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Eurípedes Barsanulfo: contribuições teóricas e práticas à Pedagogia Espírita Edson Oliveira de Paula 1 Francisco Jahannes dos Santos Rodrigues 2 Resumo Nasce em Sacramento, Minas Gerais, em 1880, no seio de família modesta Eurípedes Barsanufo. Autodidata, lança-se ao estudo da Homeopatia, com o intuito de curar sua mãe e atender a população mais carente. Exerceu a função de vereador, onde desempenha importante papel na busca de uma escola popular, gratuita e de qualidade, em meio a conjuntura tradicionalista e castrante da Igreja no Estado. Com ajuda de alguns colegas, funda em 1902 o Liceu Sacramentano, que recebe o nome de Colégio Allan Kardec, em 1907, o primeiro de caráter Espírita. Institui no Brasil a Pedagogia Espírita, elaborando uma proposta teórica e prática, revelando a dimensão moral, de modo a conceber uma perspectiva interexistencial do ser humano. Político, Homeopata, educador, mas, sobretudo uma personalidade de excelsa pureza de caráter. Palavras Chaves: Eurípedes Barsanufo; Pedagogia Espírita; Interexistencialidade 1. Introdução No final do século XIX o Brasil, com o advento da proclamação da República, esperava uma grande mudança nos setores sociais, políticos, econômicos, e educacionais. Tais transformações, no entanto, não ocorreram da forma que se esperava. Entre os fatores que contribuíram para tal acontecimento estão a estrutura patriarcalista e o forte controle da Igreja que se perpetua, mesmo no período republicano. Em Sacramento, Minas Gerais surge a figura ilustre de Eurípedes Barsanulfo. Homem simples, que não teve a oportunidade de cursar o ensino superior, mas suas realizações no âmbito educacional o colocam no patamar de mestre. Autodidata, atuou nas áreas da política, da homeopatia, da comunicação e da educação. Mas era a docência que o fascinava e foi nessa área que Eurípedes 1 Graduando do curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará – UFC e integrante do Instituto de Pedagogia Espírita do Ceará – IPE-CE. E-mail: [email protected] 2 Graduando do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Ceará – UFC e integrante do Instituto de Pedagogia Espírita do Ceará – IPE-CE. E-mail: [email protected]

Eurípedes Barsanulfo: contribuições teóricas e práticas à Pedagogia Espírita

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Nasce em Sacramento, Minas Gerais, em 1880, no seio de família modesta Eurípedes Barsanufo. Autodidata, lança-se ao estudo da Homeopatia, com o intuito de curar sua mãe e atender a população mais carente. Exerceu a função de vereador, onde desempenha importante papel na busca de uma escola popular, gratuita e de qualidade, em meio a conjuntura tradicionalista e castrante da Igreja no Estado. Com ajuda de alguns colegas, funda em 1902 o Liceu Sacramentano, que recebe o nome de Colégio Allan Kardec, em 1907, o primeiro de caráter Espírita. Institui no Brasil a Pedagogia Espírita, elaborando uma proposta teórica e prática, revelando a dimensão moral, de modo a conceber uma perspectiva interexistencial do ser humano. Político, Homeopata, educador, mas, sobretudo uma personalidade de excelsa pureza de caráter

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Page 1: Eurípedes Barsanulfo: contribuições teóricas e práticas à Pedagogia Espírita

Eurípedes Barsanulfo: contribuições teóricas e práticas à Pedagogia Espírita

Edson Oliveira de Paula1

Francisco Jahannes dos Santos Rodrigues2

Resumo

Nasce em Sacramento, Minas Gerais, em 1880, no seio de família modesta

Eurípedes Barsanufo. Autodidata, lança-se ao estudo da Homeopatia, com o intuito de

curar sua mãe e atender a população mais carente. Exerceu a função de vereador, onde

desempenha importante papel na busca de uma escola popular, gratuita e de qualidade,

em meio a conjuntura tradicionalista e castrante da Igreja no Estado. Com ajuda de

alguns colegas, funda em 1902 o Liceu Sacramentano, que recebe o nome de Colégio

Allan Kardec, em 1907, o primeiro de caráter Espírita. Institui no Brasil a Pedagogia

Espírita, elaborando uma proposta teórica e prática, revelando a dimensão moral, de

modo a conceber uma perspectiva interexistencial do ser humano. Político, Homeopata,

educador, mas, sobretudo uma personalidade de excelsa pureza de caráter.

