas que dão sentido e coesão para os povos que

a praticam, assim como tornam legítimas as suas ponderações, a partir do mundo

que representam.

De acordo com Prins (1992, p.170), “um dos efeitos de se viver em uma

cultura dominada pela palavra escrita é, devido ao rebaixamento da palavra falada,

cauterizá-la.” Por isso, esse será um desafio a ser superado para aproximar-se da

cultura oral do oeste africano, sem desqualificá-lo antecipadamente, baseando-se

em conceitos estabelecidos fora do contexto cultural africano. Ainda nos diz Prins

(p.170): “os historiadores tradicionais, orientados por documentos, buscam três

qualidades em suas fontes, nenhuma das quais os dados orais manifestamente

possuem”. São elas: a precisão da forma; a precisão cronológica e registro marcado

(escrito) capaz de proporcionar comparação e comprovação. O próprio Hampaté Bâ

(2003) admite que nem sempre os relatos têm uma forma fixa, tampouco

apresentam uma precisão cronológica pormenorizada; antes se referem a períodos,

a fatos e acontecimentos, normalmente rememorados pela comunidade ou que

muitas vezes são preservados por alguns memorialistas, sendo assim um aspecto

subjetivo da memória. Por isso, segundo Prins (p.171) “para os historiadores que

não gostam da história oral, esses compõem campos suficientes para sua rejeição”.

No entanto, os defensores da história oral, alguns ligados à história cultural,

procuram justificar a sua metodologia e interesse pela oralidade e mais

especificamente a tradição oral, esta sim uma característica fundamental da cultura

do oeste africano, que veremos em nossa investigação de modo mais detalhado. A

oralidade, como já dissemos, tem na memória um alicerce, um fundamento para sua

existência.

Somos então levados a refletir sobre outro aspecto da memória, que é a

questão da memória individual ou coletiva, pois já que existe um questionamento da

lembrança de determinado indivíduo, será que esse questionamento permanece se

ela estiver expressa em um dado coletivo? Ou ao menos, será que ela se apresenta

do mesmo modo? Não seria o compartilhamento das lembranças, um elemento que

assegure a sua validade?

Deste modo, Paul Ricouer (2007, p.105) apresenta-nos uma questão

importante a ser resolvida: “a memória é primordialmente pessoal ou coletiva?”

Essa discussão apenas passou a tomar corpo entre os intelectuais a partir do

séc. XX, principalmente através da sociologia, devido ao conceito de consciência

71

coletiva57. Para Ricouer (2007), não houve o devido questionamento desse conceito,

sendo este naturalizado. Esse conceito construído por Emile Durkheim diz que,

apesar das características individuais de uma pessoa em determinado grupo, existe

uma série de dados coletivos referentes ao grupo que se sobrepõem às pessoas,

aos indivíduos; essa consciência coletiva se ocupa da consciência individual, sendo

esta sempre determinada pela consciência do grupo. Segundo Ricouer, essa

reflexão de Durkheim foi transportada para a reflexão sociológica de modo

exagerado, sendo incorporada também aos estudos sobre a memória.

Para Ricouer (2007, p.106), essa situação polêmica, que coloca praticamente

a memória individual e a coletiva em rivalidade, revela que “elas não se opõem no

mesmo plano, mas em universos de discursos que se tornaram alheios um ao outro”.

O objetivo, segundo Paul Ricouer, é colocar um fim nessa discussão, a partir do

entendimento das especificidades dos discursos elaborados, sustentados de um

lado e de outro, além de propor caminhos de reencontro entre eles.

Nesses campos distintos, mas, segundo Ricouer, complementares, teremos

então os adeptos da memória individual, com uma proposta interior de abordagem

da memória, e os adeptos da memória coletiva, com uma proposta mais exterior de

abordagem da memória. Nessa perspectiva de memória coletiva nos deparamos

com o pensamento de Maurice Halbwachs, na obra Memória Coletiva (2006). Esse

sociólogo, morto em um campo de concentração em 1945, teve uma posição sólida

em defesa da memória coletiva, oriundo de um conceito anterior, também formulado

por ele, que é o de quadros sociais da memória que se baseiam em três aspectos: o

espaço, a memória/lembrança e a linguagem. Estes quadros somente são possíveis

a um grupo. São estes quadros que são facilmente perceptíveis no contexto das

tradições africanas.

Sobre essas características do espaço, da lembrança e da linguagem

podemos dizer que elas são também basilares para a condição humana, que solicita

um espaço, o outro e a palavra, ou seja, o homem somente se faz em totalidade, a

partir do momento em que tem assegurado estes quadros. No caso africano, mesmo

nos grupos nômades, a questão do espaço é significativa, pois o fato de deslocar-se

de um espaço a outro, não significa a perda da necessidade espacial: o próprio

espaço de locomoção, de deslocamento e a fixação temporária nas distintas regiões

57

Sobre o conceito de consciência coletiva é recomendado ler a obra As regras do método sociológico de Emile Durkheim.

72

são constitutivos de uma memória coletiva desses grupos. Com o conceito de

memória coletiva formulado, o objetivo era de fato entender a ideia, a validade de

uma memória individual.

Porém, Paul Ricouer não assume uma posição como a de Halbwachs de

defender uma memória coletiva com veemência. O filósofo tem uma posição de

reflexão entre a memória individual e a memória compartilhada. Outros autores,

entre eles Joel Candau (2011), são defensores da memória individual e constituem

os seus argumentos a partir dessa perspectiva. Assim se expressa Candau,

Ora, se as memórias individuais são dados (não se pode, por exemplo, registrar por escrito ou suporte magnético a maneira pela qual um indivíduo tenta verbalizar sua memória), a noção de memória compartilhada é uma inferência expressa por metáforas (memória coletiva, comum, social, familiar, histórica, pública), que na melhor das hipóteses darão conta de certos aspectos da realidade social ou cultural ou, na pior delas, serão simples flatus vocis sem nenhum fundamento empírico. Essas generalizações parecem, no entanto, inevitáveis se não se quer impedir a possibilidade de qualquer teoria antropológica. (CANDAU, 2011, p.29)

Dessa forma, segundo o autor em destaque, “a existência de atos de memória

coletiva não é suficiente para atestar a realidade de uma memória coletiva. Um

grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compartilhe as

mesmas representações do passado.” (2011, p. 35).

Para Ricouer, existe a individualidade do ponto de vista que pondera sobre

dados coletivos, ou seja, a lembrança ocupa características distintas para cada

pessoa que se lembra, mesmo mediadas pelas outras ou pelo meio. Ricouer nos diz

que esse ponto de vista muda segundo o lugar que uma pessoa ocupa e que, por

sua vez, esse lugar também muda segundo as relações que o indivíduo mantém

com o meio em que vive. Dessa maneira, o autor contribui com a questão ao dizer

que as memórias individuais predominam sobre as coletivas, mas as memórias

individuais estão inseridas na memória coletiva.

Aliás, essa é uma característica que nos ajuda a pensar um pouco a maneira

como o africano se relaciona com seu universo cultural. Na perspectiva africana, e

de acordo com Hampaté Bâ (2010), o indivíduo no contexto da comunidade somente

é importante e relevante se o que ele pensa e faz tem sentido também para o grupo:

o indivíduo é significativo desde que seja para o grupo.

De acordo com Munanga (2009), o conceito de memória coletiva de

Halbwachs parece estar mais próximo do conceito de memória encontrado na África

73

tradicional. No entanto, na leitura da obra de Amadou Hampaté Bâ (2003) e de

outros textos do autor, tais como Tradição Viva (2010), não fica evidenciada na

percepção dele uma análise sistematizada da memória na busca de uma verificação

se a mesma é individual ou coletiva, ou, como pensa Ricouer, se existe uma relação

de complementação entre elas. Em partes dos textos de Hampaté Bâ este se refere

à memória dos dois modos, seja individual ou coletiva, aparentemente como um

recurso explicativo sobre um aspecto da cultura. Porém, pelas características da

relação com o outro, pelo aspecto documental que se propõe os memorialistas

africanos, ou como eles são descritos na sociedade, nos parece que não exista

margem, ao menos no que se refere à história do grupo ou de uma pessoa, a uma

interpretação individual que altere o sentido daquela lembrança e o papel que ela

ocupa no contexto da sociedade. Sendo assim, ela então estaria mais próxima do

sentido de memória coletiva, pensada por Halbwachs. A própria sociedade africana

se assenta, segundo Ki Zerbo (2010), em uma base coletiva, algo que é reafirmado

por Bâ (2010), e nesde aspecto nos parece que a memória possa ser compreendida

também nesse contexto.

Além do mais, Munanga (2009, p.16) nos diz que “a história escrita ou oral

não pode ser feita sem a memória”, e esse é um fenômeno que se constrói

coletivamente. Desse modo, reafirma a relevância do trabalho de Halbwachs.

De acordo com o historiador e antropólogo belga Jan Vansina,

O historiador deve, portanto, aprender a trabalhar mais lentamente, refletir, para embrenhar-se numa representação coletiva, já que o corpus da tradição é a memória coletiva de uma sociedade que se explica a si mesma. Muitos estudiosos africanos, como Amadou Hampaté Bâ ou Boubou Hama muito eloquentemente têm expressado esse mesmo raciocínio. O historiador deve iniciar-se, primeiramente, nos modos de pensar da sociedade oral, antes de interpretar suas tradições. (2010, p.140).

Sendo assim, nos apropriaremos do conceito de memória coletiva para nos

aproximarmos de uma compreensão do universo cultural do oeste africano.

II.1 – A memória coletiva

A memória coletiva exposta por Halbwachs, embora, segundo Ricouer, seja

herdeira da perspectiva de consciência coletiva de Émile Durkheim, não nega

74

campos de decisão individual, não sobrepondo apenas valores externos ao indivíduo

como seus determinantes, já que, para Halbwachs, a mudança social é também

motivada pelos indivíduos, que com essa perspectiva também alteram os quadros

sociais existentes, estabelecendo com isso outros determinantes, o que significa

dizer que, se somos alterados pelo meio, sobre ele também promovemos mudanças,

a partir dos diferentes contatos que estabelecemos com um mesmo dado trazido

pela memória. O sujeito não está inerte diante da sua existência. Se assim

entendermos essa perspectiva, a proposta de memória coletiva estabelecida por

Halbwachs nos permite dialogar com a ideia de memória no oeste africano.

Para Halbwachs (2006, p.30), “as nossas lembranças são sempre coletivas,

pois jamais estamos sós”. De acordo com este autor, estamos sempre

acompanhados, independentemente da presença física do outro. O outro sempre é

presente pelas impressões que encontram semelhança em nossas lembranças, ou

mesmo em nossas significações. Essa análise encontra correspondência na cultura

africana, segundo Hampaté Bâ (2010), embora em uma perspectiva mais voltada a

um modo de percepção ontológica, que destaca o papel da ancestralidade no

conjunto das lembranças do sujeito. Percebemos então uma relação não somente

física com os dados da memória, mas também espiritual, expressa no conjunto

simbólico e ritual dessas culturas, no qual os antepassados se fazem presentes no

contexto da sociedade através da lembrança dos seus feitos.

Até o momento, ao tratar da memória estamos destacando um dos seus

aspectos que têm a ver com a lembrança ou rememoração. Na realidade é a

memória voltada a ela mesma, aquilo que nela esteja impresso, guardado. Para

Halbwachs, a memória não está somente no indivíduo, mas nas coisas, nos objetos,

e ao observá-los ou termos contato com eles nos lembramos, recordamos.

É preciso pensar que existe outro aspecto da memória que é o registro

intencional de algo, aspecto este refletido por Ricouer. É válido salientar uma

distinção entre memorização e rememoração. Para esse autor, a rememoração é o

retorno à consciência desperta de um acontecimento que se reconhece ter

acontecido antes do momento que esta declara tê-lo percebido, sentido. Desse

modo, diz: “a marca temporal do antes constitui, assim, o traço distintivo da

recordação, sob a dupla forma da evocação simples e do reconhecimento que

conclui o processo de recordação” (2007, p.73).

Sobre a memorização afirma que,

75

...em contrapartida, consiste em maneiras de aprender que encerram saberes, habilidades, poder-fazer, de tal modo que estes sejam fixados, que permaneçam disponíveis para uma efetuação, marcada do ponto de vista fenomenológico por um sentimento de facilidade, de desembaraço, de espontaneidade. (p.73).

Nesse contexto refletido por Ricouer, a perspectiva de memória de Halbwachs

está vinculada à ideia de rememoração. O que vemos hoje em um lugar, ou uma

coisa, baseia-se na realidade não somente nas impressões daquele momento, mas

em muitas impressões já vivenciadas e sentidas por outro sobre aquele mesmo local

ou coisa. “É como se estivéssemos diante de muitas testemunhas” (HALBWACHS,

2006, p.29).

Para Halbwachs, é como se no momento da lembrança existissem dois seres

no eu: um é o ser sensível, uma espécie de testemunha que observa, e o eu, que

realmente não viu, mas que talvez tenha visto outrora e que pode ter uma opinião

baseada no testemunho dos outros. De acordo com o autor, é necessário evocar em

nós mesmos lembranças, e assim juntá-las às lembranças exteriores para que se

torne uma consistente massa de lembranças. Esse aspecto é relevante, pois o

parece conferir legitimidade maior aos dados da memória. É nesse contexto que se

pode então estabelecer a credibilidade dos fatos rememorados.

Essas análises de Halbwachs coincidem em grande parte ao que é proposto

pela cultura tradicional africana. De acordo com Hampaté Bâ (2003; 2010), a cultura

do grupo é mantida na memória de seus membros, que ao interagirem e proporem

ritos comuns, renovam laços de parentesco, de proximidade e legitimam a memória

comum, constituindo assim a história.

Esse aspecto está relacionado à ideia ampla de comunidade ou coletividade.

Esse princípio de alteridade é condição fundamental para o estabelecimento da

memória e o seu reconhecimento como dado relevante na cultura africana. Se

Halbwachs, assim como Hampaté Bâ (2003), observa na coletividade o ponto de

apoio do pesquisador ao trabalhar com a memória, este então pode ser um

elemento de validade e relevância, assegurando, desse modo, a necessidade de

reconhecer no aspecto coletivo um aliado para a credibilidade da memória. Para os

dois autores o homem sempre está inserido em um grupo, ele nunca está sozinho,

mesmo que aparentemente esteja só.

76

Para Halbwachs, existe a necessidade social, a sociedade, para afirmar a

lembrança. Daí, não nos lembrarmos de nossa primeira infância na qual não se

estabelece uma consciência social. A partir dessa perspectiva, nota-se o quanto a

cultura tradicional do oeste africano preserva o convívio social, a comunidade. O fato

de estar em comunidade não retira o papel da subjetividade do indivíduo.

Diferentes impactos são vividos por membros de um mesmo grupo, baseados

nas posições que estes ocupam em um mesmo momento, assim como a sua

condição psíquica diante dos mesmos. O fato de participarem de um grupo não os

torna iguais em suas percepções, elas continuam particulares e individuais, mesmo

que o seu processamento não seja isolado e esteja o tempo todo mediado pelos

outros. De acordo com Halbwachs, a memória coletiva deve encontrar-se com a

memória individual. Nesse aspecto é como se a memória individual estivesse sob a

lógica da memória coletiva.

No processo de desenvolvimento da pessoa humana nota-se a sua gradativa

inserção no convívio social, o que a aprimora ao longo da vida, habilitando-a para o

exercício de suas funções junto à comunidade a que pertence. As crianças, à

medida que vão crescendo, são inseridas por esse processo gradativo na vida social

dos adultos, estabelecendo antes, entre si, pequenas estruturas sociais, de acordos

e negociações, que as preparam para a vida. Para isso, as crianças vivem situações

que as conduzem paulatinamente às decisões e compreensão do seu próprio

processo de desenvolvimento para as próximas etapas da vida. No dizer de

Halbwachs, “a sequência de pequenas provas que são como uma preparação para

vida do adulto” (2006, p.47).

Esse aspecto também é percebido na sociedade africana, vejamos um

exemplo na cultura do Mali quando Hampaté Bâ (2003) se refere às associações de

crianças e adolescentes estimuladas pelos pais, nas quais se aprendem as regras

do convívio social, assim como a diplomacia, o exercício da liderança, o

cumprimento das responsabilidades e a atenção ao grupo. Vejamos na narrativa de

Hampaté Bâ o relato de sua experiência sobre esse processo de formação.

Foi então que minha mãe mandou construir uma casa bem grande para mim e meus companheiros. Ali podíamos nos reunir, fazer as refeições e até dormir. Nós a chamávamos de walamarou, “o dormitório da associação”. Foi a partir deste momento que comecei mesmo a formar um círculo de pessoas a meu redor e a desempenhar meu papel de chefe da waaldé. (2003, p.174).

77

As waaldés58 são como centros, escolas de formação nas quais as crianças e

jovens são exercitadas na prática a desenvolverem a responsabilidade e o

comprometimento com o outro, com a comunidade. Desse modo, aquilo que a

tradição lhes proporciona é um encontro da teoria com a prática, do material com o

espiritual. Na waaldé os valores oriundos da herança dos antepassados são

reorganizados em um tempo presente, no qual as diferenças dos tempos, no que

concerne à atualidade e emergência de outras situações, proporcionam o cenário no

qual os velhos saberes podem ser reinventados. Essas situações proporcionam um

aprendizado que pode ser aprimorado e testado, conduzindo ao crescimento

humano e melhorando a vida em comunidade.

O desenvolvimento da pessoa vem acompanhado do ritmo dos grandes períodos de crescimento corporal, e que corresponde a um nível de iniciação. A iniciação promove a pessoa psíquica uma condição moral e mental que permite a realização perfeita e total do indivíduo. (HAMPATÉ BÂ, 1972, p.12)

59 ( tradução nossa ).

Os ritos de passagem que ocorrem na sociedade tradicional africana são

caminhos que preparam a pessoa nas diferentes fases de sua vida para o convívio

social, e as waaldés colaboram nesse processo.

A tradição considera que a vida de um homem normal comporta duas grandes fases: Uma ascendente até os sessenta e três anos. E, outra descendente até os 126 anos. Cada uma destas fases comporta três grandes sessões de vinte e um anos, composta de três períodos de sete anos. Cada sessão de vinte e um anos marca um degrau da iniciação, e cada período de sete anos marca uma etapa da evolução da pessoa humana. (HAMPATÉ BÂ, 1972, p.12-13).

60 ( tradução nossa ).

Outro desses ritos é o da circuncisão dos meninos61, que, de acordo com

Hampaté Bâ (2003), é um ritual que educa para a vida e define a passagem da vida

58

Associações de crianças e adolescentes 59

Le développement de la persone va s´accomplir au rythme des grandes périodes de la croissance du corps, dont chacune correspond à un degré d´initiation. L´initiation a pour but donner á la personne psychique une puissance morale et mentale qui conditionne et aide la réalisation parfaite et totale de l´individu. (HAMPATÉ BÂ,1972,p.12). 60 La tradition considere que l avie d´um homme normal comporte deux grandes phases: l ´une

ascendant, jusqu´à soixante trois ans, l´autre descendante, jusqu´à cent vingt six ans. Chacune des ces phases comporte trois grandes sections de vingt et um ans, composée de trois périodes se sept ans. Chaque sectin de vingt et um ans marque um degré dans l´initiation, et chaque période de sept ans marque um seuil dans l´évolution de la personne humaine.( HAMPATÉ BÂ,1972,p.12-13). 61

A circuncisão masculina na África do Oeste é oriunda tanto de práticas religiosas locais, advindas das chamadas religiões nativas, como das tradições judaicas, como no caso da etnia ibô da Nigéria, ou de influências do Islã, algo bastante presente na cultura de Amadou Hampaté Bâ. Na obra Amkoullel, o menino fula, o autor descreve de modo mais detalhado esse universo. É válido dizer que

78

de criança para a vida adulta. Esses rituais normalmente são coletivos e marcam de

maneira especial o grupo que deles participa com experiências individuais, entre as

quais o medo, o espanto, a curiosidade, a coragem, a resistência à dor, enfim, uma

série de sensações vividas individualmente, mas que são celebradas em conjunto,

fazendo parte da vida daquelas pessoas, como uma memória comum, coletiva, na

qual todos os componentes são relevantes, as cores, os cheiros, os sabores, tudo é

componente a ser lembrado. Esse rito coletivo gera para o grupo que dele participa

um elo de proximidade e respeito que será levado pelo resto da vida. Este rito vivido

coletivamente será sempre lembrado e os elos entre essas pessoas ficarão

fortalecidos. “Uma quinzena de meninos do bairro deviam ser circuncidados ao

mesmo tempo. Como de costume, a cerimônia seria precedida por uma grande festa

que duraria a noite inteira, do pôr-do-sol ao amanhecer” (HAMPATÉ BÂ, 2003,

p.192).

A memória, nesse contexto, é quase uma fotografia para cada um dos

indivíduos que coletivamente viveram uma mesma experiência. Amadou Hampaté

Bâ dirá que “quando se lembra, não são apenas palavras que são recordadas, mas

cenas inteiras são visualizadas. Pode-se ver cenas passadas como em uma tela de

cinema. Para descrever uma cena só preciso revivê-la” (2003,p.13).

Tudo é motivo para que a lembrança aconteça, e esse tudo significa pensar

todos os envolvidos, todas as partes e os espaços em que os fatos ocorreram e a

maneira como são alçados a memória. Essa experiência possibilita que contextos

inteiros sejam retomados. A memória ligada ao espaço também é alvo do interesse

e reflexão de Halbwachs. O espaço conserva em si muitas lembranças, que se

registram em cada objeto em particular, e até mesmo “as pedras falam”.

Essa mesma memória contida no espaço é o que Hampaté Bâ (2003) chama

a atenção, pois todas as experiências vividas pelo grupo, os locais em que elas

aconteceram, são passíveis da rememoração, tão logo os espaços ainda existam,

mesmo que modificados, e as pessoas também existam. Essa é uma característica

também relevante no estudo da memória coletiva de Halbwachs. Por isso, o cuidado

pela preservação, no universo da cultura tradicional, dos espaços, das pessoas.

segundo a crença islâmica a circuncisão não é obrigatória para os homens, e muito menos para as mulheres. No entanto, essa prática tornou-se comum em alguns povos islamizados, talvez por uma herança do judaísmo. Já a circuncisão feminina é uma prática de algumas culturas, africanas ou não, e que muitas vezes é atribuída erroneamente ao Islã. Na realidade esses povos adotaram o Islã enquanto religião, mas não abandonaram algumas de suas práticas originais.

79

Essas memórias surgidas desses encontros com os lugares e com as

pessoas nunca são solitárias: como nos diz Halbwachs, elas sempre estarão

permeadas pelos outros e pelo impacto que os outros deixaram no lugar e também

entre as próprias pessoas.

Uma experiência sobre a importância do espaço encontramos com as

comunidades remanescentes de quilombo no Brasil. O espaço territorial oriundo dos

antigos povoadores é uma condição fundamental para o grupo e afirma uma

identidade comum, a partir de uma memória coletiva.

O legado dos líderes quilombolas e da comunidade de quilombos é a politização, expressa na coletividade, compreendendo crianças, jovens e idosos, e que se manifesta no enfrentamento e na efetiva participação política no sentido de legitimar e garantir o direito constitucional da titulação da terra de quilombos, cuja posse é, desde a origem, símbolo de resistência. (AMÉRICO, 2013, p.24).

