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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 313-344, jul./dez. 2007 FANSITES OU O “CONSUMO DA EXPERIÊNCIA” NA MÍDIA CONTEMPORÂNEA Laura Graziela Gomes Universidade Federal Fluminense – Brasil Resumo: O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa que pretendeu investigar uma faceta do consumo de mídia contemporâneo, especialmente associado ao uso da tecnologia digital. Para a realização da investigação, escolhi investigar e observar fansites de séries norte-americanas de TV, criados e administrados por fãs brasileiros para discutirem suas séries preferidas, divulgarem-nas, produzirem e trocarem entre si suas fanarts: fanfics, fanvideos, icons ou avatares, banners ou assinaturas e wallpapers. O resultado dessa investigação e observação participante demonstrou que, além de jovens, os participantes desses fansites vêm promovendo mudanças significativas no consumo de mídia. Em 2006, o confronto entre a Polícia Federal, a Associação de Defesa da Propriedade Intelectual (Adepi) e o fórum Lost Brasil deixou evidente que esses jovens estavam dispostos a mudar os paradigmas de transmissão televisual no Brasil. Palavras-chave: consumo de mídia, fanarts, fansites, séries de TV. Abstract: This article presents some results of a research about an aspect of contemporary media consumption, especially associated to the use of digital technology. In this investigation were chosen Americans TV drama shows fansites, created and managed by Brazilians fans to discuss and diffuse their dearest shows, produce, show and change their fanarts: fanfics, fanvideos, icons, avatars, banners and wallpapers. The results of the investigation showed that this young people who take part in these fansites are promoting significant changes in media consumption. In 2006 the confrontation between Federal Police, ADEPI and Lost Brasil forum made clear that these fans are prepared to change the standards of TV transmission in Brazil. Keywords: drama TV shows, fanarts, fansites, media consumption.

FANSITES OU O “CONSUMO DA EXPERIÊNCIA” NA MÍDIA … · públicos AB, descontentes e entediados com a programação da TV aberta. O fato de me incluir nesse público que substituiu

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Fansites ou o “consumo da experiência” na mídia contemporânea

FANSITES OU O “CONSUMO DA EXPERIÊNCIA”NA MÍDIA CONTEMPORÂNEA

Laura Graziela GomesUniversidade Federal Fluminense – Brasil

Resumo: O presente artigo apresenta resultados de uma pesquisa que pretendeuinvestigar uma faceta do consumo de mídia contemporâneo, especialmente associadoao uso da tecnologia digital. Para a realização da investigação, escolhi investigar eobservar fansites de séries norte-americanas de TV, criados e administrados por fãsbrasileiros para discutirem suas séries preferidas, divulgarem-nas, produzirem etrocarem entre si suas fanarts: fanfics, fanvideos, icons ou avatares, banners ouassinaturas e wallpapers. O resultado dessa investigação e observação participantedemonstrou que, além de jovens, os participantes desses fansites vêm promovendomudanças significativas no consumo de mídia. Em 2006, o confronto entre a PolíciaFederal, a Associação de Defesa da Propriedade Intelectual (Adepi) e o fórum LostBrasil deixou evidente que esses jovens estavam dispostos a mudar os paradigmas detransmissão televisual no Brasil.

Palavras-chave: consumo de mídia, fanarts, fansites, séries de TV.

Abstract: This article presents some results of a research about an aspect ofcontemporary media consumption, especially associated to the use of digitaltechnology. In this investigation were chosen Americans TV drama shows fansites,created and managed by Brazilians fans to discuss and diffuse their dearest shows,produce, show and change their fanarts: fanfics, fanvideos, icons, avatars, bannersand wallpapers. The results of the investigation showed that this young people whotake part in these fansites are promoting significant changes in media consumption.In 2006 the confrontation between Federal Police, ADEPI and Lost Brasil forummade clear that these fans are prepared to change the standards of TV transmission inBrazil.

Keywords: drama TV shows, fanarts, fansites, media consumption.

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O presente artigo teve sua origem em uma pesquisa,1 cujo objetivo foiinvestigar uma faceta do consumo de mídia contemporâneo, especialmenteassociado ao uso da tecnologia digital. Para realizá-la escolhi trabalhar2 comfansites de séries norte-americanas de TV, criados e administrados por fãsbrasileiros, ou seja, um público basicamente composto por jovens.

O resultado da investigação demonstrou que, além de jovens, em sua maioriaproveniente dos segmentos ABC, com boa taxa de escolaridade, especialmen-te envolvidos com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC),3 osparticipantes desses fansites vêm promovendo mudanças significativas no con-sumo de mídia no Brasil. Em 2006, o confronto entre a Polícia Federal, a Asso-ciação de Defesa da Propriedade Intelectual (Adepi) e o fórum Lost Brasildeixou evidente que esses jovens estavam dispostos a mudar os paradigmas detransmissão televisual no Brasil. Diante desse cenário, duas questões se impu-seram: quais os motivos para essa mudança? O que a tornou possível?

A primeira pergunta nos remete a uma mudança tecnológica que vempermitindo a um segmento brasileiro de consumidores de mídia obter autono-mia e um aumento de autoridade frente às empresas de comunicação de mas-sa, tais como emissoras de TV aberta, imprensa, rádio, etc. De fato, meusinformantes, em sua maioria, não assistem mais à TV aberta,4 são assinantesdos serviços de TV por assinatura, onde preferem assistir a séries norte-ame-ricanas, além de possuírem acesso à Internet banda larga (muitos estãoconectados 24 horas por dia). Assim sendo, três aspectos fundamentais cha-maram logo minha atenção quando comecei a freqüentar os fansites:

1 Pesquisa realizada durante o 1o semestre de 2006, financiada pelo CAEPM/ESPM/SP sobreIntermidialidades Contemporâneas. Gostaria de agradecer aos professores Luiz Piratininga e LíviaBarbosa pelo apoio recebido. Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na 25a ReuniãoBrasileira de Antropologia, Goiânia, junho de 2006.

2 Durante todo o período de realização da pesquisa participei como membro assíduo de quatrofansites. Esta atividade implicava entre outras coisas: postar diariamente, participando das discus-sões, contribuir com informações e material para o site, fazer fanarts, enfim realizar todas asatividades que um membro deve fazer.

3 De acordo com as pesquisas divulgadas pelo PNAD e CGI (comitê gestor da Internet no Brasil),dentre os 32,1 milhões de pessoas que acessaram a rede em 2005, a média de idade dos internautasdo Brasil é de 28,1 anos. Segundo a pesquisa, os internautas tinham em média 10,7 anos de estudoe um rendimento médio mensal domiciliar per capita de R$ 1.000. Além disso, metade dos internautasutilizou a rede no domicílio em que morava e 39,7% em seu local de trabalho. (Fontes: http://www.cgi.br).

4 Pelo menos não com a mesma regularidade e freqüência. Alguns informantes admitiram assistir vezpor outra, por ordem de importância: telejornais (57%); novelas (34%) e minisséries (17%).

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1) O fato de essas pessoas reservarem um tempo bastante significativode suas vidas para estarem conectadas, interagindo virtualmente, ou seja,o fato de possuírem uma “vida digital” e também uma “agenda virtual”,com participações em muitos sites e fóruns de discussão sobre os maisvariados assuntos e temas.2) Em relação a esses temas e independentemente dos outros usos quefazem da Internet, boa parte do tempo em que permanecem conectadas,elas usam para buscarem informações, discutirem e trocarem informa-ções sobre as séries de TV.3) Embora essa “vida digital” ainda não seja considerada mais importantedo que a chamada “vida real”, ela assume contornos de extrema relevân-cia para essas pessoas.

Entretanto, essas constatações não eram suficientes para explicar todosos aspectos envolvidos na mudança. Na verdade, elas foram o meu ponto departida para poder penetrar no mundo dos fansites. Foi a partir da convivênciavirtual com seus membros que pude vislumbrar outras motivações importantesque, reforçadas pelo acesso à tecnologia, vêm facultando a esse segmentoprotagonizar essa mudança. A questão tecnológica é, sem dúvida, decisiva,mas ela vem ao encontro de transformações mais profundas e abrangentes naordem do consumo contemporâneo e que precisam ser melhor esclarecidas.

Em suas manifestações mais recentes, o consumo vem sendo identificadocomo uma atividade cada vez mais cultural e simbólica, portanto midiática, do quepropriamente econômica (Barbosa; Gomes, 2004; Campbell, 2001). Para o con-sumidor contemporâneo, não se trata apenas de satisfazer necessidades básicasou supérfluas, buscar status, ou mesmo “ter para ser”, mas de algo que algunsespecialistas vêm denominando como “consumo da experiência”: o consumidorsabe que bens, marcas, produtos ou serviços permitem o acesso direto a conteúdose informações, além de conectá-los a determinadas paisagens imaginárias, permi-tindo fazê-los experimentar e partilharem diferentes formas de afetos, emoções,sentimentos e estados de subjetividade, muitas vezes sem precisar deslocar-se.

Ao mesmo tempo, nas sociedades modernas, burguesas e secularizadas,a mídia assumiu em grande parte as funções simbólicas de instituir e patrocinaros rituais e os cultos aos heróis da vida cotidiana. É ela que define: 1) as perso-nalidades ou heróis a serem eleitos como tais; 2) que trajetórias ou biografias osheróis eleitos devem trilhar para serem admirados, cultuados, homenageados;3) que tipo de admiradores esses heróis devem mobilizar em torno de si e como

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eles devem ser arregimentados e organizados em função das “práticas devocionais”a serem instituídas por ela, mídia; 4) finalmente, mas não menos importante, queexperiências são provenientes dessas formas de cultos e celebrações?

