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108 Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo 2007; 52(3):108-13  ARTIGO DE REVISÃO 1. Médico psiquiatra, Coordenador do Pronto Socorro do Centro de  Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Pós-graduando em Psi- quiatria pela Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de  Medicina(UNIFESP/EPM). Membro do Laboratório de Neurociências Clínicas (LINC) da UNIFESP. 2. Médico psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial Itapeva – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Médico psiquiatra comissionado do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-  HCFMUSP) 3. Médico psiquiatra do Comando do 8º Distrito Naval – São Paulo.  Médico voluntário do Programa de Distúrbios Afetivos e Ansiosos da Escola de Universidade de São Paulo. Escola Paulista de Medi- cina (PROFAF-UNIFESP/EPM) 4. Médica psiquiatra do Hospital João Evangelista – São Paulo 5. Professor Assistente da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo – (Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica) Endereço para correspondência: Leonardo Baldaçara. Rua  Major Maragliano, 241 – Vila Mariana – São Paulo – SP - Cep. 04017-030. Tel. 11-34662100 Fax 11-34662100. E-mail: [email protected] Humor e afeto. Como defini-los? Mood and affect. How to define them? Leonardo Baldaçara 1  , Celso Ricardo Bueno 2  , David Souza Lima 3  ,  Luciana PC Nóbrega 4  , Marsal Sanches 5 Resumo O estudo dos aspectos emocionais corresponde a um dos mais importantes e subjetivos capítulos da  psicopatologia. Na descrição do exame do estado men- tal, tais vivências são habitualmente incluídas nos itens humor e afeto. Entretanto, estes termos, embora de uso corrente, não parecem ser adotados e conceitu- ados de forma homogênea entre as diferentes escolas  psiquiátricas. Neste artigo fazemos uma revisão so- bre as principais definições de humor e afeto na  psicopatologia clássica e atual, seguido por uma pro-  posta de sistematização para a observação desses ele- mentos no exame psíquico. Descritores: Psicopatologia, Afeto, Emoções, Sintomas afetivos Abstract Emotional aspects represent one of the most important and subjective issues in psychopathology. During the description of the mental state, these aspects are contemplated in the items “humor” and “affect”.  However, these terms lack standardized definitions and their meanings vary largely from one psychiatric school to other. The present paper reviews different definitions and concepts regarding the expressions “humor” and “affect” in classical and current  psychopathology. In addition, a systematic description of these issues for use in clinical settings is proposed.  Keywords: Psychopathology, Affect, Emotions,  Affective symptoms Introdução O estudo dos aspectos emocionais corresponde a um dos mais importantes e subjetivos capítulos da psicopatologia. Expressões como afetividade, senti- mento, emoção e paixão aparecem de forma corriquei- ra e por vezes imprecisa na literatura psiquiátrica. Quanto da descrição do exame do estado mental, tais vivências são habitualmente incluídas nos itens hu- mor e afeto 1 . Entretanto, estes termos, embora de uso corrente, não parecem ser adotados e conceituados de forma homogênea entre as diferentes escolas psiquiá- tricas 2 . Esta problemática adquire particular importância quando se considera o crescente interesse em trans- tornos mentais primariamente relacionados a altera- ções emocionais. De que forma sistematizar a descri- ção do estado afetivo de pacientes deprimidos ou em fase de mania? Como nomear, classificar e quantificar vivências tão pessoais e subjetivas? O presente artigo destina-se a revisar as princi- pais conceituações referentes à semiologia e descrição dos elementos da vida afetiva. Adicionalmente, uma proposta de padronização destes elementos no exa- me psíquico é apresentada. Humor e afeto na psicopatologia clássica Ainda que descrições de quadros afetivos (como

humor afeto artigo revisão

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    Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa So Paulo2007; 52(3):108-13

