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RAFAEL SIQUEIRA DE GUIMARÃES
IDENTIDADE E IMAGINÁRIO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO:
ANÁLISE DOS CONFLITOS POLÍTICO-CULTURAIS NOS
BÁLCÃS
Araraquara – SP
2007
RAFAEL SIQUEIRA DE GUIMARÃES
IDENTIDADE E IMAGINÁRIO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO:
ANÁLISE DOS CONFLITOS POLÍTICO - CULTURAIS NOS
BÁLCÃS
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Araraquara para a obtenção do Título de Doutor em Sociologia. Orientadora: Profa. Dra. Elda Rizzo de Oliveira.
Araraquara – SP
2007
Guimarães, Rafael Siqueira de. G963 Identidade e imaginário no cinema contemporâneo : análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs / Rafael Siqueira de Guimarães. -- Araraquara, SP : Universidade Estadual Paulista, 2007. 223p. Tese (Doutorado) Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – Universidade Estadual Paulista Orientador : Elda Rizzo de Oliveira 1. Cinema contemporâneo – cultura. 2. Identidade. 3. Imaginação – imaginário. I. Título.
CDD 20ª ed. 791.43
AGRADECIMENTOS
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de
Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Agradeço a possibilidade de ser inserido na Linha de Pesquisa “Família,
relações étnicas e de gênero e saúde”, coordenada pelas Professoras
Doutoras Lucila Scavone e Elda Rizzo de Oliveira, por meio desta pesquisa de
doutorado, garantindo-me um aprofundamento nas questões que me eram
estranhas, devido à formação inicial. Somente por esta via pude realizar o
caminho de pesquisa num campo que havia escolhido, mas que necessitava de
uma ampliação conceitual.
Aos membros da Banca de Exame Geral de Qualificação, Prof. Dr.
Cláudio Bertolli Filho e Profa. Dra. Renata Medeiros Paolielo, pela leitura atenta
ao meu trabalho e pela disponibilidade em serem meus interlocutores nesse
momento.
Agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Elda Rizzo de Oliveira, por
deixar menos tortuosa essa jornada em busca de meus objetivos.
À Profa. Maria Teresa Miceli Kerbauy pelas recomendações na disciplina
“Seminários de Pesquisa”, que foram muito úteis para a construção de meu
campo de pesquisa e a elaboração do texto final.
À secretária do programa de Pós Graduação em Sociologia, Cristiana e
à secretária do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia, Selma, por
serem sempre tão disponíveis.
À minha mãe, Claudete, e à minha irmã, Renata, por me oferecerem o
apoio emocional necessário em momentos nem sempre tão fáceis e por terem
me incentivado na construção de minha vida acadêmica.
Ao amigo Maurício Ricci, pelas tardes agradáveis em Araraquara e pelo
apoio nas minhas ausências, realizando minha matrícula e entregando
documentos, muitas vezes.
Ao Bob, pelo carinho sempre dispendido e muitas vezes pelo apoio
logístico nas minhas estadas em Araraquara.
Aos amigos e colegas de Cascavel, Verônica, Bia, Cissa e Leandro, que
me substituíram em aulas, reservaram material, providenciaram cópias e me
apoiaram em minhas ausências para as aulas e orientações.
Aos colegas na Universidade Estadual do Centro-Oeste, especialmente
Alayde, Cléa, Rosanna, Álvaro, Rosemary e João, do Departamento de
Psicologia, por me auxiliarem nas minhas ausências da Universidade durante
a fase final de elaboração desta Tese de Doutorado.
Às grandes amigas Rachel e Daniela, que me receberam em suas casas
durante o período de cumprimento de créditos.
Aos amigos Gilmar Monte e Charlie, pela correção do abstract.
Faço um agradecimento especial às minhas orientandas de Iniciação
Científica, Vanessa Tramontin da Soler e Aline Ariana Alcântara Anacleto, pela
possibilidade de ampliar algumas das discussões aqui presentes em outros
desdobramentos.
Agradeço também a todos os amigos e alunos que acompanharam meu
processo de formação.
GUIMARÃES, R. S. Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflito político-culturais nos Bálcãs. 2007, 223 f., Tese (Doutorado em Sociologia), Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007.
RESUMO: Por meio do estudo do imaginário representado em filmes, portanto, em seus sentidos e em seus usos, objetivo, com esta Tese de Doutorado, uma possibilidade de compreensão das identidades e culturas envolvidas nos conflitos ocorridos nos Bálcãs nos meados da década de 1990. Utilizo, como campo empírico, cinco produções fílmicas que enfocam os conflitos por mim estudados, especificamente realizadas na região e por autores da região: Beautiful People, Vukovar, Bela Aldeia, Bela Chama, Antes da Chuva e Terra de Ninguém. Tomo como paradigma de análise a Antropologia do Imaginário em suas possibilidades metodológicas de leitura da imagem, a partir de sua crítica ao Positivismo e ao Historicismo. Foco a análise das imagens visando compreender dois aspectos principais, que assinalam a crítica ao Pensamento Ocidental: as identidades construídas na modernidade e a condição humana encrustada nos símbolos que ancoram essas imagens, o que me permite construir uma hermenêutica de sentido, nos meandros da relação entre o sensível e o inteligível. Este trabalho possibilitou relacionar as questões culturais e as identidades construídas em seu interior e as questões postas pela modernidade, primeiramente, a partir do Iluminismo, bem como compreender, a partir da manifestação artística (e das imagens e símbolos representados nesta), como o homem tem repensado a sua condição frente aos desafios dessa modernidade que rui. PALAVRAS-CHAVE: Conflitos Político-culturais; Antropologia do Imaginário; Hermenêutica de Sentido; Identidade; Cultura, Cinema Contemporâneo.
GUIMARÃES, R. S. Identity and imaginariness on contemporary cinema: analysis of the Balkan´s cultural and political conflicts. 2007, 223 f. Tese (Doutorado em Sociologia), Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2007. ABSTRACT: My objective, in this Doctoral Thesis, is to organize through a study of the imaginariness represented on films (therefore, in their senses and uses) a possibility to study the identities and cultures involved in the Balkans conflicts occurred in the 1990´s. My empirical camp was based on five film productions which show the conflict, such as Beautiful People, Vukovar, Lepa Sela, Lepo Gore, Before The Rain and No Man´s Land, specifically produced in the region and by authors who lived in the Balkans. I take as a paradigm of analyses, the Anthropology of Imaginariness and their methodological possibilities in order to have a reading of those images, from their criticism of Positivism and Historicism. The images have been analysed in pursuit of understanding two main aspects: the identities built on modernity and the human condition projected on symbols which can be interpreted from such images, using a hermeneutic of senses, seeking relations between emotional and rational. This work could show relations between the cultures (and the identities inside these cultures) and the modernity questions, at first, which come from the Illuminism, as well as comprehend, in artistic manifestation (and the images and symbols represented by the art), how man has thought of his condition before the challenges of this modernity which tends to collapse. Key-words: Political and Cultural Conflicts; Anthropology of Imaginariness; Hermeneutic of Sense; Identity; Culture; Contemporary Cinema.
SUMÁRIO
Introdução 8 O campo de estudos 14 Objetivos 21 A metodologia da pesquisa 21 I. Globalização, modernidade e subalternidade 22 II. Projeto político do socialismo e identidades 23 III. Modernidade, produção de informações e a crise das Instituições modernas
25
IV. Mecanismos de construção da subjetivação 27 V. A condição humana 28 VI. Temporalidade, imaginário e realidade mítica e imaginal 30 A pesquisa 31 As técnicas da pesquisa 35 A Tese 36 Capítulo I. O conflito nos Bálcãs: uma discussão histórica
38
1.1. Século XX: um século de (in) certezas 39 1.2. O campo do conflito 44 1.3. Os Bálcãs hoje 47 1.4. Os Bálcãs como território otomano 52 1.5. O domínio do Império Austro – Húngaro 54 1.6. A Mão Negra 60 1.7. A declaração da I Guerra Mundial, em 1914 64 1.8. De uma geopolítica à bacia semântica
70
Capítulo II. Processos identitários e os Bálcãs
77
2.1. A concepção de identidade essencialista 79 2.2. Concepção de identidade política construída a partir da crítica ao sujeito histórico
82
2.3. Cultura mediterrânea e imaginário antropológico 91 2.4. A Europa como força mítica: a mãe-pátria de todos os povos europeus
96
Capítulo III. O cinema como símbolo: símbolo, imaginário e inconsciente coletivo
106
3.1. A produção cinematográfica como linguagem 108 3.2. As imagens fílmicas pela via do imaginário 110 3.3. Etnografia fílmica 114 a) Beautiful People 115 b) Bela Aldeia, Bela Chama 118
c) Antes da Chuva 120 d) Terra de Ninguém 122 e) Vukovar 123 3.4. Razão imaginante e razão mediática 126 3.5. Imaginário e geografia: o lugar como arquétipo 131 3.6. Imaginário e temporalidade 138 3.7. Imaginário, contemporaneidade e destino humano
142
Capítulo IV. Autor e obra: da produção de identidades à produção de identificações
149
4.1. Autor e obra: a natureza de uma realidade 150 4.2. Indústria do cinema e as produções balcânicas 156 4.3. Os outros meios de comunicação de massa e as produções balcânicas
161
4.4. O cinema dos Bálcãs e o processo de globalização 166 4.5. Ressignificações: autor e sua obra
171
Capítulo V. A condição humana, essa invariante antropológica
179
5.1. Pode um destino ser determinado a priori? 181 5.2. Identidade e identificações 186 5.3. Condição humana e múltiplos devires 189 5.4. A realidade imaginal dos Bálcãs
196
Conclusão
201
Referências bibliográficas
210
Anexo 222
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
8
Introdução
É assim que, diante de um mundo que se pretende positivo, um mundo exigindo realismo, um mundo aparentemente uniformizado, sente-se renascer o desejo do “outro lugar”. (MAFFESOLI, 2000, p. 107)
O século XX conheceu várias traduções da ciência no plano social. Em
vários continentes do mundo, da Europa à Ásia, passando pelo continente
africano, sul americano e a América Central observamos profundas
transformações ocorrendo desde a Segunda Guerra Mundial, deixando marcas
na geopolítica internacional, mas também abrindo questões sobre as quais as
teorias sociais são forçadas à reflexão. Diferentes formações sociais, algumas
saídas de condições coloniais outras não, conheceram diferentes traduções da
aplicação do pensamento social às lutas sociais; algumas nos moldes clássicos
de construção do projeto político socialista ou comunista, outras apresentando
novas formas de tessitura de relações sociais. Dentre estas, podemos
destacar, além das experiências balcânicas, a Colômbia, os conflitos religiosos
na Irlanda e os conflitos dos Chiapas, no México.
O projeto político de construção do socialismo nos Bálcãs consistiu
numa dessas traduções. A construção do vínculo político e social que
utopicamente transcenderia o obscurantismo produziu resultados bem
diferentes daqueles idealizados pelo projeto político. O complexo processo de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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passagem do rural para o urbano, isto é, de uma sociedade agrária para uma
semi-industrial, ocorrido nas últimas cinco décadas na região balcânica, que é
o lócus da minha pesquisa, engendrou transformações não apenas geográficas
ou políticas, demográficas ou sociais, mas também antropológicas e imaginais,
quando o outro eclodia como o diferente. Era preciso compreender o que se
passava com aqueles que foram desenraizados de seus lugares de origem e
lançados sem esperança em outros contextos do interior ou não de seus
próprios países, constituindo-se como resultado do drama moderno
(IVEKOVIC, 1997).
Esta Tese é o resultado de uma reflexão que toma como eixo a
construção de vários projetos políticos que culminaram no projeto comunista
para o Leste Europeu, numa das regiões que se constitui como uma das
fronteiras entre o Oriente e o Ocidente, o Mediterrâneo e, particularmente, o
atual Estado Iugoslavo. O Mediterrâneo banha a Albânia, estando muito
próximo do território do Estado Iugoslavo, que posteriormente foi dividido.
Neste estudo, quero compreender, através de produções fílmicas realizadas
por autores locais, o modo como o cinema, enquanto símbolo que religa o
manifesto ao oculto, a natureza à cultura, põe em relação situações, tragédias
e sofrimentos apresentados a um público internacional por meio de imagens
que marcam profundamente a alma individual e coletiva dessas etnias. Ao
mesmo tempo, essas imagens revelam uma tendência que aponta a forma
como os símbolos, prenhes de dinamismos apresentados nessas obras do
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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cinema, indicam por onde se move o inconsciente coletivo operante nessa
região. Já que os símbolos tendem a uma certa direção (DURAND, 1993;
2001b; PITTA, 2005), discuto, neste estudo, esta direção, que não é política, no
sentido tradicional do contrato social, mas é mítica, eivada de elementos de
identidade, alteridade e etnicidade, quando proponho que para compreender
esse sentido de como os símbolos movem-se para uma certa direção, há de se
construir um novo tipo de razão: uma razão que explique como as imagens
produzidas pelas sociedades, dentre elas, pelos filmes analisados, movem a
história porque eivam-na de realidade imaginal1 (uma realidade de natureza
mítica) os estoques culturais atuantes na ordem simbólica de todos nós,
habitantes ou não dessas regiões. Assim, esses símbolos apresentam sentidos
e direções muito diferentes daqueles que levaram ao desencantamento do
mundo, como os que estão presentes nas ideologias modernas. Ouso dizer,
apoiado nos hermeneutas citados nesta Tese, que os símbolos apresentados
nos filmes analisados tendem para um reencantamento do mundo, situação
paradoxal para um olhar que não trabalhe com a razão imaginante, como o
veremos.
O que é um projeto político? Qual é a eficácia de um projeto político para
a solução de problemas sociais como os vividos pelos habitantes da região dos
1 O conceito de realidade imaginal foi denominado assim por Henry Corbin, que traz da tradição
fenomenológica sua compreensão. Para este autor, a realidade imaginal é um mundo próprio e, numa realidade que pressupõe um nível de imaginação visionária, distinta de uma imaginação psicofisiológica. A realidade imaginal, como mundo intermediário no qual personagens e paisagens se manifestam, é a possibilidade de desligamento desta com o mundo material, fazendo um trajeto em direção aos arquétipos (WUNENBURGER & ARAÚJO, 2003).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
11
Bálcãs? Como se constrói uma cultura articulando projetos políticos e
subalternidade? Como é que a geopolítica pensada para esse local se
relacionou com as várias culturas existentes? É possível pensar que uma
problemática geopolítica produza também ressonâncias imaginais? Como
essas ressonâncias imaginais se transformam em temas que redundam nas
lógicas das mediações simbólicas apresentadas pelos filmes? Que papel
exerceram os meios de comunicação de massa em sua relação com os “de
dentro” dos Bálcãs e com a sociedade internacional? Essas são as questões
que busco responder com esta Tese de Doutorado.
De um lado, a ciência moderna, construída desde o pensamento
aristotélico até o seu apogeu nos séculos XIX e XX (TARNAS, 2005). Por outro
lado, a própria Modernidade se coloca em xeque, se revê, se auto-reflexiona:
assiste a seus projetos científicos e sociais, baseados no ideário do Iluminismo,
ruírem. Como complemento polar, a herança de outras correntes ligadas
especialmente às artes e à sensibilidade, o Romantismo e suas derivações,
que se configuraram em diversas épocas da História (desde a cultura greco-
romana clássica, passando pelo Renascimento e pela Reforma), não como
pensamento dominante, formam, como veremos adiante, afluentes de uma
“bacia semântica” (DURAND, 2001a). Nas palavras de Tarnas, essa herança
passa a “expressar exatamente os aspectos da existência humana eliminados
pelo avassalador espírito racionalista do Iluminismo” (TARNAS, 2005, p. 393), .
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
12
Nesse campo epistemológico de disputas do pensamento moderno
figuram: de um lado o homem constrói uma explicação plausível e
domesticadora do mundo, confundindo natureza com cultura, homem com
sociedade, como realidade; e, de outro, faz sua autocrítica. Esta autocrítica é
possível graças às ruínas que esse homem viveu. Os projetos políticos que
faliram: o capitalismo ou o socialismo como propostas universalizantes não dão
conta dos problemas e das grandes questões sociais existentes no mundo
moderno, em seu lugar, ou ainda, co-existindo com eles, em vários casos, a
globalização que caminha a passos largos, redefinindo fronteiras e fazendo
com que esse homem, a partir da vivência dessa “grande comunidade mundial”
tenha que repensar os conceitos propostos pelo próprio Iluminismo sobretudo
pela identidade construída em seu bojo.
Em seu interior, a ascensão da tecnologia na contemporaneidade levou
ao desenvolvimento contínuo dos meios de comunicação, e estes se tornaram
facilitadores da confrontação entre as culturas mundiais (DURAND, 1993).
Dentre os meios de comunicação, um que merece especial atenção é o
cinema: dotado de linguagem própria e caracterizado por uma forma particular
de operacionalizar ideologias, símbolos e o real (CARRIÈRE, 1995), meio
privilegiado do contato com outras linguagens da arte (artes plásticas, música,
arquitetura), o cinema expandiu-se por todo o mundo e, no século XX, foi
protagonista da possibilidade de representação de diferentes culturas. Como
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
13
lembra Baudrillard , “no nosso universo midiático, a imagem costuma ocupar o
lugar do acontecimento” (BAUDRILLARD, 2004, p. 40-41).
Ocupando esse espaço tão importante na vida das pessoas, a imagem,
e mais especificamente o cinema, também passa a ocupar os interesses da
Academia. Intelectuais de toda sorte, com diferentes formações e baseados em
diferentes abordagens teórico-metodológicas passam a se dedicar ao estudo
do cinema. Por viver esse processo como parte de minha formação humana,
também sou de uma geração que conheceu muitas das coisas através da
imagem. O cinema sempre me encantou como arte e sempre me possibilitou
questionamentos acerca do mundo, pois as imagens (seus símbolos) me
traziam os acontecimentos desse mundo. O outro, com a morada na imagem,
vinha ao encontro do outro em mim mesmo. Causava-me estranhamento, por
um lado, e encantamento, por outro. Também nascido no interior de um
paradigma positivista de ciência, que posteriormente (na formação em
Psicologia e, mais ainda, no doutorado em Sociologia) vim questionar, aprendi
a receber as informações como verdades, pois, afinal, eram fatos.
A formação de Psicólogo, entretanto, me ensinou que existe
interpretação. Rompia-se, ali, a linearidade explicativa dos fatos. Uma imagem,
então, como comportamentos, atitudes, emoções, poderia ser interpretada,
traduzida, de acordo com os desdobramentos teóricos que pudessem ser
feitos. A Psicologia que eu conhecia, entretanto, não me pareceu capaz,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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sozinha, de criar uma estratégia teórica e metodológica para o estudo das
imagens. Adentrei num campo de cunho mais sociológico e, então, passei a
estar em contato com as matrizes da Antropologia do Imaginário, rompendo
com as fronteiras do conhecimento, em busca da pluridisciplinaridade.
Este caminho, nada simples, pois colocou-me o desafio de romper com
as questões que me pareciam próprias de estudo, para então perseguir num
pensamento sociológico, realizar um aprofundamento em meu campo
conceitual, entender diversas relações que se opunham muitas vezes, mas que
se complementavam, possibilitou que eu construísse um novo olhar sobre
minha própria formação. Ao mesmo tempo, também colaboro, com este estudo,
com a discussão pluridisciplinar, já que, como psicólogo, sou tocado de uma
maneira diferente dos demais cientistas sociais. Contribuo com a percepção de
questões ligadas à subjetividade e realizo ligações sobre a condição humana,
tentando que esta seja compreendida de forma mais ampla, abarcando as
questões míticas, inconscientes, que perduram pela dor desses homens que
vivem as contradições sociais, a negação da alteridade e os processos da
Modernidade.
O campo de estudos
Transporto-me, então, para o interior de meu campo de pesquisa: a
produção da arte através do cinema como um dos mediadores para o
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
15
entendimento dos conflitos político-culturais ocorridos nos Bálcãs. Os meios de
comunicação de massa veicularam para o restante do mundo idéias a respeito
desses conflitos, desde meados da década de 1990, constituindo o que um dos
autores denominou de “política do medo” (THOMAZ, 1997). A mídia construiu e
divulgou largamente um ideário de ódio ancestral supostamente existente entre
os povos envolvidos nos conflitos, portanto uma concepção de selvageria,
muito além de apenas existência de diferenças entre eles, mas em oposição
aos aludidos povos civilizados, ocidentais. Assim sendo, por meio da televisão,
especialmente pelo jornalismo de guerra, o mundo teve acesso a essas idéias.
São idéias acerca dos problemas contemporâneos que tratam da identidade,
realizados de maneira policial e belicosa.
Inicio aqui a discussão de identidade que acompanhará a Tese como um
todo, lembrando que no interior das ciências sociais, a identidade como
conceito, foi construída a partir da concepção moderna de homem, desde
Hegel e Mead (RÚBEN, 1986). Este conceito apontou para a noção de
universalização, da solução social via projeto político no sentido de minimizar
as contradições sociais vividas entre os povos, alemães e norte-americanos, e
buscando uma instância que homogeneizasse os povos (em Hegel, seria o
Estado, e em Mead, os grupos sociais). Entretanto, pensar o mundo
contemporâneo nos remete à insuficiência dessas propostas dicotomizadas.
Ivekovic (1997) afirma que pensar questões dessa forma incorreria numa
falsificação da história, já que pela universalização das identidades, sob a
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
16
égide do projeto político socialista no Leste Europeu, ou da solução via cultura,
ou mesmo pela explicação racial, biologizante, das identidades, não
contemplaria a complexidade das dinâmicas nelas abarcadas.
Este problema, que nos parece tão distante, nos é tão próximo. É
preciso repensar as identidades e também a cultura. Os conceitos
universalizantes ou mesmo em alguns momentos relativizantes das identidades
e culturas, como em Geertz, por exemplo (GEERTZ, 2006), não dão conta do
que vivenciamos na sociedade contemporânea: identidades em conflito,
negação da alteridade, a luta política das identidades postas em conflitos
político-culturais e míticos (etnicidade). É preciso repensar esses conceitos
para lidar com os acontecimentos marcantes dos conflitos a que me debruço
nesta Tese. A limpeza étnica configurou o ápice da negação da alteridade
quando pensada a partir das teorias sobre a identidade no interior das ciências
sociais que as embasaram. Assim, essas teorias serviram também como
justificativas para a criação de projetos políticos modernos (dentre eles, o
socialismo); ou ainda, para a radicalização do movimento expropriador no
interior da luta política e do embate étnico, produzindo, inclusive, a estratégia
da limpeza étnica. É preciso repensar o conceito de cultura. Para isso, trago à
discussão as palavras de Edgar Morin:
A cultura reúne em si um duplo capital: por um lado, um capital técnico e cognitivo – de saberes e de saber-fazer -, que, em princípio, pode ser transmitido a qualquer sociedade, e, por outro lado, um capital específico, que constitui os traços de sua identidade original e alimenta uma comunidade singular em referência aos seus antepassados, aos seus mortos, às suas tradições (MORIN, 1997, p. 165).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Dito de outra maneira, temos em Almeida esta definição de cultura:
[...] a cultura é sobretudo marcada pela manutenção/metamorfose dos registros da memória primordial de todos os homens e de cada um deles. Daí por que é possível argumentar em favor de uma transversalidade que une natureza e cultura (ALMEIDA,2006, p. 35).
As identidades, suas construções e metamorfoses, estão em contínua
dialogia com as culturas, isto é, não podem ser construídas como territórios
fixos, nem são, tampouco, imutáveis. Pelo contrário, são extremamente
mutáveis, pois se relacionam com diversas questões históricas, sócio-culturais,
geopolíticas (IVEKOVIC, 1997) e também imaginais. Mas não se trata apenas
de pensar essas questões mapeando-as como se elas pertencessem ao
terreno empírico, como se aí se esgotasse seu poder explicativo. Trata-se
também de relacionar essa discussão às questões simbólicas envolvidas, pois
o símbolo é um elemento mediador, o que faz a ligação entre natureza e
cultura, o que constrói o vínculo social e religa o oculto ao manifesto.
Retomando as palavras de Morin (1997, p. 165), na cultura o homem se religa
à sua ancestralidade, aos “seus antepassados, aos seus mortos, às suas
tradições”, e nessa relação entre o eu e o outro, vão sendo construídas as
identidades.
Nesse sentido, pensar como os símbolos culturais estão presentes, ao
realizarem essas mediações entre os homens, auxilia-nos na construção de
suas identidades. Para isso, coloco-me em favor da contribuição da
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Antropologia o Imaginário, pois esta entende que é pelo imaginário que se
pode compreender a imagem e as questões simbólicas nele envolvidas.
O imaginário antropológico foi assim definido por Gilbert Durand:
[...] o Imaginário – ou seja, o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como grande denominador fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por um outro aspecto de outra (DURAND, 2001b, p. 18)
É preciso entender aqui que esta escolha, de maneira nenhuma, é
neutra. Assumo aqui que as contribuições de outros autores da Antropologia
para a análise de filmes deixaram lacunas no estudo dessas produções.
Algumas delas enfocaram o filme como uma possibilidade de etnografia (ainda
num sentido mais clássico), mesmo utilizando essa outra forma de apreensão
do real, considerando as relações intersubjetivas (COMOLLI, 2000; FRANCE,
1998; REYNA, 2007). Outros autores das Ciências Sociais, como bem aponta
Menezes (2001), baseados na noção de representação, discutiram o cinema
como reflexo de um determinado ideário social, ainda em contraponto com
outros autores, dedicados aos estudos da Indústria Cultural.
Proponho-me aqui a discutir uma possibilidade sobre um olhar baseado
na Antropologia do Imaginário, sem contudo apresentar uma solução, inclusive
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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para o conceito de Imaginário, utilizado pelas Ciências Sociais, pela Psicologia,
Psicanálise e Filosofia de diferentes formas. Posicionar-me em favor do
Imaginário Antropológico significa uma abertura pluridisciplinar, como aponta
Durand (2001b), logo acima. Assim, operacionalizo a compreensão do símbolo,
partindo de uma hermenêutica de sentido, cujos desdobramentos não tive a
pretensão de esgotar.
Discutida profundamente por Gilbert Durand e a Escola de Grenoble, na
França, sobretudo nos anos de 1980 em diante, e utilizada como parâmetro
para a pesquisa realizada nesta Tese, o imaginário pode ser compreendido a
partir de algumas linhas mestras, organizadas por Wunenburger e Araújo
(2003):
a) O imaginário com sua lógica própria está organizado em estruturas,
“permite mesmo definir um estruturalismo figurativo, que compõe
formalismo e significações.” (WUNENBURGER & ARAÚJO, 2003, p.
34);
b) O imaginário insere-se em “infra-estruturas (o corpo)” como em
“superestruturas (as significações intelectuais)”, entretanto é, ao mesmo
tempo, independente desses, excedendo os limites do mundo sensível
(WUNENBURGER & ARAÚJO, 2003, p. 34);
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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c) O que a imaginação produz são “representações simbólicas onde o
sentido figurado activa pensamentos abertos e complexos”
(WUNENBURGER & ARAÚJO, 2003, p. 34), que só uma posterior
racionalização pode trazer à consciência, ou seja, o que a imaginação
produz vai além do produto consciente;
d) O imaginário é inseparável da expressão da liberdade humana, seja nos
seus aspectos psíquicos ou materiais, e
e) O imaginário é fonte de erros e ilusões e, ao mesmo tempo, “revelação
de uma verdade metafísica” (WUNENBURGER & ARAÚJO, 2003, p.
34). O sentido que é dado à imaginação e seu uso é capturado pela
teoria do imaginário, no sentido de que não apenas a produção das
imagens é importante.
A discussão do imaginário antropológico realizado através da história
dos conflitos étnico-religiosos apresentados pelas produções fílmicas nos
Bálcãs é feita articulando cultura e estrutura. Estrutura e cultura são dois eixos
por meio dos quais ocorrem as disputas teóricas entre as principais escolas
antropológicas (OLIVEIRA, 2003).
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Objetivos
Ao apresentar as tópicas gerais acerca da Antropologia do Imaginário,
desemboco no objetivo geral deste estudo. Por meio dos filmes selecionados
para esta pesquisa2 (Beautiful People, Vukovar, Bela Aldeia, Bela Chama,
Antes da Chuva e Terra de Ninguém), em seus sentidos e em seus usos,
esta Tese objetiva discutir uma possibilidade de compreensão das identidades
e culturas envolvidas e desenvolvidas nos conflitos ocorridos nos Bálcãs, nos
meados da década de 1990. Uma vez que as manifestações do imaginário são
inseparáveis das materializações humanas, como nos mostraram Wunenburger
e Araújo (2003), por meio do cinema, os homens também atribuem sentidos, se
conscientizam, elaboram e reelaboram suas vidas, indagam-se acerca das
questões “de saberes e de saber-fazer” e na “referência aos seus
antepassados, aos seus mortos, às suas tradições” (MORIN, 1997, p. 165). Em
outras palavras, por meio do cinema eles representam, materializam as
questões sobre identidades e cultura, que se traduzem em práticas simbólicas,
como veremos ao longo da análise dos filmes.
A metodologia da pesquisa
Para que possa caminhar na direção do desvelamento das produções
fílmicas que são objeto de meu estudo, construo um caminho metodológico a
2 Cópias das produções em DVD encontram-se na Biblioteca da Faculdade de Ciências e
Letras de Araraquara, para consulta.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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partir de operadores cognitivos como orientação conceitual para esta pesquisa.