Colin Campbell (2001) foi quem, de fato, forneceu os argumentos maissólidos para explicar a passagem do consumo enquanto um evento subordinadoà produção e às condições de reprodução social, para a condição de um eventosociocultural de primeira grandeza, não mais circunscrito aos condicionamen-tos econômicos. Segundo ele, o romance burguês foi uma peça fundamentalpara essa transformação, na medida em que estabeleceu definitivamente aética romântica como o principal motor do consumo moderno. A conseqüênciadesse fato é que, seguindo os passos da literatura, tanto o teatro como maisadiante o cinema e a televisão assimilaram a ética romântica, transformando odrama burguês, que passou a absorver e incorporar um contingente cada vezmaior de categorias e personagens sociais, vindo dar origem à cultura de mas-sas. De acordo com Mattelart (1994), a indústria cinematográfica plantada nosEUA, a partir do início do século XX, com um tipo de filme mais voltado para opúblico feminino, também chamado de melodrama, não só foi um importantedispositivo de integração nacional norte-americano, como representou o primeiropasso no processo de internacionalização dessa cultura de massa nascente.

Além de mudar uma dada representação do social, um dos primeiros efei-tos do processo de internacionalização do cinema norte-americano foi, sobretu-do, mudar uma determinada relação com o ator e com a própria arte de repre-sentar, facultando a emergência de outra economia simbólica do carismainexistente até então, e que acabou por impor-se estabelecendo novas hierar-quias e outros vínculos com a chamada alta cultura. O star system, como échamado essa economia simbólica, tem sua sede mundial em Hollywood. Ele éimportante não apenas para a expansão da cultura do capitalismo e do consu-mo, mas também da ideologia norte-americana de soberania política. Não é poracaso que em seu estudo sobre as “estrelas” de Hollywood, Edgard Morin(1986) comparou o star system com a religião dos deuses olímpicos gregos.

No Brasil, o culto às “estrelas” de Hollywood está presente entre nós,desde o início da invenção do cinema.5 Muito embora o fenômeno dos fã-

5 Segundo Mattelart (1994, p. 30), “com efeito, as primeiras projeções públicas na América Latinaefetuaram-se, em 1896, no Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires, Cidade do México, Santiagodo Chile e Cidade de Guatemala”. No Brasil as projeções aconteceram nos dois sistemas: Edison eLumière.

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clubes no Brasil seja posterior e esteja relacionado aos artistas de rádio brasi-leiros (cantores de rádio), sempre existiram publicações que se encarregaramde divulgar notícias e reportagens sobre os astros de Hollywood entre nós. Nadécada de 1950, com a chegada da TV e por conta das séries americanas,6 opúblico brasileiro não só se mostrou igualmente receptivo a essas produçõescomo interessado no material divulgado sobre elas. O que importa destacar éque tanto pela via do cinema, quanto do rádio e da televisão, o público brasileirosempre se mostrou interessado em consumir a cultura de massas norte-ameri-cana, mantendo-se atualizado e informado sobre ela, o que para muitos críticosconstitui uma forte evidência de americanização.

Chegamos assim ao momento presente. De acordo com o relatório daABTA (2006),7 a TV por assinatura no Brasil teve um grande crescimento eexpansão nos últimos anos, notadamente a partir de 2004, quando se verificouum boom em todo o país na procura por esses serviços. De acordo com orelatório, a justificativa para esse crescimento e expansão a partir de 2004deveu-se à qualidade da programação que teria atraído majoritariamente ospúblicos AB, descontentes e entediados com a programação da TV aberta.

O fato de me incluir nesse público que substituiu a TV aberta pela TV porassinatura foi importante, pois em parte sabia e concordava que a migração daTV aberta para a TV por assinatura estava relacionada à qualidade da progra-mação, mas sabia também que havia um dado novo nessa programação quepassou a atrair mais o telespectador brasileiro, especialmente os mais jovens: oaumento da oferta de séries americanas na grade de programação dos canaispor assinatura. Assim, em minha percepção, o aumento de público a partir de2004 esteve ligado fundamentalmente ao aumento da oferta que gerou um inte-resse maior pelas séries norte-americanas por parte do público jovem AB bra-sileiro, descontente com a programação da TV aberta. São elas que efetiva-

6 As séries americanas não são uma novidade na televisão brasileira. Elas fazem parte da grade deprogramação das emissoras desde o começo da televisão brasileira, na década de 1950. O queaconteceu é que quando as emissoras brasileiras passaram a produzir sua própria programação, os“enlatados”, como eram chamadas essas séries, foram sendo substituídos pelos produtos nacionais.O sucesso recente das séries tem relação com as TVs pagas que não investem em programaçãoprópria e importam as séries americanas. Ao mesmo tempo, as séries vivem um grande momentode renovação criativa no próprio país de origem, o que faz da sua exportação um negócio bastantelucrativo.

7 Associação Brasileira de Televisão por Assinatura.

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mente passaram a atrair mais audiência e público para o meio, especialmenteentre crianças, teens e jovens adultos que, por sua vez, acabam influenciandoos mais velhos.

Embora, como o relatório enfatizou, documentários e filmes continuemsendo apreciados, o fato de eles já fazerem parte da programação da TV porassinatura desde o seu início por si só não explicaria o boom verificado a partirde 2004. Ao contrário, as séries norte-americanas se multiplicaram e passarampor grandes renovações a partir de 2000, sendo criadas e produzidas visandouma maior segmentação do público, tornando-se uma tendência forte em ter-mos de consumo televisual, não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro.

Além disso, outro dado apresentado no relatório chamou minha atenção.Pelo fato de já participar de alguns fansites, verifiquei que nem sempre o públi-co das séries correspondia exatamente aos perfis apresentados no relatório daABTA. É nesse contexto que percebi que poderia usar minha experiência pes-soal como telespectadora e consumidora do gênero para fazer uma pesquisaqualitativa visando realizar um melhor mapeamento e acompanhamento dessepúblico, justamente para apurar o que realmente estava mudando no panoramatelevisual brasileiro, que durante bom tempo se mostrara completamente domi-nado pelos paradigmas da TV aberta.

Particularmente, estava curiosa pelo interesse devotado à cultura e socie-dade norte-americanas, demonstrado através do consumo desse tipo deteledramaturgia. Assim sendo, minha dúvida era se os fãs buscavam essasséries por causa das inovações apresentadas no formato, nos enredos (plots) esituações vividas pelos heróis/personagens, ou se, na verdade, tudo não era umpretexto para estarem em contato, mesmo que imaginariamente, com a socie-dade e cultura norte-americanas, ou ambas as coisas. Por causa dessa discus-são, restringi então meu campo de observação empírico selecionando apenasfansites, blogs, listas de discussão e fóruns criados e administrados por fãsbrasileiros, dedicados à discussão das séries norte-americanas que são trans-mitidas no Brasil pela TV por assinatura.8

8 A partir de 2005 algumas redes de emissoras abertas passaram a adquirir também os direitos detransmissão dessas séries no Brasil. Considero que essa decisão foi tomada em função da perda deaudiência desse público jovem que migrou para a TV paga. Ela só reforça as minhas observações deque o formato vem se impondo novamente no gosto desse público porque ele está descontente coma programação nacional. Até a TV Globo cedeu à tendência tendo adquirido os direitos de transmis-são de Lost.

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O fato de a audiência da TV por assinatura ser composta por pessoasmajoritariamente pertencentes às classes AB me faz acreditar que ela é maissensível a essa forma de relação eletiva, fidelizada, singularizada, portanto éaquela que tem mais potencial para sensibilizar os demais grupos. É essa pos-tura de “formadores de opinião”, como trend setters e early adopters9 quemarca, a meu ver, o rompimento dessa audiência com o padrão estabelecidopela mídia de massa e tradicional que impõe ao “telespectador” uma grade deprogramação compulsória, lembrando que ele faz parte de uma grande engre-nagem comercial e mercadológica.

Mas isso não é tudo. Paralelamente, ao iniciar minhas investigações nosfansites estava também interessada em analisar o modo de consumo dessesfãs, que de forma alguma é passivo e se traduz em inúmeras formas de inter-venções e objetos produzidos por eles – as fanarts – a partir de sua relaçãocom as séries e que são compartilhadas nesses fansites.

Um fansite é um site criado e administrado por fãs, seja um blog, umapágina, um fórum de discussão ou mesmo lista. É sempre importante lembrarque na biografia dos bens, a trajetória ascendente de alguns deles no sentido deterem alcançado um determinado status de grandeza e de excelência não foifeita exclusivamente graças às qualidades estéticas ou outras virtudes intrínse-cas introduzidas ou introjetadas por seus produtores no processo de criação.Muitas coisas maravilhosas e boas da vida dependem também da existênciadaqueles que se dispuseram a apreciá-las como tais, isto é, seus consumidoresiniciais que souberam transmitir aos demais e às gerações seguintes as exce-lências e virtudes de tal ou qual produto, singularizando-o.

Essa é uma variável que vem sendo incorporada pelos profissionais demarketing: o papel dos consumidores iniciais, senão na criação de um produto,pelo menos na certificação de uma marca ou no seu aperfeiçoamento. Se nãoo fazem em termos materiais ou tangíveis, fazem-no, sobretudo, nos aspectosintangíveis, como fornecedores das matérias-primas narrativas e imagéticas, apartir das quais produtores e profissionais de marketing criam novas associa-ções com eles.

9 Trend setters pode ser traduzido por lançadores de tendências. Do Dicionário Houaiss: lançar, ser oiniciador de, por em voga (ex.: l. uma moda); introduzir (um novo produto) no mercado; promover(outrem ou a si mesmo), divulgando as qualidades e méritos (alheios ou próprios); introduzir,apresentar; disseminar, semear, gerar. Early adopters, pode ser traduzido por consumidores iniciais.Aqueles que primeiro aderem a uma tendência lançada pelos trend setters.

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Existem alguns produtos em que essa “contribuição criativa” dos consu-midores iniciais, ou dos trend setters e early adopters é vista como indispen-sável. A arte, a cultura e mesmo a indústria cultural são domínios onde o pontode vista da audiência, da platéia, do público é sempre tomado como uma dimen-são inalienável do próprio bem e cujas relações com ele são consideradasindissolúveis, sem as quais ele não existe como tal.

