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Título: Florbela Espanca - A vida e a alma de uma poetisa

Título Original: Florbela Espanca - La vida y el alma de una poetisa

Autor: José Carlos Fernández

Coordenação Editorial: Cleto Saldanha

Paginação: Gabinete Gráfico da Nova Acrópole

Tradução: Maria Bastos | José Antunes | Cleto Saldanha

Revisão: Severina Gonçalves | Mariana Esteves | Isa Baptista | Rita Correia

Design da Capa: Daniel Oliveira

Impressão: ?????

Distribuição: Sodilivros — Tel.:213 815 600

1ª Edição: Fevereiro 2011

ISBN: ???????????

Depósito Legal: ??????????

Copyright da tradução: © José Carlos Fernández

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FLORBELAESPANCA

A VIDA E A ALMA DE

UMA POETISA

José Carlos Fernández

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à minha amada e companheira Ma-ricarmen, a mais bela flor do meu Jar-dim Encantado

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Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Biografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Anexos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319

Florbela Espanca e oImperador-Filósofo Marco Aurélio . . . . . . . . . . . . 321

Florbela Espanca, alma gémea deFernando Pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

Carta Astral de Florbela Espanca . . . . . . . . . . . . . 331

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Flor, verso, estrela ou ideia.Uma biografia de

Florbela Espanca

Prefácio por António Cândido Franco

Durante muitos anos, ao longo do século passado, sobretudonuma tradição que enraizou e irradiou a partir da Europa central,ou até de leste, a escrita de biografias sobre autores poéticos foiencarada como um anacronismo despiciendo e infrutuoso, alémde desprestigiante, que nenhum valor juntava àquilo que interes-sava ao leitor ou ao estudioso, a obra.

O paradigma dos estudos poéticos do século XX, dado à luzao mesmo tempo que as primeiras vanguardas se impunham portoda a Europa como um modo novo de encarar, melhor, de fazerArte, foi assim marcado nos vários momentos da sua desenvolu-ção, do Formalismo russo ao pós-Estruturalismo francês, peloapa gamento progressivo do autor, tão ou mais notado quanto avi sibilidade deste era colossal com o impressionismo crítico ro-mântico, de que os estudos de Carlyle são bom exemplo, e a His-tória literária de tipo positivista, com Sainte-Beuve, Brunetière,Lan son ou Teófilo Braga.

O que o novo método crítico veio dizer é que a Poesia ou aLiteratura não eram feitas pelo autor, segundo o modelo deter-minista anterior, que via na obra um reflexo da personalidade do

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autor ou do meio em que surgira, mas pela literariedade, umanoção morfogénica, interna ao desenvolvimento da própria obra.

Neste paradigma, a poesia gerava-se a si própria, a partir de tó-picos poéticos recorrentes, oscilando entre a imitação de modelosanteriores tidos como superiores e a ruptura, o que levou um críticofrancês, Roland Barthes, no acume deste processo teórico, a decretara morte do autor – e até a da obra, substituída pela noção de texto,muito mais apta a expressar segundo ele a autogestação duma lite-ratura sem autor.

Estamos hoje em condições de perceber que o fechamento daPoética no século XX, tendendo para uma abordagem exclusiva-mente morfológica da obra, representou um empobrecimento nomodo como entendemos e abordamos o fenómeno poético. Mes -mo aceitando o suposto que o centro de interesses do leitor depoesia é o texto a ler, e reconhecendo até que o trabalho da formaé em Poesia a condição sem a qual nada mais existe, o que levouAristóteles a tentar perceber as regras básicas da tragédia grega re-correndo em exclusivo ao acervo escrito, fica sempre por explicarporque razão o conhecimento da vida dum autor, entendendoaqui por vida a esfera psíquica do ser, não é caminho proveitosopa ra se entender, no mínimo, uma das fontes do poema que le -mos, já que nunca se poderá negar que algum elo existirá entre oautor e a obra ou entre o texto e o tecelão, por mais anónimo oucolectivo que este seja.

Basta esta hesitação para se perceber quanto perdemos na an-coragem do fenómeno poético no momento em que passámos aproscrever as biografias dos estudos poéticos. A proibição não foifelizmente observada com rigor e mesmo num país como a Fran -ça, que tantos subsídios de valor deu ao desenvolvimento dapoéti ca formalista, com o Estruturalismo e a Semiótica, a obrabio gráfica de André Maurois, um contemporâneo das roturas van -guar distas, impôs-se ao longo do século XX como um monu-mento de proficiência na compreensão crítica dalguma obrascapitais da literatura europeia.

Assinale-se aqui como exemplar uma das suas muitas biogra-fias, e escreveu-as com impressionante regularidade de 1923 a

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1965, À la recherche de Marcel Proust (1949), contemporânea dasprimeiras lucubrações antibiografista de Roland Barthes, quepouco depois dava à estampa Le degré zero de l’écriture (1953),primeiro grande manifesto do Estruturalismo poético. Ninguémpode negar que essa heterobiografia, pelos materiais que carreou,pelas novidades que soube indagar e exumar, pelo escrúpulo quepôs na reconstituição da esfera psíquica e do meio social, pelo cui-dado e outrossim pelo à-vontade com que usou a omnisciência eoutras prerrogativas do narrador, se tornou num marco intorne-ável dos estudos sobre Proust.

Também em Portugal – país tão atreito à imitação acéfala, quemais depressa se contagia pelas maleitas dos outros que eles porelas – houve o labor monumental dum Gaspar Simões, que nosdeu pelo menos duas biografias modelares, ainda hoje de muitoproveito, a de Eça (1945) e a de Fernando Pessoa (1950), nãoobstante uma importação acrítica e quase imediata dos novos pa-radigmas parisinos.

É neste quadro que encaro o trabalho de José Carlos Fernán-dez sobre Florbela Espanca. Por um lado, é impossível ao estu-dioso fazer de conta que a obra que lê vive por si só, sem autor;por outro, num movimento de retracção ante as infinitas possibi -lidades que tal constatação abre, pois qualquer vida é sempre umviveiro sem fim, ele mostra-se sumamente cauteloso na construçãonarrativa que tem entre mãos, reconstituindo passo a passo osanos da biografia com documentos fiéis, em geral epístolas, saídosdas mãos da própria biografada.