Esses operadores cognitivos estão nucleados nos dois eixos apresentados
anteriormente nesta Introdução: a) a cultura, e b) o imaginário antropológico.
I. Globalização, Modernidade e subalternidade
A concepção moderna de Estado-Nação definiu um eixo de relações
entre os homens no interior dos seus projetos políticos: “a autoconsciência
nacional do povo proporcionou o contexto cultural que facilitou a ativação
política dos cidadãos” (HABERMAS, 1995, p. 91). Cidadãos homogeneizados
sob a égide do Estado, primeiramente a partir dos conflitos religiosos, levaram
às ruínas essa forma de aglutinação. As pessoas, por pertencerem a uma
mesma nação, “espalhadas em amplos territórios [...], [se sentiam]
politicamente responsáveis umas pelas outras” (HABERMAS, 1995, p. 92). Ao
viverem os dilemas iniciais da luta de classes, com o passar dos tempos, com
aponta Martins (1989), elas se aglutinaram em um projeto político (ou não), em
diferentes movimentos sociais protagonizados por aqueles que não se sentiam
cidadãos, que não tinham garantidos os seus direitos políticos. Relendo a
literatura marxista das ciências sociais, Martins opõe-se à visão historicista
presente nos textos de seus autores, quando localizam como único sujeito
histórico de mudança social as classes subalternas:
Cada vez mais, a ampla diversidade de características e interesses dos diferentes grupos subalternos tendeu a definir as classes subalternas como
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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uma pluralidade de perspectivas, de ações, de estratégias, de interesses. (MARTINS, 1989, p. 129)
Tomando o raciocínio do autor de forma mais abrangente, isso leva a
considerar o seguinte questionamento: “não só a exploração, mas também as
diferentes formas assumidas pelo poder na vida cotidiana dos diferentes
grupos e pessoas” (MARTINS, 1989, p. 129). Pensar sobre o poder vem ao
encontro de minhas indagações sobre como essas relações de poder são
postas ou mesmo construídas numa região de conflitos, onde não se vive
apenas a velha dicotomia de classes burguesia/classe operária. Há inúmeros
segmentos de classe, para além da classe operária que se relacionam e
disputam entre si legitimidade para exigir seus direitos sociais e políticos. O
campo de minha pesquisa consiste num lugar onde o poder está pontuado por
outras mediações: étnicas, religiosas, míticas, disputando legitimidades através
de práticas simbólicas, criando e recriando, consciente e inconscientemente,
complexos mecanismos e dinâmicas culturais. Temos, assim, o lugar como
arquétipo, um lócus onde rebatem forças imaginais.
II. Projeto político do socialismo e identidades
Tomando como ponto de partida a discussão realizada por Martins
(1989) acerca da cidadania e da luta de classes, o projeto político do
socialismo foi um projeto universalizante. Ele tentou pactuar com a idéia de
igualdade de acesso aos bens produzidos pela Modernidade e se constituiu
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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como uma proposta utópica no sentido de romper com a contradição de
classes, promovendo uma saída para o conflito social pela via do projeto
político. Castoriadis (2000) define projeto político como:
[...] o elemento da práxis (e de toda a atividade). É uma práxis determinada, considerada em suas ligações com o real, na definição concretizada de seus objetivos, na especificação de suas mediações. É a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido desta transformação, levando em consideração as condições reais e animando a atividade. (CASTORIADIS, 2000, p. 97)
O projeto político do socialismo para os povos balcânicos, sob a
égide desta utopia e sua operacionalização em um Estado único da Iugoslávia,
negou a alteridade e a diferença na construção das identidades (IVEKOVIC,
1997). Rúben (1986) que corrobora, em certa medida, com os apontamentos
de Ivekovic (1997), aponta que, em contextos atuais, há a saturação das
tentativas contemporâneas de definir identidades a partir da compreensão do
outro relacionado a situações específicas. Para ele, essas tentativas, da
mesma forma que as tentativas clássicas de Hegel e Mead, estariam buscando
a irredutibilidade do fenômeno de identidade, relacionadas a uma tradição da
ciência moderna: a tradução social dos pressupostos do Iluminismo. Para o
estudo que ora é realizado, é importante compreender também como foram
falsificadas ao longo do processo histórico, as identidades/alteridades, e agora
reaparecem clamando por justiça social em conflitos étnico-religiosos e
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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culturais (IVEKOVIC, 1997). É preciso compreendê-las mais profundamente
para que se possam buscar as mediações necessárias existentes entre as
práticas sociais e as representações fílmicas, já que elas se ancoram sobre o
imaginário, em constante encadeamento com a história, com a política e com a
territorialidade.
III. Modernidade, produção de informações e a crise das
instituições modernas
A Modernidade, pensada à luz do processo civilizatório, da
homogeneização do homem e da negação da alteridade, opera numa
contraditória relação entre a proliferação das informações e a crise das
instituições, como nos mostra Durand (2001a). O projeto da Modernidade como
um projeto de sentidos da história encontrou, no desenvolvimento da ciência
moderna, o crescimento da tecnologia e da tecnologia da informação. Vejamos
em Durand uma expressão desse fenômeno:
a “civilização da imagem” permitiu a descoberta dos poderes da imagem há tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os mecanismos de formação, as deformações e as elipses da imagem. Por sua vez, a “explosão do vídeo”, fruto de um efeito perverso, está prenhe de outros “efeitos perversos” e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens (DURAND, 2001a, p.117 -118).
Este autor conflui sobremaneira com a discussão mais localizada em
relação ao conflito dos Bálcãs, realizada por Thomaz (1997). Ele afirma que a
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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explosão das imagens pelo vídeo transforma o espectador em um agente
passivo, que recebe a imagem “enlatada” e exclui qualquer tipo de valoração
por parte do consumidor: recebe toda a imagem como um espetáculo, o qual
contempla com “olho de peixe morto” (DURAND, 2001a, p. 118). Parece que
isso é válido tanto para as receitas de cozinha como para os conflitos nos
Bálcãs.
Ampliando a discussão, Thomaz (1997) ainda reafirma que esse
espetáculo aludido por Durand é um espetáculo do medo e transforma quem
está do lado de fora do conflito (geograficamente) em um ser passivo. Nesse
sentido, vale ressaltar que as produções que serão estudadas nesta Tese
trazem também essa discussão, como parte da vivência contemporânea da
informação/desinformação e como essas mediações são feitas pelos atores
sociais que recebem essas “imagens enlatadas”. Também, seguindo esse
raciocínio, sou, como pesquisador, um receptor de imagens: transformo-me,
entretanto, num outro tipo de receptor, pois busco desvelar como essas
informações são recebidas por outro receptor, eu mesmo, que me torno,
também, objeto do estudo, já que também sou esse receptor da mídia de
entretenimento, de guerra, de política ou de economia.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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IV. Mecanismos de construção da subjetivação
O imaginário move a história. Na produção das condições de vida, os
homens constroem também as dimensões simbólicas da existência, dentre elas
às que aludem à subjetividade. As imagens são redundantes e aparecem nos
sonhos, nos mitos e nas imagens fílmicas, e nos mostram como os homens,
por meio da apropriação/ expropriação se situam com relação à cultura e às
suas dimensões míticas. Morin afirma:
O mito mantém a recordação, o culto, a presença do antepassado, mantendo por isso a identidade colectiva-individual. Esse tema do antepassado, das origens, da genealogia, repete-se, obsessivamente, nos símbolos, nas tatuagens, nos emblemas, nos enfeites, nos ritos, nas cerimônias, nas festas (MORIN, 1997, p. 164),
A importância e redundância mesmo dos símbolos na vida cotidiana dos
homens é também apontada por Wunenburger e Araújo (2004) e Durand
(2001a). Os primeiros aludem ainda à questão do uso que se faz da imagem. O
segundo aponta sobre a importância que esses símbolos da cultura tomaram
na contemporaneidade, visto sua possibilidade de sentido ser dada também
pelos meios de comunicação. Discutindo as imagens fílmicas, essas questões
se tornam fundamentais para a compreensão das histórias e da elucidação de
como o autor é ao mesmo tempo produto e produtor desta história, como ele
elabora e reelabora, por meio dos símbolos, a sua subjetividade.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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V. A condição humana
O trajeto antropológico, a corporeidade e as estruturas arquetípicas
contidas nas produções fílmicas constituem um meio privilegiado para a
compreensão da condição humana3. Como oposição existente entre o
Romantismo e o Iluminismo (TARNAS, 2005), a espiritualidade é retomada na
contemporaneidade como forma de re-historicizar o mundo. Dito de outro
modo, a partir de uma poiésis que move o processo, o símbolo torna-se eficaz
(WUNENBURGER & ARAÚJO, 2004). O símbolo como mediador nos permite
compreender a ordem social existente, para além dos projetos políticos. E
mais, nos permite compreender que há mobilização de contradições, de outra
natureza, para além da política, miticamente, simbolicamente:
O que foi, no princípio do século XX, inaugurado por alguns grupos da boêmia artística ou intelectual, vem a ser, neste novo milênio, uma realidade incontornável. O desejo, a paixão e o espírito formam uma ‘nova aliança’: do materialismo e da espiritualidade, certamente, da natureza e da cultura, do ventre e do intelecto. (MAFFESOLI, 2003, p. 179)
As questões representadas e re-presentadas nos filmes que tomo como
campo de análise dão suporte e materialidade a uma discussão do imaginário
3 Trajeto antropológico é “a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as
pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanadas do meio cósmico e social” (DURAND, 2001, p. 41)
Corporeidade pode ser entendida em torno das três dimensões propostas pela Antropologia do Imaginário: a dimensão vital (que diz respeito á inteligência da morte), a dimensão psicossocial (que diz respeito ao reequilíbrio com a vida social) e a dimensão antropológica (que diz respeito ao humanismo ou ecumenismo da alma humana) (DURAND, 1993)
Estruturas arquetípicas são aquelas que representam os schèmes, um estado preliminar, de caráter coletivo, que liga o imaginário aos processos racionais (PITTA, 2005)
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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antropológico. Essas questões não se extinguem em si mesmas, ou seja, elas
exigem uma “racionalização a posteriori” para construir os nexos de sentido. Na
concepção do imaginário, não busco o sentido racional da tradição iluminista,
mas um sentido arquetípico, um sentido profundo de estruturas antropológicas
do inconsciente coletivo, no interior das quais operam símbolos, e que, por
estes, essas estruturas e o sentido arquetípico são engendrados, nos schèmes,
cujo conceito “permite estabelecer a normalidade do funcionamento do
imaginário” (DURAND, 2001b, p. 176), sendo a dominante
reflexológica/biológica do imaginário, que se liga ao arquétipo, que é um
símbolo mais universal, a partir do sentido dado pelo símbolo.
Nas produções fílmicas analisadas por mim temos um imaginário
mobilizável pelas contradições sociais que ganham formas simbólicas variáveis
e polivalentes e estão longe do telos ocidental com seu logos racional,
desconectado dos arquétipos. O imaginário antropológico atém-se às imagens
que nos auxiliam na compreensão do processo histórico, sem prender-se a
estas de forma racional, mas bio-psico-socialmente tecidas por meio do
símbolo. Para que se possa realizar a análise das produções, é necessária a
construção de uma hermenêutica. Uma hermenêutica de sentido capaz de
compreender as estruturas dos símbolos (re) criados nos filmes. Por esse
motivo, apresento então o sexto e último operador cognitivo.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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VI. Temporalidade, imaginário e realidade mítica e imaginal
A natureza da realidade que estou pesquisando é formada por um
conjunto de representações fílmicas sobre os conflitos político-culturais dos
Bálcãs ocorridos na década de 1990. A natureza do conhecimento que
disponho para conceptualizá-la é advinda da Antropologia do Imaginário, e o
trajeto que realizo é através dos conceitos de identidade e de cultura. A
realidade é interpretada por meio de concepções construídas acerca desta
realidade. Mas é também preciso compreender que, na Modernidade, o mito do
herói Prometeu que esteve presente nos projetos políticos da racionalidade
científica era de uma natureza diferente daquela que pesquiso, porque, a partir
do conhecimento a priori não é possível explicá-la. Uma rápida passada nas
concepções de ciência através dos milênios nos ajuda a compreender as
questões que se colocam para a Antropologia do Imaginário com a qual
trabalho nesta Tese:
A visão de mundo da Grécia clássica enfatizara o objetivo da atividade intelectual e espiritual como a essencial unificação (ou reunificação) do Homem ao Cosmo e sua inteligência divina; a meta cristã era reunir o Homem e o mundo com Deus – mas o objetivo da Modernidade era criar a maior liberdade possível para o Homem em relação à Natureza, às estruturas opressivas econômicas, sociais ou políticas, em relação às crenças repressoras metafísicas ou religiosas, à Igreja, ao Deus judaico-cristão, ao Cosmo aristotélico-cristão estático e finito, ao escolastismo medieval, às antigas autoridades gregas, a todas as concepções primitivas de mundo. (TARNAS, 2005, p. 313 – 314)
O mito de Prometeu foi atuante nos projetos políticos que ruíram na
Modernidade e que fundavam a liberdade do homem. Pensando a força desse
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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logos, é retomada a compreensão das forças mobilizadas por Eros
(MAFFESOLI, 2003b). Parece ser através do símbolo como mediador, dos
mitos de natureza outra que podemos reviver as questões arquetípicas mais
profundas, já que eles estão presentes no ser humano, possibilitando que ele
exiba e reelabore as suas contradições, entranhadas na cultura e também na
vida subjetiva, como nos mostram os filmes analisados: “o mito mantém a
recordação, o culto, a presença do antepassado, mantendo por isso a
identidade colectiva-individual” (MORIN, 1997, p. 167).
Para a análise do mito é necessária uma hermenêutica de sentido que,
segundo Ortiz – Osés, é através dela que “a razão humana se converte em
razão interpretativa e, por conseguinte, numa razão interposta ou intercalada,
intrometida e mediadora, impura e relacional.” (ORTIZ-OSÉS, 2004, p. 95).
Busquei, então, caminhar no âmago dessas questões introduzidas pelo método
interpretativo, quando me orientei na seleção dos filmes para esta pesquisa.
A pesquisa
O campo de minha pesquisa é constituído por produções fílmicas sobre
os conflitos político-culturais dos Bálcãs, representativas dos processos étnico-
religiosos ocorridos em meados da década de 1990, num contexto sócio-
cultural e mítico contemporâneo que ressoa fortemente em outros países da
Europa. Selecionei 5 (cinco) significativas produções, todas elas abrangendo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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as áreas dos conflitos étnico-religiosos estudados por mim, a saber: 1) Bela
Aldeia, Bela Chama (Sérvia/Croácia, 1996, dirigido por Srdjan Dragojevic), 2)
Vukovar (Iugoslávia, 1995, dirigido por Boro Drascovic), 3) Antes da Chuva
(Macedônia, 1994, dirigido por Milcho Manchevski), 4) Beautiful People (Reino
Unido, 1999, dirigido por Jasmin Dizdar), e 5)Terra de Ninguém (Bósnia, 2001,
dirigido por Danis Tanovic).
A escolha desses filmes se deveu a serem todos eles representativos do
conflito e produzidos durante os embates entre os diferentes territórios e seus
grupos étnicos que estavam, até então, sob a égide do Estado Iugoslavo,
mediante o projeto político socialista do Leste Europeu. Como critério de
seleção dos filmes, todas as produções estudadas deveriam ter como enfoque
principal a historicização dos conflitos em questão e seus diretores deveriam
necessariamente ser da região. Com exceção de um, todos os filmes foram
produzidos também nos próprios países. Todos os filmes tocam de perto a
condição humana, essa dimensão da problemática antropológica que precisa
ser mais compreendida para além da natureza simbólica dos homens vivendo
em contextos desagregadores como os que estudei. Por todos os lados, os
filmes fazem aflorar temas e problemas difíceis de serem compreendidos sem
uma discussão do paradigma antropológico contemporâneo.
Nesta Tese, sinalizo duas direções importantes para os objetivos
propostos. A primeira diz respeito ao olhar antropológico acerca da
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Modernidade. Nas produções estudadas, é possível realizar uma análise das
características desta Modernidade e de suas transformações, em termos
simbólicos, ao longo da década de 1990 e, em alguns casos, o reviver das
décadas anteriores do Século XX. Seguindo as pistas de Marshall Berman
(1987), que debruçou-se nas obras dos modernistas do Século XIX, dentre
eles, os planejadores urbanos e os literatos, trago para esta pesquisa uma
análise sobre alguns diretores de cinema quando fazem a sua miragem da
sociedade moderna no final do Século XX, mostrando-nos como o que está
longe nos alcança de perto:
Eles podem ajudar-nos a conectar nossas vidas às de milhares de indivíduos que vivem a centenas de milhas, em sociedades radicalmente diferentes das nossas – e a milhões de pessoas que passaram por isso há um século ou mais. (BERMAN, 1987, p. 34)
Entretanto, ao invés de levar o olhar aos “povos distantes”, preferi
mostrar a pluralidade de povos e culturas que co-habitam, povos que estão
entre o Oriente e o Ocidente, para que eu possa, através deles, compreender
problemas que também são meus, é o estrangeiro que bate à minha porta: uma
realidade ocorrendo numa razão tão distante, torna-se tão angustiante para
todo aquele que enxerga que na profundidade do Outro habita o Mesmo,
somos seres interconectados. Hoje, outros autores europeus, com olhares mais
libertários, abarcam esse pressuposto de humanidade que une a todos:
Rostos de um face a face que possibilitam o que pareciam ameaçar. Essa relação consigo próprio no outro, este estarmos juntos como separação,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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esse por-vir que não acalenta esperanças, este ad-vento que só se faz e-vento ao permanecer imprevisível: eis o verdadeiro infinito (MALDONATO, 2004, p. 33).
Em outro registro teórico, mas também confluindo com o autor acima
citado, retomo Martins (1989), que reflete sobre a necessidade da proximidade
com o outro, de nos compreendermos como intelectuais e também objeto de
análise. O objeto “humano” significa, na produção intelectual, “emancipar o
outro da condição de objeto, por meio da nossa própria emancipação, como
intelectuais, da condição de tutores do conhecimento” (MARTINS, 1989, p.
137). Em outras palavras, esses autores falam da dimensão subjetiva atuando
como construção do conhecimento. É preciso reconhecê-la e revelá-la como
início, meio e fim do conhecimento, como processo e produto deste.
As experiências vividas com o confronto perante uma sociedade que
vive um esgotamento das possibilidades da Modernidade, como bem aponta
Giddens (1997), causam um mal-estar, chegando a ser chamado, pelas
Ciências Sociais, de fim da história, refletindo um sentimento de falta de
orientação. Todorov (1999), ao transitar do Oriente ao Ocidente, percebe
também essa desorientação, porque viveu a transição entre um totalitarismo
forjado numa Modernidade de Estados e a necessidade de assimilar diferentes
culturas, tendo que, em diferentes momentos, realizar um esforço para se
identificar com cada uma delas, mas percebendo, enfim, que apenas a
aculturação não é necessária para a sua identificação com um determinado
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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lugar. Confluindo com Giddens, esse autor vivenciou exatamente um desses
esgotamentos, o das fronteiras fixas, criadas por projetos universalizantes.
A segunda direção da metodologia desta pesquisa é a análise dessa
Modernidade vivificada pela via do imaginário, contida parcialmente nos
operadores cognitivos apresentados nesta Introdução. A seguir, apresento as
técnicas de levantamento das produções fílmicas que são objeto de análise e
também a metodologia da interpretação.
As técnicas de pesquisa
Realizei, num primeiro momento, como propõe Rose (2003), a
transcrição completa das produções: anotei os diálogos, as tomadas de câmera
e os símbolos que permitiriam uma análise posterior. Dividi a transcrição em
uma dimensão visual e uma dimensão verbal. Em seguida, realizei o que
chamo de “Etnografia Fílmica”, na qual descrevi sucintamente a história de
cada uma das produções, tecidas por comentários mais gerais que objetivaram
a sua contextualização e abriram para as discussões que se desdobraram a
partir da hermenêutica utilizada para compreender os símbolos dessas
produções.
Assim, nas discussões mais específicas, realizei a busca de sentidos a
partir de um modelo interpretativo da Antropologia do Imaginário, aplicando-o à
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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imagem fílmica. Como propõe Ortis - Ozés (2004), tratei primeiramente de
compreender o sentido lógico lingüístico e semântico da linguagem e, em
seguida, o seu caráter ontológico, o que se relaciona ao sentido e à
significação, ao eu e ao outro. É aqui que se busca apreender o mito e as
estruturas arquetipais do imaginário, isto é, as materializações desse
imaginário. A relação entre ambos dá sentido à interpretação. Falar em sentido
para o autor, significa falar do que está implícito e latente, um sentido co-
implicado, um sentido imaginal, também simbólico, porque cultural. É função do
hermeneuta, aquele que interpreta, realizar um desvelamento do que está
implícito ou latente, co-relacionando às dimensões racionais do homem,
construindo uma nova inteligibilidade. Para isso, as transcrições realizadas por
mim permitiram-me um cuidadoso caminho através dos símbolos, onde
busquei relacioná-los às questões da linguagem, seja ela lógica ou ontológica.
A Tese
O primeiro capítulo dessa tese versa sobre uma contextualização
histórica do conflito dos Bálcãs, pois sem esta não seria possível compreender
as representações fílmicas acerca dos conflitos. No segundo, realizo uma
discussão sobre a Modernidade, as construções das identidades e culturas,
relacionando-as teoricamente às questões histórico-políticas dos Bálcãs e
apresentando os conceitos que servirão para a análise das representações
fílmicas. No capítulo três realizo uma etnografia dos filmes por mim escolhidos,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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de modo mais descritivo e específico, na qual aponto as questões internas que
atuam nos conflitos e suas relações com as identidades e culturas. No quarto
capítulo, realizo uma discussão acerca das mediações entre a subjetividade
dos autores, as questões ideológicas da produção de cinema, as quais refletem
sistematicamente às questões simbólicas direcionadas às temáticas dos
conflitos balcânicos. Prossigo, ainda, no quinto capítulo, com uma análise mais
ampla, que discute mais precisamente os reflexos desses conflitos
contemporâneos na condição humana.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Capítulo I. O conflito nos Bálcãs: uma discussão histórica
As análises das razões atuais de suas almas múltiplas exige a re-cor-da-ção do passado, uma plena anamnese. Mas pensar o passado significa, antes de tudo, explorar o próprio subsolo, decidir a própria identidade. (MALDONATO, 2004, p. 38)
Busco, neste capítulo, contextualizar historicamente os conflitos étnicos
que embasam as produções imagéticas nos filmes sobre os quais me
debruçarei nesta Tese. Os conflitos ocorrem na região dos Bálcãs, uma área
extensa situada na fronteira entre o Ocidente e o Oriente, cuja localização
geográfica representa, ao longo da história, um lócus onde se estabeleceu e
manteve intransponíveis as diferenças culturais entre povos e etnias da
Europa: povos de origem sérvia, macedônica, croata, eslava e albanesa co-
habitaram a região do antigo Estado Iugoslavo. Entretanto, os Bálcãs podem
ser estendidos para mais adiante, compreendendo também outros países do
Leste Europeu e, por conseguinte, outras etnias. Estes conflitos vão sendo
desencadeados sem o menor controle político sobre eles e vão configurando
uma realidade muito ampla, digo até mesmo uma realidade de outra natureza,
porque é imaginal. Uma realidade imaginal deve ser conceptualizada de modo
oblíquo e transversal, e por metáforas e metonímias, o que me permite supor
que essa realidade formou uma espécie de bacia semântica se comparada a
outras realidades engendradas em todo o continente europeu.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Inicio, aqui, com as questões que tecem um encadeamento histórico
deste campo de forças em oposição, que absorve a cronologia, mas o
transcende. Para que possamos compreender as dimensões desses “Conflitos
dos Bálcãs” e os projetos políticos neles atuantes, como é referido na literatura
(THOMAZ, 1997), é necessário considerar: a) a análise dos fenômenos sociais
recentes, ocorridos especialmente nas repúblicas da antiga Iugoslávia,
enfaticamente apresentados pelos meios de comunicação de massa; b) a
formação histórico - política dos países que constituem esta região geográfica,
a partir dos diferentes impérios e repúblicas que disputaram a região, e c) a
formação de identidades e sua relação com a alteridade, no convívio entre as
diferentes etnias, com suas próprias línguas, culturas e religiões, tanto do ponto
de vista interno à região como do ponto de vista externo, aludido como sendo o
mundo europeu.
1.1. Século XX: um século de (in) certezas
Dimensionar o século XX remete-nos à problematização da
Modernidade, que se inicia com o longo período das descobertas, quando o
mundo vive a possibilidade de colocar novas fronteiras para além de cada um
de seus países. Para Berman (1987), a Modernidade é dividida em três fases:
a primeira delas ocorre entre os séculos XVI e XVIII e é caracterizada por uma
sensação de experimentação inicial da vida moderna, na qual as pessoas
ainda não construíram um sentido para a Modernidade. Num segundo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
40
momento, que ocorre após o ideário de 1790 e a Revolução Francesa, o
homem passa a compartilhar a vida revolucionária e, ao mesmo tempo, um
momento de nostalgia em relação ao passado não revolucionário. Por isso, o
autor aponta que, no Século XX, a partir de reflexões realizadas nos finais do
século anterior, quando se escancara a dualidade de se viver em dois mundos
diferentes, surge a idéia de modernismo e modernização:
[...] o processo de modernização se expande a ponto de abarcar virtualmente o mundo todo, e a cultura mundial do modernismo em desenvolvimento atinge espetaculares triunfos na arte e no pensamento. (BERMAN, 1987, p. 17)
Sendo assim, a modernização diz respeito ao progresso da técnica, com
base científica, que resulta no desdobramento cultural do modernismo, que se
configura como o modo de pensar da Modernidade. Habermas (2004) aponta
que o projeto iluminista para a Modernidade, no Século XVIII, visou o
desenvolvimento da ciência objetiva, da moral universal e de uma lei e arte
autônomas, reguladas por lógicas específicas e universalizantes. No decorrer
dos Séculos XIX e XX, operou uma visão de que nas iniciativas voltadas às
concretizações das idéias de que, além do domínio das forças da natureza, as
ciências e as artes poderiam construir o mundo numa dada direção. Um mundo
sem contradições, com justiça social e repleto de possibilidades de realização
humana, operados por esse grande projeto de Modernidade: universalizador,
justo, ético. Essa visão desenvolve-se na compreensão de que há um modelo,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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o modelo eurocêntrico, oriundo do pensamento europeu, que se orientava pelo
mito de Prometeu, do progresso, se desdobrava no sentido de consumir cada
vez mais tecnologias, no âmago de uma visão de mundo que tinha a Europa
como centro: o eurocentrismo, a tradução ideológica, política e cultural dessa
concepção.
Olhando do ponto de vista das discussões do imaginário antropológico,
essa concepção universalizante de justiça pressupõe uma certeza: a certeza
de que estamos na Modernidade, que esta separa-se da Idade Antiga e da
Idade Média, a partir de uma lógica cronológica na qual opera o mito
progressista joaquinista. Em poucas palavras, esse mito progressista tem a sua
tradução, como aponta Durand, no nacional-socialismo ou então no comunismo
(DURAND, 2001).
Podemos considerar que há um projeto político de Modernidade que, ao
longo dos séculos XIX e XX, conduziu consideráveis setores da população a
engajarem-se em diferentes atividades (artísticas, intelectuais, políticas) para
concretizar os pressupostos desse projeto. Lembremos uma vez mais a
definição de projeto político tal qual foi realizada por Castoriadis:
[...] o elemento da práxis (e de toda a atividade). É uma práxis determinada, considerada em suas ligações com o real, na definição concretizada de seus objetivos, na especificação de suas mediações. É a intenção de uma transformação do real, guiada por uma representação do sentido desta transformação, levando em consideração as condições reais e animando a atividade. (CASTORIADIS, 2000, p. 97)
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Essa tentativa de universalização do pensamento voltado ao plano social
traduziu-se culturalmente em projetos políticos e, mais especificamente, no
início do Século XX, com o projeto utópico do Socialismo, que se construiu
diferentes regimes comunistas em vários países do mundo4. Temos, então,
para que esse projeto se realize, seu nexo com uma práxis (política, artística,
científica5), objetivos definidos, mediadores, empenho na transformação da
realidade, uma concepção do tipo de sociedade que se queira construir, bem
como as condições objetivas para tal realização.
Mesmo havendo diferenças entre os diversos regimes comunistas, há,
segundo Miliband (1992), algumas características comuns a esses regimes e
que são observadas no regime do Estado Iugoslavo:
Uma economia em que os meios de atividade econômica estavam predominantemente sob propriedade e controle estatal; e um sistema político em que o Partido Comunista (sob vários nomes dos diferentes
4 Um projeto político, segundo Gramsci (1978) é construído a partir dos meandros das lutas
sociais, produzindo forças políticas e disputa por hegemonia. Como aponta Portelli (1977), a sociedade civil se constitui, então, no interior do domínio da ideologia. Para essa concepção, há uma classe subalterna fundamental, que é a classe operária, que opera, por uma ideologia “orgânica” o movimento social, produzindo, então, a superação das contradições de um dado projeto, a partir de quando opera outro projeto. Os projetos de comunismo foram também reflexo dessa forma de pensar a mudança.
