Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    1/69

    - 1 de 69 -

    MAIGRET E O ASSASSINO DO CANAL(Le Charretier de la Providence - 1931)

    Georges Simenon

    CAPTULO 1A ECLUSA

    Dos fatos minuciosamente reconstitudos nada podia se deduzir, a no ser que a descoberta dosdois carreteiros de Dizy era, por assim dizer, inslita. No domingo, dia 4 de abril, comeara a

    chover a cntaros cerca de trs da tarde. Naquele momento, se encontravam no porto, notrecho superior da eclusa 14, que liga o Marne ao canal lateral, duas barcaas a motor quedesciam o rio, um barco em descarga e outro vazio. Um pouco antes das sete horas, com o inciodo crepsculo, um barco-cisterna, LEco III, se fizera anunciar e entrara na c}mara. Oencarregado da eclusa manifestara o seu mau humor porque tinha familiares de visita em casa.Fizera um sinal negativo a um barco-estbulo que chegara logo a seguir, puxado lentamente sirga por dois cavalos. Depois de entrar em casa, no demorara a ver chegar o carreteiro, que jconhecia.

    Posso passar? O patro gostaria de dormir amanh em Juvigny.

    Passa, se quiser, mas ter de ser voc mesmo a abrir e a fechar as comportas.

    A chuva caa cada vez com mais intensidade. Da janela de casa, o encarregado da eclusa viu asilhueta atarracada do carreteiro que andava pesadamente de uma comporta para outra, faziaavanar os animais e prendia as amarras. A barcaa foi se elevando pouco a pouco acima dasparedes. No era o patro que ia ao leme, mas a sua mulher, uma bruxelense gorda, cabelolouro de um tom vivo e voz aguda.

    s sete horas e vinte minutos, a barcaa La Providence acostara em frente do Caf de la Marine,atr|s de LEco III. Os cavalos tornaram a entrar a bordo. O carreteiro e o patr~o se dirigiram para

    o caf, onde se encontravam outros barqueiros e dois pilotos de Dizy.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    2/69

    - 2 de 69 -

    s oito horas, a noite j cara por completo, um rebocador levou para junto das comportas osquatro barcos que puxava. Aumentou assim a clientela do Caf de la Marine. Ficaram seis mesasocupadas. Os clientes se interpelavam de mesa para mesa. Os que entravam iam deixando umrasto de gua no cho e sacudiam as botas encharcadas. Na diviso contgua, iluminada por umcandeeiro a petrleo, as mulheres faziam as suas compras. O ar estava pesado. Falava-se de um

    acidente que se dera na eclusa 8 e do atraso que poderiam sofrer os barcos que subiam o rio.

    s nove horas, a barqueira de La Providence foi procurar o marido e o carreteiro, e saramdepois de cumprimentar os circunstantes.

    s dez horas, as luzes estavam apagadas a bordo da maior parte dos barcos. O encarregado daeclusa acompanhou os familiares at estrada nacional de pernay, que atravessa o canal a doisquilmetros da eclusa. No viu nada de anormal. No regresso, ao passar diante do La Marine,olhou para dentro do caf e um piloto chamou-o.

    Venha beber um copo! Est todo encharcado...

    Bebeu um rum, de p. Dois carreteiros se levantaram, cheios de vinho tinto, olhos brilhantes, ese dirigiram para a estrebaria, pegada ao caf, onde dormiam na palha, junto dos seus cavalos.No estavam completamente embriagados, mas tinham bebido o suficiente para dormir umsono pesado. Encontravam-se cinco cavalos na estrebaria, iluminada apenas por uma lanternade segurana, com a chama baixa.

    s quatro da manh, um dos carreteiros acordou o companheiro e comearam os dois a tratardos seus animais. Ouviram os cavalos de La Providence sair da barcaa e serem atrelados.

    mesma hora, o dono do caf se levantou e acendeu uma lamparina no seu quarto, no primeiroandar. Tambm ele ouviu La Providence se pr em marcha.

    s quatro e meia, o motor diesel do barco-cisterna comeara a roncar, embora s largassequinze minutos mais tarde, depois de o patro ter bebido um grogue no caf que acabava deabrir. Mal partira, e nem chegara ainda ponte, j os dois carreteiros tinham feito a suadescoberta. Um deles puxava os cavalos em direo ao caminho de sirga; o outro remexia apalha procura do chicote quando a sua mo tocou num corpo frio. Impressionado por terjulgado reconhecer um rosto, se muniu da lanterna e iluminou o cadver que iria agitar Dizy eperturbar toda a vida do canal.

    O comissrio Maigret, da Primeira Brigada Mvel, recapitulava estes fatos e procuravaenquadr-los. Era noite de segunda-feira. Nessa mesma manh, as autoridades do MinistrioPblico de pernay realizaram ao exame no local e, depois da visita do Servio de IdentidadeJudiciria e dos mdicos legistas, o cadver foi transportado para a morgue. Continuava achover: uma chuva miudinha, cerrada e fria no parara de cair durante a noite e ao longo do dia.Silhuetas iam e vinham sobre as paredes das comportas da eclusa, onde uma embarcao seelevava lentamente.

    Havia uma hora que o comissrio se encontrava ali, procurando se familiarizar com um mundo

    que descobria de repente, e do qual no tinha, ao chegar, seno noes falsas e confusas. Oencarregado da eclusa lhe dissera:

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    3/69

    - 3 de 69 -

    No se encontrava quase nada no canal: duas barcaas a motor que desciam o rio, umbarco a motor que passou, no sentido ascendente, durante a tarde, uma draga e dois panams.E depois chegou o caldeiro com os seus quatro barcos...

    E Maigret ficara sabendo que um caldeiro um rebocador, e que um panam um barco queno tem nem motor nem cavalos a bordo e utiliza os servios de um carreteiro com os seusanimais para um determinado percurso, o que constitui navegao contnua com cordas.

    Ao chegar a Dizy, vira apenas um canal estreito, a trs quilmetros de pernay, e uma aldeiapouco importante junto a uma ponte de pedra. Tivera de patinhar na lama, ao longo do caminhode sirga, at chegar eclusa, que distava dois quilmetros de Dizy. E encontrara a a casa doencarregado da eclusa, de pedra cinzenta, com um letreiro: Posto de Declarao. Entrara noCaf de la Marine, o outro edifcio desse local. esquerda, havia uma sala onde funcionava ocaf, pobre, com as mesas forradas de oleado castanho e as paredes pintadas de uma cor entre

    o castanho e o amarelo-sujo. Mas reinava a um odor caraterstico que bastava para marcar adiferena em relao a um caf rural. Cheirava a estrebaria, a arreios, a alcatro e a gnerosalimentcios, a petrleo e a gasleo. A porta da direita estava munida de uma campainha e haviaanncios publicitrios colados nos vidros. Estava abarrotada de mercadorias: oleados,tamancos, peas de vesturio, sacos de batatas, pipas de leo de cozinha e caixas de acar,ervilhas e feijo misturada com legumes e loua. No se via um nico cliente. Na estrebaria seencontrava apenas o cavalo que o proprietrio atrelava para ir ao mercado, um grande animalde pelagem cinzenta, to familiar como um co, e que andava solta, passeando por vezes peloptio entre as galinhas. A gua da chuva empapava tudo. Era o trao dominante. E as pessoasque passavam, escuras e reluzentes, iam inclinadas para frente.

    A cem metros, um pequeno trem Decauville ia e vinha de um estaleiro, e o maquinista, natraseira da diminuta locomotiva, prendera um guarda-chuva sob o qual se mantinha, tiritando,de ombros encolhidos. Uma barcaa se afastava da margem, deslizando fora de croque, emdireo eclusa, de onde saa uma outra embarcao.

    Como fora a mulher parar ali? Por qu? Era a pergunta que a polcia de pernay, o MinistrioPblico, os mdicos e os peritos da Identidade Judiciria faziam a si prprios, estupefatos, e queobrigava Maigret a dar voltas e voltas cabea. Tinha sido estrangulada, essa era a nicacerteza. A morte ocorrera no domingo noite, muito provavelmente prxima das dez e meia. E

    o cadver fora descoberto na estrebaria, um pouco depois das quatro horas da manh. Nopassava nenhuma estrada perto da eclusa. No havia nada que pudesse atrair algum, a menosque estivesse relacionado com a navegao.

    O caminho de sirga era demasiado estreito para permitir que um automvel pudesse passar. Enaquela noite teria sido preciso patinhar, com a gua pelo meio das pernas, nos charcos e nalama. Ora, era mais do que evidente que a mulher pertencia a um mundo que se deslocanormalmente em automvel de luxo ou em trem-dormitrio, no a p. Usava apenas um vestidode seda creme e sapatos de camura brancos, uns sapatos que mais pareciam de praia do quede cidade. O vestido estava amarrotado, mas no se via qualquer vestgio de lama. S a ponta

    do sapato esquerdo ainda estava molhada quando o corpo foi descoberto. Trinta e oito aquarenta anos!, dissera o mdico, depois de t-la examinado. Os brincos eram duas prolas

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    4/69

    - 4 de 69 -

    verdadeiras, que valiam cerca de quinze mil francos. A pulseira, de ouro e platina, de desenhomuito moderno, era mais elegante do que valiosa, embora tivesse a assinatura de um joalheiroda Place Vendme. O cabelo era castanho, ondulado, muito curto sobre a nuca e nas tmporas.Quanto ao rosto, desfigurado pelo estrangulamento, devia ter sido de uma beleza notvel. Umamulher sem dvida, deslumbrante.

    As unhas, cortadas, com esmalte, estavam sujas. No se encontrara qualquer carteira junto dela.As polcias de pernay, de Reims e de Paris, munidas de uma fotografia do cadver, procuravamem vo, desde essa manh, lhe determinar a identidade. E a chuva caa sem parar sobre umapaisagem feia. esquerda e direita, o horizonte era limitado por colinas de terreno rochoso,com franjas brancas e escuras, onde as vinhas, naquela estao do ano, mais pareciam cruzes demadeira num cemitrio de guerra.

    O encarregado da eclusa, que s era reconhecvel pelo seu chapu prateado, andava de aracabrunhado em volta da cmara, onde a gua comeava a borbulhar todas as vezes que abria

    as comportas. E sempre que um barco subia ou descia, contava a mesma histria ao barqueiro.Por vezes, os dois homens, assinadas as declaraes regulamentares, se dirigiam a grandespassos ao Caf de la Marine e esvaziavam uns copos de rum ou meia garrafa de vinho branco. Devez em quando o encarregado da eclusa apontava com o queixo para Maigret, que, vagueandosem destino preciso, devia parecer desnorteado. E assim era. O caso se apresentavaabsolutamente fora do normal. Nem sequer havia uma testemunha para interrogar. Porque asautoridades do Ministrio Pblico, depois de terem interrogado o encarregado da eclusa, eouvido o engenheiro responsvel pelo canal, decidiram permitir que todos os barcos seguissema sua rota. Os dois carreteiros tinham sido os ltimos a partir, por volta do meio-dia, puxandocada um o seu panam sirga. Como h uma eclusa a cada trs ou quatro quilmetros, e estas

    esto ligadas telefonicamente entre si, podia se saber a todo o momento a localizao dequalquer barco e intercept-lo no percurso.

    Finalmente, um comissrio da polcia de pernay j interrogara toda a gente, e Maigret tinha sua disposio os autos dos interrogatrios, os quais no levavam a nenhuma concluso a noser que a realidade era inverossmil. Todos os que se encontravam, na vspera, no Caf de laMarine, eram conhecidos quer do dono, quer do encarregado da eclusa, e de uma forma geraldos dois. Os carreteiros dormiam na mesma estrebaria pelo menos uma vez por semana esempre num estado prximo da embriaguez.

