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  • MXIMAS DE EPICTETOTraduo de Alberto Denis

    Compilao da 1 Edio da GRFICA E EDITORA EDIGRAF LTDA. So Paulo, Brasil Col. Biblioteca de Autores Clebres

    1

    A escravido do corpo obra da sorte. A da alma obra do vcio. Quem desfruta da liberdade do corpo escravo, se tem agrilhoada a alma; quem tem a alma livre desfruta de inteira liberdade, embora carregado de pesados grilhes. A natureza, com a morte, pe cobro escravido do corpo, mas a da alma s cessa com a virtude.

    2

    Guarda-te de exaltar os teus feitos no comrcio comum com os homens, pois se sentes grande prazer em narr-los, nenhum sentem eles em ouvi-los.

    3

    Envergonhar-te-ia, sem dvida, a vil entrega do teu corpo ao primeiro transeunte e, no entanto, sem corar, abandonas a alma ao primeiro que se te depara.

    4

    No ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrrio, faze que resplandeam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperana. Os quadros no passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria um ornamento real e verdadeiro.

    5

    Sacode enfim o jugo e, livre da servido, levanta ao cu o rosto para dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me ser odioso, se justificar a tua misericrdia para com os homens".

    6

    Traze constantemente gravados no pensamento a morte, o desterro e as demais coisas que se te afiguram terrveis, e podes ter a certeza de que jamais te assaltaro idias indignas, nem tampouco desejars com demasiado ardor coisa nenhuma.

    7

    O verdadeiro bem do homem est sempre na parte em que difere dos animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assduos cuidados, defendam-na as virtudes e, seguramente, nada ter que temer.

    8

    Vais a Roma, empreendes to grande jornada para obter um cargo mais brilhante que o de que ests revestido. Que jornada empreendeste para melhorar os teus juzos e opinies? Que consultaste para corrigir o que em ti h de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus juzos? Percorre com a imaginao todos os anos da tua vida e vers que sempre fizestes o que hoje fazes.

    9

    O que senso-comum? Assim como, em todos os homens, existe um ouvido geral e comum que lhes permite discernir igualmente as vozes e ouvir todas as palavras que se proferem, e, mais, outro ouvido, que pode ser chamado artstico, que discerne e separa os sons uns dos outros, assim tambm h em todos os homens certo sentido natural que, quando no possuem nenhum defeito assinalado no entendimento, lhes permite compreender igualmente tudo o que se lhes prope. E essa disposio, igual em todos, o que se chama senso-comum.

    10

    Um homem eleito tribuno da plebe. Volta para casa e a v iluminada. Todos se congratulam com ele. Corre ao Capitlio, faz sacrifcios e d graas aos deuses. Deu-lhes, por acaso, graas por ter so entendimento e vontade conforme natureza?

    11

  • Nunca te vanglories do que de ti no depende. Se um cavalo pudesse falar e dissesse: Sou formoso, seria suportvel. Mas que digas tu com vanglria: tenho um formoso cavalo, no. De pouco te envaideces, j que tomas parte apenas no mau uso que fazes da tua imaginao. Quando a usares, sem contrariar a natureza, poders gloriar-te, porque te gloriars de um bem que teu.

    12

    Quando pretendemos embarcar, desejamos um bom vento para seguirmos o nosso caminho; esperando o dia da partida, vamos com freqncia verificar que vento sopra, e, se nos contrrio, exclamamos: sempre vento norte! Quando soprar o vento do poente? Meu amigo, soprar quando lhe aprouver, ou melhor, quando aprouver a Quem manda em todas as coisas. Sers, por acaso, dispensador dos ventos, como olo? Faamos sempre o que de ns depende, e valhamo-nos do resto, tal qual se nos apresenta e sucede.

    13

    Se pretendes que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam sempre, s louco, pois querer que as coisas que de ti no dependem dependam, e seja teu o que de outro. Tambm, se queres que o teu criado no cometa nunca falta nenhuma, ests louco, pois querer que o vcio no seja tal vcio. No queres ver contrariados os teus desejos? No desejes seno aquilo que de ti depende.

    14

    De que te queixas? A Divindade deu-te o que h de maior, de mais nobre, de mais divino, deu-te a faculdade de poderes fazer bom uso das tuas qualidades, e de em ti prprio achares os verdadeiros bens. Que mais pretendes? Regozija-te, adora to carinhoso pai e no deixes de dar-lhe graas no fundo do teu esprito.

    15

    Os deuses criaram todos os homens para serem felizes; se so desgraados a culpa somente deles.

    16

    As enfermidades entorpecem os atos do corpo, mas no os da vontade. A coxeadura poder ser um obstculo para o meu p, mas no para mim. Pensa desse modo em todos os acidentes que te ocorrerem, e vers que podero ser obstculo para tudo, menos para ti.

    17

    A natureza do mal no existe no mundo, pois no se concebe um fim destinado a se no realizar.

    18

    Perdeste bens, prazeres, presentes, distines, e consideras tal uma grande perda de que no consegues consolar-te; mas, ao perderes a fidelidade, o pudor, a doura, a modstia, no notas falta. No entanto, uma causa involuntria, e alheia a ns, que nos rouba aqueles bens, e, por conseguinte, no vergonhoso perd-los. Pelo contrrio, estes ltimos, bens internos, no os perdemos seno por nossa culpa; e se vergonhoso e reprovvel no possu-los, mais digno ainda de reprovao e vergonha chegar a perd-los.

    19

    Assim como um mercador no repele moeda de ouro assinalada pelo busto do Prncipe, no recusa a alma os verdadeiros bens; com freqncia os recebe falsos, mas que o busto do Prncipe a enganou, e ela no possui a arte de lhe conhecer a falsidade.

    20

    Se empreenderes feito superior s tuas foras, o pior no que, por fim, o abandones, mas que te esqueas do que poderias realizar.

    21

    Em todas as coisas deve fazer-se o que de ns prprios depende. Quanto ao resto, mantenhamo-nos firmes e tranqilos. Sou obrigado a embarcar. Que devo fazer? Escolher cuidadosamente o barco, o piloto, os marinheiros, a estao, o dia e a hora, ou seja, o que de mim depende. J em alto mar, sobrevem terrvel tempestade; no assunto meu. O barco afunda. Que fazer? Tudo quanto de mim depende: no grito, nem me atormento. Sei que tudo o que nasceu deve morrer; a lei geral. preciso que eu morra. No sou a eternidade, sou um homem, uma parte do todo, assim como a hora uma parte do dia. A hora chega e passa; eu tambm chego e passo. O modo de passar indiferente, quer seja pela febre, quer pela gua; tudo o mesmo.

  • 22

    Quem se ajusta como deve s circunstncias necessrias prudente e hbil no conhecimento das coisas divinas.

    23

    No pretendas que as coisas sejam como as desejas. Deseja-as como so.

    24

    Lembra-te sempre destas mximas gerais: "Que prprio de mim? Que no prprio de mim? Que devo fazer?" At agora, deixaram-te os deuses gozar de um prazer imenso, deram-te tempo suficiente para pensar, ler, meditar, escrever acerca destas importantes matrias. Esse tempo deve haver-te bastado. Agora, dizem-te: Vai, combate, mostra o que aprendeste, mostra se s atleta digno de ns e de ser coroado, ou um desses gladiadores vis que percorrem o mundo ocultando as suas derrotas.

    25

    admirvel a natureza e a lei que nos liga vida to fortemente, dizia Xenofonte. Temos extraordinrio cuidado com o nosso corpo, por repulsivo e desagradvel que seja, ao passo que, se tivssemos de cuidar do nosso vizinho, por quatro dias que fosse, a coisa nos pareceria insuportvel

    26

    s cego e injusto; podes ser independente e preferes depender de um milho de coisas que te so estranhas e te afastam do verdadeiro bem.

    27

    - Sou pretor na Grcia. - Tu pretor? Sabes julgar? Onde aprendeste tal cincia? - Tenho a nomeao de Csar. E se Csar te houvesse nomeado juiz em msica, de que te valeria a nomeao, se jamais tivesses aprendido uma nota sequer? Mas deixemos isso, e j que o que procuraste foi a nomeao, responde: de que modo obtiveste o cargo? Quem to proporcionou? A quem estendeste a mo? A que porta bateste? A quem deste presente? Com que baixezas, com que indignidade, com que mentiras o compraste?

    28

    da virtude, e no do nascimento, que provm a nobreza do homem. - Valho mais que tu; meu pai foi cnsul, eu sou tribuno e tu no s nada. Se ns ambos fssemos cavalos, e tu me dissesses: - Meu pai foi o mais veloz de todos os cavalos do seu tempo, e eu disponho de muito feno, de muita cevada e de um magnfico arreio, eu te responderia: - Acredito no que me afirmas; mas vamos comer. No h no homem alguma coisa que lhe seja peculiar, como a corrida ao cavalo, e por meio da qual se lhe possa conhecer a qualidade e julgar do seu mrito? No o pudor, a honradez, a justia? Mostra-me, pois, a vantagem que sobre mim tens nisso, faze-me ver que vales mais do que eu, como homem, porque se me dizes: posso relinchar ou escoicear, respondo-te que a tua vanglria se estriba numa qualidade prpria de asno e de cavalo, e nunca de homem.

    29

    Ningum pode ser mau e vicioso sem perda segura e dano certo.

    30

    De quem esta medalha? De Trajano? Recebo-a e conservo-a. De Nero? Abomino-a e atiro-a para longe de mim. Faze o mesmo com os bons e os maus. Quem este? Um homem bondoso, socivel, benfeitor, sofrido, amigo dos pobres; apoio-o, fao dele meu concidado, meu amigo. E aquele quem ? Um homem que tem alguma coisa de Nero; colrico, mau, implacvel, cruel; repilo-o. Por que me disseste que era um homem? Homem soberbo, vingativo, colrico, no homem, assim como ma de cera no ma; desta s tem o aspecto e a cor.

    31

    Nunca sers vencido, se no empreenderes luta na qual de ti no dependa vencer.

    32

    Por acaso ser infeliz o cavalo pelo fato de no poder cantar? No, mas pelo fato de no poder sentir. S-lo- o co, por no poder voar? No, mas pelo fato de carecer de inteligncia. Consistir a infelicidade do homem em no poder estrangular lees e realizar coisas extraordinrias? No, pois

  • no foi criado para isso. O homem infeliz quando perde o pudor, a bondade, a justia, e quando se apagam todos os divinos caracteres, impressos em sua alma pelos deuses.

    33

    Quando ouo chamar a algum feliz por ver-se favorecido pelo Prncipe, pergunto imediatamente: Que lhe sucedeu? - Foi colocado frente de uma provncia. - Mas, obteve ao mesmo tempo tudo quanto precisa para govern-la bem? - Foi nomeado pretor. - Mas dispe de meios e condies para o ser? No so as dignidades que proporcionam felicidade, mas sim o desempenh-las bem e delas fazer bom uso.

    34

    Que no faz o banqueiro para examinar o dinheiro que lhe entregam? Emprega todos os sentidos, a vista, o tacto, o ouvido. No se contenta com fazer vibrar a moeda uma, duas, trs vezes; fora de analisar os tinidos, quase se converte em msico. Todos somos banqueiros naquilo que, julgamos, nos interessa; no h cuidado nem ateno que no empreguemos para evitar que nos enganem. Mas quando se trata da nossa razo, de examinar os nossos juzos, somos preguiosos e negligentes, como se tal no tivesse para ns nenhum interesse, porque desconhecemos os prejuzos acarretados pela nossa incria.

