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Uma breve análise de uma obra clássica sobre os estudos medievais
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BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Reimpressão. Trad.: Liz Silva. Lisboa: Edições 70,
2012.
Análise: Segunda Parte – Os laços de homem para homem; Segundo Tomo – As classes e o
governo dos homens; Primeiro Livro: As classes; p. 335-421.
Capítulo I: Os nobres como classe de facto
“[...] nem todas as classes dominantes constituem uma nobreza. Para merecer tal nome, ela
deve, ao que parece, reunir duas condições: primeiro, a posse de um estatuto jurídico próprio,
que confirma e materializa a superioridade a que aspira; em segundo lugar, é preciso que esse
estatuto se perpetue pelo sangue-salvo, no entanto, se se admitir, em favor de algumas novas
famílias, a possibilidade de lhe ser aberto o acesso, mas em número restrito e conforme
normas regularmente estabelecidas.” P. 335-336
“[...] não é de dizer que, do IX ao XI séculos a palavra «nobre» (em latim nobilis) não se
encontra bastantes vezes nos documentos. Mas limitava-se a marcar, fora de qualquer acepção
jurídica precisa, uma preeminência de facto ou de opinião, conforme critérios variáveis quase
de cada vez. Ela comporta, quase sempre, a ideia duma distinção de nascimento; mas também
a duma certa fortuna. [...] Num tempo em que tantos homens tinham que aceitar a concessão
das terras dum senhor, só o facto de escapar a tal sujeição, parecia um sinal de superioridade.
Portanto, não seria de espantar se a posse duma terra alodial - ainda que o possuidor não
passasse dum simples camponês - foi considerada por vezes como título suficiente para
merecer a designação de nobre ou de edel.”P. 338-339
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“Inúmeros escravos, na época franca, tinham recebido a sua liberdade. Naturalmente, estes
intrusos não eram facilmente aceites como iguais pelas famílias que sempre haviam sido
isentas de qualquer mancha servil. Ao «livre», que podia ser um antigo escravo liberto ou o
descendente, ainda próximo, dum liberto, os Romanos anteriormente tinham oposto o puro
«ingénuo»; mas no latim da decadência, as duas palavras tinham-se tornado quase sinónimos.
Uma raça sem mácula não era, afinal, uma verdadeira nobreza, no sentido que este termo
geralmente tinha? «Ser nobre é não contar entre os antepassados nenhum que tenha estado
submetido à servidão».[...] Todavia, encontraram-se, mesmo entre os humildes, indivíduos
que, súbditos de um senhor quanto às suas terras, mesmo assim, tinham conservado a sua
«liberdade» pessoal. Inevitavelmente, a uma qualidade que se tornara tão rara, ligava-se o
sentimento duma honorabilidade especial, que, sem contrariar os hábitos do tempo, podia
chamar-se «nobreza».” P. 339
“Finalmente, num grau mais elevado, esta palavra com múltiplos usos, podia servir para
destacar, dentre o número de homens que não eram servis pelo nascimento, nem atingidos
pelos laços da humilde dependência, as famílias mais poderosas, as mais antigas e as que
gozavam de maior prestígio. [...] No entanto, no decurso da primeira idade feudal, as suas
utilizações mais modestas foram-se apagando pouco a pouco; cada vez mais se verificou a
tendência de reservar a palavra para os grupos de poderosos, aos quais as perturbações dos
Estados e a generalização dos vínculos de protecção tinham permitido ascender, na sociedade,
a uma preponderância crescente. Ainda num sentido bastante frouxo, estranho a qualquer
precisão de estatuto ou de casta. Mas não sem um sentimento muito forte da supremacia da
classe, assim qualificada.” P. 340-341
“Classe fundiária, (...) os seus membros tiravam os rendimentos dum domínio exercido sobre
o solo, de acordo. (...) O traço característico residia na forma da exploração. Se os campos,
ou, muito mais excepcionalmente, a loja ou a oficina sustentavam o nobre, era sempre graças
ao trabalho doutros homens. Por outros termos, ele era, acima de tudo, um senhor.” P. 341
“O nobre combatia a cavalo; ou, pelo menos, se por acaso durante a acção tinha que pôr o pé
em terra, só se deslocava montado. Além disso, combatia com o equipamento integral.