Palavras Chaves: Eurípedes Barsanufo; Pedagogia Espírita; Interexistencialidade

1. Introdução

No final do século XIX o Brasil, com o advento da proclamação da República,

esperava uma grande mudança nos setores sociais, políticos, econômicos, e

educacionais. Tais transformações, no entanto, não ocorreram da forma que se esperava.

Entre os fatores que contribuíram para tal acontecimento estão a estrutura patriarcalista

e o forte controle da Igreja que se perpetua, mesmo no período republicano.

Em Sacramento, Minas Gerais surge a figura ilustre de Eurípedes Barsanulfo.

Homem simples, que não teve a oportunidade de cursar o ensino superior, mas suas

realizações no âmbito educacional o colocam no patamar de mestre.

Autodidata, atuou nas áreas da política, da homeopatia, da comunicação e da

educação. Mas era a docência que o fascinava e foi nessa área que Eurípedes

1 Graduando do curso de Geografia da Universidade Federal do Ceará – UFC e integrante do Instituto de Pedagogia Espírita do Ceará – IPE-CE. E-mail: [email protected] 2 Graduando do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Ceará – UFC e integrante do Instituto de Pedagogia Espírita do Ceará – IPE-CE. E-mail: [email protected]

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desempenhou o seu maior trabalho. Em 1907 fundou o Colégio Allan Kardec onde pôs

em prática a suas inovações pedagógicas dentre elas: a adoção de classes mistas;

abolição de castigos e recompensas; métodos dinâmicos de ensino; abolição de notas e

aulas de História das Religiões. Essas e outras inovações o fazem fundador da

Pedagogia Espírita proposta pedagógica que visa a educação integral do homem.

2. Um breve relato sobre um grande homem

Em 1º de Maio de 1880, nascia em Sacramento, Minas Gerais, Eurípedes

Barsanulfo, filho de Jerônima Pereira de Almeida e Hemórgenes Ernesto de Araújo.

Cabe, antes de qualquer coisa tecer aqui as linhas mestras da configuração sócio-

espacial do ambiente em que Eurípedes vem ao mundo.

A base econômica sobre a qual Sacramento se sustentava era fundamentalmente

agrária, e, como a maioria das cidades brasileiras, possuía um tímido núcleo urbano,

onde a organização da estrutura fundiária pautava as atividades econômicas, sobretudo,

em atividades agropecuárias, onde emergiam como produtos principais o café e

lacticínios.

A família de Eurípedes se encontrava em um contexto delicado. Seu pai era

balconista, sua mãe, trabalhadora do lar e matriz de 15 filhos, entre os quais um

falecera. O quadro se agravava uma vez que a geratriz era acometida por ataques

súbitos, que a deixavam debilitada por dias. Quando Barsanulfo atingiu os 5 anos o pai

recebera um convite para trabalhar na localidade de Cipó. Aí chegando, a situação

financeira melhora, mas o condicionamento natural lhes impunha uma problemática

constante: o alto risco de saúde. Durante essa estadia da família Eurípedes contraíra

febre maleita, enquanto que o pai, beribéri (BIGHETO, 2006)

Quatro anos mais tarde a família volta a Sacramento. Barsanulfo é matriculado

no renomado colégio Miranda, onde retoma seus estudos interrompidos, quando de sua

estadia em Cipó. Desde cedo, demonstra grande inteligência e senso de

responsabilidade. Exerce diversas atividades artísticas e culturais. Exemplo disso é sua

participação no Liceu dramático, onde apresenta diversas peças famosas. Destacou-se

no interior do ambiente escolar, onde precocemente demonstra sua tendência a

docência, uma vez que ainda enquanto aluno auxiliava seu professor. Ao concluir seus

estudos, o diretor aconselha o pai a apoiar Eurípedes no sentido de fazer um curso

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superior. Matricula-se, com a ajuda do mesmo no curso preparatório de medicina no Rio

de Janeiro, com o intuito de encontrar a cura para a doença da mãe, mas as vésperas da

viagem ela sofre uma recaída e ele decide não ir (NOVELINO, 1991).

Entretanto, em 1897 acontece um fato importante na vida social da cidade.