    35

    Exigem os sentinelas uma contra-senha de quem quer que se aproxime. Faze o mesmo: exige uma contra-senha de tudo quanto se te apresente imaginao, e nunca sers surpreendido.

    36

    O desejo e a felicidade no podem estar juntos.

    37

    Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade dos deuses superior minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos.

    38

    Conserva bem o teu e no invejes o alheio. Nada te impedir de ser venturoso.

    39

    Em vez de fazeres a crte a um velho rico, faze-a a um sbio. Este no te far corar, e tu jamais te afastar dele de mos vazias.

    40

    Suponde uma cidade governada segundo as mximas de Epicuro. Nela tudo ser transtorno. No haver casamento, nem magistrados, nem colgios, nem polcia, nem educao possvel; a piedade, a santidade, a justia sero desterradas; seguir-se-o apenas torcidas regras de procedimento e conselhos perniciosos, que nem as mulherezinhas mais desavergonhadas ousaro sustentar. Pelo contrrio, numa cidade governada segundo as mximas ditadas pela razo, reinar a justia e a ordem; seguir-se-o opinies ss, praticar-se-o todas as virtudes, florescer a justia, estar bem regulamentada a polcia, casar-se-o os cidados, tero filhos e serviro aos deuses; o marido, contente com sua mulher, no cobiar a do prximo; contente com o seu bem, no invejar o dos outros. Numa palavra, em tal cidade se cumpriro todos os deveres.

    41

    No depende de ti ser rico, mas ser venturoso. A riqueza nem sempre constitui um bem e, certamente, pouco duradoura; mas a felicidade que emana da sabedoria eterna.

    42

    to difcil aos ricos adquirir sabedoria quanto aos sbios adquirir riqueza.

    43

    O que aflige no a pobreza, mas a avareza, assim como no a riqueza que preserva de todo e qualquer temor, mas a razo.

    44

    Ornar a prpria morada com mveis preciosos e magnficos amar o luxo. Ornar a alma com bondade, liberalidade e justia ser verdadeiramente magnfico e humano.

  • 45

    A vida que se passa na suntuosidade e na moleza uma torrente de guas turvas, espumosas, violentas, tumultuosas e passageiras. A vida empregada na virtude uma pura fonte cujas guas cristalinas, ss e frescas, jamais se acabam.

    46

    No te esqueas de que so os ricos, os reis, os tiranos que proporcionaram personagens s tragdias; os pobres no aparecem nos nossos teatros, e quando neles tm lugar entre os cantores e bailarinas. So os reis que prosperam no comeo da obra; tudo lhes sorri, so honrados, respeitados, erguem-se-lhes altares, ornam-se-lhes os palcios de coroas e bandeiras e, ao cabo do terceiro ou quarto ato, exclamam: Citrea, por que me abriste as portas?

    47

    Prescreve-te desde o incio certas regras, e observa-as, quer estejas s, quer acompanhado.

    48

    No rias por muito tempo, nem com excesso, nem com freqncia.

    49

    Guarda-te de usar coisas necessrias ao corpo, enquanto o no exijam as necessidades da alma, como a alimentao, as vestes, a habitao, os criados, etc., e repele tudo quanto diz respeito moleza e vaidade.

    50

    Renes em ti qualidades, cada uma das quais exige deveres que mister cumprir; s homem, cidado do mundo, filho dos deuses, irmo dos outros homens. Sob outros aspectos, s senador, ou possuis outra dignidade, s jovem ou velho, filho, pai ou marido. Pensa em tudo aquilo a que te obrigam tais nomes e trata de no desonrar nenhum deles.

    51

    Foi bela sentena a de Agripa: jamais me servirei eu prprio de obstculo.

    52

    Como os faris dos portos que prestam auxlio aos barcos perdidos, o homem de bem, na cidade combatida por toda espcie de tempestades, de grande utilidade aos concidados.

    53

    Antes de te apresentares ao tribunal dos juizes, apresenta-te ao da justia.

    54

    Empalideces, tremes, perturbas-te quando vais ver um prncipe ou outro ilustre senhor - Como me receber? Como me ouvir? - Vil escravo! Receber-te-, ouvir-te- como queira; tanto pior para ele se acolher mal um homem prudente. Podes tu, por acaso, sofrer pelo erro de outrem? Como lhe falarei? - Falar-lhe-s como te aprouver. - Tenho medo de perturbar-me. - No sabes falar com discrio, com prudncia e com livre dignidade? Quem te aconselhou a temer um homem? Zeno no temeu Antgono, mas Antgono temeu Zeno. Perturbou-se Scrates quando falou aos tiranos e aos seus juizes? Tremeu Digenes quando falou a Alexandre, a Filipe, aos piratas, ao amo que o havia comprado?

    55

    Quem se submete aos homens j est submetido s coisas.

    56

    Livra-te de desejos e temores, e livrar-te- dos teus tiranos.

    57

    Acabas de libertar um escravo. Mas tu, que lhe desta a liberdade, s livre? No s escravo de teu dinheiro, de tua mulher, de teus filhos, de teu tirano, do ltimo lacaio de um tirano?

    58

    Muito bem disse Digenes que o nico meio de estabelecer a liberdade estar pronto para morrer.

    59

  • O prprio Digenes escreveu ao rei dos persas: "Mais fcil que reduzir os atenienses escravido ser-te- reduzir os peixes; um peixe viver mais tempo fora da gua que um ateniense na escravido".

    60

    Quando estiveres no teu quarto, de noite, com a porta bem fechada e apagadas as luzes, guarda-te de crer que ests s, que o no ests.

    61

    Afirmava Trasia preferir ser morto hoje a desterrado amanh. Que lhe respondeu Rufo? Se consideras pior o primeiro, s louco em o escolher; se o consideras melhor, em que estribas a escolha?

    62

    Diante de toda imagem que te assalte deves estar pronto a dizer: s enganosa, e no o que pareces. Examina-a bem, aprofunda-a e, para sond-la, serve-te das regras aprendidas, sobretudo da que consiste em examinar se o que te aparece do nmero das coisas que dependem de ti ou das que de ti no dependem.

    63

    Visto que aspiras a to grandes coisas, lembra-te de que no deves trabalhar medianamente por adquiri-las. Mas de todas as exterioridades deves renunciar completamente a umas e postergar outras; porque se tentas alcan-las juntamente, perseguindo ao mesmo tempo os verdadeiros bens, as dignidades e as riquezas, no obters nem sequer estas ltimas; talvez deixes de conseguir alguns bens, mas certamente carecers dos nicos que realmente podem constituir a tua felicidade.

    64

    No te esqueas de que se tomas por livres as coisas que, pela sua natureza, so escravas, e por tuas prprias as que de outrem dependem, vers por toda parte obstculos, afligir-te-s, perturbar-te-s, e queixar-te-s dos deuses e dos homens. Se, pelo contrrio, tomas por teu o que verdadeiramente te pertence e por alheio o dos outros, ningum te obrigar ao que no queiras, nem te impedir realizar os teus gostos, nem ters motivo de queixa, nem de acusao.

    65

    Qual a natureza da divindade? Inteligncia, cincia, ordem, razo. Podes, portanto, conhecer qual a natureza do teu verdadeiro bem, que nela somente se encontra.

    66

    Um dia, perguntou um insolente a Digenes: s tu, Digenes, o que cr no haver deuses? - Sou Digenes, respondeu-lhe ele, e to certo estou de que h deuses, que estou completamente persuadido que te detestam.

    67

    Quando te aproximares dos prncipes e dos magnatas, lembra-te de que h l em cima um Prncipe ainda maior, que te v e te ouve, e a quem deves comprazer mais que a qualquer outro.

    68

    Queres agradar aos deuses? Reflete que no h coisa que mais detestem do que a impureza e a injustia.

    69

    No se entristecia Hrcules por deixar rfos os filhos, pois sabia no haver rfos no mundo, e terem todos os homens um pai que deles cuida e que jamais os abandona.

    70

    O comeo da filosofia conhecermos a nossa fraqueza, a nossa ignorncia e os deveres necessrios e indispensveis.

    71

    Que o filsofo? Homem que, se o ouves, h de fazer-te certamente mais livre que todos os pretores.

    72

  • Se h uma arte de bem falar, h igualmente uma arte de bem ouvir.

    73

    Por que discutir com pessoas que se no rendem s mais evidentes verdades? No so homens, so pedras.

    74

    Julgas que te direi laborioso, ainda que passes as noites estudando, lendo? No, sem dvida. Quero antes saber a que ligas tal estudo e aplicas tal esforo; porque no digo laborioso o homem que vela a noite inteira para ver a prometida; digo que est apaixonado. Se velas pela tua glria, chamo-te ambicioso; se para juntar dinheiro, chamo-te interessado; mas se velas para cultivar e formar a razo, e acostumar-te a obedecer natureza e a cumprir os teus deveres, somente ento te direi laborioso, porque esse o nico trabalho digno do homem,

    75

    Cobres de injrias uma pedra. Que proveito ters? No compreender nada do que disseres. Imita a pedra e no ds ouvidos s injrias.

    76

    No h coisa que o homem sensato suporte menos do que tudo quanto irracional.

    77

    Para cada um a medida da riqueza o corpo, como o p a medida do calado. Se te ativeres a essa regra, guardars a medida justa; se dela te esqueceres, estars perdido, e descambars necessariamente para um precipcio em que nada te poder deter. Do mesmo modo, no calado, uma vez que passares a medida do teu p, ters sapatos dourados, ters sapatos de prpura e, por fim, hs de quer-los bordados, pois no h termo para o que ultrapassa os justos limites.

    78

    Vale mais o perdo que a vingana, porque um efeito de uma natureza doce e humana, e outra o de uma organizao feroz e brutal.

    79

    No deve inspirar medo a pobreza, nem o desterro, nem a priso, nem a morte. O que deve inspirar medo o prprio medo.

    80

    Adquiriste belas coisas. Tens muitos vasos de ouro e prata, s rico, mas o melhor te falta: a constncia, a submisso s ordens divinas, a tranqilidade, o estar isento de confuso e temor. Quanto a mim, pobre como sou, sou mais rico que tu. No me preocupo com ter padrinhos na crte; no me importo com o que possa dizer-se de mim ao Prncipe, e no fao mal a ningum. Eis o que me faz gozar de todos os bens. Tens vasos de pedraria, mas todos os teus pensamentos, todos os teus desejos, todos os teus atos, todas as tuas inclinaes so de terra.

    81

    Todos tememos pelo destino do corpo, e na alma ningum pensa.

    82

    Lembra-te de que deves haver-te na vida como num festim. Chega-te um prato? Estende a mo com decncia, e serve-te moderadamente. Retiram-no da tua presena? No o retenhas. Ainda no chegou? No estendas muito longe o teu desejo, e espera que chegue, afinal, ao teu lado. Faze o mesmo com os filhos, com a mulher, com os cargos e as dignidades, com a riqueza, e sers digno de admitido prpria mesa dos deuses. Se, ao te serem apresentados os manjares, os no tocares, e repelires ou menosprezares, no somente sers convidado dos deuses, mas seu companheiro. Por tal meio, Digenes, Herclito e outros chegaram a ser homens divinos e universalmente reconhecidos como tais.

    83

    Houve por bem Pris raptar Helena, e houve esta por bem segui-lo. Se da mesma maneira a Menelau se houvesse afigurado bem dispensar uma esposa infiel, que teria acontecido? Teramos perdido a Ilada e a Odissia. O resto no tem importncia.