Talvez aquilo que mais parece de assinalar no trabalho que deseguida se lê seja mesmo o escrúpulo com que o autor procedeno levantamento da vida que escreve. É um tal processo que nospermite afirmar que em nenhum momento este trabalho confundebiografia e romance, risco maior e para bem dizer inevitável de qual-quer biógrafo. A bio grafia literária é um retrato da alma singularque se manifestou neste plano da existência e quanto mais próximaestiver da verdade mais pertinente se torna para o conhecimentoda obra a que se associa; o romance é um tecido ficcional que nãotem por meta a verdade mas tão-só a verosimilhança.

PREFÁCIO

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A questão que se coloca, e que baralha a linearidade destas as-serções, é que a verdade dificilmente se deixa dizer em si mesma.Por esse motivo qualquer verdade pode fazer a vez duma mentirae qualquer mentira pode tomar o lugar duma verdade, quer dizer,aquilo que designamos por verdade não passa duma probablidademais ou menos próxima. Neste sentido um romance apenas ve-rosímil pode dar um contributo mais acerado para o conhecimen -to da realidade do que qualquer ciência documental, estribadaape nas no real verificável ou na verdade imediata.

Daí que a dramaturgia de Shakespeare, toda ela tecida com osfios invisíveis da imaginação, seja mais verdadeira no entendi-mento da alma humana ou dos factos históricos que qualquer tra-tado de História ou de Psicologia. E daí ainda que o livro deAgus tina Bessa-Luís sobre Florbela Espanca, que o autor do estu -do biográfico que de seguida se lê tanto castiga, de resto na linhadou tros respeitáveis estudiosos da autora calipolense, como Eu-génio Lisboa, possa conter verdades inesperadas e dereitas, aindaque escritas em linhas tortas, para aludirmos parafrasticamente auma máxima popular de largo alcance.

De qualquer modo, com a direcção que lhe é própria, procu-rando nunca resvalar para a ficção, separando em absoluto os doisgéneros, biografia e romance, mantendo e res peitando as aperta-das prescrições do jogo biográfico, o tra balho que aqui se apre-senta dum investigador que escreve e pensa na língua tersa deCervantes é um contributo muito estimável para o conhecimentoda personalidade da grande poetisa ibérica de língua portuguesa,tomando a palavra personalidade como sinónimo duma psiqueviva e vendo nesta o crivo decisivo da criação.

Para usar palavras que são caras ao autor deste estudo, diremosque o corpo é pó, o espírito é mistério, e a alma no me ou obra.Ao descrever com tanto desvelo a vida desta per sonalidade enig-mática que passou pela Terra e se chamou, talvez para nos ilumi-nar com a beleza das coisas raras e etéreas, posto que corpóreas,Florbela, é natural, quer di zer, conforme àquele elo imprescritívelque liga o autor à obra, que ele, o autor do livro, tenha tocado

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nas cordas pu ras que a poetisa nos legou, fazendo vibrar em cír-culos cada vez mais largos a significação das suas palavras.

Por isso o estudo biográfico de Fernández é também um pontoa favor da compreensão da riquíssima alquimia verbal florbeliana,como se vê nas páginas finais, em que o estudioso numera algu-mas figuras expressivas da poesia de Florbela. Nessas notas estilís-ticas pretende-se um entendimento simbólico de cada tropo, jáque um poema, naquilo que tem de mais essencial, a Poesia, nãoé redutível a uma forma visível. A forma vê-se, presa que ficounum tropo, mas a significação, ao ser poética, escapa à morfologia,porque sendo livre e inesgotável é invisível.

A Poesia não depende da arte, menos ainda da técnica, porquenão se confunde com as palavras; é anterior a elas. Se dependesse,qualquer um de nós faria altos e inspirados poemas, para tanto bas -tando o aturado estudo dum manual de instruções. Um poe ma nãotem equivalente numa construção mecânica. Aprende-se a construirum carro, da mes ma forma que se aprende a montar um lego. Como poema não é assim; a criação dum poema não se aprende, expe-rimenta-se. Se quiser cristalisar em forma a sua essência mais so -berana que é a Poesia, o poema necessita dum momento depos sessão, ou de aparente despersonalização, ab so lutamente espon-tâneo, estando além disso fora do quadro vulgar da intenção esté-tica, e por isso da sua apreciação, e pró ximo da potenciaçãomá xima, em termos expressivos, do automatismo psíquico.

José Carlos Fernández é um recém-chegado a Portugal quelogo elegeu Florbela como sujeito de interesse, e até de paixão, jáque não é crível que alguém se devote a um poeta como ele fazsem por ele sentir um elo de misteriosa simpatia ou de escaldantefraternidade. Mas José Carlos Fernández é também um homemque ama o conhecimento e por isso o livro que ora dá à luz é umrepositório daquela sabedoria ancestral, de matriz socrática e cra-tiliana, que vê na linguagem verbal uma dádiva divina.

Florbela Espanca foi – para usarmos as palavras de Teixeira dePascoaes, com quem a autora do Livro de Soror-Saudade tem asmelhores afinidades, infelizmente pouco exploradas – uma cria-

PREFÁCIO

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dora, quer dizer, uma cúmplice de Deus no crime da Criação, nãouma versejadora ou uma artista do verso. Nesse sentido Florbelanão pertence à História da Literatura, mas ao Universo, do mesmomodo que uma pedra ou uma labareda não pertencem à Ciênciamas à Vida.

Por esse motivo o autor deste estudo pôde contemplar mara-vilhado a essência da Criação nos versos da poetisa e ver nos poe-mas que ela nos legou a irradiação dum génio ou dum arcano; eleviu no verbo de Florbela o rasto luminoso duma ideia sublime. Ese isto assim era desde que a poetisa trastagana incendiou a Terracom os seus versos sáficos, fez-se porventura mais necessário e atémais verdadeiro a partir do momento em que ele o disse, reve-lando-o aos nossos olhos.