No continente africano, não sendo diferente no oeste da África, essa ligação

com o espaço territorial é marcante na constituição dos grupos étnicos, já que o

espaço territorial delimitado pelas ex-colônias africanas na maioria das vezes não

corresponde ao espaço anteriormente ocupado pelos grupos étnicos, que mantêm

em suas memórias a lembrança do espaço visto ou contado pelos seus ancestrais,

espaços esses que possuíam configurações territoriais bastante distintas das

encontradas hoje em dia. Essa percepção é relatada por Hampaté Bâ (2003) ao

demonstrar o esforço que o seu próprio grupo étnico realizava para manter as

relações afetivas entre seus membros a partir do espaço territorial que ocupavam.

As pessoas em sua individualidade tinham a partir do espaço comum o alçar

das memórias, que, apesar de ditas individuais, são alçadas por um dado coletivo

que envolve a todos, embora de modos diferentes, e é esse conjunto de lembranças

que auxilia na constituição da memória.

Desse modo, para Halbwachs (2006, p.69), “a memória individual é um ponto

de vista da memória coletiva”, mas o que se define de fato é a memória coletiva,

capaz de agregar todas as lembranças e tornar-se de fato uma memória.

No entanto, para refletirmos melhor esses aspectos e entender a relação

entre memória e sociedade devemos recorrer também à história. E nesse contexto é

fundamental que saibamos perceber a relação da memória com a história na

perspectiva africana. Sem o entendimento dessa questão torna-se quase impossível

estabelecer-se um diálogo com a África. Ao buscar-se compreender a África do

80

oeste, em qualquer dos seus aspectos, torna-se necessário dedicar-se ao

entendimento de sua tradição. A história da África segundo Ki Zerbo (2010) somente

poderá ser escrita quando a tradição for aceita, e nesse conjunto o diálogo entre a

memória e a história é essencial.

II.2 – Memória e História

Ao longo da história da historiografia a memória sempre apareceu como um

ponto delicado, já que sempre foi colocada com certa cautela, principalmente quanto

à legitimidade e à segurança das suas bases. Os estudos sobre a história oral, que

têm na memória uma fonte necessária, já que fatos são rememorados por sujeitos

que os relatam, fizeram com que a temática da memória fosse destacada. No

contexto dos estudos sobre a África, em especial no que se refere a sua história,

torna-se essencial o reconhecimento da memória como fonte.

Na história oral, o objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória dos informantes; a instância da memória passa, necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando desdobramentos teóricos e metodológicos importantes... (AMADO; FERREIRA, 2006, p.15).

A história oral tem tido uma projeção cada vez mais acentuada nas últimas

décadas, isso se dá principalmente pelo encontro com grupos humanos, portadores

de outros valores civilizatórios, entre eles a maneira de se comunicar e registrar os

fatos acontecidos. A história oral tem como desafio elaborar uma metodologia de

apreensão desses diferentes falares, sem categorizá-los pelos próprios valores da

cultura letrada. Nesse sentido, cabe ao historiador procurar entender as diferentes

culturas que irá investigar. É assim que o diálogo com outras áreas do conhecimento

desenvolvidas no ocidente tem auxiliado no aperfeiçoamento metodológico para o

cumprimento mais apropriado das pesquisas.

Atualmente, tem-se em boa medida o consenso de que a história de

determinados grupos não pode ser construída esquecendo-se ou evitando este traço

importante do ser humano. Outrora, tal característica civilizatória era tida como

marca de inferioridade, de menor capacidade intelectual, o que serviu para legitimar

ações contra esses povos. No entanto, ao aproximar-se a história enquanto ciência

81

dessas diferentes realidades culturais tornam-se cada vez mais alargadas as

possibilidades da historiografia universal. Ao se estar mais disponível para o outro,

abre-se a possibilidade do diálogo, e com isso, o entendimento e o reconhecimento

mútuos.

A memória é cultivada na África tanto no contexto da rememoração como da

memorização. A rememoração como nos diz Ricouer está de, acordo com Bâ

(2003), no universo contido na tradição e a memorização está também associada a

esse universo, mas, de modo especial, encontra-se associada ao mundo religioso,

em grande parte ligada ao islã. Na religião islâmica é comum que os jovens logo

cedo sejam iniciados na memorização do Alcorão.

Um aspecto relevante da questão da memória na tradição do oeste africano é

a não separação da memória com a história. Antes, porém, tal como Ki Zerbo (2010)

nos diz, a tradição oral, da qual a memória é componente importante, é uma das

bases da história africana, juntamente com a arqueologia e a escrita, que contam

ainda com o apoio da linguística e da antropologia como ciências investigativas.

Vejamos,

Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem-se testemunhas vivas e ativas desse fato. Ora, todo africano é, até certo ponto, um contador de histórias. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.208).

Neste sentido, a memória então é parte constitutiva da história, ou seja, a

memória também é história. No entanto, aqui há uma distinção da percepção de

Halbwachs em relação à memória, já que para esse autor, a história somente

começa quando acaba a memória, pois esta trata de aspectos vividos, no qual

alguns membros ainda vivos podem relembrar um passado e relatá-lo de acordo

coma sua experiência diante desses acontecimentos. A história, por sua vez, apenas

inicia-se quando não existe mais como acionar essas lembranças, cabendo a ela

então recolher as fontes possíveis para fazer uma descrição do passado, elaborando

uma escrita do passado.

82

Essa representação escrita do passado nunca será de fato o passado: este já

ocorreu, e o que temos é uma representação possível desse passado. Mas, de

acordo com Certeau (1982), essa representação criada nunca está totalmente isenta

de uma intenção determinada pela condição de um determinado momento. Aqui nos

deparamos com o mesmo problema que havíamos discutido em relação à memória

e sua validade para a história. Portanto, nota-se que o trabalho do historiador

sempre será o de permitir que as fontes sejam reveladas e interpretá-las dentro de

suas possibilidades.

Para Certeau (1982), o trabalho do historiador é construir, a partir das fontes

já passadas, dos documentos possíveis, uma descrição do passado. Contudo, essa

descrição nunca será o passado reconstituído, pois será uma possibilidade, vista de

uma perspectiva, que é limitada pelas próprias condições do pesquisador e das

fontes.

Esse é o percurso historiográfico, a escrita da história, a qual Certeau,

denomina trabalho sobre o morto. Pois o que existe por parte do historiador é uma

pesquisa sobre um fato já acontecido, impossível de ser reconstituído. Portanto,

esse sempre será um dado aproximado. No entanto, podemos pensar isso quando

se localizam as fontes, os documentos, as fotografias. Mas será que no caso

africano, esse percurso se dá da mesma forma? Essa é uma questão delicada, pois

mesmo as pessoas que se lembram, a principal fonte da memória, têm suas

lembranças dadas em um presente, pois temporalmente elas não estão no passado,

além do mais, existe o fato normalmente aceito de que a memória seja seletiva.

No caso africano, essa relação com a memória, além do aspecto coletivo,

insere-se no que se chama, segundo Hampaté Bâ (2010), uma tradição viva, pois ao

estabelecer-se a transmissão da lembrança ao longo das gerações, acredita-se - e,

aliás, toda a sociedade tradicional se baseia neste fato - que os dados, as fontes não

podem ser modificadas, já que existe uma ligação ética e metafísica com a palavra,

e o seu mecanismo da transmissão. Desse modo, tem-se na memória um registro

confiável, que no caso do oeste africano é muito mais confiável do que qualquer

documento escrito.

Tudo que uma sociedade considera importante para o perfeito funcionamento de suas instituições, para uma correta compreensão dos vários status sociais e seus respectivos papéis, para os direitos e obrigações de cada um, tudo é cuidadosamente transmitido. Numa sociedade oral isso é feito pela tradição, enquanto numa sociedade que

83

adota a escrita, somente as memórias menos importantes são deixadas a tradição. É esse fato que levou durante muito tempo os historiadores, que vinham de sociedades letradas, a acreditar erroneamente que as tradições eram um tipo de conto de fadas, canção de ninar ou brincadeira de criança. (VANSINA, 2010, p.146).

A memória, na perspectiva de Amadou Hampaté Bâ, é a própria história, por

isso na tradição africana relatada por Hampaté Bâ (2003; 2010) esses termos

chegam a confundir-se. Nessa perspectiva, não existe uma ruptura ou linha que de

fato afirme o que é história ou o que é memória. Essa noção é relevante para que se

compreenda o universo de práticas e saberes da África tradicional.

É importante retomar a reflexão de Joseph Ki Zerbo (2010) que, ao ajudar a

estabelecer um método de estudos para a história da África, indica a tradição oral

como uma das referências, e nesta a memória. Em nosso caso, uma vez que a

pesquisa se dá a partir da análise de obras de Amadou Hampaté Bâ (2003; 2010) e

não como uma pesquisa de campo, in loco - o que talvez possibilitasse uma

compreensão empírica da cultura que estamos tratando -, parece-nos ser mais

coerente nos estabelecermos no método de Joseph Ki Zerbo, já que o mesmo não

fere tampouco desconstrói o modelo próprio da tradição oral, mas ao mesmo tempo

subsidia o investigador com outras técnicas e métodos teóricos que o auxiliem na

interpretação dos dados.

O método investigativo sobre a África vai se consolidando e assim concebe

um caminho para a escrita da história da África, uma historiografia que dê conta de

interpretar do modo mais coerente possível o registro cultural que se encontra no

continente africano. A oralidade irá compor de modo especial este método

investigativo e a palavra falada será então estudada com atenção, e isso dentro do

seu universo.

Na concepção africana, segundo Hampaté Bâ (2010), não se pode mentir, os

vínculos estabelecidos com a comunidade abrangem não somente a relação com os

viventes, mas também com aqueles que já se foram. Assim nos diz: “Para eles, a

mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual” (p.176).

Dessa maneira, um elo é estabelecido, e a vida dos falecidos é manifestada,

pela fidelidade as suas lembranças, a sua palavra. Desse modo, no contexto cultural

africano, a palavra cria ou mata, caso seja proferida de maneira falsa.

84

II.3 – Memória e Oralidade

Os historiadores culturais têm procurado, segundo Pesavento (2004), maturar

e aprimorar os mecanismos investigativos e metodológicos da história, com o intuito

de serem mais coerentes quanto possível com a pesquisa sobre outros povos. A

historiografia, ao reconhecer outras experiências civilizatórias, tem contribuído

significativamente para a reordenação dos diálogos mundiais entre os diferentes

povos. Essa função social demonstra um comprometimento científico também por

parte da história com a correção de erros do passado, que somente fizeram alargar

as distâncias entre os povos. Infelizmente, de acordo com Ki Zerbo (2010), no caso

africano esses erros ocasionaram anos de atraso para as pesquisas. E mesmo o

interesse para as temáticas relacionadas ao continente africano ficou em segundo

plano, quando se pensava o número de pesquisas em história sobre outros lugares

do mundo.

O continente africano continuou a ser descrito imerso na obscuridade, no

exotismo e no primitivismo. Portanto, tornar significativo o papel da memória na

constituição da tradição oral e, consequentemente, na estruturação da história

africana possibilitou a ampliação do olhar sobre o continente, e, nesse caso, exigiu a

alteração do modo como se investiga a África, fazendo revelar o quanto esse

continente ainda é desconhecido.

De acordo com Hampaté Bâ (2010), o entendimento das tradições africanas é

primordial, seja no contexto social, econômico ou cultural, já que a partir dele é que

comunidade se organiza. A educação também se baseia nos valores oriundos da

tradição, ou seja, da tradição oral. É com o entendimento da tradição que se pode

aproximar do continente africano com a atenção necessária para não sufocar as

expressões culturais locais e as formas de gerenciamento da sociedade comunitária,

perfil este que caracteriza os grupos que preservam a tradição.

A memória cultivada pelos tradicionalistas é, segundo Hampaté Bâ (2003), a

narrativa profunda da África, do modo de ser do africano e de uma maneira de se

estar no mundo. Essa memória se expressa na oralidade, sendo que a oralidade é

tudo, é, na perspectiva dos tradicionalistas africanos, a própria vida, a existência

como um todo. Por isso, Chartier (1999, p.20) diz: “propomos que se tome o

conceito de representação num sentido mais particular e historicamente

determinado”. É dessa maneira que o contato com esse modo de ser define uma

85

representação que a tradição oral procura revelar e perpetuar através da educação.

Esta é a subjetividade que Castiano propõe, sendo, pois, a oralidade, de acordo com

Hampaté Bâ, o caminho mais íntimo que revela a África e sua gente.

A partir da oralidade ou tradição oral, temos a configuração social dada, que

permite ao pesquisador reconhecer através dos traços dessa cultura tanto os

caminhos percorridos, como também perceber os desafios que se apresentam na

consolidação de uma representação. Desde o período da colonização a consciência

histórica62 de um povo baseada em suas formas de vida era alvo de ataques dos

dominadores, pois, de acordo com Munanga (2009), ela estabelece a coesão na

comunidade a ser dominada e fortalece a noção de pertencimento. Nessa

perspectiva, na África do oeste foi possível verificar o esforço realizado pelo

dominador para coibir a educação oriunda da tradição oral, pois ela fortalecia a

consciência histórica do grupo.

No continente africano, durante o período colonial, as escolas ocidentais

cumpriam um papel auxiliar na tentativa de impor a cultura europeia em detrimento

da cultura local.

A maior parte do ensino – como em todas as escolas primárias nativas locais – consistia em nos fazer aprender a ler, escrever e, sobretudo a falar corretamente o francês. O ensino de matemática elementar limitava-se às quatro operações básicas: adição, subtração, multiplicação e divisão. Depois de um ano ou dois, os alunos que haviam conseguido um número de pontos suficiente eram enviados a uma escola regional onde se preparavam para as provas do certificado de estudos primários nativos, necessário para frequentar a escola profissional de Bamako. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.231).

Esse é um exemplo do percurso que a criança e o adolescente africano

deveriam percorrer. Nesse período, a criança era sucessivamente afastada de sua

cultura. De acordo com Hampaté Bâ, até mesmo o uso das línguas locais era

coibido. Munanga (2009, p.35) diz que “é através da educação que a herança social

de um povo é legada às gerações futuras e inscrita na história. Privadas da escola

tradicional, proibida e combatida para os filhos negros a única possibilidade é o

aprendizado do colonizador”. A criança e o jovem nessa condição eram, segundo

Munanga e Hampaté Bâ, conduzidas a aceitar uma memória imposta pelo

62

Para Munanga, a consciência histórica, refere-se à apreensão por parte das pessoas da história comum, da história do grupo. Dessa maneira, define-se para o indivíduo a condição de pertença ao grupo e o comprometimento em cuidar desta memória comum.

86

colonizador e que não faz referência a sua própria história e o local que habitam.

Eram, desse modo, levadas a aceitar a representação do dominador.

Segundo Munanga, ao analisar essa questão educacional na África e também

a comparando ao processo escravista no Brasil, é possível perceber que “... o

afastamento e a destruição da consciência histórica eram uma das estratégias

utilizadas pela escravidão e pela colonização para destruir a memória coletiva dos

escravizados e colonizados.” (2009, p.12).

Para Munanga, essa consciência histórica é mais sólida nas comunidades de

tradição oral, pois se preserva em muitas das narrativas dos memorialistas, que, ao

transmitirem os mitos fundantes da comunidade, dão continuidade a um processo

ancestral, portanto histórico.

A África tem sido despertada para sua história, uma história contada por ela

mesma, tendo na tradição oral os principais elementos que caracterizam um modo

de ser africano que propicia uma representação mais próxima de sua identidade

cultural. É assim que as representações do continente para si mesmo e para o outro

têm sido alteradas. O reconhecimento dos valores culturais africanos pelos próprios

africanos tornou-se o diferencial para muitos países do continente em seu processo

de independência e da sua autonomia pós-colonial. Alguns presidentes dos novos

países africanos procuraram impulsionar esses novos estados a partir dessa cultura

original do continente. Esse foi o caso, por exemplo, do presidente Sékou Touré da

Guiné, que em seu governo fez questão de apresentar a imagem do país, interna e

externamente, a partir de suas culturas tradicionais, todas elas amparadas na

oralidade.

É sob o comando desse presidente que começaram a eclodir na Guiné os

chamados Ballets africanos63, que levavam para os palcos nacionais e internacionais

as epopeias históricas narradas nas aldeias de toda a Guiné. É com essa

experiência que o mundo começou a ter contato com um universo de informações

63

Os ballets africanos, a partir do exemplo da Guiné, passaram ao longo dos anos a ser um canal relevante de visibilidade das culturas dos países africanos no mundo. Através dos ballets a tradição oral, a história, a música, a dança e o canto oriundos da África, e normalmente conhecidos apenas em suas comunidades, puderam ser apreciados e compartilhados. Um exemplo desse fenômeno foi a experiência do percussionista guineano Mamady Keita (1953 - ), que através do ballet da Guiné conheceu a Europa, e hoje mantém uma rede de escolas de percussão tradicional malinke (grupo étnico), espalhada por vários países e continentes. Ver http://www.mamadykeita.info/ e http://www.ttmusa.org/

87

outrora desconhecido. É assim que histórias como a de Soudjiata Keyta64 líder do

Império mandinga em territórios que hoje abrangem o Mali, o Senegal e a Guiné

puderam ser conhecidas e popularizadas, sendo transmitidas, ao modo tradicional

dos mestres da palavra, com cantos e danças, tornando-se uma comunicação viva,

típica da cultura oral.

A representação africana mediada pela tradição oral permitiu que a memória

coletiva de africanos e afrodescendentes em todo o mundo pudesse ser

reconstituída, ao colaborar de modo significativo com a identificação cultural dessas

pessoas em torno de símbolos familiares que possibilitaram uma reconstrução de

identidade, na qual os valores culturais do ocidente não seriam apenas sobrepostos

ao indivíduo, algo que facilita a constituição de uma autoestima negativa. Houve, de

acordo com Munanga (2010), um enfrentamento dessa condição imposta pelo

dominador.

Essa resistência tem base fundamental na memória e oralidade, pois foi

graças a esse legado que foi possível manter e estabelecer a transmissão de

símbolos que identificavam as pessoas em torno de valores comuns. Isso ocorre

tanto na África como na diáspora, não sendo diferente no Brasil. Foi a partir dessa

identidade reconstruída que se consolida o processo histórico para os africanos na

contemporaneidade. De acordo com Vansina (2010), a memória africana, de modo

geral, surpreende pelo seu alcance e espanta pelo seu registro detalhista. A tradição

oral tem na memória o aliado indispensável para sua continuidade.

Vejamos um exemplo dessa memória através de Hampaté Bâ e de como as

pessoas reagiram quando se deparam com o manuscrito do livro Amkoullel, o

menino fula.

Muitos amigos que leram o manuscrito mostraram-se surpresos. Como é que a memória de um homem de mais de oitenta anos é capaz de reconstituir tantas coisas, e principalmente, com tal minúcia de detalhes? É que a memória das pessoas da minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas. Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta atenção, que todo acontecimento se inscrevia em nossa memória como em cera virgem. Tudo lá estava nos menores detalhes: o cenário, as palavras, os personagens e até suas roupas. (2003, p.13).

64

(1190 - 1255) - A história do Rei Leão, como também era conhecido, é um dos grandes marcos das narrativas que contam a saga de algumas etnias e civilizações da costa ocidental africana.

88

A característica da memória africana descrita por Hampaté Bâ é algo peculiar

aos povos do oeste africano, que na sua maioria são considerados povos da

palavra. Mesmo que a escrita exista esse recurso não é sobreposto à condição da

palavra falada. A palavra escrita para esses povos não dá conta de tudo o que a

palavra falada representa para eles.

De acordo com Vansina (2010), o pesquisador que trabalha com os povos de

tradição oral precisa compreender a natureza discursiva presente na oralidade, que

é diferente de uma civilização de tradição escrita. Essa condição é fundamental para

que se consiga apreender os modos e símbolos contidos nessa forma de

organização social. Essa é uma preocupação constante em Hampaté Bâ (2003)

quando descreve aspectos da tradição oral, que, se não forem devidamente

compreendidos inicialmente, torna o desenrolar desse encontro entre a civilização

oral e escrita praticamente impossível; é como se fossem mundos completamente

distantes.

Segundo Vansina, “uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como

um meio de comunicação diária, mas também como um meio de preservação da

sabedoria dos ancestrais, venerada no que poderíamos chamar elocuções-chave,

isto é, a tradição oral.” (p.139-140). Pode-se perceber o quanto o valor da

ancestralidade é presente e necessário para os povos de tradição oral. Esse é outro

aspecto relevante da cultura, a questão da ancestralidade. De acordo com Leite

(2008), o ancestre está ligado ao mundo dos que não são mais visíveis fisicamente

no plano material, mas que nele exercem sua influência ao serem lembrados, e

assim, fazem parte da memória da comunidade.

Desse modo Vansina nos diz,

A tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas. Isso, pelo menos, é o que prevalece na maioria das civilizações africanas. (2010, p.139-140).

Nessa perspectiva, nota-se que existe o desafio do outro de compreendê-lo

em suas características, em seus modos, em seu contexto civilizacional. A

representação do ocidente, no entanto, fez por impor um modo considerado válido

para significar as coisas, algo que a representação africana, principalmente aquela

oriunda das tradições orais, aparece como diferente, como um contraponto ao modo

de olhar estabelecido. Por isso, enquanto essas diferenças de olhar não forem

89

compreendidas, torna-se praticamente impossível desenvolver-se a contento uma

pesquisa dos povos e culturas africanas em suas especificidades e singularidades.

Um dos aspectos que Hampaté Bâ percebe como sendo talvez de maior dificuldade

de aceitação e compreensão é a ausência de distinção entre espiritualidade e

materialidade presentes na tradição. Para o autor, estas características não são

simples de serem explicadas na lógica de pensamento ocidental, tampouco são

aceitas com facilidade. Deste modo relata que,

Outra coisa que às vezes incomoda os ocidentais nas histórias africanas é a frequente intervenção de sonhos premonitórios, previsões e outros fenômenos do gênero. Mas a vida africana é entremeada deste tipo de acontecimentos que, para nós, são parte do dia-a-dia e não nos surpreendem de maneira alguma. Antigamente, não era raro ver um homem chegar a pé de uma aldeia distante apenas para trazer a alguém um aviso ou instruções a seu respeito que havia recebido em sonhos. Feito isso, simplesmente retornava, como um carteiro que tivesse vindo entregar uma carta ao destinatário. Não seria honesto de minha parte deixar de mencionar este tipo de fenômeno no decorrer da história, porque faziam e sem dúvida, em certa medida ainda fazem parte de nossa realidade vivida. (2003, p.15).

Nesse sentido, Hampaté Bâ ainda nos diz de distinções no próprio conceito

de culturas africanas, distinções estas que especificam particularidades étnicas e

civilizacionais no interior do próprio continente. Porém, apresenta os pontos de

proximidade entre estas culturas, e aqui se percebe em que momento o autor então

pode reconhecer certa unidade africana, e em que aspectos culturais ele a coloca.

Quando se fala da “tradição africana”, nunca se deve generalizar. Não há uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana válida para todas as regiões e etnias. Claro, existem grandes constantes (a presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os mundos visível e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido comunitário, o respeito religioso pela mãe etc.), mas também há numerosas diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes sociais delas resultantes variam de uma região a outra, de uma etnia a outra; às vezes, de aldeia para aldeia. (2003, p.14).

Hampaté Bâ é um pesquisador, um conhecedor de muitas tradições do oeste

africano; o contato com diferentes culturas dessa região desde a sua mais tenra

idade permitiu-lhe tomar contato com modos de vida, idiomas, ritos e símbolos que o

ajudaram a fazer uma leitura mais aprimorada dos pontos de semelhança e distinção

entre eles. No entanto, Hampaté Bâ faz questão de dimensionar esse conhecimento

sobre a África, evitando, desse modo, generalizações ou mesmo tecer

considerações sobre culturas que não conheceu no continente africano. Nesse

90

sentido, procura localizar a sua análise, demonstrando exatamente o seu lugar de

pertença e das culturas que ele descreve.