Chegaram ali Sra. Joaquina Gomes e seus filhos Ormênio e Vera para uma breve estada

na pequena cidade de Sacramento. A família ficou hospedada no Colégio Nossa

Senhora do Patrocínio que era dirigido pela professora Ana Borges. Nesse colégio era

realizado duas vezes por semana saraus onde a elite local se reunia para recitar poesias e

cantar. Foi em um desses encontros que Eurípedes conheceu a família Gomes tornando-

se muito amigo dos mesmos.

Ormênio era estudioso e, um de seus estudos, estava voltado para a Homeopatia.

Este assunto despertou grande interesse em Eurípedes que logo pediu ao amigo, fontes

bibliográficas para que ele também pudesse estudar, uma vez que, era autodidata, e,

portanto não teve dificuldades em desenvolver habilidades em diversas áreas do

conhecimento. Para sua sorte, Ormênio trouxera consigo alguns livros relacionados com

esta terapêutica. Eurípedes empenhou-se profundamente nos estudos e nas atividades

Homeopática, pois tinha como objetivo usar esta terapia na cura de sua mãe, o que

consegue posteriormente (NOVELINO, 1991).

Vê-se dessa forma que Eurípedes amava muito sua família e seus amigos.

Quando estes sofriam, ele se responsabilizava em apoiá-los em todos os sentidos.

Relata-nos a Sra. Edalides M. de Rezende, em seu depoimento, que Eurípedes ficara muito preocupado, quando tia Babota adoeceu para desencarnar. O menino, então com seis anos, não saía de junto do leito da enferma. (NOVELINO, 1991)

Ainda sobre as práticas terapêuticas, ele era profundo crítico da mercantilização

da medicina abriu (não se sabe ao certo a data de inauguração) uma farmácia

Homeopática com o objetivo de atender aos necessitados da periferia da cidade. Desde

pequeno, Eurípedes demonstrou invulgar interesse pelos enfermos. Vivia a volta de

pessoas sofredoras, a quem oferecia as alegrias naturais da idade. Amava a todos

indiscriminadamente tornando-se assim um verdadeiro homem de bem voltado

especialmente ao próximo (IDEM).

3. Eurípedes e sua atuação no Legislativo

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Paralelo a isto no ano de 1905 Eurípedes engaja-se na política tendo como meta

melhorar a cultura, a saúde, a educação e a infra-estrutura de sua cidade. É admirável o

fato de haver Eurípedes conciliado sua participação no Legislativo local com as excelsas

tarefas, nos campos mediúnicos, educacional e de assistência a enfermos (NOVELINO,

1991). Com o mandato de vereador, Eurípedes desempenhou suas atribuições de forma

ética e democrática dedicando-se com extrema sabedoria ao magistério. Trabalhou pelo

aperfeiçoamento dos transportes em Sacramento, melhorou a urbanização, procurou

expandir o número de médicos e farmácias na cidade, lutou por maior distribuição de

riquezas, lutou por uma educação laica, pública e de qualidade e defendeu a

participação direta população na vida pública.

A democracia corria nas veias de Eurípedes. O trecho abaixo demonstra o

manifesto feito por ele ao deixar claro o desejo de que o povo deveria ter mais poderes

na democracia:

O vereador E. Barsanulfo manifestou em seu discurso que os governos não deviam proporcionar meios para a escolha de candidatos para cargos de presidente da República ou Estado, cuja a convenção de 22 de Agosto ia tratar; mas sim ampliar esse direito ao povo para livremente sufragar o nome do cidadão que a massa popular compreendesse estar a altura de desempenhar o mandato no governo da República ou Estado (...) (ATA DA CÂMARA MUNICIPAL, 1909, p. 115)

Eurípedes não se sentia a vontade em um cargo público, pois considerava

autoritária permanecer no poder sem levar em consideração a opinião do povo. Assim,

em 23 de setembro de 1910 pediu seu afastamento, em decorrência da prorrogação de

mandatos que para Eurípedes eram feitos de maneira ilegal.