    84

  • Por que meio conseguiremos no formar falsos juzos? Evitando que tal nos ensinem desde a infncia. A nossa nutriz, que nos ensina a caminhar, quando, por acaso, damos de encontro a uma pedra e choramos, em vez de repreender-nos, pe-se a ralhar com a pedra. Poderia esta adivinhar que iramos bater contra ela, e mudar de lugar? Quando j somos adolescentes, se, ao sairmos do banho, no achamos pronta a refeio, irritamo-nos, e o nosso pedagogo, ou aio, em vez de nos reprimir a clera, comea a ralhar, por sua vez, e com mais aspereza, voltando-se para o cozinheiro. Bem se lhe poderia dizer: - Pagam-te para ser mestre do cozinheiro ou do menino? Modera a clera e corrige a impacincia do teu discpulo. - Quando j somos homens formados e temos as nossas ocupaes, vemos todos os dias casos idnticos. por isso que vivemos e morremos crianas. Que ser criana? - Assim como na msica ou nas letras, criana quem a no sabe, ou a sabe mal, na vida pode chamar-se criana quem no sabe viver e no tem idias sensatas.

    85

    O sbio salva a vida ao perd-la.

    86

    Pergunto-te que progresso realizaste na virtude, e mostras-me um livro de Crisipo, que te gabas de compreender. como se um atleta, cuja fora eu pretendesse conhecer, em vez de me mostrar os braos musculosos e os largos ombros, me fizesse ver apenas as manoplas. Assim como quereria ver o que fez o atleta com as manoplas, quereria saber o que fizeste tu com o livro de Crisipo. Praticaste-lhe os preceitos? Ordenaste bem os teus temores e desejos? O progresso aparece na prpria obra. Educaste a alma na liberdade, na fidelidade, no pudor? Acha-se em estado de nada lhe poder servir de obstculo e perturbao? Prescindiste na vida dos gemidos, das queixas e das exclamaes importunas? Meditaste o que a priso, o ostracismo, a cicuta? Podes dizer em qualquer ocasio: sigamos com valor o caminho pelo qual nos chamam os deuses?

    87

    O respeito que se tem ao que pode prejudicar como o altar erguido febre no meio de Roma. Adora-se, porque se teme.

    88

    Nunca digas: perdi isto, seno: devolvi. Morreu-te o filho? Devolveste-o. Morreu-te a mulher? Devolveste-a. Tirou-se-te a terra? uma restituio que fizeste. Quem ta tira mau; mas que importa a qualidade das mos com as quais te tirada? Usa todas as coisas que esto em teu poder como coisas que te no pertencem, como fazem os viandantes com as estalagens.

    89

    Se Scrates, dizes, se tivesse salvado, ainda seria til aos homens. - Meu amigo, o que Scrates disse e fez, recusando salvar-se e morrendo pela justia, muito mais til que tudo quanto houvera podido fazer noutro caso.

    90

    Duas coisas h que devem ser tiradas aos homens: a vaidade e a desconfiana.

    91

    Tudo quanto se pode utilmente descuidar, mais utilmente ainda se pode abandonar.

    92

    Em tudo necessria a ateno, at mesmo nos prazeres. H coisa que a negligncia adquira facilmente?

    93

    Os que sustentam no haver verdade conhecida desmentem tal princpio com uma pretensa verdade. Seja verdadeira ou falsa tal afirmao para eles, uma verdade conhecida.

    94

    mister possua um Prncipe extraordinrio mrito para que, somente por amor, se lhe obedea.

    95

    Por que sou velho? Vil escravo! Acusas a Providncia por um p disforme. Que mais racional, que a Providncia esteja submetida ao teu p, ou que este o esteja Providncia?

    96

  • A grandeza do entendimento no se mede pela extenso; mede-se pela verdade e certeza das opinies.

    97

    Pretendes ser como os maus comediantes, que s logram cantar nos coros?

    98

    O meu dever, enquanto me dure a vida, dar graas aos deuses, louv-los pblica e particularmente, e no deixar de os abenoar at que tenha termo a vida.

    99

    Se te possvel, faze recair a conversao dos teus amigos sobre coisas convenientes e dignas. E se ests entre estranhos, guarda prudente silncio.

    100

    Quando vs uma vbora ou uma serpente num barco de ouro, acaso lhe tens alguma estima? No sentes por ela o mesmo horror, a causa da sua natureza mortal e venenosa? Faze o mesmo com o mau, quando o vs no meio dos seus haveres.

    101

    Evita comer fora de casa e foge dos festins pblicos. Mas se uma circunstncia extraordinria te obriga a assistir a um deles, redobra a ateno para contigo prprio, a fim de no vires a ser infludo pelas maneiras vulgares. Sabe que se um dos convidados sujo, necessariamente se manchar quem lhe estiver ao lado, por mais limpo que seja.

    102

    Cada qual se atribui livremente um preo alto ou baixo, e ningum vale seno o que se faz valer. Tacha-te, pois, de livre ou de escravo, que isso apenas de ti depende.

    103

    Scrates amava os filhos, mas amava-os como homem livre, e lembrado de que, em primeiro lugar, devia amar os deuses. Assim, jamais proferiu palavra que no fosse digna de homem de bem, nem quando se defendeu perante os juizes, nem quando foi senador, nem quando esteve na guerra. Ns, porm, em tudo achamos pretexto de baixeza e covardia; no filho, na me, no irmo. No obstante, deveramos no fazer-nos desgraados por ningum, e, pelo contrrio, fazer de todas as criaturas meios da nossa felicidade, e, principalmente, servidores dos deuses que nos criaram, a fim de sermos venturosos.

    104

    Deixas de prestar ateno e confias em que tornars a prest-la, quando te aprouver. Uma leve falta descuidada hoje te precipitar amanh em outra maior, e esta, repetida, formar em ti um hbito que no mais poders corrigir.

    105

    Careces do necessrio para viver, e perguntas-me se, para procur-lo, deves rebaixar-te aos mais abjetos misteres: que posso dizer-te sobre isso? H pessoas que preferem o mais baixo mister a morrer de fome: outras h s quais tal seria insuportvel. No , portanto, a mim que deves consultar, seno a ti prprio.

    106

    Assim como esta proposio: dia, noite, muito sensata quando est separada e constituda em duas partes, e insensata quando complexa, isto , quando as duas partes constituem uma, assim tambm nos festins no h nada to insensato como querer algum tudo para si prprio, sem considerao aos demais. Portanto, quando te convidarem a um banquete, lembra-te de no pensar tanto na qualidade dos manjares servidos, que te excitem o apetite, como na qualidade de quem te convidou e em conservar o respeito e admirao que lhe deves.

    107

    Procura, a maioria das vezes, guardar silncio, ou, pelo menos, no proferir seno as palavras necessrias, e s breve. Raramente nos vemos obrigados a falar, se no falarmos mais do que quando o permitam as circunstncias; no nos entretenhamos com coisas triviais e comuns, como os combates de gladiadores, as corridas de cavalos, os trajes, o comer, o beber, que so assuntos das

  • conversaes de todos os dias. Sobretudo, jamais fales dos homens para critic-los ou elogi-los, e menos ainda para estabelecer entre uns e outros comparaes.

    108

    Queres parecer-te ao total dos homens, como se parece um fio da tua tnica aos demais fios que a compem, mas eu quero esta faixa de prpura que no somente bela, como tambm embeleza tudo aquilo a que se aplica. Por que, pois, me aconselhas a ser como os outros? Se eu fora como o fio, no seria como a prpura.

    109

    Quando embarco e s vejo cu e gua, espanta-me a imensa e lquida superfcie que me rodeia, como se tivesse de beb-la toda ao naufragar, sem ter em conta que bastam trs medidas de gua para afogar-me; do mesmo modo, ao menor tremor de terra imagino que vai cair sobre mim a cidade inteira, quando sei que basta uma telha para quebrar-me a cabea. Ah, desditoso escravo da imaginao!

    110

    Os loucos so incorrigveis. Afirma o provrbio que mais fcil quebrar um louco do que mud-lo.

    111

    Lembra-te de que o fim dos teus desejos obter o desejado, e o fim dos teus temores evitar o temido. Quem no obtm o que deseja desgraado, e quem cai no que teme msero. Se no professares averso seno ao que contrrio ao teu verdadeiro bem e de ti depende, jamais cairs no temido; mas se temeres a morte, as enfermidades ou a pobreza, sers msero. Faze, portanto, recair os teus temores sobre as coisas que de ti dependem, e quanto aos teus desejos, faze o mesmo, porque se desejas alguma coisa que no esteja em ti alcanar, sinal evidente de te no achares ainda em estado de conhecer as que devemos desejar. Esperando tal estado, contenta-te com desejar e temer as coisas docemente, sempre com exceo e sem violncia.

    112

    Compomo-nos de duas naturezas assaz distintas: de um corpo que nos comum com os animais e de um esprito que nos comum com os deuses. Uns tendem para o primeiro parentesco, se permitido assim falar, parentesco desditoso e morto, e outros tendem para o segundo, parentesco ditoso e divino. Nasce da pensarem uns nobremente e outros, em maior nmero, s terem pensamentos baixos e indignos. Que sou eu? Um homem desditoso, e as carnes que me revestem so, com efeito, ms e mseras; mas trago em mim algo mais nobre que a carne; por que, pois, tamanho apego a ela, afastando-me desse outro princpio to elevado? Vede a pendente pela qual se atira a maioria dos mortais, e vede por que h neles tanto de tigre, tanto de lobo, tanto de leo, e to pouco de homem. Cuidado, meu amigo! Procura no aumentar o nmero de tais monstros.

    113

    Considera, primeiramente, o que desejas; depois, examina a tua prpria natureza, e v se suficientemente forte para levar o fardo. Queres ser gladiador? Olha os braos, considera os msculos, examina as costas, porque nem todos nascemos para a mesma coisa. Pensas que, abraando tal profisso, poders comer como os outros, beber como eles, renunciar como eles a todos os prazeres? mister velar, trabalhar, afastar-se dos parentes e dos amigos, ser o joguete de uma criana, ficar por baixo de todos nas honrarias, nos cargos, nos tribunais; numa palavra, em todos os negcios. Considera bem tudo isso e v se podes comprar por tal preo a tranqilidade, a liberdade, a constncia. Se no, dedica-te a outra coisa e no procedas como as crianas: no sejas hoje filsofo, amanh sequaz, em seguida pretor e depois privado do Prncipe; estas coisas no se condizem. necessrio que sejas um s homem, bom ou mau, que te apliques ao que te diz respeito, que trabalhes por adquirir os bens interiores e exteriores, isto , que te sustentes com o carter de filsofo ou de homem comum.

    114

    Por que nasci de tais pais? Meu amigo, antes do teu nascimento, dependia de ti dizer: quero que tais pessoas contraiam npcias, e quero nascer delas? Se o teu nascimento desditoso, no depende acaso de ti corrigi-lo com a virtude?

    115

  • Teu amigo, teu filho, partiram; abandonaram-te, e tu choras. No sabias que o homem era viandante? Sofres o castigo da tua loucura. Crs que ters sempre perto de ti os objetos dos teus prazeres e que gozars sempre dos lugares e das coisas que te so agradveis? Quem to prometeu?

    116

    Queres dar tua cidade natal uma oferta rarssima e de grande valor? D-te inteiramente a ela, depois de te haveres convertido em modelo perfeito de doura, de liberalidade e de justia.

    117

    Queres envelhecer e no ver morrer os que amas, isto , queres que todos os teus amigos sejam imortais, e que para ti unicamente mudem os deuses as suas leis e a ordem da natureza. justo isso, insensato?