As tradições a que me refiro nesta história são, de maneira geral, as da savana africana que se estende de leste a oeste ao sul do Saara (território que antigamente era chamado Bafur), e particularmente as do Mali, na área dos fula-tucolor e bambara onde vivi. (2003, p.14).

De acordo com Vansina (2010, p.140), “a oralidade é uma atitude diante da

realidade e não a ausência de uma habilidade”. A oralidade determina um modo de

ser, de pensar, de agir, ou seja, todo um modo de educar e aprender estão

configurados no universo tradicional. Sendo assim, o cuidado com a sua

preservação, com as suas características é para Hampaté Bâ (2003) de fundamental

necessidade para os africanos no entendimento de si mesmos e no estabelecimento

de sua representação, já que dela se origina o sentido de vida. Assim,

A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recriação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.169).

De acordo com Hampaté Bâ, a visão de unidade e inteireza que o africano

tradicionalista tem da vida e a interação entre os seres é determinante para um

modo de ser, no qual a sacralidade da palavra é preservada. A palavra falada é,

segundo a concepção da tradição oral, o elemento capaz de aproximar ou afastar os

seres no mundo, desse modo, está revestida de respeito e responsabilidade, não

podendo ser utilizada em vão. Por isso, os mestres da palavra, os memorialistas ou

tradicionalistas são respeitados na África.

Segundo Hampaté Bâ (2010, p.178),

Se o tradicionalista ou conhecedor é tão respeitado na África, é porque ele se respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem bem equilibrado, mestre das forças que nele habitam. Ao seu redor as forças se ordenam e as perturbações se aquietam.

91

A educação que está ligada ao universo da tradição oral busca uma educação

para a vida, para a totalidade das relações e interações humanas, assim como para

o autocontrole. A fala, ao ser portadora do poder da criação, deve ser observada,

medida, pois é a expressão do interior da pessoa. Diz-nos Hampaté Bâ: “falar pouco

é sinal de boa educação e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a

manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as forças

que nele existem...” (2010, p.178).

No entanto, aqui é importante compreender que no universo da cultura

africana de tradição oral, especialmente no Mali, existem diferentes funções sociais

e pessoas que se utilizam da palavra. Os que seguem um rígido processo de

iniciação e que são comprometidos com a verdade são os chamados doma, ou seja,

tradicionalistas ou memorialistas. Nestes, a memória é um documento válido e

verdadeiro. Já para os dieli ou griot, a disciplina da verdade não existe. De acordo

com Hampaté Bâ (2010), a tradição lhes concede o direito de travestir ou embelezar

os fatos, mesmo que de modo grosseiro, pois o objetivo é apenas divertir os

ouvintes.

No entanto, nos diz Hampaté Bâ,

Ao contrário, nenhum africano de formação tradicionalista sequer sonharia em colocar em dúvida a veracidade da fala de um tradicionalista, doma, especialmente quando se trata da transmissão dos conhecimentos herdados da cadeia dos ancestrais. (2010, p.179-180).

Somente nesta distinção entre doma e dieli, pode-se perceber o quanto o

contato com o próprio universo africano a partir dos seus locutores é necessário.

Esse tipo de distinção não seria percebido ao olhar externo, pois aparentemente

eles não se distinguem, pois tanto o doma quanto o dieli, estão no universo da

tradição, e têm na palavra o seu meio de interação social. Ambos ocupam um papel

cultural e educativo na sociedade do oeste africano, porém com características

próprias. O valor do doma evoca também um saber metafísico, além do saber

histórico, o que também já é um desafio ao pesquisador ocidental, que em sua

formação racionalista dificilmente colocaria esses conhecimentos no mesmo nível de

relevância e significação.

O doma, ao também ser iniciado no universo da espiritualidade e da

ancestralidade, traz consigo uma carga de responsabilidades distintas; é sobre ele

que repousam os valores mais profundos e longínquos da sua cultura, e é sobre ele

92

que está a responsabilidade da herança e continuidade do saber, até mesmo sobre

a função e o papel do dieli. Portanto, o doma é, ao que nos parece, o guardião por

excelência da tradição.

Deste modo, Hampaté Bâ nos diz que,

Antes de falar, o Doma, por deferência, dirige-se às almas dos antepassados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a língua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memória, que o levaria a alguma omissão. (2010, p.180).

Vejamos um exemplo oferecido por Hampaté Bâ (2010) da maneira como um

doma inicia uma história ou uma aula. Neste caso, ele está se referindo a Danfo

Siné, um grande sábio da etnia bambara, que Hampaté Bâ conheceu na infância.

“Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké”!

Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões, Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!

Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou. Na trombeta do Komo,

Vindo sobre o Jeliba (Níger)! Acercai-vos e escutai-me.

Em concordância com vossos dizeres Vou contar aos meus ouvintes Como as coisas aconteceram,

Desde vós, no passado, até nós no presente, Para que as palavras sejam preciosamente guardadas

E fielmente transmitidas Aos homens de amanhã Que serão nossos filhos

E os filhos dos nossos filhos. Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!

Guiai o brotar das minhas palavras A fim de que possam seguir e respeitar

Sua ordem natural.” (2010, p.180).

De acordo com o que vimos refletindo sobre a questão da oralidade no

universo da tradição africana, abre-se um desafio ao pesquisador, o de tentar evitar

o máximo possível atribuir categorias pré-definidas de análise a essa prática cultural.

Porém, essa busca não é simples, e por isso precisa ser amparada por critérios e

métodos que assegurem a coerência investigativa e que a descrição dos fenômenos

observados possam ser compatíveis ao dado observado.

Na explicação que Hampaté Bâ (2003) apresenta sobre a sua própria obra e

que reflete o seu cuidado para que a mesma possa ser compreendida em outras

culturas, nós podemos perceber algumas pistas que fazem revelar a necessidade de

talvez voltarmos um pouco aos primórdios da construção da história do ocidente, em

93

que os mitos de origem das narrativas religiosas começam a fazer parte de uma

narrativa também histórica, sendo aceitos sem maiores dificuldades.

Essa reflexão nos ajuda a perceber um dado comum das civilizações e

culturas, em que o elemento místico-mítico se faz presente, constituindo-se em parte

da história dos povos. Essas características não são absurdas e tampouco

estranhas até o momento em que a razão passa a ser determinante da explicação

da origem dos povos. Essa crise de entendimento e percepção do ser humano que

fez aflorar determinadas características em detrimento de outras, fez com que na

Europa, primeiramente, se fizessem por gradativamente minimizar alguns aspectos

da percepção do homem no mundo, que estivessem ligados a outras dimensões

humanas, entre elas a espiritualidade, em favor de uma preferência pela razão.

No caso africano, esse olhar fragmentado do homem não é comum, e

percebe-se isto em todos os aspectos da vida. Por isso, Hampaté Bâ (2003) fala que

antigamente era comum uma pessoa ir procurar outra, motivada por um sonho. No

mínimo tal comportamento visto ao olhar racionalista pode ser percebido como

ingênuo. No entanto, tal a força das representações do ocidente, mesmo na África

de hoje, segundo Hampaté Bâ, este comportamento vem diminuindo, revelando que

tal aspecto já não é tão comum, o que pode significar que também essas culturas

africanas podem estar recebendo as influências, cada vez maiores, da lógica

ocidental que se impõe sobre o mundo, revelando a característica hegemônica que o

mundo ocidental ainda mantém com forte poder de sedução e persuasão.

Outro aspecto do qual seria relevante darmos conta antes de avançarmos é o

fato de um memorialista estar escrevendo. Como um homem da tradição oral,

transfere os saberes para uma forma escrita? Esse fenômeno é relevante e curioso,

pois Hampaté Bâ (2003) descreve parcialmente essa dificuldade de conciliar e

dialogar essas formas de transmissão do saber. Nesse sentido, vale lembrar a

referência que Hampaté Bâ (1972) faz ao seu grande mestre da tradição e membro

da confraria islâmica tidjaniya65 Tierno Bokar Saalif Tall, que dizia que “o saber é

uma coisa e que a escrita é outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber

em si.”.

Esse desafio tem sido estudado tanto por africanistas quanto por

pesquisadores das culturas orais, que dizem que quando esse memorialista escreve,

65

Ver os endereços sobre a Tidjaniya: na Argélia - http://www.tidjaniya.com/; na Costa do Marfim - http://tidjaniyaci.org/; e no Senegal - http://www.tidjaniyya.org/

94

na realidade ele desenvolve uma oratura, que seria a representação escrita da

tradição oral. E, nesse caso, recorremos a Nunes, para entender melhor este

fenômeno.

Escrever sobre oratura africana é um desafio arriscado e sedutor. Começa pela designação a atribuir a esta literatura, literatura de expressão oral, literatura tradicional, literatura popular, literatura oral, não existindo unanimidade teórica quanto a esta questão; os escolhos continuam com a delimitação dos territórios oral e escrito, os métodos de abordagem adotados, a classificação das narrativas, a tradução para sistemas linguísticos e culturais muito diferentes do original. (2009, p.23).

Porém, tem sido através desta oralidade escrita que temos podido contatar a

África de modo diferenciado. De acordo com Nunes, é uma escrita que tem cheiro,

sabor e muitas cores. Esse é o caso da obra Amkoullel, o menino fula. Devido a

estes textos, o caminho de aproximação para essa África subjetiva, torna-se mais

adequado e menos incerto. Esse já seria também um método ou forma que auxilia

no encontro com a África. No caso do Brasil, temos ainda outra possibilidade para

essa aproximação, a presença da oralidade nas culturas negras aqui desenvolvidas.

Em síntese, são culturas que possuem a sua base de formação e continuidade na

transmissão geracional por via da oralidade. Essa característica presente no

universo cultural brasileiro é uma herança africana que revela o próprio processo

educacional negro-brasileiro, mesmo fora do continente africano, e acaba servindo

como uma ponte de aproximação com o universo africano.

Pelo que pudemos apreender de Hampaté Bâ (2003) é enorme o papel de

relevância que a oralidade tem no processo educativo da África; é a partir dela que

se fundamenta o modo de ser e pensar do africano, e dessa maneira determina

como o mesmo se relaciona com o mundo.

95

Capítulo III

Saberes e Práticas Culturais

É o conhecimento do homem e a aplicação deste conhecimento na vida prática que faz do homem um ser

"superior" na escala dos seres vivos. É somente então que se pode dizer que ele esteja no estado de neddaaku (na língua

fula) ou de maayaa (no idioma bambara), isto é, no estado de homem completo.

(Amadou Hampaté Bâ).

Os saberes e práticas da África tradicional estão imersos na tradição oral. As

ações cotidianas são responsáveis por preservar e difundir conhecimentos

ancestrais, lembrados e vivenciados em todas as instâncias da vida. Essas práticas

constituem, desse modo, uma parte relevante da história e do pensamento. Essa

África tradicional corresponde àquilo que se expressa na herança mais ancestral do

próprio continente, presente no conjunto dos conhecimentos transmitidos de geração

em geração. Porém, esses saberes e práticas foram também dialogados com as

heranças muçulmanas e europeias, também já fazendo parte há um longo tempo do

continente africano.

Assim nos diz Hama e Ki Zerbo,

O homem é um animal histórico. O homem africano não escapa a esta definição. Como em toda parte, ele faz sua história e tem uma concepção dessa história. No plano dos fatos, as obras e as provas de sua capacidade criativa estão aí sob nossos olhos, em forma de práticas agrárias, receitas de cozinha, medicamentos da farmacopeia, direitos consuetudinários, organizações políticas, produções artísticas, celebrações religiosas e refinados códigos de etiqueta. Desde o aparecimento dos primeiros homens, os africanos criaram ao longo de milênios uma sociedade autônoma que unicamente pela sua vitalidade é testemunha do gênio histórico de seus autores. Essa história engendrada na prática foi, enquanto projeto humano concebida a priori. Ela é também refletida e interiorizada a posteriori pelos indivíduos e pelas coletividades. Torna-se, portanto, um padrão de pensamento e de vida: um “modelo”. (2010, p.23).

De acordo com Hampaté Bâ (2010) a tradição oral responde por todo tipo de

conhecimento e pela visão integrada do homem e do meio em que vive. Nesse

contexto, a educação é constante no dia-a-dia em atividades as mais corriqueiras.

Nesse universo do cotidiano, uma gama bastante vasta de conhecimentos é

transmitida, às vezes, de modos os mais inusitados e até controversos para o olhar

de outra cultura. Segundo Hampaté Bâ (2003), é nesse caso, por exemplo, que o

momento da alimentação, a maneira como se servem as refeições, os primeiros a se

96

alimentarem, apresentam uma série de valores educativos, que servirão em muitos

momentos da vida. Dentre as muitas práticas culturais existentes, procuramos dar

uma atenção especial à questão da alimentação, pois essa é uma característica

marcante da cultura africana e que se estende às práticas culturais dos negros no

Brasil. O momento da alimentação é visto como alimentação do corpo e da alma, e

quando praticado em comunidade faz por fortalecer e aproximar todos os envolvidos.

Segundo Hampaté Bâ (2003; 2010) e Vansina (2010), as práticas culturais

tradicionais têm relação total com a palavra, sendo esta geradora da dinâmica

existencial e o mecanismo capaz de estabelecer as correspondências dimensionais

do ser humano, assim como, em uma perspectiva bastante espiritualizada, efetivar e

atender a criação. A palavra faz emergir a existência, convocando o homem para

assumir a sua vida com comprometimento. Essa vida pessoal, no entanto, somente

tem sentido na relação com o outro, uma relação prioritariamente dialógica e

coletiva. Essa maneira como a tradição oral se propõe a observar o mundo torna-se

significativa especialmente em um momento da história contemporânea em que

somos solicitados ao diálogo global, porém, somos desafiados pelas diferenças, e

pelo receio das perdas particulares. A sabedoria contida em práticas cotidianas - em

alguns casos, aparentemente destituídas de uma importância maior - esconde ou

preserva uma gama ampla de saberes que contribuem na formação do sujeito.

O pensamento que se constrói e a sabedoria que se revela no interior das

práticas revelam a característica de comunidade e coletividade tão presentes na

cultura africana. Com isso é demonstrada também a maneira como o africano é

conduzido ao diálogo com o outro. Tal característica é bastante refletida por

Hampaté Bâ (2003), revelando que, mesmo na relação de dominação que se

estabelecia por parte da Europa em relação ao continente africano, foi buscado o

diálogo por parte dos africanos. O filósofo alemão Martin Buber, em sua obra Eu e

Tu (2012), apresenta-nos a necessidade do outro na formação do ser. A relação eu e

tu possibilita a condição da existência na medida em que também prefigura a

diversidade dos seres humanos, de suas culturas e de suas identidades, tendo essa

diversidade como elemento necessário ao conhecimento. Por isso, Hampaté Bâ

(2003) reflete essa questão com o que aprendeu ao longo da sua vida, com o que

recebeu das tradições africanas, que sempre procuraram lhe ensinar a relevância do

outro na constituição do eu. Essa ontologia presente na cultura africana, por si só, já

é significativa como um caminho possível para o diálogo atual entre as civilizações.

97

Porém, sempre é válido pensar o que já disse Sartre (2007) sobre as

dificuldades na relação com o outro, e dos desafios que esse outro representa. No

entanto, é nesse encontro que o indivíduo é solicitado ao movimento de si mesmo, é

convocado a transcender conceitos e é incomodado de modo tal que esse sujeito já

não será mais o mesmo: é transformado e é formado ao longo da vida. Essa

perspectiva de alteridade e de necessidade do outro encontra nas culturas

tradicionais africanas um território fecundo, pois a própria tradição já se baseia

nesse fato.

Ao se pensar o outro se pensa na comunicação com ele; é assim que a

palavra é para os tradicionalistas africanos o veículo sagrado da existência, devendo

ser respeitada, é por ela que se efetiva o encontro entre as pessoas. Hampaté Bâ

(2010) nos diz que a palavra precisa ser bendita, portadora de dádivas e não

maledicências, pois, ao ser criadora, pode também ser destruidora, devido a sua

condição transformadora. Nessa condição pode proporcionar a aproximação ou o

afastamento.

Esse caráter sagrado dado à palavra lhe concede um valor incalculável, difícil

de ser medido pelos valores apenas cartesianos, já que culturalmente é repleta de

símbolos e representações facilmente perceptíveis ao homem africano em seu

contexto, em sua noção de tempo e espaço.

Ora, em geral o tempo africano tradicional engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. Á sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram durante a época em que viviam. (HAMA; ZERBO, 2010, p.24).

Essa maneira de observar o tempo e ter a palavra como elemento possível de

dinamizar e aproximar o que está expresso na eternidade, revela o quanto esta

palavra é fundamental para a cultura africana. No entanto, de acordo com Reis,

refletindo sobre Paul Ricouer e suas considerações sobre o tempo, nos diz que

“teoricamente, nem as construções cosmológicas e nem as fenomenológicas

puderam atingir o tempo em seu ser”. (REIS, 2009, p.29). Deste modo, o tempo

continuaria “inexplicável, inapreensível, misterioso”.

Mas para Reis, esse não ser do tempo teoricamente inapreensível é uma

realidade que estabelece a experiência de vida. Ou seja, mesmo que não se consiga

explicar o tempo em si, é nele que vivemos e realizamos as experiências de vida.

98

Porém, nos diz Reis que “as sociedades humanas aspiraram sempre à eternidade, à

estabilidade, à unidade, a um presente eterno” (2009, p.31). Ainda de acordo com

esse autor, pensando através da obra de Lévi-Strauss66, existem sociedades que

admitem ser históricas, enquanto outras tentam não admitir esta apreensão pelo

tempo, buscando mecanismos de burlar essa lógica temporal linear (presente,

passado e futuro), através de ritos, mitos e símbolos que permitam certa fuga do

tempo. No caso africano, não se trata de uma fuga do tempo, mas de uma

compreensão dele em sua sacralidade, pois para o africano o tempo é visto por uma

perspectiva subjetiva e objetiva, podendo entender-se isto pela maneira como cada

um lida com o tempo e as necessidades do seu dia-a-dia, o ritmo; a maneira e o

modo como cada indivíduo responde a estas necessidades é bastante pessoal. Por

outro lado, todos estão sob uma lógica de tempo comum, no qual a história se

opera, a sociedade se organiza e as práticas se efetivam. É exatamente nessa

interação entre o tempo externo e o interno que existem o homem e suas vontades,

o homem como agente mediador e articulador desse tempo. Portanto, nessa lógica a

África não foge da história, da sua história, mas a compreende no contexto da

tradição que pode abarcar distintas interpretações do tempo, adequadas às

condições vivenciadas. Reis, nos diz que “a história, a experiência temporal, local

das ações humanas, é objeto de uma reflexão universalizante ética, estética e

política” (2009, p.38). Desse modo, ela ocorre com os africanos em acordo com a

sua percepção de mundo.

Quando o africano articula a sua reflexão sobre o tempo, ele o pensa como

um ritmo, um pulso, o mesmo que existe na palavra, na emissão do som. De acordo

com Hampaté Bâ (2010), o ritmo, o timbre e o pulsar da palavra são o próprio ritmo

do universo. A música africana mais tradicional, aquela expressa nos tambores e

outros instrumentos de percussão, é a extensão da voz humana, e o que os

tambores tocam é o que a voz humana expressa. De acordo com Santos e Bahi

(2010), Niangoran-Bouah, outro especialista em tradições orais da Costa do Marfim,

empenhou-se para que as tradições orais fizessem parte do ensino superior da

Costa do Marfim, dando ao seu método de trabalho uma atenção especial ao som

66

Antropólogo de origem belga nascido em 1908 e falecido em 2009. É considerado o fundador da antropologia extruturalista.

99

dos tambores e a utilização dos textos dos tambores africanos de fala como suporte

aos estudos da oralidade67.

Na cultura tradicional do oeste africano na região do Mali, a palavra sagrada

das antigas práticas religiosas encontrou no islamismo outro elemento significativo

que influenciará a cultura tradicional e também recebeu a influência dessas culturas

nativas do continente. De acordo com Hampaté Bâ (2003) o Islã, integra-se à vida

africana subsaariana, de maneira relativamente tranquila, havendo aceitações e

concessões de ambas as partes. O Islã, segundo o autor, foi facilmente aceito no

continente africano, devido a sua relativa simplicidade ritual e à norma, segundo o

próprio Alcorão, de procurar o respeito e a convivência com as outras crenças. Essa

característica fez com que o Islã tivesse um rápido crescimento em solo africano,

sendo que muitos grupos étnicos se converteram em massa a essa religião, sem

que fossem ameaçados ou forçados a essa posição.

Segundo o teólogo e pesquisador saudita Ahmad Ibrahim (2008) o Islã é

totalmente contra o racismo e a injustiça, e faz essa afirmação baseado na seguinte

sura (versículo): “Ó humanos nós os criamos de um macho e uma fêmea e os

separamos em nações e tribos para que conhecessem uns aos outros.

Verdadeiramente, o mais nobre entre vocês para Deus é o mais piedoso.

Verdadeiramente Deus é Onisciente.” (Alcorão, 49:13).

Outro aspecto relevante destacado por Hampaté Bâ (2003) é o fato de o Islã

presente na região não confrontar-se doutrinariamente com as práticas religiosas

locais, já que em sua maioria estas não feriam os pilares fundamentais da fé

islâmica, na qual o mais importante é o reconhecimento do Deus único, como

supremo criador e ter em Muhammad o seu último mensageiro. Esta crença está

expressa na shahada (declaração de fé): “Ach hadu La ilaha ila Ala, ach hadu

Muhammad rassululah”, que significa “Afirmo que não existem deuses além de Deus

e afirmo que Muhammad é o mensageiro de Deus”.

Esta constatação de Hampaté Bâ (2003) é interessante, pois exige uma

reflexão sobre as religiões nativas da região do oeste africano, ao menos aquelas

descritas pelo autor. De fato é possível reconhecer netas distintas formas religiosas

67 Indicamos a leitura do texto SANTOS, Acácio Sidinei Almeida; BAHI, Aghi. Contribuições de Georges Niangoran–Bouah ao estudo das tradições orais da Costa do Marfim. in: Cerrados: revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.Literaturas e Culturas Africanas.n.30, ano 19, 2010.

100

a concepção espiritual da existência de um ser supremo que rege sobre todos os

outros, sendo, por isso, o portador da criação, ou seja, a concepção de uma

unicidade de Deus, de uma base monoteísta. E mesmo no universo dos iorubás,

grupo étnico que habita grande parte da atual Nigéria e Benin e que veio em uma

quantidade expressiva para o Brasil em período mais próximo do final da escravidão,

tem-se a noção de um Deus todo poderoso, que a tudo governa e que tudo criou;

essa divindade maior é conhecida como Olorum68 ou Olodumare69. As outras

divindades presentes tanto na cultura ioruba, como nas culturas descritas por

Hampaté Bâ (2003;2010) estariam sob a regência desse Deus todo poderoso.

Portanto, a ideia de um Deus único todo poderoso e que rege sobre todas as coisas

caracteriza outra semelhança com o Islã e os seus devotos muçulmanos (aqueles

que se submetem à vontade de Deus). A ideia da submissão ao Ser superior não era

alvo de estranhamento nas religiões tradicionais africanas, e, desse modo, esse

aspecto também é um componente da cosmogonia africana.