5 Zaluar (1985) nos lembra que as Ciências Sociais, ao assumirem uma postura historicista que compreende uma determinada contradição existente entre classes sociais, na qual ocorre a subalternidade de uma dessas classes, acaba por entender que existe um lócus político para a classe subalterna. Esta deve, então, romper com a alienação, a partir de uma crítica, e propor uma nova forma de organização social, via luta política, com um projeto bem definido de quebra dessas contradições. A autora evidencia também que essa corrente de pensamento, assim como aponta Martins (1989), foi mote para interpretações de diversos grupos de cientistas e de militantes de movimentos sociais. A revolução só é orgânica (GRAMSCI (1978), quando parte da classe subalterna em direção à luta por igualdade de direitos, abarcando a pluralidade em torno de um projeto comum. Mostro, no decorrer da Tese, que essa concepção não é suficiente para compreender o engendramento das mudanças ocorridas com o Estado Iugoslavo, primeiro, em sua criação como possibilidade de igualdade de direitos, e, depois, com seu esfacelamento, decorrente, inclusive, dessa impossibilidade de universalização.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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países), ou melhor, seus líderes, gozavam de um virtual monopólio do poder [...]. O ´pluralismo` que fazia parte desse sistema, e que envolvia a existência de uma grande variedade de instituições em todas as esferas da vida, da cultura ao esporte, não visava de forma alguma a diluir o poder do partido-Estado mas, ao contrário, reforçá-lo, transformando essas instituições em órgãos de controle do partido-Estado. (MILIBAND, 1992, p. 22 -23)
Como aponta Hobsbawm, em meados da década de 1960, esses
países passaram a ser chamados de países que viviam o “socialismo
realmente existente” (HOBSBAWM, 2004, p. 364). Entretanto, esse projeto
político que estava sob a égide de uma suposta concepção mais voltada ao
consumo externo do que interno e da harmonia e igualdade possível entre os
homens faliu, no sentido de que não aceita as contradições sociais, quando
busca a normatização do homem e a sua domesticação. Daí se funda a crise
em suas entrelaçadas dimensões: política, econômica e nacional, como aponta
Morin (1996), crise que nos possibilita compreender a região geográfica da
antiga Iugoslávia como um microcosmo desse macrocosmo.
A crise é tripla porque é política (inacabamento e fragilidade das muito recentes democracias), econômica (perda das seguranças oferecidas pelo antigo sistema e não aquisição das vantagens esperadas do novo) e nacional (possibilidade de realizar as aspirações à soberania, mas num contexto em que as minorias enquistadas em cada território são imediatamente perseguidas, o que suscita, de uma parte e de outra, virulências nacionalistas) (MORIN, 1996, p. 20).
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1.2. O campo do conflito
Diversas forças sociais atuam ao mesmo tempo na região dos Bálcãs,
do ponto de vista interno e externo aos conflitos que aparecem nos filmes
analisados por mim: diferentes etnias envolvidas em conflitos, os interesses
políticos europeus e mundiais (representados pela ONU, OTAN, Comunidade
Européia) se reconfiguram de forma dinâmica, como as diferentes forças
envolvidas nas disputas da região ao longo da História (Império Otomano,
Império Austro-Húngaro, URSS), articulando-se com diferentes interesses
econômicos e políticos de um poder totalitário, querendo se impor, a qualquer
custo, sobre os diferentes povos que ali vivem.
Com a derrocada do Comunismo6, esse Socialismo que realmente
existiu7 (HOBSBAWM, 2004), que não foi capaz de operacionalizar a contento
seu projeto político, administrando e equacionando socialmente as antigas
repúblicas da Iugoslávia (Croácia, Sérvia, Kosovo, Montenegro, Eslovênia,
Macedônia e Bósnia-Herzegovina) nele inseridas, houve uma reconfiguração
geopolítica da região. A luta entre as forças instituídas, a partir do totalitarismo
(o chamado mundo europeu e as instituições por ele criadas) e a forças
6 Os regimes comunistas tiveram diferenciações entre si, entretanto, há algumas características
comuns aos regimes comunistas: a) propriedade estatal dos meios da atividade econômica, b) monopólio do poder pelo Partido Comunista, c) defesa via repressão sistemática das dissidências, e d) seguidamente a repressão se desdobrava em formas brutais (MILIBAND, 1993).
7 Os regimes comunistas, muitas vezes referidos como socialismo de Estado (HABERMAS, 1993), são também referidos como socialismo que realmente existiu (HOBSBAWM, 2004; HABERMAS, 1993; MILIBAND, 1993), pois foram os regimes que foram implementados na tentativa de uma planificação da economia. Entretanto, diferentemente dos propósitos de um socialismo, o poder esteve sob monopólio do Estado e não dos trabalhadores.
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instituintes, como a reativação dos antigos projetos nacionais dessas
repúblicas, vem à tona nesse momento histórico, num conflito entre essas
forças, representando profundas contradições sociais, até então negadas pelo
projeto universalizante.
Quais seriam os povos que representariam essa tradição secular? Se
pensarmos a região, como nos mostra Jovanovic (1994), há uma diversidade
de povos convivendo na região. Num processo de desmembramento, as
diferentes realidades representadas por essas etnias alinhadas sob o mesmo
Estado, após a tentativa de universalização socialista, reivindicarão seu
espaço, sua independência e autonomia. Servios, croatas, macedônios,
eslavos, húngaros, búlgaros e albaneses vivem na região, que ainda comporta
diferentes religiões, especialmente muçulmanos e católicos. Os povos
originários dessa região passaram por uma história de conquistas, mas
também de existências negadas desde a Idade Média, já que nela houve a
atuação dos impérios: o Império Otomano e o Império Austro-Húngaro. Como
aponta Jovanovic (1994), essa região de fronteira, aglutinada por esses
grandes impérios, constrói novas identidades e, de acordo com a época,
diferentes lócus culturais.
Em seguida à falência do socialismo nas repúblicas da antiga Iugoslávia,
as diferenças étnicas, religiosas e culturais dos povos envolvidos nos conflitos
se libertaram desse jugo, começaram a constituírem-se, em si mesmas, novas
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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forças, que operaram projetos nacionais próprios. Também atuaram, nesse
mosaico, as forças externas de toda a Europa, para as quais essa chamada
democracia de pátrias é muito interessante. Como aponta Morin (1996), há um
medo de pobreza e desmembramento da Europa que, no final do Século XX,
visa a unificar-se em torno de um projeto econômico único, o da globalização.
Os percalços são a reconstituição de um novo muro (Oriente-Ocidente),
reconfigurando a velha fronteira européia e também a compreensão de que se
a Iugoslávia se desmembra, desmembrar-se-ía também a Europa como um
todo. A tentativa de fazer de todas as pátrias da Iugoslávia um Estado-Nação
nos moldes franceses, no qual uma integração ocorre a partir de uma
comunidade secular e tradicional, foi a solução de unificação proposta e
apoiada pela Comunidade Européia. Entretanto, essa forma de unificação não
é possível de ocorrer na antiga Iugoslávia.
Cabe aqui considerar que um processo como esse, mais que racional,
no sentido weberiano (meio-fim) é operado pela potência social (MAFFESOLI,
1981). A potência social abarca características de vínculos carismáticos (não
contratuais) e podemos compreender que a potência que opera no projeto
político do socialismo totalitário envolve a questão revolucionária, como meio e
como fim. Por ser a potência “um conjunto de elementos (força, coletivo,
diferença...) que funcionam bem em sua articulação (..)” (MAFFESOLI, 1981, p.
43), ela tem uma relação de ambivalência com o poder. Ou seja, o autor
assume que potência tem mobilidade, é a força por trás de um poder, dá
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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sentido a esse poder, mas é móvel, não-linear. Confluindo com as idéias do
autor, temos em Morin (1996), uma visão abrangente e complexa dessa
realidade:
A compreensão da complexidade jugoslava requer o abandono não apenas de todo o maniqueísmo, mas ainda de toda causalidade linear, e a compreensão dos processos em anel em que as perturbações se implicam entre si e entre si se multiplicam até alcançarem a temperatura de inflamação e depois se incendiarem. (MORIN, 1996, p. 34)
1.3. Os Bálcãs hoje
Como apresenta Thomaz (1997), é pelos meios de comunicação de
massa (especialmente a televisão), que as informações sobre os
acontecimentos ocorridos recentemente na região dos Bálcãs, sobretudo os
que dizem respeito às guerras nas repúblicas da Antiga Iugoslávia (Sérvia,
Croácia, Montenegro, Kosovo, Macedônia, Bósnia-Herzegovina e Eslovênia)
foram disseminados. O mundo assistiu com perplexidade essas informações,
em completo desrespeito pela alteridade. O outro foi apresentado como uma
construção pejorativa, distorcida, como sendo aquele indivíduo da região pobre
da Europa, que se degladiava por motivos religiosos (cristãos versus
muçulmanos), em busca da conquista da terra, da expulsão daqueles que eram
aludidos como seus eternos inimigos.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Thomaz (1997) faz uma leitura interessante e extremamente elucidativa
acerca das relações entre a comunicação e os campos de força (interna e
externamente) envolvidos nesses conflitos. Para ele, muito mais do que as
questões internas, há instituições externas que forçam à disseminação do que
denominou de política do medo.
A guerra se desenrola, segundo ele, nos Bálcãs, pela disputa por espaço
e emancipação de povos que outrora viviam submissos a um poder único: uma
Iugoslávia unificada sob o poder do projeto socialista, como já discuti
anteriormente. A destruição das cidades, a fome, o sofrimento dos habitantes
das cidades da Bósnia – Herzegovina, os massacres vividos em feiras livres,
as deportações em massa: foram essas as imagens que o mundo todo viu,
imagens que não se esperava mais que acontecessem na Europa. Os meios
de comunicação tratavam os acontecimentos com explicações de cunho
extremamente dramático, criavam a idéia de que os povos ali envolvidos na
guerra civil eram povos que guardavam o ódio entre eles havia séculos, um
ódio ancestral (THOMAZ, 1997).
Advinda da própria imprensa, a violência foi, então, também explicada
pela idéia de desagregação do Estado Iugoslavo: as informações midiáticas
apontavam uma representação única para a “explosão” da guerra civil: a falta
de um Estado soberano, um poder agregador, que pudesse solucionar então
os problemas étnicos já aludidos como existentes há tanto tempo, e que o
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Estado socialista não tinha sido capaz de resolver. A região, então, foi
considerada pela imprensa como uma panela de pressão, sempre prestes a
explodir, mas que teria sido contida pela tentativa agregadora do Sistema
Socialista (THOMAZ, 1997). Segundo Blackburn (1997), o esfacelamento da
Iugoslávia se deu, de um lado, pela própria falência do projeto comunista e, por
outro, pela falta de auxílio por parte das potências ocidentais, que operaram
sanções econômicas, deixando o Estado Iugoslavo, liderado por Ante
Markovic, em 1990, sem condições financeiras para manter as características
do estado federalista, causando uma miséria social generalizada, que estava
se desenvolvendo desde as décadas de 1950 e 1960, com o crescente
desemprego. A Europa (e o mundo) teriam, então, nessa concepção, a
obrigação de intervir.
Entretanto, como aponta Blackburn (1997), o Estado Iugoslavo sempre
esteve próximo das idéias advindas do Ocidente, especialmente pela questão
do turismo8. Nas décadas de 1950 e 1960, como apresenta o autor, o modelo
socialista da Iugoslávia teve consideráveis progressos econômicos. Entretanto,
na década de 1970, há um processo de fortalecimento das repúblicas que,
complementado por uma falta de legitimidade por parte das autoridades, gera a
8 As repúblicas da antiga Iugoslávia têm, entretanto, diferenças em termos econômicos. A
Croácia, a Sérvia e Montenegro são as repúblicas com maior proximidade com o turismo. A Macedônia e a Bósnia - Herzegovina são as repúblicas mais pobres e sua economia é mais rural. A Eslovênia é a mais industrializada. Entretanto, é comum, como aponta Blackburn (1997), uma divisão clara entre a composição dos habitantes das cidades e os habitantes da zona rural, na Iugoslávia. Nas cidades, residem os trabalhadores do comércio, serviços e da indústria, assim como a elite intelectual. Na zona rural, especialmente na Bósnia –Herzegovina e Macedônia há a predominância, inclusive, de uma economia de subsistência. Especialmente na Bósnia-Herzegovina houve um processo migratório muito grande, o que pode ser percebido na diminuição da população e nos filmes analisados nesta Tese.
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formação de milícias e partidos políticos, o que propiciou os conflitos e a falta
de apoio econômico europeu nas décadas de 1980 e 1990, já que se sabia que
havia comunistas no alto escalão administrativo. Uma população empobrecida,
um país pouco industrializado e pluri-étnico teve, também, na falta de gestão
de seus governantes, a problemática econômica e social acirrada, de acordo
com o autor.
A priori, a entrada de forças da ONU e OTAN nos territórios da antiga
Iugoslávia, mais adiante, em meados da década de 1990, visou conter a
violência, entretanto não atuaram com intervenções militares. Aqui é importante
que voltemos o nosso olhar para a seguinte questão: que interesses teriam
essas “forças de paz” numa região de origem miserável, advinda da queda do
“mundo socialista”? Inicialmente, essas “forças de paz” estiveram ali para o que
chamaram de ajuda humanitária (apoio médico, de alimentação...), como
aponta Guireli (2000). Entretanto, com o passar do tempo e após a visita do
Primeiro-Ministro francês a Sarajevo, para relembrar a I Guerra Mundial, as
“forças de paz” transformaram-se em forças militares que ocuparam a região
para manter o controle da situação.
Entretanto, devo relembrar que, seja como porta-voz das forças
externas, seja como porta-voz das forças internas aos conflitos ora
apresentados, a imprensa teve seu caráter extremamente perverso ao
desenvolver duas justificativas (que se tornaram, por seu intermédio,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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complementares) para o conflito em questão: a disseminação da política do
ódio étnico e a disseminação da política do medo da ordem mundial (THOMAZ,
1997).
A cidade de Sarajevo, como bem aponta Jovanovic (1994) era
conhecida pelo seu cosmopolitismo, por ser um dos pontos de encontro cultural
entre o Ocidente e o Oriente. A cidade se transformou num símbolo de
resistência cultural, convivendo diretamente com diversos intelectuais que se
indignavam e produziam literatura sobre ela (inclusive Susan Sontag); a cidade
disseminava e mantinha festivais de música e teatro, buscando lugares
alternativos para a apresentação de orquestras, já que bibliotecas, teatros,
escolas e cinemas estavam fechados.
Sontag (2003) nos diz que as imagens fotográficas e jornalísticas
produzidas no período da guerra recente nas repúblicas iugoslavas exprimem
uma posição até partidária mesmo no meio jornalístico, pois esses profissionais
viveram momentos da Sarajevo sitiada e representaram, em suas fotografias e
relatos, aquilo que sentiram do momento. A força das imagens completava-se
pelas forças das narrativas. Para a autora, toda a memória é local e para que
uma guerra passe a ter importância internacional, deve ultrapassar a
compreensão de que representa apenas um choque de interesses entre
aqueles que estão em conflito. Ora, não seria essa a influência das
organizações “de paz” européias e dos jornalistas internacionais, nesses
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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conflitos? Essa denominação de política do medo, conforme Thomaz (1997),
não sustenta a concepção dada pela autora?
Realizo agora uma breve descrição da história da região, desde a
conquista pelo Império Otomano até a I Guerra Mundial, pois acredito que
esses momentos significativos da história poderão nos auxiliar na discussão
destes conflitos.
1.4. Os Bálcãs como território otomano
Retorno ao Século XIV, quando da conquista otomana da Europa
Oriental. Essa conquista pode ser considerada como um dos braços da
expansão muçulmana e é anterior à conquista moura da Península Ibérica.
Neste período, principados e estados instáveis, organizados com
características feudais, se encontravam entre os confrontos dos Impérios
Bizantinos e Carolíngeo. Com a invasão, em 28 de junho de 1389, os
cavaleiros otomanos destituíram o Império da Sérvia e, em 1526, tomam a
Bulgária e a Hungria. Esses cavaleiros otomanos estabeleceram, assim, uma
longa permanência no sudeste europeu, invadindo a Polônia, no século XVII,
visando a possibilidade da conquista de Viena. Essa dominação tem uma
grande influência sobre os diversos povos da região (eslovenos, sérvios,
croatas, húngaros) e seus Estados Nacionais. Alguns desses povos vêm só
conquistar a sua independência depois do congresso de Berlim, em 1878 e a
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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presença otomana na Europa Oriental só cessou após as Guerras Balcânicas
(1912-13) (JOVANOVIC, 1994).
O Império Otomano se estendeu ao longo da Ásia central, alcançando
até a China, anexando, em 1516, vastas regiões árabes (Síria, Palestina,
Egito). Era liderado pelo sultão, chefe espiritual e secular, e a divisão das
províncias se dava de diferentes formas: ou dominadas pelo poder central ou
com relativa autonomia, pagando-se tributos ao sultão. Os critérios
aglutinadores da organização social não se davam por meio das etnias, mas
sim dos grupos religiosos (millet, que significa credo, em turco): muçulmanos
eram os mais numerosos, seguidos pelos cristãos e judeus (JOVANOVIC,
1994).
Não se pode caracterizar a influência otomana unilateralmente, pois
houve um processo complexo e contínuo de sincretismos entre as diversas
etnias ali existentes, regido por influências múltiplas. As próprias línguas do
Leste Europeu enriqueceram-se com palavras de origens turca, árabe e persa,
por exemplo. Mesmo sendo derrotados pelos europeus na tentativa de tomada
de Viena, no Século XVI, nos séculos seguintes a presença otomana no Leste
Europeu continua se impondo, influenciando também vizinhos em interação
constante. Jovanovic (1994) lembra que o poeta inglês Lord Byron faleceu, no
início do Século XIX, na Grécia, na luta contra a dominação otomana na
Macedônia.
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Do ponto de vista religioso, houve muitas conversões ao islamismo,
como no caso dos albaneses, originariamente cristãos; em alguns casos houve
processos de violência, como entre os eslavos da Bósnia (que acabaram
também por converter-se parcialmente). Lembra Jovanovic (1994) que a
Literatura da Europa centro-oriental ficou muito marcada pela presença do
invasor, refletindo-se nos estereótipos, nessa ótica distorcida em relação a
esse invasor.
É nesse contexto, sob a constante sombra do Quarto Crescente, de guerras internas, de fronteiras instáveis, de confronto permanente entre reinos e impérios, que a parte centro-oriental do Velho Continente se desenvolveu após o século XVI. Em sua história, em sua cultura, de modo geral, estão as marcas inapagáveis de um longo período marchetado por sucessivas e insistentes lutas pela manutenção de suas próprias características, a despeito do fato de ser uma verdadeira encruzilhada geográfica, histórica e cultural entre o Oriente e Ocidente [grifos meus] (JOVANOVIC, 1994, p. 25).
1.5. O domínio do Império Austro – Húngaro
Segundo Bérenger (1997), o interesse do Império Austro-Húngaro
estava longe de ser apenas a Península Balcânica, mas estava concentrado no
sonho da monarquia universal da Europa (principalmente pela estreita relação
com a Espanha). A Casa de Áustria considerava os Bálcãs, sob domínio do
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Império Otomano desde o século XV, como uma fronteira perigosa para a sua
dominação totalitarista. Por um lado, foi a partir do Século XIX que a Dinastia
dos Habsburgo (Império Austro-Húngaro) passou a se interessar pela região:
primeiramente por causa do avanço na Rússia em direção à área, por meio dos
sonhos de Catarina II de retomar Constantinopla e criar um Império do Oriente.
Por outro lado, esse interesse do Império Austro-Húngaro se deveu também
porque essa região é uma região de fronteira muito importante com os
mercados do Oriente Médio, tradicionalmente consumidores de manufaturas
advindas da Áustria. Depois da retomada da Sérvia pela Hungria, que ocorreu
em 1697, com a tomada e incêndio de Sarajevo, as relações do Império Austro-
Húngaro com o Império Otomano foram cada vez mais se tornando menos
agressivas, possibilitando a entrada austro-húngara na região. Segundo
Hobsbawm, o Império Otomoano era “o mais óbvio fóssil evolucionário”
(HOBSBAWM, 2005, p. 50) de nação, nesse momento seu declínio era
proeminente.
A Sérvia, de fato independente como principado em 1878 e
posteriormente reino em 1881, tinha uma vocação de reconstruir a “Grande
Sérvia” medieval, retomando alguns territórios da Monarquia (especialmente a
Voividínia, na Hungria, a fronteira com a Eslavônia, a Krajina, na Croácia e a
Bósnia-Herzegovina) para unificar-se através da língua (eles falavam o mesmo
idioma que o seu), um de seus critérios, ainda que insuficientes, de formação
de uma identidade essencialista, do mesmo modo que os piemonteses
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italianos, que tiveram essa mesma pretensão na Itália. O problema estava
colocado na região pelo conflito desencadeado entre croatas e húngaros, pois
estes não possuíam os mesmos direitos de autonomia que a Sérvia, mas, por
outro lado, a Sérvia tinha a pretensão de estender seu território, agregando
“seu povo”, a etnia sérvia. Se, de um lado, temos croatas e húngaros,
participantes da monarquia, exigindo os mesmos direitos de autonomia que os
sérvios, de outro, temos que pensar na projeção do Império Austro-Húngaro,
que se preocupava geo-estrategicamente com a quebra da hegemonia da
Rússia na Península Balcânica, através da possível aliança com a Sérvia ou
com a Bulgária (BERÉNGER, 1997). Como aponta Hobsbawm (2005),
apoiados pelas idéias burguesas da época, outros Estados, como a Romênia e
a Bulgária, além da Sérvia, também tentaram constituir-se em Nações, sob a
égide da legitimidade de uma identidade essencialista.
Em meio a essas lutas de poder, realizou-se, em 1878, o Congresso de
Berlim, entre a Áustria-Hungria e a Rússia para, de acordo com as relações
diplomáticas do Século XIX, resolver a questão das conquistas realizadas pelas
duas potências. Nesse Congresso, obrigou-se que a Rússia devolvesse
algumas de suas conquistas, retirando, assim, seu acesso ao Mediterrâneo.
Além disso, e o que parece ser o mais importante, segundo Berénger (1997), o
Império Austro-Húngaro passou a ter a autorização para invadir e administrar a
Bósnia-Herzegovina por tempo indeterminado. A ocupação do território da
Bósnia-Herzegovina ocorreu ainda em 1878, durante o verão. O exército
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austro-húngaro estava no território para cumprir as determinações do
Congresso de Berlim, entretanto turcos e sérvios apresentaram grande
resistência à tomada da região. A tomada ocorreu e este é considerado como o
último grande trunfo do exército imperial, que expulsou e repatriou funcionários
otomanos da região, impedindo, também, a expansão russa nos Bálcãs.
A questão da invasão da Bósnia-Herzegovina pelo Império Austro-
Húngaro dividiu as opiniões, mas principalmente forças contrárias a essa
ocupação foram tendo voz: dentro do próprio Império, a Hungria tinha uma
simpatia pelos otomanos, enquanto os esquerdistas austríacos eram contra
uma política que causasse tantas mortes. Na Sérvia, essa tomada não havia
sido tampouco aceita, já que, como mencionei anteriormente, como o grande
povo sérvio habitava a região da Bósnia-Herzegovina, a qual, portanto, deveria
ser anexada à Sérvia, para a construção de uma grande pátria sérvia. Assim,
era de se esperar, então, que a Sérvia mantivesse uma política hostil em
relação à monarquia (BERÉNGER, 1997). Blackburn (1997) discute que há
uma grande dicotomia, que pode ter ocorrido inclusive por anexações
acontecidas ao longo do processo histórico, como apresentei aqui, entre os
pilares econômicos de outras futuras Repúblicas Iugoslavas, que são mais
industrializadas e a Bósnia, que tem uma população mais campesina: a Bósnia
estava anexada à Sérvia e aos Impérios Otomano e Áustro-Húngaro.
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Havia contradições específicas de uma região de fronteira como essa:
na região, com o longo domínio pelo Império Otomano, os donos de grandes
propriedades rurais eram muçulmanos (o que a monarquia áustro-húngara não
tinha a pretensão de mudar), enquanto o controle governamental devesse ser
mantido pela monarquia, já que esta tinha tomado a região por uma decisão
“diplomática”. Os altos cargos de controle público da Bósnia-Herzegovina foram
então ocupados por eslavos advindos desta monarquia, enquanto uma
pequena parte desses cargos ficou sob responsabilidade dos grupos da
província. Também, como havia sido decidido em 1880, cada província deveria
se auto-sustentar, por isso não recebia apoio financeiro externo, a não ser para
questões militares e, sendo assim, a carga fiscal teve que ser aumentada. A
opinião pública da Sérvia estava abalada em relação à dominação da Bósnia-
Herzegovina. Num acordo com a Sérvia, considerado como golpe de mestre, o
Império Austro – Húngaro então, rompeu com a animosidade da opinião
pública e manteve o controle da região. O príncipe sérvio, Milan Obrevenic,
tornou-se um fervoroso defensor do império, assinando um tratado secreto,
considerado benevolente, em 28 de junho de 1881, uma aliança que não
aceitaria conspirações contra a Áustria-Hungria dentro de seu território,
tampouco assinaria tratados sem o consentimento desta (BERÉNGER, 1997).
Apesar de dominar e continuar com o interesse pelo domínio nos Bálcãs,
as bases para esse domínio, como aponta Bérenger (1997), eram um tanto
quanto frágeis. A instabilidade de seus diplomatas, a política naval voltada para
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
59
a defesa e o interesse excessivo em manter o povo sérvio (especialmente da
Bósnia-Herzegovina), que tinha convicções nacionalistas, sem poder de ação,
fez com que o Império Austro-Húngaro fosse perdendo sua força política,
levando, em 1903, a uma reaproximação diplomática com a Rússia. Também
Hobsbawm (2005) aponta para a fragilidade do Império Áustro-Húngaro nesse
momento, por este representar os cânones da aristocracia, que então era
atacada pela intelectualidade burguesa.
Neste mesmo ano, em Belgrado, ocorre um golpe de Estado importante
na Sérvia, com bases ideológicas sustentadas por apoio nacionalista, por meio
do Partido Radical e que leva ao trono Alexandre Karadjordevic, descendente
de uma família que havia estado no trono até 1859, agora casado com a filha
do príncipe de Montenegro. Pelo apoio obtido com as forças nacionalistas, o
novo rei estava disposto a se tornar aliado das políticas francesa e russa,
afastando a Sérvia da dominação da monarquia áustro-húngara a qual estava
submetida até então. Como a anterior relação de dominação estava
estabelecida, principalmente no que dizia respeito às questões militares e de
empréstimos para a construção de ferrovias, houve uma resposta rápida da
monarquia: uma intervenção diretamente no corte de abastecimento militar e
de empréstimos (BERÉNGER, 1997). Essas manifestações nacionalistas eram
apoiadas pela intelectualidade da época (HOBSBAWM, 2005).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
60
Na correlação de forças, a Sérvia teve como seus aliados a França e a
Rússia, passou a solicitar empréstimos da França e, conseqüentemente, a
realizar uma aproximação com outros países balcânicos, principalmente no que
dizia respeito a negócios internacionais, acordos diplomáticos e tratados
alfandegários, sobretudo com a Bulgária. Como resposta a essas medidas,
embargos foram implantados por parte da Áustria-Hungria, levando o Governo
de Belgrado a buscar mercados substitutivos, como o mercado alemão, por
exemplo. Nesse campo de forças, os processos instituintes que eram quem
derrotariam os sonhos da construção da Grande Sérvia, o Império Austro-
Húngaro, não tiveram força suficiente para tanto, pelo contrário, possibilitaram
exatamente o contrário, a aproximação da Sérvia com a França e a Rússia,
seus oponentes principais na Europa. Assim, viu-se lançado o Governo de
Belgrado à uma expansão territorial que reascendia o sentido e o sonho da
Grande Sérvia (BÉRENGER, 1997).
1.6. A Mão Negra
Em 1906, o Barão Aerenthal tornou-se primeiro-ministro do Império
Austro-Húngaro, com a determinação de acabar com o antagonismo áustro-
sérvio.
Depois do fracasso do embargo, ele imaginava que seria necessário resolver o antagonismo austro-sérvio pela força. O objetivo imediato era a anexação da Bósnia-Herzegovina, mas a intenção última era a abolição completa do foco revolucionário sérvio. Esta era uma opinião pessoal da qual o imperador não partilhava. Todavia,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
61
Aerenthal se apoiava num partido belicista de Viena [...] (BÉRENGER, 1997, p. 29-30).
O objetivo dessa política de coerção estava relacionado à necessidade,
defendida pelo primeiro-ministro do Império Áustro-Húngaro e por aqueles que
o apoiavam, de integrar todos os eslavos do sul à monarquia. Defendendo,
mesmo que sem todo o apoio do Império Austro-Húngaro a anexação da
Bósnia, e também, sem o apoio de Berlim e de outras pátrias européias, em
1908, a anexação foi apresentada como consumada pelo então imperador
Francisco José e por Aerenthal que, em nome do império, prometeu a abertura
de ferrovias à Rússia, desde que esses os apoiassem. O Ministro das relações
Exteriores da Rússia, desmentindo seu apoio, ao lado de Grã-Bretanha e pela
França, exigiu a abertura de uma conferência internacional para a resolução do
impasse nos Bálcãs.