4. Da Religiosidade de Eurípedes e as críticas da Igreja

Do ponto de vista de sua religiosidade, Eurípedes era católico fervoroso e muito

querido junto as autoridades eclesiásticas. Isto, inicialmente, não nos causa

estranhamento, tendo em vista a influência da Igreja católica em Minas Gerais entre o

fim do séc. XIX e início do XX. No entanto, um personagem em sua história modifica

em parte seu rumo: seu tio. O Sr. Mariano da Cunha Jr., antigo materialista, convertido

ao espiritismo, empresta-lhe um livro que chamara a atenção do Jovem. O livro tinha o

título: Depois da morte, de Leon Denis. A obra do grande filósofo francês despertou em

Eurípedes a alta significação do amor e da sabedoria de Deus. “Jamais ouvi alguém

cantar as glórias da Criação com tamanha profundidade e beleza” (IDEM, p.77). A

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conversão ao Espiritismo despertou apreensão entre familiares, amigos e o clero. Muitos

não entendiam a decisão do jovem que, até então, era freqüentador assíduo dos cultos

católicos.

A partir de então ele passa a ser alvo de perseguições por parte dos adeptos do

catolicismo. Consta entre os argumentos infundados o de que o espiritismo provocaria

loucura. O clima hostil em relação ao Espiritismo era de tal forma que

Os bispos mineiros traçavam planos para impedir o crescimento daquilo que consideravam uma doutrina subversiva aos ideais da Igreja. Incentivavam publicamente a hostilidade do povo. Os espíritas eram ameaçados nas ruas, perdiam seus empregos e conflitos se estabeleciam dentro das famílias (BIGHETO, 2006, p. 55).

A revelação de sua nova crença causa enorme espanto à comunidade,

prejudicando a atividade pedagógica – a qual nos deteremos posteriormente. Bigheto

(2006) nos dá a idéia das conseqüências que sua atitude motivou

Para todos na cidade, o professor tinha enlouquecido. Os jornais apareciam cheios de críticas e acusações de demência. As pessoas começaram a se escandalizar com o fato. [...] Os professores do Liceu Sacramentano, colégio que Eurípedes lecionava e era diretor, quando souberam da notícia, abandonaram suas funções e o proprietário do prédio onde funcionava a escola retirou o imóvel (IDEM, p. 60)

Apesar do rebatimento negativo que causou junto aos conservadores, Eurípedes

é eleito vereador em 1904, onde ocupa tal cargo até 1911. Funda, em 1905, um centro

espírita, dedicado ao atendimento da população carente através da homeopatia, sob

receituário mediúnico. Sua atuação tanto social quanto política exerceu importante

função no que concerne a divulgação do Espiritismo em Minas Gerais e na luta contra

os posicionamentos dogmatizantes do catolicismo. Em 1906 trava um importante debate

acerca da não alocação de imagens sacras nas instituições governamentais, uma vez que

era republicano e lutava pela libertação das correntes ideológicas da Igreja.

A respeito da influencia católica em Minas Gerais e dos embates políticos que

daí decorrem, cabe aqui nos remetermos ao contexto brasileiro no fim do período

imperial e no início do novo regime, onde as lutas tornavam-se freqüentes uma vez que

chegavam uma série de novas idéias ao país.

5. O quadro sócio-cultural do Brasil no fim dos anos oitocentistas e a emergência

do século XX: influências no contexto educacional mineiro

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No Brasil, no fim do século XIX e no início do século seguinte todo um

conjunto de elementos culturais dos mais diversos matizes se fazia presente nos

discursos vigentes. Os intercâmbios culturais realizados pelos filhos da elite nativa nos

países europeus geraram a assimilação de um sem-número de elementos constituintes

desta cultura dita civilizada. A incorporação de hábitos e o consumo de mercadorias de

toda sorte, como cavalos e pianos ingleses, jóias, relógios de algibeira, paletós, etc., são

fatos antes não vislumbrados com tamanha magnitude e causam todo um frisson no seio

da sociedade brasileira, acarretando modificações no interior da mesma

(ALENCASTRO, 1997).

Nesse aglomerado de inovações que resulta de tal miscigenação, ou de maior

assimilação de traços e hábitos europeus, não se deve perder de vista a importância das

cidades litorâneas enquanto pontos estratégicos para a emissão de navios ao Velho

continente. Em todo país essa tendência se evidencia. No Ceará, por exemplo, Dantas

(2002) atenta para o fato de Fortaleza, cidade litorânea, porém com “alma” interiorana,

no período, atue simultaneamente como centro emissor e receptor de fluxos

demográficos de alto padrão aquisitivo. O Rio de Janeiro segue essa tendência e acaba

sendo na verdade o maior representante de tais acontecimentos, principalmente pelo fato

de ser o principal centro cultural e sede administrativa do país. Nas malas que aqui

chegavam além das bugigangas européias eram trazidos costumes, novas idéias e

atitudes.