    Compreende? Bebe-se um copo em cada eclusa... Quase todos os encarregados daseclusas vendem bebidas.

    O barco-cisterna que chegara no domingo depois do meio-dia e partira na manh de segunda-feira transportava gasolina e pertencia a uma grande companhia do Havre. Quanto a LaProvidence, cujo patro era tambm o seu proprietrio, passava por ali vinte vezes por ano comos seus dois cavalos e o velho carreteiro. E o mesmo acontecia com as outras barcaas!

    Maigret estava de mau humor. Entrou e saiu vezes sem conta da estrebaria, do caf e da loja.Viam-no ir at ponte de pedra, com ar de quem contava os passos, parecendo procurar

    qualquer coisa na lama. Assistiu, carrancudo, escorrendo gua, a dez aberturas da eclusa.Interrogavam-se sobre qual seria a sua opinio, mas, na realidade, ainda no tinha nenhuma.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    5/69

    - 5 de 69 -

    Nem sequer tentava descobrir qualquer indcio, propriamente falando, mas sim se impregnar doambiente, captar a vida do canal, muito diferente do que conhecia. Assegurara-se de quepoderiam lhe emprestar uma bicicleta caso desejasse alcanar algum barco.

    O encarregado da eclusa lhe fornecera o Guia Oficial da Navegao Interior, em que localidades

    desconhecidas como Dizy adquirem, por razes topogrficas, ou em virtude de uma ligao, deum cruzamento, da presena de um porto, de um guindaste ou at de um posto de declarao,uma importncia insuspeita. Procurava seguir, mentalmente, barcaas e carreteiros: Ay PortoEclusa n? 13. Mareuil-sur-Ay Estaleiro de construo naval Porto Cmara de viragem Eclusa n? 12Cota 74,36... Seguiam-se Bisseuil, Tours-sur-Marne, Conde, Aigny... No outro extremo do canal,para l do planalto de Langres, que os barcos subiam de eclusa em eclusa, voltando a descerpela outra vertente, atravessando Sane, Chalon, Mcon, Lyon...

    O que esta mulher veio fazer aqui? Numa estrebaria, com prolas nas orelhas, pulseira elegante,sapatos de camura brancos! Devia ter chegado ali viva, uma vez que o crime fora cometido

    depois das dez horas da noite. Mas como? Por qu? E ningum ouvira nada! No tinha gritado! Enem os dois carreteiros haviam acordado! No fosse o chicote que um deles perdera e o cadvers teria sido descoberto quinze dias ou um ms mais tarde, por acaso, quando a palha fosseremovida! E outros carreteiros teriam ido para ali dormir ao lado do corpo da mulher!

    Apesar da chuva fria, havia algo de pesado e implacvel na atmosfera. E o ritmo de vida eralento. Ps calados com botas ou com tamancos, se arrastavam sobre as paredes da eclusa ouao longo do caminho de sirga. Cavalos, completamente encharcados, esperavam a subida donvel de gua para voltar a partir, se firmando nas patas posteriores, se estendendo num esforoprogressivo. E como na vspera, a noite chegava. As barcaas que subiam o rio j no

    prosseguiam o seu caminho e eram amarradas para passar a noite, enquanto os barqueiros,entorpecidos, avanavam aos grupos em direo ao caf.

    Maigret foi dar uma vista de olhos ao quarto que acabavam de lhe preparar, ao lado do dono docaf. Demorou-se uns dez minutos, trocou de calado e limpou o cachimbo. No momento emque descia, um iate pilotado por um marinheiro de impermevel avanava lentamente junto margem, manobrava fazendo marcha r e parava, sem qualquer embate, entre dois postes deamarrao. O marinheiro efetuou todas as manobras sozinho. Pouco depois, saram doishomens da cabina, olharam em redor com enfado e acabaram por se dirigir para o Caf de laMarine. Tambm eles envergavam impermeveis, mas quando os despiram, ficaram em camisa

    de flanela, aberta no peito, e calas brancas. Os barqueiros examinaram-nos sem que os recm-chegados manifestassem o menor mal-estar. Pelo contrrio! Aquele cenrio parecia lhes serfamiliar.

    Um deles era alto, encorpado, de cabelo grisalho, com uma tez cor de tijolo e olhos salientes,com um olhar turvo que passava pelas pessoas e pelas coisas como se no as visse. Deixou-secair em cima de uma cadeira de palha, puxou uma segunda cadeira sobre a qual apoiou os ps eestalou os dedos a chamar o dono do caf. O companheiro, que devia ter uns vinte e cinco anos,lhe falava em ingls com uma indolncia que denotava snobismo. Foi ele que pediu, semqualquer sotaque:

    Tem champanhe natural?... No espumante.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    6/69

    - 6 de 69 -

    Tenho, sim. Traga-nos uma garrafa. Fumavam cigarros com ponta de papelo, importados da Turquia.

    A conversa dos barqueiros, interrompida por instantes, ia sendo retomada progressivamente.Pouco depois de o dono do caf ter servido o vinho, o marinheiro entrou no caf, envergando,

    tambm ele, calas brancas e uma camisa listrada branca e azul.

    Estamos aqui, Vladimir... O mais gordo bocejava, exprimindo grande enfado. Esvaziou ocopo e fez cara de quem no tinha ficado completamente satisfeito. Outra garrafa! Disse, se dirigindo ao mais novo. E este repetiu, mais alto, como seestivesse habituado a transmitir deste modo as ordens: Outra garrafa! Do mesmo! Maigret saiu do seu canto, onde se instalara diante de umacaneca de cerveja. Peo desculpas, meus senhores... Do-me licena para fazer uma pergunta? O mais velhoapontou para o companheiro com um gesto que significava se dirija a ele! N~o se mostrava

    surpreso nem interessado. O marinheiro ia bebendo e cortando a ponta de um charuto. Chegaram pelo Marne? Pelo Marne, naturalmente... Ficaram atracados longe daqui, a noite passada? O gordo virou a cabea e disse emingls: Diga-lhe que no tem nada com isso!

    Maigret fingiu no entender e, sem acrescentar nada, tirou da carteira a fotografia do cadver epousou-a sobre o oleado castanho da mesa. Os barqueiros, sentados ou de p junto ao balco,seguiam a cena com os olhos. O dono do iate mal mexeu a cabea para observar a fotografia.

    Depois examinou Maigret e suspirou:

    Polcia? Tinha um forte sotaque ingls e uma voz cansada. Polcia Judiciria! Foi cometido aqui um crime a noite passada. Ainda no foi possvelidentificar a vtima. Onde est? Perguntou o outro, se levantando e apontando para a fotografia. Na morgue de pernay. Conhece-a?

    O rosto do ingls se mantinha impenetrvel. Maigret notou que o seu enorme pescoo,apoplctico, se tornara violceo. Pegou na boina branca, p-la sobre a cabea calva e

    resmungou primeiro em ingls se virando para o companheiro:

    Mais complicaes! Por fim, indiferente ateno dos barqueiros, declarou expelindouma baforada do cigarro: minha mulher!

    Ouviu-se mais claramente o rudo da chuva nas vidraas e o guinchar das manivelas da eclusa. Osilncio durou alguns segundos, absoluto, como se toda a vida tivesse ficado suspensa.

    Voc paga, Willy... O ingls ps o impermevel sobre as costas, sem o vestir, eresmoneou para o comissrio Maigret:

    Venha ao barco... O marinheiro a quem chamara Vladimir acabou a garrafa dechampanhe, partindo depois tambm juntamente com Willy.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    7/69

    - 7 de 69 -

    A primeira coisa que o comissrio viu ao entrar a bordo foi uma mulher de roupo, descala,cabelo em desalinho, que dormitava num beliche forrado de veludo gren. O ingls lhe tocou noombro e, com a mesma fleuma anterior, num tom isento de galantaria, ordenou:

    Saia...

    Depois ficou espera, o olhar errando pela mesa de abrir e fechar, sobre a qual havia umagarrafa de usque e meia dzia de copos sujos, bem como um cinzeiro abarrotado de guimbas.Maquinalmente, acabou por se servir do usque, empurrando de seguida a garrafa na direo deMaigret com um gesto que significava se quiser.... Uma barcaa passava ren te s vigias e ocarreteiro, a cinquenta metros de distncia, parava os seus cavalos, cujos chocalhos se ouviam.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    8/69

    - 8 de 69 -

    CAPTULO 2OS OCUPANTES DO SOUTHERN CROSS

    Maigret era quase to alto e forte como o ingls. No Quai ds Orfvres, a sua placidez era

    lendria. Desta vez, no entanto, se sentia impaciente perante a calma do seu interlocutor. E essacalma parecia ser a regra a bordo. Desde o marinheiro Vladimir, at mulher a quem acabavamde interromper o sono, todos tinham o mesmo ar indiferente ou embrutecido. Dir-se-ia gentearrancada da cama a seguir a uma noite de bebedeira. Um pormenor entre muitos: ao selevantar e ao procurar um mao de cigarros, a mulher reparou na fotografia que o inglspousara sobre a mesa e se molhara no curto trajeto entre o Caf de La Marine e o iate.

    Mary? Perguntou ela com um ligeiro estremecimento. Mary, yes! E foi tudo! Saiu por uma porta que dava para a proa e devia conduzir aoslavabos.

    Willy chegou ao convs e se inclinou diante da escotilha. A sala era exgua. As divisrias emmadeira de acaju envernizada eram finas e devia se ouvir tudo do outro lado, pois o proprietrioprimeiro olhou na direo da proa, de sobrolho franzido, e depois para o lado onde seencontrava o jovem a quem disse com certa impacincia:

    Ento! Entre! E para Maigret, bruscamente: Sir Walter Lampson, coronel aposentadodo Exrcito da ndia! Acompanhou a sua prpria apresentao com uma pequena saudao secae um gesto apontando para a banqueta. E este senhor? Indagou o comissrio, se virando para Willy. Um amigo... Willy Marco. Espanhol? O coronel encolheu os ombros. Maigret escrutava a fisionomiamanifestamente judaica do jovem. Grego por parte do meu pai e hngaro por parte da minha me. Vejo-me obrigado a lhe fazer umas quantas perguntas, Sir Lampson... Willy se sentaracom desenvoltura sobre as costas de uma cadeira e se balanava fumando um cigarro. Estou ouvindo! Mas no momento em que Maigret ia falar, o proprietrio do iateexclamou:Quem foi? J se sabe? Referia-se ao autor do crime. No se descobriu nada at agora. Por isso seria muito til se me esclarecesse algunsaspetos... Com uma corda? Voltou a perguntar, levando a mo ao pescoo. No! O assassino estrangulou-a com as mos. Quando foi que viu Mrs. Lampson pelaltima vez? Willy... Willy era decididamente o homem para todo o servio, desde encomendar asbebidas a responder s perguntas feitas ao coronel. Em Meaux, quinta-feira noite... Respondeu. E no comunicou o desaparecimento polcia? Sir Lampson se servia de outro usque. Para qu? Ela fazia o que queria... Desaparecia com frequncia? Por vezes... A gua fustigava o convs, por cima das suas cabeas. O crepsculo davalugar noite e Willy Marco apertou o interruptor eltrico.

    Os acumuladores esto carregados? Perguntou-lhe o coronel em ingls. No vacontecer o mesmo que aconteceu no outro dia...