20 de Janeiro de 2011

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“um livro de belos versos debaixo do braço, umlivro que nos fizesse sonhar, um livro que nos fizessesorrir...” 1

“Uma corajosa rapariga, sempre sincera para con-sigo mesma. (…) Honesta sem preconceitos, amorosasem luxúria, casta sem formalidades, recta sem prin-cípios e sempre viva, exaltantemente viva, miracu-losamente viva, a palpitar de seiva quente como asflores selvagens da tua básbara charneca!” 2

“As almas das poetisas são todas feitas de luz comoas dos astros: não ofuscam, iluminam... (À margemdum soneto)”3

Sem dúvida que Portugal é uma terra de poetas e sonhadores.A suave doçura do seu clima, o encontrar-se afagado pelas ondasem todo o seu litoral ocidental, ou talvez o sangue celta que correpelas veias dos seus filhos, fazem com que a sua alma se solte e

______________1. Carta nº 56, Vol. V das Obras Completas de Florbela Espanca, Publicações Dom

Quixote, material compilado por Rui Guedes.2. Anotação no diário feita no dia 12 de Janeiro de 1930, mesmo ano em que morreu.

Em Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 214, Editorial Bisleya, 2009.3. Conto “À margem de um soneto”, Florbela Espanca, Contos e Diário, pág. 72,

Editorial Bisleya, 2009.

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JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ

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agite como uma bandeira ante os ventos da poesia e do sonho.Emotivo, melancólico, introvertido e fiel como ninguém perantequem é capaz de trazer-lhes mensagens de uma beleza e uma razãoque não são as deste mundo mas as de um Rei desconhecido esempre esperado, o português é por natureza um enamorado dapoesia. E os séculos da sua história são séculos em que ressoam oscantos dos seus poetas.

Mas a sua maior poetisa que melhor expressa a saudade e ne-cessidade de voltar ao seu perdido reino, essa espécie de fada deamor de trágica existência e de cantos ritmados na forma métricade sonetos, que ilumina com a beleza dos seus versos o primeiroterço do século XX, é Florbela Espanca. Injustamente vilipendiadadepois de morrer, pelo Estado Novo, é em Portugal cada vez maislida: ela é a poetisa do amor; e a alma enamorada lê os seus versoscomo em Espanha se podem ler os de Becquer ou como no mundoos de Pablo Neruda. O seu erotismo sáfico e puro, arrebatado e,ao mesmo tempo honesto, parece um manancial que em cascatacorre perdendo-se entre as sombras íntimas de um bosque sagrado.A sua poesia, orgulhosa e íntima, triste e serena por vezes, outrasdesgarrada pela necessidade de um sonho impossível, brota livre eespontânea, e nada deve ao mundo nem ao seu tempo; nem tam-pouco às correntes estéticas do seu século… tal é a sua indepen-dência e sinceridade!

Florbela Espanca nasce pouco depois da meia-noite, ao começoda madrugada4 do dia 8 de Dezembro do ano 1894, em Vila Vi-çosa (Alentejo). O seu nome completo é Flor Be la d’Alma da Con-ceição Espanca. É filha de João Maria Espanca que, im possibilitadode ter filhos com a sua esposa e de comum acordo, tem-no comAntónia da Conceição Lo bo, dramática situação que hoje chama-

______________4. Mais especificamente, nasce às 2 da madrugada, na casa do casal Espanca em Vila

Viçosa. Rui Guedes, no seu Acerca de Florbela, narra como recebeu o nome: “Entreagonias e em dores tamanhas disseram-lhe: [a Antonia Lobo, que estava em trabalhode parto] – É uma menina, é uma flor! E Antónia respondeu: Flor se chamará...(Acerca de Florbela, Rui Guedes, publicações Dom Quixote, Lisboa 1986, pág. 24).

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ríamos de “mãe de aluguer”. É criada pela esposa do pai, Marianado Carmo Inglesa, que também é sua madrinha. Para facilitar oprocesso legal, Florbela é acolhida como uma “filha da vida”, istoé, legalmente desconhece-se quem é o pai e a mãe. O mesmo acon-tecerá com o irmão mais novo da poetisa, Apeles, fruto também daunião do seu pai com Antónia Lobo e que nascerá três anos depois.

O pai, filho de um sapateiro, aprendera e exercera com este amesma profissão, mas a sua inquietação cedo o levou a trabalharcomo antiquário, vendedor de guarnições de cavalaria, decorador,fotógrafo e pintor. E inclusive, desde 1898, fazendo projecçõesde filmes viajando por todo o país com o seu vitascópio de Edi-son, o que o torna num dos pioneiros da difusão da sétima arteem Portugal. Apaixonado pela cultura grega e de vida boémia eaventureira, viajou também por Espanha, Marrocos e França, enaufragou no Mediterrâneo.

A sua mãe – mãe biológica – também tinha sido “filha da vida”,não tinha conhecido os seus pais e tinha sido criada na miséria poruma mulher que lhe deu o seu apelido, Lobo. João Espanca rapta-a e dá-lhe casa na Rua Angerino, na mesma em que tinham vividoos seus pais e ali concebeu tanto Florbela como o seu irmão Apeles.Falecerá jovem, em 1908 aos 29 anos de idade, o mesmo ano emque foi assassinado o rei de Portugal, D. Carlos. A sua vida, umavida de dificuldades e de dor, seria ex pressa pela nossa poetisa comos versos: “A minha pobre Mãe tão branca e fria / Deu-me a be bera Mágoa no seu leite!” e também num poema em que fun de o seupesar com a da sua mãe, o pesar de uma vida inun dada de dor aque não encontra nenhum sentido: “Ó Mãe! Ó minha Mãe, p’raque nasceste? / Entre agonias e em do res tamanhas / P’ra que foi,dize lá, que me trouxeste // Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido/ Somente o fruto amargo das en tranhas / Dum lírio que em máhora foi nascido!...”5

Pelo facto do seu pai ter sido fotógrafo, dispomos mes mo emanos tão precoces, de numerosas fotografias tanto suas como do

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______________5. Poema “Deixai entrar a morte”.

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JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ

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seu irmão. Numa delas, com seis anos6, aparece rodeada de livros,sua grande paixão – juntamente com as flores – da infância e ju-ventude. O seu pai deu-lhe uma esmerada educação, dentro daslimitações próprias do âmbito rural em que se desenvolvia.