Mais uma vez, envolvendo diversas forças do Ocidente e do Oriente (os
turcos também reagiram boicotando produtos austro-húngaros), a região dos
Bálcãs, especialmente a Bósnia, estava em crise, ou representava a crise.
Numa manobra estratégica, a anexação da Bósnia pelo Império Austro-
Húngaro teria sido recuada, no sentido de demonstrar que a tentativa traria
grandes prejuízos à Europa, desembocando naquilo que teria sido uma guerra
desnecessária: o que acabou se transformando na I Guerra Mundial. No
entanto, a França e a Grã-Bretanha retiraram seu apoio à tentativa russa de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
62
apoiar o Governo de Belgrado, devido à falta de relação com seus “interesses
vitais” (BÉRENGER, 1997, p. 31). A Rússia resolveu, então, recuar e fazer com
que a Sérvia e seu sonho também o fizessem. A Sérvia, que se viu sozinha em
meio a esse turbilhão de forças na Europa, que pareceram pouco considerar a
questão dos Bálcãs, sem muitas alternativas recuou e reconheceu a anexação
da Bósnia-Herzegovina pelo Império Austro-Húngaro, em 1909.
Nesse momento, essa crise parece ter trazido apenas ganhos para a
Áustria-Hungria. Entretanto, suas manobras citadas anteriormente foram
consideradas inadequadas pelos governos da Europa, aproximando cada vez
mais a Grã-Bretanha, a França e a Rússia. O Império Austro-Húngaro tenta se
redimir, propondo uma política de paz na Europa, entretanto, os rancores já
vividos anteriormente entre Belgrado e Viena nos tempos da dissolução do
Império Otomano retornariam, conduzindo ao que os sérvios passaram a nutrir,
como diz Bérenger, “um verdadeiro ódio da monarquia dos Habsburgo”
(BÉRENGER, 1997, p. 32).
Vista sob um olhar linear, essas lutas de forças em torno da região da
Bósnia-Herzegovina poderiam nos conduzir a pensar num argumento
sustentado pela mídia acerca dos conflitos desencadeados na região: a
questão do ódio ancestral, como aquele discutido por Thomaz (1997), tão
difundido pela mídia. Contudo, precisamos focar nosso olhar para construir um
sentido mais amplo que se configure como relações de causalidade circular
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
63
(MORIN, 2006), e assim todas as configurações e reconfigurações desse
conflito parecem mais com o profundo desrespeito à alteridade, posto em
projetos ora nacionalistas ora culturais. O que se passa aí é que, quando a
posição político - econômica desrespeita a alteridade, o direito à diferença e
todos os meandros que esta envolve (língua, cultura, religião, etnia), a
humanidade se vê ameaçada. O mesmo ocorre quando uma posição lingüística
ou étnica se sobrepõe às demais questões. De um lado, o patamar econômico
desrespeitando a alteridade, as questões da Sérvia e, por outro, uma Sérvia
que também compreende que um território deve ser incorporado por conta de
sua infiltração étnica ou lingüística.
Não se trata, portanto, de ódio ancestral, mas de um desrespeito à
alteridade que a Modernidade tratou de construir, a partir do momento em que
se afastou da forma como a Igreja equacionava o mundo, com seu saber
gnóstico e institucional, e desdobrou-se em tentativas de universalização do
humano através da criação e do pensamento agnóstico e também institucional.
Essa compreensão universalizante, desde muito cedo, e os conflitos dessa
região são emblemáticos para que possamos compreender o que estou
afirmando. Essa cosmovisão não deu conta das questões identitárias, porque
seus próprios conceitos, ora universalizantes ora relativizantes, eliminam a
diferença, a possibilidade de construção da alteridade.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
64
1.7. A declaração da I Guerra Mundial, em 1914
Em 1874 havia sido criada a academia iugoslava em Zagreb,
compreendida como a inserção do povo eslavo na instrução. O povo eslavo
estava espalhado por várias regiões dos Bálcãs, como nos lembra Jovanovic
(1994), especialmente Hungria, Cisletânia e Bósnia-Herzegovia. Desde esse
tempo, havia rivalidade entre sérvios e croatas; estes últimos, que haviam
recebido status de nação, consideravam os sérvios um ramo menos
desenvolvido do povo deste país.
As lutas políticas na Croácia entre 1900 e 1905 foram representadas
pela criação de dois partidos: Partido de Direito, que trazia os interesses dos
conservadores que não entendiam as questões dos camponeses sérvios na
Bósnia e, como resposta a esse partido, um partido camponês, chamado
depois de Partido Progressista Croata. Posteriormente, em 1905, após
decepção da oposição croata pela falta de reconhecimento das questões dos
oprimidos da Croácia, deputados sérvios aprovaram, por fim, em Zadar, o
reconhecendo uma coalizão servo-croata (BERÉNGER, 1997).
Tendo havido a renúncia por parte da Croácia à colaboração com o
governo húngaro, e opondo-se energicamente à anexação da Bósnia-
Herzegovina em 1908, a partir de provas “inventadas”, pela cumplicidade
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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provável das autoridades de Viena, foi criada uma situação insustentável que
só se resolveria com um indicativo militar:
Chegávamos, assim, a 1914 com uma oposição comum contra a política estrangeira da Monarquia, contra a política nacionalista do governo húngaro e, mais discretamente, contra certa discriminação na Cisletânia. A idéia iugoslava não nasceu, portanto, em plena guerra, mas na Croácia e na Dalmácia, e foi em grande medida inspirada por intelectuais e políticos croatas, para além de qualquer ingerência do governo de Belgrado (BÉRENGER, 1997, p. 34).
As Guerras Balcânicas, ocorridas entre 1912 e 1913, revelavam tensões
existentes entre os Estados cristãos dos Bálcãs. Após atacarem o Império
Otomano em 1912, eles passam a lutar entre si para partilhar os territórios.
Inicialmente, a Áustria-Hungria havia decidido não intervir. Mas com a
dominação sérvia na Albânia e sua tentativa de expansão territorial até o
Adriático, fizeram com que a monarquia mudasse de opinião e passasse a
planejar uma guerra considerada preventiva (BÉRENGER, 1997, p. 34), com o
apoio da Alemanha, Itália e França. Entretanto, a Rússia interveio, solicitando
que a Sérvia recuasse, por considerar a questão pouco pertinente para uma
guerra européia. A Nação, como conceito, nesse momento, estava apartada da
etnicidade e de outros elementos: a língua, cultura não eram relevantes, mas
sim a escolha política dos membros de uma determinada pátria (HOBSBAWM,
2005). A “lealdade” (IVEKOVIC, 1997) a determinado Estado soberano poderia
mudar.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
66
Após uma partilha da região pelo Tratado de Bucareste (10 de agosto de
1913), resultado da falta de apoio da Tríplice Aliança ao Império Austro-
Húngaro, que havia decidido ficar ao lado da Bulgária nessa disputa, nasceu a
Grande Sérvia. Nesse Tratado, havia sido realizado um sonho de conteúdo
vocacional: a Sérvia estava em primeiro plano na península balcânica e o
desmoronamento do Império Otomano estava evidente, pois seus territórios
estavam sendo divididos. Quem ganhou politicamente com isso, de modo
indireto, por meio de sua aliada, a Sérvia, foi a Rússia. No bojo desses
acontecimentos, um atentado em Sarajevo, capital da Bósnia, ao então
proponente a chefe de Estado da Áustria-Hungria, Francisco Ferdinando, em
28 de junho de 1914, desembocou numa grande crise que acabou levando à
Primeira Guerra Mundial. O atentado havia sido tramado por um grupo sérvio
chamado Mão Negra, uma sociedade secreta, comandada por oficiais sérvios
que haviam levado o atual governo de Belgrado ao poder (BERÉNGER, 1997).
A Mão Negra havia recrutado muitos jovens sérvios na Bósnia, que
exprimiam seus desejos nacionalistas e estavam sedentos pela possibilidade
da Grande Sérvia. Para compreender porque um atentado terrorista
desencadeou uma crise na Europa e o esfacelamento do Império Austro-
Húngaro, tomo como ponto de partida que havia a constatação de que a
“inação” dos militares da monarquia nas relações balcânicas não poderia mais
ocorrer, pois a próxima vítima de nacionalismos (como aqueles que ocorriam
na Bósnia) seria o Império Austro-Húngaro. A decisão se encaminhava para
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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ser de caráter militar. Como não houve apoio imediato a um ataque armado, foi
redigido, no Conselho da Coroa, em 07 de julho e enviado a Belgrado, em 23
de julho de 1914, um ultimato, exigindo condenação das campanhas anti-
austríacas na Bósnia, bem como a perseguição dos responsáveis pelo
atentado e a participação de funcionários austríacos no exército e
administração sérvios. A Sérvia estava acuada, com pouca escolha: como
estado independente, ela não aceitou esse ultimato, e, assim, a Áustria-
Hungria mobilizou seu exército aos Bálcãs, novamente, deflagrando a I Guerra
Mundial (BERÉNGER, 1997).
A monarquia, acreditando ser, novamente, um conflito regional
(THOMAZ, 1997), deflagrou uma guerra que iria mobilizar toda a Europa, no
sentido de que a Rússia não aceitou passar por uma situação de derrota frente
à sua aliada Sérvia; a França, por sua vez, visava cumprir seu acordo de
cooperação com a Rússia, e a Alemanha passou a apoiar o Império Austro-
Húngaro. Novamente aqui, temos a Europa como epicentro de uma guerra
mundial. Posteriormente a guerra desintegrou o Império Austro-húngaro, dando
origem às novas forças no mundo contemporâneo, a divisão em novos blocos
políticos fortes, a criação das nações socialistas e a redivisão da Europa.
Para melhor compreender as questões pontuadas acima, apresento
mapas da configuração da Europa antes (Figura 1) e depois (Figura 2) da I
Guerra Mundial. Pode-se observar, na Figura 1, a existência dos Impérios
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães Austro- Húngaro e Otomano e na Figura 2, a existência dos novos países,
dentre eles a Iugoslávia.
Figura 1: Mapa da Europa antes da Primeira Guerra Mundial Fonte: http://www.culturabrasil.org/imagens/europaantesdaprimeiraguerra.jpg
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Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
Figura 2: Mapa da Europa após da Primeira Guerra Mundial Fonte: http://www.culturabrasil.org/imagens/europadepoisdaprimeiraguerra.jpg
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Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
70
1.8. De uma geopolítica à bacia semântica
As lutas que envolveram a história dos Bálcãs representaram, em
primeiro lugar, um novo patamar de lutas no âmago dos antigos embates entre
o Oriente e o Ocidente. A região dos Bálcãs, por sua própria localização
geográfica e evidente diversidade, representou esse encontro entre os dois
lados do mundo. Em segundo lugar, ela abarcou os conflitos étnico-culturais
dessas diferentes etnias: bósnios, sérvios, croatas, macedônios, albaneses,
eslavos, que dificultavam a construção de identidades étnicas e também de
alteridades, como veremos ao longo da Tese. Nas fragmentações dos
discursos, apresentados em nome dessa nação, escancaravam-se diferentes
identidades, representando e atravessadas, de certa maneira, por uma
contradição. Isso é possível perceber se observarmos na descrição que fiz no
capítulo que essas forças em questão tomaram lados, em sentidos distintos, se
associando a diversas outras posições, que vinham da configuração das forças
no entorno da Europa, durante o percurso histórico. Quero dizer com isso que
uma posição, seja ela política, financeira, cultural ou social, é multideterminada,
multifacetada, multiparadigmática e deve ser compreendida a partir das
relações nas quais se estabelece, na forma com que se apresenta, que
interesses representa. A Sérvia, por exemplo, se situou com um projeto
nacionalista próprio, mas estabeleceu posicionamentos favoráveis e contrários
ao Império Austro-Húngaro.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
71
Para Morin (1996), a Iugoslávia viveu (e ainda vive) uma agonia, mas a
consciência dessa complexidade já existe, hoje, entre os diferentes países
europeus. Entretanto, “o sentimento de complexidade paralisou, quando a
consciência da complexidade deveria ter suscitado uma estratégia.” (MORIN,
1996, p. 53).
De que estratégia fala o autor? Para ele, essa crise irá solucionar-se, de
modo eficaz, somente com a associação entre necessidade de soberania e
compreensão dos problemas da minoria. Em outros termos, o autor recoloca a
questão da alteridade e da identidade no âmago das lutas políticas, contudo,
fora do projeto político nos moldes do pensamento iluminista, mas no interior
do pensamento complexo, cosmocêntrico. Compreender os problemas da
minoria significa compreender que a região é um “lugar transecular dedicado
ao mesmo tempo ao passado e ao futuro” (MORIN, 1996, p. 81). Isso, sem
dúvida, implica em abarcar as questões históricas, simbólicas e míticas, para
que possamos compreender a construção da região, do ponto de vista de lutas
que se desenvolveram nos diversos campos, não apenas em guerras, e
assumiram novos equacionamento político – culturais, a partir do rompimento
com o projeto universalizante, proposto pela modernização9.
9 Mesmo que utilizemos uma diferenciação, como a proposta por Arendt (2004), entre um
sistema totalitário que se utiliza das massas para se solidificar, como no caso do Stalinismo ou do Nazismo, e de outro, que se baseia no interesse comum de classe, remontando à tradição marxista, é preciso entender que ambos são propostas universalizantes que não capazes de incorporar, a não ser pela via da negação da alteridade, todas as diferenças existentes.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
72
Penso que o conceito de bacia semântica (DURAND, 2001a) pode
contribuir para esta discussão. Durand utiliza a metáfora das margens de um
rio e de seus afluentes, para explicar que um sistema de idéias pode estar
institucionalizado e, por sua vez, ser o “principal”. Entretanto, podem existir
outras idéias operando num setor ao qual ele denomina “marginalizado”: “um
sistema sociocultural imaginário destaca-se sempre de um conjunto mais vasto
e contém os conjuntos mais restritos” (DURAND, 2001a, p. 104). Esse setor
“marginalizado” pode ter escoado (a primeira fase da bacia semântica é
chamada de escoamento) e é imobilizado por conta das regras e convenções.
No caso analisado, o projeto político era austero e repressor, nem por isso
esse setor marginalizado deixa de existir e, num segundo momento, ocorre a
“divisão das águas”, que é o nascimento de uma “junção” de alguns
escoamentos, formando uma espécie de oposição, momento da guerra entre
os diferentes imaginários em oposição. Num momento seguinte, o terceiro,
esses diferentes imaginários formam uma “confluência”, que decorre do apoio a
uma corrente de idéias por meio de seu reconhecimento. Essa metáfora alude
tanto à realidade histórica quanto à natureza do conhecimento para abarcá-la.
Vejamos como essa bela metáfora se aplica a região dos Bálcãs. As
idéias da Modernidade operaram desmedidamente na direção da orientação de
uma geopolítica para a região, formando assim um sistema dominante. Esse
sistema dominante foi assegurado por outros sistemas simbólicos que sempre
estiveram operando no momento. Processos instituintes existentes no local
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
73
foram ganhando força, até que se construíam oposições e, dessas oposições,
confluências, transformando-se em novas instituições, produzindo novos
sentidos à Modernidade.
A “bacia semântica”, contudo, não extravasa suas águas nas
confluências. Ainda há um processo a se completar, um ciclo a seguir por esse
conjunto de rios e seus afluentes. Em seguida, há a fase, a quarta, que o autor
chamou de “o nome do rio”, que é “o nome do pai solidamente mitificado”
(DURAND, 2001a, p. 111). Este pode ser representado tanto pelo projeto
socialista, de um lado, como na “Grande Pátria Sérvia”, de outro, já que os
opostos não se excluem. Essa fase leva à seguinte, a quinta, que é a fase de
“organização dos rios”, operando o exagero dos que se seguiram, e que, na
história dos Bálcãs, pode ser entendido como a própria violência em favor de
uma ou outra posição institucionalizada. Mas há, ainda, na visão otimista do
autor, a possibilidade de superação de uma visão cristalizada, pois toda a
“bacia semântica” chega a seu momento de saturação e temos, assim, a última
fase, a sexta, com “os deltas e os meandros” dos rios. Esse é um importante
momento de ocorrência da “corrente mitogênica”, que cria novos deltas,
deixando-se penetrar pelos “novos escoamentos anunciadores”, já que o que
está cristalizado está desgastado. Novos valores, novas práticas, novas idéias
estão por vir, penetram, fazem com que ocorra o movimento sistêmico, isto é,
engendram-se e são engendradas por elas mesmas. A percepção do momento
de “agonia planetária” de toda a sociedade agora compreendida no
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
74
microcosmo da região dos Bálcãs (Morin, 1996) não poderia ser um sinal para
que se formassem esses novos deltas? Um sinal que indicaria ser possível
penetrar pelos escoamentos até então marginalizados, por uma nova forma de
pensamento, diferentemente de um pensamento preso às questões postas pelo
processo de modernização, abrindo-se também às questões particularistas,
para além das universalidades introduzidas pelo projeto moderno.
Maffesoli (1981) aponta que essas novas confluências, por meio de suas
potências, constroem novos tipos de poder, não mais “democráticos” que os
anteriores. É importante destacar ainda uma questão pontuada por Morin
(1996), que considera que o Estado-Nação é a expressão das aspirações
étnicas e religiosas, pois este comporta uma realidade mitológica que o autor
chamou de “quente”:
É a componente matri-patriótica que deu substância maternal à mãe-pátria, terra-mãe, para a qual vai naturalmente o amor e que confere substância paterna ao Estado, para o qual vai naturalmente a obediência. (MORIN, 1996, p. 44)
Ora, não é essa a aspiração de cada uma das chamadas pátrias
iugoslavas? Morin nos fala que essa aspiração mítica restaura os laços
familiares e tribais perdidos devido à Modernidade. Questões míticas, com
suas traduções simbólicas, culturalmente especificadas operam, então, nessas
tentativas de re-significação das configurações geográficas, que são, por um
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
75
lado, naturais, devido às condições geográficas da região (seus rios e montes),
mas também são culturais e míticas, pela perambulação de diferentes
realidades étnicas, culturais e religiosas pela região.
Vimos até aqui como é complexo o campo cultural que abarca as lutas
étnicas e religiosas na região dos Bálcãs: envolve uma forte dimensão política,
o contraponto entre projetos, uma história sendo tecida nas dimensões
instituídas-instituintes, que operam por meio de suas potências não-lineares e
que demonstram suas diferentes configurações no exercício do poder na
região. Nas palavras de Maffesoli:
É isto o que importa aqui: assinalar a passagem de um tempo monocromático, linear, seguro, o do projeto, a um tempo policromático, trágico por essência, presenteísta e que escapa ao utilitarismo do cômputo burguês (MAFFESOLI, 2003a, p. 9).
Trata-se de considerar, como ele, que o sentimento trágico retorna à
vida cotidiana. Não é à toa que a tragédia vivida pelos povos da região dos
Bálcãs vem ressignificar o que ocorre transcendendo-o, já que retorna às
próprias origens dessas lutas. Não de forma linear ou unicausal, como nos
levam a crer as interpretações midiáticas das lutas ocorridas na região, mas no
sentido de um retorno da profundidade a partir da qual se construíram todas as
diferenças e negações presentes nos Bálcãs. Aqui, “reencontramos a diferença
de tonalidade entre o drama, ou a dialética, que postula uma solução ou uma
síntese possível, e o trágico, [que é] aporético por construção” (MAFFESOLI,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
76
2003a, p. 26). Os retornos não são explicados em forma de síntese, mas em
função de acontecimentos que presentificam antigas questões ali presentes, de
forma específica, não pensados sob forma linear, mas são construídos a partir
de uma causalidade circular, na qual “o retorno ao local, a importância da tribo
e da montagem mitológica” (MAFFESOLI, 2004, p. 22) são engendrados e
engendram-se através do trágico.
O trágico, oposto ao drama, transfigura-se em diferentes fenômenos,
seja pela crueldade, seja pela distorção das diferenças, pela negação da
alteridade ou por meio da solidarização ou do retorno ao local. Meu olhar,
agora, está focado na discussão dessa transição que ocorre pela via de
conflitos étnico-culturais, que podem representar, de certa forma, uma diferente
postura existencial. Ele nos fala que dedica-se a “viver, no dia-a-dia, esses
mesmos problemas” (MAFFESOLI, 2003a, p. 188), referindo-se aos problemas
modernos. Não trata-se de apresentar uma “postura” adequada, nos moldes do
behaviorismo, em relação aos problemas, mas de presenciar o que os
fenômenos contemporâneos, com toda sua força, insistem em nos mostrar. O
trágico traz consigo a possibilidade de re-viver o outro e de re-pensar a
alteridade, o que se demonstrou necessário após as tentativas universalizantes
da Modernidade.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Capítulo II. Processos identitários e os Bálcãs
Por um motivo ou por outro, terra, pátria, idioma, povo, raça, tornaram-se palavras impronunciáveis. Sobre elas, por um bom tempo, projetou-se um longo cone de sombra. Hoje, no entanto, estão à espera de respostas nossas, respostas à altura da mudança histórica que estamos vivendo. (MALDONATO, 2004, p. 49)
Depois de ter mostrado no capítulo primeiro a falência dos projetos
totalitários na Europa, a reconfiguração do espaço territorial com suas novas
fronteiras mobilizou e foi mobilizada também pela dinâmica dos processos
identitários, em suas relações entre as fronteiras internas e externas
conduzindo essas diferentes etnias a um destino coletivo. O desmembramento
do Grande Estado Iugoslavo reascendeu as necessidades históricas dos
diferentes povos que sempre ali conviveram, mas estiveram ora sob a égide do
Império Otomano, ora do Império Austro-húngaro, ora do Estado Socialista
Iugoslavo. Esse longo conflito com suas várias dinâmicas e formas de
expressão vai produzindo ressonâncias na Europa como um todo.
Nos anos 1990, os conflitos balcânicos representavam, mais uma vez,
no imaginário europeu, uma ameaça a essa ordem, a ordem européia, já
esgarçada, mas ainda, bem ou mal, era agregadora de todas as etnias. Uma
nova dimensão desses conflitos colocava, também, mais uma vez em causa, o
logos ocidental. Os conflitos identitários que os Bálcãs viveram, reascenderam,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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em suas formas mais drásticas, os processos identitários engendrados pela
sociedade contemporânea e recolocam, para as teorias sociais, novas
indagações sobre as questões locais/globais. Mas também recolocam uma
grande possibilidade de reflexão dos elos identitários a serem construídos entre
os diferentes grupos étnicos, nessa guerra étnica, eles que de alguma forma
tecem essa complexa teia de relações simbólicas nessa região.
Agora sim, é preciso pensar como as imagens do passado, com suas
ressonâncias, podem mobilizar mais o presente do que as ações racionais
teleológicas contidas nos projetos políticos. Nesse processo, as imagens
arquetípicas (DURAND, 2001a), apesar de “embaçadas”, são passíveis de
estudo pelo pesquisador do imaginário antropológico. Essas imagens do
passado engendram novos fatos históricos numa nova temporalidade; elas
movem novas outras contradições sociais, construindo, como uma das
dimensões instituintes, uma presença mítica nos papéis assumidos pelos
atores sociais. Língua, cultura e religiões estão presentes nessas imagens e
apesar das lealdades aos planos dos projetos políticos terem se configurado
em favor de formações estatutárias diferentes, essas questões, que produzem
ligações dos homens com seu passado, estão presentes, mesmo que à
margem do pensamento dominante. É preciso, então, recuperar esses fluxos
de imagens e de arquétipos atuando nos processos identitários.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
79
Neste capítulo, discuto a produção dos processos identitários na região
dos Bálcãs, inicialmente estruturada sob as complexas condições históricas
apresentadas no capítulo anterior, e que se constituem no cenário sobre o qual
será reconstruída a filmografia que discutirei nesta Tese. Para desdobrar essa
discussão, problematizo neste capítulo três formulações clássicas no
pensamento social do conceito de identidade. Em seguida, dialogo com essas
formulações para reformulá-las como mecanismos de identificação, fluidos e
abertos, móveis, e a força como operam no campo de estudo que abarca o
imaginário antropológico:
a) A concepção de identidade essencialista no pensamento antropológico;
b) A concepção de identidade política, construída a partir do sujeito
histórico, e
c) A cultura e uma proposta alternativa de identidade em sua articulação
com a alteridade.
2.1. A concepção de identidade essencialista
Para se pensar uma concepção de identidade essencialista, é
necessário compreender a existência de um território fixo, de relações
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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homogêneas, relativamente estáveis, podendo ser recortadas pela empiria e
padrões regulares de repetição de eventos. Temos aqui, uma maneira peculiar
de opor, segundo uma concepção de cultura, que originalmente opunha-se à
civilização. Numa concepção funcionalista pressupõe que:
a) partindo do conceito de função, os traços culturais devem ser vistos, no
interior de uma determinada sociedade, exercendo funções precisas, e
b) as culturas são concebidas como sistemas equilibrados e funcionais, que se
harmonizam (CUCHE, 2002).
Sendo assim, a identidade como uma das possíveis funções que
ocorrem numa determinada cultura, é vista nas relações entre seus membros,
promovendo uma certa harmonização na cultura, dando a ela características
próprias. As mudanças culturais, para essa matriz funcionalista, não podem ser
pensadas como transformações históricas, embora possam ocorrer de dentro
para fora, do interior de uma determinada cultura, sobretudo quando do contato
com outras culturas.
Vejamos um pouco como é que em teorias clássicas sobre Estado-
nação a identidade pode ser formulada no âmago da questão da unidade
política entre os povos de diversas origens étnicas e sociais. Discussão
extremamente provocadora é apresentada por Rúben (1986), buscando os
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
81
fundamentos de identidade em Hegel e Mead. Para o autor, é comum às duas
formas de se pensar a identidade buscando uma solução agregadora do social:
em Hegel, através do Estado, e em Mead, por meio da cultura. Tanto em Hegel
como em Mead, não é aceita a idéia de que seja possível uma identidade
construída através de uma homogeneidade configurada na língua, cultura ou
costumes, mas há a necessidade de que as diferenças e as contradições
sejam minimizadas. Isto Rúben (1986) tratou como sendo um projeto político,
como veremos mais adiante.
Na concepção de Hegel, a formação e organização do Estado que
agrega é um projeto universalizante dos diferentes povos, enquanto para
Mead, a identidade opera o reconhecimento desse sistema no outro, que existe
também em mim, ou seja, também um projeto universalizante.
Esse “reconhecimento” serve para as Ciências Sociais como ponto de
partida e, em sua versão contemporânea, na descoberta das “marcas” e
“limites” de um determinado grupo social, como nos mostra Rúben (1986). Se,
analogamente às tentativas de Hegel e Mead, o outro é construído num
primeiro momento das teorias sociais a partir das características agregadoras
desses grupos, por meio da noção de irredutibilidade desses grupos, como
língua, religião, costumes, essas são as características a partir das quais as
sociabilidades são reproduzidas no seio desses grupos.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
82
O que é realmente provocador na reflexão de Rúben (1986) e que
conflui, em certa medida, com os apontamentos de Ivekovic (1997), é a
saturação das tentativas contemporâneas de definir identidade a partir da
compreensão desse outro relacionado a situações específicas, porque essas
tentativas, da mesma forma que as tentativas clássicas de Hegel e Mead,
estariam buscando a irredutibilidade do fenômeno, ligadas também a uma
tradição da ciência moderna. Como bem observa Ivekovic (1997), as
identidades, no interior das diferentes etnias da região dos Bálcãs, não
poderiam ser definidas pelas características de costumes, nem por
características religiosas: há três diferentes conversões (católica, ortodoxa e
muçulmana), bem como diferentes línguas envolvidas que, por si só, não
explicam a agregação em grupos étnicos, que foram, como o autor bem
demonstra, cambiantes em relação às suas lealdades políticas.
2.2. Concepção de identidade política construída a partir da crítica ao sujeito histórico
Marcadas pela crítica ao pensamento iluminista que construía o conceito
de civilização relacionada à polis, as teorias antropológicas de identidade
propõem suas indagações no âmago das diversidades culturais abarcadas pelo
conceito de cultura. Contudo, nas tentativas contemporâneas de construção da
identidade, não é possível pensar o “outro” apenas em sua dimensão cultural,
sem considerar que a relação de identidade opera no mesmo movimento da
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
83
construção da alteridade. A situação fica mais complexa quando nela está
embutida uma crítica ao projeto político e ao sujeito histórico.
Entre a abolição das fronteiras fixas para a construção da identidade,
quando essa discussão é retomada no interior da luta política, temos o conceito
de desigualdade social operando nesse paradigma. As versões mais
antropológicas das teorias da identidade abdicam o “outro" de “pertencimento”,
pressuposto essencialista, muitas vezes considerando-o “desigual” (Rúben,
1986). Esse processo opera, na discussão metodológica do autor, a noção de
“descentralização do outro”. A potencialidade cognitiva desse recurso de
descentramento, nas diversas teorias contemporâneas da cultura, atravessa
várias modalidades explicativas da identidade, até uma consideração pós-
moderna de “multiplicação de identidades” que são conjuntos de fragmentos
dos quais a subjetividade é formada.