Ninguém pode avaliar um escritor ou um cineasta e suas respectivas obrasse não levar em conta o impacto que elas produziram no(s) público(s) em diferen-tes épocas. Além disso, o impacto que uma obra literária ou cinematográficapode provocar pode mesmo pôr em cheque a autoridade dos críticos quando seanalisa um bem dessa natureza, à luz de suas respectivas audiências e seus con-sumidores iniciais. São inúmeras as circunstâncias em que, graças a um “públicoqualificado” e não exatamente aos “críticos especializados”, bens culturais, auto-res e artistas se consagraram e alçaram posições de grandeza no campo cultural.

Em todo o caso, essa experiência, que antes era mais restrita ao campodas artes e dos bens culturais, começa a difundir-se também para os demaisprodutos. A midiatização do consumo, na medida em que transformou primeira-mente todo produto em signo, tornando-o passível de ser consumido, sobretudoimaginariamente através da peça publicitária, abriu essa possibilidade de fazercom que os consumidores se comportem sempre como audiência na formacomo recebem e se apropriam das imagens e conteúdos associados aos bens.

Entretanto, do ponto de vista da mídia de massa, as ações dos consumido-res iniciais enquanto audiência nunca foram muito conhecidas e difundidas,salvo exceções em que os anunciantes buscaram incorporar o ponto de vistadeles em suas campanhas publicitárias. A questão é que graças ao desenvolvi-mento das TIC, no caso a Internet, um conjunto de ferramentas passou a estardisponível para captar instantaneamente as opiniões, percepções, experiências,narrativas e conteúdos simbólicos construídos pelos consumidores iniciais ounão, independentemente da ação e do controle dos anunciantes. Além disso,trata-se de um conteúdo aberto, visto que ele pode ser acessado a qualquermomento por qualquer interessado. Esse fato, além de determinar e influenciarmudanças nos conceitos tradicionais de publicidade, vem permitindo ao consu-midor aumentar sua autoridade ao veicular seus pontos de vista, suas impres-sões e mesmo suas associações com os produtos e marcas, independentemen-te de produtores e anunciantes, de forma independente, rápida e cada vez maisfácil de ser captada pelos outros consumidores, bem antes da publicidade demassa e institucional.

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Divulgação e relações públicas

É fato que todo fã-clube procura estar próximo ou ter algum tipo de con-tato com seus ídolos e informalmente acaba funcionando como uma espécie derelações públicas deles. Esse não deixa de ser o caso também dos fansites deséries americanas, especialmente os brasileiros. Apesar de o contato com osastros não ser o objetivo principal a ser buscado pelos fansites brasileiros, adivulgação da série no Brasil é confessadamente uma causa e uma missãopara eles. Para os informantes, a motivação principal para assumirem sua mis-são deve-se ao fato de a mídia brasileira, a começar as próprias emissoras quetransmitem as séries no Brasil, deixar muito a desejar na tarefa de divulgá-las.Temos assim claramente delineado um conflito com o sistema de transmissãotradicional que, segundo eles, se encontra subordinado ao paradigma da TVaberta, aos interesses comerciais delas e pouco se importa com o assinante(consumidor) da TV paga. Para muitos fãs encarregados desses fansites, es-sas falhas estão relacionadas a um desconhecimento do público brasileiro. Amaioria deles reclama da falta de informações, da má qualidade das legendas e,sobretudo, da distância de tempo entre as transmissões nos EUA e no Brasil.Eles alegam que não há mais razão para esses problemas, já que existe tecnologiasuficiente para que as transmissões sejam concomitantes lá e cá.

Devido ao grande interesse pelas séries que passaram a ser divulgadastambém no site de relacionamento Orkut,10 a partir de 2004 e 2005, os fãsassumiram a dianteira e passaram a promover publicamente as baixações(downloads) dos episódios logo após a transmissão nos canais americanos,uma operação que virou moda entre os telespectadores de séries. De fato,graças aos fansites essa distância entre as transmissões foi bastante reduzida,a partir do momento em que eles passaram a postar instruções (tutoriais) decomo baixar os episódios, além de cada fansite organizar suas próprias equipesde legenders. Assim, na maioria dos casos, em menos de 24 horas após atransmissão nos EUA, é possível para um número cada vez maior de fãs brasi-

10 Não é que não houvesse fansites antes do Orkut. Eles já existiam em grande número na forma delistas de discussão e alguns sites criados pelos próprios fãs. O problema é que o Orkut, através da sualinguagem acessível, viabilizou e multiplicou as comunidades virtuais em torno das séries, deu umaenorme visibilidade a elas diante de um público jovem e ávido por novidades.

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leiros assistir em seu próprio PC ao último episódio de sua série favorita, comdireito à legenda traduzida para um bom português brasileiro, sem erros.

Temos, então, não apenas um exemplo do aumento da autoridade dosconsumidores e fãs, mas de uma mudança imposta por eles, através dos seususos da Internet, em relação à cultura e ao sistema de transmissão tradicional.Em 2006, essa mudança foi de tal ordem que realmente passou a incomodar asemissoras. Sentindo-se ameaçadas, elas decidiram entrar através da Adepi comuma queixa na Polícia Federal contra as operações dos fansites brasileiros.

Pelo fato de ser o maior fansite (na ocasião já eram mais de cem milmembros), ser o mais importante e o mais influente, o proprietário e administra-dor do Lost Brasil foi publicamente ameaçado e obrigado a fechar o site atéque eliminasse todos os arquivos de legendas armazenados, além dos tutoriaissobre as baixações. A ordem era que, doravante, os fansites brasileiros não fizes-sem mais nenhuma alusão ao assunto ou postassem e divulgassem legendas.

Imediatamente o exemplo foi seguido pelos demais proprietários e admi-nistradores de fansites que retiraram do ar todas as legendas de séries, bemcomo eliminaram todas as instruções e tutoriais relativos à operação de baixaçãode episódios – como fazer, que tipo de programa usar, como configurá-lo, etc.

Entretanto, a situação não era tão simples assim. Na verdade, tanto emis-soras quanto autoridades avaliaram mal o problema e a extensão dele. Funda-mentalmente, uma mudança de cultura já havia sido feita e a reação dos fãs foiimediata diante das medidas repressivas. Sem dúvida, em um primeiro momen-to, a grande maioria dos fansites acatou a ordem de retirada das legendas paraevitar que seus proprietários fossem presos, entretanto, isso não impediu queimediatamente grupos de fãs se organizassem em sites de relacionamento es-trangeiros (Orkut, Livejournal, Myspace, Sapo) onde criaram novas comunida-des com o intuito de continuarem a instruir os interessados a baixarem episódi-os e divulgarem as legendas que continuaram a ser feitas e “linkadas” nessessites estrangeiros e acessadas.

O importante a ser dito é que as medidas repressivas em vez de inibirema prática acabaram servindo como estímulo para os fãs, em sua maioria jovens,continuarem baixando, “upando” arquivos de episódios e fazendo legendas. Oresultado é que vários grupos novos surgiram e passou a haver uma organiza-ção maior e mais profissional dessas práticas. Como muitas medidas repressi-vas mal conduzidas, sem o devido conhecimento do que está de fato ocorrendo,essa apenas tornou mais evidente para a maioria dos fãs e do público em geralo quanto o modelo de negócio da televisão no Brasil precisa ser repensado.

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Como se pode observar a partir desse breve relato, a Internet favoreceu aindústria do star system fazendo dela a espinha dorsal da cultura de massasglobal, mas isso implicou a completa redefinição do papel dos consumidoresque não aceitam mais serem postos em uma posição de subordinação pura esimples. Agindo de forma independente, os fansites se transformaram em ins-trumentos importantes de divulgação das próprias séries, astros e celebridadesligadas ao show biz atingindo de forma rápida e globalmente o público, adian-tando-se e superando o trabalho de divulgação das próprias emissoras e distri-buidoras. Desse modo, o maior acesso às TIC vem permitindo um aumento deautoridade do consumidor de mídia e tornando essa relação mais simétrica aponto de ser perigoso quando uma celebridade ousa impor a assimetria de for-ma arrogante e autoritária.11

Vimos assim que os fansites, além de arquivos, bibliotecas, bancos dedados e repositórios de informações sobre as séries e os assuntos relacionadosa ela, também as divulgam de várias formas, oferecendo serviços gratuitoscomo é o caso dos tutoriais para baixação e tradução das legendas, um trabalhoque é feito gratuitamente de forma totalmente voluntária, com o intuito apenas degarantir a audiência das séries entre os telespectadores que não sabem inglês.

Diante do exposto, cabe então perguntar, quem são esses fãs? De acordocom o relatório divulgado pela ABTA (2006, p. 15), o público telespectador deséries americanas nos canais de TV por assinatura brasileiros foi incluído ma-joritariamente no tipo “Descoladas” (13%).12 O relatório identifica esse perfilcomo sendo basicamente formado por teens e feminino por excelência. Temosaí um primeiro problema porque para quem freqüenta os fansites sabe que eles

11 Caso recente da modelo brasileira Daniela Cicarelli, cujo processo contra o YouTube causou umaonda de protestos contra ela. Diante da possibilidade do YouTube não poder mais ser acessado pelosusuários brasileiros por conta de um processo movido pela modelo e o namorado, de uma hora paraoutra, ela tornou-se objeto de inúmeras comunidades odiosas no Orkut, páginas, blogs, tendorecebido até ameaças de boicote ao programa e à emissora de TV MTV, onde atua como apresen-tadora. Ao mesmo tempo, um vendaval de informações postadas em vários blogs, fóruns e e-mailsensinava a todos os interessados as medidas de como fazer para burlarem a medida de proteção aoacesso ao site imposta pelo juiz. Tal rebuliço provocou a imediata retirada da pena de suspensão doYouTube, bem como manifestações de desculpas e justificativas por parte da modelo e da MTV (quea essa altura foi involuntariamente envolvida na confusão).