Ofensivo: lança e espada, algumas vezes clava. Defensivo: o elmo, que protegia a cabeça;
depois, cobrindo o corpo, uma cota metálica, toda ou só em parte; no braço, finalmente, o
escudo, triangular ou redondo. [...] Tanto mais que a guerra, para eles, não era apenas um
dever ocasional: para com o senhor, para com o rei, para com a linhagem. Ela representava
muito mais: uma razão de viver.” P. 343-345
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Capítulo II: A vida nobre
“Nas obras de imaginação, tal como nas crónicas, o retrato do bom cavaleiro insiste, acima de
tudo, nas suas qualidades de atleta: ele é «ossudo», «membrudo», de corpo «bem modelado»
e sulcado por honrosas cicatrizes, de ombros largos, e larga também - como convém a um
cavaleiro - a distância entre as pernas. [...] Mas um corpo ágil e musculoso, é quase supérfluo
dizê-lo, não é o bastante para fazer o cavaleiro ideal. É preciso ainda acrescentar a coragem. E
é também porque proporciona a esta virtude a ocasião de se manifestar que a guerra põe tanta
alegria no coração dos homens, para os quais a audácia e o desprezo da morte são, de algum
modo, valores profissionais.” P. 348-349
“O seu heroísmo indiscutível alimentava-se de muitos elementos diversos, alternando cada
um por sua vez: simples descontração física dum ser são; raiva desesperada (...); dedicação a
um chefe ou, quando se trata da Guerra Santa, a uma causa; paixão da glória, pessoal ou
colectiva (...); finalmente, esperança nas recompensas do outro mundo, asseguradas, não só a
quem morre pelo seu Deus, mas também a quem morre pelo seu senhor.” P. 349
“Habituado a não temer o perigo, o cavaleiro encontrava na guerra um outro encanto ainda: o
dum remédio contra o tédio. Pois para os homens cuja cultura, durante longo tempo,
permaneceu rudimentar e que - exceptuando alguns altos barões e os que os rodeavam - não
estavam ocupados com pesados cuidados de administração, a vida decorria facilmente numa
cinzenta monotonia. Assim nasceu uma vontade de diversões que, quando o solo natal lhe não
oferecia alimento suficiente, procurava a sua satisfação em terras longínquas.” P. 349
“Estes cavaleiros andantes (...) ajudaram na Espanha os cristãos indígenas a reconquistarem o
Norte da península ao Islão; criaram, na Itália do Sul, os Estados normandos; fizeram-se
contratar, antes da primeira cruzada, como mercenários ao serviço de Bizâncio, nos caminhos
do Oriente;encontraram, finalmente, na conquista e na defesa do Túmulo de Cristo o seu
campo de acção preferido. Quer fosse da Espanha ou da Síria, a Guerra Santa não oferecia a
atracção duma aventura que era também uma obra pia?” P. 350
“[...] a classe dos cavaleiros diferençava-se das suas vizinhas por um género de vida
propriamente nobiliário. Na Itália, na Provença, no Languedoc, perdurava a marca milenária
das civilizações mediterrânicas, cuja estrutura tinha sido sistematizada por Roma.