Poderíamos considerar o projeto político do socialismo como uma
tentativa de unificação dos povos balcânicos, portadores de suas identidades?
Um projeto universalizante abarcaria os dois eixos analíticos (de Estado e de
sociedade) propostas por uma teoria clássica de identidade? Existiria um ou
vários projetos políticos para essa região? Quais eram os sentidos dessa busca
voltada à construção de uma identidade balcânica e ligada a que perspectivas?
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
84
Vejamos, agora, como essas questões nos ajudam a pensar a
problemática da identidade nos conflitos balcânicos. Na região dos Bálcãs, os
processos ou as lutas entre os projetos comunitários (postos na organização
camponesa, na organização de partidos ou na etnicidade sérvia) e os projetos
agregadores em Estados (a Sérvia, Bósnia, Albânia) estiveram sempre
presentes, no seio da história dessa região (THOMAZ, 1997). Ao mesmo
tempo, essa mesma história revelava a formação de projetos universalizantes
sob a égide de um projeto político único, o comunismo, como forma do
socialismo real, como discute Hobsbawm (2004), que pudesse ter, em si, as
características essenciais para a unificação desses “diferentes povos” (sérvios,
eslavos, bósnios, croatas). Materializa-se, na região, o Estado Iugoslavo,
representante, na práxis, desse projeto comunista/socialista, que teria a
possibilidade de romper essas fronteiras essencialistas, agregando-os em torno
do projeto.
Ivekovic (1997), um pensador das ciências sociais, olha de dentro os
efeitos dessa derivação dos projetos políticos. Por ele ser também um morador
local, tendo vivido de perto esses conflitos balcânicos, aponta que problemas
sistêmicos tratados de maneira inadequada durante o período socialista e do
Estado Iugoslavo reascenderam na “transição de uma formação estatal a outra
[...] [e] afeta [m] diretamente as identidades individuais e coletivas” (p. 45),
levando à destruição das federações soviética e iugoslava.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Nessa discussão, retomando aqui o contexto do “esfacelamento” da
Iugoslávia, discutido páginas atrás, sobretudo quanto às concepções de
Blackburn (1997), foram evidenciadas novas características identitárias, nesses
novos momentos da luta política, agora fora dos projetos socialistas, que
operavam a inclusão/exclusão. Essas características eram agora, não mais
políticas, no sentido tradicional do conceito iluminista, mas “étnicas”, que
sempre estiveram presentes, mas que ganharam um novo estatuto
epistemológico para as teorias:
De fato, em toda a Europa do Leste e no antigo espaço soviético testemunhamos recentemente uma maciça e agressiva reafirmação de identidades étnicas estanques, embora esse ´ressurgimento´ não tenha resolvido a questão da legitimidade de nossos regimes recém-estabelecidos, que permanece problemática a despeito das sucessivas eleições e plebiscitos (IVEKOVIC, 1997, p. 46).
Os efeitos incalculados para uma construção a priori das sociedades
balcânicas, com o processo supostamente “unidimensional” (IVEKOVIC, 1997)
gerou uma insatisfação geral do povo da Iugoslávia. O contato com a
sociedade de consumo já era eminente, já que a Iugoslávia era um país que
vivia duas dimensões aparentemente antagônicas: por um lado, processo
educacional altamente desenvolvido e, por outro, uma economia baseada na
produção rural10. Os jovens bem qualificados tecnicamente se inseriram em
empregos em outros países, travando contato mais intenso com outros valores,
10 Isso é mais evidente, como aponta Blackburn (1997), quando opomos uma região à outra: a
Croácia, por exemplo, é mais desenvolvida economicamente que a Bósnia-Herzegovina e tem mais contato com o turista da Europa Ocidental.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
86
outras formas de vida, de produção cultural, outros horizontes, novas
cosmovisões. A insatisfação com as condições econômicas de seu país de
origem levou-os ao apoio de Milosevic, exceto na Eslovênia e Croácia, as quais
defendiam-se do projeto da “Grande Sérvia”.
A idéia de falsificação histórica, a partir das próprias teorias de
identidade, promoveu a caracterização das diferenças, das marcas e dos
limites dos diversos grupos sociais nos Bálcãs (IVEKOVIC, 1997). Para este
autor, os conceitos de identidade advindos das Ciências Sociais contribuíram
para as “manipulações políticas” ocorridas no seio da região. Thomaz (1997)
ressalta que essas manipulações políticas conduziram ao conflito apregoado
pela mídia como a presença de um “ódio ancestral”. Contudo, há de se
considerar novas dimensões cognitivas operantes no conceito de identidade, o
que lhe dá uma nova dinâmica, possibilitando, através dele, um rearranjo
cultural:
todos nós somos portadores de identidades múltiplas e superpostas que compõem nossas consciências e que, de um modo geral, não se excluem mutuamente, embora possamos arranjá-las e rearranjá-las em diferentes ordens hierárquicas (IVEKOVIC, 1997, p. 40).
Considerando isso, poderíamos falar de diversas identidades (religiosa,
étnica) que refletem diferentes interesses e necessidades coletivos. A questão
da lealdade e da irredutibilidade de características consideradas por grupos
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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sociais que tecem mecanismos de coesão social, como apontados por Rúben
(1986), podem acompanhar as mudanças histórico-culturais e políticas nas
quais determinados grupos estão inseridos. Nos conflitos dos Bálcãs, o povo
sérvio, por exemplo, esteve ora articulado ao Império Austro-Húngaro, ora ao
projeto político do socialismo para o Leste Europeu, dimensionando as
diferentes possibilidades de reconhecimento de suas identidades com as
ideologias imanentes a cada Estado. Ao longo do processo histórico, é possível
afirmar que eles formavam uma cadeia de ligações entre essas várias
perspectivas de inclusão. No decorrer do processo de formação do Estado
Iugoslavo, não foi possível, para os habitantes das diferentes repúblicas que o
formavam, estabelecerem relações de acesso a diferentes valores que fossem
diferentes das relações de violência, por isso a lealdade aos projetos
unificadores se torna tão presente (IVEKOVIC, 1997). Entretanto, não trata-se
de optar pelo entendimento da violência como constitutiva dos povos
balcânicos, como frisou a mídia (THOMAZ, 1997).
Assim são construídas as marcas e os limites de uma identidade
cambiante, que não são características imutáveis (RUBÉN, 1986). Pelo
contrário, o “estranhamento” em relação ao “outro”, como coloca Ivekovic
(1997), é engendrado pelo processo histórico – cultural, que é dinâmico. Como
aponta Batalla (1991), é necessário reinterpretar o papel anteriormente dado à
cultura e às dimensões étnicas, atuando nos processos identitários de uma
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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forma dinâmica – a dinâmica histórico-cultural - deixando-as de reduzí-las a um
papel secundário ou apenas fruto de uma história.
A dinâmica identitária se move em várias direções, não apenas na
direção do projeto político do Estado, aflorando uma característica ou outra,
dependendo dos interesses de um determinado grupo. Para Ivekovic (1997),
“Eslovênia, Croácia e Macedônia se definiram primeiramente como estados
étnicos a partir do grupo étnico majoritário” (p. 41). E completa o autor,
comentando Verba (1971) e Pye (1971), que isso não se constitui pelas
características subjetivas dos indivíduos, mas pela fixação de uma
“autoridade”: “essa autoridade não é necessariamente o estado-nação com seu
monopólio legal da coerção, pois também pode ser uma ´autoridade moral´”
(p.42), como a Igreja, por exemplo. A via de legitimação desta autoridade pelo
grupo fixa os padrões de inclusão/exclusão dos indivíduos nestes grupos.
Parece que esta é uma característica muito mais freqüente, também em outros
contextos sociais.
É assim que são possíveis as falsificações históricas e as manipulações
políticas aludidas pelos autores (IVEKOVIC, 1997; THOMAZ, 1997;
BERÉNGER, 1997). Os grupos majoritários no interior dos grupos sociais criam
seus critérios de justificação da inclusão/exclusão para a construção de uma
identidade apoiada, justificada, aceita pelo grupo, já que os argumentos
necessários (históricos, políticos, religiosos) são aceitos, pois fazem parte do
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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imaginário, num sentido mais amplo, desses indivíduos. No interior dos grupos
sociais e dos mecanismos de construção da identificação social as fronteiras
dos grupos étnicos são construídas através de argumentos/ justificativas que
se tornam “objetivos” para as finalidades propostas: características raciais,
lingüísticas, étnicas. É o modo como operam as dinâmicas culturais das
mudanças ocorridas nos Bálcãs dos últimos anos, segundo esses autores
estudados.
Temos, então, que a identidade não é fixa; no projeto político ela coloca
em causa a unidade de suas ações na direção de construção do social. Assim
estamos no centro da discussão que compreende a “identidade cambiante”,
movida por forças míticas e exemplificada por Ivekovic:
Meu pai nasceu no império austro-húngaro, eu no reino da Iugoslávia, meus dois filhos na República Federal Socialista da Iugoslávia, e eu sou na realidade um cidadão croata vivendo temporariamente no Egito, mas não posso prever onde meus netos irão nascer e como vão se identificar. (IVEKOVIC, 1997, p. 43)
Para o autor, sua condição sócio – histórica é um mote para a
comparação desta reflexão sobre sua identidade, em que as fronteiras na
região balcânica sempre foram impostas às comunidades, a partir de fora,
embora sejam vividas do seu interior. As mudanças no meio político e social
levaram os indivíduos da região a ressignificar suas identidades. O indivíduo
entra em crise quando tem que buscar coincidir sua percepção subjetiva de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
90
identidade e com a identificação política (BINDER, 1971 apud IVEKOVIC,
1997). No início de “Vidal e os seus”, livro dedicado a seu pai, Morin também
alerta para essa noção, repensando a formação da identidade:
Como todo ponto singular de um holograma, que contém a informação da totalidade em que se inscreve, o destino único de Vidal reúne o desabrochamento, o crepúsculo e a morte de uma cultura, a dos sefardim ou judeus-espanhóis; a passagem da cidade império ao Estado-Nação; o complexo das relações modernas entre judeus e gentios; o complexo das relações Oriente-Ocidente; enfim, o nosso próprio século. (MORIN, 1994, p. 7)
O grande dilema neste processo é que a noção de inclusão/exclusão,
quando é construída politicamente, obriga os atores a aceitarem essa
imposição identitária, “de fora”, oriunda da “autoridade”, de poder fazer parte
deste ou daquele grupo. Trazendo de volta o princípio de alteridade para o
pensamento antropológico, a partir do abarcamento das dimensões do
imaginário antropológico, proporemos outras articulações para essa discussão.
Primeiramente, retomo o contexto da crítica ao Positivismo, ao Historicismo e
ao pensamento da Igreja, realizada na Introdução desta Tese. Tomando como
ponto de partida outras dimensões que foram esquecidas pelos cientistas
sociais, de forma geral, e pelos cientistas políticos, de forma mais pontual, as
identidades se articulam à alteridade, num processo cambiante, e ainda que se
guardem relações com a lógica histórica concreta, seu processo também
coloca em causa a historicidade das relações sociais, pois elas são afeitas às
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
91
forças míticas e imaginais nelas atuantes. (DURAND, 2001a; ORTIZ-OSÉS,
2004).
2.3. Cultura mediterrânea e imaginário antropológico
Retomemos, aqui, algumas questões que nos ajudam a compreender
melhor a cultura mediterrânea, a partir do imaginário antropológico. Os meios
de comunicação de massa, como lembrei no início desta discussão, têm
enfatizado o atual conflito na região dos Bálcãs como sendo uma
“reemergência” de identidades étnicas e nacionais que sempre foram
mutuamente excludentes, mas que foram caladas em meio à expansão
socialista no Leste Europeu (IVEKOVIC, 1997). Durand (2001a) afirma que a
“explosão do vídeo” alcança em todos os níveis o homem ocidental,
influenciando suas escolhas econômicas, sociais e culturais, transportando
questões ideológicas, não conseguindo prever que a força da imagem (e a sua
real consideração) transformaria a sociedade, os grupos, a cultura. Ivekovic
(1997) e Thomaz (1997) criticam também essa explosão das imagens discutida
por Durand.
As idéias de etnicidade retornam, agora, numa relação direta com as
questões políticas e econômicas; elas retornam como questões culturais e
ancestrais fundantes desses grupos, fazendo com que diversos sistemas
interajam no processo. Assim, o conflito social não se explica mais apenas pela
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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economia, nem pela autoridade/subalternidade, mas por uma compreensão da
cultura construída de um modo oblíquo e transversal, o que nos abre à
consideração de retorno da dimensão trágica da existência.
Maffesoli (2003a, 2005), quando alude à questão do destino, assevera
que estamos prestes a reviver (na verdade, já estamos revivendo) o retorno do
trágico, nesse movimento cíclico, que se contrapõe à sociedade do drama, que
foi a sociedade moderna:
O trágico nos obriga a pensar esse paradoxo. Paradoxo instransponível, para além das ideologias tranqüilizadoras sobre a perfectibilidade do homem e da sociedade, para além das múltiplas ilusões de todo gênero que formaram o progressismo ocidental, apela a uma lucidez fortificante, incitando a viver sua morte de todos os dias, o que, depois de tudo, é uma boa maneira de viver a vida que nos tocou. Integrar homeopaticamente a morte é o melhor meio de se proteger ou, ao menos, de se tirar proveito. (MAFFESOLI, 2003a, p. 22)
Ou ainda:
É necessária, alternativamente, ao menos para uma explicação compreensiva do conflito, uma abordagem multidisciplinar que leve em conta o fluir caótico, mas vagaroso, da história, que modifica constrangimentos geopolíticos e cria novas tendências econômicas globais, além do drama – social, psicológico e cultural – da modernização (IVEKOVIC, 1997, p. 51).
É também “afrontamento da potência de espírito dinâmico e do poder de
uma realidade estática” (MAFFESOLI, 2003a, p. 20), no sentido de que existe
mais a necessidade de se “viver” esses sentidos dados à existência que tentar
“domá-los”, tal qual o realiza o projeto político universalizante. Há um certo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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destino ao qual a vida está imbricada, e essa condição se abre para a
sensibilização do homem.
O Progresso, a História, a Política, a Razão (a deusa Razão) foram os ingredientes da ‘liga’, elaborada desde o fim do Renascimento. Há outro em gestação, que tende a privilegiar a ‘participação’ mágica ou mítica com a natureza e com os outros. (MAFFESOLI, 2003a, p. 173)
Esse autor relembra que, se na Modernidade o mito que operou foi
Hermes, nesse momento atual, deve-se retomar o mito de Dionísio, o mito do
prazer, do mágico, do orgiástico (MAFFESOLI, 2003b), pois “o simbolismo
remete à preemência do grupo” (p. 14), e a experiência de grupo e da vida
societal se dá por meio dos símbolos, e não por ações racionalizadoras numa
direção construída a priori. Para ele, repensar o mundo atual implica em olhar
para o sentido, o mítico, o mágico. A “crise planetária” (MORIN, 1996) é re-
significada a partir da compreensão das realidades como “quentes” (MORIN,
1996; DURAND, 2001a), com um sentido arquetipal do retorno do trágico, na
necessidade de religação entre natureza e cultura a partir desse trágico, do
retorno do feminino, da sombra, de Dionísio (MAFFESOLI, 2003a, 2003b).
Para tentar provocar ainda mais a discussão, trago ainda as
contribuições de Maldonato (2004) sobre as relações entre a região meridiana,
como veremos, e as questões culturais às quais me debrucei neste capítulo.
Pensar a região dos Bálcãs é pensar a região que está ligada ao Ocidente e ao
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Oriente, mas não do ponto de vista estritamente geográfico, histórico ou
político. Pensar a geografia da região é pensar o que ela tem de conteúdo
simbólico. Maldonato (2004) traz à tona a questão de que existe uma “hora
meridiana”, que também é a hora do deus Pan (o mesmo Dionísio de
Maffesoli), na qual não se dissolveu a sombra, nem se tem totalmente a luz.
Luz e sombra acontecem juntas. Ele fala da região ligada pelo Mediterrâneo,
que fica ao longo dele. A região dos Bálcãs, geograficamente liga-se a esta
região, tem as mesmas características e sua profusão latina lhe dá um sentido
semelhante: pela invasão otomana, pela diversidade de etnias, pela ligação
(não por mar, mas por terra) ao Oriente. As metáforas trazidas sobre o
Mediterrâneo podem ser muito significativas para pensar essas relações. Para
o autor, é pelo Mediterrâneo que se poderá operar a mudança, a utopia, o
sentido de uma terra, pelo sentimento da incerteza que esse lugar sempre
viveu.
Como articular a consciência e o reconhecimento da diferença para além
do projeto moderno de homem? Morin, em sua definição de cultura, nos alerta
para duas questões importantes da contemporaneidade, mas com
equacionamento difícil, a discussão da identidade numa cultura com dimensões
míticas:
A cultura reúne em si um duplo capital: por um lado, um capital técnico e cognitivo – de saberes e de saber-fazer -, que, em princípio, pode ser transmitido a qualquer sociedade, e, por outro lado, um capital específico, que constitui os traços de sua identidade original e alimenta uma comunidade singular em referência aos seus antepassados, aos seus mortos, às suas tradições (MORIN, 1997, p. 165).
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Ao realizar um caminho epistemológico muito próprio, diferente do
realizado pela tradição francesa, que ateve-se mais aos processos
relacionados à civilização ou em compreenderem consciência coletiva definida
em sistemas de relações coletivas, contudo no interior de uma concepção
historicista (TODOROV, 1993), Morin nos chamará atenção para:
a) a cultura é uma proposta alternativa para se pensar a identidade, no
sentido em que se articula com as identidades, e
b) nem pela construção conceitual de características imutáveis (do ponto
de vista das atitudes) de uma certa região geográfica, nem pela consideração
de que somente as manipulações midiáticas é que desencadeariam e
manteriam esse processo.
Em si mesmas, as manipulações midiáticas mobilizam as imagens
arquetípicas formadoras da cultura mediterrânea, que podem ser apreendidas
teoricamente, como discutirei mais à frente, por meio de uma hermenêutica,
como a proposta por Ortiz-Osés (2004). É preciso que as dimensões
arquetípicas sejam consideradas e que a identidade e a alteridade como
princípios de reconhecimento da diferença sejam vistas a partir dessas
dimensões, em constantes dinamismos, num movimento fluido e processual,
histórico, cultural e social, que rompem com uma conexão necessária (e
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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também cronológica) como se fosse possível lhe assegurar, a priori, um destino
evolutivo, na direção do progresso tecnológico, pautado pelo mito de Prometeu.
2.4. A Europa como força mítica: a mãe-pátria de todos os povos
europeus
Uma situação histórica mais complexa como é a da Europa hoje,
engendra na consciência dos intelectuais novas indagações do mundo para
compreender a natureza desta nova realidade. A Europa pós- II Guerra Mundial
presenciou a derrocada dos projetos totalitários do Império Austro-Húngaro e
da Alemanha nazista como projetos de grupos que foram coagidos à união em
torno de objetivos tidos como comuns. Iniciou-se, recentemente, uma nova
tentativa de unificação de todos os povos da Europa, por meio da Comunidade
Econômica Européia11. Há outra direção para se compreender a complexidade
da Europa hoje, agora do ponto de vista mítico: a tentativa de erigir uma
Europa, ao final do Século XX, com uma mãe de todos os povos, como aquela
que responde às necessidades de todos os seus filhos, os países nela
agrupados (MORIN & KERN, 1995).
Os autores prosseguem, sem negar as explicações históricas, mas
enriquecendo-as com a crítica ao Historicismo, que é na construção mítica
presente no imaginário europeu comum que encontramos uma esperança. É
11 Nem todas as novas Repúblicas da Antiga Iugoslávia fazem parte da C.E.E. A Eslovênia foi inserida em 01 de janeiro de 2007. A inserção da Croácia e da Macedônia está em negociação no momento.
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esse imaginário que acolhe os anseios da grande-mãe Europa, da qual outrora
esperava-se a investida do Estado-Nação, mas que então compartilha,
juntamente com toda uma grande comunidade de filhos, a esperança na mãe
Europa, que (re) significa o papel do antigo Estado-Nação que protege, acolhe
e aceita. Para entendermos miticamente melhor essa nova encruzilhada
histórica em que a Europa se encontra, é preciso decifrar as imagens do
arquétipo mãe:
A mãe é segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação. [...] A mãe é a primeira forma que toma para o indivíduo a experiência da anima, isto é, do inconsciente. [...] [Ela é] o resíduo de tudo o que os homens viveram desde os mais remotos inícios, o lugar da experiência supra-individual. [...] (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2006, p. 580-581)
É nesse sentido que, quando ocorrem movimentos de separação nessa
grande comunidade, os europeus vêem-se afrontados com o medo da morte. O
próprio arquétipo de mãe, como lembram Chevalier e Gheerbrant (2006)
contém, em seu interior a experiência ambivalente da vida e da morte. Como
nos lembra Maldonato (2004):
Hoje, quando o espírito europeu ameaça o mundo todo; quando não há outras fronteiras a serem violadas – porque toda fronteira certa se dissolveu e, com elas, toda integridade territorial; talvez hoje, finalmente, poderíamos reencontrar a capacidade de abrir as próprias fronteiras ao outro. (MALDONATO, 2004, p. 49)
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Isso significa que mesmo a alteridade pensada como um valor que
coibiria os abusos na relação entre o eu e o outro, ainda que pensada no
interior do Historicismo, não equacionou as desigualdades sociais e não
conteve o fluxo de violências ocorridas entre o Estado e os grupos sociais e
contra si mesmo: “a mais áspera contenda que a Europa já pôde imaginar é
aquela contra si própria” (MALDONATO, 2004, p. 50). Essa é uma significação
dada no entendimento desse conflito, que também fez com que se retornasse à
discussão do próprio conceito de identidade, relativamente abandonado nas
Ciências Sociais, em favor do hibridismo cultural, mas hoje, mesmo no interior
da derruição de fronteiras, os mecanismos identitários, ou melhor, de
identificação, podem construir a natureza do vínculo social de maneira fluída.
Se a identidade possui a qualidade de diferenciar, ela também possui a
qualidade de potencializar, quando reconhecemos que o Outro habita nas
profundezas do Mesmo, como nos lembra Paul Ricoeur. Quando posta nas
lutas políticas, ainda sem uma direção apriorística/ construída, temos:
[uma identidade] que contemple também a alteridade, no interior de uma dialética que afirme o mesmo, o igual, mas reconheça o outro, a diferença não subjugada, para que o aparente singular e o homogêneo possam ser lidos como o plural, o heterogêneo (OLIVEIRA, 1994, p. 406).
O mundo europeu vive a angústia de estar em meio a uma crise, porque
a certeza territorial (MALDONATO, 2004), a certeza política (THOMAZ, 1997) e
a certeza mítica (MORIN, 1995) parecem não mais existir. Na verdade não há
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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mais certezas, essa constituição deve ser constitutiva de novos paradigmas
para se pensar o social. É momento de se repensar a Europa, uma Europa
perdida e em transição, que tentou a unificação, entre o global e o local,
quando os paradigmas pontuados pela ordem moderna não podem mais dar
conta de uma heterogeneidade que insiste em estar presente. Estar presente
porque SEMPRE esteve presente, apesar de negada.
É o momento de pensar o conflito dos Bálcãs como um fenômeno social
para ativar a mudança de pensamento sobre a identidade e da forma com a
qual a cultura instrumentaliza esse pensamento em práticas sociais e em
construções simbólicas, ou seja, é preciso considerar como se tecem os
processos históricos na direção de vida ou na direção de morte. É preciso que
compreendamos que a Iugoslávia, mais do que um lócus, é um lugar, um
arquétipo. Para Morin (1995), um lugar transecular, transdisciplinar,
transcultural. Para Maldonato, essa luta na Europa é “uma luta da alma contra
si mesma” (MALDONATO, 2004, p. 50). Evidentemente, o autor está
autonomizando a subjetividade contida nas teorias sociais e atribuindo-lhe o
caráter de uma ética da tolerância, mais renovador do que aquele que ela traz
embutida em si mesma:
Nessa comunidade de seres distintos, cada qual terá de resistir à ilusão de que pode prevalecer sobre o outro, discutindo e compreendendo ainda. Ninguém terá de esmorecer a própria verdade. Se acreditarmos resistir ao vazio provocado pela ausência de certezas, a verdade – que inevitavelmente é uma verdade conjectural – se mostrará para nós em sua luz plena. Então, poderemos nos despedir uns dos outros. Mas haverá outros encontros, e outros debates. Sem indiferenças, sem tolerâncias
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vazias e com toda a força da razão. Decidiremos então que o diálogo, nosso diálogo, continuará sem que nenhum gesto intelectual possa algum dia esgotar suas aberturas (MALDONATO, 2004, p. 50-51).
Essa questão me remete a uma discussão de Jung (1990), importante
autor que se constitui como um dos pilares da hermenêutica do Imaginário da
Escola de Grenoble, sobre a culpa coletiva. Ao analisar o posicionamento do
seu próprio país, a Suíça (e seu próprio posicionamento) em relação aos
acontecimentos da II Guerra Mundial, o autor aponta elementos para que
pensemos a construção da identidade coletiva européia. Chama-nos a atenção
para a reflexão a partir do quanto, como suíço, ele está dentro e fora, ao
mesmo tempo, do conflito identitário; é um sujeito da ação e tem a Europa
como objeto de seu conhecimento. Ele chama a atenção para que o destino, a
culpa coletiva sobre os acontecimentos, sobretudo do século XX, faz parte da
vida de cada europeu. Apesar de não ser bósnio, sérvio, esloveno ou croata,
cada europeu está ligado miticamente a estruturas fundantes deste grande
continente, como veremos adiante, e é por isso que Jung sente-se tomado pelo
sentimento de inferioridade.
Se no diálogo de Maldonato (2004) há uma alusão à aceitação solidária,
Maffesoli nos lembra que “a ‘fusão encadeada’ das notícias históricas, das
referências mitológicas e das anedotas contemporâneas ambiciona esclarecer
a mudança civilizacional que está em vias de operar” (MAFFESOLI, 2003b, p.
20). Parece-me, então, que estamos sendo guiados por essa solidariedade, de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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modos diferentes e por distintos caminhos, ligados uns aos outros de alguma
forma. Mesmo que seja apenas por um fio do destino que age entre nós,
humanos, esses autores, com suas reflexões, nos introduzem ao âmago da
problemática da condição humana.
Sob a ótica da bacia semântica, existe aqui um processo de mudança
em curso juntamente com uma mudança que é paradigmática. Não só a
Europa, mas também o mundo globalizado como um todo, vive um momento
de transição entre a tentativa de ordenação do mundo advinda do projeto
moderno e a experiência, ainda que latente em alguns casos, da desagregação
do mundo, da vivência da desordem. Sem dúvida, como mostram alguns
autores, ocorre hoje a vivência acelerada do plural, do heterogêneo
(OLIVEIRA, 1994), de uma desordem que esteve aparentemente ordenada
(MORIN, 1995). O pensamento e a experiência da desordem no mundo se
presentificam nos conflitos que marcaram o século XX e nos conflitos sociais
político-culturais dos Bálcãs, em particular. É importante, contudo, considerar
que as idéias que foram rejeitadas pelo ideário eurocentrista até então,
reapareçam, se façam presentes e norteadoras de novas outras direções para
a vida, contudo apontando para novos outros patamares de luta, e até mesmo
para a morte coletiva, o que ainda torna difícil sua conceptualização, aludida
pelos antropólogos como guerras de civilização.
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Ao confluir com as idéias de Jung (1990), Maffesoli aponta que “a
fatalidade [...] é um elemento estruturante da natureza humana [...], [um]
afrontamento da potência de espírito dinâmico e do poder de uma realidade
estática” (MAFFESOLI, 2003a, p. 20); sentimento que a Modernidade e sua
concepção de indivíduo livre, igual e fraterno enterrou, como discutiremos no
capítulo V. Assim, realizando a crítica ao projeto da Modernidade, Maffesoli nos
chama atenção para o momento atual da Pós-Modernidade:
[...] o importante é identificar essas coisas primeiras, esses arquétipos, que podem ser mais ou menos visíveis, mas que ao menos constituem invariantes antropológicas. [...] eles podem ser secretos, discretos ou exibicionistas (MAFFESOLI, 2003a, p. 22).
Uma mitohermenêutica pode nos ajudar a compreender melhor essa
realidade. Para de Ortiz – Osés (2004), uma mitohermenêutica é:
A interpretação antropológica dos mitos, considerados como lugares relevantes e reveladores de uma cultura ou linguagem como forma de articulação da realidade vivida e conhecida. O mito, de fato, poderia considerar-se como âmbito de consenso, consentimento e condensação intersubjetiva da experiência interhumana, coagulada e projetada em uma tal tessitura simbólico-arquetípica (ORTIZ – OSÉS, 2004, p.8).