    ARTIGO DE REVISO

    1. Mdico psiquiatra, Coordenador do Pronto Socorro do Centro deAteno Integrada Sade Mental (CAISM) da Irmandade daSanta Casa de Misericrdia de So Paulo. Ps-graduando em Psi-quiatria pela Universidade Federal de So Paulo. Escola Paulista deMedicina(UNIFESP/EPM). Membro do Laboratrio deNeurocincias Clnicas (LINC) da UNIFESP.2. Mdico psiquiatra do Centro de Ateno Psicossocial Itapeva Universidade Federal de So Paulo (UNIFESP). Mdico psiquiatracomissionado do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clnicasda Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (IPq-HCFMUSP)3. Mdico psiquiatra do Comando do 8 Distrito Naval So Paulo.Mdico voluntrio do Programa de Distrbios Afetivos e Ansiososda Escola de Universidade de So Paulo. Escola Paulista de Medi-cina (PROFAF-UNIFESP/EPM)4. Mdica psiquiatra do Hospital Joo Evangelista So Paulo5. Professor Assistente da Faculdade de Cincias Mdicas da SantaCasa de Misericrdia de So Paulo (Departamento de Psiquiatriae Psicologia Mdica)Endereo para correspondncia: Leonardo Baldaara. RuaMajor Maragliano, 241 Vila Mariana So Paulo SP - Cep.04017-030. Tel. 11-34662100 Fax 11-34662100. E-mail:[email protected]

    Humor e afeto. Como defini-los?Mood and affect. How to define them?

    Leonardo Baldaara1, Celso Ricardo Bueno2, David Souza Lima3, Luciana PC Nbrega4, Marsal Sanches5

    Resumo

    O estudo dos aspectos emocionais corresponde a umdos mais importantes e subjetivos captulos dapsicopatologia. Na descrio do exame do estado men-tal, tais vivncias so habitualmente includas nositens humor e afeto. Entretanto, estes termos, emborade uso corrente, no parecem ser adotados e conceitu-ados de forma homognea entre as diferentes escolaspsiquitricas. Neste artigo fazemos uma reviso so-bre as principais definies de humor e afeto napsicopatologia clssica e atual, seguido por uma pro-posta de sistematizao para a observao desses ele-mentos no exame psquico.

    Descritores: Psicopatologia, Afeto, Emoes, Sintomasafetivos

    Abstract

    Emotional aspects represent one of the most important

    and subjective issues in psychopathology. During thedescription of the mental state, these aspects arecontemplated in the items humor and affect.However, these terms lack standardized definitionsand their meanings vary largely from one psychiatricschool to other. The present paper reviews differentdefinitions and concepts regarding the expressionshumor and affect in classical and currentpsychopathology. In addition, a systematicdescription of these issues for use in clinical settingsis proposed.

    Keywords: Psychopathology, Affect, Emotions,Affective symptoms

    Introduo

    O estudo dos aspectos emocionais corresponde aum dos mais importantes e subjetivos captulos dapsicopatologia. Expresses como afetividade, senti-mento, emoo e paixo aparecem de forma corriquei-ra e por vezes imprecisa na literatura psiquitrica.Quanto da descrio do exame do estado mental, taisvivncias so habitualmente includas nos itens hu-mor e afeto1. Entretanto, estes termos, embora de usocorrente, no parecem ser adotados e conceituados deforma homognea entre as diferentes escolas psiqui-tricas2.

    Esta problemtica adquire particular importnciaquando se considera o crescente interesse em trans-tornos mentais primariamente relacionados a altera-es emocionais. De que forma sistematizar a descri-o do estado afetivo de pacientes deprimidos ou emfase de mania? Como nomear, classificar e quantificarvivncias to pessoais e subjetivas?

    O presente artigo destina-se a revisar as princi-pais conceituaes referentes semiologia e descriodos elementos da vida afetiva. Adicionalmente, umaproposta de padronizao destes elementos no exa-me psquico apresentada.