Tradicionalmente, tinha-se visto ali cada pequeno povo agrupar-se em redor duma cidade ou
burgo, a um tempo, capital, mercado e santuário e, com a continuação, residência habitual dos
poderosos. Estes jamais deixaram de frequentar os velhos centros urbanos; tomaram parte em
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todas as suas revoluções. No século XIII, esta característica citadina passava por ser uma das
originalidades das nobrezas meridionais.” P. 353-354
“Foi somente a pouco e pouco e como consequência duma diferenciação mais avançada das
classes que os meios cavaleirescos, fora da Itália ou da França meridional, se tornaram quase
inteiramente estranhos à vida das populações propriamente urbanas. [...] tudo contribuía para
o fazer regressar ao campo: o hábito, cada vez mais espalhado, de remunerar os vassalos por
meio de feudos, constituídos, na imensa maioria dos casos, por senhorios rurais; o
enfraquecimento das obrigações feudais, o qual favorecia, entre os criados de armas, daí em
diante «acasados», a tendência para cada um viver em sua casa, longe dos reis, dos altos
barões e dos bispos, donos das cidades; até ao gosto, enfim, pelo ar livre, natural para esses
desportistas.” P. 354
“A casa senhorial eleva-se quase sempre num aglomerado ou na sua proximidade. Por vezes,
há vários na mesma aldeia. Distingue-se nitidamente das cabanas que a rodeiam - como, aliás,
nas cidades, das habitações dos humildes - não apenas por ser melhor construída, mas
sobretudo por estar, quase sempre, organizada para a defesa.” P. 355
“Habitualmente, existia um fosso cavado na base. Por vezes, uma muralha de paliçadas e de
terra batida, rodeada. Por sua vez, por um outro fosso, desenhava-se a alguma distância.
Permitia manter em segurança diversas construções de exploração e a cozinha, que o perigo
de incêndio aconselhava a colocar à distância; servia de refúgio aos dependentes, em caso de
necessidade; evitava um assalto imediato à torre e tornava menos fácil, em relação a este
reduto, o emprego do modo de ataque mais eficaz que era o fogo.” P. 356
“O barão, literalmente, só respirava rodeado de seguidores que - homens de armas, criadagem,
vassalos não acasados, jovens nobres, colocados sob os seus cuidados e por ele alimentados -
o serviam, o guardavam, falavam com ele e, quando chegava a hora de deitar, continuavam a
protegê-lo com a sua presença até junto do leito conjugal.” P. 357
“Era natural que uma classe tão claramente delimitada pelo género de vida e a supremacia
social acabasse por obter um código de conduta que lhe fosse próprio. [...] O termo que,
depois do ano 1100, aproximadamente, serve correntemente para designar o feixe das
qualidades nobres por excelência é característico: «cortesia», que vem de corte - «court» (...).”
“[...] o novo código teve incontestavelmente como prática as cortes da França e da região do
Mosa, estas últimas, aliás, francesas pela língua e pelos costumes. (...) Na verdade, este
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prestígio duma forma de cultura aristocrática era apenas um dos aspectos da acção exercida
então na Europa inteira - e aí, também, é óbvio, principalmente nas classes elevadas - pela
cultura francesa no seu conjunto: propagação de estilos de arte e de literatura; renome das
escolas de Chartres e, depois, das parisienses; emprego quase internacional da língua. E sem
dúvida não é impossível descobrir algumas razões do facto: longas viagens empreendidas
através do Ocidente, pela mais aventurosa dás cavalarias; prosperidade relativa dum país
atingido muito mais cedo do que a Alemanha (mas, em verdade, não antes da Itália) pelos
progressos das trocas; distinção precocemente acentuada entre a classe dos cavaleiros e a
turba dos imbelles, inaptos para as armas; apesar de tantas guerras locais, não houve nenhum
tumulto comparável àquele que a grande querela dos imperadores e dos papas provocou no
Império.” P. 361-362