Para essa interpretação, Ortiz – Osés (2004) identifica três cosmovisões,
atuantes nos conjuntos arquetípicos que operam nas culturas do Mediterrâneo
por ele estudadas. As cosmovisões identificadas pelo autor são:
a matriarcal naturalista (exemplificada nas velhas culturas como a vasca), a patriarcal-racionalista (exemplificada na cultura indoeuropéia e semita) e a fratiarcal-personalista (exemplificada no cristianismo) [...] [E] de maneira complementar, tenho proposto a categoria (pós) moderna do Cúmplice para destacar a coimplicação ou cumplicidade de todos os homens embarcados
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num mundo comum, para o bem ou para o ma: esta cosmovisão do cúmplice seria a mitologia propriamente pós-moderna, a qual se define uma mitologia coimplicacionista do Outro. (ORTIZ-OSÉS, 2004, p. 8)
Lembremos aqui que as colocações desse autor são uma maneira mais
matizada de construir as relações mediais às quais Maldonato alude. A partir
dela, posso compreender a região que estudo através da dimensão simbólica
da condição humana, contudo fora do que o autor refere como “razão analítica
ou discursiva” (ORTIZ-OSÉS, 2004, p. 15). O autor vê, na região do “medi-
terrâneo”, uma “(con) vivência” de cosmovisões: a matriarcal, patriarcal,
fratriarcal co-implicadas, isto é, uma realidade imaginal, cuja co-implicação
produz ressonâncias umas nas outras. Um modelo não exclui o outro, pelo
contrário, o inclue. É nesse entre - dois, a crise da razão iluminista e a
incessante busca humana para superar-se que devemos localizar as
explicações que aludem à alma coletiva, com suas três cosmovisões, isto é, na
mitologia arquetipal. As categorias de pensamento do norte, desenvolvidas e
agrupadas no interior do pensamento iluminista, são racionalistas, enquanto
que as visões advindas da perspectiva mediterrânea têm essa possibilidade de
retomar as questões do renascimento italiano, abarcando as questões
simbólicas e míticas.
A questão mítica não é apenas agregadora da sociedade, mas também
desagregadora: a ordem, assim como a desordem, para Morin, são aparentes.
A ordem explicativa que não leva em consideração a natureza simbólica do
humano e nem a condição humana não considera que a ancoragem nesse
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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processo é quase impossível de se manter; existem outras forças agindo em
seu ser, em sua busca de autonomia, em seu complexo processo de
desenvolvimento, que não são apenas determinados social ou culturalmente,
nem pelo cerebral ou psicológico, nem pelo físico ou químico, existem forças
míticas atuando que desagregam esse homem, que dão sentido,
complementam trajetos, identificam processos do humano, que é tudo isso e
aquilo e não isso ou aquilo.
Assim, quero compreender que é possível encontrar sentidos na história.
Falo da história da humanidade (não apenas a história vivida pelo corpo
biológico) para além do mito do progresso, como nos lembrou Morin. Do ponto
de vista essencialmente humano é que o homem se faz homem. Para
compreender os aspectos simbólicos e míticos abarcados na filmografia
construída sobre a realidade dos Bálcãs que retomo o conceito de trajeto
antropológico, tal qual formulado por Durand, que possibilitará a construção de
uma hermenêutica de sentido situada entre o sensível e o inteligível, no interior
das estruturas antropológicas do imaginário (DURAND, 2001b).
Uma análise do imaginário mítico de uma cultura apóia-se também em
seu contexto histórico-cultural, já que este estrutura os arquétipos e a
dimensão simbólica da experiência humana. Os schèmes, ancorados nessas
dimensões simbólicas dão nortes para as ações, que são engendradas pelas
imagens movedoras que atuarão nas várias dimensões da cultura: desde a arte
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
105
até os mitos, passando pelas narrativas de diversos tipos (orais, escritas). Esse
conjunto simbólico vai se especificando na medida em que absorve o caráter
generalizante dos mitos e símbolos (PITTA, 2005).
Sendo assim, torna-se uma possibilidade metodológica, por meio de
uma hermenêutica de sentido, a leitura da arte, atravessada pelos arquétipos,
orientados pelos schèmes como tópicas culturais. Essa leitura deve ser
orientada por estruturas e matrizes de um imaginário que não é determinado
em si mesmo por essas estruturas, que são como um tipo-ideal, mas elas são
criadoras, assim como nos coloca Durand. A partir do olhar sobre a filmografia
selecionada por mim, busco identificar, nos símbolos dos filmes, as tópicas
culturais mais profundas, os arquétipos que operam nessas lógicas de sentido
ali presentes, relacionando-os sempre a esses contextos que apresentei até
agora.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
106
Capítulo III. O Cinema como símbolo: símbolo, imaginário e inconsciente
coletivo
Por que tudo na sua vida é ex? Porque eu sou da ex-Iugoslávia. Não temos mais nada... Somos todos ex (Diálogo extraído de Beautiful People, de Jasmin Dizdar).
Após eu ter realizado a contextualização histórica dos conflitos
balcânicos no primeiro capítulo desta Tese e apresentado as razões da queda
dos projetos políticos, sobretudo o projeto socialista; de ter realizado no
segundo capítulo a discussão sobre a crítica às teorias clássicas de identidade,
mostrando que a Antropologia depara-se hoje, talvez, com o seu maior enigma
na construção do conceito de cultura: a reemergência das identidades nesses
amplos processos de diáspora – conhecidas como guerras de civilização -
engendrados por uma práxis no interior da qual, defendo, emerge o
inconsciente coletivo, muito longe desses fenômenos refletirem a metáfora
estrutural nos moldes da discussão marxista. Neste capítulo abro um novo veio
para a discussão dessas questões, recuperando, através da tópica
sociocultural do imaginário, as imagens arquetípicas, e as relações entre
imagens que instauram dinâmicas ancoradas no inconsciente coletivo, e que
nos são apresentadas como realidades míticas nas produções fílmicas como
criações artísticas sobre esse mundus imaginalis (DURAND, 2001a).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Imagens são simbolizáveis e seus sentidos podem ser captados de
modo analógico através de uma hermenêutica de sentido que nos ajuda a
compreender como essas imagens do passado movem o presente mais do que
a relações teleológicas apresentadas pelos projetos políticos universalizantes.
As lógicas do presente, atualizações tecidas através de uma multilinearidade
do devir histórico, produzem incessantes atenuações, eufemizações e
realizações dessas imagens, introduzindo problemas difíceis para o debate
antropológico contemporâneo, pois elas produzem e são produzidas no âmago
dessa diáspora étnico-cultural conhecida como guerra de civilizações. Esse
fluxo de imagens mobiliza e é mobilizado pela complexa dinâmica das relações
culturais, em suas expressões étnicas e religiosas, no cerne das quais não são
apenas as diferenças culturais que são vividas enquanto tais, pois é possível
ainda compreender invariantes antropológicas12, que estão no inconsciente
coletivo, operando no imaginário antropológico. Neste capítulo, exemplifico
essas questões por analogia/metonímia, como posições sociais assumidas
pelos personagens dos filmes captadas por meio das imagens.
Objetivo, então, realizar, neste capítulo, dois momentos desta discussão:
12 Essas invariantes se apresentam nas relações entre os schèmes e os arquétipos, ou seja,
desde as dominantes biológicas até as imagens universais. A leitura dessas invariantes se faz por meio da leitura dos símbolos (evocação do concreto pelo abstrato) e do mito, que é um sistema de símbolos, arquétipos e schèmes que se apresentam em forma de relato (PITTA, 2005). Para esse estudo, como me debrucei sobre as imagens de filmes, ative-me aos símbolos que aparecem e redundam nas narrativas fílmicas. A hermenêutica utilizada aqui, então, orientou-se na interpretação desses filmes, utilizando uma hermenêutica de sentido (ORTIZ-OSÉS, 2004), relacionado-a diretamente às possíveis inteligibilidades que pude observar, pela análise desses símbolos, nas relações com os arquétipos e schèmes.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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a) O cinema como parte dos vastos campos de comunicação, de
simbolização e de construção social, que adentram os meandros do
ideário imaginário construído pelos seus profissionais; e
b) Uma síntese das histórias dos filmes produzidos na década de 1990
sobre os conflitos balcânicos, sobre os quais realizo uma busca
hermenêutica de sentidos para compreender essa realidade conflitual
contemporânea.
3.1. A produção cinematográfica como linguagem
Numa discussão clássica acerca do cinema, podemos inicialmente
compreender o filme como uma representação visual e sonora. Segundo
Aumont (1995), compreendemos que o filme ocupa um espaço, um conjunto de
imagens fixas chamadas fotogramas que, por sua disposição em seqüência,
em um certo ritmo, dá origem a uma imagem em movimento. Apesar desse
movimento, o autor indica que o filme tem duas características materiais
importantes: a sua bidimensionalidade e a sua limitação a um quadro. Para
Aumont, Bergala, Marie e Vernet (1995), ao assistir a um filme temos a
impressão de ver a realidade, apesar da ausência da terceira dimensão,
principalmente pela ilusão do movimento e pela ilusão de profundidade. Como
temos essa impressão da realidade, construímos uma representação fílmica,
isto é, um espaço imaginário, segundo os autores, que liga o que estamos
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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vendo no espaço limitado do filme a um campo que vai além desse campo
visto, representado, chamado espaço fílmico ou cena fílmica. Realizamos
ligações entre espaços ora representados em outros momentos (visual ou
sonoramente) e estabelecemos ligações com dimensões imaginárias, quando
compreendemos uma imagem fílmica. Em clássica obra sobre as questões
técnicas do cinema, Sergei Eisenstein aponta:
O movimento que reside na base de uma obra de arte não é o abstrato ou isolado do tema, mas a personificação plástica sintética da imagem através da qual o tema é expressado (EISENSTEIN, 2002, p. 113).
Isso quer dizer que o espaço fílmico está tecnicamente relacionado à
sua temática. Por não ser objetivo desta Tese, não me deterei aqui às técnicas
utilizadas para a construção das cenas, mas é importante que compreendamos
que essa dimensão faz parte da produção cinematográfica.
Esses conjuntos de quadros e planos, num filme, não são construídos
aleatoriamente, pelo contrário, formam um produto (EISENSTEIN, 2002). Para
o autor,
teria sido necessário voltar à base fundamental que determina igualmente tanto o conteúdo dos planos isolados quanto a justaposição compositiva dos conteúdos independentes entre si, isto é, voltar ao conteúdo do todo, das necessidades gerais e unificadoras (EISENSTEIN, 2002, p. 17).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
110
Em relação à filmografia que selecionei para esta Tese, podemos dizer
que há uma relação com a temática dos conflitos político-culturais dos Bálcãs,
que serve como pano de fundo para a narrativa, construída, por planos e
seqüências de planos, para formar um produto: o filme. A compreensão que
dou a essa produção é mais ampla que um simples entendimento de que há
uma narrativa e os planos são organizados para materializá-la, mas que o
processo de produção envolve um autor, que é mais do que um técnico.
Menezes (2001) aponta para a imprecisão conceitual e metodológica no
tocante à interpretação de filmes apoiada no conceito de representação para
explicar as relações existentes entre cinema e sociedade. Nas análises sociais
que tomam o cinema como objeto, esse autor afirma que existe a presença de
uma dose de ambigüidade na definição conceitual dos termos utilizados.
3.2. As imagens fílmicas pela via do imaginário
O caminho que tenho percorrido até aqui, que realiza a crítica ao legado
histórico e historicista do pensamento social, busca compreender a realidade a
partir da imagem, e não da sua representação, utilizando, para isso, a definição
de imaginário antropológico, como proposto pela Escola de Grenoble. Pitta
(2005) aponta que o imaginário é a essência do espírito, pois é criador, é
impulso que advém do ser e é a base para tudo o que existe, para o homem.
Paula Carvalho assim dimensiona, baseando-se na obra durandiana, dizendo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
111
que “Imaginário – por um lado é o capital (inconsciente) de gestos do sapiens,
portanto, o ‘pólo arquetipal’ das invariâncias [...] [e] por outro lado, é o
complexo das polissemias simbólicas como conjuntos psico-culturais” (PAULA
CARVALHO, 1999).
Assim, como assevera Pitta (2005), o imaginário é o complexo de
relações entre os processos oriundos de uma direção biológica, por meio dos
schèmes, que são anteriores às imagens, mas que se representam nos
arquétipos, e só podem ser vistos nas diversas figurações simbólicas que
trazem consigo diversos símbolos (em narrativas, na arte, nas diversas
mitologias). Para Durand, o projeto imaginário “tenta melhorar a situação do
homem no mundo” (DURAND, 1993, p. 99), rompendo com as observações
sobre a imagem e a imaginação com características pejorativas que vêem a
imagem como ilusão.
Sendo assim, a concepção utilizada para a análise fílmica aqui leva em
conta questões que não foram apontadas por nenhuma das duas propostas
apontadas por Menezes (2001), a saber: a) o estudo da indústria
cinematográfica, e b) a transformação do filme no reflexo de um imaginário
social. Opera nas imagens um complexo de polissemias do simbólico referidas
por Paula Carvalho (1999), abarcando as ideações advindas de um conjunto de
sistemas simbólicos e de práticas relacionadas a esses sistemas, como
também as imagens produzidas constantemente nesse processo, que possuem
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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características próprias e um movimento próprio, que só podem ser captadas
por uma razão imaginante. Temos aqui um conjunto que, apesar de ser
estruturado, a estrutura não delineia as ações, é formado por “ideários” e
“imagens”, conectando relações entre as forças psíquicas e as sócio-culturais,
as primeiras formadas por uma parte extremamente criativa e única de cada
indivíduo, e também são estruturadas por arquétipos; e as segundas, por
sistemas teóricos e míticos de uma dada sociedade ou cultura. Esses não
devem ser compreendidos em sua evolução histórica, pois estão abarcados em
domínios mais ou menos “fortes”, como nos mostra Durand no conceito de
bacia semântica (DURAND, 2001a). Há diversas idéias que estão à margem da
“bacia”, mas que nem por isso deixam de operar no imaginário sócio-cultural de
um povo.
Ao complementar essa reflexão acerca do imaginário, Luis Garagalza
(1990) reflete sobre a vida do homem para além do contexto sócio-cultural em
que vive, celebrando a obra de Durand:
[...] lo que consiguen las grandes obras es, precisamente, hablarmos no ya de un hombre y de su vida, sino del hombre en su universalidad que atraviesa las diferencias culturales, históricas y sociales (GARAGALZA, 1990, p. 101).
Isso quer dizer que, segundo a Antropologia do Imaginário, um complexo
pessoal de um autor poderá sempre estar embasado nesse reservatório
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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antropológico, fundo antropológico, como fala Durand, mais profundo do que a
biografia de um sujeito. Esse fundo é entendido como:
[...] la herencia cultural, la herencia de palabras, de ideas y de imágenes que el indivíduo encuentra lingüíistica y etnológicamente depositadas en su cuna, y es a la vez la herencia de esta sobrecultura que es la naturaleza de la espécie humana con todas las de espécie zoológica singular (DURAND apud GARAGALZA, 1990, p. 103).
Essa idéia conflui com a noção de circularidade apontada por Edgar
Morin. Ao mesmo tempo, cada indivíduo é “produto de um ciclo de reprodução”
(MORIN, 2006, p. 14), mas também é necessário, para a manutenção do ciclo
que “nos transformemos em produtores” (MORIN, 2006, p.14). Para o autor, “o
efeito é ao mesmo tempo uma causa” (MORIN, 2006, p. 14). Assim sendo, a
história dos filmes é uma história contada, modelizada, pensada, sentida por
um autor que, em seu complexo pessoal utiliza a sua herança sócio-cultural,
mítica, que nos apresenta através da linguagem que utiliza e das questões que
apresenta. Entretanto, como forma “pessoal”, essas linguagens, imagens e
questões têm um caráter produtivo, criativo, que revitaliza questões míticas de
uma forma original. No capítulo seguinte verá o leitor que realizo outro plano de
mediação entre os interesses e as temáticas dos filmes. Prossigo, neste
capítulo, com a etnografia fílmica.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
114
3. 3. Etnografia fílmica
Para tornar mais sensível para o leitor a análise da realidade com a qual
estou lidando neste capítulo, mostro como ela é apresentada pelas histórias
dos filmes. Temas e problemas contemporâneos são trazidos por essas
produções: miséria, emigração, imigração, choque cultural, preconceito
religioso, racial, violência, orfandade, solidariedade, violência sexual, conflitos
étnicos, conflitos familiares entre pais e filhos, marido e mulher, a temática da
homossexualidade. Enfim, falam do humano e de tudo o que o acompanha.
Na concepção de imaginário que utilizo nesta Tese, este não pode ser
reduzido ao símbolo nem ao simbólico, pois é uma essência mais profunda do
espírito (PITTA, 2005; DURAND, 1993; PAULA CARVALHO, 1999). Uma obra
de arte (como o cinema, aqui estudado) reflete, pelos símbolos nela
apresentados, essa profundidade, não podendo ser dimensionado apenas por
sistemas simbólicos de um simbolismo religioso ou mesmo político, mas tem
que ser entendido pelas relações entre as imagens, numa concepção mais
ampla de cultura, formada pelo imaginário (DURAND, 2001b; PITTA, 2005).
Logo, os símbolos dos filmes, mesmo que em sua aparência parecerem refletir
apenas uma simbologia própria de um sistema do local onde ocorrem,
relacionam-se direta e profundamente com as questões desse imaginário
antropológico.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Dessa imbricação de tudo em tudo, a meu ver, apresentada através da
multiplicidade das histórias que tecem o cultural, selecionei cinco significativas
produções fílmicas sobre as quais realizei sínteses. De forma breve, as
histórias, em princípio, falam por elas mesmas, e depois, através de diálogos
mais significativos, por meio de imagens e relações entre imagens.
a) Beautiful People
O filme conta várias histórias de sérvios e croatas refugiados dos
conflitos ocorridos na Bósnia, que se entrecruzam numa dinâmica simbólica
muito peculiar. Encontram-se, em um ônibus, dois homens, um sérvio e um
croata; eles se reconhecem como antigos moradores da mesma vila, entretanto
eles estão em oposição nos conflitos, cada um deles está em um dos lados da
guerra. Começam a se agredir verbal e fisicamente e são expulsos do ônibus.
Eles correm pela rua, se agredindo. Deslocando a cena, o filme capta um outro
homem, também refugiado, Pero, que recebe um seguro do Estado, indo ao
encontro de uma mulher a quem tentava devolver uma carteira que ela
esqueceu num restaurante, quando é atropelado.
Duas situações engendradas pela violência os une: os três homens são
levados ao hospital. Ali, Pero reconhece a estagiária do hospital, Portia, filha de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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um político que o rechaça na família; posteriormente eles se envolverão num
romance, que resultará em casamento.
Ainda no hospital, os dois homens que brigavam no ônibus conhecem
um outro homem, procedente do país de Gales e que é um incendiário, por não
concordar com a conquista de seu país pela Inglaterra. O conflito iniciado antes
da hospitalização entre o sérvio e o croata se intensifica, quando o homem
sérvio tenta matar o croata diversas vezes, mas esse personagem de Gales
consegue evitar o assassinato. Uma enfermeira acaba aglutinando a todos, que
terminam jogando baralho no hospital.
Outras histórias envolvem cidadãos ingleses. Uma delas é a história de
um jornalista da BBC que está indo para o conflito entre os sérvios e os
croatas; sua mulher tem medo que ele vá, mas ele decide estar presente para
mostrar ao mundo o que está ocorrendo com a Iugoslávia. Esta história se
entrecruza com a história de um médico ginecologista que foi abandonado pela
esposa e que recebe em seu consultório um casal croata, cuja esposa está
grávida como conseqüência de um estupro sérvio. O médico tenta persuadi-la
a levar a cabo a gravidez, mas o casal não quer, pois acredita que o bebê deva
ser abortado, em razão da situação na qual foi gerado. O ginecologista
influencia na decisão do casal e nasce uma criança do sexo feminino que se
chamará Caos. Esse médico os acolhe em sua casa.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Há também uma outra história, de um garoto londrino, viciado em
heroína que, recém-retornado de um jogo de futebol na Holanda, deita numa
carreta de bagagens, e foi embarcado clandestinamente em um avião da ONU
que se dirige à Bósnia. Sem que se dêem conta, ele acaba sendo lançado com
os alimentos para o meio do campo de batalha. No campo de batalha,
encontra-se com o referido jornalista da BBC e auxilia um médico que atuava
no local doando heroína para ser injetada num paciente que terá um membro
inferior amputado, o que é filmado pelo jornalista.
O garoto viciado que o ajuda no campo de batalha acaba salvando
também um garotinho que fica cego atingido por uma bomba no meio do
conflito e pede que sua família em Londres adote esse menino. Seus pais
haviam descoberto sua condição de usuário de drogas e desconfiam dele, mas
decidem acolher a criança, que recebe o nome de Linekker, nome do jogador
que estava estampado na camisa do garoto viciado e que foi lido pelo garotinho
no campo de batalha.
O jornalista inglês, então, retorna à Inglaterra, mas está profundamente
perturbado. Do ponto de vista emocional, devido às situações pelas quais
passou. Ele tenta ocultar de um superior seu na BBC a fita filmada de uma
amputação, mas não consegue. Doente, ele desiste da profissão e decide fazer
uma viagem, depois de ter sido diagnosticado como portador da “Síndrome da
Bósnia”.
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b) Bela Aldeia, Bela Chama
O filme inicia com a inauguração de uma obra arquitetônica denominada
“Túnel da paz”, pelo general Tito. A construção desse túnel, nunca terminada,
possibilitaria a unificação da Iugoslávia socialista, ligando Belgrado a Sarajevo.
O filme se constrói a partir de três eixos: 1) cenas de infância, adolescência e
vida adulta de dois amigos Milan e Halil (o primeiro sérvio e o outro
muçulmano), mas também cenas antigas de outros soldados do grupo sérvio,
2) cenas de Milan e seus companheiros no hospital, e 3) cenas das batalhas,
especialmente do grupo sérvio, do qual fazia parte Milan.
Antes da explosão da guerra entre a Sérvia e a Bósnia, Milan a Halil
aparecem juntos em diversos momentos. Quando crianças têm medo de entrar
no túnel abandonado, acreditando que de dentro dele sairia algum tipo de
monstro. Quando jovens aparecem saindo com mulheres, bebendo em bares,
jogando basquete. Eles também trabalham juntos em uma oficina de carros.
Em seguida, Milan é escalado para a guerra e as cenas seguintes
mostram o grupo sérvio passando pelas aldeias, incendiando-as. O nome do
filme vem da idéia de que só belas aldeias produzem chamas bonitas quando
são incendiadas.
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Numa emboscada entre sérvios e bósnios, Milan dá a idéia aos colegas
de fugirem pelo túnel que ele conhecia. Eles passam muitos dias ali
emboscados, juntamente com outro soldado do grupo que chega com um
caminhão dentro do qual traz uma jornalista americana com sua filmadora. Os
dias se passam e eles são o tempo todo acuados pelo grupo de croatas, que,
fora do túnel, cantam canções, hinos, atiram, provocam.
Alguns dos membros do grupo querem matar a jornalista americana ou
mesmo estuprá-la, pois, já supõem de antemão, que mesmo que não ocorra
violência sexual com ela:
Ela irá dizer que nós curramos mesmo.
Ao longo do tempo, o grupo cria uma intimidade com a jornalista, e esta pede-
lhes para filmá-los. Um deles, diz para a câmera:
Você sabia, cara jornalista, que a Sérvia é a nação mais antiga do mundo?
Depois de muitos dias e algumas mortes no interior do grupo, eles
decidem sair, mas apenas Milan e outros dois escapam vivos dessa
emboscada; inclusive a jornalista morre, quando tentava levar consigo a
câmera. Milan deixa a filmadora no túnel. Na saída do túnel, Milan e Halil se
reencontram, mas uma bomba explode e Halil morre. Milan, no hospital olha
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sempre um outro homem que também está internado, um croata que ele
chama de turco. O tempo todo diz que vai matá-lo a qualquer custo.
No final do filme, ele pega um garfo e se arrasta até o turco, mas não o
mata, pede para que o turco se mate com o garfo. Contudo, nenhum dos dois
comete o crime.
c) Antes da Chuva
O filme Antes da Chuva mostra três histórias. Na primeira, chamada
Palavras, um jovem monge macedônio, Kiril, vive num monastério medieval,
onde fez voto de reclusão e deve permanecer em silêncio absoluto. Sua rotina
é abalada com a chegada de Zamira, uma refugiada albanesa, perseguida por
um grupo da região, acusada de ter matado um parente. Ela se esconde no
quarto de Kiril, com seu consentimento. Os monges superiores descobrem e
ambos são expulsos do monastério.
Em Rostos, Anne é editora de uma agência de fotos em Londres e está
dividida entre o amor de seu marido e Aleksander, um fotógrafo de guerra que
conheceu em Londres, natural da mesma cidade onde estão Kiril e Zamira. No
centro de Londres, durante um jantar, um conflito entre um muçulmano e o
garçom do restaurante, ocasiona a morte de seu marido, com um tiro vindo da
pistola do homem muçulmano.
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A terceira história, Imagens, mostra o retorno de Aleksander para sua
terra natal. O premiado fotógrafo encontra seus parentes em meio a um conflito
étnico-religioso, quando presencia a intolerância cultural entre pessoas que
fizeram parte de sua infância, quando também cruza o caminho de Kiril e
Zamira.
Numa das histórias, há uma frase que aparece pichada num muro e ela
reflete bem a idéia estética do filme:
O tempo nunca morre. O círculo não é redondo.
As histórias se passam praticamente de modo simultâneo, quase ao
mesmo tempo em Londres e na Macedônia, sem um início ou fim
propriamente.
O filme começa e termina na Macedônia (Palavras e Imagens),
enquanto o episódio Rostos se passa na Inglaterra. O filme focaliza, como
trama central, a vida do fotógrafo Aleksander, que, por tomar partido de uma
causa, envolve-se no conflito dos Bálcãs. Após ter deixado sua terra natal
totalmente esfacelada e corroído pelo remorso de ter causado a morte de um
homem, Aleksander abandona a Inglaterra e sua amante e retorna à
Macedônia na expectativa de poder ajudar a resgatar os seus conterrâneos do
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círculo vicioso de violência em que foram aprisionados.
d) Terra de Ninguém
Surpreendidos por um nevoeiro, um grupo de soldados bósnios que se
esgueira na madrugada perde o rumo e é bombardeado pelas linhas de fogo
sérvias. Quando a manhã chega, dois inimigos restaram na estreita faixa de
terra que divide os dois territórios. É por isso que esta faixa seria chamada de
"terra de ninguém": Um sérvio, Nino, e outro bósnio, Ciki; um quer matar o
outro, mas nunca conseguem, porque as armas mudam de mãos o tempo todo.
A disputa se interrompe com a descoberta de uma questão mais urgente: outro
soldado bósnio, Cera, que os sérvios julgavam morto, foi jogado sobre uma
mina. A situação exige total imobilidade. Se fizerem o mínimo movimento
tentando se matar, a mina estoura e os três morrem.
Como o soldado sérvio possui uma arma, ele força o outro soldado a
que vá com uma bandeira branca que é vista por um tanque da ONU. Um
sargento (francês) que vê essa cena pede para intervir, mas é desorientado a
fazê-lo, via telefone, por seu superior. Entretanto, o sargento toma a frente e
vai até o local para resolver a situação. Uma jornalista britânica chama o
Exército da ONU, observando de perto o impasse, o que não significa que ela
compreenda devidamente o que está se desenrolando debaixo de seus olhos,
já que é uma verdadeira simulação de harmonia.
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O superior do sargento, por causa da presença da jornalista, é obrigado
a enviar um desarmador de bombas para o local. Em princípio o superior não
concorda em enviar esse desarmador de bombas, porque para ele a ONU deve
apenas olhar o conflito de fora e permanecer no local oferecendo “ajuda
humanitária”, o que significa observar, recolher os feridos e dar alimentos aos
refugiados.
Monta-se todo um complexo esquema em volta do soldado que está
preso na mina. Entretanto, essa mina não pode ser desativada. Sendo assim, é
necessário que se faça uma simulação de que o homem será levado em
seguida, para que a jornalista não o veja. Contudo, os soldados envolvidos na
trincheira, na saída para o caminhão que os levará, juntamente com esse
homem, acabam se atacando mutuamente e morrem ambos. Esse fato é
presenciado por todos os expectadores de outros países ali presentes,
representantes da mídia e da ONU, sendo transmitido simultaneamente ao
acontecimento por reportagens da televisão.
e) Vukovar
O filme conta a história de um casal, ele, Toma, de origem sérvia e ela,
Ana, de origem croata, que se casam em meio ao início das manifestações de
separatismo entre a Sérvia e a Croácia. Em seguida, Toma se alista no exército
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e vai para o campo de batalha, defendendo a Sérvia. Já em sua saída de casa,
ele vê o muro da casa pixado onde vive com sua esposa com a frase:
Sérvios Fora!
Enquanto Toma fica no exército, os demais membros da família da
esposa continuam vivendo na cidade natal, Vukovar, à beira do Rio Danúbio.
Ana, posteriormente à saída de Toma para o exército, decide ir morar com
seus pais, temendo o perigo dos ataques, que estão cada vez mais presentes,
apesar de a mídia sempre insistir que:
Não há mortes, só há migração.
Na casa dos pais, ela recebe um telefonema de Toma, que não sabe o
lugar onde está acampado ao certo, quando então ela o informa que ele será
pai. Ana, na casa de seus pais e Toma, na concentração do exército, refletem,
cada um isoladamente, acerca do que aprenderam sobre história, geografia,
sobre a Iugoslávia como a nação de um único povo e vêem, separados com
estão, a guerra se intensificando cada vez mais. Em seguida, o pai de Ana
também é levado a servir o exército, defendendo a Croácia, sua nacionalidade,
retornando logo à casa, ferido no rosto.