Durante os anos da sua infância Florbela desfrutará da vidapacífica do campo e do jovial carácter do pai. As fotografias destaépoca mostram-na junto a ele em piqueniques e passeios, pene-trando na planície e nas charnecas do Alentejo que depois tantasvezes cantaria nos seus versos.

A vocação poética e uma extrema sensibilidade a todas as vozesda natureza despertaram muito precocemente na sua alma: “Aosoito anos já fazia versos, já tinha insónias e já as coisas da vida medavam vontade de chorar.Tive sempre esta mesma sensibilidadedoentia, esta profunda e dolorosa sensibilidade que um nada mar-tiriza, esta mesma ternura apaixonada pelos bichos inocentes esimples. Ficava horas debruçada sobre um formigueiro, dizia coi-sas ternas aos sapos e às aranhas, e era eu quem criava os pardaise as andorinhas caídos dos ninhos que o meu irmão, solícito, melevava para que eu lhes servisse de mãe. Quando matava as moscaspara alimentar as andorinhas, já o triste problema da injustiça dasorte me atormentava. Porquê sacrificar as moscas em benefíciodas aves? Não compreendia: se ambas tinha asas!...”7. Conserva-mos dois poemas escritos nesta idade, dois poemas em que é evi-dente a sua pluma infantil mas nos quais já há expressões eimagens espantosas. Um chama-se “vida e morte”, que título parauma criança de oito anos!, e diz8:

A Vida e a Morte / O que é a vida e a morte/ Aque lla infernalenimiga/ A vida é o sorriso/ E a morte da vi da a guarida/ Amorte tem os desgostos/ A vida tem os felises/ A cova tem astristezas/

______________6. Na obra Fotobiografia de Florbela Espanca, por Rui Guedes, Publicações Dom

Quixote, 1985.7. Carta nº 150, Vol. V de Rui Guedes...8. Em Florbela Espanca, Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, Lisboa 2007,

compilação realizada por Rui Guedes, pág. 30.

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I a vida tem as raizes/ A vida e a morte são/ O sorriso lison-geiro/ E o amor tem o navio/ E o navio o ma rinheiro.

O segundo começa com um verso que faria sonhar o mais sub-til dos filósofos platónicos: “A bondade o som de Deus”, escritona forma métrica de um soneto que usaria em praticamente todosos seus poemas9:

A bondade o som de Deus/ A bondade e a Iducação/ A gentesempre ama os pais/ A estrella do coração.// A bondade ai abondade/ Aquele anjo de amor/ Aquella santa felis/ E a bon-dade da flôr// O anjo vem dar a bondade/ A bondade do co-ração/ A bondade para todos// E uma bõa iducação/ Feliz dequem tem bondade/ E sempre sempre um bom irmão.

Vários meses depois escreve outro poema como presente deaniversário ao seu pai e que começa:

Hoje é o dia dos teus annos/ Não quero que te faltem meusparabens/ Que sejas muito felis/ E que todos te estimem bem.

Desde muito pequena, Florbela teve a clara consciência de quea vida é como uma peregrinação sobre a qual não sabemos exac-tamente de onde nem para onde vamos, e me nos ainda o por quê.Intelectualmente precoce, a sua vida in terior avançava de umaforma impetuosa, penetrando nas sel vas da dor e recolhendo ex-periências tão aceleradamente ao ponto de, com vinte e cincoanos, se considerar a si mes ma velha. No mês de Abril de 1916,portanto com vinte e um anos, escreveu o conto “A Oferta doDestino”10 que expressa muito bem o mistério da sua alma, de-masiado grande para ser vulgarmente feliz neste mundo:

______________9. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 31.10. Págs. 27 e 28 das Obras Completas de Florbela Espanca, Vol. III, Contos.

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Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu--me uns sapatos e disse-me: “Aqui tens estes sapatos de ferro,calça-os e caminha... Caminha sempre, sem descanso nem fa-diga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!...”“A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; nãote assuste a escuridão, nem te deslumbres com a claridade; nemum minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa flo rir osmalmequeres, deixa cantar os rouxinóis.”

“Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, ca-minha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatoshão-de romper-se; deter-te-ás en tão. É que terás encontrado,enfim, os olhos pertur ba dores e profundos, a boca embria-gante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!”

Isto disse-me um dia o destino, trôpego velho de cabeloscor da neve.

Calcei os sapatos e caminhei, O luar era profundo; às vezes,cantavam nas matas os rouxinóis... Outras vezes, ao sol ardentedo meio-dia desabrochavam as rosas, vermelhas como beijosde sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como far raposde seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas!

Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um per-fume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de al gum imensoabis mo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e doamor que, ao longe, banhado pe lo sol, dá a impressão dumaimen sa esmeral da, e vi também as terras tristes da saudade, ondeo luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! Oco ração ficou-me a pedaços dispersos pelos ca minhos que per-corri, mas eu caminhei sempre, sem fra quejar um só momen -to!... Há muito tempo que an do, tenho qua se cem anos já, osmeus ca belos to mam-se da cor do linho, e o meu frágil cor poin clina-se suavemente pa ra a terra, como uma fra ca haste sa cu -di da pela nortada. Começo a sentir-me can sada, os meus passosvão sen do vagarosos na es tra da imensa da vida!

E os sapatos inda se não romperam! Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó

boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo osempre?!...

Em 1907, com doze anos, Florbela escreve o seu primeiro

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conto11 com o título Mamã! em que reflecte como num espelho,o do seu inconsciente, a imagem invertida do que foi o seu pró-prio nascimento:

Noite negra e tempestuosa! No céu não luzia uma estrela, ovento soprava com violência, e flocos de neve envolviam,como em alva mortalha, a aldeia adormecida. Só ao longe mi-lhares de luzes ardiam no soberbo castelo. Perfumes, flores,sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da es-trada, fo me, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre cam po -nesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam es molape los casais. Agora choravam. Tinham fome e não tinhampão, os míseros pequeninos.