    118

    Acabas de receber novas de Roma, e cais no pranto e na tristeza. possvel que o que se passa a duzentas lguas de ti te torne desgraado? Dize-me, suplico-te: que mal pode suceder-te onde no ests?

    119

    Nada tens que no tenhas recebido. Quem te deu tudo, tira-te uma coisa. Resistindo-lhe, alm de louco, s ingrato e injusto.

    120

    As coisas que de ns dependem so livres pela sua natureza; nada pode det-las nem levantar-lhes obstculos, e as que de ns no dependem so dbeis, escravas, dependentes, sujeitas a mil inconvenientes e obstculos, e inteiramente estranhas.

    121

    Quando tornarei a ver Atenas e a Acrpole? Nada podes ver mais formoso que o cu, o sol, a lua, as estrelas, a terra, o mar. Se ests aflito por haveres perdido de vista Atenas, que fars quando for mister perder de vista o sol?

    122

    Hrcules, exercitado por Euristeu, no se considerava desditoso, e executava tudo quanto lhe ordenava o tirano, por difcil que fosse. Tu, exercitado pelos deuses que te criaram, gritas, lamentas-te e te consideras infeliz. Que covardia, que fraqueza!

    123

    No queres, pois, ser sbrio e abandonar o leite para nutrir-te de carne slida? Queres ainda chorar e gritar, recostado ao peito da nutriz e voltar aos contos e canes com que ela te embalava?

    124

    A regra e medida dos nossos atos so as nossas opinies. De onde nasceu a Astria de Eurpedes? Da opinio. E a sua Media e o seu Hiplito? Da opinio. E o dipo de Sfocles? Da opinio.

    125

    Quando soar a hora, morrerei, mas morrerei como deve morrer o homem que sabe devolver o que lhe foi confiado para guarda.

    126

    No devemos regozijar-nos com os homens, nem com eles congratular-nos se no pelas coisas de que tm verdadeiro motivo de regozijo e que lhes so honrosas e teis.

    127

    O caracterstico da verdadeira felicidade durar sempre e no encontrar obstculo. O que no possui esses dois caracteres no verdadeira felicidade.

    128

    No te esqueas das palavras de Scrates: "Crton, sigamos corajosamente a senda pela qual nos conduzem os deuses, e nos chamam. Anito e Melito podem matar-me, mas no podem fazer-me morrer".

    129

  • Umas coisas do mundo dependem de ns, outras no. As que de ns dependem so os nossos juzos, os nossos movimentos, as nossas inclinaes, as nossas averses, os nossos desejos, numa palavra, todos os nossos atos.

    130

    As que de ns no dependem so o corpo, os bens, a reputao, as dignidades, numa palavra, todas as coisas que no so os nossos prprios atos.

    131

    Lembra-te de que s ator na obra, breve ou longa, em que o seu autor te fez tomar parte. Se quer que representes o papel de mendigo, mister que o desempenhes da melhor maneira possvel. Ademais, se quer dar-te o papel de coxo, de prncipe, de particular, deves represent-lo, pois est em tuas mos desempenhar bem o teu papel, mas no escolh-lo.

    132

    Temes falar da morte, como coisa de mau agouro. No h mau agouro no que no faz seno marcar a ao da natureza. A preguia, a imprudncia, a covardia, os demais vcios, que so realmente coisa de mau agouro. E, no entanto, uma vez que no se possa evitar uma coisa, no se deve temer proferir-lhe o nome.

    133

    Os verdadeiros dias de festa para ti so aqueles em que venceste uma tentao, em que atiraste para longe de ti, ou pelo menos enfraqueceste, o orgulho, a temeridade, a malignidade, a maledicncia, a inveja, a obscenidade das palavras, o luxo ou qualquer outro dos demais vcios que te tiranizam. Isso, muito mais que obter um consulado ou a chefia de um exrcito, merece que faas sacrifcios.

    134

    Sobre cada uma das coisas que te divertem, que te servem e que aprecias, lembra-te de pensar e de perceber o que verdadeiramente , comeando pela menor. Se gostas de um vasinho de terra, lembra-te de que de terra, para que, se suceda quebrar-se, no fiques impressionado. Se gostas de teu filho ou de tua mulher, dize ao esprito que gostas de uma criatura mortal, para que, se suceda morrer, te cause menos dor.

    135

    Quando vires algum cumulado de honras, ou elevado a um grande poder, ou de qualquer modo florescente, procura fazer com que no diminua a tua imaginao, e no o consideres ditoso, porque se a essncia do verdadeiro bem consiste nas coisas que de ns dependem, nem a inveja, nem a emulao, nem os cimes tm motivos de existncia. Tu prprio no querers ser general de exrcito, nem senador, nem cnsul, mas livre; e para alcanares essa liberdade, h somente um caminho: o desprezo das coisas que de ns no dependem.

    136

    Quando ouvires ou vires algo de mau agouro, no te deixes levar pela imaginao; pelo contrrio, faze em ti prprio esta considerao: no diz respeito a mim prprio este infeliz agouro, seno ao meu corpo, ao meu bem ou minha reputao, ou a meus filhos ou minha esposa. Quanto a ti, no pode haver mais que felizes pressgios, se assim desejas, porque, suceda o que suceder, de ti que depende tirar dele o maior bem.

    137

    De ti depende fazer bom uso de tudo o que se verifica. No digas, pois: que suceder? Que te importa o que possa suceder, se de tudo s capaz de tirar proveito, se de tudo podes fazer bom uso, e qualquer coisa que se realize pode chegar a ser para ti felicidade enorme? Se aos olhos se te apresenta medonha fera, ou tens que sustentar um feroz combate contra homens implacveis e terrveis, de que te afliges? Se te antolha uma fera, o combate maior e mais glorioso. Se pelo caminho encontrares homens prodigiosos e intratveis, ters maior mrito se conseguires, ao venc-los, livrar deles o mundo. E se eu morrer? Se morreres, morrers como heri. Que mais podes desejar?

    138

    Ocupas-te unicamente de habitar suntuosos palcios, de te rodeares de uma turba de lacaios e mordomos, de te vestires magnificamente e de possures apetrechos de caa, msicos e tropa de

  • comediantes. Julgas que te invejo por isso? Cultivaste a razo? Trataste de adquirir ss opinies e de aproximar-te da verdade? Por que, pois, te envergonhas de possuir eu sobre ti uma vantagem no que descuidaste? que isso precioso e grande. Tanto melhor se o sabes; mas quem te impede consegui-lo? Em vez de caadores, de msicos, de comediantes, rodeia-te de gente s de entendimento; ningum pode dispor de mais tempo, de mais livros, de mais mestres do que tu. Comea; d razo alguma coisa do tempo que te sobra; numa palavra, escolhe. Se continuares a satisfazer-te com exterioridades, ters, certamente, mveis mais raros e magnficos que os de qualquer outro, mas a tua pobre inteligncia, assim abandonada incria, ficar no embrutecimento.

    139

    justo e natural que o que se aplica inteiramente a uma coisa a consiga, e logre nela acerto, e vantagem sobre o que a descuida. O folgazo emprega toda a vida em busca do prazer e do requinte; quando se levanta, pensa no modo de fazer a crte ao objeto do seu amor, e de adular o prncipe; diante deles, adula-os, faz-lhe presentes. Nas suas preces e sacrifcios, s pede aos deuses que lhe dem a ventura de comprazer-lhes. Todas as noites faz exame de conscincia: Em que delinqi? Que fiz? Que omiti do que devia fazer? Deixei de dizer ao Prncipe alguma coisa que lhe houvera agradado? Deixei escapar imprudentemente alguma verdade que lhe haja desagradado? Deixei de lhe aplaudir os defeitos e elogiar tal injustia ou tal m ao sua? Quando, por acaso, profere uma palavra digna de homem de bem e de homem livre, teme, faz penitncia, e julga-se perdido. Vede como lavra o seu bem estar. Tu, pelo contrrio, a ningum cortejas, a ningum adulas; cultivas a alma, trabalhas por formar sos juzos; o teu exame de conscincia assaz diverso do primeiro. Perguntas-te: Descuidei alguma coisa das que contribuem para a verdadeira felicidade e agradem aos deuses? Faltei amizade, sociabilidade, justia? Deixei de fazer o que deve fazer o homem de bem? Com desejos to opostos, sentimentos to contrrios e to diversa aplicao, como pode envergonhar-te no igualares o primeiro nos bens da sorte? Por que o invejas? Seguramente, ele te no invejar. E assim sucede porque, imerso na ignorncia e na cegueira, est firmemente persuadido de desfrutar dos verdadeiros bens, ao passo que tu no ests ainda bastante firme e seguro nos teus princpios para ver e sentir que est do teu lado toda a felicidade.

    MXIMAS DE EPICTETO

    Traduo de Alberto Denis Compilao da 1 Edio da GRFICA E EDITORA EDIGRAF LTDA. So Paulo, Brasil Col. Biblioteca de Autores Clebres Material enviado por Tiago Tomasi

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    140

    No h nada to freqente como ver poderosos que julgam saber tudo, e nada sabem, ignorando at as verdades mais necessrias. Como nascem na abastana e no sentem necessidade nenhuma, no suspeitam de que lhes possa faltar alguma coisa. Dizia eu assim, uma tarde, a um dos mais considerados: - Estais perto do Prncipe, possus grande quantidade de administradores poderosos e grandes alianas; por meio do vosso crdito podeis servir aos amigos e destruir os invejosos. - Que me falta, pois? perguntou-me. - O mais importante e necessrio verdadeira felicidade; at aqui, fizestes o contrrio do que vos convm, descuidando o principal. No sabeis o que so os deuses, nem o que o homem; ignorais a natureza do bem e do mal, e, o que vos surpreender mais que tudo, vs prprio vos desconheceis. Ah, fugis e vos encolerizais pelo que vos manifesto com esta franqueza! Que mal vos fiz? Somente vos apresentei o espelho em que viste a vossa imagem.

    141

    Nada se d sem recompensa. Pretendes um Consulado? Ters de intrigar, pedir, rogar, beijar a mo deste, daquele, bater-lhe porta, praticar mil baixezas e mil indignidades, enviar todos os dias novos presentes. E que ser cnsul? Levar frente doze feixes de varas, sentar-se trs ou quatro vezes num Tribunal, dar jogos e festins ao povo; eis tudo. E para estar livre de paixes e de cuidados, para ser constante e magnnimo, para poder dormir de noite e velar de dia, para no ter angstias nem temores, no queres dar nada, nem ter nenhum trabalho? Julga tu prprio o teu procedimento.

    142

  • Foste preferido num festim, num conselho, numa visita. Se so bens as preferncias de que s alvo, devera alegrar-te recarem elas sobre o prximo, e se so males, no te aflijas, por te no veres livre deles; mas lembra-te de que no pode caber-te deles a mesma participao que cabe aos que lidam por adquirir o que deles no depende. Quem nunca bate porta de um grande senhor no pode ser to bem tratado como o que l vai todos os dias; quem o no acompanha quando sai, como o que lhe fica sempre ao lado; quem o no adula nem tampouco o lisonjeia, como o que outra ocupao no conhece. Portanto, s injusto e insacivel, se, no dando as coisas com as quais se compram os favores, os queres obter gratuitamente. Por que preo vendem os legumes no mercado? Por um bulo. Se, pois, der o teu vizinho um bulo e levar o seu legume, ao passo que tu, sem dar o bulo, sem o legume regressas, no imagines ser por isso menos afortunado, pois se ele tem legume, tens tu bulo, j que o no entregaste. O mesmo sucede neste caso: no foste convidado a um festim? Tampouco deste ao hspede o preo pelo qual o vende; esse preo um elogio, uma visita, uma complacncia, uma subordinao; d, pois, o preo, se a coisa te agrada, mas no queiras, sem ele, adquirir a mercadoria. No resto, no sintas pesar se no tens assento no festim, desde que tenhas conseguido conservar o que superiormente estimvel, como a independncia e o direito de exprimir livremente os teus sentimentos.