Pode-se notar que a ligação entre o material e o espiritual é bastante presente

na cultura africana, assim como na cultura islâmica. Daí, não se estabelecer a total

separação desses mundos. Como já analisamos antes, a história do ponto de vista

africano perpassa estes mundos e a interação entre eles. O islã, por exemplo,

estabelece como parte da crença oficial a fé nos anjos e nos gênios, que seriam

seres espirituais que atuam como elo entre o mundo celestial e o terreno,

influenciando a conduta dos homens. Vejamos o que nos diz o teólogo muçulmano

de origem turca Muhammad Fethullah Gullen.

Os anjos são criados da luz. A palavra árabe para anjo é malak. De acordo com a sua forma raiz, malak significa mensageiro, representante, enviado, superintendente, e um ser poderoso. Os anjos formam relações entre o mundo macrocósmico e o mundo material. Eles transmitem os mandamentos de Allah a respeito da criação e da operação do universo, dirigem os atos e as vidas dos seres (com a permissão de Allah), e descrevem suas adorações em seus próprios domínios. (2009, p.70).

E sobre os gênios na teologia do Islã nos diz: “gênio, literalmente, significa

‘algo oculto ou velado’. Os gênios são uma espécie de seres invisíveis.” Gullen

(2009, p.76). Essa concepção de seres intermediários entre Deus e os homens

68

Senhor do Céu em idioma ioruba 69

Senhor do destino supremo em idioma ioruba

101

também é comum nas culturas africanas, e, portanto, também colaborou no

entendimento entre o Islã e as expressões religiosas africanas.

Essa constatação de boa convivência entre o islã e as religiões tradicionais

africanas foi relatada também através do registro de outros pesquisadores, entre

eles Hberk e Mazrui. No entanto, não isentaram práticas contrárias, em que a

brutalidade e a violência também se fizessem presentes quando da chegada dessa

religião ao continente, e em alguns casos fazendo por surgirem movimentos que não

somente impunham a sua fé como também eliminavam aqueles que não aceitassem

a conversão. Isso fez com que em alguns casos conflitos étnicos fossem

deflagrados, tendo como pressuposto principal a questão religiosa.

Vejamos o que nos diz Giordani,

O Islã se impôs, às vezes pela força bruta. “O fanatismo e o orgulho dos conquistadores levava-os quer a desprezar os pagãos e a deixa-los submissos ou escravos, quer deixar-lhes a escolha entre a morte e a conversão”. Mas muitas vezes também a conversão foi efetivada na ausência de toda força, quer por marabus isolados que não tinham outro poder senão a fé quer por infiltrações lentas. Procurava-se ganhar a aristocracia, depois, aos poucos a massa camponesa. (1997, p.166).

Em período bem mais recente da história africana subsaariana, infelizmente já

se tornam comuns os casos de fundamentalismo religioso ligado a grupos islâmicos

radicais. Um exemplo disso encontra-se na Nigéria70, país que na atualidade tem

enfrentado sérios problemas sociais devido a formas rígidas e fundamentalistas de

interpretação do Alcorão por parte de alguns grupos radicais e dirigentes políticos.

Porém, esse tem sido um fenômeno mais comum na atualidade, algo estranho e

raro na época em que Hampaté Bâ (2003) registrou as suas memórias e impressões

da sua região.

A tradição oral soube na maioria dos casos acolher a nova prática,

integrando-a sabiamente ao modo de ser do africano. Portanto, não é raro

pensarmos nesse Islã com a imagem e representação da África, o que difere de

maneira considerável de outras práticas muçulmanas em outras partes do mundo,

embora todos os aspectos que determinam as bases ou os fundamentos da fé sejam

70

Um dos grupos radicais que atuam na Nigéria é o grupo Boko Haram que mantém ligações com a rede Al Qaeda. Deve-se lembrar também do julgamento da nigeriana Safiya Hussaini Tungar Tudu, condenada a ser apedrejada por adultério em um processo repleto de abusos e imprecisões. Essa ação somente foi impedida devido a fortes pressões mundiais quando o caso tornou-se público. Ver a obra Eu, Safyia - A história da nigeriana que sensibilizou o mundo. (2004).

102

praticados. As diferenças estariam no próprio modo de ser das pessoas, que não

abrem mão de sua cultura, bastante pautada no colorido das roupas, na alegria e

espontaneidade e a presença constante da música. O Islã africano, segundo

Hampaté Bâ (2004), se desenvolve principalmente por uma vertente mais mística,

denominada sufi, e com características bastante coletivas, com ritos e celebrações

diferenciados. As confrarias sufi da África ocidental são ligadas em sua grande

maioria ao Islã sunita (de sunna, a comunidade dos crentes) desde a época do

profeta Muhammad71, que tem sua linha sucessória, ou seja, os primeiros quatro

califas72 eleitos após a morte de Muhammad, pessoas do seu círculo de amizades.

Já outro grupo islâmico bastante conhecido são os xiitas73, que reconhecem a linha

sucessória do profeta Muhammad, apenas os membros de sua família, conhecidos

como os Alu Bait (membros da casa). O grupo sunita é o grupo mais numeroso até

os dias de hoje, e foi o responsável por avançar o Islã no continente africano,

incluindo a África subsaariana. A principal base do Islã sunita localiza-se na Arábia

Saudita.

De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto,

A constituição das duas principais divisões sectárias do islã, o sunismo e o xiismo, foi fruto de um processo iniciado logo após a morte de Muhammad e que se consolidou por volta do século IX. Com a morte do Profeta, a questão da sua sucessão na liderança da comunidade muçulmana se colocou de maneira premente. A ausência de um herdeiro masculino inviabilizava o uso da tradição pré-islâmica de sucessão patrilinear e obrigou a comunidade muçulmana a decidir quais seriam os critérios de definição, atribuição e manutenção de poder que criariam lideranças legitimas. (2010, p.73).

Essa divisão do Islã determina rituais diferenciados entre os grupos, embora

os elementos principais da fé sejam os mesmos. Um aspecto presente em ambas as

tradições islâmicas é o aspecto místico. De acordo com Azevedo (1996, p.42) “o

sufismo é a mística do Islã. Também já foi definido como a sabedoria dos santos”. A

palavra sufi (lã em árabe), refere-se a pessoas de vida simples e despojada, que

mantinham uma conduta de vida ainda mais espiritualizada, seguindo práticas ainda

mais devocionais e contemplativas que os demais muçulmanos. Essa via mística

teve uma enorme aceitação na África já no início de sua chegada, por aproximar-se

71

Ver Muhammad, o mensageiro de Deus (2007) do teólogo islâmico Abdurrahman al Sheha. 72

Os quatro califas são: Abu Bakr (632-634);Omar(634-644); Othman (644-656) e Ali (656-661).Para os xiitas apenas Ali é reconhecido como sucessor verdadeiro do profeta Muhammad. 73

De shiia. Para maiores informações indicamos o site do Centro Islâmico no Brasil (comunidade xiita) www.arresala.org.br

103

de práticas rituais locais, nas quais o caráter subjetivo do devoto também é bastante

preservado no culto à sua divindade particular, que, segundo pesquisadores como

Pierre Verger, ao observar a crença dos iorubas, refere-se ao modo de ser de cada

um. Todos fazem parte do culto e celebração coletiva, mas existe uma instância mais

íntima na qual cada pessoa possui um tempo e um espaço sagrado próprios. Neste

ponto nos deparamos com a questão da temporalidade sagrada que observamos

antes.

A ação, a devoção e o conhecimento são bases dessa formação humana, e

no sufismo, de acordo com Azevedo (1996, p.42), “são conhecidos como makhâfah

(temor), mahabah (amor) e marifah (conhecimento)”. Essas características têm no

sufismo e suas mais diversas Tariqahs (confrarias) um aspecto importante, o que

também fez aproximar essa maneira de interpretar o Islã, bastante comum na África

do oeste. Dentre as principais confrarias sufi do oeste africano, destacam-se: a

mouridya74, que tem no senegalês Ahmadou Bamba Mbaché75 o seu fundador; a

qadiriya76 de origem com o iraniano Abdul Qader Gilani Al Amoli77; e a tidjanyya,

esta última é a mesma confraria à qual Tierno Bokar e Amadou Hampaté Bâ

pertenciam, e que tem sua origem com o argelino Ahmad Al Tidjani78.

Torna-se marcante na vida de Hampaté Bâ (2003) a maneira como ele é

influenciado por essa escola de saberes e práticas, que aliados à cultura nativa de

seus ancestrais mais remotos permitiram-lhe uma leitura de mundo diferenciada que

busca estabelecer o encontro entre os povos, já que aprendeu desde a sua mais

tenra idade a conviver com o outro, seja ele próximo ou não culturalmente.

O encontro dessas culturas é intenso há muitos séculos no oeste africano,

tornando-se em alguns momentos difícil estabelecer no relato de Hampaté Bâ (2003)

uma separação ou mesmo uma distinção entre elas. Também é significativa a escola

europeia, na qual terá a sua educação nos conhecimentos e valores próprios do

ocidente que o habilitaram a chegar à França para a realização dos seus estudos

superiores.

Como já dissemos antes, no universo da cultura tradicional as práticas são

coletivas, e é nessa condição que os saberes são perpetuados, pois não há um

74

Ver os seguintes endereços: http://www.mourides.com/; http://www.mouridetv.net/#; http://www.jazbu.com/ e http://www.cheikhibrafall.com/ 75

Nasceu em 1853 e faleceu em 1927 76

Ver o seguinte endereço: http://www.qadiriyya.com/ 77

Nasceu em 1077 e faleceu em 1166 78

Nasceu em 1737 e faleceu em 1815

104

saber de fato solitário, e tal como a memória, eles são construídos conjuntamente. O

saber é constituído no grupo, na interação e na relação entre as pessoas. Do

mesmo modo, procura-se entender os saberes na natureza, não apenas na razão

humana, mas pelo conjunto de possibilidades a serem apreendidas pelo homem em

todas as suas dimensões: psíquicas, sociais, emocionais, entre outras, sendo então

acionadas e contempladas em conjunto79. As características psíquicas, racionais e

espirituais do ser humano foram bastante refletidas pelo filósofo alemão Max

Scheler, que em várias de suas obras chamou a atenção para as dimensões do

homem e para a necessidade de percebê-las em totalidade e inteireza, algo que se

aproxima do conceito de inteireza presente no continente africano. A ideia de

totalidade no contexto das culturas tradicionais descritas por Hampaté Bâ (2003;

2010) não se restringe somente ao ser humano, mas também se refere à natureza.

Busca-se a interação do ser na natureza. É por essa característica que, de

acordo com Hampaté Bâ (2003), não é incomum ouvir de um africano tradicional

algumas expressões como as árvores me falaram, os peixes estão dizendo, entre

tantas outras possibilidades. No universo tradicional este tipo de comunicação é

totalmente aceitável e digno de valor.

Porém, quando é estabelecida uma relação desse universo com a maneira

pela qual o ocidente europeu procura entender o conhecimento e a relevância das

práticas sociais e culturais, percebe-se de imediato a distância entre esses mundos

conceituais. Por isso, também segundo Hampaté Bâ (2004), é relevante encontrar

no mundo ocidental as bases comuns que aproximem o diálogo e o entendimento

entre esses mundos.

De modo geral, o mundo ocidental tem priorizado a razão em detrimento de

outras dimensões humanas, o que torna a referência de percepção do mundo

africana alvo de estranhamento. Ki Zerbo (2009) chama a atenção para a

necessidade do despertar de um homem novo, que seja capaz a partir da sua

identidade reconhecer e até apreciar a identidade do outro. Hampaté Bâ (2004)

nessa mesma perspectiva nos diz da necessidade do diálogo para o conhecimento.

Portanto, um caminho, no caso do Brasil, de compreensão dessa simbologia

das práticas e saberes africanos seria procurar entender as práticas culturais negras

desenvolvidas em nosso país, nas quais a oralidade se faz presente. Até mesmo os

79

Para entender melhor essa noção a partir de uma perspectiva do ocidente, indicamos o livro Antropologia Filosófica (1993) do filósofo e teólogo brasileiro Edvino Rabuske.

105

aspectos ligados à espiritualidade e à cosmovisão africana se tornam mais

acessíveis a partir do entendimento das culturas afro-brasileiras, manifestações

locais que guardam elementos herdados do continente africano.

Esses saberes e práticas contidos nas culturas negras desenvolvidas no

Brasil quando pensados pelo viés da educação são trabalhados ainda no espectro

da educação não formal, termo que se contrapõe à educação formal80.

De acordo com Gohn (2010), a educação não formal precisa ser cada vez

melhor compreendida. As suas formas e métodos estão cada vez mais presentes na

escola e o professor precisa compreendê-los para, desse modo, também

compreender os alunos em sua diversidade cultural. Por educação não formal pode-

se pensar uma vasta quantidade de práticas socioculturais que efetivam em

universos distintos formas de transmissão de saberes, ações educativas que podem

ser mais bem analisadas e compreendidas e, com isso, comporem também o

universo da educação desenvolvida nas escolas.

A presença dos elementos culturais tradicionais africanos na cultura brasileira

através da oralidade faz com que essa análise de Gohn (2010) seja relevante, pois

muitas das práticas culturais afro-brasileiras trazem em seu conjunto a condição

educativa. No entanto, faz-se necessário compreendê-las e interpretá-las para que

se consiga realizar tal intento. É significativo compreender as origens dessas

práticas, imersas em grande parte nas culturas africanas tradicionais. De acordo

com Vieira, “o conhecimento é um processo interativo que se dá entre o real e as

representações que fazemos dele, ou seja, as relações sociais, a natureza, os

objetos, o trabalho, as instituições políticas, a família, etc.” (2006, p.24). E, nesse

sentido, estabelecer um conhecimento sobre o Brasil e as culturas aqui presentes se

faz necessário para promover a interação entre as culturas aqui existentes, tendo a

escola como um local social privilegiado neste sentido. Na analise de Vieira,

percebemos a mesma ponderação que encontramos em Hampaté Bâ (2003) ao

longo de sua narrativa: a de procurar convergir os saberes comuns a cada povo e

cultura para um encontro em que todos sejam valorizados e ao mesmo tempo

refletidos diante de uma realidade de mundo que se revela.

80

Educação não formal e educação formal se referem respectivamente a educação fora do ambiente escolar e dentro do ambiente escolar.

106

Ainda de acordo com a educadora Anna Padilha (2012), a prática pedagógica

é uma prática sociocultural que deve almejar o humano no homem e, portanto, deve

estar embasada historicamente no conhecimento mais profundo do ser humano.

A Lei Federal 3.394 de 20 de dezembro 1996 sobre as Diretrizes e Bases para

Educação Nacional já diz da realidade educativa presente nos muitos espaços

sociais, não somente na escola. Nesse sentido, os diferentes saberes e práticas

existentes na sociedade brasileira, entre eles as culturas de origem africana e suas

formas de transmissão, são também um elemento que pode dar vitalidade ao

conhecimento. E, mais do que isto, seria válido pensar a sua aplicação e utilização

no âmbito da educação formal.

Na África tradicional esses universos do formal e do não formal, como

descrito por Gohn (2010), se confundem e se complementam, sem que haja um

conflito entre as suas práticas. Pensando um pouco nesse aspecto é que

procuraremos em nossa análise perceber a prática educativa dessa tradição e a

preocupação contida no ato de educar, no qual a questão educar para quê? é o

grande foco. Pelo que se percebe no relato de Hampaté Bâ (2003), existe uma ideia

de educação para a vida e não apenas uma educação de conteúdos.

Para Mbuy Kabunda (2000), a educação tradicional africana busca a

interação entre os seres humanos e o seu meio. É uma educação coletiva que visa à

solidariedade e o convívio social harmonioso.

A partir dessa perspectiva, nota-se a constante procura por uma educação

que possibilite a harmonia do ser com ele mesmo e com o mundo a sua volta. Essa

característica é determinante para refletirmos um pouco sobre o sentido de

educação no oeste africano, e, com isso, ponderarmos sobre as contribuições

dessas culturas do oeste africano no conjunto formador das culturas negras no

Brasil, no qual algumas práticas são visivelmente assemelhadas às práticas

africanas, e nas quais a oralidade se revela também como um elemento presente.

Com isso, podemos sugerir que se pense nas nossas práticas educativas uma

presença também conceitual desse modelo da África, que auxilie na formação do ser

humano para a vida, e não apenas para o atendimento de conteúdos, algumas

vezes deslocados de um contexto maior que se insere na própria vida.

O diálogo entre a África e o Brasil também no campo educacional pode ser

revelador de práticas que se fortaleçam mutuamente, que contribuam no

desenvolvimento de outras propostas pedagógicas que consigam dar conta da

107

diversidade cultural que forma o povo brasileiro. Sendo assim, o papel da palavra e

dos sistemas educativos africanos passa a ser um fenômeno de interesse e não de

descaso como outrora fora pensado.

III.1 – Palavra e Tradição

A palavra para Hampaté Bâ (2010) tem sua expressão maior no universo da

tradição. Essa palavra é mantida como o grande vetor da existência, da vida. Tudo é

pela palavra, sem ela nada existiria. Essa relação com a palavra também determina

e enfatiza aquilo que para o ser humano é fundamental, a comunicação. É por ela

que se efetivam as ligações humanas, é por ela que se estabelece a comunidade.

A palavra na tradição é o elo das gerações, possibilitando que uma corrente

de saberes e práticas seja preservada, ao unir crianças, jovens, adultos e velhos em

uma perspectiva comum. Essa ligação na tradição é o que lhe confere a condição de

ser um saber tradicional, normalmente descrito como a transmissão geracional de

saberes, tendo como vetor principal a palavra falada. Neste aspecto é válido

enfatizar que a tradição não pode ser confundida com o tradicionalismo, pois este

seria o engessamento de um saber em uma perspectiva fixada em um tempo já

passado. A tradição, segundo Hampaté Bâ (2003; 2010), é antes de tudo algo

dinâmico, que se atualiza e é recriada em tempo presente; ela é viva. E quanto mais

ela consegue dialogar com o mundo a sua volta, mais ela é fortalecida. Daí Hampaté

Bâ (2003) preocupar-se com os puristas conservadores, que, na sua concepção, são

os principais vetores do fim das tradições, do mesmo modo que aqueles que a não

compreendem e dela se afastam.

Essas características são utilizadas por Hampaté Bâ (2003) para analisar o

comportamento político-social de alguns líderes africanos, que muitas vezes deixam

de observar o mundo pelo olhar da própria África, antes, porém, assumem um

comportamento distanciado. E distanciar-se da África é primeiro separar-se de suas

tradições. Essas tradições, segundo Hampaté Bâ, devem ser dialogadas com o

mundo ocidental, compartilhadas, revistas, mas nunca esquecidas.

A formação do ser humano africano depende da tradição, pois ela instrui em

várias situações e em todos os momentos da vida. A base da educação do africano,

de acordo com a concepção de Hampaté Bâ (2003), deveria estar pautada na

108

tradição. É por isso que um líder político do continente que não conheça e não

respeite essa base de sua formação não reúne as condições necessárias para

compreender e representar o seu povo.

Essa reflexão coincide com a que o sociólogo brasileiro de origem baiana

Guerreiro Ramos81 também realizava ao analisar o comportamento de lideranças

brasileiras nos mais variados setores, que desconheciam, intencionalmente ou não,

algumas das principais realidades sociais e culturais do Brasil.

Uma liderança que, ao contrário, conhece e respeita essas tradições será

menos atingida pelo desejo de poder e o acúmulo desnecessário de bens, pois

considerará essa conduta social como sendo desequilibradora. De acordo com

Hampaté Bâ (2004), a civilização africana deve constituir-se com base em valores

humanos e éticos, presentes em sua cultura, aspectos estes que contribuem

também para uma sociedade mais fraterna. São esses aspectos que devem ser

compartilhados com outros povos e culturas.

De acordo com Hampaté Bâ, a palavra oriunda da tradição, articulada em um

tempo comum, de presença e atualidade, continua sendo geradora da vida, e é a

isso que a tradição se propõe, é isso que a tradição procura alcançar, para que

continue oferecendo saberes a sua própria civilização e ao mundo por

consequência. Ao oferecer e receber estabelece trocas e partilhas que são capazes

de gerar outros conhecimentos. O filósofo francês Maurice Merlou Ponty nos traz a

seguinte reflexão sobre a linguagem, que coincide em boa parte com a reflexão de

Hampaté Bâ (2010).

A linguagem tem um interior, mas esse interior não é um pensamento fechado sobre si e consciente de si. O que então exprime a linguagem, se ela não exprime pensamentos? Ela apresenta, ou antes, ela é tomada de posição do sujeito no mundo de suas significações. O termo “mundo” não é aqui uma maneira de falar, ele significa que a vida “mental” ou cultural toma de empréstimo à vida natural as suas estruturas, e que o sujeito pensante deve ser fundado no sujeito encarnado. (1999, p.262).

A reflexão de Ponty nos dá entender o quanto o sujeito encarnado, como ele

diz, se dá e se manifesta a partir de sua existência concreta; é daí que surgem as

ideias, as práticas a serem maturadas e desenvolvidas, que se estabelecem na

ligação com o outro, e não como algo fechado sobre si. Ao percebermos essa

81

(1915 – 1982) Sociólogo negro de origem simples e que se dedicou a refletir também a questão do negro no país. A partir de 1949 engajou-se ao TEN (Teatro Experimental do Negro), ao lado de Abdias do Nascimento, outro importante intelectual brasileiro.

109

análise de Ponty percebemos o valor que a tradição africana procura dar a esses

encontros, a essas trocas de experiência.

Vejamos um exemplo interessante da tradição, que diz respeito à

convivialidade das diferenças étnicas, o aprendizado sobre elas e o diálogo possível

entre os povos e culturas distintas.

A partir do momento em que fui morar na casa de Amadou Kisso, minha vida tornou-se um mar de rosas. Eu comia a seu lado, assistia toda noite às conversas e reuniões em seu pátio, às vezes até durante o dia, quando não tinha aula. Era como se tivesse saído do pátio de meu pai Tidjani para entrar no dele. Ali também se sucediam contadores de histórias e tradicionalistas, evocando, ao som da música, a história da região, a criação da cidade de Djenné, suas antigas tradições, suas divertidas crônicas, sua conquista pelo exército francês... Aprendi também muitas coisas sobre os bozos, os songais, os bambaras da região de Saro (principado que sempre resistiu ao rei bambara de Segu) e sobre os próprios fulas. Isto me permitiu completar e aprofundar o que já sabia. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.246).

E ainda Hampaté Bâ nos traz o quanto a organização social, política e

econômica de um lugar pode ser efetivada a partir do acordo e respeito entre os

grupos distintos.

Doze etnias viviam em harmonia em Djenné naquela época, espalhadas em doze bairros da cidade: as etnias bozo, bobo, nono, songai, fula, dîmadjo (casta de cativos fula), bambara, mandê, moura, árabe, mianka e samo – estas duas últimas raças eram as mais raras. A cidade era administrada por um triunvirato bozo-songai-fula, secundado por dois colégios; um de anciãos e um de marabus. O policiamento ficava a cargo da classe dos cativos – a de artesãos encarregava-se mais da vigilância moral. As profissões artesanais tradicionais (ferreiros, tecelões, sapateiros, etc.) se organizavam em corporações chamadas tende (ateliês), dirigidas por um comitê presidido por um ancião. (2003, p.246).