    Humor e afeto na psicopatologia clssica

    Ainda que descries de quadros afetivos (como

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    mania e melancolia) sejam to antigas quanto a pr-pria medicina, a abordagem psicopatolgica de seuselementos centrais s surgiu no sculo XVIII3. O sig-nificado dos termos cunhados varia conforme o autore o sculo, nem sempre se referindo mesma funomental ou sua combinao4 .

    No sculo XVII, influenciado por trabalhos deDescartes e Leibniz*, os sentimentos eram vistos comopensamentos vagos ou confusos (Wang, 2005)3. At osculo XVIII, prevalecia a opinio de que toda ativi-dade psquica alheia esfera intelectual pertenceria vida afetiva5.

    No sculo XVIII, as emoes eram consideradascomo um resduo das sensaes ou um componenteda volio, mas nunca como uma funo psquica emsi. Mas, estando a emoo e a paixo sempre acompa-nhadas de sensaes e mudanas corporais, eram con-sideradas portadoras de propriedades motivacionais6.

    No final do sculo XIX e incio no XX iniciou-se odesenvolvimento dos primeiros conceitos e os dife-renciais dos diversos componentes da vida afetiva.Entretanto como visto at hoje, os mesmos termostiveram diferentes significados e importncia paracada autor. Alguns se destacaram na psiquiatria devi-do ao rigor de suas descries. Faremos a seguir umbreve relato dos principais conceitos encontrados napsicopatologia clssica

    Definies na psicopatologia clssica

    Bleuler (1971)7, na 10a edio de seu Tratado dePsiquiatria, agrupou dentro do conceito de afetividadeos sentimentos e estados de nimo, os afetos, humo-res, emoes e a vida instintivo-pulsional. Colocou aafetividade como o grupo de todas as vivncias e afe-to como um termo geral para todos os elementos. Paraesse autor a afetividade vivida subjetivamente, masse manifesta ao mesmo tempo em nossa ao, nossopensamento, assim como atravs dos processos vitaiscorporais. Nossa ao orienta a busca pelo prazer eafastamento do desagradvel. Bleuler (1971)7 relataainda que nosso pensamento reflete nossas sensaessendo marcado por nossos sentimentos.

    Para Bleuler(1971)7 o humor corresponde, do pon-to de vista biolgico, primazia de uma funo vital,o qual envolve todas as atividades intelectuais, emo-cionais e vegetativas. Apesar de referir que pode esseelemento se expressar atravs do comportamento, esteautor relata que deve ser de durao limitada, poispoderia no permitir a satisfao de outras necessida-des vitais. Acreditamos que talvez estaria se referin-do a variaes momentneas e reativas do humor, o

    que para outros autores caracterizaria os afetos comoveremos a seguir. Por outro lado tambm se refere distimia como uma variao de humor, atravs dotnus afetivo. Nessa afirmao poderia estar se refe-rindo ao humor como um elemento basal.

    Ribot (1906)8 definiu emoes e sentimentos comouma vivncia transitria, mais ou menos intensa e re-lacionada a um objeto reconhecvel. Humor e afeto,por sua vez, eram vistos como estados de durao maisprolongada, capazes de fornecer a tonalidade afetivabasal ao indivduo, no havendo necessariamente umobjeto reconhecvel4. Entretanto, no diferenciou es-ses dois elementos.

    Para Jaspers (1979)9, sentimentos so todo fen-meno psquico que no se pode coordenar com os fe-nmenos da conscincia objetiva, nem com os impul-sos instintivos e atos da vontade. Em outras palavras,sentimento seria um nome geral para as vivnciasafetivas. Tambm equivaleria a todas as formaespsquicas no desenvolvidas e imprecisas, todas aque-las que no se podem apreender e esquivam anlise.Classificou os sentimentos segundo a fenomenologia,objetos a que se dirigem, origem, importncia, parti-cularidades, intensidade de durao, e sua diferencia-o das sensaes. Quanto ao diferencial da durao,fala de trs conceitos: sentimento, afeto e disposio.Alm disto, chamou de sentimentos os movimen-tos singulares prprios e originrios da alma; de afe-tos os processos de sentimentos complexos e momen-tneos de grande intensidade e com manifestaesconcomitantes de natureza corprea; e de disposiesdo estado de esprito a constituio interior maisduradoura que conferem um colorido particular a todaexistncia da vida psquica.