“[...] desde o século XII, assinala uma sociedade em que o mundanismo fez a sua aparição e,
com ele, a influência feminina. A mulher nobre nunca estivera encerrada no gineceu. Se
governava a sua casa, rodeada de servas, acontecia também governar o feudo, e por vezes,
com dureza. Estava, porém, reservada ao século XII a criação do tipo da grande dama letrada
e que mantinha um salão. [...]Pois a cortesia era, essencialmente, um assunto de classe. A
«sala das damas» nobres e, mais geralmente, a corte são doravante o lugar onde o cavaleiro
procura brilhar e eclipsar os seus rivais: pela reputação dos seus ilustres feitos; pela sua
fidelidade aos bons costumes; e também pelo seu talento literário.” P. 362
“[...] os meios nobres jamais tinham sido totalmente iletrados ou, menos ainda, impermeáveis
à influência da literatura, mais escutada do que lida. Mas foi dado um grande passo no dia em
que os cavaleiros se fizeram, eles também, literatos. É significativo que o género ao qual, até
ao século XIII, eles se dedicaram, quase com exclusão de qualquer outro, tenha sido a poesia
lírica.” P. 362
“Os traços característicos do amor cortês podem resumir-se bastante simplesmente. Não tem
nada a ver com o casamento ou, dizendo melhor, opõe-se directamente às suas leis, pois se a
amada, é, em geral, uma mulher casada, o amante nunca é o marido. Ele dirige-se
frequentemente a uma dama de categoria superior; de qualquer maneira, este amor comporta
constantemente uma viva nota de devoção do homem pela mulher. Denuncia-se por uma
paixão avassaladora, contrariada sem cessar, geralmente ciumenta e alimentada pelas suas
próprias perturbações, mas cujo desenvolvimento estereotipado não deixa de comportar, cedo,
algo de ritual.(...) ele é, de preferência, um amor «de longe». Não que, evidentemente, por
princípio, se recuse ao prazer carnal ou que, se por acaso-no dizer de André leChapelain, que
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o pôs em teoria - se vê obrigado a renunciar ao «supremo alívio», deixe de ambicionar, pelo
menos, o «dinheiro miúdo» dos prazeres de epiderme. Mas a ausência ou os obstáculos, em
lugar de o destruírem, não fazem mais do que embelezá-lo com uma poética melancolia” P.
364
“Esta é a imagem que os poetas nos traçam. Pois só conhecemos o amor cortês pela literaura e
por isso nos é difícil destrinçar nela o papel da moda ou o da ficção. O que é indubitável é
que, tendendo a dissociar, em certa medida, o sentimento da carne, ele não impediu, longe
disso, que esta continuasse, por seu lado, a satisfazer-se, assaz brutalmente.” P. 364-365
“A subordinação do amante era, em especial, uma atitude nova. Já vimos que se exprimia
facilmente em termos retirados do vocabulário da homenagem vassálica. A transposição não
era apenas verbal. A confusão do ser amado com o chefe correspondia a uma orientação da
moral colectiva completamente característica da sociedade feudal. Muito menos ainda, (...)
este código amoroso era tributário do pensamento religioso. (...)teremos até que reconhecer
que ele lhe era directamente contrário, sem que aliás, os que sustentavam tal teoria, tenham
tido, segundo parece, -uma consciência bem clara desta antítese. Não era ele que fazia do
amor das criaturas quase uma das primeiras virtudes e, seguramente, a alegria por excelência?
Especialmente, quando renunciava ao prazer físico, não sublimava ele, até pretender
preencher assim a existência, um impulso do coração, nascido, na sua origem, desses apetites
carnais cuja legitimidade o cristianismo só admite para os dominar pelo casamento -
profundamente desdenhado pelo amor cortês - para lhe conferir a justificação da propagação
da espécie - em que o amor cortês nem sequer pensava-, para os confinar, finalmente, num
registo secundário da experiência moral. O autêntico eco do sentimento cristão desse tempo
na vida sexual não podemos esperar encontrá-lo no lirismo da cavalaria.” P. 365