Essa perspectiva dialógica e universalizada da tradição traz em si um dado

relevante para os desafios que a própria África tem enfrentado em suas tentativas de

organização política e social, sendo que algumas dessas dificuldades são oriundas

exatamente da diversidade étnica existente. Assim como revelam ao mundo

globalizado a possibilidade do entendimento entre os povos, algo que mesmo a

ONU (Organização das Nações Unidas) encontra dificuldades em contribuir na

solução diplomática de muitos conflitos que surgem em diferentes partes do mundo.

Também esse caráter ético e dialógico da tradição desconstrói qualquer ideia

de isolamento, de afastamento. Para Hampaté Bâ (1972), o que se percebe é que

em alguns momentos a comunidade produtora desses saberes precisa olhar para si

mesma. Necessita rever a sua trajetória e as suas práticas de modo subjetivo; em

110

outras palavras, precisa confiar e reconhecer a sua própria história. Nesse contexto

é válido dizer que na contemporaneidade alguns modelos socioeconômicos,

mediados pela globalização, têm conduzido esses grupos tradicionais a uma perda

do sentido de suas práticas, ao mesmo tempo em que as mesmas são cooptadas

parcialmente, apenas em características externas e passam a fazer parte de um

mercado cultural exógeno. Um exemplo disso são algumas práticas culturais em sua

dimensão artística que têm sido exploradas e divulgadas, mas sem o devido cuidado

com os aspectos essenciais que a constituem, todo o universo simbólico e ritual que

lhe asseguram um sentido.

O desafio de interpretar essas práticas e adequá-las à atualidade está em ter

discernimento do possível, do válido e daquilo que poderia ser uma inovação

alienada dos interesses e sentidos daquela prática em sua origem. Essa ação

interpretativa em outros contextos sociais e históricos requer um cuidado, ensinado

na própria tradição africana, mas que, com o passar do tempo, tem sido esquecido.

Quando Hampaté Bâ (2003; 2010) fala sobre essa questão, ele lamenta, pois os

jovens africanos estão ficando distantes da sua principal base de formação, aquela

que lhes permite a constituição de uma identificação com a África, naquilo que

Mazrui (2010) denomina de África pelos próprios africanos.

Essa busca pela essencialidade, pela subjetividade que seria o fundamento

no qual se assenta a tradição, é que precisaria, segundo Hampaté Bâ, ser

apropriada pelas gerações mais novas para que em posse destes fundamentos

consigam estabelecer com coerência as condições comunicacionais em um tempo

presente. O conhecimento dessas bases é que possibilita que as tradições não se

percam em formalismos desnecessários e que impedem a sua compreensão e

sentido no mundo atual.

A apropriação apenas dos elementos exteriores da cultura tradicional forma

uma espécie de maquiagem da realidade dessas culturas; é aqui que Hampaté Bâ

reflete com muita atenção o modo como outras culturas têm se apropriado de

elementos exteriores da cultura africana, sem o devido entendimento dos seus

fundamentos, e principalmente sem o devido reconhecimento e respeito dos seus

legítimos criadores e mantenedores.

Esse modo de proceder também ocorreu com muitas das culturas negras

espalhadas pelo mundo a partir da diáspora. Essas culturas são alvo de

apropriações e transformações externas, que retiram delas o sentido primordial, ou

111

seja, aquilo que de fato a definiria. Esse fenômeno está, segundo Munanga (2009),

pautado ainda nas práticas discriminatórias das quais a população africana e seus

descendentes ainda são alvo. Ao pensarmos esta relação com outras práticas

culturais oriundas de outros povos como, por exemplo, os japoneses, a situação é

completamente diferente. Vejamos o judô (arte marcial japonesa), que tem em Jigoro

Kano o seu fundador. Em qualquer lugar do mundo onde seja praticado o judô, ao

adentrar-se o dojô (local de treino), é feita uma reverência ao mestre fundador

seguindo os elementos ritualísticos próprios da cultura japonesa.

No caso do Brasil, podemos pensar essa diferença de respeito em relação à

capoeira82. Houve um momento da história do Brasil em que a nacionalização tentou

promover a capoeira, contudo desconsiderando essa presença africana em sua

estruturação. Com isso, segundo a antropóloga brasileira Letícia Vidor de Souza

Reis em sua obra O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil (2000),

retirava-se ou tentava-se minimizar a presença do negro na cultura do país, até

mesmo nas práticas legitimamente de origem afro-brasileira como a capoeira.

Porém, graças ao esforço e empenho de muitos capoeiristas ligados tanto à tradição

angola como à regional83, temos assistido a um fenômeno interessante da

preservação dos seus valores rituais e simbólicos. Atualmente capoeiristas em

diversos países do mundo têm atuado como “embaixadores” dessa cultura,

garantindo em boa parte a sua prática dentro de uma coerência que respeite os

valores originais que ela carrega.

No entanto, essas práticas afro-brasileiras, assim como as africanas, têm na

própria tradição oral o seu principal mecanismo de preservação, e isso se dá no seu

processo de transmissão.

Em relação à corrente geracional tão relevante para a cultura tradicional, vale

destacar o papel dos velhos. O historiador Ki Zerbo (2009) diz que os velhos são

difíceis de lidar, podem ser sistemáticos, mas na cultura africana são valorizados

82

Arte marcial com vários traços culturais de origem africana, mas criada no Brasil pelos escravizados. 83

A capoeira angola é denominada de capoeira mãe, a forma mais antiga desta expressão cultural desenvolvida no Brasil, a partir da herança dos escravizados oriundos em boa parte de Angola e outros países ao sul do Saara. Hoje está divulgada em vários países do mundo. A capoeira regional foi criada na Bahia pelo Mestre Bimba na década de 1930, tendo por base os elementos da própria capoeira angola, assim como de outras lutas que ocorriam no universo negro, tais como o batuque e a bassula (luta de agarre). Também discute-se a presença de outras lutas estrangeiras na sua formação. O primeiro nome dado a essa nova luta era de Luta Regional baiana; somente depois passou a ser conhecida como capoeira regional.

112

pelo que representam no conjunto dos saberes constituído ao longo da civilização,

assim como pela sua capacidade na transmissão das práticas e interpretação dos

saberes nelas contidos. É pelos velhos que se pode estabelecer uma prática

coerente de aplicação do que é ensinado e aprendido.

O que se nota no relato de Hampaté Bâ (2003) é que existe uma consciência

crítica na sociedade tradicional, e não uma relação superficial entre a criança, o

jovem e o velho. A pessoa idosa precisa ser cuidada, amparada e ouvida. No

entanto, tais condições não eliminam aspectos próprios de sua idade mais

avançada, que gradativamente a conduzem a distanciar-se das coisas, tornar-se

mais meticulosa, capaz de antecipar situações, simplesmente pela sua maturidade,

o que algumas vezes torna essas pessoas arredias, desconfiadas e críticas.

Essas características tornam os relacionamentos às vezes difíceis, delicados,

tensos, e uma sociedade que pensa e convive com essas realidades diretamente

aprende ao longo do tempo a conviver de modo equilibrado essas relações. Essa

comunicação passa a ser salutar, pois não está pautada na valorização desmedida

de um grupo em relação ao outro. Por isso, a tradição se atualiza, pois ela nota com

coerência o que ainda permanece válido em determinadas práticas, e o que a torna

incomunicável em um tempo presente, devido a algumas práticas não alinhadas ao

próprio grupo e a um sentido atualizado de sua proposta. Sobre isso Hampaté Bâ

(2003) nos dá um exemplo da condição dos fulas, que em sua origem eram

nômades e depois por uma questão de necessidade e pela própria fundação do

estado islâmico por Cheikou Amadou, vieram a se tornar um povo sedentário.

Pensar sobre a tradição é deparar-se com um processo dinâmico, inusitado,

que pouco ou nada se assemelha a algo inerte, restrito a um tempo passado, pronta

para ser congelada ou colocada como objeto de observação. A tradição é corrente

em todos os lugares, envolvendo vários aspectos da sociedade. Os seus ambientes

de formação são variados, e nesse aspecto, a família e a comunidade ocupam um

lugar de destaque como locais dessa formação.

Muitas vezes eu ficava na casa de meu pai Tidjani após o jantar para assistir aos serões. Para as crianças, estes serões eram verdadeiras escolas vivas, porque um mestre contador de histórias africano não se limitava a narrá-las, mas podia também ensinar sobre numerosos outros assuntos, em especial quando se tratava de tradicionalistas consagrados como Koullel, seu mestre Modibo Koumba ou Danfo Siné de Buguni. Tais homens eram capazes de abordar quase todos os campos do conhecimento da época, porque um “conhecedor” nunca era um especialista no sentido moderno da palavra mas, mais precisamente, uma espécie de generalista. O conhecimento não

113

era compartimentado. O mesmo ancião (no sentido africano da palavra, isto é, aquele que conhece, mesmo se nem todos os seus cabelos são brancos) podia ter conhecimentos profundos sobre religião ou história, como também ciências naturais ou humanas de todo tipo. Era um conhecimento mais ou menos global segundo a competência de cada um, uma espécie de “ciência da vida”; vida, considerada aqui como uma unidade em que tudo é interligado, interdependente e interativo; em que o material e o espiritual nunca são dissociados. E o ensinamento nunca era sistemático, mas deixado ao sabor das circunstâncias, segundo os momentos favoráveis ou a atenção do auditório. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.174-175).

Essa ideia de conectividade entre todas as coisas e a necessidade humana

em preservar e cuidar dessas relações colocam em reflexão o papel do homem no

mundo, no qual as responsabilidades perante a vida, não somente dele e de outros

seres humanos, mas de todos os seres, são bastante ampliadas. Na concepção

africana, o homem tem o dever de cuidar de tudo. Essa tarefa pertence ao homem e

de modo intransferível. É possível percebermos uma semelhança com essa noção

de responsabilidade e comprometimento do homem com o meio e o espaço que

habita no universo africano na obra A posição do homem no cosmos (2003) do

filósofo Max Scheler. A mesma ideia de responsabilidade pode ser encontrada tanto

na descrição que Hampaté Bâ (2003) nos traz da tradição, quanto na que Scheler

(2003) nos traz através da antropologia filosófica.

Os saberes oriundos da tradição e os seus métodos de transmissão formativa

às vezes podem parecer confusos ou controversos, mesmo aqueles ligados a uma

ética universal de preservação e cuidado com o meio ambiente. No entanto, são em

aspectos do dia-a-dia que se preservam saberes que guardam valores éticos de

relevância que se assentam na formação da pessoa. Vejamos o que Hampaté Bâ

nos diz sobre as regras referentes à alimentação.

Durante a refeição, as crianças estavam sujeitas a uma disciplina rigorosa. Quem a quebrava era punido, de acordo com a gravidade da falta, por um olhar severo, uma batida de ventarola na cabeça, um tapa, ou mesmo a ordem de retirar-se pura e simplesmente e ficar sem comer até a refeição seguinte. Devíamos observar sete regras categóricas: não falar; manter os olhos baixos durante toda a refeição; comer no espaço diante de si (não mexer a torto e a direito no grande prato comum); não pegar um novo punhado de comida antes de haver terminado o anterior; segurar a borda do prato com a mão esquerda; evitar toda precipitação ao pegar a comida com a mão direita; não se servir dos pedaços de carne colocados no centro do grande prato. As crianças deviam se contentar em pegar punhados de cereais (milhete, arroz ou outro) bem regados com molho; só no final da refeição é que recebiam uma boa porção de carne considerada como um presente ou recompensa. (2003, p.172).

A explicação dessa prática nos traz uma ação educativa para a vida.

114

Toda essa disciplina não visava torturar inutilmente a criança, mas ensinar-lhe a arte de viver. Manter os olhos baixos em presença de um adulto, sobretudo dos pais – isto é, dos tios e amigos dos pais – era aprender a se dominar e a resistir à curiosidade. Comer diante de si era aprendera contentar-se com o que se tem. Não falar servia para aprender a controlar a língua e praticar o silêncio: é preciso saber onde e quando falar. Não pegar um novo punhado de comida antes de haver terminado o anterior ensinava a dar prova de moderação. Segurar a borda do prato com a mão esquerda era um gesto de educação que ensinava a humildade. Evitar se precipitar sobre a comida era aprender a paciência. Enfim, esperar receber a carne ao final da refeição e não se servir sozinho conduzia ao controle do apetite e da gula. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.172).

Nessa descrição nota-se o quanto uma prática pode guardar em termos de

conhecimento, e também o quanto ela pareceria inapropriada em um primeiro

momento ao olhar externo, permeado por outra cultura que não compreendesse os

meandros e significados dos valores tradicionais.

Esse olhar externo seria apanhado no estranhamento do outro, da cultura do

outro, e fatalmente incorreria na tendência classificatória daquilo que se vê,

procurando enquadrar o fenômeno visto em alguma categoria pertinente somente a

sua própria cultura. Esse olhar baseado em valores próprios sempre continuará

existindo, porém o que se percebe na reflexão de Hampaté Bâ (2003) no decorrer de

sua obra é que a abertura para ouvir o outro é fundamental para que se processe um

encontro de seres humanos, culturalmente diferentes, mas essencialmente iguais na

condição humana.

Na tradição, todos os ambientes e situações são possibilidades para o

aprendizado, e nesse caso, o ambiente da casa, da família é privilegiado, pois, do

mesmo modo que há os momentos de maior severidade, existem os de total

descontração e brincadeira. Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz:

Neste aparente caos aprendíamos e retínhamos muitas coisas, sem dificuldade e com grande prazer, porque tudo era muito vivo e divertido. “Instruir brincando” sempre foi um grande princípio dos antigos mestres malineses. Mais do que tudo, o meio familiar era para mim uma grande escola permanente; a escola dos mestres da palavra. (2003, p.175).

No conjunto de práticas e saberes da tradição, deve-se acrescentar a escola

corânica, pois esta também desempenhou um papel relevante na vida de Hampaté

Bâ (2003) e, pelo que ele nos revela, foi um componente fundamental na sua

formação humana, assim como para boa parte da África do oeste. De acordo com

115

Hampaté Bâ, é praticamente impossível pensar na cultura da sua região sem colocar

em evidência a presença do Islã na formação das pessoas.

Quando cheguei à idade de sete anos, uma noite, depois do jantar, meu pai me chamou. Ele me disse: “Esta será a noite da morte de sua primeira infância. Até agora, sua primeira infância lhe dava liberdade total. Ela lhe dava direitos sem impor qualquer dever, nem mesmo o de servir e adorar a Deus. A partir desta noite, você entra em sua grande infância. Terá certos deveres, a começar pelo de frequentar a escola corânica. Aprenderá a ler e memorizar os textos do livro sagrado, o Alcorão, a que chamamos também Mãe dos livros”. (2003, p.135).

O conhecimento dos fundamentos da religião islâmica era essencial na

formação africana, e desconectar essa região da África da presença do Islã na sua

cultura seria não observar os seus povos e civilizações. No caso do Mali, Senegal,

entre outros países do oeste africano, essa marca é totalmente presente.

A presença do colonizador europeu no continente africano trouxe também o

modelo educacional da Europa. De acordo com Hampaté Bâ (2003), esse modelo

não era bem visto pelos mestres da tradição, ao contrário do que aconteceu com o

Islã na maioria dos casos, pois, segundo eles, o modelo de educação da Europa era

capaz de separar o homem de si mesmo. Esse olhar da tradição fez com que

durante muito tempo a escola europeia, chamada também como escola dos brancos,

fosse rejeitada pelos africanos. No entanto, até mesmo pela necessidade de atender

as demandas da colônia, muitos alunos nativos eram conduzidos a essas escolas.

Na época, os comandantes de circunscrição tinham três áreas a suprir por meio da escola: o setor público (professores, funcionários subalternos da administração colonial, médicos auxiliares etc.), para onde iam os melhores alunos; o setor militar, porque se desejava que os atiradores, spahis e goumiers tivessem conhecimento básico do francês; e o setor doméstico, que herdava os alunos menos dotados. A cota anual a ser fornecida para os dois primeiros setores era estabelecida pelo governador do território; os comandantes de circunscrição executavam a “encomenda” indicando aos chefes de cantão e aos chefes tradicionais quantas crianças era necessário requisitar para a escola. (HAMPATÉ BÂ, 2003, p.209-210).

Desse modo, Hampaté Bâ descreve a sua convocação para a escola ocidental:

Foi assim que num belo dia do ano de 1912, mais para o final do ano escolar, o comandante da circunscrição de Bandiagara, Camille Maillet, deu ordem ao chefe tradicional da cidade Alfa Maki Tall, filho do antigo rei Aguibou Tall, de enviar-lhe dois meninos de boa família, com menos de dezoito anos, para completar a cota da escola primária de Bandiagara. (2003, p.210)

116

Na vida de Hampaté Bâ (2003) é possível notar muito bem a presença dessa

herança tríplice africana, a África por ela mesma, a África e o Islã e a África e sua

relação com a Europa, tal qual descrita por Mazrui (2010). Essa presença foi efetiva

também no campo educacional. Aliás, é relevante dizer que a partir desse momento

a formação de Hampaté Bâ prosseguiu até a sua idade adulta sempre dialogando e

procurando entender esses três universos. É por conhecer e transitar bem nesses

universos específicos que Hampaté Bâ ao longo de sua vida procurou revelar o valor

da tradição, possibilitando a sua validade e instrumentalidade no mundo atual.

No entanto, tal como em qualquer outra cultura, a cultura tradicional também

possui aspectos que talvez não se adequem à sociedade contemporânea e mesmo

à noção de direitos humanos já estabelecidos em uma perspectiva mais

universalizada. É por isso que todo saber humano deve ser refletido e ponderado

nas relações, não apenas do próprio grupo, mas ampliadas no encontro com outras

culturas e processos civilizatórios. Esse caminho é defendido por Hampaté Bâ

(2004), pois reconhece que a tradição não é finita, tampouco se estabelecerá

somente em si mesma.

O filósofo francês Maurice Merleau Ponty, pensa de modo bastante

semelhante com o que Hampaté Bâ (2003) propõe, e nos diz:

...na compreensão do outro, o problema é sempre indeterminado, porque só a solução do problema fará aparecer retrospectivamente os dados como convergentes, só a motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido, dá aos textos do filósofo o valor de signos adequados. Portanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da fala, uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que enriquece nossos pensamentos próprios. (1999, p.243).

A África das suas heranças nativas encontra-se com o Islã e posteriormente

com o mundo europeu. Esses encontros traumáticos em alguns momentos puderam,

no caso de Hampaté Bâ, ajudar a formar um homem para o mundo. É nisto que

Hampaté Bâ acredita: que o homem conheça a sua origem, a valorize, e esteja

amparado na sua própria história, mas que saiba com maturidade e sabedoria

dialogar com a história e civilização do outro, e desse modo, constantemente

aprender a ser.

117

III.2 – Palavra, Espiritualidade e Cosmovisão

A palavra em sua relação com o sagrado, com o divino, ocupa uma posição

especial na cosmovisão e espiritualidade africanas. De modo geral, todos os

aspectos da vida tradicional são permeados pela presença do sagrado. Sendo

assim, não existe na maioria das vezes uma distinção formalizada em que se

estabeleçam os limites do sagrado e do profano. Ao contrário, nota-se que o sagrado

permeia o imaginário das pessoas e as ações cotidianas sempre carregam uma

perspectiva mística e metafísica.

É nessa perspectiva que adentramos o universo da palavra em sua maior

subjetividade, relacionada a toda uma percepção de mundo, a uma maneira de estar

no mundo repleto dos elementos mítico-místicos da espiritualidade e simbologia

africanas.

A espiritualidade pode ser entendida e pesquisada no contexto da religião

formal, porém é válido pensar que a espiritualidade também esteja relacionada com

a maneira como o ser humano se relaciona com o mundo, as suas motivações e

modos de interação. A espiritualidade africana é um modo de ser que independe da

religião formal. O pensamento religioso é considerado natural no universo da cultura.

Segundo os historiadores Tshibangu; Ajayie e Sanneh,

A religião, foi-nos dito, impregna toda a trama da vida individual e comunitária da África. O africano é um ser “profunda e incuravelmente crente, religioso”. Para ele, a religião não é simplesmente um conjunto de crenças, mas, um modo de vida, o fundamento da cultura, da identidade e dos valores morais. A religião constitui um elemento essencial da tradição a contribuir na promoção da estabilidade social e da inovação criadora. (2010, p.605).

Essa noção de religiosidade é enfatizada por Hampaté Bâ (2003) em vários

momentos de sua narrativa, deixando evidente o quanto a vida social está baseada

na vida espiritual. Ao longo das obras de Hampaté Bâ ele explica em algumas delas,

de modo ainda mais pormenorizado, o papel que a religião desempenha na cultura

africana.

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo

118

que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173).

Essa característica religiosa que permeia o modo de ser dos africanos foi

utilizada pela Europa em vários momentos para classificar essas pessoas como

inferiores. Na perspectiva da racionalidade e da cientificidade, essa visão de mundo

aparece como atrasada, oriunda de um dado mitológico. E isso acaba por ser outro

desafio a ser superado no avanço desse diálogo. Pode-se pensar que a perspectiva

de religiosidade entre os africanos diz respeito à maneira com a qual o ser humano

se conecta, se comunica consigo mesmo e com o mundo a sua volta; a religiosidade

se expressa aqui em torno de uma motivação, de um sentido para vida, que

necessariamente não esteja ocupando um lugar formal em uma religião institucional.

No ocidente quando se pensa em religião é comum pensarmos em algo

bastante formal, com uma doutrina estabelecida e consolidada historicamente.

Porém, na África esse elemento formal é recebido subjetivamente e recriado dentro

de uma perspectiva endógena de olhar para o mundo. Um olhar de

complementação, esse sim, o olhar religioso, pois se refere a religar-se ou manter-se

ligado à energia original e a todas as energias dela oriundas, ou seja, todos os seres

criados.

A própria ideia da palavra tal como aparece nas tradições relatadas por

Hampaté Bâ (2003; 2010) nos faz lembrar a questão da origem divina da palavra na

sociedade judaico-cristã ocidental, oriunda da apropriação cultural dos mitos de

origem do oriente médio. Na tradição judaico-cristã temos a criação do homem por

Deus e este Deus se comunicava diretamente com o homem. De sua vontade e

palavra se fez o homem feito da terra. (Gênesis 1. 1-13). Também no Novo

Testamento temos a ideia de Jesus como o verbo de Deus. Desse fato provém a

crença cristã de que Jesus seja o filho de Deus e na doutrina oficial cristã, seja um

dos membros da trindade-una, que seria o próprio Deus em três pessoas distintas,

mas plenamente comunicáveis e inseparáveis: o Pai, o Filho e o Espírito Santo84.

Os mitos de origem, relatos que, segundo o especialista norte-americano

Joseph John Campbell em sua obra O poder do mito (1990), fazem parte da

narrativa de todos os povos, localizam-se na primeira grande questão humana,

quem somos e de onde viemos? Essa marca importante sobre os seres humanos é

84

Ver o livro Catecismo da Igreja Católica das Edições Loyola.

119

um questionamento que necessitava de uma resposta. A alternativa mítico-mística-

teológica é a que possibilita uma primeira resposta a tal questão.

No continente africano, o que se percebe é que o aspecto mítico-místico não

é distante do pensamento lógico. O africano transita livremente por esses diferentes

tipos de respostas, pois as unifica e integra, já que o ser humano também é

percebido nesta inteireza, daí tudo que se relacione com ele, ser visto também

dessa forma.

Essa perspectiva do mítico sagrado que ocupa a gênese dos povos é base na

percepção concreta real para a tradição africana. Pode-se perceber o quanto há de

semelhança entre a narrativa judaico-cristã e a narrativa africana, ao menos aquela

descrita por Hampaté Bâ (2003; 2010). No contexto dos mitos de origem a palavra é

oriunda do Criador. Do mesmo modo, a palavra no contexto da tradição africana é

divina e a sua origem está ligada ao Ser Supremo.