12 Como as “Dedicadas” (18%) ou mesmo os “Boa Gente” (18%), as “Mulheres Atuais” (16%), os“Bem Informados” (16%), os “Ligados” (15%) e, finalmente os “Absolutos” (4%), estes últimosmais qualificados e exigentes que os demais.

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não atingem somente este segmento, mas um segmento significativo de ho-mens, desde adolescentes a adultos, a maioria envolvidos com atividades liga-das às TIC. Temos ainda uma incidência grande de mulheres na faixa dos 20-38 anos e homens também nessas faixas e até superiores.

É importante ressaltar que existe uma divisão de trabalho (sexual) naInternet e os fansites explicitam isso. De um modo geral, as mulheres são maisnumerosas e estão mais à frente na parte do relacionamento propriamente dito,muitas delas são moderadoras de listas e fóruns de discussão, além de estarementre os membros que mais postam liderando a discussão nos fóruns em tornodas séries e suas personagens, enquanto os homens ficam mais na retaguardaoferecendo o suporte tecnológico necessário ou discutindo as questõesoperacionais do site. De todo o modo, a maior parte dos fansites pertence oupossui homens como webmasters.

Com isso, a publicidade não só perde um pouco de sua soberania, comodeixa de ser progressivamente um assunto somente de profissionais peritos.Hoje em dia, grupos de discussão na Internet compostos fundamentalmentepor trend setters e early adopters, formadores de opinião, são mais eficazesdo que a publicidade institucional em casos como cinema, programas de televi-são, livros, tecnologia, moda, beleza, gastronomia/culinária e outros produtosculturais. Começa a ser mais eficaz para outros produtos também, e isso ficavisível pelo aumento do número de fóruns de discussão, blogs, listas e comuni-dades virtuais sobre os mais diferentes assuntos, em variados formatos.

Este é o caso das séries de televisão norte-americanas,13 cujos fansitesnos EUA já são consultados pelas próprias emissoras de TV e produtores deséries para fazerem o acompanhamento qualitativo da audiência, tendo em vis-ta a crescente reinvenção do gênero que inclui o uso de outras lógicas narrati-vas, donde o ponto de vista dos consumidores – não apenas sua aprovação oureprovação – passa a ser cada vez mais importante. Portanto, os fansites têmsido objetos de grande interesse porque neles podem ser captadas muitas ten-dências a respeito do gosto e do modo de recepção das séries e personagensem questão, fundamentalmente através de um tipo muito particular de interven-ção feita pelos fãs: as fanarts.

13 É importante dizer que nos EUA as séries são produzidas e transmitidas pela TV aberta. No Brasilnão, elas são transmitidas pelos canais pagos. Existem vários canais especializados em séries: Sony,AXN, Fox, Universal, TNT, Warner Bross, HBO, etc.

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Fansites ou o “consumo da experiência” na mídia contemporânea

As fanarts são as manifestações concretas do que estou designando como“consumo da experiência” e, nesse caso, traduzem uma gama muito rica deformas e modos pelos quais a vivência e o consumo dessa experiência ocorrepessoal e coletivamente nos fansites, já que há um investimento grande na suaprodução. Não só elas envolvem o uso e o manejo de vários recursos e habili-dades, desde a escrita (fanfictions), como até a utilização de softwares sofis-ticados para tratamento e manipulação digital de imagens (animações, vídeos,etc.). Tudo isso feito em nome do amor que sentem pelas séries e suas perso-nagens prediletas.

Em resumo, minha proposta foi registrar algumas mudanças que estãoocorrendo no consumo de mídia no Brasil, aproximando informações e dadosobtidos em pesquisas de mercado, com tendências observadas por mim duran-te meu trabalho de campo como participante e membro de fansites. Não épreciso dizer que a condição de fã foi fundamental para penetrar nesse univer-so, ter contato com os demais fãs e obter as informações desejadas.

No meu caso, devo confessar que as séries americanas fazem parte deminha educação sentimental, assim como filmes, romances e telenovelas. Es-tudar e utilizar a cultura de massas, notadamente a teledramaturgia para pensarquestões da sociedade contemporânea tem sido um recurso utilizado por mimfreqüentemente, desde quando comecei a investigar as telenovelas na décadade 1980 (Gomes, 1998). Na medida em que as séries americanas também sãoassistidas por telespectadores brasileiros, elas têm me servido para pensar, peloviés do contraste, alguns aspectos de nossa própria teledramaturgia, a saber,por que selecionamos e enfatizamos mais determinados domínios ou aspectosda realidade em detrimento de outros? De que forma essas ênfases ou recortesapresentados, muito mais do que refletirem apenas gêneros narrativos especí-ficos, não dizem respeito a processos sociais reais e, portanto, não corroborama própria construção social da realidade?

Dito isso, como afirmei, um fansite, é uma página totalmente construídapor fãs. Pode ser na forma de um blog (grande maioria), um fórum de discus-são ou um site no qual os fãs não apenas discutem, trocam impressões sobre asérie ou séries, as personagens, os atores, mas ainda armazenam informaçõesatravés de postagens (discussões), links, arquivamento de dados relevantesobtidos e encontrados sobre as séries, ou sobre temas a elas relacionados, alémde apresentar suas fanarts, isto é, manipulações e intervenções, especialmenteas fanfics, os avatares ou icons, banners, wallpapers, fotos e fanvideos.

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Mas quem é esse telespectador que passa horas a fio diante do computa-dor escrevendo sobre sua série e personagens preferidos, ou então, pesquisando,buscando e recolhendo informações de outros sites, ou ainda escrevendo epi-sódios inteiros da série ou manipulando imagens? Evidentemente esse “quem”e o “como” levantaram e trouxeram várias questões etnográficas importantes,pois há algo nessas séries e na forma de sua emissão que facilita esse tipo decomportamento. Para começar, temos a questão do perfil socioeconômico dopúblico que elas atraem. De acordo com a minha experiência e baseada norelatório da ABTA, trata-se de um público AB, com uma elevada taxa de esco-laridade em relação à média nacional brasileira, que tem acesso a todas asinovações tecnológicas na área de comunicação, o que implica diferenças gran-des em relação ao domínio da escrita, manejo de softwares para buscar, captare manipular as imagens das séries que não são assistidas apenas através daTV, mas também e cada vez mais baixadas diretamente da Internet para seremassistidas no computador. Tudo isso significa dizer acesso a uma tecnologiamais sofisticada.

Tendo em vista todas essas considerações, temos claramente que o usoda Internet banda larga constitui um divisor de águas importante porque, defato, ela vem promovendo uma mudança radical no padrão de transmissãotelevisual tradicional até então controlado pela mídia de massa. Assim, quemtem acesso à tecnologia e conhecimento para desfrutar dela, encontra-se emoutro patamar na condição de audiência, inclusive não dependendo mais datransmissão via TV tradicional. O resultado desse impacto, embora ainda res-trito a um público pequeno, já é significativo em suas repercussões na própriamídia (ver Arima; Costa, 2007),14 na medida em que claramente temos agorauma hierarquização da cultura de massas no Brasil, criando mais diferençasentre os consumidores e os conteúdos informacionais veiculados pela mídia demassa e as demais.

Assim sendo, do ponto de vista dos informantes investigados, eles se in-cluem no topo dessa hierarquia. A maioria fez uma trajetória semelhante, ouseja, migrou da TV aberta para a TV por assinatura, por estar descontente coma programação da primeira. Todos admitiram que essa insatisfação os levou a

14 Hackers em Série, matéria sobre a atividade dos fãs das séries. O termo usado para designar esses fãsfoi o de hackers.

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buscar a TV por assinatura como alternativa e daí a serem “tocados” pelasséries foi um pulo.15 Segundo eles, as séries oferecem um cardápio não apenasvariado de identidades, situações, ou seja, diversidade dramatúrgica, com avantagem de não prender, escravizar como as telenovelas.

Mais recentemente, as séries também passaram a ser assistidas direta-mente da Internet sem passar pela relação com a televisão. Temos então umoutro dado importante, porque não se trata simplesmente de dizer que se estádiante de um processo de americanização e de alienação. Ao acompanhar asdiscussões nos fansites, pude observar em vários momentos e que, sob váriosaspectos, os fãs colocam-se numa situação de risco para terem acesso às séri-es. Nesse sentido, é importante destacar o que está sendo efetivamente valori-zado nelas e como isso pode ou não afetar as representações construídas sobreambas as sociedades – a norte-americana e a brasileira. Um ponto é pacífico:ao compararem as duas sociedades, os fãs utilizam situações mostradas nasséries e nas telenovelas para se referirem à realidade de ambas as sociedadese compararem com as “situações reais” mostradas pela imprensa jornalísticaou telejornais.

Em todo o caso, diferentemente do público que assiste somente às teleno-velas, a condição de fã de séries americanas envolve muitas práticas e ativida-des, além de alguns riscos, especialmente esse fã que participa de fansites eestá conectado à Internet 24 horas por dia, em estado de alerta e de buscapermanente de informações, notícias e dados sobre suas séries preferidas.

Minha pesquisa de campo consistiu em tornar-me uma freqüentadora defansites, onde passei a interagir com esses fãs e aprender a rastrear junto comeles todas as fontes e os caminhos por onde buscar, baixar e obter essas infor-mações consideradas preciosas, ou então aprender a fazer manipulações visu-

15 Uso a expressão “tocados” no mesmo sentido de Bernadete Beserra (2005) no livro Brasileiros nosEstados Unidos. Hollywood e Outros Sonhos, ao se referir ao fato de que antes mesmo de sair doBrasil e emigrar para os EUA, os imigrantes brasileiros entrevistados por ela haviam sido “tocados”de muitas formas pela cultura norte-americana, ou seja, já se sentiam atraídos pela sociedade norte-americana em função do contato que tinham com seus produtos culturais. De fato, no caso dostelespectadores das séries, muitos jovens encontram-se nesse processo de encantamento e seduçãodescrito pela autora. Alguns deles confessaram que gostariam de sair do Brasil e viver nos EUA.Outros se encontram naquelas faixas igualmente descritas pela autora, nas quais viver nos EUA ouno Brasil não faz a menor diferença, já que se encontram em um patamar bem diferente dahierarquia social em termos de condições socioeconômicas, oportunidades, etc.