“Distinta, assim, pelo seu poder, pelo seu género de fortuna e de vida, pela sua própria moral,
a classe social dos nobres, cerca dos meados doséculo XII, estava pronta a solidificar-se em
classe jurídica e hereditária. O uso cada vez mais frequente, ao que parece, que a partir de
então se faz da palavra «gentilhomme» - homem de boa «gente», isto é, de boa raça - indica a
importância crescente atribuída às qualidades do sangue. Foi em torno dum ritual, a
investidura dos cavaleiros, que se processou a cristalização.” P. 367
Capítulo III: A cavalaria
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“A partir da segunda metade do século XI, diversos textos, que depressa se vão multiplicando,
começam a mencionar que, aqui ou além, teve lugar uma cerimónia destinada, dizem eles, a
«armar um cavaleiro». O ritual tem várias fases. Um cavaleiro mais antigo entrega primeiro as
armas significativas do seu futuro estado ao postulante, geralmente saído há pouco da
adolescência. Nomeadamente, cinge-o com a espada. Depois vem, quase sempre, uma forte
«pescoçada» que, com a palma da mão, o padrinho assenta na nuca ou na face do rapaz: a
«paumée» ou «colée» dos documentos franceses.” P. 369
“Pelas suas origens e pela sua natureza, a investidura relaciona-se visivelmente com aquelas
cerimónias de iniciação de que as sociedades primitivas, tal como as do mundo antigo,
fornecem tantos exemplos: práticas que, sob diversas formas, têm todas como objectivo
comum fazer passar o rapazinho à categoria de membro perfeito do grupo, do qual a sua
idade, até ali, o havia excluído.” P. 370
“Entre o ritual germânico e o ritual da cavalaria, a continuidade não é duvidosa. Mas, ao
mudar de ambiente, o acto mudara igualmente de significado humano. Entre os Germanos,
todos os homens livres eram guerreiros. Não havia nenhum deles, por isso, que não tivesse
direito à iniciação pelas armas: pelo menos, nos lugares em que a tradição do povo impunha
esta prática, que ignoramos se estava difundida por toda a parte. Pelo contrário, uma das
características da sociedade feudal foi, como sabemos, a formação de um grupo de
combatentes profissionais, constituído principalmente pelos vassalos militares e seus chefes.”
P. 370
“[...] à medida que os meios cavaleirescos adquiriam uma consciência mais nítida do que os
separava da massa «sem armas» e os elevava acima dela, fez-se sentir mais imperiosamente a
necessidade de sancionar, por meio de um acto formal, a entrada na colectividade assim
definida: quer o novo admitido fosse um rapazinho que, nascido entre os «nobres», obtinha o
direito de ser aceite na sociedade dos adultos; quer se tratasse, muito mais raramente, de
algum afortunado recém-vindo, que parecia ter-se igualado aos membros das antigas
linhagens, pelo poder recentemente adquirido, pela força, ou pela destreza.” P.371
“Durante a primeira idade feudal, o que o termo de cavaleiro queria significar era, antes de
mais nada, ou uma situação de facto, ou um vínculo de direito, mas puramente pessoal.
Chamava-se cavaleiro porque combatia a cavalo, com o equipamento completo. Dizia-se o
cavaleiro de alguém -, quando se detinha dessa personagem um feudo que o obrigava a servi-
la, assim armado. Mas eis que, agora nem a posse de um feudo nem o critério forçosamente
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um pouco flutuante do género de vida chegarão para merecer este nome. Além disso, será
preciso proceder a uma espécie de consagração.” P. 371
“O conjunto dos cavaleiros investidos constitui uma «ordem»: ordo. Palavras eruditas,
palavras da Igreja, mas que encontramos, desde o princípio, nas bocas laicas. Elas não
pretendiam, pelo menos aquando do seu primeiro emprego, sugerir uma assimilação pelas
ordens sagradas. No vocabulário que os escritores cristãos tinham pedido emprestado à
Antiguidade romana, uma ordo era uma divisão da sociedade temporal, assim como da
eclesiástica. Mas uma divisão regular, nitidamente delimitada, confotme com o plano divino.