No único aposento via-se apenas uma enxerga on de, com acabeça entre as mãos, a pobre mãe pensava, tal vez, no futurobem negro dos filhinhos.

A contrastar, porém, singularmente com a miséria do case-bre, via-se um berço elegante e lindo. Envolviam-no rendas earminhos. Dentro um pequeno gen til dormia, com a lindaca becita emoldurada nos anéis doirados do seu cabelo loiro.Nos lábios paira va-lhe um sorriso meigo de anjo dormente.

Abre-se a porta de repente. Uma mulher divinalmente for-mosa, envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva alon ga cauda, entra na choupana.

A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada,invejada, que tinha a seus pés um mun do de adoradores, nãoreceando amarrotar as ren das caras do seu opulento vestido debaile, ajoelhou humilde ante o bercito do filho do cri me, queti nha de beijar furtivamente; inclinou a cabeça, e duas lá grimasbrilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos,resvalando-lhe pelas faces, que foram cair nas do pe quenitoque, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbuciou mimoso:

Mamã!

______________11. Obras Completas de Florbela Espanca volumen III, Contos, pág. 23 e 24.

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JOSÉ CARLOS FERNÁNDEZ

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E com esta mesma idade escreve postais com versos de amor,postais12 que desconhecemos o destinatário:

Escrevi o nome teu/ Na branca areia do mar/ Vieram asondas brincando/ Teu lindo nome beijar.13

Em 1908 a mãe de Florbela morre em Vila Viçosa numa dascamas do Hospital da Misericórdia, apenas com 29 anos, oficial-mente de neurose. Florbela, com treze anos, veste luto. A famíliaEspanca instala-se em Évora, na rua Aviz nº 61, para que a suafilha pudesse estudar nesta cidade, no Liceu André de Gouveia.

Os pais não poupam gastos para a educação de Florbela, masela é principalmente uma apaixonada pelos livros. Sempre o será,pelos livros e pelas flores. Muitos anos depois, recordará numadas suas cartas14: “Tive os melhores professores de tudo na capitaldo Alentejo (que se são melhores não são bons), de bordados, depintura, de música, de canto, e afinal sou uma eterna curiosa delivros e alfarrábios e mais nada.”

Neste Liceu é onde Florbela diz que passou “os melhores anosda minha vida, aqui nasceram todas as ilusões, todos os sonhos,todas as quimeras que eu tenho visto perder e fugir para sempre.”15

No 5 de Outubro de 1910 encontra-se instalada com a suafamília no hotel Francfort, no Rossio, em Lisboa, quando rebentaa revolução que instauraria a República em Portugal. Embora oseu pai fosse declaradamente antimonárquico, nada sabemos decomo eles viveram esse dia de mudança histórica no destino deuma nação.

Rui Guedes, que realizou a compilação da obra completa deFlorbela e passou vários anos a investigar como um jornalista pro-fissional tudo o que pudesse resgatar do passado relativo à poetisa,especifica no seu Acerca de Florbela, os livros que pediu na Biblio-

______________12. Carta nº 15 da edição de Rui Guedes.13. Florbela Espanca, Poesia Completa, pág. 34.14. Carta nº 58 da edição de Rui Guedes.15. Carta nº 50 da edição de Rui Guedes.

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teca Pública de Évora: Lírio do Vale de Balzac, Os Três Mosqueteirose A Dama das Camélias de Alexandre Dumas, Amor de Salvaçãode Camilo Castelo Branco, A Morte de D. João de Guerra Jun-queiro, o mais vigoroso dos poetas lusitanos.

A estrela de Amor que inundaria depois toda a sua vida, em so-nhos, esperanças e desgraças, começa a aparecer no seu horizonte.O sorriso da deusa Vénus, o seu doce olhar, apresenta-se de ummodo inocente, sem necessidade de quebrar ainda muros e diques,sem necessidade de arrastar a alma nos torvelinhos da Necessidade:

Amei16 um dia… um dia… eu já nem seiHá quanto tempo foi que assim amei…E esse amor foi rir!...Tinha talvez quinze anos, quinze anos apenas…Alvorada de lírios e açucenas…E esse amor foi rir!... 17

Em 1911, com 16 anos, inteira-se da relação íntima que o paitinha com uma das suas empregadas domésticas (e que terminariaem casamento), Henriqueta, a quem escreve com grande maturi-dade e superando todos os preconceitos da época. Preconceitos quetanto farão sofrer Florbela durante toda a sua curta vida e que, comoveremos mais adiante, não deixaram repousar o seu cadáver.

Eis a carta, datada de 27 de Maio, que escreve à nova na mo -rada do seu pai:

Deve18 se amar sempre o homem que Deus escolheu paraser nosso companheiro na vida.

A amizade é o maior sentimento que não morre.

______________16. Poema sem título, em tercetos. Pág. 49 de Florbela Espanca, Poesia Completa.17. O poema completo, escrito com vinte e dois anos, continua dizendo como de-

pois deste amor chegou outro que já não foi somente rir, mas sim que nele seentrelaçaram os bons sonhos e os enganos; nele pôde apenas sorrir, como orarnum altar, que se murmura cantando. O seguinte, inundando a sua alma, trazapenas “Soluço triste em turbilhões de dor, admiração / É só chorar, chorar...”.

18. Carta nº 21 da edição de Rui Guedes.

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______________19. Carta nº 23 da edição de Rui Guedes.

Toda a mulher que acarinha os filhos de outra tem umaalma bem formada.

Em 1912 é já oficialmente noiva de Alberto Moutinho queconhecia desde criança pois tinha andado na escola primária comele. Mas, estando na praia da Figueira da Foz, em finais de Se-tembro inicia uma relação sentimental profunda com um tal“José”, relação que será devastadora para a alma da poetisa. Esteenamoramento, pelo qual rompe o seu primeiro noivado, foiacompanhado de uma abundante correspondência da qual, infe-lizmente, apenas conhecemos uma pequena amostra. Apesar datenra juventude da nossa autora, a sua alma e génio criador tor-nam-se evidentes nestas cartas.