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ais e escrever fanfics. Nesse caso, a observação participante resultou no in-ventário completo dessas práticas de arquivamento, além de ter sido iniciadanelas. Para os fins do presente artigo, apresento a seguir um resumo desseinventário.

Arquivos e coleções

Um fansite é uma página feita por fãs e, em sua grande maioria, os fãssão colecionadores. Portanto, boa parte das atividades de um fansite está vol-tada para a tarefa de arquivamento e colecionamento de tudo o que se refereà(s) série(s) televisiva(s) pela(s) qual(is) os membros se interessam. No entan-to, devido à Internet, as formas de arquivamento obedecem a outras lógicas, nocaso, a lógica digital. Isso significa dizer que antes de arquivar a informação nofansite, ela deve ser buscada ou recuperada na grande massa de informaçõesque circula na rede. Portanto, diferentemente da lógica documentária normal, namaior parte das vezes, a informação não chega até o fã, mas é ele quem toma ainiciativa de buscá-la numa atividade de pesquisa incessante que precede todasas demais. Nesse sentido, um fansite pressupõe fãs internautas, que passam boaparte do tempo buscando informações na rede sobre os assuntos que interessam.

No que se refere ao mapa e a estrutura interna, os fansites podem variarum pouco de um para outro, dependendo muito do tipo da linguagem utilizada.Assim sendo, com poucas variações, os fansites possuem uma geografia muitosemelhante, desde tópicos com informações gerais sobre a série – ficha técni-ca sobre a produção, ficha técnica dos atores, biografia das personagens eresumo dos episódios; tópicos contendo notícias e reportagens veiculadas namídia norte-americana sobre a série. Essas notícias são traduzidas e postadaspara serem comentadas e discutidas pelos membros. Este é considerado umdos principais serviços prestado pelos fansites, a saber, manter o fã brasileirosempre atualizado com as últimas discussões ou matérias veiculadas pela mídianorte-americana; em seguida, temos os tópicos de discussão para cada episó-dio separadamente, organizado de acordo com as respectivas temporadas; tó-picos de bate-papo nos quais se discute um pouco de tudo, variedades, inclusiveas outras séries, ou mesmo outros programas de TV, incluindo-se os tópicospara a discussão dos spoilers.

Em seguida, e essa é uma parte não menos relevante, temos os tópicospara a postagem das fanarts, especialmente a parte relacionada às fanfics, o

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álbum contendo as fotos postadas pelos fãs, de atores ou de cenas dos episódi-os, os wallpapers feitos ou postados pelos fãs; e um tópico à parte para osvídeos feitos ou postados pelos fãs. Depois das discussões sobre os episódios,do noticiário sobre a série e tudo a ela relacionado, a parte relativa às fanartsé aquela que mais demanda atenção e interesse por parte dos fãs. É bemverdade que nem todos se consideram aptos a produzirem fanarts, mas os quefazem têm a chance de mostrar seu talento para serem apreciados pelos de-mais membros dos fansites.

Assim sendo, um fansite não deixa de ser uma biblioteca digital, um ban-co de dados onde se encontram organizados muitas informações, arquivos eobjetos digitais que necessariamente não estão armazenados naquele site, maspodem ser acessados através dele, a partir dos links disponibilizados.

Dependendo do perfil (etário, gênero, escolar, atividade profissional) dosadministradores e membros do fansite e do maior ou menor conhecimento arespeito dos usos da lógica digital, essas informações arquivadas podem sermuitas e variadas. Elas dizem respeito a todo tipo de informação ou notíciapublicada em sites americanos ou nacionais (jornais e revistas on line), infor-mações e notícias contidas nos portais das emissoras de TV, ou em outrosfansites americanos, europeus e brasileiros das séries em questão, Wikipédia,blogs americanos e nacionais de discussão sobre programas de TV, etc. En-fim, o objetivo dos administradores e freqüentadores passa a ser a coleta e oarquivamento seletivo e sistemático de todo o tipo de informação relativa àsséries, ou que de alguma forma dizem respeito a elas. Essa atividade documen-tal e de arquivamento de informações, notícias e imagens é uma atividade in-cessante considerada fundamental para a própria identidade de fã, pois é aque-la que o distingue do público em geral. Ser um arquivo vivo e um colecionadorsobre as séries e seus ídolos torna-se um capital fundamental para que elepossa se apresentar, participar ativamente de um fansite e ser respeitado comofã, um apreciador, enfim, ser considerado um especialista.

É essa posição de buscador de informações, daquele que tem acesso afontes pouco conhecidas é que permite a alguns fansites inverterem a relaçãode poder em relação à mídia tradicional, transformando-se em fonte de consul-ta dela ou mesmo concorrendo diretamente com ela em relação ao acesso àsinformações importantes e inéditas sobre as séries. Um exemplo disso são osspoilers, isto é, as informações colhidas diretamente dos roteiros e scripts,relacionados aos episódios que ainda não foram transmitidos, sequer produzi-dos (gravados), mas que vazam para a rede através dos grupos de discussão

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(fansites) norte-americanos. Como participantes desses grupos de discussão,muitos fãs brasileiros pegam esses spoilers, traduzem-nos e postam-nos ime-diatamente nos fansites brasileiros. Assim, além de se anteciparem em relaçãoà própria emissora que transmite a série no Brasil, se antecipam em relação àprópria mídia especializada em comentar programas de TV. Aliás, é comumnos fansites termos não apenas a discussão dos episódios que estão sendotransmitidos localmente, na TV por assinatura (ou TV aberta se for o caso),mas também os episódios da temporada americana baixados pela Internet, alémdo tópico sobre os spoilers da atual temporada, onde se discutem e comentamos episódios que ainda estão em processo de produção e cujas informaçõespoderão se concretizar ou não.

O acesso direto e a divulgação dos spoilers pelos fãs dão uma medidaexata do tipo de poder e controle que eles possuem, na medida em que, aodivulgar esses spoilers, provocam discussões sobre o que poderá acontecer,antecipando assim reações que podem botar a perder as boas idéias dos roteiristase produtores. Como o termo spoiler indica, toda surpresa e impacto de umacena ou mesmo de um episódio inteiro pode ser literalmente “estragado” pelotipo de reação antecipada que ele vier suscitar. Ao mesmo tempo, se o spoileracena com algo muito desejado ou sonhado pelos fãs, o sucesso do mesmoepisódio poderá ser retumbante e a audiência da série poderá ser alavancadadrasticamente em milhões de telespectadores.

Mas apesar de todas essas práticas e atividades de busca e arquivamentode informações realizadas com muito empenho e participação de todos os mem-bros e que acabam conferindo ao fansite sua respeitabilidade diante do públicoe até da mídia especializada, o que distingue basicamente um fansite de umsite institucional ou corporativo (patrocinado por emissoras de TV) é o fato deeles promoverem um outro tipo de prática que não é encontrada nesses outrose não pode ser confundida com as demais, a qual dei o nome de “consumo daexperiência”. As fanarts são a expressão concreta e visível do que vem a seresse “consumo da experiência”. Elas se subdividem em dois grupos: as mani-pulações escritas (fanfics)16 e as manipulações (áudio)visuais.

16 Mais uma vez, devo esclarecer que os dados aqui apresentados são frutos de minha observaçãoparticipante.

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Fanfictions, fanfics ou simplesmente fics

A primeira coisa que chama atenção no consumo de séries norte-ameri-canas em relação às outras teledramaturgias (telenovelas, por exemplo) é aqualidade da experiência emocional e afetiva (Campbell, 2001) que elas instau-ram, expressa imediatamente no tipo de intervenção narrativa, escrita ou visu-al, que elas suscitam. São essas múltiplas formas de intervenções que confir-maram minhas suspeitas de estar diante daquilo que Latour (2004) designoucomo “condições de felicidade”.

De todas as fanarts, certamente as fanfictions ou fanfics merecem umdestaque, pelo fato de serem praticamente desconhecidas no Brasil até então.Trata-se de narrativas escritas, muitas vezes extensas, com vários capítulos eque acabam adquirindo uma existência paralela à série. As fanfics são históri-as escritas pelos fãs usando as personagens e situações originais de uma série,filme ou personagem. Nos EUA elas já são um fenômeno bastante comum ebastante difundido entre o público. Existem muitos sites dedicados a elas, exis-tem escritores de fanfics conhecidos e que não se limitam às séries apenas,mas incluem celebridades, atores, cantores e personagens de livros e filmescomo Harry Porter. Elas podem ser escritas e, em seguida, postadas por cate-gorias, para serem baixadas e lidas pelos fãs. Existem concursos e premiaçõesde fanfics nas várias categorias. Para quem quiser escrevê-las existem regrasa serem obedecidas e elas são classificadas, por exemplo, em relação ao con-teúdo erótico ou sexual, violência, angústia, drama, etc.17

No Brasil, o fenômeno das fanfics é mais recente, está vinculado à difu-são da Internet, está relacionada às séries, ou a certos personagens como HarryPorter. Além disso, as fanfics nacionais só podem ser encontradas nos fansites,pois é lá que o fã vai postar suas fics. Já existe algum material disponívelescrito em português e a tendência é de elas aumentarem, pois o público brasi-leiro de fanfics vem crescendo consideravelmente e vem incentivando aquelesque gostam de escrever essas histórias. Geralmente escritores de fics antes depostá-las entregam-nas para um outro fã ler e comentar. O beta reader, comoé chamado, é quem faz o papel de crítico e revisor. Quanto às regras, emmuitos fansites existem manuais ou links para eles. Alguns são bastante com-

17 A esse respeito, consulte-se, por exemplo o site http://www.fanfiction.net.

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pletos, contendo todas as regras de redação e composição literárias e de rotei-ro, com todas as normas e práticas que caracterizam essas atividades.