Uma instituição, na verdade, e não apenas uma realidade completamente nua.” P. 371
“[...] uma vez em cena, o elemento religioso não limitou os seus efeitos ao fortalecimento, no
mundo da cavalaria, do apego exclusivo aos princípios daquela; exerceu também uma acção
pode rosa sobre a lei moral do grupo. Antes que o futuro cavaleiro recebesse a sua espada, no
altar, era-lhe geralmente exigido um juramento, que especificava as suas obrigações.” P. 374
“Deve ir à missa «todos os dias», ou pelo menos, «com freqüência»; deve jejuar às sextas-
feiras. Todavia, o herói cristão permanece, por natueza, um guerreiro. Não se esperava que a
bênção das armas, principalmente, as tornasse eficazes? As orações exprimem claramente esta
crença. Mas a espada assim consagrada - se ninguém pensa em proibir que se pegue nela,
sendo preciso, contra inimigos pessoais ou contra os de um senhor - o cavaleiro recebeu-a,
acima de tudo, para a colocar ao serviço das causas nobres.” P. 375
“Assim, uma discriminação de, interesse capital introduzia-se no velho ideal de guerra pela
guerra, ou pelo lucro: com este gládio, o investido defendera a Santa Igreja, especialmente
contra os pagãos. Protegerá a viúva o órfão e o pobre. Perseguirá os malfeitores. A estes
preceitos gerais, os textos laicos acrescentam ainda algumas recomendações mais especiais
que se referem à conduta durante o combate: não matar o adversário indefeso; - a prática dos
tribunais e da vida pública não participar num falso julgamento ou numa traição; se não puder
evitá-lo, acrescenta modestamente, a Ordene de Chevalerie, abandoar o local; finalmente os
incidentes da vida quotidiana: não dar maus conselhos a uma dama ajudar «se for possivel», o
seu próximo na aflição.” P. 376
Capítulo IV: A transformação da nobreza de facto em nobreza de direito
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“No século XII, tinha nascido um novo poder: o do patriciado urbano. Nos ricos negociantes
que facilmente adquiriam senhorios, muitos dos quais para si próprios ou para os seus filhos e
que não teriam desdenhado o «boldrié da cavalaria», os guerreiros de origem não podiam
deixar de ver elementos muito mais estranhos à sua mentalidade e ao seu género de vida,
muito mais inquietantes, também, pela sua quantidade, do que os soldados de acaso ou os
oficiais senhoriais, entre os quais, até então, tinham sido quase exclusivamente recrutados os
candidatos à iniciação pela espada e pela bofetada, isto é, fora das pessoas bem-nascidas.” P.
381
“[...] o impulso das novas camadas, interessadas em investirem os seus capitais em terras,
levou os reis a tomarem as precauções necessárias para que a compra de um feudo não
transformasse cada novo rico em igual de um descendente de cavaleiros. É quando uma classe
se sente ameaçada que mais tende a fechar-se.” P. 381
“A evolução da opinião jurídica, no final da era feudal, tendeu muito menos, em suma, para
proibir rigorosamente as novas admissões do que a submetê-las a uma vigilância muito
estreita. Anteriormente, qualquer cavaleiro podia armar outro cavaleiro.” P. 382
“Nesta data [século XII], porém, fazer isto era retroceder na marcha do direito e uma pesada
multa foi o justo castigo deste anacronismo. Pois, daí para o futuro, a aptidão do «ordenado»
em conferir a ordem já não existia, na sua integridade, a não ser que o postulante pertencesse
já a uma linhagem de cavaleiros. Quando não era este o caso, a investidura, na realidade, era
ainda possível, mas na condição de ser especialmente autorizada pelo único poder ao qual as
concepções então comummente divulgadas concediam a exorbitante faculdade de suspender a
aplicação das regras consuetudinárias: o poder do rei (...).” p. 382
“Todavia, só por si, a restrição da investidura aos membros das famílias já confirmadas nesta
vocação, ou aos beneficiários de mercês excepcionais, não bastaria para a constituição de uma
verdadeira nobreza. Pois era ainda fazer depender de um rito, que podia ser ou não cumprido,
os privilégios que a ideia nobiliária exigia que dependessem apenas do nascimento. Tratava-se
apenas de prestígio. Cada vez mais a situação proeminente que, unanimemente, se concedia
aos cavaleiros, não só como guerreiros «ordenados» mas também como vassalos,
encarregados das mais altas missões de combate e de conselho, tendia para se concretizar num
código jurídico definido. Ora, desde o final do século XI até aos primeiros anos do século.