    143

    S firme na prtica de todas estas mximas, e observa-as, pois devem ser para ti leis inviolveis, e no te preocupe a maledicncia, pois ela no figura no nmero das coisas que de ti dependem.

    144

    Quando acusas a Providncia, sabe que em ti prprio est a sua justificao. Em que possui o mau vantagem sobre ti? Na riqueza? Examina-lhe o interior, e dize se te no envergonharia a vida que ele observa. H dias, exprimi esse pensamento a um homem a quem envergonhava a prosperidade de Filostorcos. Disse-lhe eu: - Venderias os teus favores a Sura? - No o queiram os deuses, respondeu-me, preferiria, e com prazer, perdem vida. Por que, ento, te envergonhas de uma dita que tem o seu preo? Por que o achas ditoso ao possuir coisas que detestas? Em que te maltratou a Providncia dando-te o que de melhor possui? No te queixes; a sabedoria mais preciosa que as riquezas, e a humildade mais que a ambio.

    145

    No podes ser um Hrcules, nem tampouco um Teseu, para limpar de monstros a terra; mas podes imit-los, atirando para longe de ti os monstros que te assediam. Em vez de Procusto e de Cron, doma a violncia da dor, o medo, a concupiscncia, a inveja, a avareza, a preguia e a intemperana. O nico meio de vencer tais monstros ter sempre diante dos olhos os deuses, ser-lhes devoto e obedecer apenas aos seus preceitos.

    146

    Desejas muitas coisas e, entretanto, se desejasses menos, as conseguirias. s semelhante criana que, desejando colher as frutas metidas num vaso de estreita abertura, nela introduzisse a mo e pretendesse tir-la cheia. A ambio desmedida s pode frutificar em lgrimas.

    147

    No raciocinar prudentemente dizer: - Sou mais rico do que tu, logo sou melhor; sou mais eloqente, logo valho mais. - Para raciocinar consequentemente, preciso dizer: Sou mais rico do que tu, logo o meu bem atual maior; sou mais eloqente, logo a minha eloquncia vale mais do que a tua.

    148

    Quando se atiram populao figos e avels, os meninos se espancam para colh-los, mas os homens no do a eles a menor importncia. Distribuem-se governos de provncia: so frutas para os meninos; honras, consulados, so para mim figos e avels. Se, por acaso, tomba um deles na minha tnica, pego-o e como-o. tudo quanto vale; mas no me curvarei para peg-lo, nem muito menos pisarei o prximo.

    149

    Os deuses me abandonam na pobreza, na misria, no cativeiro. No por clera que por mim experimentem, porque no h quem se encolerize com um fiel servidor; no por descuido, porque no descuidam a menor coisa. Querem provar-me, querem ver se tem em mim um bom soldado, um bom cidado; querem, enfim, que lhes sirva de testemunho vivo no seio dos demais homens.

    150

  • At quando diferirs julgar-te digno de grandes feitos e por-te em estado de jamais ferir a reta razo? Recebeste os preceitos aos quais deverias dar o teu consentimento. Deste-o. Por que, pois, postergar a emenda? No s uma criana, e sim homem feito. Se te descuidares, se te distrares, se abrigares resoluo e mais resoluo, se todos os dias assinalares um novo em que havers de prestar ateno a ti prprio, suceder finalmente que, sem o perceberes, no ters realizado nenhum progresso, e perseverars eternamente na ignorncia. Valor, portanto; julga-te digno, desde hoje, de viver como homem, e como homem que j realizou alguns progressos na sabedoria; que tudo quanto se te afigure bom e belo seja para ti lei inviolvel. Se se te oferecer algo de penoso ou agradvel, de glorioso ou vergonhoso, lembra-te de que a luta est aberta, que os jogos olmpicos te chamam, que no convm postergar, e sim, pelo contrrio, levar a caba, e enfim que, de um momento a outro de um nico ato de valor ou de covardia depende a tua salvao ou a tua perda. No foi de outro modo que logrou Scrates chegar perfeio fazendo com que todas as coisas servissem ao seu fim, e seguindo constantemente a razo. Quanto a ti, embora no sejas Scrates, deves viver como se tivesses de o ser um dia.

    151

    Se nasceste de pais nobres, persuadido da tua nobreza, no deixas de t-la constantemente diante dos olhos, e de com ela aturdir todos. Mas tens a divindade por pai, ela se manifesta em volta de ti, e esqueces-te dessa nobreza e ignoras de onde vieste, e a marca que trazes na testa. Eis aquilo de que devers lembrar-te em todos os atos da tua vida. Pensa a todo instante: foi a divindade que me criou; est em volta de mim, em mim prprio a levo por toda parte. Por que ofend-la com pensamentos obscenos, baixas e impuras aes e infames desejos?

    152

    Se os deuses te houvessem incumbido da guarda de uma pupila, cuidarias dela e no permitirias se perdesse to valioso depsito. Mas confiaram-te a guarda de ti prprio. Disseram-te: no julgamos poder colocar-te em mos de tutor mais fiel, mais afetuoso; guarda-nos este filho tal qual por natureza; conserva-no-lo cheio de pudor, de fidelidade, de magnanimidade, de valor, isento de paixes. E tu te descuidas. Haver maior crime?

    153

    Terias escrpulo em cometer atos desonestos diante de uma esttua ou de uma imagem dos deuses; no obstante, vem-te, ouvem-te, e no coras ao abrigar em sua presena pensamentos obscenos, que os ferem, que os desonram, que os afligem. Oh, inimigo dos deuses! Oh, covarde, que te esqueceste da tua natureza!

    154

    Se fosses uma esttua de Fdias, a sua Minerva, ou o seu Jpiter, e tivesses conscincia do teu estado, cuidarias, lembrando-te do obreiro que te dera a forma, de nada fazer que fosse indigno dele e de ti, e por nada no mundo quererias aparecer num estado indecente que desonrasse a tua beleza; mas, sem te inquietares absolutamente com aquele em que apareceres diante dos deuses, desonras a mo que te formou. Que diferena, entretanto, entre obreiro e obreiro, obra e obra!

    155

    Quando fizeres alguma coisa depois de saberes a fundo que o teu dever, no evites, ao faz-la, ser visto, ainda que o vulgo forme de ti falsos juzos; porque se a ao m, no deves realiz-la; e se boa, no deve importar-te a condenem os maus.

    156

    Quis certa matrona romana enviar uma grande quantia em prata a um dos seus amigos, chamado Grtila, desterrado por Domiciano; disse-lhe algum que o imperador se apoderaria da quantia e a confiscaria. - No importa, respondeu ela. Prefiro, a no envi-la, que Domiciano a roube.

    157

    Qual o varo invencvel? Aquele que, imvel no seu lugar, no se preocupa com as coisas que no dependem da sua vontade; considero-o um verdadeiro atleta. Sustentou um combate. Sustentar o segundo? Resistiu ao dinheiro. Resistir beleza? Venceu em pleno dia, no meio do mundo. Vencer, sozinho, durante a noite? Triunfar da glria, da calnia, da adulao, da morte? Dominar todos os incmodos e todas as tristezas? Numa palavra, ser vitorioso at em sonhos? V o atleta que eu procuro.

    158

  • Hrcules houvera sido Hrcules sem os lees, tigres, os monstros, os bandidos e demais seres de que livrou a terra? Sem tais monstros, de que lhe teriam servido os musculosos braos, a fora e a coragem, a pacincia invencvel e as demais qualidades?

    159

    Evita o juramento em tudo e por tudo; se no, sempre que o permitam as circunstncias.

    160

    Um pede o Tribunato; outro a chefia dos exrcitos; eu o pudor e a modstia, porque sou livre e amigo dos deuses e lhes obedeo de todo o corao. , pois, necessrio que no d importncia ao corpo, riqueza, s dignidades, reputao, nem a qualquer coisa estranha, porque no querem os deuses que eu lhes d importncia. Se o tivessem querido, houveram feito com que fossem bons para mim; mas, visto que assim no procederam, no so evidentemente bons, e obedeo s ordens deles.

    161

    A primeira coisa que mister aprender que existe um Deus que a tudo governa com a sua providncia e a no podem estar ocultos nem os nossos atos, nem os nossos pensamentos e vontades. Logo, necessrio examinar-lhe a natureza. Uma vez bem determinada e conhecida a sua natureza, preciso que os que pretendem agradar-lhe e oferecer-lhe, se esforcem por parecer-se a Ele; que sejam livres, fiis, benvolos, misericordiosos, magnnimos. Todos os teus pensamentos, todas as tuas palavras, todos os teus atos sejam, pois, atos, palavras e pensamentos de homem que imita a Deus e com Ele procura ter alguma semelhana.

    162

    Ensinam os filsofos que o homem livre. Ensinam, por conseguinte, a menosprezar a autoridade do imperador? No. Nenhum filsofo ensina os discpulos a revoltar-se contra o seu Prncipe, nem a subtrair autoridade dele nada do que lhe est submetido. Tomai, eis o meu corpo, os meus bens, a minha reputao, minha famlia; entrego-vo-los; e se achardes que ensino algum a ret-los, matai-me; sou um rebelde. No isso o que ensino aos homens; ensino-lhes apenas a conservar a independncia das suas opinies, de que os fez donos exclusivos a Divindade.

    163

    Sabei que o principal fundamento da Religio consiste em crer que existem os deuses, que estendem a sua providncia sobre tudo quanto existe, que governam o Universo com perfeio e justia, que o homem est no mundo para lhes obedecer, para admitir de bom grado tudo o que deles provenha, e prestar a sua aquiescncia s coisas que deles procedem, como de Providncia boa e sbia. Desse modo, jamais te queixars dos deuses nem tampouco os acusars de te haverem esquecido. Mas tais sentimentos no podes adquiri-los sem renunciar a tudo quanto de ti no depende, e fazendo consistir os teus bens e os teus males no que depende da tua vontade; porque se tomas por bem ou por mal uma coisa estranha, absolutamente necessrio que, uma vez que se te frustrem os desejos ou que caias no que temes, te encolerizes e acuses a causa dos teus males; porque todo animal nasceu para detestar e fugir de tudo o que lhe parece mau e prejudicial, assim como para buscar e querer tudo o que lhe parece til e bom. , pois, impossvel que quem julga ser lastimado se mostre agradvel a quem o fere; donde se segue que ningum se regozija no seu mal. Por isso, o filho cobre de censuras e, talvez, de injrias o pai, quando o no faz participar dos seus bens; por isso, tornaram-se inimigos irreconciliveis Etoclo e Polinice, que consideravam o Trono um grande bem; por isso, o lavrador, o piloto, o mercador, chegam a maldizer os deuses, e por isso, finalmente, se ouvem as queixas dos que perdem mulheres e filhos; porque, onde est a utilidade, est a piedade. Todo homem que cuida de ajustar desejos e averses, segundo as regras prescritas, cuida de conservar e aumentar a sua piedade; nas suas libaes, nos seus sacrifcios e nas suas oferendas, cada qual deve seguir o costume do seu pas e realiz-los com pureza, sem ostentao, sem negligncia, sem irreverncia, sem mesquinhez, e, por fim, sem suntuosidade que lhe exceda as foras.