Nos EUA, as fics, como são chamadas, vêm sendo cada vez mais valori-zadas e estimuladas pelos próprios produtores das séries. Muitos roteiristasconfessam que adquiriram o hábito de lê-las, pois elas se tornaram uma fontepreciosa e um termômetro importante para se avaliar qualitativamente a reper-cussão das séries. Não é suficiente ter os números da audiência comprovandoo sucesso das mesmas. Torna-se imperativo conhecer que tipo de imaginário efabulação as séries suscitam na cabeça dos fãs. Em suma, trata-se de acompa-nhar o “consumo da experiência” desse público das séries e, conseqüentemen-te, como esse “consumo da experiência” se materializa em outros objetos e écapaz de influenciar os demais telespectadores da série.

Ao mesmo tempo foi possível observar pelo conjunto de regras, conselhos esugestões presentes nos manuais, que os escritores de fanfics perseguem umpadrão de qualidade. Não obstante saibam que esse tipo de narrativa não conferenenhum reconhecimento literário, muitos vêm nessa atividade um aprimoramentopara uma futura atividade literária ou mesmo para a de roteirista (caso muitocomum nos EUA). A partir daí procuram fazer as fics de forma impecável, muitosemelhante aos roteiros, com uma qualidade comparável aos mesmos, combi-nando criatividade, sem com isso ferir a coerência das personagens. A maioriados escritores de fics segue o cânon, isto é, respeitam a biografia das persona-gens tal como aparecem nas séries mudando apenas uma coisa e outra.

Isso requer que ele saiba muito sobre o que está acontecendo, que alémde ser um fã incondicional da série e das personagens envolvidas, tenha muitainformação adicional sobre as mesmas e uma sensibilidade especial para seguirem frente com a psicologia de cada uma. Alguns escritores de fics são maisousados, e aproveitam para fazer verdadeiras experiências com as persona-gens, chegando mesmo a botar em cena personagens de séries diferentes, asfamosas crossover. Mas esse tipo de fanfic requer um manancial maior deinformações sobre o estado da arte e da cultura de massas em geral, exigindoque o fã seja um expert. É importante ter um conhecimento sobre os diferentesuniversos dramatúrgicos envolvidos.

Como todas as fanarts, mas muito especialmente o caso das fics, elas seaproximam daquilo que Colin Campbell (2001) destacou como sendo a marcadistintiva da ética romântica, a saber, a evasão. Nesse sentido, arrisco-me adizer que as fanfics seriam a variante pós-moderna do day dreaming. O fatoé que a partir do momento em que o acesso à Internet vem promovendo os

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usuários, sobretudo as mulheres, à condição de autores (emissores) e colabora-dores dos conteúdos que circulam na rede, seja na forma de “escritores” oumesmo artistas visuais, essas fantasias, que antes ficavam represadas comoparte de um “eu” íntimo e indevassável, puderam vir agora a público e seremtrocadas coletivamente entre os membros de um blog, um fórum de discussãoou mesmo um fansite, na forma de uma fic.

Se no início da era moderna, o gênero romance, segundo Colin Campbell(2001), foi o responsável por desencadear um processo de “ficcionalização” darealidade, que levou à fabricação de um imaginário e, mais adiante, culminoucom a formação da cultura de massas, as mudanças tecnológicas recentes, queincidiram principalmente sobre os processos de comunicação e de informação,vêm sendo responsáveis pela difusão e disponibilização de outros dispositivos esuportes para a ficção, dando origem a novas formas narrativas, ao mesmotempo em que conferem uma autonomia cada vez maior ao público consumidornesse processo. A Internet é o exemplo mais recente dessas mudanças.

Minha hipótese é que os fãs que criam, administram e participam dessesfansites encarnam esse novo tipo de consumidor de mídia que não se enquadramais nas representações tradicionais de receptores (passivos): seu modo deconsumo é feito de acordo com a lógica colaborativa que implica um conjuntode práticas e intervenções sobre esses bens e acabam por singularizá-los, con-ferindo-lhes uma aura particular, chegando mesmo a alterar a trajetória de al-guns deles ao torná-los cult no contexto da cultura de massas.

Imagens: representificação e performance

Certamente, o hábito de colecionar fotos de seus ídolos e astros não énenhuma novidade. Ele está presente desde a origem da cultura de massas, nosfã-clubes tradicionais e a própria imprensa sempre estimulou esse tipo de ativi-dade através de publicações especiais voltadas para essa finalidade.18 Pode-sedizer que mesmo dispondo apenas do material fornecido pela imprensa, a com-posição de painéis e cartazes pelo recorte, montagem e colagem das imagenssão práticas bastante conhecidas pelos fãs de outras épocas.

18 No Brasil, revistas como O Cruzeiro, Amiga, Fatos & Fotos sempre estiveram voltadas para o cultodas estrelas (Hollywood) e artistas de televisão. No momento atual, revistas como Caras e Quemcontinuam cumprindo esta função de reportarem visualmente a vida das celebridades.

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No momento presente, o que torna as intervenções ou manipulações visu-ais diferentes é que as imagens não são apenas colecionadas para serem guar-dadas ou mostradas, recortadas ou coladas, mas para serem trabalhadas digi-talmente, o que transforma essa operação em um “modo de fala” bastantepróximo do “falar religiosamente”, que, segundo Latour (2004, p. 351, grifomeu), “não fala a respeito de ou sobre coisas, mas de dentro de ou a partirde coisas, entidades, agências, situações, substâncias, relações, experiências –chame-se como se quiser – que são altamente sensíveis aos modos como sefala delas”.

Ressalte-se, portanto, todo um investimento ou engajamento exegético,não apenas de ordem emocional e estético em relação à imagem e que sereflete nas diferentes formas de manipulações que os fãs realizam no materialvisual captado da Internet. Essas intervenções visuais variam de série parasérie, em termos de qualidade e quantidade, mas, de um modo geral, em todaselas estão muito presentes.

Podemos falar assim de uma relação extensiva e intensiva com as ima-gens. A relação extensiva é aquela que não é característica desse fã, mas dotelespectador normal, eventualmente um apreciador da série. Ele assiste, podeacompanhar a série e pode até colecionar algumas imagens, por motivos esté-ticos ou emocionais, mas isso não quer dizer que ele se entregue a algum tipode exegese especial desse material ou mesmo da série. Já a relação intensivaimplica uma atitude exegética que exige uma outra relação do fã com a série,com as personagens e com o material visual relativo a elas. Para começar, essefã é capaz de retomar várias vezes o mesmo episódio, as mesmas seqüências ecenas. Enfim, o episódio, a temporada e a série passam a constituir um corpusfechado, permitindo várias formas de interpretações expressas nas manipula-ções que vão se sucedendo a cada retomada das imagens.

Durante minha pesquisa de campo, deparei-me com as seguintes formasde intervenção ou exegeses (devoções) visuais: as imagens (avatares ou icons,banners ou assinaturas e os wallpapers) e os fanvideos. Cada uma dessasintervenções exige um olhar diferente e habilidades específicas por parte do fã.Nem todos conseguem ter todas as habilidades e realizar todas as interven-ções, mas uma parte significativa consegue, e elas se tornam um atributo im-portante a ser valorizado entre eles. De qualquer forma, essas intervenções oumanipulações não são feitas aleatoriamente, elas são parte da atividade exegética,uma espécie de interpretação e comentário do fã sobre a série, sobre os epi-

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sódios e a temporada na qual eles se encaixam, tem relação com o que estásendo dito sobre a série nas discussões do grupo e de maneira geral.

Do ponto de vista das intervenções visuais, é preciso dizer que todas elasmerecem destaque e atenção, embora cada uma tenha papéis e funções dife-rentes no contexto dos fansites. No caso dos icons, ou ícones, eles são utiliza-dos pelos fãs como avatares, substituindo os próprios fãs no ambiente virtual,sendo, portanto, uma representação do fã através de uma imagem pequena,algumas vezes minúscula, escolhida e trabalhada com essa finalidade. O iconou avatar é a forma como o fã se apropria da série ou de uma personagem delapara se apresentar através dela. São usados em todos os fóruns e comunidadescomo o Orkut.

Os banners ou assinaturas são usados em e-mails e nos próprios fórunscomo assinatura abaixo das postagens. O banner é também uma representa-ção do fã, mas é explicitamente um statement, ou seja, uma declaração que elefaz visualmente sobre a série, uma determinada situação ou personagem com aqual ele se identifica. Tanto avatares como assinaturas costumam mudar bas-tante e, dependendo do fã, ela pode ser substituída semanalmente ou até maisvezes. Já os wallpapers são feitos para serem usados como screen savers(protetores de tela), papéis de parede, com objetivos mais decorativos, emboracontenham também exegeses e declarações do fã sobre a série/personagens.