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    9/69

    - 9 de 69 -

    Maigret se esforava por dar um sentido preciso ao interrogatrio, mas estava constantementea ser distrado por novas impresses. Sem querer, olhava para tudo, pensava em tudo aomesmo tempo, de modo que tinha a cabea fervendo, cheia de ideias pouco claras. Sentia-semais incomodado que indignado perante aquele homem que, no Caf de la Marine, dera uma

    olhada fotografia e declarara sem o mnimo estremecimento: minha mulher.... E revia adesconhecida de roup~o que perguntara: Mary? E agora ali estava Willy Marco, se balanandoincessantemente, cigarro na boca, enquanto o coronel se preocupava com os acumuladores! Noambiente neutro do seu gabinete, o comissrio teria conduzido o interrogatrio de formaordenada. Aqui, comeou por despir o casaco, sem que a isso o convidassem, e pegou nafotografia, sinistra, como todas as fotografias de cadveres.

    Vive na Frana? Frana, Inglaterra... Por vezes Itlia... Sempre com o meu barco, o Southern Cross... E agora vem de...?

    Paris! Replicou Willy, a quem o coronel fizera sinal para responder. Estivemos l duassemanas, depois de termos passado um ms em Londres... Viviam a bordo? No! Deixamos o barco em Auteuil e nos instalamos no Hotel Raspail, em Montparnasse. O coronel, a esposa, a pessoa que vi h pouco e o senhor? Sim! Madame Negretti, que viu h pouco, viva de um deputado chileno. Sir Lampsonsoltou um suspiro de impacincia e voltou a falar em ingls: Despache-se na explicao, se no amanh de manh ainda estaremos aqui. Maigret nopestanejou. S que, a partir de ento, passou a fazer as perguntas com uma certa brutalidade. Madame Negretti no sua familiar? Perguntou a Willy.

    De forma alguma. Ento, no nada, nem de si nem do coronel... Importa-se de me dizer como estodistribudas as cabines? Sir Lampson engoliu um bom trago de usque, tossiu e acendeu umcigarro. proa ficam os aposentos da equipagem, onde dorme o Vladimir. E um antigo aspirantea oficial da marinha russa... Fazia parte da frota Wrangel... No h mais marinheiros? Nem criados? Vladimir trata de tudo. E que mais? Entre os aposentos da equipagem e esta sala temos, direita, a cozinha, esquerda, os

    lavabos... E popa? O motor... So, portanto, quatro nesta cabine? H quatro camas... As duas banquetas que est vendo e se transformam em divs, edepois... Willy se dirigiu para uma divisria, abriu uma espcie de gaveta comprida e ps adescoberto uma cama completa. H uma de cada lado, como v... Efetivamente, Maigret comeava a entender melhor, ecompreendia que no demoraria a estar ao corrente dos segredos daquela singular coabitao.Os olhos do coronel estavam glaucos e hmidos, como os de um bbedo. Parecia no ter

    qualquer interesse na conversa. O que aconteceu em Meaux? Antes de mais, quando chegaram?

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    10/69

    - 10 de 69 -

    Na quarta-feira, ao fim da tarde. Meaux fica a um dia de Paris. Tnhamos trazido duasamigas de Montparnasse... Continue. O tempo estava esplndido. Danamos no convs ao som do fongrafo. Pelas quatro damanh, levei as nossas amigas ao hotel porque tinham de apanhar o trem no dia seguinte. Onde estava amarrado o Southern Cross? Perto da eclusa. Houve algum acontecimento digno de nota na quinta-feira? Levantamo-nos muito tarde, depois de termos sido acordados vrias vezes por umguindaste que carregava pedra para uma barcaa, muito perto de ns... O coronel e eu tomamosum aperitivo na cidade. tarde... Espere... O coronel dormiu... Eu joguei xadrez com Gloria...Gloria Madame Negretti... No convs? Sim... Creio que Mary tinha ido passear. E no voltou?

    Sim, claro! Ela jantou a bordo... O coronel props que fssemos danar nessa noite eMary se recusou a nos acompanhar. Ao regressarmos, cerca das trs da manh, j no estavamais aqui. No a procuraram? Sir Lampson tamborilava na mesa envernizada. O coronel j lhe disse que a esposa era livre de fazer o que bem quisesse... Esperamos porela at sbado, depois partimos. Ela conhecia o itinerrio, sabia onde poderia se juntar a ns... Vo para o Mediterrneo? Para a ilha de Porquerolles, em frente de Hyres, onde passamos a maior parte do ano. Ocoronel comprou um antigo forte l, o Petit Langoustier... Durante o dia de sexta-feira, estiveram todos a bordo? Willy hesitou ligeiramente, mas

    logo respondeu com certa vivacidade: Eu fui a Paris... Fazer o qu? Riu, contorcendo a boca, com um riso desagradvel. J lhe falei nas nossas duas amigas. Queria voltar a v-las... A uma delas, pelo menos... Quer me dar os nomes? Os seus nomes prprios so Suzy e Lia. Esto todas as noites em La Coupole... Vivem nohotel que fica na esquina da Rue de La Grande-Chaumire. Profissionais? So umas jovens amveis... A porta se abriu. Madame Negretti, que agora envergava umvestido de seda, apareceu.

    Posso entrar? O coronel lhe respondeu com um encolher de ombros. J devia estar noterceiro usque, e tomava-os com muito pouca gua. Willy... Pergunte... Como so as formalidades...

    Maigret no precisava de tradutor para compreender o ingls. Aquela forma despreocupada edisparatada que ele tinha de fazer as perguntas comeava a aborrec-lo.

    evidente que ter, antes de mais, de reconhecer o corpo. Depois da autpsia, vai porcerto obter autorizao para pod-la sepultar. Ter de indicar o cemitrio e... Podemos ir j tratando disso? H por aqui alguma garagem de onde se possa mandar vir

    um carro? Em pernay...

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    11/69

    - 11 de 69 -

    Willy... Telefone e pea um carro... Pode ser j, no assim? H um telefone no Caf de la Marine! Respondeu Maigret, enquanto o jovem, de mauhumor, vestia o impermevel. Onde est o Vladimir? Ouvi-o entrar h pouco... Diga-lhe que jantaremos em pernay.

    Madame Negretti, que era gorda, com um cabelo preto luzidio e uma ctis muito clara, sesentara a um canto, por baixo do barmetro, e assistia cena, queixo apoiado sobre a mo, comum ar ausente ou em profunda reflexo.

    Vem conosco? Perguntou-lhe Sir Lampson. No sei... Ainda chove? Maigret estava irritado e a ltima pergunta do coronel no foi denatureza a acalm-lo. Quantos dias acha necessrio, para tudo? Muito duro, o comissrio ripostou:

    Incluindo o enterro, suponho? Yes... Trs dias? Se os mdicos legistas derem autorizao e o juiz de instruo no se opuser, poder,teoricamente, ter tudo acabado em vinte e quatro horas... Teria o outro percebido a amargaironia daquelas palavras?

    Maigret sentiu necessidade de olhar para a fotografia: um corpo quebrado, descomposto,maltratado, um rosto que fora bonito, bem maquiado, com p-de-arroz nas faces e batomperfumado nos lbios, mas cujo esgar era agora impossvel de contemplar sem sentir um arrepiona espinha.

    Uma bebida? No, obrigado. Nesse caso... Sir Walter Lampson se levantou para dar a entender que considerava oencontro terminado e chamou: Vladimir! Terei, provavelmente, outras perguntas a lhe fazer disse o comissrio. possvel queme veja obrigado a inspecionar a fundo o iate... Amanh... Primeiro, pernay, no assim? Quanto tempo leva o carro? Vou ficar sozinha? Perguntou Madame Negretti assustada. Com o Vladimir. Mas pode vir...

    No estou arrumada... Willy entrou de repente, tirou o impermevel encharcado eanunciou: O carro chega dentro de dez minutos. Ento, comissrio, se no se importar... O coronel apontava para a porta. Precisamosnos arrumar...

    Ao sair, Maigret teria partido com todo o gosto o rosto de um deles, de to enervado queestava. Ouviu a escotilha se fechar atrs de si. No exterior, se via apenas a luz de oito vigias. Amenos de dez metros, se perfilava a popa atarracada de uma barcaa e, esquerda, na margem,um grande monte de carvo. Talvez fosse uma iluso, mas parecia a Maigret que a chuva

    redobrara de intensidade, que o cu estava mais negro e mais baixo do que alguma vez vira.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    12/69

    - 12 de 69 -

    Encaminhou-se para o Caf de la Marine, onde as vozes se calaram de repente sua entrada.Todos os barqueiros estavam ali reunidos volta do balco. O encarregado da eclusa estavaapoiado sobre ele, junto de uma jovem, uma robusta ruiva de tamancos. Sobre o oleado dasmesas se acumulavam garrafas, copos e vinho derramado.

    Ento, a mulher dele? Acabou por perguntar o dono do caf, se enchendo de coragem. ! D-me uma cerveja! No! D-me antes qualquer coisa quente... Um grogue...

    Pouco a pouco, os barqueiros recomearam as suas conversas. A jovem trouxe o copofumegante, roando com o avental no ombro de Maigret. E o comissrio imaginava as trspersonagens a se arranjar na cabine estreita, alm de Vladimir. Imaginava muitas outras coisas,mas tranquilamente e no sem repugnncia. Conhecia a eclusa de Meaux, tanto maisimportante que, tal como a de Dizy, fazia a ligao entre o Marne e o canal onde se situa umporto em forma de meia-lua, sempre entupido de barcaas apertadas umas contra as outras. A,no meio dos barqueiros, o Southern Cross, iluminado, com as duas mulheres de Montparnasse, a

    gorda Gloria Negretti, Madame Lampson, Willy e o coronel danando no convs ao som dofongrafo, bebendo...

    A um canto do Caf de la Marine, dois homens de camisa azul comiam salsicho, que iamcortando com o canivete, tal como o po, e bebiam vinho tinto. E algum relatava um acidenteque ocorrera nessa manh~ na galeria, ou seja, no local em que o canal, para atravessar a partemais alta do planalto de Langres, se torna subterrneo numa extenso de oito quilmetros. Umbarqueiro ficara com o p preso na corda dos cavalos. Gritara sem conseguir que o carreteiro oouvisse, e no momento em que os animais retomaram a marcha, depois de uma paragem, caiuna gua. O tnel no era iluminado. O irmo do barqueiro, a barcaa se chamava Ls Deux

    Frres, saltara para a gua do canal. S tinham recolhido um, j morto. Continuavam procurado outro... Faltava-lhes pagar apenas duas anuidades do barco. Mas parece que, de acordo como contrato, as mulheres j no precisaro pag-las... Entrou um motorista de chapu de couro,procurando algum com o olhar:

    Quem foi que mandou vir um carro? Eu! Disse Maigret. Vi-me obrigado a deix-lo na ponte... No estou para me enfiar no canal... Vai comer aqui? Inquiriu o dono do caf ao comissrio. Ainda no sei.

    Saiu com o motorista. O Southern Cross, pintado de branco, sobressaa no fundo chuvoso comouma mancha leitosa, e dois garotos de uma barcaa vizinha observavam-no no exterior, apesardo aguaceiro, com admirao.

    Joseph! Ouviu-se gritar uma mulher. Traga o seu irmo para dentro! Vai levar uma surra! Southern Cross... Leu o motorista sobre a proa. So ingleses? Maigret atravessou aprancha de acesso e bateu. Willy, j pronto no seu elegante terno escuro, abriu a porta, eMaigret entreviu o coronel, congestionado, sem casaco, a quem Gloria Negretti punha agravata. A cabine cheirava a gua-de-colnia e a brilhantina.

    O carro j chegou? Inquiriu Willy. J est a?

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    13/69

    - 13 de 69 -

    Na ponte, a dois quilmetros... Maigret no entrou. Ouviu vagamente o coronel e ojovem discutirem em ingls. Por fim, Willy foi lhe dizer: Ele no quer sujar os ps na lama. O Vladimir vai lanar o bote na gua... Iremosencontrar consigo l. Hum, hum! Resmoneou o motorista que o ouvira.