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O batalhão do qual é parte Toma se aproxima da cidade natal de Ana,
Vukovar, o que o faz pensar apenas na possibilidade de rever sua esposa.
Enquanto o batalhão planeja e ataca essa cidade, Toma faz planos para
chegar até sua casa. Entretanto, antes que chegue lá, os pais de Ana morrem.
Após um ataque, ela se vê sozinha, com sua pequena filha quando, já em sua
casa, vem morar com elas uma antiga amiga. Estando as três sozinhas, são
surpreendidas por um bando de homens que adentram a casa, as estupram em
frente a criança que tudo assiste. Enquanto Ana ainda está em estado de
choque pelo ocorrido, Toma chega à sua casa, mas depois de conversarem
durante algum tempo, a casa é atacada por croatas, e Toma foge da cidade de
Vukovar em chamas, retornando ao batalhão do qual fazia parte.
Ana se refugia com a amiga e a filha num porão, onde se encontram
outros refugiados; elas encontram um dos homens que as estuprou e sua
amiga o esfaqueia. Ana decide fugir, dizendo:
Eu quero dar a luz a um bebê e não a um cadáver.
De volta à casa dos pais, ela dá à luz a uma criança ao lado de um
cachorro. Depois disso, ao final do filme, Ana e Toma se reencontram,
entretanto cada um tomando diferentes ônibus que conduziam refugiados
inimigos. Seus olhares se cruzam, mas eles continuam cada qual seu caminho.
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3.4. Razão imaginante e razão mediática
A partir de agora, depois de ter fornecido elementos para realizar essa
complexa discussão, compreendo o cinema como símbolo, isto é, como
mediador. Na verdade, o filme é um conjunto de símbolos sob a égide de um
tema, que desvela os símbolos uns pelos outros. Trago através das várias
tomadas de cena o conteúdo simbólico de suas falas, relações, e mostro ainda
o caráter polivalente dos símbolos. Inicio essa discussão com o conceito de
arquétipo, extraído de Jung, e reinterpretado pela Antropologia do Imaginário:
el arquetipo es una tendencia a formar tales representaciones de un motivo, representaciones que pueden variar muchísimo en detalle sin perder su modelo básico. [...] No tienen origen conocido y se producen em cualquier tiempo o en cualquier parte del mundo [...] (JUNG,1984, p. 66).
Segundo Durand, a perspectiva de Jung representa “uma aptidão desta
teoria do imaginário para se abrir sem limites para a representação simbólica”
(DURAND, 2001b, p. 175). Entretanto, a Antropologia do Imaginário possibilita
uma definição mais precisa dos processos instintuais que embasam os
arquétipos e, por isso, essa teoria dá um passo além em relação às
concepções junguianas. Gilbert Durand foi capaz de propor uma teoria “não-
sintomática” da imagem, mostrando as estruturas antropológicas do imaginário.
Segundo o próprio autor, “as imagens não valem pelas raízes libidinosas que
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escondem, mas pelas flores poéticas e míticas que revelam” (DURAND, 2001b,
p. 39). É assim, “uma troca entre um conjunto de processos biológicos próprios
do indivíduo humano e o seu meio natural e sociocultural” (DURAND, 2001b, p.
175). Há, portanto, uma inversão do sentido libidinal na obra do autor.
Para compreender como se dá a gênese da imagem, ou seja, a relação
da forma (já que a imagem engendra uma “motricidade primária”) com a
representação, o conceito de trajeto antropológico como unificador de sentidos
deve ser considerado. Por trajeto antropológico o autor entende como:
a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas emanadas do meio cósmico e social. Essa posição afastará de nossa pesquisa os problemas de anterioridade ontológica, pois postularemos de uma vez por todas que há uma gênese recíproca que oscila do gesto pulsional ao meio ambiente material e social, e vice-versa. É nesse intervalo, neste caminhamento reversível que se deve instalar a investigação antropológica. Afinal, o imaginário não é nada mais que esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam “pelas acomodações anteriores do sujeito” ao meio objetivo (DURAND, 2001b, p. 41)
Há, na perspectiva durandiana, um intermediário entre os conjuntos
reflexológicos que são esse gesto inconsciente para uma forma de
representação elaborada culturalmente (DURAND, 2001b). A esse
“intermezzo”, Gilbert Durand deu o nome de schèmes, ou seja, “trajectos
encarnados em representações concretas precisas” (DURAND, 2001b, p. 176).
Complementando:
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“schèmes” - que são os gestos fundamentais da sensório-motricidade, apreendidas em termos de trajetos de dominantes reflexas – que se substantificam e se epifetizam nos arquétipos que, por sua vez, induzem [...] os símbolos e os mitos. (BADIA, 1999, p. 63)
O schème, como aponta Pitta (2005), é anterior à imagem, é uma
tendência que realiza a ligação entre os gestos inconscientes e as
representações. Os schèmes representam-se através dos arquétipos, que se
constitui, como estado preliminar, a ligação do imaginário com os processos
racionais. A postura humana, por exemplo, corresponde aos schèmes da
subida e da descida.
O trajeto antropológico é o conceito-chave para se entender as
dimensões simbólicas e arquetipais no interior dos sistemas míticos, tanto
numa psicologia profunda como numa sociagogia13 (BADIA, 1999), pois é pelo
trajeto antropológico que será possível a articulação das diversas fontes
simbólicas, as “polissemias simbólicas”, que serão uma metodologia
integradora dessas abordagens do símbolo (BADIA, 1999).
Os schèmes, de acordo com essa concepção, são entendidos a partir de
dominantes que envolvem os seguintes conjuntos de schèmes: a) dominante
postural (relativos à queda e relativos à ascenção), b) dominante digestiva
13 Uma explicação das dimensões sociais a partir de uma leitura da imagem, diferente de uma
leitura sociológica clássica, que pode reduzir os fatos sociais à empiria ou à análise histórica.
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(descida eufemizada, intimidade e ocultação), e c) dominante copulativa
(rítmico, dialético e messiânico) (DURAND, 2001b). Essa construção de Gilbert
Durand se efetivou com os estudos realizados pela Escola de Leningrado
acerca da reflexologia, bem como a retomada das proposições da etologia, que
versa sobre as relações entre comportamento instintivo e aprendido, assim
produzindo novas leituras sobre o arquétipo junguiano. A essas dominantes
correspondem categorias de símbolos, mais importantes para este estudo, já
que o que observo nos filmes são representações que para operarem utilizam
as linguagens das culturas.
Além dessa base estática para as estruturas antropológicas do
imaginário, essa arquetipologia embasa uma mitanálise. Badia (1999) aponta
que “o mito tem um componente arquetipal e um componente imagético,
polarizando-se num jogo entre o universal e a invariância e a contextualização
e as variações/modulações” (BADIA, 1999, p.68). Sendo assim, essa
abordagem tópica deve, necessariamente, ser complementada por uma
abordagem dinâmica. Não seria possível apenas tentar racionalizar o símbolo,
é preciso, como assevera Ortiz-Osés (2004), dar sentido ao símbolo, não
apenas a partir do significado do símbolo, mas num sentido mais amplo e
profundo, compreender o que o símbolo tem a nos dizer no que tange à
condição humana. O símbolo, na concepção da Antropologia do Imaginário,
pode ser entendido como:
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signo que remete para um indizível e invisível significado e, deste modo, sendo obrigado a encarnar concretamente esta adequação que lhe escapa, e isto através do jogo das redundâncias míticas, rituais, iconográficas, que corrigem e completam inesgotavelmente a inadequação. (DURAND, 1993, p. 16)
Também as imagens da mídia potencializam esses símbolos e podem
ser estudadas por meio da Antropologia do Imaginário. Segundo DURAND
(1993), a difusão via meios de comunicação possibilitou uma confrontação de
diferentes culturas, criando uma espécie de “museu imaginário”, que pode ser
pensada de forma planetária, a partir da fotografia, do cinema, da televisão.
É a partir dessa discussão que observo que o cinema é um grande
catalisador das imagens que aludem à condição humana e que podem trazer à
tona questões para o reequilíbrio psicossocial (DURAND, 2001a) na sociedade.
Em Vukovar, há uma passagem que condensa a experiência milenar do amor
entre duas almas, quando Ana reflete sobre o primeiro beijo com Toma, em
meio ao Museu Nacional da Iugoslávia:
Estava lá no museu da cidade, entre objetos pré-históricos e ritualistas que
Toma explicou o que foi necessário para chegar no ‘Kiss’, como se conhece
hoje. Tão apaixonada eu estava que senti os 500.000 anos de civilização que
entraram em nosso primeiro beijo e o tornaram mais significativo. E agora,
quão facilmente a intolerância de ambos os lados transformou tudo isso em pó
e cinzas
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3.5. Imaginário e geografia: o lugar como arquétipo
Segundo Wunenburger (2003, p. 244), “não é certo que o político tenha
podido, apesar dos esforços das teses contratualistas, inventar categorias
autônomas que já não tenham filiação relativamente à teologia e às suas
representações de deus”. É uma interessante analogia com questões
estudadas por mim, pois há uma forma recorrente da relação entre poder do
Estado e poder do religioso na representação fílmica das sociedades
conflitantes nos Bálcãs.
É especialmente em Vukovar que esta característica é representada de
forma mais evidente: o casal formado por duas pessoas de etnias (e religiões)
diferentes (Ana é de origem croata e Toma é de origem sérvia) deve se separar
quando essa condição de poder via religião é retomada. Sabemos que as teses
contratualistas de formação do Estado estiveram, na Modernidade, formando o
imaginário de organização estatutária (HABERMAS, 1995). Entretanto,
sabemos também que essa idéia de relação com o divino esteve permeando
essas relações. Contudo, com a retomada dessas “vocações” para o poder,
houve uma “reviravolta” na organização dos “Estados” iugoslavos.
Contraditoriamente, é a partir do religioso que se formam outros poderes.
A insatisfação ao se deparar com a idéia da diferença a partir da religião
existe sim e está na base de outros conflitos, substituindo uma harmonia:
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Nossa geração não se preocupou em distinguir entre servos, croatas, ortodoxos
e católicos.
Famílias mistas tinham dois natais, dois anos-novos e duas páscoas.
Em Bela Aldeia, Bela Chama, os dois amigos, de religiões diferentes,
vivem diversos momentos juntos: a descoberta da sexualidade, a troca de
experiências, o convívio como amigos. A partir do momento em que a guerra
se inicia, eles estão em lados opostos. No final, eles se reencontram, mas se
acusam a respeito da destruição causada por um e por outro e o encontro
mobiliza a agressão:
Por que botou fogo na oficina?
Por que matou minha mãe?
Segundo Wunenburger (2003), as relações com o espaço são dinâmicas
e refletem ainda a dinâmica de ocupação do espaço pelos grupos sociais.
Envolvem representações e ações que evocam sobremaneira afetos, sonhos e
mitificações, podendo, inclusive produzir guerras, no interior desta. Existe, para
o autor, uma analogia entre gestos primordiais e a delimitação de um território,
sobrecarregando esse processo de sinais, retomando as relações com o
sagrado.
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Habitar um espaço e manter-se aí justificam-se por meio de uma história: legitima-se a posse quer através daquilo em que se tornou o direito do primeiro ocupante (que não é senão uma validação jurídica da anterioridade cronológica totalmente contingente), quer através de um apego habitual aos antepassados mortos e inumados nesta terra. Esta memória das origens e dos mortos está na origem da idéia e da imagem de “pátria”, que designa um conjunto de elementos materiais (uma terra) e imateriais (lembranças), que deverá conferir aos vivos uma identidade e uma unidade trans-históricas. [...] (WUNENBURGER , 2003, p. 248)
É sob essa égide que a dominação do espaço se torna presente em
Bela Aldeia, Bela Chama. Quando o soldado sérvio se refere a seu povo,
comenta que os sérvios são os mais antigos da humanidade, que ocuparam
primeiramente o território, e que, por isso, possuem mais direito. Fazendo uma
relação direta ao progresso desse povo, ele comenta ainda que enquanto os
croatas ainda comiam com as mãos, os sérvios já utilizavam talheres. A
dimensão geográfica deixa de ser cartográfica e passa a ser simbólica,
acompanhando toda a história do filme. A relação com a aldeia e o papel da
reconquista dos territórios são aqui evidentes.
O poder de valorização do território é ainda mais evidente no caso de reconquista ou anexação. A reinvidicação de espaços novos faz-se então em nome de um passado religioso que justificaria a devolução da terra santa aos seus verdadeiros destinatários (WUNENBURGER, 2003, p. 249).
É exatamente na tensão existente entre pensamento moderno
(racionalizado) – pensamento simbólico que são apresentadas essas relações.
De um lado, o mito do progresso em relação à técnica (uso de talheres, por
exemplo) e, de outro, a dimensão sagrada e mítica que confere o direito ao
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território, como a grande mãe-pátria. Maffesoli (2004) aponta que a verdadeira
crise é a crise dos valores modernos, pois os valores técnicos (a quantificação
posta na produção e na técnica) está perdendo lugar ao desejo de viver uma
obra de arte, por meio da solidariedade. Mesmo que o grupo emboscado em
Bela Aldeia, bela Chama discuta, com a jornalista americana, sobre os valores
de sua pátria e argumentem racionalmente através do provável progresso em
relação à técnica do país deles, há um retorno às questões mais simples que
solidarizam a todos e aludem à condição humana: a solidão e o medo da morte
os une.
Na história Palavras, em Antes da Chuva, o homem que procura a
moça albanesa no monastério relembra a necessidade de retomada do
território que sempre lhe pertenceu, que é sua “terra-pátria", que esteve sob
outros domínios, ao longo da história, mas que agora estava sob poder do povo
de origem:
500 anos de domínio turco. O senhor é um de nós, entregue a garota.
Já Pero, em Beautiful People, reflete a negatividade de não se
identificar mais com um território, apontando para o mapa da antiga Iugoslávia,
depois para a sua foto:
Meu ex- País. O ex- eu.
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Em Vukovar, Toma vive a ambigüidade ao retornar a sua cidade, ali
havia vivido e se casado: a ambigüidade entre unir-se ao grupo de seus
antepassados pela conquista do território e reviver o que havia vivido com sua
esposa, ou em outros tempos, a pátria construída na Iugoslávia, sua família
mista ou seu amor por Ana.
A problemática da territorialidade é bastante presente em todas as
produções, pois ela traz à tona a questão da(s) fronteira(s), das suas
reconfigurações e, a partir disso, das etnias e religiões ali em conflito. É preciso
repensar a geografia e a história, como nos lembra Mauro Maldonato:
será necessário interrogar-se sobre como se deu a cisão, quem a produziu. Somente se for capaz de um logos da cisão o homem poderá compreendê-la e, ao compreendê-la, reconduzi-la a uma possível harmonia (MALDONATO, 2004, p. 38).
A temática de Terra de Ninguém confronta especialmente essa
territorialidade. Ao colocar, no mesmo espaço, três membros de dois exércitos
em conflito, eles põem-se a pensar nessa dimensão: de quem é esse espaço?
De quem é essa terra? O título do filme remete à noção citada por Ivekovic
(1997) de “falsificação histórica” das identidades e colabora com as idéias de
Wunenburger (2003), no sentido de que, para além das concepções da ciência
política apontada pelo primeiro autor, há questões míticas operando nesse
contexto de lutas étnicas. Mesmo que possa haver, como me referi
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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anteriormente, uma argumentação racional a respeito da superioridade de um
povo (sérvio) em relação ao outro (croata), há o retorno ao mais profundo
fundamento do povo, o arquétipo da mãe presente, por meio da pátria, que é
mãe de um dos povos e não de outro. Os movimentos dinâmicos de ocupação
do território remetem a processos de relação entre os homens que os fazem e
seus governantes e entre esses homens, a terra e seu significado sagrado. A
matriz matriarcal, meridiana, apontada por Ortiz-Osés (2004), que retoma a
tradição cultural mais antiga, co-existe com a matriz patriarcal-racionalista, que
explica racionalmente a superioridade a partir da razão e com a fratriarcal-
personalista, que pode ser entendida por essa gnose, que se dá pela
percepção da morte e cria uma ligação com o cosmo.
Essas “falsificações” não seriam apenas históricas. Seriam colocadas na
história, mas estariam também embasadas em questões míticas em relação ao
poder que se estabelece no interior das etnias (que ocupam certos espaços).
Entretanto, não é questão de assumir uma postura fatalista, já alertada por
Thomaz (1997), sobre o posicionamento da mídia acerca dos conflitos, como
resultado (ou expressão da existência do ódio ancestral entre as etnias), pois
essa compreensão nega a alteridade; nela há uma pressuposição de que os
povos dos Bálcãs sejam selvagens e, portanto, só se relacionam a partir da
barbárie. Há que se compreender que há uma relação com a terra (a própria
relação material que os habitantes têm com o trabalho na terra, eles são, em
algumas das regiões, como mencionei anteriormente, em sua maioria
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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camponeses), a ligação com a territorialidade a partir de uma compreensão
mítica e a partir das idéias da Modernidade do ponto de vista político.
Três processos engendram uma multidimensionalidade e uma
multilinearidade no devir social e nos processos sociais sobre os quais os
filmes analisados por mim aludem, ainda que esteticamente. Primeiro, a
territorialidade é uma dimensão fundamental desses conflitos. Segundo, a partir
dela, pude compreender as questões em seu entorno, como a violência, a
negação da alteridade, a crueldade, e terceiro, essa territorialidade
dimensionou uma geografia imaginal que produz ressonâncias, que engendram
comportamentos e processos sociais peculiares (medo, revolta, crueldade). Os
próprios títulos dos filmes referem-se a essa dimensão, o conflito se dá ao
redor da geografia, para além da territorialidade, ou o direito de possuí-la.
A solução apresentada pelos autores é o desvelamento dessas relações
a partir da territorialidade. Temos as imagens da relação dos personagens com
a geografia: as idas e vindas no território conduzem à reflexão sobre a
harmonia, o paradoxo do conflito e sobre como buscá-la, reflexão que se
encontra em vários autores (MALDONATO, 2004; MORIN, 1996; MORIN &
KERN, 1995; WUNENBURGER, 2003) Referindo-se a Massimo Cacciari,
Mauro Maldonato aponta que “conhecer, analisar os distintos, não será
suficiente” (MALDONATO, 2004, p. 38).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
138
Acredito que, ao apresentarem as relações entre os diferentes povos da
região dos Bálcãs, os autores desses filmes não visaram descrever perfis de
diferentes povos. Pelo contrário, buscaram ir além disso. Na tentativa de
representar as diferentes dimensões dos conflitos, eles se orientam por uma
compreensão mais complexa. Uma compreensão que leva em conta a história,
a geografia, a cultura, os mitos fundantes dessas terras e desses povos.
3.6. Imaginário e temporalidade
Os filmes, ao possibilitarem uma discussão acerca da territorialidade e
das questões que envolvem essa compreensão, trazem à baila as relações
entre tempo e espaço, não apenas descrevendo relações entre eles. Apontam,
inclusive, em alguns momentos, para o conhecimento mais amplo disso, uma
compreensão que abarque a multidimensionalidade e o rompimento com o
pensamento cartesiano. Vejamos, por exemplo, em Antes da Chuva:
O tempo nunca morre. O círculo não é redondo.
A partir dessa metáfora, posso compreender melhor a questão do
destino. Tomemos o símbolo do círculo. O círculo, como assevera Jaffé (1984,
p. 240), “expresa toda la totalidad de la psique en todos sus aspectos, incluída
la relación entre el hombre y el conjunto de la naturaleza”. O símbolo do
círculo, segundo a mesma autora, “siempre señala el único aspecto más vital
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
139
de la vida: su completamiento definitivo” (JAFFÉ, 1984, p. 240). A partir do
símbolo do círculo, em Antes da Chuva, a narrativa posterior nos leva a
repensar sobre o destino humano. O símbolo do círculo fechado, símbolo do
tempo, como apontam Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 254), “é um símbolo de
proteção, de uma proteção assegurada dentro de seus limites”. Na perspectiva
da Antropologia do Imaginário, como afirma Badia (1999), o círculo é um
símbolo cíclico, representando também o tempo, como o ciclo lunar. É a
percepção, possível de se realizar através da arte, quando o processo
civilizacional pode tomar novos rumos. Nas palavras de Michel Maffesoli:
a desordem que não mais culpabiliza, mas que pode ser integrada numa dinâmica; a aceitação da eventualidade, de par com a falência do imperativo da produção; o rito cotidiano que costuma haurir sua intensidade em sua efetuação efêmera, eis alguns dos rumos que parece tomar o movimento civilzacional (MAFFESOLI, 2003a, p. 24).
Isso não quer dizer, segundo o autor, que essa desordem gerará a
inércia dos atores sociais mas, de outro modo, trará uma mudança. Confluindo
com essas idéias, mas especificamente comentando sobre a crise na região
dos Bálcãs, Morin (1996) aponta que a consciência da crise pelos povos
envolvidos num conflito é o que os levaria a solucioná-lo, pela aceitação da
diferença e pela superação da ética excludente imposta pelo projeto de
Modernidade. Entretanto, Maffesoli conclui que “como todas as formas
nascentes, elas se expressam, com freqüência, na crueldade” (MAFFESOLI,
2003b, p. 24).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
140
É em Vukovar que, durante o cortejo de casamento de Toma e Ana,
eles se encontram com os manifestantes croatas e um deles diz:
Vocês se casam enquanto fazemos história?
Mas, que história é essa? A história de homens e mulheres que viveram
numa Sarajevo, numa Belgrado, numa Vukovar sob a luz de uma cultura
heterogênea e pacífica, compreendida pelos seus habitantes de uma
determinada maneira, mas que, em alguns momentos, explode num conflito (ou
vários conflitos). Outro ângulo da questão nos remete à tentativa agregadora, já
discutida, do Estado socialista. É claro em Bela Aldeia, Bela Chama a relação
desse povo iugoslavo com o Marechal Tito e sua forma de conduzir o
socialismo real no país. Como aponta Rúben (1986), a identidade posta numa
unificação universalizante gera uma perda da identidade, por conta das
identificações necessárias com o universal: isso se coloca no projeto da
Modernidade.
Quando essas diferenças vêm à tona, homens e mulheres se vêem
compelidos a lutar uns contra os outros, a separarem-se. Isso se torna muito
evidente em Beautiful People, pois servo e croata se encontram em Londres
num ônibus e, ao reconhecerem-se quem são (de lados opostos), se agridem
mutuamente. Em Bela Aldeia, Bela Chama são lembradas as cinzas da
guerra, a prática sérvia de incendiar aldeias inteiras. O intelectual-soldado
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
141
(“professor”) fala sobre cidades bonitas produzirem bonitas chamas, ao serem
incendiadas:
Estamos queimando as cidades sem saber o nome
Seu colega de batalhão responde prontamente:
Se dependesse dos intelectuais, não haveria mais sérvios.
Os intelectuais, autores de projetos políticos universalizantes, podem ter
também apagado os sonhos das etnias e da etnia sérvia em especial. A
universalização, via práxis de um Estado socialista teria homogeneizado a
todos em patamares de pobreza e de repressão política para a expressão da
identidade, em detrimento das diferenças. Os reflexos disso são os conflitos,
que, por sua vez, também são movimentos que negam a alteridade, pela
consideração de suas características como superiores aos demais grupos: a
crise está posta e precisa ser entendida pela circularidade causal (MORIN,
2006): aquilo que é causa é também efeito. O projeto político apagou as
diferenças, mas, ao mesmo tempo, a diferença negou a alteridade.
A partir dessa percepção, em Bela Aldeia, Bela Chama, assim como
em todas as produções analisadas, vemos a crueldade que pode ser
compreendida como a tentativa de elaboração, por parte do homem envolvido
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
142
no processo civilizacional. A história se faz pelo homem, que é, ao mesmo
tempo, produto e produtor desta história (MORIN, 2004). Entendo, a partir
dessas reflexões, que o homem se insere no conflito e também o produz, é
objeto da crueldade, e também a mobiliza, fazendo uso dela, vive a tragédia
dentro de sua história e, ao mesmo tempo, vai para além dela, repensa,
questiona e pode, a partir daí, por diversos meios, inclusive os da crueldade,
provocar a mudança.
3.7. Imaginário, contemporaneidade e destino humano
Em Vukovar, é pela via das imagens do passado que Ana faz uma
reflexão acerca de sua condição de mulher apaixonada por um homem que
nasceu na mesma cidade que ela, mas que vem de uma origem diferente.
Origem essa que foi apreendida por ambos como algo positivo, enquanto não
se antagonizavam radicalmente. Em outra passagem, Toma lembrava, à beira
do mar, com Ana:
Eles ensinaram o mesmo em história e geografia, que éramos todos um povo.
Nossa geração não se preocupou em distinguir entre servos e croatas,
ortodoxos e católicos.
Essas passagens tomadas dos filmes demonstram como imagens do
passado podem ser relidas de modo transcendente, no sentido em que fazem
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
143
refletir acerca da própria existência, inclusive coletiva, e sobre as contradições
que a sociedade lhes impôs. Maffesoli aponta novos elementos para essa
discussão e nos ajuda a compreender as contradições sociais atravessando os
processos identitários:
contar e mensurar resultam em negar. E recusar a concessão de um lugar às forças do prazer é se expor ao feroz retorno do recalcado. Com o dispêndio, o mesmo ocorre com a violência: cerceá-la em sua expressão é promover sua irrupção perversa e exacerbada (MAFFESOLI, 2003b, p. 28).
Não é exatamente isso que ocorreu com a imposição do projeto do
socialismo na região balcânica? Imposição essa, como vimos no primeiro
capítulo, que se articulou com as idéias sobre identidade fechada, insular,
como vimos no segundo capítulo? As diferenças, a violência, a condição
humana foram negadas por um projeto que visou uma suposta
homogeneização dos povos que estiveram sob sua égide. Agora, como o
processo é cíclico, e não apenas dialético, demonstra sua urgência e remete-
nos à força dos arquétipos; o homem ressurge, muitas vezes, violento, guiado
por uma realidade imaginal, numa geografia que não é territorial apenas, mas
numa geografia imaginal. As diferenças se radicalizam, os homens se tornam
inimigos.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
144
O homem, herói da Modernidade, está em queda, como aponta
Campbell:
el ideal democrático del individuo que se determina a si mismo, la invención de los artefactos mecanicos y elétricos, y el desarrollo de los métodos científicos de investigación han transformado la vida humana en tal forma que el universo intemporal de símbolos hace mucho tiempo heredados há sufrido un colapso (CAMPBELL, 2005, p. 340- 341).
Maffesoli (2003b, p. 29) complementa que “em face ao laborioso
Prometeu, é preciso mostrar que o ruidoso Dioniso também é uma figura
necessária da socialidade”. Para Campbbell (2005), é o desespero pessoal de
cada um dos indivíduos, entendidos como parte do processo, que levará à
mudança. A ascenção e a queda, símbolos da dominante postural, na
Antropologia do Imaginário, estão presentes a todo o momento.
Em Vukovar:
Isso tudo é parte do efeito-borboleta. Uma borboleta flutuando sobre os Bálcãs
traz em mente um furacão no Pacífico. Como se cada novo crime causasse
mais deteriorização no mundo.
O símbolo da borboleta, segundo Chevalier e Gheerbrant (2006, p. 138)
é um símbolo da “ligeireza e inconstância”, mas também é compreendido como
“ressurreição” ou mesmo a “potencialidade do ser”. Compreendendo a partir da
circularidade do processo causal (MORIN, 2004), podemos entender que tanto
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
145
a deteriorização do mundo como a sua ressurreição (os schèmes da queda e a
ascenção) são possibilidades, e nem uma nem outra se apresenta
separadamente. A fuga da morte, mas, ao mesmo tempo, o seu encontro,
unificam os sentidos imaginários da existência. Como aponta Ortiz-Osés:
com efeito, o sentido da vida é imanente à própria vida, simboliza-se positivamente no amor e realiza-se negativamente na morte como descanso obscuro (requies). Ou ainda a morte como sentido surreal da vida, na qual cumpre nossa finitude quando é excedida enigmamente (ORTIZ-OSÉS, 2003, p.103).
Outro símbolo importante é o do rio. O rio Danúbio é comentado numa
linda passagem em que Ana, personagem de Vukovar, está à janela, olhando
para ele:
Eu sempre sento ao lado dessa janela, olhando pessoas, o Danúbio, o céu. Eu
considerava todas essas coisas: a cidade, a paisagem, como algo onde cresci
como sendo uma parte inseparável de mim, morando lado a lado. O patriotismo
que sinto é amor.
O símbolo do rio, como apontam Chevalier e Gheerbrant , “é, ao mesmo
tempo, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas [...]. O curso das
águas é a corrente a vida e da morte” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2006, p.
781). Retomando Ortiz-Osés (2003), a vida se equaciona no sentimento do
amor; a relação que Ana tem com sua cidade e o céu (o símbolo da vida
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
146
conforme CHEVALIER & GHEERBRANT, 2006), é o sentido dado pela
personagem à sua própria vida, a partir dos símbolos e da materialidade, mas
principalmente do sentido que ela dá a essa materialidade, que ela elabora sua
vida.