    J Schneider (1968)10 mencionava sentimentos cor-porais que se distinguiam dos sentimentos psquicos(anmicos). Esses ltimos no se localizam no corpoou em parte dele, ainda que possam provocar sensa-es e sentimentos corporais. Freqentemente soreativos, motivados por: alegria, medo ou arrependi-mento frente a algum evento. Na medida em que seligam a algo percebido, no se prendem aos elemen-tos da percepo, mas ao sentido do que se percebe.No a impresso tica de uma notcia escrita queme faz triste e sim o seu sentido, a sua significao.Em ltima anlise, todo sentimento corporal, locali-zado ou difuso (vital), tambm um sentimento ps-quico, do contrrio, no seria um sentimento. Porm,como nem todo sentimento psquico motivado e, porconseguinte, no pode ser assim suficientemente ca-racterizado, no saberamos de nenhuma designaoinequvoca para eles.

    * Descartes e Leibniz APUD Wang YP. Aspectos histricos da doena manaco-depressiva. In: Moreno RA, Moreno DH. Da psicosemanaco-depressiva ao espectro bipolar. So Paulo: segmento Farma; 2005. p.13-42.

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    Segundo Schneider (1968)10 os sentimentos psqui-cos tm uma valncia positiva ou negativa, so esta-dos do eu, agradveis ou desagradveis. Agrupa ain-da os sentimentos psquicos em:A) Sentimentos subjetivos: agradveis (alegria, bem-

    estar, facilidade, jbilo, felicidade, quietude, con-tentamento, confiana); ou desagradveis (triste-za, preocupao, angstia, medo, mal-estar, estra-nheza, pusilanimidade, nostalgia, desespero, hor-ror, aborrecimento, ira, clera, inveja, cime, mo-notonia).

    B) Sentimentos de valor: referentes a si mesmo, afir-mativos (fora, orgulho, vaidade, autoconfiana,superioridade, arrogncia), ou negativos (vergo-nha, sentimento de culpa, arrependimento, emba-rao); e sentimentos referentes aos outros, afirma-tivos (amor, inclinao, confiana, compaixo, es-tima, interesse, aprovao, gratido, respeito, ad-mirao), ou negativos (dio, averso, desconfi-ana, desprezo, hostilidade, zombaria, desconten-tamento, indignao).J os sentimentos anmicos so classificados de

    emoes. Denominam-se afetos aos sentimentosanmicos reativos e de carter agudo, intensos e acom-panhados por manifestaes corporais denominadasafetos (horror, ira, jbilo). J o humor, trata-se de umestado de durao prolongada e nem sempre de ndo-le reativa. O humor geralmente implica em sentimen-tos orgnicos, na ressonncia dos acontecimentos ul-timamente vividos, e sentimentos anmicos, noreativos e que tm suas razes no fundo da personali-dade. Sentimentos anmicos envolvem ainda inclina-es ou tendncias habituais da personalidade, inclu-sive da personalidade anormal.

    Para Ey et al(1981)11, afeto um termo geral paraexprimir todos os fenmenos da afetividade, isto ,todas as nuanas do desejo, prazer e dor, que entramna experincia sensvel sob a forma do que chama-mos sentimentos vitais, humor e emoes. Separou aindaesses elementos como afetividade de base ou holot-mica dos sentimentos complexos (paixes, sentimen-tos sociais) ou catatmica, formada pela afetividadeelaborada em um sistema pessoal de vida.