    164

    No sejas, mortal, ingrato aos bens que recebeste dos deuses, e no te esqueas dos seus grandes benefcios. D-lhes constantemente graas pela vista, pelo ouvido que te concederam - que digo! - pela prpria vida e por todos os auxlios que te prestaram para sustent-la; pelos prprios frutos da terra. Ao mesmo tempo, porm, lembra-te de que te deram algo de mais precioso ainda, a faculdade que, servindo-se de todas as coisas, as analisa e a cada uma atribui o seu valor.

  • 165

    Tendo sido Galba morto, disse algum a Rufo: - Atualmente, a Providncia toma parte nas coisas do mundo. - Desgraado, respondeu-lhe Rufo, julgas, por acaso, que Galba alguma vez logrou impedi-lo?

    166

    Se o Prncipe te houvesse adotado, terias insuportvel orgulho. Mas esqueces a Divindade, qual tanto deves.

    167

    Se obrssemos com bom juzo, no faramos outra coisa na vida pblica e particular seno dar graas Providncia por todos os bens que dela recebemos. Lavrando, comendo, passeando, levantando-nos e deitando-nos, diramos: - A Providncia grande! Tudo repercutiria o eco destas divinas palavras: A Providncia grande! Mas sois ingratos e cegos; preciso, pois, que o diga eu por vs, e que, velho, coxo, pobre e enfermo, repita sem cessar: Como grande a Providncia!

    168

    Se eu fosse rouxinol ou cisne, faria o que deve fazer o cisne ou o rouxinol; mas sou homem, e tenho por patrimnio a razo. Que devo fazer? Louvar a Divindade. o que farei a vida toda, e exorto todos os homens a fazer o mesmo que eu.

    169

    Os soldados que se alistam nas tropas de Csar prestam o juramento costumeiro. Qual esse juramento? Que preferiro o bem do imperador a todas as coisas, que lhe obedecero em tudo, que se exporo morte por ele. Tu, que ests ligado Divindade pelo teu nascimento, e por tantos benefcios que dela recebeste, tu que nasceste nas suas tropas, no fars anlogo juramento? E, uma vez feito, no lhe sers fiel? Que diferena, contudo, entre os dois juramentos! O soldado jura que preferir a salvao do imperador a todas as coisas, e tu juras que preferirs a todas as coisas a tua prpria salvao.

    170

    - Como poderei persuadir-me, disse algum a Epicteto, de que todas as minhas aes so vistas pela Divindade, sem que uma s passe inadvertida? Respondeu-lhe Epicteto: - No ests persuadido de que todas as coisas do mundo esto entrelaadas? - claro. No ests persuadido de que as coisas terrenas so reguladas pelas celestiais? - Estou. Com efeito, vs que todas as coisas da natureza sucedem em tempos assinalados, como, por exemplo, as estaes. Ao nascer e ao pr do sol, quando a lua cresce e mingua, a face da natureza muda. Pois se todas as coisas deste mundo miservel, se os nossos prprios corpos esto ligados e to unidos ao todo, como podes imaginar que a nossa alma, muito mais divina que todo o universo, seja a nica isolada e no esteja unida Divindade que a criou? - Mas, como pode ela ver ao mesmo tempo tantas coisas to diversas e distantes? - Pobre cego, quantas operaes diferentes no realiza de uma s vez o teu entendimento, embora tenha to estreitos limites? Abraa as coisas divinas e humanas; raciocina, divide, julga, consente, nega. Quantas imagens diferentes, quantas idias contrrias no encerra? O sol ilumina ao mesmo tempo a maior parte do mundo; o que se oculta aos seus raios apenas uma parte da terra; e Aquele que fez o sol, que, por imenso que seja, no mais do que um ponto no enorme universo, no iluminar a terra inteira? - Mas o meu entendimento no faz as suas operaes seno sucessivamente, e no pode considerar os objetos seno um depois do outro. - Quem te disse que o teu entendimento to extenso como a prpria Divindade? Considera, verme que s, quantos objetos diferentes abraa de uma s vez o olho, que to pequeno. Tudo o que o horizonte encerra se apresenta simultaneamente vista. Que poder escapar vista de quem fez o olho?

    171

    Os deuses no me deram multido de bens; no quiseram que eu nade na opulncia, nem tampouco que me entregue aos prazeres; mas de que me queixo? No trataram melhor Hrcules, que tantos feitos realizou em honra deles.

    172

    Quando consultamos os ugures, tremendo e dirigindo aos deuses ardentes preces. - Deuses, tende piedade de mim, permiti que me livre felizmente deste ou daquele cuidado, - Vil escravo! Queres outra coisa que a que te convm? Que pode convir-te mais que fazer a vontade dos deuses? Por que, pois, tentas corromper o teu rbitro e o teu juiz, enquanto pedes?

  • 173

    Por que consultar os adivinhos acerca das coisas em que o nosso dever est marcado? Se se trata de expor-me a um perigo pelo meu amigo, devo morrer por ele; que necessidade tenho de adivinho? No possuo dentro de mim prprio um adivinho mais seguro e incapaz de enganar-me, que me ensinou a natureza do bem e do mal, e que me explicou todos os sinais pelos quais os devo reconhecer?

    174

    A fraqueza do homem pelos orculos e adivinhaes procede da sua timidez. Teme os sucessos, e por isso que tem pelos adivinhos inexplicvel complacncia; f-los rbitros e juizes de todos os seus assuntos, confia-lhes tudo quanto tem, e se lhe predizem algo de bom, os gratifica, como se lho estivessem dando. Que cegueira! Se fssemos prudentes, consultaramos os adivinhos do mesmo modo pelo qual perguntamos pela direo numa jornada, sem nos importar que seja para a esquerda ou para a direita que devemos passar. Porque, que consultar os adivinhos? Indagar a vontade dos deuses para realiz-la. Deveramos, pois, servir-nos dos orculos como dos olhos, aos quais no tentamos fazer ver estes ou aqueles objetos, deixando, pelo contrrio, que nos mostrem o que vem. Faamos o mesmo com os adivinhos; no lhes supliquemos, e limitemo-nos a fazer o que nos mandarem.

    175

    Acusar os demais das prprias desditas coisa de ignorante; acusar apenas a si prprio coisa de homem que comea a instruir-se; no acusar nem a si prprio nem aos outros coisa de homem j instrudo.

    176

    Quando fores consultar o adivinho, lembra-te de que ignoras o que deve suceder, e que vais sab-lo. Mas lembra-te ao mesmo tempo que, se fores filsofo, vais consult-lo, muito bem sabendo de que natureza o que deve suceder; porque se for coisa que de ns no dependa no poder ser seguramente nem um bem nem um mal para ti. No leves, pois, contigo, ao adivinho, inclinao ou averso por coisa nenhuma; de outro modo, tremers sempre; persuade-te, pelo contrrio, e convence-te de que tudo quanto suceder ser indiferente, no te dir respeito, e que de qualquer natureza que seja, de ti depende fazer dele bom uso, sem que ningum consiga impedir-to. Vai, pois, com confiana, como quem se aproxima de deuses que se dignam aconselhar e, ademais, quando te houverem sido dados alguns conselhos, lembra-te do que so os conselheiros aos quais recorreste, e que a tua desobedincia ser menosprezo das suas ordens. No vs ao orculo se no como Scrates queria se fosse, isto , no vs seno para as coisas que s podem ser conhecidas pelo acaso, e no podem ser previstas nem pela razo nem pelas regras de qualquer arte. Assim, quando se te deparar oportunidade de te expores a grandes perigos pelo amigo ou pela ptria, no vs consultar o adivinho se tiveres de faz-lo, porque se te declarar que so ms as entranhas das vtimas, sers evidente que o sinal te pressagia a morte, os ferimentos ou o desterro; afirma-te, porm, a razo, em que pese a todas essas coisas, que deves socorrer o amigo e expor-te pela ptria. Apolo Pitiano atirava para fora do seu templo quem, vendo em perigo de morte o amigo, o no ajudava.

    177

    S cortejo os poderosos. Mas esse o teu destino? De mim sei dizer que no nasci para tal coisa. No tenho a quem comprazer, obedecer e submeter-me? Tenho os deuses, nos quais est o verdadeiro poder.

    178

    Quando tiveres de conversar com algum, sobretudo se se tratar de um dos principais da cidade, imagina o que houvera feito Scrates ou Zeno em tal entrevista. Desse modo, no ters o menor embarao em cumprir o dever e valer-te convenientemente de tudo quanto puder deparar-se-te.

    179

    Supondo que homem livre aquele a quem tudo sucede como deseja, disse-me um louco, quero que me suceda tudo quanto me aprouver. Meu amigo, jamais andam juntas a loucura e a liberdade. A liberdade no uma coisa somente belssima, seno tambm racional, e no h nada mais absurdo nem mais irracional que desejar temerariamente e pretender que as coisas se verifiquem do modo pelo qual as pensamos. Quando tenho de escrever o nome prprio Don, devo escrev-lo no como me agradaria, mas tal qual , sem a mudana de uma nica letra. Sucede o mesmo em todas as

  • artes e cincias. E queres que na maior e mais importante de todas as coisas, como a liberdade, impere o capricho e a imaginao? No, meu amigo, a liberdade consiste em querer que as coisas sucedam no como as desejamos, mas como so.

    180

    Esperas ser feliz uma vez que tenhas obtido o que solicitas. Enganas-te; ters as mesmas inquietaes, os mesmos cuidados, os mesmos aborrecimentos, os mesmos temores, os mesmos desejos. A felicidade no consiste em adquirir e desfrutar do adquirido, mas em no desejar, porque consiste em ser livre.

    181

    Os deuses me deram a liberdade, e no desconheo os mandamentos. Por conseguinte, ningum lograr reduzir-me escravido, porque tenho o libertador que me falta e os juizes dos quais careo.

    182

    Um dia, perguntava Floro a Agripino: - Devo ir ao teatro com Nero? - Vai, respondeu Agripino. - E tu, retrucou Floro, por que no nos acompanhas? - Porque no sei calar-me.

    183

    Estava muito bem gravada no corao de Prisco Helvdio essa mxima, e ele soube p-la nobremente em prtica. Um dia, ordenou-lhe Vespasiano que no fosse ao Senado. - Tem Vespasiano o poder de afastar-me do meu cargo, respondeu Helvdio, mas enquanto eu for senador, irei ao Senado. - Se vieres, disse-lhe o Prncipe, virs somente para calar-te. - No me peas conselho, respondeu Helvdio, e eu me calarei. Mas se estiveres presente, retrucou o Prncipe, no poderei deixar de pedir-te conselho. - E eu, disse Helvdio, dir-te-ei o que me parecer justo. - Se o disseres, far-te-ei morrer. Quando te assegurei que eu era imortal? replicou Helvdio. Ambos faremos o que de ns depender; tu me fars morrer, e eu, sem queixa, me submeterei morte. Que lucrou com isso Helvdio, sendo o nico que se colocava em tal situao? O mesmo que a prpura sobre a tnica; orna-a, embeleza-a, e causa aos outros inveja e desejos de possuir uma semelhante.

    184

    - Foste condenado ao desterro. Mas haver lugar fora do mundo para o qual eu possa ser enviado? Para onde quer que eu v, no terei cu, sol, lua e estrelas? No terei sonhos e agouros? No poderei manter comrcio com os deuses?