Vejamos o que Hampaté Bâ nos diz ao relatar o mito do povo bambara.

A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!” proclama o chantre do deus Komo. (2010, p.170).

Aqui é válido pensar que para os muçulmanos a expressão é exatamente esta

“Aquilo que Allah diz, é”. E do mesmo modo, como encontramos na narrativa

judaico-cristão-islâmica, temos a maneira como Deus cria o homem.

O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. (2010, p.170).

Boa parte desses mitos africanos era comunicável com a religião islâmica que

se instalou no continente, o que estabeleceu, de acordo com Hampaté Bâ, um

diálogo profícuo para ambas as culturas. O homem é visto em ambos os universos

religiosos como um ser especial criado por Deus, dotado de responsabilidades e

habilidades que o capacitam a ser o mantenedor, o cuidador das coisas criadas.

De acordo com Hampaté Bâ, o homem é um ser especial, ele é “síntese de

tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força Suprema e confluência de

todas as forças existentes. Maa, o homem, recebeu de herança uma parte do poder

criador divino, o dom da mente e da Palavra” (2010, p.171). Maa Ngala, a suprema

120

divindade, depositou no ser humano Maa três potencialidades: o poder, o querer e o

saber. No entanto,

... todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a fala venha colocá-las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. (2010, p.172).

De acordo com Ribeiro (1999), na cultura do povo ioruba é comum atribuir à

palavra falada essa materialização das energias. Ofò é o termo ioruba para palavra e

asè (pronuncia-se axé) é o termo utilizado para expressar força, poder, vida.

Portanto, a palavra de poder está expressa na fala daquele que a articula. Sendo

assim, de acordo com Hampaté Bâ (2010), o sentido de falar e escutar na cultura

tradicional é muito mais complexo do que normalmente é pensado. De fato, diz-se

que “quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala.

Trata-se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na

totalidade”. (p.172). Ainda segundo esta concepção, no universo tudo fala, pois tudo

começa com a palavra. Essa ideia parte do fato de que tudo emana da força

criadora, a palavra de Deus, da qual todos os seres são criaturas. Outros grupos

étnicos do oeste africano partilham vários pontos de semelhança com essa

percepção de mundo. Vejamos o que nos diz Hampaté Bâ,

Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal, cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem, falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul). (2010, p.172).

A fala é mobilizadora de forças, pois dá vida e materialização àquilo que é

apenas pensamento, vontade. A fala gera movimento, ritmo. De maneira semelhante

à fala do Criador, a fala do homem é geradora da ação, e, portanto, organiza a

existência. A fala ritmada contribui para a harmonia das forças do universo, a

expressão verbal não somente possibilita a comunicação dos seres humanos, mas

também efetiva a reordenação dos seres no mundo.

A fala nesse contexto está associada a uma concepção mágica, embora não

a mágica ou magia como algo negativo, fictício ou tolo. Ao contrário, a magia na

concepção da tradição africana é a condição básica para que a fala possa exercer a

121

sua função reguladora das forças que regem o universo. A magia é capaz de

estabelecer a harmonia da existência, é conhecimento e saber. Portanto, a chamada

boa magia é aquela que provém dos mestres do conhecimento.

Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas para que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém que é a essência do ritmo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.173-174).

Deste modo, segundo Hampaté Bâ,

Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto, a materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram forças, forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as potências da ação. (2010, p.174).

Então, “na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e

operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da

harmonia no homem e no mundo que o cerca.” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.174). A

palavra no universo da tradição está imbuída de acompanhar a vida em todas as

suas nuances, além de ser o elo entre os vivos, o é também com o universo dos

ancestrais.

O aspecto religioso da fala africana tem uma correspondência significativa

com a palavra da tradição islâmica, pois se para o cristianismo o verbo divino se fez

carne na pessoa do Cristo, na tradição islâmica a palavra divina se fez livro, o

Alcorão. De acordo com Hampaté Bâ (2010) e Mazrui (2010), o islã chegou a essa

região da África, bem antes do séc. X, fazendo surgirem desde essa época

importantes centros de formação.

Grandes escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religião nas línguas vernáculas (exceto o Corão e os textos que fazem parte da oração canônica). Podemos mencionar, entre muitas outras, a escola oral de Djelgodji (chamada Kabe), a escola de Barani, a de Amadou Fodia em Farimaké (distrito de Niafounké, no Mali), a de Mohammad Abdoulaye Souadou em Dilli (distrito de Nara, no Mali) e a do xeque Usman dan Fodio na Nigéria e no Níger, onde todo o ensino era ministrado em fulfulde. Mais próximas de nós estavam a Zauia de Tierno Bokar Salif, em Bandiagara, e a escola do xeque Salah, o grande marabu dogon, ainda vivo. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.204-205).

122

As tradições africanas tiveram um encontro relevante com o universo

islâmico, e em muitos casos o processo de interação foi tão intenso que se torna

praticamente impossível separar uma cultura da outra. Vejamos a reflexão de

Hampaté Bâ sobre essa questão,

As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande parte dos países da savana os do antigo Bafur. De fato, por onde se espalhou, o Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. A simbiose assim originada foi tão grande, que por vezes torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição. (2010, p.204).

Para termos uma ideia de como essas culturas se entrelaçaram, vamos ver

neste trecho da obra Amkoullel, o menino fula como Amadou Hampaté Bâ faz

referência a sua mãe Kadidja, quando esta relata um sonho que teve com o profeta

do Islã Muhammad Ibn Abdullah:

Mais ou menos nessa época, a pequena Kadidja teve um sonho que a marcou profundamente por causa das previsões a que deu lugar e que de fato ocorreram, uma após outra, ao longo de sua vida. No sonho, via o santo Profeta entrar no pátio da casa da família. Ele a mandava chamar os irmãos e irmãs para partilharem com ele um grande prato preparado por sua mãe. Sentaram-se todos ao redor do prato e comeram até não sobrar nada. O Profeta, mantendo a seu lado os irmãos e irmãs de Kadidja, olhou para ela e a mandou sair. Assim que acordou na manhã seguinte, a menina sentiu-se invadida por profundo desgosto e caiu num humor pesado e taciturno. O pai não deu importância ao fato, mas a mãe inquietou-se: “O que você tem, minha pequena Kadidja. (2003, p.52).

No sonho a mãe de Hampaté Bâ, a então jovem Kadidja, sente-se punida pelo

Profeta, por não estar ao seu lado, assim como os seus irmãos estavam. Percebe-se

nessa narrativa o quanto a cultura islâmica se fazia e se faz presente na cultura

africana dessa região. Dessa maneira, o ser africano do oeste, ao menos a maioria

dos grupos retratados por Hampaté Bâ (2003; 2010), não podem ser entendidos em

seu imaginário e representação destituídos dessa parcela relevante de sua

formação. Nessa citação percebemos o quanto o Islã estará imerso nas tradições

locais, compondo então uma cultura própria.

Outro aspecto de relevância retratado por Hampaté Bâ está na maneira como

as escolas islâmicas instaladas no continente africano souberam respeitar e valorizar

os princípios da tradição africana, algo que foi bastante diferente da relação que a

escola europeia estabelecia com as culturas africanas.

123

Em todas as escolas os princípios básicos da tradição africana não eram repudiados, mas ao contrário, utilizados e explicados à luz da revelação corânica. Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e islâmicos, tornou-se famoso pela intensa aplicação deste método educacional. Independentes de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma concepção do homem e da família encontraram nas duas tradições, a mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão iniciatória (silsila, ou cadeia em árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes congregações Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível aprofundar, através da experiência, aquilo que se conhece pela fé. (2010, p.205).

Deste modo, houve um encontro cultural, uma troca de saberes que ampliou

possibilidades de entendimento entre os grupos.

Às categorias de “Conhecedores” tradicionais já existentes vieram juntar-se as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência islâmica) e dos grandes xeques Sufi, embora as estruturas da sociedade (castas e ofícios tradicionais) fossem preservadas, inclusive nos meios mais islamizados, e continuassem a veicular suas iniciações particulares. O conhecimento de assuntos islâmicos constituía uma nova fonte de enobrecimento. Assim, Alfa Ali, falecido em 1958, gaolo (etnia-grifo nosso) de nascimento, foi a maior autoridade em assuntos islâmicos no distrito de Bandiagara, assim como seus antepassados e seu filho. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p.205).

Vejamos outro exemplo que Hampaté Bâ nos traz sobre o seu avô materno

Pâté Poullo e a sua decisão em abandonar tudo para seguir a vida religiosa na

companhia de El Hadj Omar, um mestre da confraria sufi Tidjania. Aqui Hampaté Bâ

nos dá o exemplo da narrativa memorialista ao contar o episódio vivido por seu avô,

lembrando cada palavra emitida por Pâté Poullo ao encontrar-se com El Hadj Omar.

Não vim a ti para as coisas deste mundo. Peço-te que me recebas no Islã e te seguirei aonde fores, mas com uma condição: no dia em que Deus fizer triunfar tua causa e dispuseres de poder e grandes riquezas, peço-te que nunca me nomeies para qualquer posto de comando- chefe de exército, chefe de província, chefe de aldeia, nem mesmo chefe de bairro. Porque a um fula que tenha abandonado seu rebanho não se pode oferecer nada que seja mais valioso. Se te sigo, é unicamente para que me guies na direção do Deus Único. (2003, p.28).

Quando analisamos a natureza desses encontros pela perspectiva de

Gruzinski podemos perceber que as categorias anteriores de análise que

mencionam os dados da inculturação ou da aculturação já não são suficientes para

revelar a dimensão dessas dinâmicas e encontros culturais. Estamos diante de

trocas e dinâmicas culturais intensas que se refazem a todo instante e, com isso,

124

propiciam sentidos e significados novos aos seus participantes, que, ao perceberem

identificações comuns, recriam a imagem e representação de si mesmos.

No entanto, nem sempre as relações com o mundo cristão ou muçulmano

foram tão tranquilas. As religiões nativas da África não são expansionistas, já as

religiões como o cristianismo e islamismo são e sempre estão na busca de mais

adeptos.

De acordo com Tshibangu; Ajayi e Sanneh

A religião tradicional africana não fazia proselitismo e era aberta. Ela tolerava a inovação religiosa como manifestação de um novo saber, sempre esperando interpretar e interiorizar estes conhecimentos no âmbito da cosmologia tradicional. (2010, p.606)

Esse traço de abertura na espiritualidade africana é marca na cosmogonia. A

palavra sagrada da tradição oral encontra-se em eco comum com a palavra sagrada

do Islã, e por isso é possível serem ouvidas nesses países, nos horários prescritos,

as cinco orações tradicionais do Islã, convivendo em harmonia com os toques dos

tambores e cânticos tradicionais africanos. Segundo essa concepção, tudo fala, e

tudo é emanação do mesmo Deus, agora chamado em árabe de Allah.

A importância da religião tradicional africana vai muito além do que se poderia crer, mediante a leitura das estatísticas, as quais avaliam os seus fiéis em cerca de 20% da população africana total. Para grande número de cristãos e muçulmanos, os valores morais continuam a emanar, com maior ênfase, da antiga cosmologia, muito mais que das suas novas crenças: manifesta-se sempre respeito pelos ancestrais, especialmente através de libações, crê-se ainda que eles intervenham na vida dos seus sucessores, que existam forças do bem e do mal, passíveis de manipulação pela acessão direta às divindades, por meio das orações e do sacrifício, que os talismãs e os amuletos sejam eficazes para afastar o mal e assim sucessivamente. (TSHIBANGU; AJAYI; SANNEH, 2010, p.608-610).

No caso da África do oeste, mais especificamente na região descrita por

Hampaté Bâ (2003), o que temos é uma integração bastante remota que possibilitou

uma construção cultural própria, em que os valores da religião tradicional não se

perderam, ao mesmo tempo em que se integraram à religião islâmica, constituindo-

se assim uma cultura original, capaz de preservar os saberes e práticas tanto do

mundo tradicional africano quanto do mundo islâmico.

125

III.3 – África e Brasil: Diálogos culturais para a educação

A cultura é para Appiah (1997) uma construção humana que se dá no

contexto histórico e social. De acordo com Appiah, em cada uma das diferentes

experiências humanas espalhadas pelo mundo, desenvolveram-se formas culturais

distintas, específicas, adaptadas aos locais de existência dessas populações. Desse

modo, as culturas desenvolvidas no continente africano nascem a partir do contexto

histórico, social e espacial próprio. No entanto, a cultura é um processo dinâmico e

interativo, pois percorre a própria condição e necessidade humana de comunicação.

Sendo assim, a cultura se faz, se constrói, se transforma e é propagada na

interação, no encontro entre as pessoas, entre os povos e suas distintas

experiências civilizatórias. As culturas, ao serem compartilhadas e mediadas por

estas interações, vão adquirindo não somente outros formatos, mas também

sentidos. Esses sentidos são ressignificados em tempo real, em acordo com

aspectos subjetivos e objetivos que envolvem essas relações. Segundo Appiah, na

atualidade vivemos um momento mais intenso dessas interações, devido às

transformações tecnológicas que auxiliaram os meios de comunicação,

possibilitando a ampliação dos canais de informação sobre outros povos e culturas.

No entanto, essas informações nem sempre são possibilidades de conhecimento, e

com isso, as aproximações e entendimentos culturais acabam ficando em certa

superficialidade, normalmente expressas na aparência.

No caso do Brasil e do continente africano, as proximidades culturais entre

esses lugares não são recentes, mas, ao contrário, remontam a períodos históricos

seculares. O continente africano possui uma ligação geográfica e histórica com o

Brasil, desde tempos primordiais. Esses lugares estiveram próximos, seja como

continente de Pangea ou posteriormente pelos elos oriundos do tráfico escravista.

Porém, dar um sentido de relevância a esses encontros é uma emergência, que, de

acordo com Munanga (2009), é a condição necessária para o enfrentamento de

práticas discriminatórias em relação à população negra, assim como para que se

reconheça o valor de conhecimento presente no universo da cultura negra em solo

brasileiro. Esse reconhecimento não pode ser feito se não forem propiciados ao

educador e aos educandos os mecanismos necessários de acessibilidade à história

e à cultura dos povos africanos, bases fundamentais da formação da cultura negra

no Brasil.

126

De acordo com Hampaté Bâ (2013), o modo principal pelo qual o ser humano

em qualquer uma de suas civilizações transmite a cultura é a educação. Assim, a

relação cultura e educação são necessárias para o entendimento e aprimoramento

dessas interações humanas.

Os historiadores e antropólogos africanos Habte; Wagaw e Ajayi nos dizem

que,

A educação é o mecanismo através do qual uma sociedade produz conhecimentos necessários à sua sobrevivência e à sua subsistência, transmitindo-os de geração a outra, essencialmente, pela instrução dos jovens. Esta educação pode ter lugar, de maneira não institucionalizada, em casa, no trabalho ou em área de entretenimento. Em termos gerais, ela se desenrola em contexto de ensino organizado, naqueles lugares e estruturas especialmente concebidos para a orientação dos jovens e para formação das gerações mais anciãs. Os jovens são formados para adquirirem os conhecimentos, as competências e as aptidões, das quais necessitam, tanto para preservarem e defenderem as instituições e os valores fundamentais da sociedade, quanto para adaptarem-nos, em função da evolução das circunstâncias e do surgimento de novos desafios. (2010, p.817).

Nesse caso, apesar desta ligação ancestral com o continente africano,

percebe-se ainda um desconhecimento desse local do mundo para a maioria dos

brasileiros, e mesmo com a presença de descendentes de africanos no Brasil, tal

distância e tal estranhamento ainda se fazem presentes. De acordo com Munanga

(2010), os saberes e práticas culturais africanos são desconhecidos e mesmo os

saberes e práticas recriados no Brasil, sob a ideia de cultura de resistência, são

apresentados de modo superficial, e ainda não se compreende o seu sentido e

significado mais profundamente.

A presença cultural africana no Brasil possibilitou, segundo Munanga, que,

através da interação de diferentes grupos étnicos africanos que aqui chegaram e a

interação destes com as culturas que aqui estavam, fosse construída uma cultura de

resistência, uma cultura que pudesse garantir a condição humana ao escravizado. A

condição da servidão conduzia o sujeito a um estado de coisificação, um estado em

que a sua humanidade lhe era negada. Mas o ser humano em sua capacidade

transformadora não se submete a essa condição de negação de sua própria

identidade. Foi assim que, mesmo nesta condição de escravizados, os negros

promoveram em solo brasileiro a reinvenção de suas próprias culturas, constituindo,

desse modo, uma reinvenção dessas interações. Lopes diz que,

127

Para manter-se de pé na arena movediça do racismo brasileiro, a cultura negra negaceia e negocia. Negaceia quando parece dar a cara ao tapa mas tira o corpo fora e ressurge do outro lado. Negocia quando, forçada pelas circunstâncias, dá um passo atrás e dois à frente. (1994, p.7).

E sobre o que seria este negaceio, este campo de negociações cotidianas a

partir da cultura que ocorrem no modo como os negros se colocam na sociedade

brasileira Barbosa e Santos afirmam,

Conhecemos a ginga como um movimento de avanço e recuo, um negaceio feito com o corpo, uma forma de deslocamento reto ou circular; este movimento de dança varia de ritmo e velocidade, e tal como nos recordamos dele, assim de pronto, ele está relacionado com a prática da capoeira. Ou seja, o capoeira ginga para adquirir velocidade; para dissimular o golpe; para surpreender o adversário com seu movimento; para escapar ao golpe do adversário. Este é um bom ponto de partida para o nosso entendimento de hoje. A ginga é, pois, um movimento equilibrador para aquele que a pratica; desequilibrador, para aquele que não a pratica. Ela elimina surpresas para quem a pratica; e gera movimentos surpreendentes, para aquele que não a pratica. (1994, p.26).

Estas são as invenções do cotidiano que permitem ao sujeito existir,

reinventando formas e práticas que lhe garantam a existência. Temos nessa análise

de Barbosa e Santos (1994) e Lopes (1994) a mesma perspectiva analisada por

Certeau (2004) sobre a habilidade criativa e inventiva do sujeito diante de situações

que lhe são impostas.

No entanto, o que nos interessa neste processo não é somente apontar a

existência dessas culturas, apresentar a sua origem primeira em solo africano e a

sua reinvenção no Brasil, mas principalmente chamar a atenção para a forma como

essas práticas culturais preservam saberes ancestrais, nas quais muitos aspectos da

tradição oral se fazem presentes, de modo muito próximo ao que ocorre na África.

Portanto, compreender a origem dessas culturas no continente africano a partir do

seu vetor principal, a chamada tradição oral, e sua base educativa, pode nos auxiliar

a entender a natureza das culturas afro-brasileiras, revelando também o seu

potencial educativo.

Do que pudemos verificar, as culturas afro-brasileiras podem fazer parte não

somente da educação não formal, aquela expressa em ambiente não escolar, mas

também no próprio conjunto da educação formal, em que essas práticas podem ser

inseridas, garantindo-se o seu potencial educativo, permeadas por uma visão de

mundo que ainda se preserva em grande medida e que pode ser um auxiliar na

compreensão do mundo hoje.

128

A educação em ambiente escolar formal no Brasil, em especial quando se

refere à questão étnica, recebeu um grande avanço a partir da Lei Federal

10.639/2003, que em seus métodos de aplicação possibilitou que os fazedores das

culturas afro-brasileiras pudessem estar presentes dentro do universo escolar a

princípio como ilustração dos temas a serem desenvolvidos nos currículos oficiais e

que tratassem da presença negra no país. Porém, esse olhar ainda é ingênuo e não

consegue dar conta do valor educativo embutido no interior dessas práticas. Sendo

assim, a realização de uma apresentação de cultura afro nas escolas brasileiras

durante o mês de maio (Abolição da escravatura) ou novembro (Consciência Negra)

é ainda visto apenas como algo ilustrativo. Nesse contexto, o que de fato alicerça

aquela prática, o saber nela contido, torna-se obscuro, velado.

É assim, por exemplo, que se acha a capoeira bonita, mas quando se pensa

em uma prática de arte marcial com valores educativos, a mesma pode aparecer em

último plano. Nestes casos, o judô, o karatê, o taekwondo, entre outras formas de

luta, aparecem como excelentes instrumentos educativos, capazes de auxiliar na

formação do homem para a vida, devido a uma carga de valores filosóficos. No caso

da capoeira, apesar de vista, é desconhecida e, com isso, não são percebidos os

valores nela existentes, igualmente ricos e complexos e que também formam o ser

humano para a vida.

Pouco se nota que a característica da ginga na capoeira permite que o

indivíduo dialogue com a vida, com as dificuldades da vida, sem desistir, sem fugir,

mas procurando adaptar-se e assim fluir como a água em busca do oceano. De

acordo com Reis (2000), a capoeira traz valores pedagógicos que incluem a

alteridade, pois esta luta-jogo não se propõe à agressividade, mas sim à defesa, e

quando os lutadores se entendem o que temos é um diálogo corporal que se pauta

no respeito ao outro, na condição do outro, algo que nos faz lembrar muito os

valores propostos por Hampaté Bâ e que se tornam significativos para um

entendimento maior da condição do homem no mundo.

Outras práticas da cultura afro-brasileira guardam em si valores semelhantes,

que reafirmam a ideia da coletividade, da ancestralidade, do respeito a si mesmo, ao

outro e à natureza. E, desse modo, apresentam-se como práticas integradoras e

socializadoras por excelência, por serem inclusivas em sua natureza. Esses traços

presentes na cultura afro-brasileira têm sua origem na cultura africana, na tradição.

129

De acordo com o pesquisador em educação Pedro Abib, a cultura afro-

brasileira se insere no universo das culturas populares. Esse cientista, ao analisar as

práticas da capoeira angola no Brasil, reconhece nela e em outras modalidades da

cultura afro-brasileira vários pontos de proximidade com a cultura africana. Segundo

Abib (2004), essas culturas desenvolvidas no Brasil preservam a ritualidade, a

oralidade, a memória e a própria noção de tempo diferenciada. Assim, nos diz: “... no

universo da cultura popular se caracteriza por outra concepção de tempo, que difere

da concepção linear inaugurada pela metafísica” (p.3). Para o autor, o passado é

visto como uma dimensão que guarda um sentido.

A memória, nos diz Abib (2004, p.4), “enquanto patrimônio de saberes e

conhecimentos, cuidadosamente armazenados e organizados”, é importante para a

história do coletivo e tem um papel fundamental ao alicerçar vínculos sociais e uma

identidade coletiva. Para o autor “a grande maioria das tradições populares ainda

tem na oralidade o seu meio mais importante de transmissão” (p.4), tendo aí a sua

essência. Portanto, nota-se também nas práticas afro-brasileiras o elo da memória

com a oralidade. E em relação à sacralidade da existência nos diz que “a ritualidade

adquire no universo da cultura popular, o aspecto do culto, onde sagrado e profano

se entrecruzam, atribuindo um outro sentido ao religioso e a religiosidade” (p.4).