Some-se a isso a mudança no regime político do Brasil, que então buscava se

adaptar a nova condição de República e fez emergir a disputa entre um verdadeiro arco-

íris ideológico. No que tange a esfera pedagógica esse conflito se evidencia a partir do

choque ideológico entre católicos, positivistas, protestantes, livre-pensadores,

socialistas, anarquistas, espíritas...

Sacramento, Minas Gerais - área de atuação de Eurípedes Barsanufo e palco de

nossos relatos e narrativas – situa-se no bojo desses embates de modo a se perceber de

maneira mais clara o envolvimento de (i) Católicos, encarnados na figura do Arcebispo

de Mariana, Dom Silvério Gomes Pimenta - homem de grande influência; (ii)

Positivistas, sob o estandarte de uma educação laica, os quais tinham em João Pinheiro

da Silva (duas vezes governador do Estado) seu maior expoente; e (iii) Espíritas, ainda

que oprimidos pelo preconceito dos primeiros, lançam uma terceira proposta que dista

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das tendências materialistas do positivismo e do dogmatismo católico, onde Eurípedes

surge como intérprete central (BIGHETO, 2006)

A atuação católica em Minas era massiva ao ponto de poder se afirmar que era o

Estado em que a Igreja possuía maior influência. Isso fica claro uma vez que D. Silvério

encarregado por Roma do serviço de fazer inflamar a chama do catolicismo e combater

Protestantes e Espíritas que de uma de uma forma ou de outra se impunham em seu

caminho, reduzindo suas forças e, por conseguinte, impedindo a realização de seu

projeto de angariação de poder político. (IDEM)

João Pinheiro da Silva trabalha bem a idéia de renovação dos moldes de ensino,

pois enquanto governador incentiva a adoção de idéias novas do ensino. Nos anos finais

de seu último mandato - que se encerra em 1908 com sua morte - ele assina o Decreto

n.1960 16 de dezembro de 1906, que versa sobre a educação nos níveis primário e

normal de ensino. Tal decreto é importante na medida em que insere alguns elementos

das práticas rousseauniana e pestalozziana no ensino, principalmente no que concerne

ao aspecto moral da educação.

Mas a contradição logo aparece, tanto no plano político, quanto pedagógico. Neste último, temos dentro do próprio decreto, uma série de prescrições disciplinares, com todo o tradicional sistema de recompensas e punições, que configuram uma escola autoritária e passiva. Por exemplo, entre os deveres de que os professores estão incumbidos, está o de “manter o silêncio”. (Art. 72). (BIGHETO, 2006b – grifo nosso)

Deve-se ter em conta que o próprio nível discursivo apresenta grandes

contradições, uma vez que, as assimilações de alguns preceitos progressistas se

misturam com algumas práticas tradicionais, onde o controle e a dominação do aluno

pelo professor são uns dos traços mais evidentes.

Vê-se então que apesar de todo esse alarde acerca do contexto educacional, na

verdade muito pouco foi, de fato, implementado. Tem-se que os investimentos sempre

ficaram sempre sublevados ao plano do discurso, fazendo surgir no interior do processo

de ensino um mecanicismo, que divorcia teoria e prática, além do que a ausência de

materiais didáticos de toda ordem como “mesas, cadeiras, condições inadequadas das

salas, dos edifícios” se fazem presentes. (IDEM)

6. Eurípedes e o combate à tendência tradicional: por uma escola popular!

No cenário mineiro que nos é apresentado, uma forte polêmica reside: a do

financiamento das instituições privadas de ensino, sobretudo as de caráter religioso.

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Elas custavam onerosos dispêndios de recursos estatais, lançados a torto e a direito na

subvenção das mesmas. Eurípedes junto com mais alguns, no período em que exercera a

função de vereador, luta veementemente no sentido de garantir a autonomia das

instituições de ensino e um uso mais racional dos recursos públicos.