Quanto aos fanvideos, eles são feitos também como um resultado dasexegeses, como resultado das manipulações diretas dos episódios. Eles sãohospedados geralmente no YouTube, depois “linkados” nos fansites para futu-ros comentários e discussões entre o grupo. De todas as formas de fanarts ofanvideo pode ser considerado o mais difícil tecnicamente porque supõe oacesso e o conhecimento do uso de programas de edição de vídeo. Um fanvideopara ser apreciado tem de apresentar uma boa edição das cenas e seqüênciasselecionadas, além de uma boa trilha sonora, geralmente escolhida a dedo pelofã. A exegese do fã está, portanto na seleção das seqüências, na ordemestabelecida, nos cortes, edição e recursos utilizados. De todos os fanarts demanipulação visual, os fanvideos exigem para sua apreciação que a platéiaseja realmente fã ou apreciadora da série em questão, pois além de seremfrutos da manipulação de cenas e episódios que devem ser conhecidos de to-dos, ou seja, um exercício coletivo de bricolage e de edição, eles dizem respei-to às discussões e questões que estão sendo debatidas em torno dos rumos quea série e determinadas personagens estão tomando. Assim para que se assista

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e se entenda um fanvideo GSR ou Yo!Bling19 é importante saber o que estáacontecendo na série CSI (Crime Scene Investigation) relativamente às per-sonagens implicadas e o que está sendo discutido pelos seus respectivos shippersno mundo todo. Muitos fanvideos são feitos visando à realização de desejosdos shippers.

Até bem recentemente, os fanvideos eram perseguidos pelas emissorasde TV encarregadas da produção e transmissão das séries, sob a alegação deque seus criadores infringiam os direitos de propriedade intelectual. Entretanto,após o fenômeno YouTube, a compreensão das emissoras norte-americanasmudou radicalmente e hoje, além de não censurarem mais, passaram a estimu-lar os fãs a fazerem seus fanvideos e em seguida os postarem nos sites dasséries nos portais das próprias emissoras. Finalmente, incorporaram osfanvideos como objetos de promoção das próprias séries.

O roteiro abaixo foi elaborado a partir de minha experiência na medida emque fui sendo iniciada nas fanarts. Ele diz respeito aos passos que um fã devedar para poder manipular bem as imagens:

O primeiro passo fundamental é assistir aos episódios “religiosamente”,sem faltá-los. Discuti-los, comentá-los para fundamentalmente começara memorizá-los, cena por cena. A memória visual, auditiva (capacidadepara reter falas, diálogos, seqüências, cenas e takes das personagens)para quem quer ser um exegeta visual torna-se um atributo importante aser desenvolvido.Tornar-se um expert e um buscador de imagens na Internet, não apenasde todas as imagens disponíveis sobre a(s) série(s), as personagens e osartistas, mas de tudo o que pode ser associado a elas (para fazer os blends).Há todo um processo de inventário e arquivamento no qual os fãs proces-sam essas buscas.Uma vez de posse dos episódios e imagens baixados, é fundamental sabermanipular as imagens usando os softwares adequados. É fundamentalsaber mexer no Photoshop (ou qualquer outro bom editor de imagem) não

19 Shipper, carregador. É um termo dado para um certo tipo de fã, aquele que se incumbe de divulgartambém alguns personagens em especial, ou certos relacionamentos entre eles. GSR é o nome dadoao romance entre Grissom e Sara; Yo!Bling ao romance de Warrick Brown e Catherine Willows.

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apenas para melhorar ou cortar, mas alterar, mudar ou mesmo intervircirurgicamente nas imagens selecionadas. É impressionante o que se podefazer com essas imagens, a partir do uso de recursos como filtros, efeitos,layers, masks, plug in, etc.

Mas qual é a razão de ser ou a que se destinam esses objetos? Quantomais me envolvia com essas atividades, mais me fazia essa pergunta, e a únicaresposta que obtive é que esses objetos traduzem uma “experiência” que, umavez estetizada e partilhada, confere aos seus autores e usuários uma identidadediferenciada no interior de uma comunidade de fãs. O resultado dessecompartilhamento é uma outra forma de experiência que é usufruída em con-junto com os demais fãs. Não existe nenhuma finalidade utilitária na confecçãodesses objetos.

Entretanto, no caso das séries, essa produção contínua de imagens e nar-rativas paralelas aos episódios vem sendo estimulada e acabou por estabelecerum mercado paralelo para sua circulação e consumo que vem crescendo junta-mente com a audiência das próprias séries. O interesse pelas fanarts fica bemevidenciado no caso das fanfics, cujo consumo vem se tornando tão intensoquanto ao das próprias séries.20

Mas resta saber o que detona o desejo de fazer esses objetos, sejam elesquais forem. Diante de toda essa variedade de formas de recepção e consumoque as séries promovem, uma pergunta se impõe: além da Internet, da experi-ência e da vontade do fã partilhar essa experiência, o que permite e facilitaesse modo de apropriação? Acostumada a estudar a recepção de telenovelas,sei que no caso delas o consumo se realiza exclusivamente no âmbito da oralidadee da presencialidade, como tema de conversação diária, comentários os maisdiversos, mas não gerando esse tipo de intervenção e produção de objetos.

Uma resposta possível para essa questão me foi dada pelos próprios fãsno fansite de CSI em um tópico de discussão intitulado “processual versusseqüencial”. Diante do sucesso de audiência de séries como Lost e mesmoGrey’s Anatomy, o tópico foi introduzido por um fã que postou uma matéria

20 Essa tendência é perceptível sobretudo entre os intervalos de uma temporada e outra. Enquantoaguardam e especulam o que vai acontecer na próxima temporada, os fãs se divertem lendo asfanfictions. Entretanto, independente disso, e conforme a série, elas circulam o tempo todo, e paraos aficionados no gênero existe sempre uma boa indicação.

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traduzida, na qual Anthony Zuiker, um dos criadores e produtores de CSI, co-mentava o sucesso da série:

“Nós simplesmente não queremos algemar os telespectadores nas suas televisõesde semana em semana”, disse ele. “Nós queremos fazer uma ótima televisão,ganhar a confiança dos telespectadores e saudá-los novamente 24 vezes ao ano.O que funciona melhor para CSI e várias séries processuais hoje são os episódios‘únicos’ com lampejos seriais das vidas dos personagens. Isso diminui a pressãodo telespectador para sintonizar a cada semana, ainda que encoraje ostelespectadores leais a verem pelos toques seqüenciais das vidas dospersonagens.”21

A discussão que se seguiu no fórum sobre a matéria acima me confirmouentão porque CSI continua sendo campeã absoluta de audiência no primetimenorte-americano, ao mesmo tempo em que continua sendo campeã de fanarts,especialmente de fanfics. Por outro lado, confirmou para mim porque, no Brasil,uma série como Lost está em primeiro lugar no ranking de audiência das séries.

No primeiro caso, CSI é uma série processual, ela não apenas está cheiade lampejos, mas também está cheia de lacunas sobre as vidas pessoais daspersonagens. Comparando os episódios com as fanfics não foi muito difícilconcluir que são justamente essas lacunas que alimentam a imaginação dosfãs, estimulando-os a fazerem suas exegeses e especialmente escrevê-las naforma de fanfics. Assim, quanto mais processualidade, mais lacunas, mais ru-minação, exegese, donde versões na forma de narrativas (fanfics) e imagens.

Em relação aos fãs brasileiros, essa ruminação é mais ainda exacerbadapelo fato de CSI ser uma série focada somente no trabalho e na vida profissio-nal das personagens, o que significa que a vida pessoal delas é deixada napenumbra, ao contrário de outras séries ou mesmo telenovelas. Assim, as lacu-nas de CSI preenchidas pelas fanfics dizem respeito à vida pessoal das perso-nagens, sobretudo às relações afetivas delas, ou seja, o romance que não éfocalizado pela série. Nesse sentido, é interessante observar que tanto fãs nor-te-americanos quanto brasileiros, mesmo aqueles que são mais críticos em re-lação às telenovelas, pelo excesso de romance mostrado nelas, em sua grandemaioria estão bastante interessados em saber justamente sobre os romances e

21 Artigo postado no fansite americano CSI Files, traduzido e postado no CSI Brasil em 28/06/2006.

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as vidas pessoais das personagens. Quando perguntados sobre esse paradoxo,a resposta foi admitir que, no Brasil, romance e amor fazem parte da vida eacontecem mesmo no ambiente de trabalho.

De qualquer modo, no presente momento, as séries de maior sucesso nosEUA são seqüenciais e não processuais: Grey’s Anatomy, um drama hospita-lar, que nos EUA está competindo diretamente com CSI, transmitida no mesmodia e horário desta; no Brasil, temos Lost e Heroes, ambas misturando elemen-tos de suspense e ficção científica, que são também seqüenciais, exigindo dostelespectadores atenção e fidelização. Depois de duas temporadas, no final datemporada passada (2005), os produtores de Grey’s Anatomy e os executivosda ABC decidiram colocá-la no mesmo dia e horário de CSI. Há claramente abusca de um enfrentamento pela conquista da liderança no horário, o que pode-rá acarretar algumas mudanças em ambas as séries. Do ponto de vista de CSI,essas mudanças já se fizeram sentir. Ainda no final da 6a temporada, em maiode 2006, os produtores decidiram se inspirar nas fanfics e brindaram os fãs dasérie com a concretização do romance entre Gil Grissom e Sara Sidle. Essareviravolta foi suficiente para criar um enorme rebuliço entre os fãs da sérieem todo o mundo. Muitas fics foram escritas sobre o casal. É preciso entãoadmitir que há algo nessas séries que estimula essa atividade de evasão, essaespécie de bovarismo coletivo em torno delas.

Conclusão

O fato de admitir que os fansites e as fanarts enquanto objetivações deuma forma de consumo – o consumo da experiência – pode ser aproximado daevasão, ou mesmo de um certo tipo de bovarismo, não significa a adoção deuma perspectiva crítica que o desqualifica a priori. A realidade é mais comple-xa porque ela não é isso ou aquilo. Junto com a evasão em seu sentido maisescapista, há mudanças fundamentais e irreversíveis que estão ocorrendo eestão sendo protagonizadas por esse segmento de público.