    Dez minutos mais tarde, Maigret e o motorista andavam de um lado para o outro, impacientes,pela ponte de pedra, junto ao carro, com os mnimos acesos. Decorreu cerca de meia hora at seouvir o zumbido de um pequeno motor de dois tempos. Por fim, Willy gritou:

    aqui, comissrio? Sim, aqui!

    O bote com motor descreveu um crculo e acostou. Vladimir ajudou o coronel a sair e recebeuordens para o regresso. No carro, Sir Lampson no disse palavra. Apesar da sua corpulncia, era

    de uma elegncia notvel. De tez rosada, muito cuidado, fleumtico, era a imagem viva de umgentleman ingls tal como representado nas gravuras do sculo passado. Willy Marco fumavacigarro aps cigarro. Maigret reparou que usava um anel grande em platina, ornado com umgrande diamante amarelo. Quando entraram na cidade, onde a calcada brilhava com a chuva, omotorista correu o vidro e perguntou:

    A que endereo devo...? Para a morgue! Replicou o comissrio.

    Foi breve. O coronel mal abriu a boca. No local, havia trs corpos estendidos e um vigilante.

    Todas as portas j estavam fechadas chave. Ouviram-se ranger as fechaduras. Foi precisoacender a luz. Maigret levantou o lenol.

    Yes! Willy estava mais emocionado, mais impaciente por fugir ao espetculo. Tambm a reconhece? Sim, ela... Como ela est... No terminou a frase. Empalidecia a olhos vistos. Os lbiossecavam. Se o comissrio no o tivesse levado para o exterior, teria, sem dvida, passado mal. J sabe quem foi? Articulou o coronel. Talvez se pudesse distinguir na sua voz umaperturbao, quase imperceptvel. Mas no seria o efeito dos numerosos copos de usque?Ainda assim, Maigret reparou nessa ligeira diferena.

    Na sada, pararam numa calada mal iluminada por um poste a gs, diante do carro cujomotorista permanecera em seu lugar.

    Janta conosco, no verdade? Perguntou Sir Lampson, sem se virar sequer para Maigret. Obrigado, mas vou aproveitar, j que aqui estou, para tratar de alguns assuntos... Ocoronel se inclinou, sem insistir. Vamos, Willy... Maigret ficou por momentos entrada da morgue, enquanto o jovem,depois de conferenciar com o ingls, se aproximou do motorista.

    Tratava-se de saber qual seria o melhor restaurante da cidade. Passava gente, bem como carroseltricos, iluminados e ruidosos. A alguns quilmetros dali, se estendia o canal e, ao longo deste,

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    14/69

    - 14 de 69 -

    junto s eclusas, estavam amarradas as barcaas que partiriam s quatro da manh, no meio deum odor a caf quente e estrebaria.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    15/69

    - 15 de 69 -

    CAPTULO 3O COLAR DE MARY

    Quando Maigret se deitou no quarto cujo odor caraterstico no deixou de incomod-lo, seentreteve durante muito tempo a relacionar duas imagens. Primeiro, em pernay, atravs das

    vidraas iluminadas de La Bcasse, o melhor restaurante da cidade, o coronel e Willy,corretamente sentados mesa, rodeados pelos chefes de mesa, de grande classe...

    Passara menos de meia hora depois da visita morgue. Sir Walter Lampson se mantinha umpouco hirto, e a impassibilidade do seu rosto corado, coroado por raros cabelos prateados, eraprodigiosa. Comparada com a sua elegncia ou, mais exatamente, com a sua estirpe, a de Willy,ainda que desenvolta, mais parecia postia. Maigret jantara noutro local, contataratelefonicamente o Comissariado e a seguir a polcia de Meaux. Por fim, palmilhara sozinho, nanoite chuvosa, o longo caminho de regresso. Avistara as vigias iluminadas do Southern Cross,em frente do Caf de la Marine. E tivera a curiosidade de se apresentar no iate com o pretexto

    de ali ter esquecido o cachimbo. Fora l que retivera a segunda imagem: na cabine de acaju,Vladimir, ainda com camisa de marinheiro, riscada, cigarro na boca, estava sentado em frente deMadame Negretti, cujos cabelos oleosos lhe pendiam de novo sobre o rosto. Jogavam cartas, osessenta e seis, um jogo da Europa Central. Houve um ligeiro momento de surpresa. Mas nemo menor estremecimento! As respiraes haviam ficado suspensas durante um segundo. Logodepois, Vladimir se levantara para procurar o cachimbo. Gloria Negretti indagara receando: Elesainda no vieram... Sempre... Era a Mary?. O comiss|rio estivera quase pegando na bicicleta eseguindo o canal, a fim de alcanar as barcaas que tinham passado a noite de domingo parasegunda-feira em Dizy. A viso do caminho alagado e do cu negro tinham-no desencorajado.

    * * *

    Quando bateram porta, se deu conta, antes mesmo de abrir os olhos, de que a luz pardacentada alvorada j entrava pela janela do quarto. Tivera um sono agitado, cheio de cavalos quebatiam com as patas no cho, de chamamentos confusos, de passos na escada e do tinir decopos e, enfim, de um relento de caf e rum quente que subia at ele.

    Quem ? Lucas! Posso entrar? E o inspetor Lucas, que trabalhava quase sempre com Maigret,empurrou a porta e apertou a mo transpirada que o chefe lhe estendia por uma abertura noslenis. J conseguiu alguma coisa? No est demasiado cansado, meu velho? No muito! Logo a seguir ao seu telefonema, fui ao hotel em questo, na esquina da Ruede La Grande-Chaumire. As jovens no estavam l. Para o caso de ser necessrio, colhiinformaes sobre elas... Suzane Verdier, conhecida por Suzy, nascida em Honfleur em 1906...LiaLauwenstein, nascida no Gro-Ducado do Luxemburgo em 1903... A primeira chegou a Paris aquatro anos como criada para todo o servio e trabalhou depois algum tempo como modelo.Lauwenstein viveu sobretudo na Cote dAzur... Nem uma nem outra, me assegurei disso,figuram nos registos da polcia de costumes... Mas como se figurassem! Meu velho, se importaria de me passar o cachimbo e encomendar o caf? Ouvia-se oredemoinho da gua na eclusa e o funcionamento lento de um motor a diesel. Maigret saiu da

    cama, se dirigiu a um lavatrio irrisrio e colocou gua fresca na bacia. Continua...

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    16/69

    - 16 de 69 -

    Desloquei-me a La Coupole, como me tinha dito... No se encontravam l, mas todos osempregados as conheciam. Disseram-me que as procurasse no Dingo e, depois, em La Cigogne...Por fim, encontrei-as num pequeno bar americano cujo nome no recordo, na Rue Vavin,sozinhas, no muito satisfeitas... A Lia no desinteressante... Tem um modo de ser muitoprprio... A Suzy uma jovem loura, sem maldade, que teria dado uma boa me de famlia caso

    tivesse ficado na provncia... Tem o rosto cheia de sardas e... V se me encontra para a uma toalha, interrompeu-o Maigret, com o rosto escorrendogua e os olhos fechados. A propsito, continua a chover? Quando cheguei, no chovia, mas no tarda a recomear. s seis da manh, o nevoeiroat gelava os pulmes... Ofereci pois um copo s meninas... Encomendaram logo sanduches, oque no me espantou nada. Acabei por reparar no colar de prolas que Lauwenstein trazia nopescoo. Por brincadeira, mordi uma das prolas... So o que h de mais autntico. No umcolar de milionria americana, mas sempre qualquer coisa para cem mil francos... Ora, quandojovens daquele gnero preferem sanduches a coquetis...

    Maigret, que fumava o seu cachimbo, foi abrir a porta jovem que trazia o caf. Depois, atravsda janela, deu uma olhadela no iate, onde ainda no se viam vestgios de vida. Uma barcaapassava perto do Southern Cross. O barqueiro apoiado no leme observava o iate com umaadmirao invejosa.

    Ento, continua... Levei-as para outro local, para um caf sossegado... A, lhes mostrei de repente o meudistintivo profissional, apontei para o colar e atirei ao acaso: S~o as prolas de Mary Lampson,n~o s~o?. As minhas meninas n~o sabiam, provavelmente, que ela tinha morrido. Em todo ocaso, se o sabiam, representaram o papel na perfeio. Levaram alguns minutos para confessar.

    Foi Suzy que acabou por aconselhar { outra: Conte-lhe a verdade, j| que ele sabe tanto! E foiuma bela histria... Quer ajuda, chefe?

    De fato, Maigret se esforava em vo por apanhar os suspensrios que lhe pendiam nas pernas.

    Antes de mais nada, o ponto principal: juraram as duas que foi a prpria Mary Lampsonquem lhes deu as prolas na sexta-feira passada, em Paris, onde foi visit-las... Deve entenderisto melhor do que eu, que s conheo o caso pelo que me disse ao telefone... Perguntei seMadame Lampson fora acompanhada do Willy Marco. Afirmam que no, que desde quinta-feiraque no veem o Willy, depois de sarem de Meaux...

    Mais devagar! Interrompeu Maigret, que fazia o n da gravata diante de um espelhoacinzentado que lhe deformava a imagem. Na quarta-feira noite, o Southern Cross chega aMeaux. As nossas duas jovens esto a bordo. Passam a noite alegremente, em companhia docoronel, de Willy, de Mary Lampson e da Negretti... Suzy e Lia so levadas ao hotel muito tarde eapanham o trem na quinta-feira de manh.... Tero lhe dado dinheiro? Quinhentos francos, dizem elas. Conheceram o coronel em Paris? Uns dias antes... E o que aconteceu a bordo do iate? Lucas fez um sorriso estranho. Coisas no muito bonitas... Parece que o ingls s vive para usque e mulheres... Madame

    Negretti amante dele... E a mulher sabia?

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    17/69

    - 17 de 69 -

    Ora! Ela prpria era amante do Willy... O que no os impedia de arranjarem mulherescomo Suzy e Lia, compreende? E o Vladimir tambm danava com umas e com outras... Demadrugada, houve uma disputa, porque Lia Lauwenstein considerava que os quinhentos francosno passavam de uma esmola... O coronel nem sequer lhe respondeu, deixando esse assuntopara Willy... Estavam todos bbedos. A Negretti dormia na tolda e o Vladimir teve de transport-

    la para a cabine.

    Parado diante da janela, Maigret deixava errar o olhar pela linha negra do canal, avistando esquerda o pequeno trem Decauville que continuava a carregar terra e cascalho. O cu estavapardacento, com nuvens baixas, escuras, mas no chovia.

    E que mais? praticamente tudo... Na sexta-feira, a Mary Lampson teria ido a Paris, a La Coupole,onde se teria encontrado com as nossas duas meninas... Ela lhe teria dado o colar... Ah! Um pequeno presente sem importncia...

    Bem, no foi nada disso! Foi-lhes entregue com a incumbncia de venderem e lheentregarem metade do valor da venda... Ela afirmava que o marido no lhe dava dinheironenhum...

    O papel de parede do quarto tinha um padro de florezinhas amarelas. O jarro de esmalteintroduzia um toque de lividez. Maigret viu o encarregado da eclusa em companhia de umbarqueiro e do seu carreteiro se dirigirem apressadamente para o caf para beber um copo derum.

    Foi tudo o que obtive delas! Terminou Lucas. Deixei-as s duas da manh,

    encarregando o inspetor Dufour de vigi-las discretamente. Depois fui ao Comissariadoconsultar os arquivos, conforme as suas instrues... Encontrei a ficha de Willy Marco, expulsoh quatro anos do Mnaco na sequncia de uma questo de jogo pouco clara; no ano seguinte,teve problemas em Nice: uma americana se queixou de ele t-la aliviado de umas joias. A queixa,no entanto, foi retirada, no sei por que razo, e Marco deixado em paz. Acha que foi ele que...? No, no acho nada. E acredite que sou sincero ao diz-lo. No esquea que o crime foicometido no domingo depois das dez da noite, quando o Southern Cross estava acostado em LaFert-sous-Jouarre... E o que pensa do coronel?