    185

    Depois de todos os prazeres de que desfrutavas na ptria, e que perdeste, subsiste o de pensar que obedeces aos deuses e cumpras, real e efetivamente, o dever do homem bom e sbio. Grande prazer poderes dizer a ti prprio: a estas horas semeiam os filsofos grandes coisas nas escolas, explicam todos os deveres do homem de bem, e eu os pratico. O que ensinam so as minhas virtudes: fazem o meu panegrico, sem o saber, porque realizei o que louvam e propagam.

    186

    Lembra-te de que no quem te injuria, nem quem te fere, quem te maltrata, seno a opinio que deles tens e que te faz encar-los como inimigos. Quando algum se encoleriza e irrita, sabe que no esse homem que te irrita, seno a opinio que tens das coisas. Trata, pois, de impedir que a imaginao te vena, porque se alguma vez o consegues, podes chegar a ser mais facilmente senhor de ti prprio.

    187

    Para amar, devem colocar-se no mesmo lugar a santidade, a honestidade, a utilidade, a ptria, os pais, os amigos e a prpria justia. Se se separam, no h amizade; se o que meu, ou seja, o meu interesse est com a honestidade e a justia, sou bom amigo, bom pai, bom filho, bom marido; mas se de um lado est o meu interesse e de outro aquelas virtudes, no possvel a amizade, nem a existncia dos deveres mais santos e indispensveis.

    188

    Um mestre de ginstica me exercita, endurecendo-me o pescoo, os ombros, os braos e ordenando-me provas penosas. - Levanta este peso com as duas mos, diz-me. Quanto maior o peso,

  • mais se me fortificam os nervos. O mesmo o homem que me maltrata e injuria; exercita-me na pacincia, na clemncia, na mansido, exerccio pelo menos to til como o primeiro.

    189

    Somente o sbio capaz de amizade. Como pode amar quem confunde o mal com o bem?

    190

    Os que se apegam moleza, voluptuosidade ou vanglria no podem estimar os homens. O nico amigo dos homens aquele que ama a decncia e a honestidade.

    191

    Quando algum te causa dano ou de ti fala mal, reflete que ele julga estar obrigado a tanto. No possvel que siga os teus juzos, seno os seus, de modo que, se julga mal, a si apenas que prejudica, porque somente ele se engana; assim, se algum tacha de falso um silogismo muito justo e racional, no o silogismo que perde, seno quem se engana julgando erradamente. Se te servires cuidadosamente dessa regra, suportars com pacincia todo mal que de ti se diga, porque no deixars de afirmar do maldizente: - Diz isso, porque de boa f o acredita.

    192

    - No devo vingar-me e devolver o mal que me fizeram? Meu amigo, no te fizeram o mal, visto que mal e bem s dependem da tua vontade. Quanto ao resto, se um tolo feriu a si prprio cometendo contra ti uma injustia, por que pretendes imit-lo?

    193

    - Quando algum te repetir o mal que outro falou de ti, no te preocupes com refutar o que se afirma, e responde simplesmente: - Quem assim falou de mim ignora, sem dvida, os meus outros vcios, pois de outro modo se no contentaria com afirmar tais futilidades.

    194

    O varo prudente aguarda sempre dos maus maior mal que o que deles recebe. Um semelhante me injuria; dou graas por me no haver golpeado. Golpeia-me; dou graas por me no haver ferido. Fere-me; dou graas por me no haver matado.

    195

    Quando chegar ao teu conhecimento qualquer m notcia, lembra-te de que nada tem de ver contigo, pois no diz respeito a nenhuma coisa das que esto em teu poder. - Acusa-se-me de impiedade? Pois bem, Scrates tambm no foi acusado? - Mas podero condenar-me. - Tambm Scrates foi condenado. Lembra-te de que a pena no est onde no est o erro; impossvel que estas duas coisas se separem. No te consideres, pois, desditoso. Quem, a teu ver, foi mais desditoso, Scrates ou aqueles que o condenaram? O mal no est em ser acusado como mpio, seno em o ser. Portanto, o perigo no para ti, mas para os juizes, porque tu no podes, de maneira nenhuma, morrer culpado, e eles podem fazer morrer um inocente.

    196

    Em que ocupao desejas que a morte te surpreenda? Eu, por mim, quisera que me surpreendeste em ato digno de homem, grande, generoso e til ao gnero humano; ou melhor, quisera que me surpreendesse ocupado em me corrigir, e atento a todos os meus deveres, para em tal momento poder erguer ao cu as mos, puras e limpas de todo crime, e dizer aos deuses: todas as faculdades que de vs recebi para conhecer a vossa providncia e para lhe ser eternamente submetido foram por mim observadas; at onde me chegaram as foras tratei de vos no desonrar. Vede o uso que fiz dos sentidos, das faculdades. Jamais me queixei de vs; jamais, por causa nenhuma me envergonharei da minha origem divina; nunca senti pesar pelo que tive de fazer por vs, nem desejei trocar essa tarefa por outra. No violei as vossas ordens, e dou-vos graas por me haveres criado. Usei dos vossos bens, na medida em que mo permitistes; quereis retirar-mos, eu vo-los devolvo, so vossos, disponde deles como vos aprouver. Eu prprio me coloco em vossas mos.

    197

    Entristece-te ter que abandonar lugares to belos; lamentas-te, choras. s, pois, mais desgraado que os corvos e gralhas, que mudam de clima e passam os mares sem gemer e sem saudades do pramos que abandonam. - Mas esses animais carecem de razo. - No te deram os deuses a razo para algo melhor que para te fazeres msero? Pretendes que os homens sejam como as rvores, sujeitas pelas razes e impossibilitadas de mover-se? - Entristece-me deixar os amigos. - Ora, o

  • mundo est repleto de amigos e de protetores; todos os homens esto unidos pela natureza. Ulisses, que tanto viajou, no encontrou amigos? No os encontrou Hrcules?

    198

    Esfora-te para que te no turve a idia de ser menosprezado e de nada ser no mundo; porque se o menosprezo um mal, no podes cair no mal por intermdio de outro, nem tampouco no vcio. Depende de ti desempenhar os principais cargos? Est em tuas mos seres convidado, ou no, a um festim? De maneira nenhuma; como, pois, h de ser isso para ti menosprezo ou desonra? De que modo deixars de ser alguma coisa no mundo, quando, se s alguma coisa, s-lo de ti que depende? - Mas os meus amigos carecero, por minha parte, de todo socorro. - Que queres dizer? Queres, acaso, manifestar que no poders dar-lhes dinheiro nem faz-los cidados romanos? Quem te disse que tais coisas pertencem ao nmero das que de ti dependem, e como podemos dar aos outros o que ns prprios no possumos? Procura o teu bem estar, dizem-te, para que ns participemos dele. Se puder procur-lo, conservando o pudor, a modstia, a fidelidade, a magnanimidade, mostrai-me o caminho por seguir para que eu chegue a ser rico, e s-lo-ei; mas se pretendeis que perca os meus verdadeiros bens, com o intuito de adquirirdes vs os falsos, examinai a desigualdade da vossa balana e at onde vos leva a vossa inconsiderao e ingratido. Preferis o dinheiro a um amigo prudente e fiel? No fora melhor ajudar-me a adquirir tais virtudes que exigir faa eu coisas que mas fariam perder? - Mas dirs ainda: a minha ptria no receber de mim nenhum servio. Que servio? No conseguir, por teu intermdio, prticos nem termas? E que isso? Certamente ningum obtm calados por meio de um ferreiro, nem armas com o trabalho de um sapateiro; preciso que cada um, dentro da sua esfera, se dedique apenas ao seu trabalho. Mas se ds tua ptria um novo cidado prudente, modesto e fiel, no lhe prestas assinalado servio? Certamente lhe prestars um muito grande e no lhe sers, portanto, intil. Que posio ocuparei, portanto, na cidade? A que puderes lograr, conservando-te fiel e modesto. Que servio podes prestar tua ptria, que posio ocupars na cidade, se chegares a perder essas virtudes?

    199

    Quando fores visitar um varo poderoso, imagina que o no encontrars em casa, que estars doente, que te ser fechada a porta ou que te no dar a menor importncia. Se depois disso, o dever te obrigar a ir, suporta com resignao tudo quanto suceda, e nunca digas que foste contrariado, porque tal linguagem s prpria do vulgo ou daquele para quem possuem as coisas exteriores demasiado poder.

    200

    Supes que foi uma grande desdita para Pris entrarem os gregos em Tria, destrurem-na a sangue e fogo ou matarem toda a famlia de Pramo e raptarem as mulheres. Enganas-te, meu amigo. A grande desdita de Pris se realizou quando perdeu o pudor, a fidelidade, a modstia, e quando violou a hospitalidade. Igualmente, no consistiu a desdita de Aquiles na morte de Patroclo, seno quando chorou e se esqueceu de que no partira para a guerra em busca de amantes, e sim para devolver a um marido a esposa.

    201

    Guarda-te de fazer o papel de zombeteiro e de trocista, porque tal defeito te far cair insensivelmente nas maneiras baixas e grosseiras, e far que percam os outros o respeito e a considerao que por ti sentem.

    202

    No menos prejudicial entregares-te a conversaes obscenas. Quando te encontrares nessa espcie de conversaes, no deixes, se to permitir a ocasio, de repreender quem estiver com a palavra; se no, guarda, ao menos silncio, e d a conhecer, pelo rubor da face e pela severidade do olhar, que te no so agradveis tais conversaes.

    203

    Nunca viste uma feira a que acodem homens de todos os distritos? Uns vo vender, comprar outros, e um pequeno nmero por curiosidade, unicamente para ver a feira e saber porque se celebra e quem a estabeleceu. a mesma coisa o mundo: todos os homens esto nele, uns para vender, para comprar outros; pouqussimos h que admirem este grande espetculo e examinem o que , quem o fez, para que o fez e como o governa, porque impossvel no seja feito e governado por algum. Uma cidade, uma casa, no existem sem obreiro, e se duram porque algum as governa; mquina to imensa e admirvel no pode existir por puro acaso; impossvel. Logo, existe algum que a fez e a governa. Quem e como a governa? E ns, que tambm somos obra sua, que somos e por que

  • somos? Pouqussimos fazem tais reflexes, e, aps admirarem a obra e bendizerem o obreiro, se retiram contentes. Se algum as faz alvo das chacotas dos outros, como na feira o so os simples curiosos, a quem chamam tolos os mercadores. Se os bois e os carneiros pudessem falar, certamente se ririam de todos os que pensassem noutra coisa que no comer e ruminar.

    204

    No te esqueas do valor e da serenidade de Latro. Tendo-lhe Nero enviado o seu liberto Epafrodita, para interrog-lo sobre a conspirao em que entrara, limitou-se a responder ao liberto apenas isto: - Quando tiver o que dizer, di-lo-ei ao teu amo. - Sers agrilhoado. - Achas que isso bastar para me entristecer? - Irs para o desterro. - E que me impede ir alegremente, cheio de esperana e de contentamento pelo meu novo estado? - Sers condenado morte. - Mas... obrigatrio morrer murmurando e gemendo? - Dize-me o teu segredo. - No o direi, porque isso depende de mim. - Carregar-te-ei de ferros. - Que dizes, meu amigo? A mim que ameaas carregar de ferros? Duvido. Carregars, sem dvida, minhas pernas e meus braos; mas a minha vontade ser sempre livre e nem o prprio Jpiter ma poder tirar. - Mandarei agora mesmo que te cortem o pescoo. - Disse-te eu alguma vez que o meu pescoo tem o privilgio de no poder ser cortado? As obras corresponderam as palavras; levado Latro ao suplcio, foi o primeiro golpe do verdugo demasiadamente fraco para lhe cortar a cabea; Latro ficou um instante aturdido; mas imediatamente recobrou os sentidos e de novo apresentou o pescoo com firmeza e constncia.