    Quanto aos afetos basais, relatam Ey et al(1981)11

    que constituem o teclado sensvel da experincia, poispodemos dizer que cada movimento ou modalidadedela tem uma tonalidade afetiva (tmica) mais oumenos viva, vivenciada sobre o registro do prazer ouda dor, da euforia ou da tristeza.

    Segundo Paim (1993)12, no estado de nimo (ouhumor) h componentes somticos e psquicos, quese unem de maneira indissolvel para fornecer umcolorido especial vida psquica momentnea. Em boaparte o humor vivido corporalmente e se relacionaconsideravelmente s condies vegetativas do orga-

    nismo. Define-se afeto como a qualidade e o tnusemocional que acompanham uma idia ou represen-tao mental. Os afetos acoplam-se a idias, anexan-do a elas um colorido afetivo, seriam os componen-tes emocionais de uma idia. Em uma acepo maisampla, tambm se pode fazer uso do termo afeto paradesignar, de modo inespecfico, qualquer estado dehumor, sentimento ou emoo.

    J as emoes, para Paim (1993)12, so reaesafetivas agudas, momentneas, desencadeadas por es-tmulos significativos. um estado afetivo intenso, decurta durao, originado geralmente como uma reaodo indivduo a certas excitaes internas ou externas,conscientes ou inconscientes. Freqentemente, acom-panha-se de reaes somticas mais ou menos especi-ficas.

    Sentimentos so estados e configuraes estveis;em relao s emoes, so mais atenuados em suaintensidade e menos reativos a estmulos passageiros.Os sentimentos esto geralmente associados a conte-dos intelectuais, valores, representaes e, no mais dasvezes, no implicam concomitantes somticos. Cons-tituem fenmeno muito mais mental do que somtico.

    Definies na psicopatologia atual

    Vemos ento a variedade de definies para a vidaafetiva. Levando em conta cada autor, acreditamos quea maioria se refere ao humor como o elemento basal(ou estado de nimo) e a afeto como estados passa-geiros vivenciados segundo o contedo do pensamen-to. Usaremos tais definies no item a seguir.

    Owens, Maxmen (1979)13 relatam que muitos au-tores enfatizam a durao dos estados emocionais,referindo ao afeto como uma condio imediata e hu-mor como um estado prolongado ou uma soma denumerosas instancias de afeto. Relata que o humor uma experincia interna, enquanto o afeto se refere amanifestaes externas. Kolb (1973)14 define o afetocomo uma experincia subjetiva, confrontando outrospsiquiatras que enfatizam a natureza subjetiva dohumor e consideram o afeto como observvel.

    Das obras de psicopatologia atuais, dois autoresdestacam-se por agruparem as definies anteriores.Para Dalgalarrondo (2000)15 o humor, ou estado denimo, definido como o tnus afetivo do indivduo,o estado emocional basal e difuso no qual ele se en-contra em determinado momento. a disposioafetiva de fundo que penetra toda a experincia ps-quica. Define o afeto como a qualidade e tnus emoci-onal que acompanham uma idia ou representaomental. Tambm diz que, em uma acepo mais am-pla, usa-se o termo afeto para designar qualquer esta-do de humor, sentimento ou emoo.

    Cheniaux Jr (2002)16 agrupou os elementos sobre

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    a denominao de afetividade. Segundo esse autor osafetos, assim como as sensaes, consistem em esta-dos psquicos subjetivos, mas que, diferentementedestas, se caracterizam pela propriedade de seremagradveis ou desagradveis. Os afetos podem servistos como uma conseqncia das aes do indiv-duo que visam satisfao de suas necessidades (cor-porais ou psquicas). Relata que o afeto pode desig-nar genericamente os elementos da afetividade, ou-tras vezes empregado como sinnimo de emoo.