    Maigret encolheu os ombros e apontou para Vladimir que saa da escotilha da proa e se dirigiapara o Caf de la Marine, envergando calas brancas, alpercatas e camisa de l, com uma boinade marinheiro americano sobre a orelha.

    Chamam Monsieur Maigret ao telefone, gritou a ruiva atravs da porta. Venha comigo, meu velho... O aparelho ficava no corredor, ao lado de um cabide. Al? de Meaux? Como diz? Sim, La Providence... Esteve todo o dia de quinta-feiracarregando em Meaux?... Partiu na sexta-feira s trs da manh... Mais nenhuma barcaa? OLEco III... um barco-cisterna, no assim? Sexta-feira noite, em Meaux... Partiu sbado demanh... Agradeo-lhe muito, comissrio... Sim, interrogue-os, para o que der e vier... Manter-

    me-ei aqui!

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    18/69

    - 18 de 69 -

    Lucas ouvira a conversa sem entender o sentido. Maigret no tivera tempo de abrir a boca paralhe explicar, pois aparecera um agente de bicicleta porta.

    Uma comunicao da Identidade Judiciria... Urgente! O agente estava sujo de lama at cintura.

    V se secar um pouco e beber um grogue... Maigret levou o inspetor para o caminho desirga, abriu a nota e leu a meia voz: Resumo das primeiras anlises feitas a respeito do casode Dizy: encontrados nos cabelos da vtima numerosos vestgios de resina, bem como pelos decavalo castanho-avermelhados. As manchas do vestido so de petrleo. No momento da morte,o estmago continha vinho tinto e carne de vaca em conserva, semelhante que se encontra venda sob a designao de corned beef. Oito cavalos em cada dez tm a pelagem castanho-avermelhada! Suspirou Maigret.

    No caf, Vladimir se informava sobre o local mais prximo para fazer compras e tinha trspessoas lhe dando essas indicaes, incluindo o agente que viera de bicicleta de pernay que,

    afinal, acabou por sair em direo ponte de pedra na companhia do marinheiro. Seguido deLucas, Maigret se dirigiu para a estrebaria, onde se encontravam, desde a noite anterior, almdo cavalo cinzento do dono do caf, uma gua ferida no joelho de que falavam em abater.

    No aqui que pode ter apanhado a resina... Observou o comissrio.

    Fez duas vezes o caminho do canal estrebaria, contornando as construes.

    Vende resina? Perguntou ao dono do caf que empurrava um carrinho de mo cheio debatatas.

    Talvez no seja propriamente resina... Chamamos-lhe alcatr~o de calafetagem...Revestimos com ele as barcaas de madeira, acima da linha-de-gua. Na parte inferior,contentamo-nos com o alcatro de gs, que vinte vezes mais barato. E tem disso? H sempre uma vintena na loja, mas com este tempo, no se vende. Os barqueirosesperam pelo tempo quente para voltar a consertar os barcos... LEco III de madeira? De ferro, como a maior parte dos barcos a motor. E La Providence? De madeira... Descobriu alguma coisa? Maigret no respondeu. Sabe o que eles dizem?

    Continuou o homem, que largara o carrinho. Eles, quem? As pessoas do canal, os barqueiros, os pilotos, os encarregados das eclusas. evidenteque um automvel teria dificuldade em fazer o caminho de sirga, mas uma motocicleta!... E umamoto pode vir de muito longe at aqui sem deixar mais rastro do que uma bicicleta...

    A porta da cabine do Southern Cross se abria nesse momento, mas ainda no se via ningum. Derepente, um ponto do cu se tornou amarelado, como se o sol fosse finalmente romper asnuvens. Silenciosos, Maigret e Lucas andavam para trs e para frente ao longo do canal. Notinham ainda decorrido cinco minutos desde que o vento comeara a vergar os juncos quando a

    chuva chegou. Maigret estendeu a mo num gesto maquinal. Tambm maquinalmente, Lucastirou do bolso uma bolsa de tabaco escuro e deu-a ao colega. Pararam um momento diante da

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    19/69

    - 19 de 69 -

    eclusa que estava vazia e que preparavam, j que um rebocador invisvel apitara trs vezes aolonge, o que significava que puxava trs embarcaes.

    Onde acha que estar La Providence a esta hora? Perguntou Maigret ao encarregado daeclusa.

    Deixe-me pensar... Mareuil... Conde... Em Aigny, h uma dezena de barcaas em fila que afaro perder tempo... A eclusa de Vraux s tem comportas em bom estado... Deve estar emSaint-Martin... longe?! Trinta e dois quilmetros... ELEcoII Devia estar em La Chausse, mas um barco quedescia o rio me disse ontem noite que ele tinha quebrado a hlice na eclusa 12... Por isso, devese encontrar em Tours-sur-Marne, a quinze quilmetros... A culpa deles! De resto, oregulamento probe que carreguem duzentas e oitenta toneladas, como teimam todos em fazer.

    * * *

    Eram dez horas da manh. Quando Maigret montou na bicicleta que alugara, enxergou ocoronel instalado numa cadeira de balano no convs do iate, abrindo os jornais de Paris que ocarteiro acabara de lhe entregar.

    No h nada de especial para fazer! Disse a Lucas. Mas se mantenha por aqui, no osperca de vista.

    A chuva estava diminuindo gradualmente. O caminho era sempre direto. Ao passar pela terceiraeclusa, o sol apareceu, ainda um pouco plido, fazendo brilhar as gotculas de gua sobre os

    juncos. De vez em quando, Maigret precisava descer da bicicleta para ultrapassar os cavalos deuma barcaa que, emparelhados, ocupavam toda a largura do caminho, avanando muitolentamente, num esforo que lhes realava todos os msculos. Dois animais eram conduzidospor uma menina dos seus oito a dez anos, vestido vermelho, que levava uma boneca penduradapor um brao.

    As aldeias, na sua maior parte, ficavam bastante afastadas do canal, de maneira que aquela faixaregular e plana de gua parecia se estender numa solido absoluta. Aqui e ali, um campo comhomens curvados sobre a terra escura. Era quase tudo bosques. E os juncos altos, de metro emeio a dois metros, aumentavam ainda mais a impresso de tranquilidade. Perto de uma

    pedreira, uma barcaa carregava cr, numa poeirada que deixava o casco todo branco, bemcomo os homens que se agitavam sua volta. Na eclusa de Saint-Martin, havia uma barcaa, masainda no era La Providence.

    Devem almoar no canal acima de Chlons! Disse-lhe a encarregada da eclusa, que ia evinha de uma comporta para outra, com dois garotos agarrados s saias.

    Maigret tinha um ar obstinado. Por volta das onze horas, ficou surpreso ao dar por si numcenrio primaveril, numa atmosfera vibrante de sol e de uma agradvel doura. Diante dele, ocanal se perfilava em linha reta numa distncia de seis quilmetros, bordejado dos dois lados por

    bosques de abetos. Ao fundo, se adivinhavam as paredes claras de uma eclusa cujas comportasdeixavam correr um filete de gua. A meio caminho, deu com uma barcaa parada, ligeiramente

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    20/69

    - 20 de 69 -

    atravessada no canal. Os seus dois cavalos, desatrelados, cabea enfiada num saco, comiamaveia, resfolgando. A primeira impresso alegre, ou pelo menos repousante! Nem uma casa vista. E os reflexos sobre a gua calma eram amplos e lentos.

    Depois de mais umas pedaladas, o comissrio viu, na popa da barcaa, uma mesa posta sob o

    toldo que protegia a zona do leme. O oleado que a cobria tinha um padro de quadradinhosazuis e brancos. Uma mulher de cabelo louro pousava na mesa uma travessa fumegante. Ao lerno casco bojudo e luzidio, La Providence, desceu da bicicleta. Um dos cavalos olhou-olongamente, abanou as orelhas e deu um relincho antes de se pr de novo a comer. Entre abarcaa e a margem, havia apenas uma prancha estreita e fina, que vergou com o peso deMaigret. Dois homens almoavam, seguindo-o com o olhar, enquanto a mulher se aproximava.

    Que deseja? Perguntou, abotoando o corpete semiaberto sobre o peito opulento. Tinhauma pronncia quase to cantante como a do Midi. No revelava qualquer perturbao.Esperava. Parecia proteger os dois homens com a sua jovial corpulncia.

    Uma informao respondeu o comissrio. Sabe, com certeza, que foi cometido umcrime em Dizy... Os homens do Castor et Pollux, que nos ultrapassou esta manh, nos contaram... verdade? Parece impossvel, no ? Por que teria sido? E no canal, onde vivemos to tranquilos!...Tinha o rosto barroso. Os dois homens continuavam a comer, no deixando de observarMaigret. Maquinalmente, este deu uma olhadela travessa cheia de uma carne escura cujo odorlhe dilatava as narinas. um cabrito que comprei esta manh na eclusa de Aigny... Queriainformaes? sobre ns, no ? Bem, ns partimos antes de o cadver ser descoberto... Apropsito, essa pobre mulher, j se sabe quem ?

    Um dos homens era de pequena estatura, cabelo escuro, bigodes pendentes, e todo eleemanava qualquer coisa de suave, de dcil. Era o marido. Contentou-se em cumprimentarvagamente o intruso, deixando mulher a tarefa de falar. O outro devia ter uns sessenta anos. Ocabelo, muito forte, mal cortado, era branco. Uma barba de trs ou quatro centmetros lhecobria o queixo e quase toda a face, de modo que, com as sobrancelhas bastante espessas,parecia to peludo como um animal. Em contraste, os olhos eram claros, inexpressivos.

    Ao seu carreteiro que eu queria fazer umas perguntas... A mulher riu. Jean? Devo preveni-lo que de poucas falas... o nosso urso! Veja-o comer... Mastambm o melhor carreteiro que se pode arranjar.

    O garfo do velho se imobilizara. Olhava para Maigret, e as suas pupilas eram de uma limpidezperturbante. Alguns aldees tm os olhares assim, e tambm certos animais habituados a serembem tratados mas que, de repente, so brutalizados. Exibia algo de inexprimvel, como quefechado sobre si mesmo.

    A que horas se levantou para tratar dos animais? s de sempre... A largura dos seus ombros contrastava espantosamente com o tamanhodas pernas, muito curtas. Jean se levanta todas as manhs s duas e meia! Interveio a mulher. Pode observar os

    nossos animais... So cuidados todos os dias como cavalos de luxo. E noite ningum oconsegue fazer beber um branco antes de t-los esfregado e limpo...

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    21/69

    - 21 de 69 -

    Dorme no estbulo? Jean parecia no compreender. Foi uma vez mais a mulher queapontou para uma construo mais alta no meio da barcaa. o estbulo! Disse ela. Dorme sempre nele. Ns temos a cabine na popa. Quer v-la?

    O convs estava meticulosamente limpo, os cobres mais brilhantes que os do Southern Cross. E

    quando a mulher abriu uma porta de madeira de pinho, encimada por uma escotilha de vidrocolorido, Maigret viu uma salinha enternecedora. Encontrava-se ali o mesmo mobilirio decarvalho, estilo Henrique III, que no mais tradicional dos interiores pequeno-burgueses. A mesaestava coberta com um napperon bordado com fios de seda de diferentes cores, e sobre elahavia jarras, fotografias emolduradas e uma jardineira cheia de plantas verdes. Havia ainda umbordado sobre o aparador. Os sofs estavam protegidos com uma cobertura de fil.