XIII, as mesmas regras ecoam através da Europa feudal. Para gozar destas vantagens, é
preciso primeiro que o homem cumpra, efectivamente, os seus deveres de vassalo, «que tenha
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armas e cavalos, que, salvo se disso for impedido pela velhice, tome parte na guerra e nas
cavalgadas, nos tribunais e nas cortes», dizem os Usos catalães. Igualmente é preciso que
tenha sido investido.” P. 385
“O que, futuramente, dá origem ao nobre não são já os velhos gestos de iniciação, reduzidos
ao estado de formalidades de boa educação, tanto mais mal observada, pelo menos pela
massa, quanto acarreta geralmente grandes despesas; é, quer se aproveitem ou não dela, a
capacidade hereditária de reclamar o benefício deste ritual.” P. 386
“Tradicionalmente, os laços de vassalagem eram a forma de dependência própria das classes
elevadas. Mas, aqui, como além, a um estado de facto sucedeu-se um monopólio de direito.
Anteriormente, passara-se por nobre por se ser vassalo. Daqui em diante, por uma verdadeira
inversão da ordem dos termos, será, em princípio, impossível ser-se vassalo - por outras
palavras, deter um feudo militar, ou um feudo «franco» - se não se figurar já entre os nobres
por nascimento.” P. 387
“A importância concedida à linhagem como portadora do privilégio exprimiu-se na
transformação que dos antigos sinais individuais de «reconhecimento» pintados no escudo ou
gravados no sinete fez os brasões, transmitidos por vezes com o feudo, mas mais
frequentemente hereditários, mesmo sem o bem, de geração em geração. Nascido, de início,
nas dinastias reais e principescas, onde o orgulho da raça era especialmente forte, depressa
adoptado por muitas das mais modestas casas, o uso destes símbolos de continuidade passou
doravante para o monopólio das famílias classificadas como nobres. Finalmente, sem que a
isenção fiscal tivesse ainda algo de rigorosamente definitivo, a obrigação militar, de antigo
dever vassálico transformada em dever nobiliário por excelência, tinha desde já como efeito
colocar o «gentilhomme» ao abrigo dos encargos pecuniários comuns, e era substituída, no
seu caso, pela vocação da espada.” P. 388
Comentário geral
Um clássico dos estudos sobre Idade Média, A sociedade feudal de Marc Bloch sem
dúvida trata-se de um estudo pioneiro sobre o mundo feudal e suas estruturas. Bloch direciona
e define seu trabalho como sendo uma análise da sociedade dita como “feudal” existente na
Europa Central e Ocidental, abarcando o período que vai do século IX (fim do Império
Carolíngio) ao XIII (final da Idade Média “central” e do processo de “feudalização” europeu).
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O pai fundador dos Annales publicou sua obra entre 1939 e 1940, que dando continuidade às
suas pesquisas no campo da história medieval sentiu uma necessidade de explicitar melhor
como as estruturas temporais, sociais e mentais - “as formas de agir e pensar”, segundo o
mesmo – influenciaram a vida de homens e mulheres que viviam sob o jugo desse mundo
feudal.
De início, a obra de Bloch se torna colossal pela vasta quantidade de material
analisada, pela variedade nas fontes e pelo rigor teórico e metodológico que possui. O
historiador francês se utiliza dos mais variados instrumentos e recursos inovadores à época
(fim da década de 30 do século XX) para compor seu texto. O “questionário” no qual o
historiador deve submeter seu objeto (mencionado em seu “Apologia da História ou Ofício de
Historiador”) é rigorosamente aplicado por Bloch quando este questiona as miríades coletivas
e suas transformações no substrato da vida social feudal europeia. Fontes oficiais, documentos
canônicos, tratados laicos, obras de literatura vernácula e o uso das ciências auxiliares como a
linguística e a toponímia enriquecem o trabalho de Bloch, deixando seu texto mais coeso e
seguro das informações e discussões que apresenta.