O trecho que se segue é singular nesse sentido por demonstrar a importância de

nosso protagonista na defesa de um ensino não-confessional, autônomo e popular, onde

a gratuidade deveria estar contida.

Não podendo manter relações de dependência ou aliança com cultos religiosos, quaisquer que sejam, quer o Governo da União, Estado ou município, em virtude do disposto no artigo setenta e dois parágrafo sétimo da lei básica, à câmara por isso é vedado conceber verbas que resultem na construção de casas de para colégios e conventos. A comissão opina portanto para que se indefira tal requerimento, visto não poder a municipalidade ir de encontro às leis constituídas da federação. (ATA DA CÂMARA MUNICIPAL, 1908, p. 50 – Apud. BIGHETO, 2006b)

Alguns vereadores, notadamente aqueles que se associavam às instituições

supracitadas, encaminham novamente uma solicitação acerca da subvenção estatal.

Dois meses mais tarde, os vereadores encaminharam novamente um pedido solicitando que a subvenção ao colégio Sagrado Coração de Jesus não fosse cortada pela Câmara, já que o colégio prestava importante serviço educacional para a cidade e para a população desfavorecida. A comissão de instrução retoma a mesma linha de argumentação. Segundo o relatório, os colégios sustentados pelo município ofereciam vagas suficientes para quase todos os alunos em idade escolar primária e os alunos desfavorecidos não precisavam do auxílio do colégio católico. Além disso, o método e o programa das escolas católicas não atendiam às necessidades educacionais: o ensino baseado na repetição de princípios distantes da realidade, não se ensinava a língua portuguesa diariamente, nem aritmética e geografia nacional. (BIGHETO, Op.Cit)

Essas não foram as únicas vezes em que essa matéria entraria em discussão,

diversos serão os momentos em que o embate se fará na câmara. Barsanulfo sob a

bandeira da ética e trazendo no peito os fortes preceitos morais que compunham sua

formação trabalhou com enorme responsabilidade e, mesmo que no fim, o poderio

católico tenha conseguido manobrar, ou mesmo transgredir as leis vigentes, tal atuação

já nos serve de exemplo de integridade moral.

7. A atuação docente: Eurípedes e a Pedagogia Espírita

Na busca de uma escola popular, gratuita e de qualidade, Eurípedes utilizou uma

metodologia progressista. Em 1907, em meio à conjuntura tradicionalista do ensino

mineiro, cria o primeiro colégio espírita do Brasil: o Colégio Allan Kardec. Enquanto

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educador passa a adquirir maior visibilidade por divergir da tendência hegemônica de

ensino, pois em Sacramento as escolas eram fundamentalmente de caráter religioso, o

que implica dizer - quase que imediatamente - que incutiam sobremaneira os aspectos

disciplinantes, como o uso de ferramentas repressivas.

No Colégio Allan Kardec, Barsanulfo fazia uso de uma abordagem que em parte

se assemelha com algumas práticas escolanovistas, o que, no entanto, não nos dá a

permissão para elencar sua prática como sendo a mesma. Esta na verdade institui aquilo

que se denomina Pedagogia Espírita.

A Pedagogia Espírita tem seus pressupostos teóricos e práticos em autores como

Rousseau, Pestalozzi, Comenius, bem como no próprio Rivail (Allan Kardec) entre

outros. De Rousseau, aproveitou-se a perspectiva da abolição dos castigos e da

autonomia do aluno. Pestalozzi serve de modelo, por sua vez, pois insere na prática

educativa a necessidade de não divorciar alguns aspectos, privilegiando uns em

detrimento de outros. A expressão de que o processo pedagógico deve ocupar “a cabeça,

as mãos e o coração”, fazendo alusão a cognição, atividade e afetividade,

respectivamente, é sua máxima. Estão presente em Comenius, a idéia de integralidade

do saber e da universalização do ensino, bem como, ainda de modo incipiente o caráter

espiritual. (INCONTRI, 2000)

Todos os grandes autores supracitados acabam de certa forma servindo de base a

diversas tendências pedagógicas, mas cabe ressaltar que este último aspecto exposto

por Comenius é a linha mestra que diferencia a Pedagogia Espírita das demais. Com o

conhecimento do Espiritismo há a possibilidade de se vislumbrar a ciência do plano

espiritual e o otimismo em relação ao ser humano, oriundo da concepção da

perfectibilidade moral através da evolução ao longo de diversas jornadas

interexistenciais (INCONTRI, 2001).