Na seguinte, datada de 26 de Setembro de 1912, na Figueirada Foz, responde a um amor suplicante deste jovem, “José”, e dizclaramente que ela já está comprometida. Mas pelas sucessivascartas chegamos a conhecer a paixão amorosa que nasceu em Flor-bela, um amor de quatro meses que seria, talvez, o grande amorda vida da poetisa.

Meu amigo19

Vou responder à sua carta de 24, e ao mesmo tempo pedir-lhe mil desculpas das minhas maldades de ontem. Fui indeli-cadíssima para consigo, mas espero da sua bondade o perdãopara todas essas indelicadezas. Posso contar com ele? Eu nãosou muito má, mas, em compensação, sou extraordinaria-mente orgulhosa, e de to dos os meus imensos defeitos é esseque eu mesma mais te nho combatido em vão. Magoou-memui tíssimo o seu pro cedimento, que afinal me parece hoje na -tu ralíssimo, de pois das suas desculpas tão habilmente arquitec -tadas... confesse...

Mas já me esquecia que a minha carta não é um pretextopa ra lhe dizer por outras palavras o mesmo que lhe disseontem, talvez injustamente. Envio-lhe o livro que tão gentil-

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mente me enviou, junto com a carta que contém o “célebre”pensamento que tantos desejos mostra em possuir. E temmuita razão, porque preciosidades destas não se desprezam.

Agora falemos a sério, que já é tempo disso. Pensei em nãoresponder à sua carta porque era, afinal, o que ela muito bemmerecia, mas como sou muito boazinha (modéstia à parte)faço precisamente o contrário do que penso. O seu amor,sendo sincero como creio, é dos que lisonjeiam uma mulher,seja essa mulher a mais digna das criaturas. Eu tenho a con-vicção que será bem ditosa a mulher que for sua durante umavida inteira, tenho a certeza que será feliz a mulher que lheconsagrar a existência; mas, meu bom amigo, essa mulher nãoserei eu, nem sequer é possível pensar em tal loucura. Penseno que eu lhe digo e verá que tenho razão. Obriga-me a pro-ceder contra o que a minha consciência me ordena, obriga--me a ouvir-lhe falar de uma coisa que eu não devia consentira ninguém que não fosse ao meu noivo, ao homem a quemdevo completa lealdade. Eu julgo que a mulher verdadeira-mente digna é aquela a quem repugna uma traição, seja ela deque natureza for. Ele quer-me muito, tem confiança em mim,e eu que faço? Abuso assim daquele grande amor, daquela cegaconfiança, escrevendo-lhe e lendo as suas cartas em que mefala de um amor que eu não posso nem devo compartilhar. Oque nos reserva o futuro senão acabar de vez com esta loucura?Quanta desilusão, quantas mágoas nos causará tudo isto?Pense bem, meu amigo, peço-lhe. “Tenhamos fé no futuro”.Mas o que espera desse futuro que eu hei-de consagrar, porenquanto, a alguém que não há-de ser o Sr.? Por Deus lhepeço, por esse amor que diz ter-me, afaste o pensamento demim, procure outra mulher, que as há tão dignas por essemundo, que o tornará tão feliz quanto eu desejo sê-lo. Ficareisendo sempre sua amiga, um pouco querida e um pouco es-quecida, que de longe pensará muitas vezes nestes dias quetemos passado juntos. Guarde sempre da minha estima umarecordação, porque a mereço, creia. Enoja-me a mentira; é porisso que sinceramente hoje lhe escrevo, tão sinceramente comolhe tenho falado. Que atractivos encontra em mim para quetanto me queira, conhecendo-me há apenas oito dias? Não

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posso saber nem compreendo o que em mim o encantou, co-nhecendo-me eu a mais simples de todas as mulheres, que tãoencantadoras algumas se tornam com a intrincada rede dosseus lindos caprichos.

Disseram-me hoje uma coisa que me magoou bastante. Detodas as coisas que a seu respeito me têm dito, foi esta talveza que mais me custou pela significação hu milhante, para mim,que tem: disseram-me que a sua mãe o tinha quase proibidode falar comigo, que se tem mostrado desagradavelmente sur-preendida com a sua assiduidade junto de mim. E isto porquê?Não sei. Nunca mendiguei o favor de me falarem e, como jálhe disse, sou suficientemente orgulhosa para não aceitar se-melhantes favores. Faça pois a vontade a sua mãe, sim? Eununca senti o quanto há de santo no amor de uma mãe boacomo é a sua. O amor das mães tem destes egoísmos que eucompreendo, meu bom amigo. Eu não tenho o direito de lhecausar uma angústia, e creia que não lha causarei, por muitoinjusta que ela possa ser para comigo. Foi ontem à noite queeu detalhadamente sou be isto. Peço-lhe que o não diga a nin-guém: faz-me esta vontade, sim?

Contaram-me, também, uma coisa que me magoou e queme não devia magoar, uma coisa a respeito de uma pri ma suade que já me tem falado algumas vezes. Para que me dizemestas coisas? Para quê? Para me torturarem, creio eu. São coisasque dizem respeito à sua vida íntima, com o que eu nadatenho, mas que apesar de tudo me fa zem ver o que há de maunesta gente que só é feliz quando faz sentir bem fundo o lutode uma amargura.

Têm-me causado muitos desgostos nestes últimos dias e istopara a minha vida simples, para os meus gostos de sossego etranquilidade, é tudo quanto há de mais triste, pode crer, meuamigo. Tem sido o Sr. o causador de tudo isto, vê? Involunta-riamente, bem sei, e eu perdoo-lhe. Digo isto apenas para veras primeiras consequências da sua loucura e da minha. Umaúnica pessoa tem sido boa para mim: a D. Josefina, que é aomesmo tempo muito sua amiga. Podem dizer-lhe muito malde mim que ela não diz nada. É muito boazinha, não é ver-dade? Eu gosto imenso dela, e talvez porque, para ela, o Sr.

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não tem defeitos. É uma das senhoras mais dignas que tenhoencontrado. Não é da minha opinião?

Aproveito a ocasião para lhe dizer que lhe não dou o meuretrato e que lhe não tornarei a escrever. Sou má? Talvez, masfaço nisso o que devo e o que já há muito devia ter feito. Nãome censure, não? Não torne a falar comigo, não digo já pormim, mas por si, que vai causar contrariedades a quem devetudo, à única pessoa que merece todo o amor da sua almabondosa.