    Se o Jean quisesse, teramos lhe arranjado uma cama perto de ns, mas ele diz que sconsegue dormir no estbulo... Receamos que um dia leve um coice... Os animais conhecem-nobem, no , mas quando dormem...

    Pusera-se a comer, como faz uma dona de casa que prepara os petiscos para os outros e ficacom os piores pedaos para si sem sequer pensar nisso... Jean se levantara e olhava ora para oscavalos ora para o comissrio, enquanto o barqueiro enrolava um cigarro.

    E voc no viu nem ouviu nada? Inquiriu Maigret, fixando o carreteiro. Este ltimo sevirou para a patroa que, de boca cheia, respondeu: natural que se tivesse visto qualquer coisa, teria dito. Marie vem a! Anunciou o marido, inquieto.

    Havia j algum tempo que se ouviam as trepidaes de um motor. Distinguia-se agora, atrs deLa Providence, a forma de uma barcaa. Jean olhou para a mulher que, por sua vez, olhouhesitante para Maigret.

    Oua, acabou ela por dizer, Se tem de falar com o Jean, se importaria de faz-loenquanto vamos navegando? Marie, apesar do seu motor, mais lenta que ns... Se nosultrapassar antes da eclusa, ir nos barrar o caminho durante dois dias...

    Jean no esperara pelas ltimas palavras. Tinha retirado os sacos de aveia da cabea dos cavalose conduziu-os para cem metros frente da barcaa. O barqueiro pegou numa corneta de lata e

    tirou dela uns sons tremidos.

    Fica a bordo?... Ns, como deve compreender, lhe diremos tudo o que sabemos... Toda agente nos conhece nos canais, de Lige a Lyon... Irei encontr-los na eclusa, respondeu Maigret, que deixara a bicicleta em terra.

    Foi retirada a prancha. Acabava de surgir uma silhueta sobre as paredes da eclusa, se abriram ascomportas. Os cavalos comearam a andar com um barulho de guizos, balanando o pompomvermelho no cimo da cabea. Jean ia ao lado deles, caminhando lento e indiferente. E a barcaaa motor, duzentos metros atrs, retardava a marcha ao notar que chegara muito tarde. Maigret

    seguiu a p, levando a bicicleta mo. Conseguia ver a mulher que acabava de comer s pressas,

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    22/69

    - 22 de 69 -

    bem como o marido, pequenino, indolente, quase deitado sobre a barra do leme, muito pesadopara ele.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    23/69

    - 23 de 69 -

    CAPTULO 4O AMANTE

    J almocei! Anunciou Maigret, ao entrar no Caf de la Marine, onde Lucas estavainstalado junto a uma janela.

    Em Aigny? Perguntou o dono do caf. O restaurante do meu cunhado. Sirva-nos cerveja.

    Parecia um desafio. Mal o comissrio, se esforando na sua bicicleta, se aproximava de Dizy,logo o cu se encobria. E agora, as gotas de chuva tapavam o ltimo raio de sol. O SouthernCross continuava no seu lugar. No se via ningum no convs. E no se ouvia qualquer rudovindo da eclusa, de modo que, pela primeira vez, Maigret teve a impresso de estarverdadeiramente no campo ao ouvir as galinhas cacarejar no ptio.

    Nada? Perguntou ele ao inspetor.

    O marinheiro voltou para bordo com provises. A mulher apareceu momentaneamentede roupo azul. O coronel e Willy vieram beber o aperitivo. Acho que me olharam de soslaio...

    Maigret pegou no tabaco que o colega lhe estendia e se ps a encher o cachimbo enquantoesperava que o dono do caf desaparecesse na loja contgua depois de t-los servido.

    Eu tambm no consegui nada! Resmoneou ento. Das duas embarcaes que podiamter trazido Mary Lampson, uma est avariada a quinze quilmetros daqui, e a outra vai sendopuxada ao longo do canal a uma velocidade de trs quilmetros por hora... A primeira construda em ferro... Por isso, impossvel o cadver ter apanhado resina... A segunda feita

    de madeira... Os barqueiros, marido e mulher, se chamam Canelle... Ela uma mulherona quequis, maternalmente, me fazer beber um copo de rum horroroso, e o marido um tipopequenino que anda sempre agarrado a ela como um co fraldiqueiro... Ainda havia ocarreteiro... Ou ele se faz de idiota, e nesse caso um ator prodigioso, ou ento no passa deum bronco... Est com eles h oito anos. Se o marido um co fraldiqueiro, este Jean obuldogue... Levanta-se s duas e meia da manh, trata dos cavalos, engole uma xcara de caf ese pe logo a andar ao lado dos cavalos... Percorre assim trinta a quarenta quilmetros todos osdias, com o mesmo passo, e bebendo um copo de vinho branco em cada eclusa... noite,esfrega e limpa os animais, ceia sem abrir a boca e dorme sobre um fardo de palha, a maioria dasvezes vestido... Examinei os documentos dele: uma caderneta militar muito velha, que mal se

    consegue folhear, de to besuntada, em nome de Jean Liberge, nascido em Lille no ano de1869... E tudo! Ou quase! Teramos de admitir que Mary Lampson embarcou em La Providencena noite de sexta-feira em Meaux... Ora, ela estava viva... Ainda vivia ao chegar aqui no domingo noite... materialmente impossvel esconder um ser humano contra a sua vontade durantedois dias no estbulo de um barco... A no ser que os trs fossem culpados...

    E o rosto que Maigret fez revelava que no acreditava nisso.

    Quanto a supor que a vtima tenha embarcado de livre vontade... Sabe o que vai fazer,meu velho? Tentar saber atravs de Sir Lampson o nome de solteira da mulher... Pega notelefone e me arranja informaes sobre ela.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    24/69

    - 24 de 69 -

    Em dois ou trs pontos do cu, ainda apareciam alguns raios de sol, mas a chuva caa cada vezmais cerrada. No momento em que Lucas abandonava o Caf de La Marine, se dirigindo para oiate, Willy Marco saa deste, em fato de passeio, gil e descontrado, o olhar vago.Decididamente, era um trao comum a todos os ocupantes do Southern Cross: ter sempre o arde quem no dormia o suficiente ou de quem suportava mal o lcool. Os dois homens se

    cruzaram no caminho de sirga. Willy pareceu hesitar ao ver o inspetor subir a bordo; depois,acendendo outro cigarro no que acabava de fumar, avanou direito ao caf. Era Maigret que eleprocurava, e no o escondeu. No tirou o chapu; apenas tocou nele de um modo distrado comum dedo, murmurando:

    Bom dia, comissrio! Dormiu bem? Gostaria de lhe dar uma palavrinha... Estou a ouvi-lo. Aqui, no, se no se importa... No possvel irmos at ao seu quarto, por exemplo? Adesenvoltura continuava a mesma. Havia um brilho nos seus pequenos olhos, quase divertidosou maliciosos. Um cigarro?

    No, obrigado. verdade, o senhor fuma cachimbo...

    Maigret decidiu lev-lo ao quarto, que no fora ainda arrumado. Willy, depois de lanar um olharao iate, se sentou de imediato na borda da cama e disse:

    Evidentemente, j recolheu informaes sobre mim... Procurou um cinzeiro com os olhose, no o encontrando, deixou cair a cinza no cho. No so famosas, hein? Alis, nunca me fizpassar por santo... E o coronel no se cansa de repetir todos os dias que sou um canalha...

    O que era extraordinrio era a expresso franca do seu rosto. Maigret reconhecia mesmo que oseu interlocutor, antiptico no primeiro contato, lhe era agora tolervel. Possua uma misturaestranha de velhacaria e astcia, mas ao mesmo tempo, uma centelha que levava a que lheperdoassem o resto, bem como uma pontinha graa natural que desarmava a atitude maissevera.

    Note que fiz os meus estudos em Eton, como o prncipe de Gales... Se tivssemos amesma idade, talvez fssemos os melhores amigos do mundo... S que o meu pai comerciantede figos em Esmirna... E eu detesto isso! Houve algumas histrias... Resumindo, a me de umdos meus camaradas de Eton me livrou de confuses... Como no vou lhe dizer o nome dela,

    posso contar, no verdade? Uma mulher deliciosa... Mas o marido se tornou ministro e elareceou compromet-lo... A seguir... Devem lhe ter falado do Mnaco, e depois da histria deNice... Talvez a verdade no seja to censurvel como isso... Um bom conselho: nunca acrediteno que lhe conta uma americana de meia-idade que passa o tempo alegremente na Riviera ecujo marido chega inesperadamente de Chicago... Nem sempre as joias roubadas so roubadas...Adiante! E agora a histria do colar... Ou j a conhece ou no sabe ainda o que se passou... Quislhe falar no caso ontem noite, mas, dada a situao, talvez no fosse muito correto... Apesarde tudo, o coronel um cavalheiro... Talvez aprecie demasiado o usque, mas se compreende...Devia ter chegado a general e era um dos homens mais destacados, em Lima, quando, por causade uma histria de saias, se tratava da filha de uma alta figura do pas, foi passado reforma... J

    o conhece... um homem magnfico, de apetites formidveis... L, ele tinha trinta criados,ordenanas, secretrias, no sei quantos carros e cavalos sua disposio... De repente, se

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    25/69

    - 25 de 69 -

    acabou; se viu reduzido a qualquer coisa como cem mil francos anuais... Disse-lhe que ele jtinha casado duas vezes antes de conhecer Mary? A primeira mulher morreu na ndia. Dasegunda, se divorciou, ficando com todas as responsabilidades s costas depois de t-lasurpreendido com um criado... Um verdadeiro cavalheiro!

    E Willy, inclinado para trs, balanava numa cadncia suave a perna enquanto Maigret, decachimbo na boca, se mantinha imvel, encostado parede.

    Agora passa o tempo como pode... Em Porquerolles, vive no seu velho forte, a quechamam o Petit Langoustier. Quando consegue economias suficientes, se desloca a Paris ou aLondres... E pensar que na ndia dava todas as semanas jantares para trinta ou quarentaconvivas...

    do coronel que queria me falar? Murmurou Maigret. Willy nem pestanejou. A bem dizer, estou tentando lhe dar a ambincia... Como nunca viveu na ndia nem em

    Londres, nunca teve trinta criados e no sei quantas mulheres bonitas sua disposio... Noestou a pretender vex-lo... Resumindo, conheci-o h cerca de dois anos... O senhor noconheceu a Mary viva... Era uma mulher deliciosa, mas com um esprito fraco e instvel... Umpouco rabugenta... Se no estivessem sempre volta dela, tinha um ataque de nervos ouprovocava escndalo... Sabe qual , de fato, a idade do coronel? Sessenta e oito anos... Cansava-o, compreende? Satisfazia-lhe os desejos que ele continua a apreciar! Mas era um pouco chata...Apaixonou-se por mim... Eu gostava dela... Suponho que Madame Negretti amante de Sir Lampson? ! Admitiu o jovem com um trejeito. difcil de explicar... Ele no consegue viver nembeber sozinho. Precisa de ter gente volta... Conheceu-a durante uma escala em Bandol... Na

    manh seguinte, ela no tinha ido embora... Para ele, o suficiente! Poder ficar enquanto eletiver prazer nisso... Comigo, a questo outra... Sou um dos raros homens a suportar o usqueto bem como o coronel... Com exceo talvez do Vladimir, que o senhor j conheceu, e nosmete na cama nove em cada dez vezes... No sei se consegue imaginar bem a minha situao... verdade que no tenho preocupaes materiais... Ainda que, por vezes, fiquemos quinze diasnum porto espera de um cheque de Londres para comprar combustvel! Olhe, o colar de quelhe falei h| pouco, j| esteve no prego algumas vinte vezes... Tanto me faz! O usqueraramente falta... No que seja uma vida faustosa, mas dormimos e bebemos... Vamos evimos... Pela minha parte, prefiro isto aos figos do meu pai... No incio, o coronel oferecia porvezes joias mulher... De vez em quando, ela lhe exigia dinheiro... Dinheiro para comprar roupas

    e ter algum na carteira, compreende? Pense o senhor o que pensar, lhe garanto que ontem foium golpe para mim v-la naquela fotografia horrorosa... Para o coronel tambm, alis! Mas elepreferia ser cortado aos pedacinhos a deixar transparecer as emoes. a sua maneira de ser! Ebem inglesa! Quando deixamos Paris, na semana passada, hoje tera-feira, se no me engano,as economias estavam muito por baixo... O coronel telegrafou para Londres para pedir umadiantamento sobre a penso dele. Estvamos espera em pernay... Talvez o vale telegrficoj tenha chegado nesta altura... Simplesmente, em Paris, eu tinha deixado algumas dvidas... Porduas ou trs vezes j, perguntara Mary por que no vendia o colar. Poderia perfeitamentedizer ao marido que o tinha perdido, ou que tinham roubado... Como sabe, houve aquela festana quinta-feira, mas no se ponha a imaginar coisas a esse respeito... Assim que Lampson v

    mulheres bonitas, precisa logo convid-las para bordo... Duas horas mais tarde, depois de seembebedar, me encarregou de despach-las com o mnimo de despesas possvel... Nessa quinta-