Barsanulfo encarna de maneira exemplar tais preceitos. Entre as diversas

modificações propostas estão: a de introduzir salas mistas, abolir castigos e prêmios,

para evitar a concorrência, fazendo do ambiente escolar uma espécie de extensão do lar,

onde o mestre estabelecia uma relação próxima com os alunos (NOVELINO, Op. Cit).

Bigheto (2006a), ao realizar uma extensa pesquisa biográfica sobre Eurípedes

aponta os principais traços de sua metodologia. Afirma que:

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De acordo com os relatos e os depoimentos [de seus alunos], Eurípedes procurava cultivar nos seus alunos a capacidade de dialogar e debater buscava fazer com que as crianças e os jovens desenvolvessem a capacidade de pensar e argumentar sobre os assuntos tratados. Nas aulas do colégio, sempre instigava os alunos ao raciocínio crítico, à discussão e à participação de todos (BIGHETO, Op. Cit, p. 160 – grifos nossos).

Aliava-se conhecimento intelectual e moral, tanto no que se refere a teoria

quanto a sua aplicação prática, desenvolvendo uma prática ativa, onde os educandos

se viam enquanto seres individuais, coletivos, mas sobretudo, ativos no processo

educativo. Sua metodologia consistia numa simbiose entre exposição teórica e

contato direto com os conteúdos em pauta.

Para aula de ciências, dissecação de animais; para aulas de astronomia, observação dos astros. Para desenvolver o corpo, ginásticas diárias, exercícios respiratórios, aulas-passeio; para desenvolver a alma, a prática da fraternidade e da oração. Para apurar a inteligência, exercícios de racionalidade, observação atenta da natureza, reflexão crítica. (INCONTRI, p. 217)

No trecho em destaque a autora sintetiza bem o envolvimento de Eurípedes na

educação. Entretanto, um aspecto em especial nos chama atenção: a dimensão

religiosa, expressa através da oração. Se até aqui falamos de sua luta contra o

aprisionamento catequético da Igreja, Barsanulfo não abandona definitivamente essa

dimensão, como a maioria dos republicanos o fez. Ele apresenta, dentro da

concepção espírita, uma alternativa, a qual merece um pouco mais de nossa atenção.

8. Eurípedes, o ensino Inter-religioso e a Interexistencialidade: a educação

moral em destaque

O projeto pedagógico de Eurípedes não era limitado apenas às disciplinas

tradicionais. Percebe-se isto analisando o currículo do Colégio Allan Kardec que

tinha como disciplinas a astronomia, cosmografia, noções de vida prática, ginástica,

francês, o teatro e o Evangelho. Destas a que chama mais atenção é o ensino do

Evangelho que tinha como objetivo despertar nos educandos a verdadeira

religiosidade que liga o homem a Deus independente de religião. Dessa forma,

diferenciava-se dos métodos tradicionais, que exerciam o ensino catequético. Em

suas aulas ensinava a história, a filosofia e os fundamentos de todas as religiões

pondo em prática o verdadeiro ensino inter-religioso e sem proselitismo.

Eurípedes desprende-se por total das idéias tradicionalistas onde o aluno é um

mero receptor de informações. Sua pedagogia é ativa onde o aluno interage no

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processo de ensino-aprendizagem. Baseado em seus conhecimentos espíritas, mais

especificamente sobre a reencarnação, acreditava que as crianças possuíam um

conhecimento latente adquirido em vidas pretéritas, por tanto para ele educar não é

apenas construir, mas também recordar. Segundo Eurípedes, era imprescindível resgatar a

dimensão espiritual dos seres humanos, para confiar nas suas ações existenciais, tendo a convicção de

sermos autores na sociedade e não meros expectadores, sem forças para agir num mundo caótico e de

incertezas, que não pode ser mudado (BIGHETO, 2006).