Hei-de hoje pedir-lhe uma coisa. Será apenas um momentoa dizer, descanse, meu amigo, que eu sei fazer sempre o quedevo.

Sinceramente afeiçoada, a sua amiguinha Florbela

Evidentemente, o amor tem razões mais poderosas que o inte-lecto e a nossa vontade, e toda a fortaleza dos argumentos de Flor-bela cederá ante o empurrão do mais poderoso dos Deuses, aqueleque abre as portas da vida e lança os seus dardos mesmo para lá dasportas da morte. A poetisa inicia relações sentimentais com esse“José”. Escreve-lhe versos muito simples, de grande beleza, em por-tuguês e francês:

Avec tout ton coeur aime-moiCar tout mon coeur n`aime que toiJe ne puis te voir sans émoiJe t’aime bien plus que ma vie.20

- - - - - - - - - - - - - -

O que mais me comove e me contristaNeste pesar que se apossou de mimÉ não saber (que tenebrosa egoísta)Se te lembras de mim!

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______________20. Com todo o teu coração ama-me / Pois todo o meu coração só a ti te ama / Eu não

posso ver-te sem emoção e amo-te muito mais do que a minha vida.

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Qualquer pesar em que a memória insistaRecorda a nossa angústia. É uma aflição.E eu vivo a repetir: longe da vista...Longe do coração...21

No mês de Fevereiro do ano seguinte, em 1913, e devido a pres-sões da família dele, a poetisa termina o idílio com o seu amado.Fica moralmente destruída. Numa carta que Florbela escreveria vá-rios anos mais tarde, expressa a ruína desse desamor, embora nãosai bamos se é devida a essa experiência ou simplesmente ao factode que a alma sente, a partir dos 16 ou 17 anos, o peso da vida; es -ta é a idade que os egípcios chamavam “da deusa Hathor”, idadena qual a alma desperta na sua prisão de carne e sangue.

Nasci num berço de rendas rodeada de afectos, cresci des-preocupada e feliz, rindo de tudo, contente da vida que nãoconhecia, e de repente, amiga, ao alvorecer dos meus 16 anos,compreendi muita coisa que até li não te nha comprrendido eparece-me que desde esse instante cá dentro se fez noite.

Fizeram-se ruínas todas as minhas ilusões, e, como todos oscorações verdadeiramente sinceros e meigos, despedaçou-se omeu para sempre.

Podiam hoje sentar-me num tronco, canonizar-me, dar-metudo quanto na vida representa para todos a feli cidade, queeu não me sentiria mais feliz do que sou ho je. Falta-me o cas-telo cheio de sol entrelaçado de ma dressilvas em flor; falta-metudo o que eu tinha dantes e que eu nem sei dizer-te o queera... É a história da minha tristeza. História banal como quasetoda a história dos tristes.22

Este “José” era, na realidade, João Martins da Silva Marquesque chegaria a trabalhar como director do Arquivo Histórico daTorre do Tombo e que pediu, ao serem editadas essas cartas, que

______________21. Carta nº 26 edição de Rui Guedes.22. Carta nº 57 da edição de Rui Guedes, Vol.V.

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se substituísse o nome de João pelo de José. Muitas das páginasda sua futura prosa estão dedicadas a ele e à pureza do amor queviveram juntos. É o amor da sua juventude, Mário no seu conto“Amor de Sacrifício”, o amor de quem a fatalidade e o dever queesta impõe nos separa; Karl na “Alma de Mulher”; e sobretudo oDr. Manuel de “Amor de Outrora”, conto de sublime beleza es-crito já na plena maturidade da autora. Neste conto descreve cenasdeste amor de ouro, não contaminado pelo desejo23, que são his-tórias vividas ou imaginadas artisticamente na sua relação com oseu primeiro amado:

Viu o outro24, o verdadeiro, aquele que era dela ainda, quetrazia ao pescoço como uma medalhinha benta capaz de todosos milagres. Ah! Aquele Manuel de romântica capa negra dosseus sonhos de rapariguinha! Aquele que tinha um sorriso já tãotriste desenhado num sinuoso traço rubro tão bem feito, sobrea palidez da face! O Manuel que lhe chamava Nita, que punhano seu nome o afago que ninguém mais lá pusera, que lhe man-dava molhos de violetas e amores-perfeitos que lhe escrevia emgrandes cartas todas as palavras lindas que há no mundo, todasas blandícias perfumadas e santas, três vezes santas, do seu amorde sortilégio. (...) E lembrava-se, lembrava-se das noites em quefalava com ele à janela, às horas sossegadas em que o silênciorumoreja pelas ruas desertas. O luar banhava tudo; as casas, nolargo, desmoronavam-se e caíam em linhas rectas sobre a brancatoalha estendida. As fadas andavam por toda a cidade esten-dendo os seus lençóis de linho... e os olhos da rapariguinha apai-xonada viam as fadas andar na sua lida, que os olhos de quinzeanos são como varinhas de condão no mundo feio e lôbrego,os olhos de quinze anos vêem tudo onde por acaso pousem!...

— Boa noite.

______________23. Amor que Agustina Bessa Luis, no cinismo e mordacidade que a caracterizam,

chama depreciativamente “amor de verão”. E certamente o é aos olhos do mundoe dos costumes vulgares, mas desde a extrema sensibilidade da poetisa é muitomais que isso, é a primeira vez que o amor chama às portas de uma alma enamo-rada. Ver a sua biografia Florbela Espanca, a vida e a obra.

24. Florbela Espanca, Contos e Diário, editora Leya Biis, págs. 88 e 89.

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— Boa noite.Ah, a voz dele a vibrar no silêncio, nítida como um cristal

intacto! Que se diziam depois? Lembrava-se lá! Aos trinta anossabe-se lá bem o que bocas puras murmuraram em noites lua-rentas, em românticos balcões debruçados sobre o largo rio deluar, enquanto o mistério dos destinos vai afagando as almaspara as estrangular! Sabe-se lá!...