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    26/69

    - 26 de 69 -

    feira, Mary se levantara muito mais cedo do que era costume, e quando ns samos da cama, elaj estava de p... Depois do almoo, ficamos a ss por momentos, eu e ela... Mostrou-se muitoterna, de uma ternura especial, muito triste... A certa altura, me ps o colar na mo e disse:Vende-o, se quiser.... Se n~o me acredita, pacincia! Senti-me um pouco incomodado, umtanto inquieto... Se a tivesse conhecido, compreenderia... Sabe, ela tinha quarenta anos...

    Lutava... Mas devia sentir que o fim estava prximo... E entrou algum... Guardei o colar nobolso. noite, o coronel nos levou ao dancing e Mary ficou sozinha a bordo... Quandoregressamos, ela no estava... Sir Lampson no ficou preocupado, pois no era a primeira vezque desaparecia... E no pense que eram coisas momentneas! Uma vez, por exemplo, porocasio da festa de Porquerolles, houve no Petit Langoustier uma orgia que durou perto de umasemana... De incio, a Mary era a mais animada... No terceiro dia, desapareceu... Sabe onde afomos descobrir? Numa penso de Gien, onde passava o tempo fingindo de mame com doisgarotos mal lavados... A histria do colar me aborrecia... Na sexta-feira, fui a Paris. Estive quase avend-lo, depois pensei que se a coisa desse errado, poderia vir a ter problemas... Pensei nasduas mulheres da vspera. Com aquelas duas, se faz o que se quer... Alm disso, j conhecia a

    Lia de Nice e sabia que podia contar com ela... Confiei-lhe o colar. No caso de a interrogarem, lherecomendei que dissesse que fora a Mary quem lhe entregara pessoalmente para que ovendesse... muito fcil... Fui um idiota! Teria feito melhor se tivesse ficado quieto... O que noimpede que, se no der com policiais inteligentes, me veja atirado para o banco dos rus...Compreendi-o ontem ao saber que a Mary tinha sido estrangulada... No lhe vou perguntar oque pensa de tudo isto. Para lhe ser franco, at estou espera que me prenda... Seria um erro,afinal de contas... Agora, se quer que o ajude, estou pronto a colaborar consigo... H coisas quepodem lhe parecer estranhas e que, no fundo, so bem simples...

    Estava quase estendido sobre a cama e fumava sem parar, os olhos fixos no teto. Maigret foi se

    postar diante da janela a fim de esconder o embarao.

    O coronel est ao corrente desta conversa? Indagou o comissrio, se virando de repente. Nem disto nem do caso do colar... No estou... Em situao de impor condies,evidentemente, mas preferia que ele continuasse a no saber de nada. E Madame Negretti? um peso morto! Uma bela mulher, incapaz de viver de outro modo seno no sof,fumando e bebendo licores doces... Desde o dia que entrou no iate e l ficou... Bem, faz algumacoisa! Joga cartas!... Acho que a nica paixo que tem.

    Rangidos de ferro anunciaram que estavam se abrindo as comportas da eclusa. Dois homenspassaram diante da casa, se detendo um pouco mais adiante, enquanto uma barcaa vaziacontinuava a deslizar como se pretendesse subir a margem. Dobrado sobre o bote, Vladimiresvaziava a gua da chuva que ameaava ench-lo. Um carro atravessou a ponte de pedra, quistomar o caminho de sirga, parou, tentou algumas manobras desajeitadas e acabou por se deterdefinitivamente. Um homem vestido de negro saiu do carro. Willy, que se levantara, espreitoupela janela e anunciou:

    A agncia funerria... Quando o coronel pensa em partir?

    Imediatamente a seguir ao enterro... Que ter lugar aqui?

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    27/69

    - 27 de 69 -

    No importa aonde! J tem uma mulher enterrada em Lima, outra que voltou a casar comum nova-iorquino e acabar enterrada na Amrica...

    Maigret no conseguiu evitar observ-lo, procurando ver se no estaria brincando. Mas WillyMarco estava srio, ainda que o olhar mantivesse a sua chamazinha equvoca.

    Esperemos que o vale telegrfico tenha chegado!... De contrrio, o funeral ter deesperar.

    O homem de negro hesitava diante do iate, se dirigia a Vladimir, que lhe respondia seminterromper o trabalho, acabando por subir a bordo e desaparecendo no interior da cabine.Maigret no voltara a ver Lucas.

    Adeus! Disse ao seu interlocutor. Willy hesitou. Por momentos, a sua expresso se tornouinquieta.

    Vai lhe falar do colar? No sei...

    Logo se recompusera. De novo desenvolto, Willy ajeitava a aba do chapu, se despedia com umaceno e saa tomando a escada. Quando, por sua vez, Maigret desceu para o caf, havia doisbarqueiros ao balco com duas canecas de cerveja na frente.

    O seu amigo est ao telefone... Disse-lhe o dono do caf. Pedi uma ligao para Moulins...

    Um rebocador silvava ao longe e, maquinalmente, Maigret contou as apitadelas, murmurando

    para si prprio: Cinco. Era a vida do canal. Chegavam cinco barcaas. O encarregado da eclusa,de tamancos, saa das suas instalaes e se dirigia para as comportas. Lucas voltou do telefonecom o rosto avermelhado.

    Foi difcil... Que aconteceu? O coronel me disse que o nome de solteira da mulher era Marie Dupin... Que nocasamento, ela apresentou um extrato do registro de nascimento emanado de Moulins... Acabode telefonar para l, exigindo prioridade... E ento?

    S h uma Marie Dupin inscrita nos registos. Tm quarenta e dois anos, trs filhos e estcasada com um tal Piedboeuf, padeiro na Rue Haute... O secretrio da Cmara me disse queainda ontem a viu atrs do balco do seu estabelecimento e parece que anda pelos oitentaquilos de peso...

    Maigret no disse nada. Qual rendeiro ocioso, se dirigiu para a eclusa sem se preocupar com ocolega, seguiu todas as manobras com os olhos, mas sempre batendo levemente com o polegarno cachimbo.

    Um pouco mais tarde, Vladimir se aproximava do encarregado da eclusa e, depois de levar a

    mo boina branca, perguntava onde poderia se abastecer de gua potvel.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    28/69

    - 28 de 69 -

    CAPTULO 5A INSGNIA DO YCF

    Maigret se deitara cedo, ao passo que o inspetor Lucas, a quem dera instrues, partira paraMeaux, Paris e Moulins. No momento em que abandonara a sala do caf, havia nesta trs

    clientes, dois barqueiros e a mulher de um deles, que fora se juntar ao marido e tricotava a umcanto. O ambiente era sombrio e pesado. No exterior, uma barcaa acostara a menos de doismetros do Southern Cross, cujas vigias estavam todas iluminadas. Bruscamente, o comissrio foiarrancado a um sonho to vago que, ao abrir os olhos, j no se lembrava. Batiam porta,precipitadamente, enquanto uma voz em pnico gritava:

    Comissrio!... Comissrio!... Rpido!... O meu pai...

    De pijama, correu para abrir e viu a filha do dono do caf cair sobre ele com um nervosismoinesperado, se refugiando literalmente nos braos.

    V depressa... No! No v... No quero ficar sozinha... No quero... Tenho medo...

    Nunca lhe dera muita ateno. Considerara-a uma jovem forte, de boa sade, sem problemas denervos. E eis que agora se agarrava a ele, rosto transtornado, o corpo tremendo, com umainsistncia incmoda. Tentando se desembaraar dela, se dirigiu para a janela, que abriu. Deviamser seis horas da manh. O dia mal rompera, frio como numa madrugada de Inverno. A cemmetros do Southern Cross, na direo da ponte de pedra e da estrada para pernay, quatro oucinco homens tentavam, com a ajuda de um croque, apanhar qualquer coisa que flutuava nagua, enquanto um barqueiro soltava o seu bote e comeava a gingar. De pijama amarrotado,

    Maigret ps o sobretudo sobre os ombros, procurou as botas e calou-as sem meias.

    Sabe!... ele... Eles...

    Com um movimento brusco, se libertou do amplexo da estranha jovem, desceu a escada echegou ao exterior no momento em que uma mulher que levava um beb no colo avanava parao grupo. No assistira descoberta do corpo de Mary Lampson, mas esta descoberta era talvezmais sinistra porque, devido repetio de crimes, pairava agora uma angstia quase msticasobre o extremo do canal. Os homens se interpelavam. O dono do Caf de la Marine, que fora oprimeiro a ver uma forma humana flutuando na gua, dirigia os esforos. Por duas vezes o

    croque da barcaa alcanara o cadver, mas deixara-o fugir. O corpo afundara um pouco antesde voltar de novo superfcie. Maigret j reconhecera o terno escuro de Willy. No conseguiaver o rosto, pois a cabea, mais pesada, se mantinha imersa.

    O barqueiro que sara com o bote esbarrou de sbito no corpo, agarrou o morto pelo peito comuma mo e iou-o para a embarcao. O homem no mostrava qualquer repugnncia. Levantouuma perna e depois a outra, lanou a amarra para terra e, com as costas da mo, limpou o suorque lhe escorria da fronte. Maigret enxergou por instantes o rosto entorpecido de Vladimiraparecendo na escotilha do iate. O russo esfregava os olhos. Depois desapareceu.

    No toquem em nada...

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    29/69

    - 29 de 69 -

    Um barqueiro protestou por trs dele, murmurando que, na Alscia, o seu cunhado tinha sidosalvo depois de haver estado quase trs horas dentro de gua. O dono do caf apontava para opescoo do cadver. Era claro: duas marcas de dedos, bem negras, tal como no pescoo de MaryLampson. Esta tragdia foi a mais impressionante. Willy tinha os olhos muito abertos, mais aindado que era costume. A mo direita estava crispada sobre um punhado de juncos. Maigret sentiu

    uma presena inslita atrs de si, se voltou e viu o coronel, tambm ele de pijama, com umroupo de seda e os ps enfiados numas chinelas azuis de pele de cabrito. Tinha os poucoscabelos prateados em desalinho e o rosto um pouco inchado. E era estranho v-lo assim,naquele preparo, entre os barqueiros de roupas de tecido grosseiro, no meio da lama e dahumidade do dia que despontava. Era o mais alto e o mais corpulento. Emanava dele umperfume vago a gua-de-colnia.

    o Willy!... Articulou numa voz rouca.