Como foi dito, fansites são sites construídos por e para fãs. O objetivo éa troca e o compartilhamento de informações relacionadas às personagens,artistas, séries de TV, filmes ou qualquer outro bem que se deseje compartilharem conjunto. Portanto, é um espaço onde predominantemente prevalece a lógi-ca do compartilhamento de informações e experiências baseados na dádiva.Apesar disso, as tentativas de se impor uma lógica de mercado nesses sites

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têm sido freqüentes. Existem fansites que aderiram a ela e funcionam comopontos de venda de vários produtos associados às séries, mas existem outrosem que essas tentativas fracassaram por serem consideradas invasivas e ina-dequadas pelos membros, portanto, ostensivamente rejeitadas. Entre uma eoutra situação, temos uma solução intermediária que vem dando certo: em tro-ca da inclusão de seus banners nos fansites, de forma discreta, sem atrapa-lhar a navegação deles e a sua dinâmica interna, sites de compra financiam asdespesas de pagamento da hospedagem do fansite.

De qualquer forma, a lógica prevalecente é o controle dos fãs de todo oconteúdo postado, muitas vezes gratuitamente. Se existem fãs do tipo que sóusa o fansite para tirar informações, sem contribuir com nada que possa ser dointeresse de todos, ele não será impedido de acessar, mas será ignorado. Quan-to mais ele posta e contribui com conteúdos próprios ou mesmo informaçõesobtidas em outras fontes sobre assuntos de interesse geral, relativos à série ounão, mais ele ganha pontos, reconhecimento e respeito entre os demais fãs.Para muitos fãs, ser identificado apenas como um apreciador da série não ésuficiente. É preciso buscar e fazer coisas, em seguida trocá-las, compartilhá-las no fansite.

De toda a forma, como tentei mostrar, de acordo com a lógica prevale-cente nos fansites, a identidade de fã pressupõe muitas atividades, inúmerashabilidades e interesses envolvendo a série em questão, o que me leva a dizerque as conclusões não são definitivas e os desdobramentos dessa pesquisapodem ser vários.

De imediato, a pesquisa sugere uma continuidade em relação ao tema davida digital. Um grande número de fãs de séries americanas possui tambémuma “vida digital” e não se limita apenas a participar dos fansites de suasséries preferidas. Para essas pessoas, estar conectado é fazer parte da realida-de e, nesses termos, a participação em fansites faz parte de uma agenda ou deum circuito que pode começar na chamada vida real – quando se assiste àsséries pela televisão – e continuar na vida digital – quando se participa defansites. De toda forma, estamos falando da criação de novas redes de socia-bilidade associadas a novos contextos de reinvenção de identidades.

Para meus informantes, além das redes de sociabilidade tradicionais exis-tem as formas de sociabilidades digitais criadas em torno do consumo de bensculturais como séries de TV, filmes, HQ, jogos, etc. Assim, uma forma de exis-tir passa a ser também estar conectado e participar da rede, com vistas à trocade experiências singularizadas sobre esses bens. É importante ressaltar que,

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para essas pessoas, a operação de busca, de troca de informações sobre deter-minados bens passa a ser um pretexto para a troca também de afetos e emo-ções, que podem ser traduzidas em narrativas e objetos (virtuais), enfim, con-teúdos visuais ou não altamente valorizados. Um artigo encontrado na rede,sobre um assunto de interesse geral e disponibilizado no fansite é via de regratomado como uma dádiva, uma forma de afeto, de engajamento e envolvimentoemocional com a causa do grupo. O importante a ser ressaltado é que, aocontrário do que ocorre na vida real, onde prevalece a lógica da oralidade, nabase dessas trocas afetivas encontram-se a escrita e a imagem.

Nesse sentido, a pesquisa apresenta outro desdobramento importante emtermos de investigação: os modos de reinvenção da escrita e da própria ima-gem na Internet. Assim, não se trata apenas de investigar seus usos no sentidomais operacional ou técnico, na medida em que ambas não servem apenascomo suporte ou signo para apresentar, dizer, narrar ou representar algo. Nocontexto estudado, escrita e imagem aparecem fundamentalmente como atosperformativos, através dos quais os sujeitos se transformam, assumem,reinventam-se e desempenham suas múltiplas identidades na rede, além de ga-rantirem a proximidade maior com o que buscam. Mas, afinal, o que se busca?

Os fansites sugeriram pelo menos três formas de busca. Em primeirolugar, no caso estudado, temos objetivamente uma busca pelo aumento da auto-ridade do consumidor. Essa busca tem sido evidenciada na forma deenfrentamentos estabelecidos com as emissoras de TV e as distribuidoras bra-sileiras das séries, acusadas de não atenderem as demandas do público emgeral e não fazerem uma boa política de relacionamento com eles. Vimos oquanto esses fansites estão engajados na luta por uma maior autonomia dopúblico em relação aos sistemas de transmissão da mídia tradicional, especial-mente quanto aos critérios que orientam a montagem das grades de programa-ção das emissoras que controlam as transmissões e emissões de suas sériespreferidas. Para esse público, as políticas de transmissão e emissão não podemser algo decidido unilateralmente pelas emissoras de TV e as empresas comer-ciais, especialmente se as primeiras são serviços pagos pelos consumidores.Estes devem ser ouvidos sobre suas preferências e interesses tanto de progra-mação quanto de horários.

Nesse sentido, no Brasil, os fansites vêm fazendo tudo aquilo que as emis-soras responsáveis pelas transmissões e emissões das séries não fazem: relaci-onamento com o cliente. Enfim, eles assumiram não apenas os custosoperacionais, técnicos, econômicos e o ônus de trabalho de formarem e mante-

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rem reunidos uma audiência fidelizada para as séries. Na verdade, no Brasil, orelacionamento entre as TV pagas e o público continua sendo assimétrico,embora o serviço seja caro. É nesse contexto que os fansites funcionam comouma alternativa para os fãs e público. Para muitos deles, já há tecnologia sufi-ciente para os tornarem totalmente autônomos em relação às emissoras.

A reação dos canais pagos, em fins de 2006, para tentar impedir o acessodo público brasileiro às legendas disponibilizadas gratuitamente nos fansites foium sintoma claro de que essa relação, embora assimétrica, pode estar sendoinvertida em favor do consumidor brasileiro. Embora a Adepi tenha justificadoas medidas usando o argumento de que as legendas estavam sendo usadaspara a venda ilegal de DVDs das séries, sabemos que esse não era o públicovisado por ela. A forma como os fansites foram admoestados e a reação quese seguiu por parte dos fãs demonstrou que o alvo da preocupação era, de fato,a perda do controle da audiência, pois os telespectadores das séries estavampassando a assisti-las sem passar mais pelos canais. Ou seja, se em 2004 aexpansão da TV por assinatura no Brasil foi devido em parte a maior presençadas séries, elas agora ameaçam a continuidade dessa expansão, uma vez quepodem ser baixadas por quem tenha acesso à banda larga. O fato de a PolíciaFederal estar de olho nas atividades dos fansites brasileiros só comprova ograu de concorrência que eles representam na condição de divulgadores dasséries enquanto tais (e não mais das emissoras).

Mas em termos do aumento da autoridade do consumidor de mídia, estenão se reduz ao enfrentamento e concorrência com as emissoras de TV. Háuma segunda forma de autoridade discutida no presente artigo, que é o mono-pólio e o controle em relação às práticas de singularização realizadas pelos fãssobre as séries norte-americanas e que visam tirá-las da vala comum dos de-mais bens da cultura de massas. O fato de as séries permitirem o que designeicomo “consumo da experiência” e que pode ser expresso na confecção denarrativas paralelas (fanfics), ou objetos estética e visualmente resultantes damanipulação criativa das imagens feitas pelos fãs, torna-se um fator importan-tíssimo de distinção, pois confere uma aura especial e um grau de raridadecompletamente diferente do consumo de massa. Ora, os fansites não apenasfacultam essa relação singularizada, como implementam as condiçõestecnológicas e o ambiente favorável para aqueles que desejem desenvolvê-la,partilhá-la e usufruí-la.

Finalmente, temos um terceiro tipo de busca, que é a promoção da visibi-lidade de determinadas identidades sociais que podem estar sendo dramatiza-

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das e vividas pelas personagens das séries, ou ainda por alguns de seus atoresna arena pública. De alguma forma, os fansites estão envolvidos com aquiloque Beserra (2005) denominou de “reinvenção de identidades” e Gruzinski(2006) denomina de “guerras de imagens”. Nas atuais circunstâncias, entendoque o hábito de assistir séries americanas, discuti-las, comentá-las, traduzirartigos publicados na mídia americana, traduzir legendas e postá-las correndo-se riscos, além de produzir fanarts, não só é um modo de aquisição de capitalsimbólico na forma de adquirir-se uma maior familiaridade com a cultura norte-americana, com a língua inglesa, mas uma inequívoca demonstração de que osconteúdos nacionais produzidos e transmitidos pela televisão brasileira não sa-tisfazem mais a um determinado segmento de público brasileiro.

Assim, seja através das carreiras e profissões, atividades e interessesvividos pelas personagens das séries, seja pelo tipo de engajamento que algunsatores dessas séries possuem em relação a causas e movimentos sociais, o fatoé que essas identidades encontram bastante ressonância nos membros dosfansites – especialmente entre os mais jovens – muitos desses igualmenteparticipantes ou simpatizantes de movimentos sociais, como os movimentosambientalistas. No caso de CSI, por exemplo, a atriz Jorja Fox que desempe-nha o papel da perita Sara Sidle é assumidamente uma militante do Peta.22 Osite oficial da atriz que pode ser acessado pelos fãs é uma demonstração cabaldesse novo tipo de papel que as celebridades ou artistas vêm assumindo nomundo contemporâneo, especialmente no que se refere às novas posturas éti-cas e políticas, quando se colocam à disposição de movimentos sociais, muitasdeles voltados para a repolitização do consumo, caso do Peta.

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22 Peta (People for the Ethical Treatment for Animals) é bastante conhecido nos EUA, além dereunir um grupo grande de participantes do mundo das celebridades. Ele começa a se fazer presentetambém no Brasil, notadamente entre os teens envolvidos com as causas ambientalistas.

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Recebido em 26/02/2007Aprovado em 12/07/2007