E nunca nessas horas ruivas, a rir como bacantes, nunca sen-tira latejar nos seios o desejo de uma carícia proibida, nuncasonhara com os beijos da sua boca tris te, nunca as suas mãostremeram na obsessão de um con tacto mais envolvente e maisperturbador. Não, nun ca! Toda a castidade, toda a doçura, oseu sonho ia mais alto que as asas das cotovias e desconheciatudo o que ia por cá abaixo, os caminhos ignorados por ondemais tarde havia de caminhar, fazendo pó e lama.

Mas um dia, um dia morrera tudo, desabara tudo. Os fortesalicerces da sua catedral de ouro abanaram como se um ciclonesacudisse uma humilde choupana de col mo, e tudo desabaracomo um frágil castelo de cartas. Por quê? Sabia lá! Nem já selembrava! Intrigas... calúnias... sabia lá! A vida começava acumprir as suas pro mes sas, que a vida é boa pagadora e nãoes quece nunca as suas dívidas...

Viu-se de um dia para o outro mais pobre que Pedro Sem25,viu-se despojada de toda a sua grandeza, sem mesmo saberporquê e, asas esfarrapadas, espantada, tonta, pousou na terrae teve medo... mas a vida lá a arrastou, pegou-lhe na mão elhe levou!.... Para onde?

Com a alma destruída26 pela forçada separação, Florbela pede

______________25. Personagem que era um mercador rico à custa da desgraça alheia, mas que, tomado

pela arrogância, desafiou Deus afirmando que nem este o poderia fazer pobre.Nesse momento uma tempestade afundou as suas naus cheias de especiarias ebens preciosos e um raio destruiu o seu palácio. Arruinado Pedro Sem passou apedir esmola na rua lamentando-se: “Dê uma esmolinha a Pedro Sem, que tevetudo e agora não tem...”.

26. Na carta nº 28, finalizando esta turbulenta relação, escreve: “Pena é não haverum manicómio para corações, que para cabeças há muitos!”. Vol V., ediçãode Rui Guedes, pág. 89.

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ao seu pai que venha buscá-la à Figueira da Foz, que está presa naangústia e desesperada:

Minha amiga27

Recebi a carta do papá. Domingo, sem falta, quero-os cá,porque isto não pode continuar assim.

É preciso tomar uma resolução, seja qual for. Já tenho asminhas cartas, rasguei-as todas, tudo está acabado. Eu tenhosofrido tanto como nunca pensei sofrer. Nun ca pensei que istocustasse tanto.

Ele era o meu maior amigo. Não sei o que hei-de fa zer,tenho a cabeça doida, tenho febre.

Eu não volto ao liceu. Quero ir-me embora, mesmo queseja para Vila Viçosa. Eu não posso viver assim. Ele es creve--me cartas que me fazem medo. Que dó que eu te nho dele,nem calculas!

Diz ao papá que venha domingo para ir a Lisboa e ter oca-sião de resolver tudo. Eu quero acabar com este inferno, queroir-me embora.

Estou doente. Tem dó de mim, dá-me conselhos, eu quero--te cá. Quero ver o meu pai querido, estou doente.

Eu nem sei o que escrevo.Pela saúde do meu paizinho, vem tu depressa ou leva-me

daqui.Adeus.Beija-te muito.A tua grande amiga.Florbela

Neste mesmo ano, 1913, talvez como uma fuga psicológicafrente ao seu trauma amoroso, restabelece o seu noivado com Al-berto Moutinho, emancipa-se antes da idade legal e no dia 8 deDezembro28, dia da Lua, une-se com ele num casamento civil.______________27. Carta nº 30, edição de Rui Guedes.28. Dia em que cumpria 19 anos, portanto. Como veremos mais adiante, a data

de 8 de Dezembro, dia da Nossa Senhora da Conceição em Portugal ou daImaculada Virgem em Espanha, foi uma data em que a nossa poetisa se des-posava com o Destino, quer fosse para nascer, para casar-se ou para morrer.

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______________29. Conto incluído no caderno Trocando Olhares e datado de 11 de Abril de 1916.

Não se sabe quem é o Alex da dedicatória, talvez o seu amor já distante notempo e no espaço mas nunca esquecido.

É fácil de determinar o quanto há da vida de Florbela no seubreve conto “Amor de Sacrifício”29:

Ao som daquela voz tão bela, Armanda estremeceu e, levadapor aquele encanto infinito, pôs-se a recordar todo o seu pas-sado, passado de sonho e amargura que ela tinha acalentadodentro do peito como uma criança que se adormece e que acor-dava agora, ao som daquela voz profunda e evocadora quegemia saudades e agonias. Por diante dos seus olhos castanhos,de uma luz casta e doce, perpassou rapidamente a visão daqueleseu primeiro amor, nascido um dia à luz de dois olhares trocadospor acaso, e morto um ano depois, deixando-a para sempreaquela criatura triste e pacífica, tão diferente daquela alegre ra-pariga de lábios vermelhos e olhos petulantes que ela tinha sido!Depois, o seu casamento com outro, aquela aventura nascidade um enorme despeito e dum orgulho excessivo. Era precisoesquecer, e era o único meio! Esse mesmo falhou, porque osonho não morrera nunca, estava apenas adormecido, e ela sen-tia-o despertar agora, ao som da voz do humilde soldado quecontinuava a gemer saudades da noiva ausente! No entantotinha encontrado, no marido, um grande amigo e um grandeco ração. Ela estimava-o muito, sem dúvida, era mesmo muitoami ga dele, mas... Mário... Mário era esse o nunca esquecido,era esse a agonia vivida cada vez mais funda e mais dolorosa,era essa a chaga sempre sangrando, a amargura infinita e o su -pre mo encanto da sua triste vida! Onde estaria ele? Em que can -to da terra viviria o seu amor? Nunca mais o vira!

Florbela e o seu marido instalam-se no Redondo, nas proxi mi -da des da serra d’Ossa. Dão aulas a crianças num regime de semi-in ternato, de manhã à noite, apertados pelas dificuldades eco nómicas.Florbela ensina Francês, Inglês, Geografia e História e queixa-se nassuas cartas de como se lhe “derretem” as escassas receitas.

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