Como não poderia deixar de ser, A sociedade feudal é uma obra datada como todas as
outras. E por isso mesmo, após 74 anos de sua publicação, ainda levanta questionamentos e
digressões sobre a composição de seu objeto, de seu direcionamento teórico e também da
composição instrumentos conceituais utilizados por Bloch para tentar definir o que ele mesmo
caracteriza como um o estudo de uma “civilização”. Entretanto, não iremos aqui discorrer
sobre tal prisma, visto que o principal objetivo é analisar uma parte da obra e não toda sua
estrutura em sim. O foco se dará na investigação que Marc Bloch nos brindou sobre um
estrato social que deveras marcou a estrutura da sociedade feudal e auxiliou na instalação
quase que definitiva de sua base de organização: a nobreza.
Presente no segundo tomo da obra, o estudo da nobreza é primeiramente apresentado
de maneira quase linear, tendo Bloch como árbitro das discussões e estabelecendo sempre um
paralelo didático com o contexto específico que proporcional o surgimento da futura
nobilismedieval. De início, recorre à linguística para descrever as inúmeras variáveis que o
uso da palavra “nobre” poderia ter na Idade Média ocidental, destacando suas atribuições
sociais iniciadas com a “tomada de poder” das mãos do Império Carolíngio e sua
consolidação como estatuto jurídico definido de classe social diferenciada no período. Daí
porque utiliza as expressões “classe social de facto” e posteriormente, “de direito”. Nessa
primeira explicação geral, Bloch esforça-se por tentar alocar e demonstrar a gradual
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transformação da aristocracia nobre em classe senhorial e suas relações estritas com os outros
estratos da sociedade analisada.
Para dar continuidade ao raciocínio, Bloch deixa claro que falar de uma aristocracia
nascente é falar de sua principal forma de modelação e ideal: a cavalaria. A vida nobre (diga-
se até aqui, cavalheiresca) é descrita pelo francês de modo a tornar claro não somente uma
ordem estrutural desse estrato, mas sim um “ideal de vida e de género específico”. Os
costumes cavaleirescos, seus códigos, sua determinação como classe diferenciada e sua
própria consolidação no seio da mentalidade e do imaginário medieval são postos em
evidência por Bloch, traçando uma “gênese” coerente com o processo de “Renascimento
Cultural” presente no século XII em que novas formas de se viver nas cortes palacianas
europeias são postas em prática e que dão base à toda uma produção literária que reafirma a
cavalaria como classe detentora das virtudes que levam o homem à graça, mesmo em
oposição ao clero diversas vezes.
Sobre este, Bloch trata das influências que a ideologia clerical faz sobre a cavalaria,
tendo inclusive, em meados do século XIII sua própria “milícia” de Cristo. Um novo modelo
de cavaleiro virtuoso, fiel aos ideais da Igreja cristã, atento à penitência e ao seguimento das
virtudes do corpo e do monarquismo monástico: o mileschristianus. Exemplo mais
conhecido? Sir Galaaz ou Galahad, cavaleiro da Demanda do Santo Graal (século XIII),
romance de cavalaria dos mais divulgados no medievo. Por meio da implementação das
posturas morais de comportamento e do consequentemente “abrandamento” das pulsões
belicosas da cavalaria medieval, a Igreja tendeu a fazer-se presente mesmo no seio da ordem a
qual de início, buscava um afastamento dos setores clericais e a instituição de um modelo e
ideais laicos ao seu modo de vida.
Desta forma, ao tratar sobre nobreza e consequentemente, cavalaria, Marc Bloch torna
possível entender as nuances que tal ordem provou e sofreu na sociedade feudal à época. Ao
se destacar como classe virtuosa, mantenedora da ordem social e guardiã da moral corporal e
por vezes espiritual, a cavalaria torna a compreensão do mundo medieval europeu mais rica e
por que não, mais suscetível à discussão, visto que uma classe, um modelo de vida e de
gênero, até então ligado estritamente à guerra, poderia ser em muitos casos, oposta à mesma.