    Depois disse umas quantas palavras em ingls, demasiado depressa para que Maigret pudesse

    compreender, se debruou e tocou no rosto do jovem. A jovem que fora acordar o comissriosoluava, encostada porta do caf. O encarregado da eclusa acorria.

    Telefone polcia de pernay... Um mdico... At a prpria Negretti aparecera,desleixada, ps descalos, mas no se atrevendo a deixar o convs do iate, chamava pelocoronel: Walter!... Walter... Em segundo plano, havia gente que no vira chegar: o maquinista dopequeno trem, operrios da terraplenagem, um campons cuja vaca seguia sozinha o caminhode sirga. Levem-no para o caf... Toquem-lhe o menos possvel...

    No havia qualquer dvida de que estava morto. O elegante terno, que no passava agora deum farrapo, roou o cho quando levantaram o corpo. O coronel seguia a passos lentos, e oroupo que envergava, as chinelas azuis e os cabelos prateados que o vento despenteara,tornavam-no ao mesmo tempo ridculo e hiertico. A jovem soluou ainda mais quando ocadver passou junto dela e foi correndo se fechar na cozinha. O dono do caf gritava para obucal do telefone:

    No, menina! polcia! Depressa! um crime... No desligue.. Al! Al?...

    Maigret impediu a maioria dos curiosos de entrar. No entanto, os barqueiros que haviamencontrado o cadver e ajudado a tir-lo da gua entraram todos no caf, onde as mesascontinuavam com os copos e as garrafas vazias da vspera. Havia uma vassoura no meio docaminho. De uma janela, o comissrio avistou a silhueta de Vladimir, que arranjara tempo parapr a sua boina de marinheiro americano na cabea. Os barqueiros lhe falavam, mas ele norespondia. O coronel continuava a olhar para o cadver estendido sobre a tijoleira avermelhadae no se conseguia saber se estava emocionado, enfadado ou assustado.

    Quando foi que o viu pela ltima vez? Inquiriu Maigret, se aproximando do coronel. SirLampson suspirou e pareceu procurar em redor aquele que habitualmente respondia em seu

    lugar. Horrvel... Articulou finalmente.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    30/69

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    31/69

    - 31 de 69 -

    Vladimir!

    E se fecharam todas as escotilhas do iate. Uma embarcao a motor apitava para que ascomportas fossem abertas e Maigret perguntava ao encarregado da eclusa:

    Suponho que, num canal, no h corrente. Por isso, um corpo tem de ficar no local ondefoi lanado gua... Nos canais grandes, com dez a quinze quilmetros, de fato assim. Mas este nem cincotem... Se um barco passar a eclusa 13, acima da minha, sinto a chegada da gua alguns minutosdepois... Se eu prprio fizer passar um barco que desce o rio, so metros cbicos de lquido queretiro ao canal e que criam uma corrente momentnea... A que horas inicia o trabalho? Em princpio, ao nascer do sol, mas na realidade, muito mais cedo. As embarcaespuxadas sirga, como tm um andamento lento, partem por volta das trs da manh, e so osprprios que geralmente abrem e fecham as comportas, sem que os ouamos... No dizemos

    nada porque os conhecemos... De maneira que esta manh... Frederic, que passou aqui a noite, teve de partir cerca das trs e meia para chegar a Aypelas cinco horas...

    Maigret deu meia-volta. Em frente do Caf de la Marine e no caminho de sirga tinham seformado alguns grupos. Ao ver o comissrio se dirigir para a ponte de pedra, um velho pilotocom o nariz cheio de borbulhas se aproximou dele.

    Quer que lhe mostre o local onde o jovem foi atirado gua? E olhou orgulhosamente

    para os camaradas que hesitavam em se dirigir na mesma direo.

    Tinha razo. A cinquenta metros da ponte de pedra, os juncos estavam tombados numaextenso de vrios metros. No s tinham sido pisados, como tambm fora arrastado um corpopesado sobre eles, visto que o rasto era largo e os juncos estavam cados.

    V? Moro a quinhentos metros daqui, numa das primeiras casas de Dizy... Ao sair nestamanh, para ver se os barcos que desciam o Marne precisavam de mim, fiquei espantado comisto... E ainda encontrei esta coisa no caminho...

    O homem era irritante, com os seus trejeitos maliciosos e os olhares que continuava a lanar aoscompanheiros que seguiam a cena distncia. Mas o objeto que tirou do bolso era do mais altointeresse. Tratava-se de uma insgnia de esmalte, finamente trabalhada, que ostentava, alm deuma ncora, as iniciais: YCF.

    Yachting Club de France! Decifrou o piloto. Todos trazem isto na lapela...

    Maigret se voltou na direo do iate, que se avistava a cerca de dois quilmetros e, por baixo donome Southern Cross, enxergou as mesmas letras: YCF. Sem se preocupar mais com o homemque lhe entregara a insgnia, caminhou lentamente at ponte. direita, se estendia a estrada

    para pernay, toda em linha reta, ainda brilhante das chuvadas da vspera, e os carrosatravessavam-na que nem flechas. esquerda, o caminho fazia uma curva na aldeia de Dizy.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    32/69

    - 32 de 69 -

    Para alm, no canal, havia algumas barcaas em reparao, em frente dos estaleiros daCompagnie Gnrale de Navigation. Maigret voltou para trs, um pouco inquieto, pois asautoridades do Ministrio Pblico deviam estar chegando, e durante uma hora ou duas, seria aconfuso do costume, as perguntas, as idas e vindas, as hipteses mais absurdas.

    Ao chegar perto do iate, este continuava com tudo fechado. Um agente uniformizado mantinhaas pessoas afastadas, pedindo aos curiosos que no se detivessem, mas no conseguiu impedirque dois jornalistas de pernay tirassem fotografias. O tempo no estava nem bonito nem feio.O cu se apresentava pardacento, translcido, uniforme como um vidro fosco. Maigretatravessou a prancha e bateu porta.

    Quem ? Ouviu-se a voz do coronel perguntar.

    Entrou. No tinha vontade de discutir. Avistou Negretti, ainda desarranjada, o cabelo sobre asfaces e a nuca, enxugando as lgrimas e fungando. Sir Lampson, sentado na banqueta, estendia

    os ps a Vladimir, que lhe calava uns sapatos castanho-avermelhados. Devia haver guafervendo em algum fogo, pois se ouvia um esguicho de vapor. As camas do coronel e de Gloriaainda no tinham sido feitas. E havia cartas de jogar espalhadas pela mesa, bem como uma cartade navegao fluvial de Frana. E sempre aquele odor forte e carregado, que lembrava aomesmo tempo o bar, o toucador e a alcova. Ao lado de um chicote com cabo de marfim, pendiado cabide um bon branco de comandante de iate.

    Willy pertencia ao Yacht Club de France? Perguntou Maigret numa voz que procuravatornar neutra. O encolher de ombros do coronel f-lo compreender que a pergunta era ridcula.E era por ser o YCF, um dos clubes de acesso mais restrito.

    Eu! Admitiu Sir Lampson. E tambm do Royal Yacht Club da Inglaterra... Importa-se de memostrar o casaco que usava ontem noite? Vladimir...

    J se calara. Levantou-se e se inclinou sobre um pequeno armrio que servia de garrafeira delicores. No se via qualquer garrafa de usque. Mas havia outras bebidas alcolicas, entre asquais hesitou. Finalmente, tirou uma garrafa de conhaque e murmurou sem insistir:

    servido? Obrigado.

    Encheu um clice de prata que se encontrava pendurado num suporte, sobre a mesa, procurouum sifo e franziu o sobrolho como um homem cujos hbitos foram alterados e sofre por isso.Vladimir saiu do banheiro com um terno preto completo e, a um gesto do patro, entregou-o aMaigret.

    Tinha habitualmente a insgnia do YCF. neste casaco? Yes... Ainda no acabou? O Willy ainda continua l no cho? Esvaziara o clice, de p, compequenos goles, e hesitava em se servir de novo. Espreitou pela vigia, avistou pernas e soltouum resmungo indistinto.

    Importa-se de me ouvir um momento, coronel?

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    33/69

    - 33 de 69 -

    Fez sinal para indicar que o escutava. Maigret tirou o emblema de esmalte do bolso.

    Foi encontrado esta manh no local onde o corpo de Willy foi arrastado pelos juncosantes de ser atirado ao canal...

    Negretti conteve um grito, se deixou cair sobre a banqueta de veludo gren e, com a cabeaentre as mos, se ps a soluar convulsivamente. Vladimir nem se mexia. Esperava que lhedevolvessem o casaco a fim de voltar a pendur-lo no lugar. O coronel riu de forma estranha porquatro ou cinco vezes:

    Yes!. Yes!. Ao mesmo tempo, voltava a se servir de conhaque. Entre ns, a polciatrabalha de outro modo... Tem de chamar a ateno de que todas as palavras podero serusadas contra aquele que as pronuncia... Vou falar uma vez. No quer escrever? No vou passaro tempo a repetir o mesmo... Trocamos algumas palavras, eu e o Willy... Perguntei-lhe... Poucoimporta... No era um canalha como os outros... H canalhas simpticos... Disse-lhe palavras

    muito duras e ele me agarrou o casaco por aqui... E enquanto mostrava, olhava impaciente paraos ps calados com botinas ou com sapatos pesados que continuava a ver pelas vigias. Foitudo. No sei de mais nada. Talvez o emblema tenha cado... Foi do outro lado da ponte... No entanto, a insgnia foi encontrada deste lado...

    Vladimir nem parecia ouvir o que se dizia. Apanhava os objetos que havia pelo cho, desapareciae voltava sem se apressar. Com uma pronncia russa muito acentuada, perguntou a Gloria, quej no chorava mas se mantinha imvel, estendida ao comprido, com a cabea entre as mos:

    Deseja alguma coisa? Soaram passos sobre a ponte. Bateram porta e se ouviu o

    graduado da polcia perguntar: Comissrio? J chegaram as autoridades do Ministrio Pblico. Vou j! O policial se manteve imvel e invisvel atrs da porta de acaju e de puxadores decobre. S mais uma pergunta, coronel... Quando o enterro? s trs horas. De hoje? Yes! No tinha nada a fazer aqui...

    Depois de engolir o terceiro conhaque de trs estrelas, ficou com os olhos turvados, uns olhosque Maigret j lhe vira. E, fleumtico, indiferente, como um verdadeiro grande senhor,

    perguntou ao ver o comissrio fazer meno de sair:

    Estou preso?

    De repente, Negretti endireitou a cabea, completamente plida.

  • 7/22/2019 Georges Simenon - Maigret e o Assassino Do Canal

    34/69

    - 34 de 69 -

    CAPTULO 6A BOINA DE MARINHEIRO AMERICANO

    O fim da conversa entre o juiz e o coronel foi quase solene, e s Maigret, que se mantinha parte, assistiu a ela. O olhar do comissrio encontrou o do substituto do Procurador da

    Repblica e viu nele o mesmo sentimento. As autoridades do Ministrio Pblico estavamreunidas na sala do Caf de la Marine. Uma das portas dava para a cozinha, na qual se adivinhavao bater das caarolas. A outra porta, envidraada, coberta de anncios publicitrios de massasde levar ao forno e de sabo de pedra, permitia entrever os sacos e as caixas da loja. Diante dajanela, passava e voltava a passar o quepe de um policial, e os curiosos estavam concentradosmais longe, silenciosos mas obstinados. Numa das mesas, havia vinho derramado de umagarrafa que continha ainda um pouco de lquido. Sentado num banco sem costas, o escrivotomava notas com cara de enfado.

    Quanto ao cadver, termina