Essas reflexões de Abib nos dão a dimensão mais específica dos pontos de

semelhança e aproximação da África com o Brasil e o quanto esses pontos podem

auxiliar no diálogo e entendimento das culturas africanas no Brasil. Nas colocações

do autor, esse caminho das práticas culturais afro-brasileiras inseridas no contexto

das culturas populares preserva saberes ancestrais. Desse modo, pode-se pensar

que esse universo cultural precisaria ser melhor conhecido e explorado, e, como

uma via de duas mãos, conhecer a África através do pressuposto da oralidade no

processo educativo do oeste africano pode implicar no conhecimento das práticas

culturais afro-brasileiras pautadas também na transmissão oral, e como as mesmas

poderiam ser melhor aproveitadas na educação no Brasil, já se pensando os

mecanismos da Lei Federal 10.639/2003, e mais do que isto, de fato potencializando

a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996.

De acordo com Abib,

Os processos de transmissão de saberes presentes no universo da cultura popular, pautados por uma lógica diferenciada, pressupõem práticas pedagógicas também diferenciadas, baseadas numa outra concepção de

130

tempo e espaço, que priorizam outro tipo de relação entre mestre e aprendiz ou entre o (educador e o educando), que enfatizam formas diferenciadas de sociabilidade, em que as formas simbólicas, a ritualidade e a ancestralidade têm papel fundamental, e que assim privilegia nesse processo pedagógico, outro sistema de valores, que não aquele presente na prática educacional corrente em nossa sociedade. (2004, p.4-5).

De acordo com Abib, é relevante pensar-se no próprio modelo educacional

desenvolvido no Brasil, para que o mesmo possa também receber a contribuição

dessas matrizes culturais oriundas em grande parte do continente africano, e

também para que esse modelo de educação possa fazer sentido para boa parte da

população brasileira que não está sendo representada no modelo atual.

Assim, segundo o geógrafo e educador Cunha Junior, deve-se refletir que

Um processo pedagógico implica no conhecimento, na sua organização e, no sentido do seu uso, na extensão da prática de uma formação crítica. A educação tem como base a socialização dos cidadãos, na formação da autonomia das pessoas e na sua realização como participante da sociedade. Esta educação precisa fazer sentido para a população, precisa representar os diversos atores sociais, em suas necessidades particulares, de vida, posição social e de pertencimento de identidade. O pertencimento étnico tem esta marca da identidade e da posição social, vai além da ideia de classe social europeia. (2007, p.10).

Segundo Hampaté Bâ (2010), a tradição africana tem muito a oferecer. Esses

aspectos das culturas afro-brasileiras são legitimamente heranças africanas, quer

sejam elas da costa ocidental africana ou de outras regiões do continente, e nos

revelam o seu potencial de capacidade humanizadora. Essa é a proposta que

encontramos na obra de Amadou Hampaté Bâ, um pensador que não negou as suas

origens e a partir delas foi para o mundo, dialogou com o mundo e fez questão de

dizer da importância da contribuição de cada ser, na constituição do espaço comum

que habitamos.

A ideia de Hampaté Bâ coincide com aquilo que se pensa sobre as

perspectivas de um mundo melhor, porém ela é dita a partir de um saber milenar,

que continua vivo, como ele mesmo diz, na memória dos sábios, na cultura dos

povos descendentes de africanos, hoje espalhados pelo mundo afora. Já dizia

Mazrui, se antes vivíamos em aldeias na África, hoje o mundo é também nossa

aldeia, e já que estas mudanças estão ocorrendo, que elas possam atender a

demanda angustiada dos seres humanos em sua maioria, a construção de um

mundo mais justo e equitativo.

131

O historiador Serge Gruzinski, quando conceitua esses encontros culturais,

nos diz da mudança comum dos povos que se comunicam. Na lógica de Gruzinski,

são esses encontros que possibilitam o avanço da civilização na superação de seus

males.

Portanto, em condição específica e localizada, temos no caso brasileiro,

pensando na educação, um campo vasto de saberes que ainda precisam ser

vasculhados e entendidos em sua própria natureza, e muito mais que apenas a

estética dessas práticas, que se tenha também uma ética do seu reconhecimento

como elemento formador, relevante para o entendimento e formação do povo

brasileiro.

Se pudermos pensar a identidade como algo mutante, a identificação é um

fato social e cultural concreto. E, deste modo, a identificação com o continente

africano precisa ser valorizada e a educação é um meio privilegiado para que se

consiga construir canais de identificação, em que haja um reconhecimento também

do Brasil africano, tão presente na cultura do país, mas ainda pouco valorizado no

meio educacional. A educadora Eliane Cavalheiro (2006), ao refletir os problemas do

preconceito em sala de aula, deixa-nos nítido que a questão da baixa autoestima

ainda é um fator marcante na construção da pessoa negra. É nesse ponto que

notamos ser a cultura um caminho possível para o reconhecimento e valorização da

presença dos africanos e seus descendentes na formação do país. Por isso, não

apenas como conteúdo informativo nas disciplinas, mas mesmo como forma de

transmissão de saberes, a contribuição africana é acentuada. É com essa reflexão

que Abib propõe mudanças nos modelos educacionais.

Para Munanga (2009), a recuperação da história e da memória coletiva da

comunidade negra não deve ter apenas o foco no aluno negro, mas todos os alunos

de outras ascendências étnicas para que seja possível vencer anos de uma

educação repleta de preconceitos que infelizmente foram alicerçados ao longo de

muitos anos.

A tentativa de impossibilitar essa identificação através do discurso negativista

sobre a África somente reafirma os antigos valores colonialistas e escravistas, assim

como continua a inferiorizar os africanos e seus descendentes em uma suposta

hierarquia humana.

A educação brasileira, a partir dos pressupostos das Leis Federais

10.639/2003 e 11.645/2008, deu um passo significativo para a efetivação do

132

caminho da cidadania, através da prática educativa que integra oficialmente ao

currículo os elementos africanos, afro-brasileiros e indígenas, componentes estes

basilares na formação do povo brasileiro. Contudo, ainda existe muito a ser feito, a

começar pela sensibilização dos professores ao tema, além da necessidade de

aproximá-los cada vez mais da realidade nacional, que não é uma realidade isenta

de preconceitos, por isso, a sensibilização. O professor precisa enfrentar os seus

preconceitos, assumi-los para transformá-los. De acordo com Cunha Junior (2007), é

necessário nos cursos de formação em qualquer nível, até o superior, integrar o

modo de ser e pensar africano à ação formativa, caso contrário não se entenderá

minimamente o porquê de determinadas práticas, e muito menos se verificará nelas

o seu valor educativo. É necessário proporcionar que materiais pedagógicos nas

mais variadas idades estejam cumprindo com o seu papel de desmistificação do

continente africano e acima de tudo é relevante que os fazedores dessas culturas,

os seus membros ativos socialmente, sejam reconhecidos também no ambiente

escolar, possibilitando-lhes a condição de participação efetiva na elaboração do

conhecimento.

Essas discussões estiveram presentes nos Seminários e Congressos que

ocorreram ao longo do ano de 2013 por todo o território brasileiro, em face das

celebrações reflexivas dos 10 anos da Lei Federal 10.639/2003. De modo geral,

nota-se que nestes 10 anos foi possível ampliar o acesso aos materiais específicos

sobre temas africanos e afro-brasileiros, a publicação de muitos livros e vídeos,

assim como a abertura para se discutir os temas referentes à presença negra no

país. No entanto, nota-se também o recrudescimento em outras áreas como as

discussões em torno das políticas de ação afirmativa, em especial as cotas para

universidades, a quase estagnação da área do emprego, da habitação e da saúde;

ou seja, muito ainda precisa ser feito. Assim, podemos concluir que a educação tem

esboçado o seu compromisso para a área, mas ainda falta a efetivação desse

compromisso: é necessário comprometer as partes envolvidas e os grupos de

interesse para que políticas educacionais possam ser efetivadas e garantidas.

133

CONCLUSÃO

Uma educação para emancipação do ser humano

O ser humano enquanto sujeito cultural por excelência é também um sujeito

educativo por condição. E quando se pensa essa característica a partir daquilo que

se constituiu ao longo da história como elementos de referência para organização da

sociedade humana, nota-se a relevância do pensamento reflexivo, capaz de voltar-

se sobre si mesmo, rediscutir e reapresentar o que é dado. Assim, quando se pensa

a educação para este tempo, pode-se ver o que simboliza o outro, no qual as

diferenças culturais se apresentam e distintas maneiras de olhar o mundo são então

conhecidas.

Temos vivido um tempo de contradições, de choque entre diferentes formas

de pensar, e o desafio que o outro representa para valores e símbolos próprios, que

normalmente dão uma ideia de mundo já configurada e “perfeita”. Essas ideias

prévias presentes no universo de cada cultura ou de cada ser humano são

destronadas no contato com o outro. A forma dada de se olhar para as coisas, para

o mundo, não é mais única e, com isso, deixa de ser plena em si mesma, ela

necessita do outro, da complementação e da reflexão para a sua adequação ao real.

O mundo humano é um mundo simbólico de imagens e representações, que

faz sentido apenas ao homem em sua busca por si mesmo. A capacidade de

pensar, de discutir e rever a sua própria jornada histórica é que habilita o ser

humano a adequar-se ao mundo, assim como adequar o mundo para si. Essa

característica o torna responsável por si e pelo meio. No entanto, de acordo com

Hampaté Bâ (2003), são enormes os desafios que essa condição lhe impõe, e,

somente isolado no universo próprio de sua cultura, o homem não dá conta dos

desafios que se apresentam, portanto o caráter emergencial do encontro, não mais

como desencontro e tampouco como conflito, mas como perspectiva esperançada

para a civilização, se faz necessário.

Ao refletir a educação e a cultura, estamos buscando outra conformidade

social que seja pautada no respeito e no diálogo entre os povos, em que a prática

educativa seja uma prática de formação do ser humano, que, de acordo com Padilha

(2012), seja capaz de levar o homem ao mais profundo de si.

134

Nas tradições bambara e fula diz-se que existem as pessoas da pessoa, o

que significa pensar também nas muitas possibilidades que existem na pessoa, nas

possibilidades de escolha que o ser humano é capaz e na sua imensa capacidade

de aprender. E aqui é interessante lembrar o que dizia Nelson Mandela ainda em

seus anos de enfrentamento ao regime do apartheid, em que falava sobre a

capacidade de ensinar as crianças a amar e não a odiar. Essa é a educação que se

revela como caminho para este tempo. Não parece que seja mais viável uma

estrutura de mundo em que a lógica seja apenas movida pelos bens materiais e

econômicos, em que a técnica se sobreponha ao homem, o que há anos vem

conduzindo o homem ao flagelo de si mesmo. Nas análises de Serge Latouche essa

perspectiva já revelou o seu fracasso, as suas limitações, por opor-se ao principal da

condição humana: o diálogo e a coletividade como formas de aprender.

A pessoa, assim, não está encerrada sobre si mesma, como uma caixa bem fechada. Ela se abre em diversas direções, diversas dimensões, poderíamos dizer, ao mesmo tempo interiores e exteriores. Os diversos seres, ou estados, que estão nela, correspondem aos mundos que se escalonam entre o homem e seu Criador. Eles estão em relação entre si e, através do homem, em relação com os mundos exteriores. Antes de tudo, a pessoa está ligada a seus semelhantes. Não se saberia concebê-la isolada ou independente. Assim como a vida é unidade, a comunidade humana é uma, e interdependente. (HAMPATÉ BÂ, 2014, p.3).

As maneiras e os modos sociais que não ouvem o outro, ou o

descaracterizam de sua condição, apenas fortalecem a condição delicada em que já

se encontra grande parte da civilização humana em um mundo de absurdos

contrastes. A análise sociopolítica mundial tem revelado a dramaticidade do

disparate da distribuição de renda, o sufocamento dos fundos econômicos e a

exploração de bens naturais. Para pensadores como Hampaté Bâ, Ki Zerbo e

Latouche, faz-se necessária uma mudança nos modos de ver e pensar; é necessário

reaprender a ser e não se conformar com o ter apenas, e ter de maneira cada vez

mais excessiva. Como diz Latouche (1989) “(...) o ser mais foi substituído pelo

objetivo ocidental do ter mais”.

Na visão de Hampaté Bâ, não podem existir harmonia, direito, equidade se o

humano não está equilibrado em si mesmo, e essa condição passa pela

necessidade do outro. Essa característica provoca o pensamento de que é

impossível estar bem se o outro está mal. Esta proposta se assenta nos

pressupostos da tradição oral que enxerga a pessoa como ser humano integral e de

135

relações. Tal forma de olhar para as coisas, para o mundo, se revela tão significativa

para fazer pensar no que nos diz Latouche sobre o ter e a sua relação com o ser.

A cultura da África tradicional procura a todo custo, e como forma de valor

maior, preservar o ser, dando-lhe o sinal da escolha, da decisão e não tornando-o

um mero agente já escravizado pelo sistema por ele inventado, em que os métodos

de exploração e desenvolvimento econômico se apresentam de maneira a sufocar o

homem que o criou.

Para Hampaté Bâ (2014), o ser humano é chamado, é convocado para a

realização do ser, pois, enquanto ele não realiza a ordenação de si mesmo e do

mundo a sua volta, ele é apenas um homem ordinário que não se tornou apto ao

cumprimento de sua existência.

A proposta de Hampaté Bâ não está restrita a África ou a pensarmos uma

África isolada do mundo, mas, muito pelo contrário, trata-se de uma proposta

mundial, coletiva, de partilha e engajamento, na qual a educação deve estar voltada

para a emancipação do homem, tendo por base a sua própria humanidade

repensada e refletida. Mais do que conhecermos as diferenças que existem entre os

povos, entre as culturas, o que se aponta é o reconhecimento das mesmas e a

emergência de aprendermos com elas.

No caso da escola no Brasil é mais do que ministrar conteúdos sobre a África

nas escolas, mas ir além e pensar o modo de ser que essa cultura ensina e percebê-

la como agente viável na formação da pessoa humana também no Brasil. Dar

visibilidade e respeitar a presença negra no Brasil é, de acordo com Munanga

(2010), dar-lhe a condição de pertencer efetivamente ao universo de saberes que

compõem o ser humano. A adequação da LDB através das Leis Federais

10.639/2003 e 11.645/2008, é um caminho proposto que possibilitou a abertura de

portas de entrada a esse universo de modo mais concreto - oficial, diríamos -,

embora todo esse universo sempre se tenha feito presente na formação cultural do

povo brasileiro, como já descrito por Darci Ribeiro e outros tantos antropólogos e

sociólogos brasileiros. Porém, o seu conhecimento regular em ambiente formal o

retira da marginalização escolar, e, mais do que isso, colabora efetivamente no

reconhecimento da história do aluno negro, contribuindo, dessa forma, para que o

mesmo consiga elaborar a sua identidade e representação também a partir de

valores culturais e civilizatórios oriundos de uma história que lhe é familiar.

136

Nos diz Santos (1997) que a concepção de educação é abrangente, pois o

olhar para o mundo deve permitir a percepção de que todos os componentes da

realidade estão em relação. Sendo assim, a prática educativa está localizada em

todas as ações e o processo educativo está nas palavras e nos modos de fazer.

Amadou Hampaté Bâ nos diz, ao longo de sua obra Amkoullel, o menino fula,

que o sentido da existência humana é buscar a sabedoria e a harmonia. Deixa nítido

o quanto valores civilizatórios que ainda preservam este olhar integrado do ser

humano podem contribuir para que o homem consiga sair do estado de perda de

sentido para sua existência. Esse fenômeno da ausência de sentido e também a

relativização dos valores civilizatórios constituídos ao longo da história dos homens,

têm sido alguns dos desafios do nosso tempo. Por isso, a experiência dos grupos

étnicos descritos por Hampaté Bâ faz revelar que é possível existir um ser humano

diferente, capaz de ressignificar a sua vida por princípios que são mais

determinantes a sua existência e que acabam fortalecendo a ideia de ser e não

somente a de ter.

Ao longo da obra de Hampaté Bâ vários episódios nos chamam a atenção

pelo que representam na constituição formativa do ser humano. Contudo, neste

momento final de nossas considerações em que nos deparamos ainda com um

caminho a ser percorrido, mas que se revela fecundo e pronto para ser maturado

tanto pelas pesquisas como pelas práticas pedagógicas em curso, voltamo-nos ao

episódio de despedida de sua mãe Hadidja e do seu filho Hampaté Bâ e os

conselhos (saberes) que ela faz questão de fortalecer no coração de um jovem que

avança para o mundo.

Vejamos a descrição que Hampaté Bâ faz desse momento, que, embora

longa, ajuda-nos a compreender algo mais do sentido e significado da palavra na

tradição e, consequentemente, na educação africana como formação para vida.

Na manhã da partida, minha mãe acompanhou-me até a beira do rio. Um pouco antes de chegar à margem era preciso atravessar uma pequena duna de areia. Caminhávamos de mãos dadas. À medida que descíamos, virados para o sul, o vento do norte nos colava as roupas as costas. Minha mãe fez questão de subir na piroga para verificar com seus próprios olhos que nada faltasse. Mais sossegada distribuiu os últimos presentes e voltou para a margem. Pegando minha mão, puxou-me de lado. Ali deu-me cinquenta francos para as despesas de viagem e, tomando minhas mãos nas suas, disse-me: “Olhe bem nos meus olhos”. Mergulhei meu olhar no seu e, por alguns instantes, como se diz em fula, “nossos olhos tornaram-se quatro”. Toda a energia desta mulher indomável parecia fluir para mim através de seu olhar. Virou então minhas mãos e em um gesto de grande

137

benção materna, à maneira das mães africanas, passou a ponta da língua sobre minhas palmas

85. “Disse:” Meu filho, vou lhe dar alguns conselhos

que serão úteis para toda a sua vida de homem. Guarde-os bem”. Ela marcava cada conselho tocando a ponta de um de seus dedos. “Nunca abra sua mala em presença de alguém. A força de um homem vem de sua discrição; não é necessário mostrar nem sua miséria nem sua fortuna. A fortuna, quando exibida, atrai invejosos, pedintes e ladrões.” - “Nunca tenha inveja de alguma coisa ou de alguém. Aceite o seu destino com firmeza, seja paciente na adversidade e comedido na felicidade. Não se compare àqueles que estão acima de você, mas àqueles que são menos favorecidos que você.”. Não seja avarento. Distribua esmolas a medida de suas possibilidades ,mas dê preferência aos pobres sobre os marabus

86

ambulantes.” - “Preste o máximo de serviço, mas peça o mínimo possível. Faça-o sem orgulho e nunca seja ingrato com Deus e os homens“. - “Seja fiel em suas amizades e faça tudo para não ferir seus amigos“. - “Nunca brigue com um homem mais jovem ou mais fraco que você“.- “Se partilhar um prato com amigos ou desconhecidos , nunca pegue um pedaço grande, nem encha a boca de alimentos e, principalmente, não olhe para as pessoas enquanto estiverem comendo, porque nada é mais feio que a mastigação. E nunca seja o último a levantar-se; demorar-se diante de um prato é próprio dos glutões e a glutonaria é vergonhosa”. - “Respeite os mais velhos. Sempre que encontrar um ancião fale com ele com respeito e dê-lhe um presente, por menor que seja. Peça-lhe conselhos e faça-lhe perguntas com discrição”. - “Desconfie dos aduladores, das mulheres de má vida, dos jogos de azar e do álcool”. - “Respeite os chefes, mas não os coloque no lugar de Deus”. - “Faça suas orações regularmente. Confie sua sorte a Deus toda manhã ao levantar-se e agradeça-lhe toda noite ao deitar-se”. - ”Você entendeu bem? “Sim, Dada.” (2003, p.340-341).

A preocupação da educação tradicional africana é pela formação do ser

humano para o todo da sua existência, para a vida em sua complexidade. Não se

trata apenas de conteúdos ou de técnicas a serem aprendidas, mas de formas de se

olhar para si e para o outro que fortaleçam a dignidade, o respeito e principalmente

um sentido de vida.

A educadora brasileira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2003) nos diz

que tanto os africanos como os seus descendentes na diáspora, incluindo os afro-

brasileiros, quando pensam a educação, referem-se a um sentido maior, que visa o

tornar-se pessoa com capacidades de conduzir a sua própria vida. Nesse aspecto, a

educação refere-se a uma construção da própria vida, mas a partir de relações

geracionais, de gênero, de grupos sociais e étnico-raciais, sempre procurando

ampliar a visão de mundo, compartilhando e repassando conhecimentos e

experiências. Assim, a vida do indivíduo somente se efetiva e tem sentido no seio da

comunidade, e, portanto, não busca apenas um bem estar pessoal, individualizado,

mas um bem estar do grupo, do coletivo.

85

Esse gesto tem base na importância que se dá à palavra e à saliva tanto na cultura espiritual tradicional africana quanto no Islã. Trata-se de uma benção especial. 86

Homens e mulheres que no Islã adotam a vida mística.

138

É nessa perspectiva que pensamos que deva seguir a educação brasileira.

Daí reconhecermos na obra e nas ideias de Hampaté Bâ (1972; 2014) tanto a

apresentação de uma África ainda pouco revelada para a grande maioria das

pessoas no Brasil, como também por conter todo um cabedal de saberes que podem

contribuir de modo considerável para se rever a condição do homem no mundo.

Percebe-se o papel de grande educador que Amadou Hampaté Bâ exerceu ao longo

de sua vida, ao lembrar que o ser humano é um ser de complexidades e

transformações sempre em movimento. O ser humano é movimento, assim como o

Cosmos. E as suas possibilidades de amadurecimento se estabelecem nas

condições que vivencia e se permite compartilhar.

Hampaté Bâ (2014) nos chama a atenção para o fato de que a tradição

observa a pessoa humana em sua multiplicidade interior, um ser ainda não pronto

em seu princípio, mas que é chamado a ordenar-se, a unificar-se, sempre

procurando o seu lugar nas unidades mais vastas, estabelecidas no Cosmos e na

própria comunidade humana. O homem descrito pela tradição é síntese do universo

e todas as forças existentes procuram nele o ponto de equilíbrio para reunir-se e

assim ordenar a vida.

Somente assim o homem será pleno em sua existência. Essa é a educação

que se busca para emancipação do ser humano. A escola e outros espaços sociais

deveriam possuir o mesmo objetivo, o de despertar o homem para si mesmo e para

o mundo que ele ocupa e, com isso, para a responsabilidade que tem perante o todo

da vida.

139

Bibliografia e Referências Bibliográficas

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5ed. São Paulo: Martins Fontes,

2007.

ABIB, Pedro Rodolpho Jungers. Capoeira Angola: Cultura popular e o jogo dos

saberes na roda. Tese de doutorado em ciências sociais aplicadas à educação.

Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Campinas-SP, 2004.

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo: Ática, 1983.

ADINOLFI, Maria Paula Fernandes. A África é aqui: representações da África em

experiências educacionais contra-hegêmonicas na Bahia. Dissertação de mestrado

apresentada na área de Antropologia Social da USP, São Paulo, 2004.

AGUIAR, Thiago Borges de. Cartas de um educador e seu legado imortal. São

Paulo: Fapesp/Annablume, 2012.

AKINJOGBIN I. A. Concepto del poder en África. Barcelona: Serbal, 1981.

. O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais

do capitalismo periférico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1975.

ALCORÃO – Tradução do sentido do Nobre Alcorão para a língua portuguesa.

Texto árabe e tradução Helmi Nasr. Medina: Complexo do Rei Fahd para imprimir o

Alcorão, 1427/2007.

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral.

8ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

AMÉRICO, Márcia Cristina. Práticas coletivas na constituição da vida

quilombola: História da comunidade tradicional de Ivaporonduva. São Carlos-SP:

Pedro & João editores, 2013.

AMIN, Samir. Eurocentrismo: crítica de uma ideologia. Lisboa: Dinossauro, 1994.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa do meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio

de Janeiro: Contraponto, 1997.

ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricity. 2ed. Treton-USA: Africa Word Press, 1989.