    Define emoo como um estado afetivo sbito, decurta durao e grande intensidade, que se acompa-nha de alteraes corporais, relacionadas a umahiperatividade autonmica. Define sentimento comoum estado afetivo menos intenso e mais prolongado,sem as alteraes fisiolgicas das emoes e que tal-vez resultem de um processamento cognitivo maiordo que haveria as emoes. O humor representa umsomatrio ou snteses dos afetos presentes na consci-ncia em um dado momento. Constitui o estadoafetivo basal e fundamental, que se caracteriza por serdifuso, isto , no relacionado a um objeto especfico,e por ser geralmente persistente e no-reativo.

    Humor e afeto nas modernas classificaespsiquitricas

    O DSM-IV-TR (American Psychiatry Association,2000)17 denomina os transtornos referentes afeti-vidade de transtornos do humor, colocando esse lti-mo elemento como aquele que deve estar predomi-nantemente perturbado. Como episdio depressivomaior, por exemplo, estabelece como critrio humordeprimido ou perda de interesse ou prazer por umperodo mnimo de 2 semanas. Esse critrio temporalvaloriza ento um estado afetivo basal nos ltimos 15dias. Portanto podemos concluir dessa classificaoque o elemento basal da afetividade denominadocomo humor, sendo tambm o mais importante a serobservado para estabelecer um critrio diagnstico.Esse critrio semelhante ao adotado por Ribot, 19068

    ; Schneider, 196810 e Paim, 199312.Outro fator importante o de que no DSM-IV-TR

    toma como referncia o que o paciente descreve (as-sim denomina-se humor deprimido como tristeza,desesperanado, desencorajado ou na fossa) e o que observado, pois nem sempre o paciente relata ver-balmente estar deprimido (choro, expresso facial).Tambm leva em conta outros sintomas como ditasqueixas somticas e vegetativas como podendo serexpresses da esfera afetiva. Portanto devem-se so-mar as queixas apresentadas pelo paciente (localizan-do-as no tempo) ao que observado na entrevista.

    Entretanto essa classificao no faz meno aosestados afetivos menos duradouros como afetos e

    emoes. O que deve ser observado e como o notranstorno depressivo tambm proposto para o epi-sdio manaco. Assim, temos um humor anormal per-sistentemente elevado, expansivo ou irritvel, por pelomenos uma semana. Observa-se alm do que relata-do pelo paciente e seus familiares, suas atitudes naentrevista, assim como a forma de seus pensamento,auto-estima, ateno entre outros elementos indica-tivos indiretos de uma perturbao mais extensa eduradoura da esfera afetiva.

    J a Classificao Internacional de Doenas (Or-ganizao Mundial da Sade)18, na sua 10a edio(1993), refere-se a esses transtornos como perturba-es do humor ou do afeto. Nos critrios diagnsticosso includas observaes diretas e indiretas da esferaafetiva, mas tambm mais flexvel quando se referea temporaridade. Mesmo levando-se em conta de quepode haver alterao do afeto, o elemento mais im-portante observado o humor, entretanto esse no conceituado na classificao. Tambm so importan-tes para a observao das perturbaes o nvel de ati-vidade e o pensamento.

    Avaliao do humor e afeto na entrevistapsiquitrica

    A distino do humor e afeto no sempre umaspecto fcil e claro. Para Alonso-Fernndez (1972)5 acompreenso descritiva-cognitiva da afetividade ofe-rece muitas dificuldades e Schneider(1968)10 no inciodo captulo de Sentimentos e Sensaes, em seu li-vro Psicopatologia Clnica, j mostra a ambigidadepara definir tais elementos.

    Para Sanches et al (2005)19 estes itens corres-pondem seo mais difcil e subjetiva do exame doestado mental, haja vista que compreendem a descri-o do estado emocional do indivduo durante a ava-liao. Tal subjetividade decorre das inmeras varia-es encontradas na maneira como emoes e senti-mentos so vivenciados e expressos no somente deindivduo para indivduo como tambm de culturapara cultura (Sanches e Jorge, 2004)20.