    205

    Se nos encontrssemos num calabouo e em vsperas de ser julgados por uma acusao capital, poderamos admitir o homem que nos perguntasse se no queramos ouvir um hino por ele composto? - Meu amigo, dir-lhe-amos, por que vens importunar-me em to m ocasio? Tenho cuidados de muita importncia. No sabes que devo ser julgado amanh? No tenho a serenidade de Scrates, que compunha hinos na vspera da morte.

    206

    Foi Agripino modelo de homens contentes com a sorte. Anunciou-se-lhe que o Senado estava reunido para o julgar. - Em boa hora! exclamou; vou preparar-me para o banho, segundo o meu costume. - Apenas saiu do banho, disseram-lhe que fora condenado. morte, ou ao desterro? - Ao desterro. - Confiscaram-me os bens? - No, deixam-nos em teu poder. - Nesse caso, partamos, sem demora. Vamos comer no lugar de desterro; comeremos to bem como em Roma.

    207

    Passas por esta cidade, e enquanto o barco se faz ao mar, exclamas: - Vamos ver um momento Epicteto; ouviremos o que diz. Vens, contemplas-me, tudo. Que , pois, conversar com um homem? No perguntar-lhe quais as suas opinies e expor-lhe as prprias? Tenho uma falsa opinio; combate-a. Ests num falso preconceito; consente que to desfaa. Isso falar com um filsofo. Pelo contrrio, fazes-me uma visita e, pouco satisfeito, retiras-te dizendo: - Epicteto no grande coisa; fala com rudeza. No assim? Vede o que so os homens; procuram com quem falar, esto todos os dias juntos, como esttuas, sem se conhecerem, sem se examinarem uns aos outros e sem melhorarem. O entretenimento ou a curiosidade que determinam os nossos feitos e conversaes.

    208

    A desdita dos homens procede sempre de colocarem mal a sua confiana; so como os cervos que, para fugirem ave que ameaa cair-lhes sobre a cabea, tratam-se de por-se a coberto e caem nas redes, onde perecem.

    209

    Aprendeste alguns preceitos de filosofia e pretendes ensin-los. Que fazes seno devolver o que no digeriste, como devolve o mau estmago a comida ingerida? Digere, meu amigo, e ensinars quando, mediante uma alterao no teu esprito, me fizeres ver o alimento que lhe deste. - Mas este ou aquele abriu uma escola, e eu no quero ser inferior. Vil escravo! Abre-se uma escola por capricho ou por acaso? Para tal preciso ter idade madura, observar determinada vida e ser escolhido pelos deuses. Sem isso, sers sempre um impostor e mpio. Abres uma loja e tens nela ungentos, mas lhes desconheces o uso e maneira pela qual se aplicam.

    210

    No h naturalmente nenhuma sociedade entre os homens; no intervm os deuses nas coisas humanas, e s h um bem: o prazer. Vede o que nos ensina Epicuro. Ah, infeliz! Valia a pena velar

  • tantas noites, valia a pena escrever essas afirmaes? No houvera sido melhor permaneceres no teu leito macio e arrastares a vida de um verme, visto ser a nica de que te julgas digno? Segundo a tua doutrina, no so piedade e santidade mais que invenes de homens arrogantes e de sofistas; a justia fraqueza; o pudor loucura; no mais pais, filhos, irmos, cidados. Oh, imprudente! Oh, impostor! Orestes, agitado pelas negras frias, no mais furioso do que tu!

    211

    Assim como no depende do homem dar consentimento ao que parece verdadeiro, tampouco dele depende repelir o que lhe parece bom. O epicurista que afirma no ser o roubo um mal e sim ser surpreendido, roubar, seguramente, se estiver convencido de que ningum o observa.

    212

    Vais ao anfiteatro e logo te interessas e desejas que tal ator ou tal atleta seja coroado. Querem os demais seja outro o que alcance a vitria. Aborrece-te essa contradio, por seres pretor e pretenderes que todos cedam. Mas no tem os outros opinio prpria? No tem vontade e o mesmo direito de ofender-se por te opores ao que se lhes afigura justo? Se queres permanecer tranqilo e jamais encontrar oposio, no desejes a coroa seno a quem seja coroado. Ou se queres ser dono de entreg-la a quem mais te aprouver, celebra jogos em tua casa, e ento, com a tua prpria autoridade, publicars: este ou aquele venceu nos jogos pticos, stmicos ou olmpicos. Em pblico, porm, no te arrogues o que te no pertence, e deixa em liberdade os sufrgios.

    213

    Lembra-te de que o desejo das honras, da riqueza, no o nico que nos submete e escraviza, seno tambm o desejo de repouso, de folga, de viagens, de estudo. Numa palavra, todas as coisas exteriores, quaisquer que sejam, nos fazem escravos quando as estimamos. O verdadeiro dono de si prprio e de ns aquele que tem o poder de dar-nos e tirar-nos o que queremos. Todo homem, pois, que pretenda ser livre, no deseje nem deteste nada do que depende dos demais; a no ser assim, ser necessariamente escravo.

    214

    Para julgares se livre um homem, no ds ateno s suas dignidades; porque, ao contrrio, quanto mais elevado, mais escravo . Dirs, acaso: - Vejo que faz tudo quanto quer. - Eu tambm; mas advirto-te de que um escravo que goza, durante alguns dias, do privilgio das saturnais, ou cujo dono est ausente. Espera que a festa termine ou que o seu amo regresse, e ento me dirs a tua opinio. - Quem este senhor? Todo homem que tenha bastante poder para dar-lhe ou tirar-lhe o que deseja.

    215

    Empreendes uma longa jornada com o propsito de assistir aos jogos de Olmpia, e mais ainda com o de admirar a bela esttua de Fdias, e consideras grande desdita morrer, sem o prazer de v-los; mas alguma vez te pesou no contemplar obras muito superiores s de Fdias, obras que no mister procurar to longe, que no custam tantos trabalhos e esforos, e que por toda parte se nos deparam? Alguma vez te ocorrer pensar que s homem e que o s por teres nascido? Permanecers desatento ante o espetculo to admirvel deste universo que a divindade colocou diante dos teus olhos e que te convida a conhecer?

    216

    Antes de iniciares um empreendimento, observa cuidadosamente os seus precedentes e conseqncias. Se no observares tal procedimento, sentirs imediatamente prazer em tudo quanto fizeres, porque no ters em conta os resultados que pode oferecer-te; mas por fim, surgir a vergonha, e ficars cheio de confuso.

    217

    Queres chegar a ser filsofo; prepara-te, desde j, a ser objeto de mofa, e sabe de antemo que o povo te vaiar e apostrofar, chamando-te filsofo da noite para o dia; ser-te- atirada ao rosto a tua postura arrogante. Procura, por tua parte, no mostrar tal postura e ater-te s mximas que se te houverem afigurado mais belas e melhores; pensa que se nelas te mantiveres firme, os mesmos que a princpio de ti se riem, te admiraro, enquanto, se cederes aos seus insultos, sers duplamente escarnecido.

    218

  • Quando empreenderes alguma coisa, seja ela qual for, concentra o esprito e reflete antes em que ao te vais empenhar; se fores banhar-te, focaliza o que de ordinrio se passa nos banhos; uns atiram gua aos outros; no falta quem bata outro, quem lhe dirija injrias, quem o roube; depois de pensar nisso, irs com mais segurana ao que pretenderes fazer; mas dize sempre antes: - Quero banhar-me; contudo, quero tambm conservar a liberdade e independncia, verdadeiro patrimnio da minha natureza; o mesmo deves dizer acerca de cada coisa. Por tal meio, se um obstculo te impedir banhar-te, ters sempre o consolo de dizer: no queria apenas banhar-me, seno tambm conservar a liberdade e independncia, e no a conservaria se me entristecesse.

    219

    Se se apresentar oportunidade de falar acerca de uma questo de verdadeira importncia na presena de ignorantes, guarda-te de faz-lo, pois h grande perigo em manifestar, imediatamente, o que se no meditou. Se, por acaso, algum te censurar e disser que nada sabes, se te no molestar nem te ferir tal censura, ser certo que comears a ser filsofo desde tal momento. As ovelhas no vo mostrar aos pastores o que comeram; pelo contrrio, depois de bem digerido o pasto, do-lhes l e leite. Do mesmo modo, no deves malgastar, entre ignorantes, belas mximas; procura digeri-las e d-las a conhecer por meio dos teus atos.

    220

    Um mdico visita um enfermo e lhe diz: Tens febre; abstm-te por hoje de tomar qualquer alimento, e no bebas mais que gua. O enfermo d-lhe crdito, agradece-lhe e paga-lhe. Um filsofo diz a um ignorante: Os teus desejos so desenfreados, os teus temores so baixos e servis, professas falsas crenas. O ignorante enfurece-se e sente-se ferido no amor-prprio. De que nasce tal diferena? De o enfermo conhecer o seu mal, e o ignorante no.

    221

    Parecemo-nos aos avarentos que armazenam grandes provises e, no obstante, permanecem fracos e descarnados, por deficincia de alimentao. Temos sbios preceitos, profundas mximas; mas para discorrer delas, e no para pratic-las; as nossas palavras so desmentidas pelas nossas aes. No somos sequer homens, e queremos passar por filsofos; a carga para ns demasiadamente grande. como se um homem que no tivesse fora para suportar o peso de duas libras, pretendesse suportar a pedra de um moinho.

    222

    No deve o homem alarmar-se facilmente nesta vida. Mandamos um mensageiro saber o que sucede; mas escolhemos mal o nosso homem, porque mandamos um covarde que, ao menor rudo, regressa espantado a ns, temeroso da prpria sombra, que o segue.

    223

    Quando algum se vangloria de compreender e explicar bem os escritos de Crisipo, dize entre ti: Se Crisipo no houvesse escrito obscuramente, no teria o de que vangloriar-se este homem. Que procuro eu? Conhecer a natureza e segui-la. Busco, pois, quem melhor a explicou; dizem-me que Crisipo, e leio Crisipo, mas o no compreendo. Busco, pois, um que mo explique; at aqui nada digno de considerao nem estima. Uma vez que encontrei um bom intrprete, s me resta servir-me dos preceitos que me explicou e p-los em prtica, e essa a coisa que merece estima, porque se me contento com explicar esse filsofo e admir-lo, que sou? Um puro gramtico, em vez de filsofo, com a nica diferena de que, em vez de explicar Homero, explico Crisipo. Quando, portanto, algum me disser: - Explica-me Crisipo, sentirei grande vergonha e confuso, se no puder mostrar os meus atos em consonncia com os seus preceitos.

    224

    - Componho belssimos e saborosos dilogos e escrevo livros interessantes. - Meu amigo, preferiria que me dissesses que dominava as paixes, que compunhas os desejos, que seguias a verdade nos juzos. Assegura-me que no temes a priso, nem o desterro, nem a dor, nem a misria, nem a morte. Sem isso, por belos que sejam os livros que escreves, podes estar certo de que s apenas um ignorante.

    225

    A sede do febril bem diversa da sede do homem so. Este, mal bebeu, est satisfeito e a sede se lhe apazigua. Mas aquele, aps breve instante de prazer, sofre terrveis dores de estmago; a gua se lhe converte em blis, vomita-a, retorce-se, e a sede se faz mais insuportvel. Semelhante quem possui riqueza, cargos ou uma formosa esposa, e deixa que a concupiscncia lhe invada o

  • corao. essa a sede do febril, de que se originam os