AZEVEDO, Mateus Soares. Iniciação ao Islã e ao sufismo. 2ed. Rio de Janeiro:

Record, 1996.

140

BAALBAKI, Ezzedine Hussein. O Islã e o choque de civilizações. 2ed. São Paulo:

Arresala, 2008.

BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi, s.1. Lisboa:

Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985.

BARBIERI, César. Um jeito brasileiro de aprender a ser. Defer/GDF.

Brasília:Centro de Documentação e Informação sobre a capoeira – CIDOCA, 1993.

BARBOSA, Wilson Nascimento. Cultura negra e dominação. Coleção Aldus, no. 9.

São Leopoldo, RS, Brasil: Editora UNISINOS, 2002.

BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos. Atrás do muro da

noite: Dinâmica das culturas afro-brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura /

Fundação Cultural Palmares, 1994.

BARROS, José D’Assunção. O Campo da História - especialidades e

abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004.

BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da História Regional. Rio de Janeiro:

SEPHIS/CEAA (UCAM), 2000.

BAUMANN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

BERNAL, Martin. Black Athena: The afroasitic roots of classical civilization. New

Brunswick: Rutgers University press, 1987.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 2003.

BIBLIA SAGRADA Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2007.

BLACK, Edwin. IBM e o holocausto. 3ed. Rio de Janeiro: Campus editora, 2001.

BLAISE, Aboua Kumassi Koffi. Macunaíma / Kaydara: dois espelhos face a face.

Tese de doutorado em literatura na USP, 2012.

__________________________. Considerações sobre o lugar da África na

formação da literatura brasileira. In: Cerrados: revista do Programa de Pós-

Graduação em Literatura da Universidade de Brasília. Literaturas e Culturas

Africanas. n.30, ano 19, 2010.

BOAHEN, Albert Adu. A África diante do desafio colonial. In: História Geral da

África VII. Editor: Albert Adu Boahen. Brasília: MEC/Unesco, 2010.

141

BOFF, Leonardo. A voz do Arco Íris. São Paulo: Letra Viva, 1998.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças dos velhos. 3ed. São Paulo: Cia

das Letras, 1994.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações

Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Brasília: Ministério da Educação/Secretaria Especial de Políticas de Promoção da

Igualdade Racial / Instituto nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira, 2004.

BRUHNS, Hinnerk. O conceito de patrimonialismo e suas interpretações

contemporâneas. In: Revista de Estudos Políticos. Rio de Janeiro. N.4, 2012.

Disponível em http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2012/04/4p61-

77.pdf

BUBER, Martin. Eu e tu. 10ed. São Paulo: Centauro, 2012.

____________. Guerra contra os fracos: A eugenia e a campanha norte-

americana para criar uma raça superior. São Paulo: Girafa, 2003.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2001.

CARMICHAEL, Stoklely. O poder negro. org. David Cooper. In: Dialética da

Libertação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

CASTIANO, José Paulino. Referenciais da Filosofia Africana: em busca da

intersubjetivação. Colecção Horizonte da palavra. Maputo: UDEBA - Universidade de

Desenvolvimento da Educação Básica/Ndjira, 2010.

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1982.

CATTANI, Roberto. Islam e Islamismo. São Paulo: Claridade, 2008.

CAVALCANTE JUNIOR, Cláudio. Processos de construção e comunicação das

identidades negras e africanas na comunidade muçulmana sunita do Rio de

janeiro. Niterói: Dissertação de mestrado em antropologia apresentada ao PPGA da

Universidade Federal Fluminense, 2008.

142

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar, ao silêncio escolar. 5ed.

São Paulo: Contexto, 2006.

___________________. Introdução. In: Educação anti-racista: Caminhos abertos

pela Lei Federal 10.639/2003. Brasília: SECAD - Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. 10ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

___________________. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1982.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, São

Paulo, v.5, nº11, 1991.

_______________. A História Cultural: entre práticas e representações. São Paulo:

Ed. Difel, 1999.

_______________. A História Cultural: entre práticas e representações. 2.ed. São

Paulo: Ed. Difel, 2002.

CONCEIÇÃO, José Maria Nunes Pereira. África um novo olhar. Rio de Janeiro:

Ceap, 2006.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, estrangeiros: Os escravos libertos e sua

volta à África.2ed.São Paulo: Cia das letras, 2012.

CUNHA JUNIOR, Henrique. Nós, afro-descendentes: história africana e afro-

descendente na cultura brasileira. In: História da educação do negro e outras

histórias. Coleção educação para todos. Org. Jeruse Romão. Brasília: Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade / Ministério da Educação, 2005.

_______________________. Apresentação. In: África, afrodescendência e

educação. Goiânia: UCG, 2007.

CURTIN,P.D. Tendências recentes das pesquisas históricas africanas e

contribuição à história em geral. In: História Geral da África. V.I. Coord. Joseph Ki

Zerbo. Brasília/São Carlos. Unesco/MEC/Ufscar, 2010.

DEFOURNY, Vincent; HADAD, Fernando. Apresentação Geral. História Geral da

África. Brasília /São Carlos: Unesco/MEC/Ufscar,2010.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo,

identidades. Belo Horizonte: Autentica, 2006.

143

DIRIE, Waris. Flor do deserto. São Paulo: Hedra, 2001.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 5ed. São Paulo: Editora

Nacional, 1968.

EZE, Emmanuel C. El color de la razon: las ideias de “raza” em la antropologia de

Kant. In: MIGNOLO, W. (comp.). Capitalismo e geopolítica del conocimiento: el

eurocentrismo y la filosofia de la libertación en el debate intelectual contemporáneo.

Buenos Aires: Signo, 2001.

FAGE, J.D. A evolução da historiografia na África. In: História Geral da África. V.I.

Coord. Joseph Ki Zerbo. Brasília/São Carlos. Unesco/MEC/Ufscar, 2010.

FANON, Franz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: Edufba,2008.

____________. Os condenados da terra. Juiz de Fora- MG: Ed. UFJF, 2005.

FARIAS, P. F. de Moraes. Afrocentrismo: entre uma contranarrativa histórica

universalista e o relativismo cultural. Afro-Ásia, 29;30. Salvador, BH, 2003.

FARID, Uddin Attar. A conferência dos pássaros. São Paulo: Cultrix, 1988.

FERREIRA, Luiz Antônio. Oralidade e Escrita: Um diálogo pelo tempo. São Paulo:

Efusão, 2004.

FÉTIZON, Beatriz Alexandrina de Moura. Sombra e Luz: tempo habitado. São

Paulo: Zouk, 2002.

FORTIER, Corinne. Une pédagogie coranique: Modes de transmission des savoirs

islamiques. Paris: Cahiers d´Etudes Africaines, 2003.

FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da história oral. In: Usos e Abusos da história

oral. (Orgs). Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado. 8ed. Rio de janeiro:

Editora FGV, 2006.

FRANKL, Victor. Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração.

Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 2.ed. São Leopoldo, ed.

Sinodal; Petrópolis, ed. Vozes, 1991.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 29ed. Rio de Janeiro: Record, 1994.

_______________. Sobrados e Mocambos. 3ed. Rio de Janeiro: José Olympio,

1961.

144

FREIRE, Paulo; GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente – Angola,

Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

FROMM, Erich. O espírito de liberdade. 2ed. Rio de Janeiro. Zahar, 1970.

GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Rio de

Janeiro: Ucam/Ed. 34, 2001.

GIORDANI, Mario Curtis. História da África anterior ao descobrimento. 3ed.

Petrópolis: Vozes, 1997.

GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social. Atuação

no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010.

GULLEN, Muhammad Fethullah. Os fundamentos da fé islâmica. Tradução de

Samir El Hayek. Nova Jersey/São Paulo: Tughra Books/Kaynak/Cdial, 2009.

GURAN, Milton. Agudás: Os "brasileiros" do Benin. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira/EGF - Editora Gama Filho, 2000.

GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

HABTE, Aklilu; WAGAW, Teshome; AJAYI, Ade. Educação e mudança social. In:

História Geral da África v. 8. Editor Ali A. Mazrui e assistente de editor. C.Wondji.

Brasília/São Carlos: MEC/Unesco/Ufscar, 2010.

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. 2ed. São Paulo: Centauro, 2006.

HAMA,Boubou;ZERBO,Joseph K. Lugar da história na sociedade africana. In:

História Geral da África. V.I. Editor: Joseph Ki Zerbo. Brasília/São Carlos:

MEC/Unesco/Ufscar, 2010.

HAMPATÉ BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas/Casa das

Áfricas, 2003.

_____________________.Tradição viva. In: História geral da África I. ZERBO, J.K

(org.).Brasília:MEC/Unesco, 2010.

_____________________. Aspects de la civilisation africaine. Paris: Présence

Africaine, 1972.

145

_____________________. A educação tradicional na África. Disponível em

http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/A-educacao-tradicional-na-

Africa.pdf consultado em 28/06/2013

____________________. A noção de pessoa entre os fulas e os bambara.

Disponível em http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/A-nocao-

de-pessoa-entre-os-fula-e-os-bambara.pdf consultado em 08/01/2014.

_____________________.Confrontações Culturais – entrevista concedida a

Philippe Decraene ao jornal Le Monde em 25 de outubro de 1981. In: THOT Africa

n.80. São Paulo: Palas Athena, 2004.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. The philosophy of history. New York: Dover,

1956.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, 2005.

HITLER, Adolph. Minha Luta. São Paulo: ed. Mestre Jou, 1965.

HOUNTODJI, Paulin. Sur la philosophi africaine. Paris: Maspero, 1976.

HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. das letras,

1994.

IBRAHIM, Ahmad. Um breve guia ilustrado para compreender o Islã. Tradução

de Maria Cristina de S. Moreira. Londres/São Paulo: Darussalam/Fambras, 2008.

INIESTA, Ferran. El planeta negro: aproximación histórica a las culturas africanas.

Madri: Los libros de la catarata, 1992.

_______________. O pensamento tradicional africano. Disponível em

www.buala.org/pt/cara-a-cara/o pensamento-tradicional-africano-entrevista-a-ferrand-iniesta

consultado em 01/02/2014.

KABUNDA, Mbuy. Derechos humanos en Africa. Bilbao: Ed. Universidade de

Deusto, 2000.

KAMEL, Ali. Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar

numa nação bicolor. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2006.

KI ZERBO, Joseph. Para quando a África? Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

146

_______________. Introdução Geral. História geral da África, I: Metodologia e pré-

história da África / editado por Joseph Ki-Zerbo.– 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO,

2010.

_______________. História da África Negra volume I e II. 3ed. Portugal:

Publicações Europa América, 1999.

KOUROUMA, Ahmadou. O sol das independências. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1970.

KUNG, Hans. Religiões do Mundo: Em busca dos pontos comuns. Campinas:

Verus, 2004.

LATOUCHE, Serge. L´ocidentalisation du monde. Paris: La Découverte, 1989.

________________.La planéte des naufragés. Paris: La Découverte, 1991.

LEITE, Fábio. A questão da palavra em sociedades negro-africanas. Disponível

em http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/A-questao-da-palavra-

em-sociedades-negro-africanas.pdf consultado em 28/06/2013.

___________. A questão ancestral:África Negra. São Paulo: Palas Athena/Casa

das Áfricas, 2009.

__________. Valores civilizatórios em sociedades negro africanas. Disponível

em www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/valores-civilizatórios-em-

sociedades-negro-africanas.pdf consultado em 22/01/2014.

LIMA, Tânia; NASCIMENTO, Isabel; OLIVEIRA, Andrey. (Org.). Griots-Culturas

Africanas: linguagem, memória e imaginário. Natal: Lucgraf, 2009.

LOPES, Nei. Introdução. In: Atrás do muro da noite: Dinâmica das culturas afro-

brasileiras. Brasília: Ministério da Cultura / Fundação Cultural Palmares, 1994.

LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Práticas e estilos de pesquisa na história oral

contemporânea. In: usos e abusos da história oral. (Orgs.). Marieta de Moraes

Ferreira e Janaína Amado. 8ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

LUIZ, Viviane Marinho. O quilombo Ivaporunduva e o enunciado das gerações.

São Carlos-SP: Pedro e João editores, 2013.

MABOGUNJE, A. Geografia histórica: aspectos econômicos. In: História Geral da

África. Volume I. Editor: Joseph Ki Zerbo. Brasília/São Carlos: MEC/Unesco/Ufscar,

2010.

147

MAIGA, Hassimi O. Nossa herança africana: Reflexões de um educador do Mali

em uma universidade historicamente negra. In: Experiências étnico-culturais para

formação de professores. Organização: Nilma Lino Gomes e Petronilha

B.Gonçalves Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

MAZRUI, Ali A. Introdução In: História geral da África, VIII: África desde 1935 /

editado por Ali A. Mazrui e Christophe Wondji. Brasília: UNESCO, 2010.

MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. In: Revista de Estudos

Afro-Asiáticos, ano 23, nº1, 2001.

M´BOKOLO, Elikia. África Negra: História e civilizações Tomo I. Salvador/São

Paulo: Edufba/Casa das Áfricas, 2009.

_______________.África Negra: História e civilizações Tomo II. Salvador/São

Paulo: Edufba/Casa das Áfricas, 2011.

M`BOUKOU, Jean Pierre Makouta. Le français en Africa noire. Paris: Bordas,

1973.

MIDDELKOOP, Pieter. O velho sábio: Cura através de imagens internas. São

Paulo: Paulus, 1996.

MIRANDA-RIBEIRO, Paula. Somos Racistas. In: Revista brasileira de estudos

populacionais. São Paulo, v.23, n.2, p.375-377, jul/dez. 2006. Disponível em

http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v23n2/a12v23n2.pdf consulta em 23/03/2013.

MAGNOLI, Demétrio. Uma gota de sangue: história do pensamento racial no Brasil.

São Paulo: Contexto, 2009.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História oral e memória: A cultura popular

revisitada. São Paulo: Ed. Contexto, 1992.

MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1989.

MUDIMBE, Valentin Yves. The invention of Africa: Gnosis, Philosophy and the

order of knowledge. Indianapolis-USA: British Library / Indiana University Press,

1988.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e Sentidos. 3ed. Belo Horizonte:

Autêntica, 2009.

148

____________________. Origens africanas do Brasil Contemporâneo: Histórias,

línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Global, 2009b.

____________________. África: Trinta anos de processo de independência.

Disponível em http://www.casadasafricas.org.br/wp/wp-content/uploads/2011/08/Africa-

Trinta-anos-de-processo-de-independencia.pdf consultado em 28/06/2013.

_____________________. Superando o racismo na escola. 2ed. Brasília:

Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade, 2005.

NIANE, Djibril Tamsir. Soundiata, ou L´épopée mandingue. Paris: Présence

Africaine, 1960.

NUNES, Georgina Helena Lima. Educação formal e informal: o diálogo

pedagógico necessário em comunidades remanescentes de quilombos. In:

Dimensões da inclusão no ensino médio: mercado de trabalho, religiosidade e

educação quilombola. Brasília: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006.

NUNES, Susana Dolores Machado. A milenar arte da oratura angolana e

moçambicana. Porto - Portugal: CEAU/Universidade do Porto, 2009.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Lições sobre a África: Diálogos entre as representações

dos africanos no imaginário ocidental e o ensino da África no Mundo Atlântico (1990-

2005).Tese de doutorado apresentada na UNB. Brasília, 2007.

____________________.A história da África em perspectiva. Revista Múltipla.

Brasília, 10(16): 9- 40, jun., 2004.

OLIVEIRA, Julvan Moreira de. Africanidades e educação: ancestralidade,

identidade e oralidade no pensamento de Kabengele Munanga. Tese de doutorado

na área de Educação apresentada na USP. São Paulo, 2009.

ONG, Walter. Oralidade e cultura escrita. Campinas: Papirus, 1998.

PADILHA, Anna Maria Lunardi. Trabalho pedagógico: Qual didática para sua

teorização? In: Impulso ,v.22, p.73-82, Piracicaba-SP: 2012.

PAULA CARVALHO, José Carlos de. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e

preconceito no universo das organizações educativas. In: Interface: Comunicação,

Saúde e Educação. Vol. I, nº1. Botucatu. Fundação UNI/Unesp. jan/mar de 1994.

Disponível em http://www.interface.org.br/revista1/debates2.pdf

149

PESAVENTO, Sandra Jatahí. Em busca de uma outra história: Imaginando o

imaginário. In: Revista Brasileira de História, v. 15, n.º 29. São Paulo: 1995.

_______________________.História e História Cultural. Belo Horizonte:

Autêntica, 2004.

PHILIPS, Abu Ameenah Bilal. Compreenda o Islã e os muçulmanos. São Paulo:

Fanar/Cdial, 2008.

PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. Islã, religião e civilização: uma abordagem

antropológica. Aparecida-SP. Editora Santuário, 2010.

PONTY, Maurice Merleau. Fenomenologia da percepção. 2ed. São Paulo: Martins

Fontes,1999.

PRINS, Gwyn. História Oral. In: A escrita da história: novas perspectivas. Peter

Burke(org). tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1992.

QUEIROZ, Sônia. A tradição oral. Belo Horizonte-MG: Fale/UFMG, 2006.

RABUSKE, Edvino. Antropologia Filosófica. 5ed.Petrópolis-RJ: Vozes, 1986.

RAMOS, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. 2ed. Rio de Janeiro.

Editora UFRJ, 1995.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: A história do levante dos malês. São

Paulo: Cia. das letras, 2003.

REIS, José Carlos. História, a ciência dos homens no tempo. Londrina: Eduel,

2009.

REIS, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar: A capoeira no Brasil.

2ed. São Paulo: Publisher Brasil, 2000.

RENNÓ, Carlos. Gilberto Gil: Todas as Letras. Rio de Janeiro: Cia das Letras,

1996.

RIBEIRO, Ronilda. Alma africana no Brasil: Os iorubas. São Paulo: Oduduwa,

1996.

RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp,

2007.

150

RODRIGUES, Raimundo Nina. Os Africanos no Brasil. 4 ed.. São Paulo: Cia.

Editora Nacional, 1976.

ROCHA, Lauro Cornélio da. A formação de educadores(as) na perspectiva etno-

racial na rede municipal de ensino de São Paulo(2001-2004). In: História da

educação do negro e outras histórias. Coleção educação para todos. Org. Jeruse

Romão. Brasília: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade /

Ministério da Educação, 2005.

SANTOS, Acácio Sidinei Almeida. Notas sobre a solidariedade e o fenômeno da

orfandade na sociedade Akan: Agni – Morofoé da Costa do Marfim (África do

Oeste). In: Revista Saúde e Sociedade v.15, nº3, p.40-56, set-dez. 2006.

SANTOS, Acácio Sidinei Almeida; BAHI, Aghi. Contribuições de Georges

Niangoran–Bouah ao estudo das tradições orais da Costa do Marfim. In:

Cerrados: revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de

Brasília. Literaturas e Culturas Africanas. n.30, ano 19, 2010.

SANTOS, Aldenir Dias dos Santos. Percepção das formandas e formandos do

ano de 2003 do curso de pedagogia da Unimep sobre questões referentes às

relações raciais na prática docente. Dissertação de mestrado apresentada na

Unimep-Universidade Metodista de Piracicaba-SP, 2003.

SANTOS, Augusto Sales dos (org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas

Américas. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização e Diversidade, 2005.

SANTOS, Erisvaldo Pereira. Religiosidade, identidade negra e educação: o

processo de construção da subjetividade de adolescentes dos arcturos. Dissertação

de mestrado apresentada na Faculdade de Educação da Universidade Federal de

Minas Gerais, Belo Horizonte, 1997.

SARTRE, Jean Paul. Entre Quatro Paredes. São Paulo: civilização brasileira, 2007.

________________.Orfeu Negro. In: Reflexões sobre o racismo. São Paulo:

Difusão europeia do livro, 1968.

________________.O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Rio de

janeiro: Vozes: 1997.

SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

SENGHOR, Léopold S. Négritude et humanisme. Paris: Editions du Seuil, 1964.

151

SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio

de janeiro: Nova Fronteira, 2006.

_____________________.Um rio chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil

na África. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2002.

_____________________. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500

a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.

SILVA, Maria Lúcia da. Psique e Negritude: Os efeitos psicossociais do racismo.

São Paulo: Imprensa Oficial, 2008.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender a conduzir a própria vida:

dimensões do educar-se entre os afrodescendentes e africanos. In.: BARBOSA,

Lúcia Maria de Assunção. (Org.). De preto a afrodescendente: trajetos de pesquisa

sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos:

EDUFSCar, 2003.

SILVÉRIO, Valter Roberto. O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e

metáfora. In: Revista USP / Pós-modernidade e multiculturalismo, nº42, São Paulo:

USP/Coordenadoria de Comunicação Social, junho-agosto de 1999.

SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. São Paulo: Forense

Universitária, 2003.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão

racial no Brasil (1870-1930).São Paulo: Cia das letras, 1993.

SHEHA, Abdurrahman Al. Muhammad, o mensageiro de Deus. Riad/São Paulo:

Cdial, 2007.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1992.

THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico

(1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

TRAORÉ, Aminata. Le viol de L´imaginaire. Paris: Fayard, 2004.

TSHIBANGU, Tshishiku; AJAYI, Ade; SANNEH, Lemim. Religião e evolução

social. In: História Geral da África v. 8. Editor Ali A. Mazrui e assistente de editor.

C.Wondji. Brasília/São Carlos:MEC/Unesco/Ufscar, 2010.

152

TUDU, Safiya Hussaini Tungar; MASTO, Raffaele. Eu, Safyia: A história da

nigeriana que sensibilizou o mundo. Campinas-SP: Verus editora, 2004.

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: História geral da África I.

ZERBO, J.K (org). Brasília: MEC/Unesco, 2010.

VIEIRA, Cesar Romero Amaral. Protestantismo e educação: A presença liberal

norte-americana na reforma Caetano de Campos-1890. Tese de doutorado em

Educação. Universidade Metodista de Piracicaba - Unimep. Piracicaba-SP, 2006.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1991.

_____________.Economia y Sociedad: Esbozo de sociologia compreensiva.

México: Fondo de Cultura Económica,1992.

WOJTYLA, Karol Jozéf. Papa João Paulo II. Catecismo da Igreja Católica. São

Paulo: Loyola, 2002.

XAVIER, Juarez Tadeu de Paula. As teias entrelaçadas pela oralidade africana.

In: XIV Curso de difusão cultural CEA/USP. Aspectos da Cultura e da história do

negro no Brasil. Período de março a junho de 2011.

ZUMTHOR, Paul. Tradição e esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997.

153

ANEXO

154

Figura 1- Amadou Hampaté Bâ em Treichville (Abidjan – Costa do Marfim) em 1966. Foto de Philippe Dupuich extraída de Sur les traces d´Amkoullel, L´enfant peul, Actes Sud, 1998.

155

Figura 2- Mapa da África Ocidental com delimitação dos países na colonização mas apresentando algumas

divisões anteriores, baseada nos territórios de alguns grupos étnicos. Imagem do livro Amkoullel, o menino

fula (2003).

156

Figura 3 – Mapa do Mali apresentando a região em que Amadou Hampaté Bâ viveu a sua infância e

adolescência. Nesta região viviam vários grupos étnicos entre eles: fulas, dogons, bozos, sereres, tucolores,

diwambés, entre outros. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).

157

Figura 4 – Mapa mais detalhado da região em que viveu Amadou Hampaté Bâ que destaca a cidade de

Bandiagara. Imagem do livro Amkoullel, o menino fula (2003).

158

Figura 5 – Mapa da África Ocidental

159