    Porm sistematizar a observao desses elemen-tos na entrevista psiquitrica facilita o diagnstico etorna-o mais preciso. Permitem a reavaliao maisfidedgna dos pacientes e a reprodutibilidade dos di-agnsticos. Faremos, portanto uma proposta para aabordagem da afetividade no exame psquico.

    O primeiro passo como discutido acima definiro que cada um dos dois elementos. Assim adotamosos conceitos de Strauss (1999)21 no qual:

    O humor refere-se s emoes predominantes dopaciente. Tem tanto um componente subjetivo (a pr-pria avaliao do paciente) quanto um objetivo (ob-servado ou descrito por outros, por seus acompanhan-

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    tes ou membros da equipe do hospital durante umainternao). O humor do paciente, no importando seobjetivo ou subjetivo, mais bem descrito em termosque definem estados emocionais. Exemplos tpicosincluem calmo, feliz, triste, ansioso, deprimido, ale-gre, eufrico, tenso, hostil, furioso ou enraivecido,aptico, srio e exaltado.

    O afeto refere-se expresso ou expressividadedas emoes do paciente. Enquanto o humor do paci-ente pode ser comunicado em uma ou duas palavras,vrias emoes podem ser experimentadas e expres-sadas durante o curso de uma entrevista de 45 a 90minutos. Por afeto entende-se esta capacidade, ou li-mitao, do paciente de variar a expresso emocionalde acordo com o contedo do pensamento.

    Depois de definidos os elementos, passamos en-to a avali-los. Baseado no mesmo autor acima, pro-pomos a observao de algumas propriedades. O hu-mor pode ser caracterizado mais a fundo em termo deestabilidade, reatividade e durao.

    Estabilidade refere-se consistncia do humor, par-ticularmente ao longo do curso de um dia; algumasdepresses, por exemplo, tm uma qualidade invari-vel, enquanto outras, de carter igualmente grave,podem ter uma variao diurna na qual a depressodiminui levemente com o passar do dia. Reatividaderefere-se a quando um humor em particular muda, ouno em resposta a eventos ou circunstncias externas.Durao refere-se persistncia de um humor medidaem dias, semanas ou mesmo anos. A durao freqentemente de importncia diagnstica. Por exem-plo, humor deprimido deve persistir por duas sema-nas ou mais no tratamento depressivo maior, enquan-to a depresso ou disforia que caracterizam o trans-torno distmico devem durar dois anos ou mais.

    O afeto pode ser descrito em termo de: variao(plano, restrito); padro de mudana (fludo, monotnico,lbil); adequao (o afeto inapropriado, se incongru-ente com o contedo do pensamento ou grosseiramen-te diferente do que seria esperado para a idade e posi-o social do paciente); inteno da expresso (rgido ouembotado se a expresso emocional estiver virtual-mente ausente ou marcadamente reduzida). Outroelemento do afeto do paciente o relacionamento, a ca-pacidade do paciente de conectar com o entrevistadorinterpessoalmente.

    Concluso

    Perante os conceitos acima, uma das dificuldadesdo exame psquico definir se o que observado tra-ta-se de humor ou afeto. Segundo autores atuais ohumor significa o somatrio de vivncias afetivas. um elemento mais duradouro e no se relaciona a um

    determinado objeto. J o afeto trata-se de um elemen-to de curta durao, uma vivncia momentnea rela-cionada a um objeto (uma representao). Durante aentrevista podemos observar um estado basal (humor)e diversos estados passageiros de acordo com o con-texto (afetos). Sentimentos e emoes so conceitosdiferenciados, mas acabam includos dentro dessesdois elementos. Padronizar esses elementos pode tor-nar o exame psquico mais prtico e facilitar futuraspesquisas.

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    Data de recebimento: 23/06/2007Data de Aprovao: 03/10/2007