A pedra fundamental da pedagogia de Eurípedes era encarar o educando

como ser reencarnado. Educar, portanto, é recordar aquilo que já

aprendemos em vidas anteriores em todos os sentidos culturais e um

processo de desabrochar o ser divino, de trazer à tona as potencialidades

que estão em germes no espírito (BIGHETO, 2003)

A Educação Moral é um dos principais pressupostos da pedagogia de

Barsanulfo. Ele acreditava que o desenvolvimento intelectual e moral deveriam ser

feitos de forma equilibrada para que os dois pudessem se associar de maneira

harmoniosa (BIGHETO, 2006a). A partir das aulas sobre o evangelho eram feitas

atividades onde os alunos vivenciavam o conteúdo estudado. Os trabalhos de caráter

caritativos eram os mais usados por Eurípedes para ensinar de maneira prática a

moral.

Na visão de Eurípedes, o cuidado dos doentes, as ações sociais, o clima familiar da escola contribuiriam para que os educandos aprendessem a moral na prática, fazendo o bem, e não por ouvir lindos sermões ou pelo processo de adestramento. A educação moral deveria ser menos teórica, como indicava aqueles primeiros artigos do Decreto 1960, de 1906, do governo de Minas, que, entretanto, não era praticado em parte alguma. No caso de Eurípedes, ela resultava em primeiro lugar do seu exemplo de militância beneficente e do estímulo que dava para que todos fossem solidários (BIGHETO, 2006a).

9. Os Métodos avaliativos e a integração com a comunidade

Por fim, mas não menos importante e inovadores, os procedimentos

avaliativos compõem capítulo singular no exercício do magistério empregado no

interior do Colégio Allan Kardec. A avaliação se fazia de maneira contínua e não

por simples aplicação pontual de um instrumento através do qual se requisita

conteúdos memorísticos. Valorizava-se no seio deste processo, fundamentalmente,

as produções e apresentações artísticas, entre as quais estão contidas as produções

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teatrais; e a prática discursiva sobre os temas próximos da comunidade e do mundo

de modo geral, com os debates entre alunos.

Barsanulfo estimulava ainda a participação da comunidade nos últimos

exames. Estes se constituíam em um grande ciclo de debates onde toda a

comunidade era convidada, inclusive profissionais de toda sorte para expor suas

idéias e posicionamentos, diante dos conteúdos apreendidos ao longo do ano, no

desenvolvimento de atividades profundamente enriquecedoras (IDEM).

10. Considerações Finais

Apesar de contarmos com um espaço diminuto para retratar tão grande

personalidade, temos a idéia que pudemos, mesmo que de modo superficial atingir

nosso propósito: o de retratar um pouco o grande educador espírita, descrevendo

assim, alguns trechos de sua vida particular, demonstrando a amorosidade que

possuía. Sua atuação política serve-nos de exemplo durante todo período em que

exerceu o cargo de vereador, sua incansável luta por melhores condições para a

população de Sacramento, são exemplos de seu empenho neste campo.

Sua atuação profissional reflete sem dúvida tais características, seja enquanto

Homeopata, no desenvolver de suas terapias e seu trabalho junto a população

desfavorecida de sua região; seja ainda enquanto educador, onde foi responsável por

um conjunto de inovações no processo educativo, contribuindo para a criação da

Pedagogia Espírita, na formulação de novos predispostos teórico-metodológicos e

suas implicações práticas.

11. Bibliografia

ALENCASTRO, Luís Felipe. Vida privada e Ordem privada no Império. In: NOVAES, Fernando (Coord.); ALENCASTRO, Luís Felipe (org.). História da Vida privada no Brasil. 2º vol. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 11-93)

BIGHETO, Alessandro César. Eurípedes Barsanulfo: um educador de vanguarda na Primeira República. Bragança Paulista: Comenius, 2006a.

_____. O clima pedagógico mineiro da Primeira República e o caso Eurípedes Barsanulfo. In: Lombardi, José Claudinei; Savian, Dermeval; Nascimento, Maria Isabel Moura.. (Org.). NAVEGANDO NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA. Campinas: Graf. FE - Histedbr, 2006b, v. 1, p. 1-20.

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_____. A trajetória pedagógica de Eurípedes Barsanulfo. Revista histedbr/ on-line, Campinas, p. 1-6, 2003.

DANTAS, Eustógio W.C. Mar à Vista: Estudo da Maritimidade em Fortaleza. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 2002.

INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um projeto brasileiro e suas raízes histórico-filosóficas. São Paulo, Feusp, 2001. (Tese de doutorado)

____. A Educação segundo o Espiritismo. São Paulo: Comenius, 2000.