Outro ponto importante nas produções analisadas e que se refere às
dimensões de vida/morte é o estupro. O estupro serve tanto para dominar ou
destruir como, em seu resultado material (o nascimento de uma nova criança),
para criar ou produzir. A prática sérvia durante a guerra foi o estupro das
mulheres na Bósnia. A questão faz parte da fala da jornalista em Bela Aldeia,
Bela Chama, que verbaliza:
Eu sei bem como os sérvios tratam as mulheres
Vukovar mostra o estupro de Ana e de sua amiga na casa de Ana pelos
soldados sérvios. Em Beautiful People, o casal quer abortar a criança fruto de
um estupro, mas o ginecologista os demove dessa decisão. O nascimento de
Caos, fruto desse estupro, traz a discussão da diferença à pauta, já que agrega
as famílias londrina e croata. O mesmo parece ocorrer com o filho de Ana (em
Vukovar) que, apesar de separada de Toma, vê no filho uma esperança.
Toma, ao tocá-la, depois de muito tempo no exército, verbaliza:
Nunca esquecerei quando a toquei, uma nova vida estava se forjando apesar
do caos. Foi como se ambos estivéssemos fora e dentro dela.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
147
Como pontuam Chevalier e Gheerbrant:
O caos simboliza, originariamente, uma situação absolutamente anárquica, que precede a manifestação das formas e, no final, a decomposição de toda forma. É o termo de uma regressão no caminho da individualização, um estado de demência. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2006, p. 183).
Complementando, trago as palavras de Michel Maffesoli:
Tudo isso permite mostrar que o sentimento trágico da vida, do qual faltará avaliar as manifestações cotidianas, se encontra, como um fio vermelho, em construções espirituais que lhe são, aparentemente, muito alheias. A fatalidade, volens nolens, é um elemento estruturante da natureza humana. A sensibilidade artística a experimenta fortemente, vivendo essa tensão fundadora entre a intransponível ´necessidade´ da matéria e não menos impiedosa necessidade de trabalhá-la, de sublimá-la. (MAFFESOLI, 2003a, p. 20)
Daí a tentativa da arte de sublimar o caos, a tragédia, que é, de certa
forma, paradoxal. A tragédia foi vivida pelas mulheres na Bósnia e é, de certa
forma, reelaborada com o nascimento da criança. O casal apoiado pelo
ginecologista em Beautiful People e a criança de Ana que,em Vukovar, não é
fruto de estupro, mas que, durante a sua gestação, sua mãe foi vítima de
também um estupro, representam uma abertura de sensibilidade, uma
esperança, ainda que tênue, de um futuro outro para a humanidade.
Como aponta Pitta (2005), na perspectiva da Antropologia do Imaginário,
numa cultura existem divisões e oposições. Não se trata, segundo a autora, “de
classificar uma cultura em tal ou tal estrutura, mas de perceber qual é a
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
148
´polarização’ predominante, isto é, o tipo de dinamismo que se encontra em
ação” (PITTA, 2005, p. 19). Aludindo também às questões da bacia semântica,
discutida por Durand (2001a), podemos compreender o imaginário dos Bálcãs
a partir de duas oposições presentes: a primeira delas entre o projeto
universalizante do socialismo que opera a partir do drama e, como seu oposto,
a derrocada desse projeto e uma nova aurora que vem surgindo, por meio da
globalização.
No interior dessa oposição, temos a segunda oposição: as identidades
negando a alteridade, criando conflitos profundos, utilizando de estratégias de
violência e crueldade para se contraporem e, ao mesmo tempo, uma tentativa
do retorno ao refúgio de uma mãe-pátria de todos os povos, num sentido
harmônico. Postos no cotidiano, as lutas por território vão além das
necessidades físicas dos povos, mas estão presentes nessa geografia
imaginal, nas oposições que demonstram, de forma dinâmica, o que é
processual na construção do imaginário dos Bálcãs.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
149
Capítulo IV. Autor e Obra: da produção de identidades à produção de
identificações
A imagem ultrafamiliar, ultracelebrada – de agonia, de ruína – constitui um elemento inevitável do nosso conhecimento da guerra mediado pela câmera (SONTAG, 2003, p. 24)
Apresentei, no primeiro capítulo desta Tese, as condições históricas de
formação dos projetos políticos e os próprios projetos políticos que foram se
delineando na região dos Bálcãs, uma das várias regiões fronteiriças entre o
Oriente e o Ocidente. Essas condições sociais e históricas são conhecidas pela
literatura sociológica como condições objetivas e quando são implementados
por meio de um projeto político passam a ser condições subjetivas. Refleti
também sobre a temática denominada política do medo, uma formulação
manipulada pela mídia a respeito das lutas étnicas sobre a região (THOMAZ,
1997).
Considerar que esta manipulação pela mídia exista é importante,
porém, necessita ser complementada com alguns apontamentos sobre a
produção de cinema, para compreender um pouco mais sobre as questões
relacionadas ao trabalho do autor de cinema e as questões que envolvem a
sua criação estética. O cinema como uma estetização da realidade é também
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
150
eivado das questões sociais, políticas e econômicas que pautam o contexto
onde a obra é criada e divulgada. Os produtores de filmes não saem incólumes
desses sangrentos processos sociais, mas também das suas obras emergem
novos conteúdos arquetipais, simbólicos e míticos que se oferecem à realidade
pela hermenêutica do imaginário.
Neste capítulo, objetivo refletir, a partir dessas mesmas imagens
discutidas no capítulo anterior:
a) As relações entre cinema e ideologia, e
b) As relações entre as produções cinematográficas e as identidades e
identificações do autor.
4.1. Autor e obra: a natureza de uma realidade
Do ponto de vista dos autores que estudam tecnicamente uma produção
cinematográfica, o processo de produção de uma obra como um filme se inicia
pela escritura de um roteiro. O roteiro, com um projeto pensado a priori, torna-
se invisível quando o filme está pronto, já que é substituído por uma outra obra,
a do diretor e de sua equipe (CARRIÉRE, 1995). Importante ferramenta de
trabalho do diretor e de sua equipe, o roteiro é realizado por ele mesmo ou por
outro artista (CRUZ,2001). O roteiro é definido por Comparato (1983, apud
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
151
CRUZ, 2001, p. 318) como a “forma escrita de qualquer espetáculo áudio e/ou
visual”. O roteiro é, portanto, a linha-mestra da construção cinematográfica, e é
preciso entender, pelas fichas técnicas dos filmes, se os roteiros foram
realizados a partir de adaptações literárias ou se são produções originais.
Todos os roteiros dos filmes que são objeto de análise desta Tese, de
acordo com suas fichas técnicas (anexadas), são originais, ou seja, são
realizados pelos próprios diretores; nenhum deles é adaptação de alguma obra
literária, ou mesmo foi realizado por um roteirista que não o próprio diretor do
filme. Identificam-se, aqui, duas funções: autor e diretor.
Quando um autor realiza um roteiro original, tem o intuito de estetizar
uma realidade, partindo de um tema. Assim, um filme é uma forma intencional
de interpretar a história. Ele se vale de suas experiências pessoais e das
referências históricas, culturais, econômicas para a construção da narrativa que
é representada num filme. É comum nas produções de filmes, um autor
realizar, por exemplo, um levantamento das referências históricas e ideológicas
que esses filmes trazem, encontrando-se, como são mostrados em estudos
sobre os filmes, em determinados autores, traços característicos de uma
determinada época, ou de uma forma específica de estetizar a realidade. Nesta
Tese quero compreender algumas dimensões das relações existentes entre a
ideologia e a criação cinematográfica e os símbolos que estão nela
representados.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
152
Sobre as relações entre ideologia e a imagem no filme, Aumont (1995, p.
190) aponta que “nas obras de arte a ideologia não é veiculada apenas no
plano dos conteúdos, mas no plano formal e no plano técnico”. É dessa forma
que Eisenstein (2002, p. 21) discute sobre a montagem: “para conseguir seu
resultado, uma obra de arte dirige toda a sua sutileza de seus métodos para o
processo”.
Os símbolos representados num filme estão ancorados num contexto
histórico específico e por essas referências particulares é que faz o espectador
compreendê-lo:
O contexto simbólico revela-se também necessariamente social, já que nem os símbolos nem a esfera do simbólico em geral existem no abstrato, mas são determinados pelos caracteres materiais das formações sociais que os engendram (AUMONT, 1995, p. 192).
Um contexto simbólico configura-se, segundo os objetivos desta Tese,
num contexto mítico, isto é, de tradução cultural de direções de forças oriundas
de um inconsciente coletivo, no interior daquelas três estruturas (matricial,
patriarcal e fratriarcal), formando um imaginário que está relacionado às
imagens mediadoras pelos símbolos, e evidentemente não podem ser
apartadas da história. Assim, há relações entre história e mito, história e
imaginário, para além do Historicismo (presente nos pensadores clássicos).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
153
Para a Antropologia, um filme deve se constituir como um campo de
pesquisa das práticas sociais e das relações entre essas e a cultura
(COMOLLI, 2000). Esse é também campo da Antropologia Visual, como um
aporte complementar que pode auxiliar na compreensão dos nuances do
trabalho etnográfico (REYNA, 2007). No contexto da produção de um filme, o
registro dos dados etnográficos que pauta a natureza da realidade do ofício do
antropólogo, que estuda o comportamento coletivo, observável in loco, é feito
de modo distinto. O registro das observações participantes não se faz a partir
das memórias e anotações em cadernos de campo, mas pelo registro fílmico
das situações.
Além disso, se constituiu na Antropologia, assim como nas outras
Ciências Sociais, o estudo dos filmes de ficção. Há, entretanto, uma invariante
antropológica que conecta as duas condições de pesquisa, quer se trate de um
trabalho nos moldes clássicos de observação participante, quer se trate de
análises de filmes (até mesmo de ficção): não temos o controle do processo e
do desfecho:
A comparação entre as mise en scène respectivas do cineasta antropólogo e do cineasta de ficção coloca em evidência as restrições próprias do cinema antropológico, assim como as dificuldades ligadas à descrição de situações nas quais o cineasta não controla – ou tende a não controlar – o desenvolvimento espontâneo (COMOLLI, 2000, p. 82)
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
154
A relação entre o sujeito da pesquisa e seu objeto e, assim, a natureza
do conhecimento que o antropólogo produz acerca de suas observações
fílmicas (quando o objeto é esse) são colocadas em questão por uma
Antropologia mais contemporânea, como é a hermenêutica do Imaginário. O
olhar do cineasta de ficção apenas sugere, apresenta o elemento que será
olhado por alguém: as duas perspectivas não são mostradas num filme de
ficção, como fala Comolli (2000). Para além do que é visto num filme sem
enredo, há dimensões encobertas que só podem vir à tona com instrumentos
conceituais de teorias antropológicas e seus conceitos de abarcamento da
realidade. Como aponta Reyna (2007), a antropologia fílmica parte desde uma
perspectiva de compreensão total do real, de um cotidiano, até uma
perspectiva relacional com os filmados, propondo um exame de sua filmagem,
o que reconfigura uma relação entre sujeito-objeto no conhecimento.
Como discute Claudine de France, quando um antropólogo é um autor, a
antropologia visual passa a utilizar a filmagem como forma de estudar seu
campo de pesquisa, o antropólogo sai do lócus da etnografia tradicional porque
não tem mais a preocupação em dissimular, já que quem é filmado tem
consciência de sua participação no processo de pesquisa:
Pelo simples fato de que aceitam ser filmadas, as pessoas observadas se colocam em cena e são testemunhas da intervenção do cineasta. Mise em scène própria às pessoas filmadas e intervenção do observador-cineasta se manifestam em diversos níveis, mais freqüentemente à revelia de seus próprios autores (FRANCE, 1998, p. 21).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
155
Mesmo que essa prática seja diferida (FRANCE, 1998), porque envolve
não apenas o discurso do etnólogo, mas também a compreensão dos fluxos
dos gestos, ainda assim ela nos parece restrita, já que, apesar de
compreender-se como parte do processo, o antropólogo ainda parte da idéia da
possível descrição do fenômeno para apreender (por meio da linguagem e da
imagem animada) uma determinada prática social.
Entretanto, essa prática contribui para uma requalificação metodológica
importante. Do dissimular, na observação tradicional, para um pesquisar,
admitindo o rompimento com a neutralidade do olhar e a concepção do campo
empírico como algo que é construído, o que permite ampliar a possibilidade a
compreensão dos fenômenos, até chegar à hermenêutica do imaginário. Além
disso, a concepção de um mise en scène que foge ao controle do observador e
do observado parece corroborar com a idéia de que as imagens estão
presentes nas produções culturais. Os símbolos presentes nas imagens
fílmicas produzem um sentido secreto, o que suscita em mim a busca pela
compreensão dessa evocação de sentidos (PITTA, 2005). Assim, o
antropólogo, também ele como símbolo, fará a mediação intersubjetiva entre o
sujeito e o objeto cognoscível, para construir esses campos de comunicação
que os filmes abrem e o abarcamento das dimensões imaginárias e imaginais
que pertencem ao real (ORTIZ-OSÉS, 2004).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
156
4.2. Indústria do cinema e as produções balcânicas
É preciso agora compreender que ideologias engendraram determinadas
posições em relação à produção cinematográfica, para que possamos discutir
de forma mais apropriada acerca das referências que possam estar presentes
nessas produções que são objeto deste estudo. É consenso para diversos
autores (JAMESON, 2002; THOMPSON, 2002; CRUZ, 2001; MORIN, 2003,
2005) que há o domínio de uma indústria americana do cinema, com
características próprias acerca da forma de se realizar filmes, desde a temática
escolhida até a linguagem utilizada.
O Ocidente como realidade imaginal, mais do que como realidade
territorial, é altamente impregnado pelos apelos contidos nessa indústria
cinematográfica e o espectador, que é parte importante na relação com a
imagem cinematográfica (AUMONT, 1995), passa a receber e compreender
essas imagens e os símbolos veiculados por elas. Jameson (2002) assevera
que uma característica importante do cinema contemporâneo através dessa
indústria cultural americana é a construção de uma falsa consciência histórica.
Isto porque essa consciência é apoiada no imperialismo global e na noção de
Estado-Nação capitalista como utopia do Ocidente. Em contraposição e esta
utopia, há a utopia do socialismo das repúblicas da Antiga Iugoslávia. Morin
(2005) aponta que existe uma relação direta com a máquina burocrática do
Estado, já que este “filtra” uma idéia criadora, decidindo sobre o produto final
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
157
de uma obra em relação à sua rentabilidade (iniciativa privada), sua
“oportunidade política”, pesando sobremaneira sobre as decisões técnicas de
produção, isto é, refletindo diretamente no produto final, o filme. Nas palavras
do autor, a criação passa a ser produção:
A grande arte imóvel, o cinema, instituiu uma divisão de trabalho rigorosa, análoga àquela que se passa numa fábrica, desde a entrada da matéria bruta até a saída do produto acabado. (MORIN, 2005, p. 30)
Mas não é apenas a divisão do trabalho que despersonifica o autor de
uma obra de cinema, mas a impossibilidade que ele tem de se identificar com
ela. Se a concepção de história do começo até o final, quando o filme vem a
público é necessária, como colocada por Jameson (2002), e a burocratização
pode “filtrar” o trabalho do autor, como aponta Morin (2005), esse passa, na
cultura de massa, a responder às demandas dessa indústria cultural. Esta
indústria cultural pode impor regras próprias em relação à temática e à
linguagem a ser utilizada, ou seja, ela fomenta uma indústria “do espetáculo”
(MORIN, 2005). Esse espetáculo, segundo o autor, está relacionado
definitivamente a uma cultura do lazer, do entretenimento, mesmo quando ele
possa comunicar aspectos gritantes de uma trágica realidade, como a que
vimos nos filmes analisados no capítulo anterior:
[...] o espectador do filme entra num universo imaginário que, de fato, passa a ter vida para ele, mas ao mesmo tempo, por maior que seja a
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participação, ele sabe que lê um romance, que vê um filme. (MORIN, 2005, p. 77)
Nesse sentido, como Jameson e Morin nos mostram, a cultura de massa
rompe com a tradição da tragédia advinda desde o teatro grego e introduz o
drama. Na contemporaneidade, a idéia de felicidade possível e das virtudes do
herói moderno dão a tônica da indústria cinematográfica “de massa”, a partir do
conceito de happy end (final feliz). Além de o real tomar esse conjunto de
idéias no interior do imaginário ativando a estrutura esquizomórfica (DURAND,
2001b) (e não as outras possibilidades de confluências numa bacia semântica),
são essas idéias dominantes para a indústria do cinema, nesse momento, que
parecem representar o real. O único real possível é aquele que tem o final feliz,
parece o espectador não suportar a queda do herói.
A intelligentsia criadora, por outro lado, como discute Morin (2003),
aponta uma crise no interior da cultura de massa, especialmente a partir dos
anos 1960:
Uma fração jovem da intelligentsia criadora, apoiando-se na ala aventurosa dos pequenos produtores ou no mecenato estético do Estado, consegue realizar filmes com orçamento reduzido, sem astros, mas nos quais os autores poderão exprimir-se de maneira mais livre com relação aos estereótipos ou arquétipos da indústria cultural. (MORIN, 2003, p. 109)
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Nas produções fílmicas dos Bálcãs, há, de certa forma, por um lado, a
necessidade de se adaptar à linguagem da produção cinematográfica do
Ocidente. Mas, por outro, há também a necessidade de divulgar através da arte
(seja literária e teatral também) uma realidade não vivida pelos vários países
do Ocidente. Assim, ao invés de realizarem abertamente uma crítica ao projeto
socialista, nesses filmes balcânicos o socialismo é desconsiderado, esvanecido
ou esfumaçado, para que o filme possa atingir e fazer mais sentido à massa de
espectadores que não vivenciaram esse projeto totalitário. Mas, mesmo assim,
as temáticas são específicas, o que, de certa forma, seleciona seu público.
Em Vukovar, por exemplo, são relembradas apenas as características
positivas, como aquelas que aludem à igualdade, entre as diferentes etnias por
Toma, quando se encontra à beira do Rio Danúbio com Ana:
Nossa geração não se preocupou em distinguir entre servos, croatas,
ortodoxos e católicos.
Ou ainda:
Famílias mistas tinham dois Natais, dois Anos-Novos e duas Páscoas.
O fato de o Estado socialista promover a universalização de todos os
povos como forma de exercer o seu domínio é esquecido. Para que o Ocidente
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
160
possa receber essa filmografia, algumas novas contradições são produzidas e
outras também são retiradas do contexto. Por outro lado, os filmes mostram
uma quebra com o happy end de Hollywood. Nesse sentido, a reflexão de Cruz
o aproxima de Morin: “o combate à Hollywood revelou movimentos
cinematográficos independentes inovadores” (CRUZ, 2001, p. 321). É o próprio
Morin, que ao analisar a sociedade moderna nos mostra como ela é anômica -
ele fala da não coesão, da fluidez, do “caráter extremamente frouxo da
integração de elementos que a constituem” (MORIN, 2003, p. 129).
O cinema, como estetização da realidade, que é dinâmica, suscita que
mudanças ocorram no interior de sua própria estética e, portanto, na forma com
a qual cada produtor (e seu roteiro) interpreta a realidade. Esse não é um
processo estanque, pelo contrário, está em movimento, assim como todas as
manifestações culturais.
Vemos, em Antes da Chuva, elementos da ocidentalização e da cultura
pop do Ocidente. Seu personagem principal, um fotógrafo, é parte integrante
da própria comunicação de massa e, por outro lado, é ator social nos campos
da Macedônia. Ele é chamado ao retorno, ao círculo, ao seu povo. O arquétipo
mobilizado em sua vida, o da mandala, já que o símbolo do círculo o traz de
volta, chama-o a esse retorno, ao seu completamento (JAFFÉ, 1984). E, de
uma forma totalmente nova, ele mostra o mundo por meio da fotografia, outras
visões sobre a vida local, dissonante, sob vários aspectos, da tão apregoada
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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no jornalismo da cultura de massa. Mesmo que, de certa forma, haja tomadas
nas quais o filme colabora com a noção de cultura do medo, ao mesmo tempo
mostra a desilusão do mesmo personagem que reencontra a antiga amiga; que
pede a ele (que agora representa o Ocidente pacificador do conflito) que
interceda por sua filha, à beira de ser castigada. Ele é o herói que vem do
estrangeiro. E é, logo depois, o herói que cai. Esses dois opostos, a ascenção
e a queda, configuram símbolos de uma matriz do imaginário antropológico
(esquizomórfica, para DURAND,2001b) como nos mostra Pitta (2005, p. 19),
“uma cultura pode perceber [pelo imaginário] o universo como cheio de
divisões e oposições”. De um lado, ele parece representar o ocidentalizado, o
único capaz de salvar a juventude da selvageria na Macedônia e, em seguida,
a sua queda. A queda do herói moderno. A tragédia contemporânea que se
traduz em crueldade (MAFFESOLI, 2003a).
4.3. Os outros meios de comunicação de massa e as produções
balcânicas
O tema da imprensa escrita, jornalismo, é sempre presente, em todas as
produções. Em Bela Aldeia, Bela Chama, é a jornalista que acompanha o
batalhão sérvio; em Terra de Ninguém, a jornalista inglesa observa o ocorrido
na trincheira; em Antes da Chuva, é o fotógrafo macedônio que fugiu de seu
país de origem e se torna jornalista; em Beautiful People é o jornalista da BBC
de Londres que acompanha a guerra. Mesmo sendo uma manifestação
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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midiática que mobiliza arquétipos do mundo moderno, o que aproxima esses
jornalistas da guerra, algumas situações procuram, de certa forma, humanizar
ou denunciar o que está ocorrendo na guerra e, a partir da possibilidade da
imagem, como apontado por André Malraux (DURAND, 1993), os filmes
realizam também uma confrontação das várias culturas.
Vejamos aqui, em tomadas de cenas que revelam essa redundância
quase obsessiva nos filmes analisados. No primeiro caso, em Bela Aldeia,
Bela Chama, no momento em que a jornalista americana beija um dos
soldados sérvios, ela pede que um dos soldados filme-na. Parece nesse
momento ocorrer um aspecto de solidarização dela com o grupo, de modo
reconhecido na fala de um deles:
Não precisa mais traduzir para o inglês.
Outra temática redundante é a vivência da guerra e do sofrimento, a
alusão à morte presente entre todos, sejam soldados, jornalistas ou habitantes
da região. No caso do jornalista de Beautiful People, há inclusive uma
ressignificação médica em relação ao que ele sente, ao interpretar que o
jornalista foi tocado pelo conflito de modo muito profundo, o que produziu uma
Síndrome da Bósnia, cujos sintomas são a vontade de buscar ajudar as
pessoas, uma saída para o seu sofrimento. Percebemos aqui o mecanismo de
eufemização, de inversão do símbolo da morte para a morte-renascimento, já
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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que “trata-se de desdramatizar o conteúdo angustiante de uma expressão
simbólica, invertendo seu significado” (PITTA, 2005, p. 72).
Como todas as produções estão relacionadas ao contexto, há também,
no mesmo momento, a presença do pensamento objetivo, econômico,
explicando a tragédia. As dimensões que operam nas narrativas apresentadas
nesta Tese representam uma contraposição ao happy end oriundo da indústria
cultural de Hollywood. Mesmo que ainda dêem um papel importante ao modo
ocidental de fazer cinema, eles mostram uma possibilidade de resolução dos
conflitos pelas mãos dos ultrajados. A jornalista se “solidariza” com os demais,
com os estrangeiros que eram meros objetos de suas análises jornalísticas,
num movimento que simboliza/representa uma fusão, o que configura a
entrada numa nova estrutura do imaginário (a sintética ou antifrásica). Nas
palavras de Gilbert Durand:
A imaginação sintética, com suas fases constrastadas, estará mais ainda, sob o regime do acordo vivo. Já não se tratará mais da procura de um certo repouso na adaptabilidade, mas de uma energia móvel na qual adaptação e assimilação estão em harmonioso concerto (DURAND, 2001b, p. 346)
A partir do momento em que a noção de pertencimento não se refere
mais à territorialidade, já que parece ser “impossível sentir-se em casa, [há] [...]
um incorrigível estar em algum outro lugar” (MALDONATO, 2004, p. 30), isso
contrapõe-se ao estar ali para observar/estar com esse estrangeiro, numa
identificação entre ela e o grupo de soldados. Por outro lado, o happy end
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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também está presente, contudo no interior de um movimento que supera a
função pragmática para ser reconhecido dentro da função simbólica. Em
Beautiful People, referindo-se a tristezas vividas pelo casal que tem Caos,
fruto de um estupro, Dr. Mouldy (o ginecologista que os acolhe) lhes diz:
Se a vida se mostrar um pouquinho a seu favor, ela pode ser linda.
Quando o médico lhes fala sobre sua própria experiência de separação
conjugal e familiar, refere-se obviamente à história de caos vivida pelo casal,
na Bósnia. O final de Beautiful People, dentre todas as produções estudadas,
é o mais idílico, pois representa uma certa dose de esperança no interior dos
intrincados conflitos étnicos. Como se estando em um espaço não selvagem,
distantes geograficamente dos conflitos, pudessem realizar a reconstrução de
suas vidas a partir do casamento, da cura no interior do hospital, de uma
relação entre o casal que tem a filha Caos.
O jornalismo também denuncia a atuação das Forças de Paz da ONU,
que se prestam à manipulação governamental em Terra de Ninguém e é
quase ausente em Antes da Chuva:
E a ONU? Voltam na semana que vem para enterrar os mortos. Boa guerra
para você, tire boas fotos.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Em Beautiful People, o jornalista inserido na ONU e o garoto que foi
transferido para lá por acaso promovem a humanização, por meio do auxílio na
cirurgia, quando doa a droga, é a imagem produzida a partir da relação
humanitária, fora do contexto da drogadição, mas, paradoxalmente, mobilizada
pela sua existência. A força de paz da ONU cumpre seu papel de distribuir
alimentos, cuidar dos civis feridos. Todos esses momentos são captados pela
câmera do jornalista, pela câmera fotográfica, pela gravação da voz. A todo o
momento, o jornalista, que é representado como parte do produtor de
informação. O jornalista é um outro representante do Ocidente que, no interior
dos conflitos, produz a informação, pela imagem, que encrusta-se na alma
coletiva, sem precisar ser retomada, como se fosse num livro. Como nos
lembra Susan Sontag:
Sobretudo na forma como as câmeras registram, o sofrimento explode, é compartilhado por muita gente e depois desaparece de vista. Ao contrário de um relato escrito – que, conforme sua complexidade de pensamento, de referências e vocabulário, é oferecido a um número maior ou menos de leitores -, uma foto só tem uma língua e se destina potencialmente a todos. (SONTAG, 2003, p. 21)
As imagens falam mais que as palavras: “a compreensão da guerra
entre pessoas que não vivenciaram uma guerra é, agora, sobretudo um
produto do impacto dessas imagens” (SONTAG, 2003, p. 22). No interior da
própria experiência estética do cinema balcânico, opera a função da
comunicação, pelos meios de comunicação de massa, revelando essa
hipercomplexidade da sociedade contemporânea, na qual convivem tendências
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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e contratendências (MORIN, 2003). Da política do medo aos símbolos da
inversão, não é o cinema dos Bálcãs, sozinho, que irá transcender as
contradições dessa difícil Modernidade e nem cada filme em particular terá
desvelado todas as suas contradições. A cultura de massa, refletida no happy
end e na estética do lazer e do espetáculo, está presente também nas
produções estudadas. Mas, por outro lado, seus autores ainda vivem as
contradições e as colocam em imagens do cinema, porque são autores da
região em conflito, e viveram os efeitos das ruínas de um Estado socialista, de
uma sociedade que não conseguiu atingir um patamar de realização dos
direitos sociais, e que, a exemplo de outras, presencia uma quebra de
fronteiras por meio de uma história marcada pelas guerras e pela negação da
alteridade.
4.4. O cinema dos Bálcãs e o processo de globalização
É preciso compreender que, após a queda do socialismo, o processo de
globalização da economia trouxe diversas mudanças para o mundo,
especialmente para a Europa:
globalização significa transgressão, a remoção de fronteiras, e portanto representa uma ameaça para aquele Estado-nação que vigia quase neuroticamente suas fronteiras (HABERMAS, 1995, p. 98).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
167
Hobsbawm (2004) complementa que, no início da década de 1990,
faltou ao mundo qualquer sistema estrutural como nos moldes da tradição
moderna. Haviam desaparecido os vencedores da Primeira e Segunda
Guerras, que desenharam o mapa da Europa. Para Giddens (1997, p. 118), “a
globalização é “uma questão do ‘aqui’, que afeta até os aspectos mais íntimos
de nossas vidas”, um rompimento definitivo com a tradição que esteve ainda
presente no pensamento moderno. Num primeiro momento, o Ocidente e suas
instituições tiveram uma grande expansão, colonialista mesmo, de forma
unilateral. O cinema, como vimos, foi também um meio pelo qual as idéias e as
instituições do Ocidente expressaram essa expansão.
Hobsbawm (2004) ainda nos lembra que o único Estado que restou do
que foi chamado de potência após 1914 foram os EUA. Este Estado ditou boa
parte da “Nova Ordem Mundial”, controlando decisões acerca das questões
agora mundializadas, com a globalização. Não foi diferente em relação à
Guerra nos Bálcãs. Como aponta Paul Virilio, sobre a intervenção militar da
ONU nos Bálcãs, a partir da declaração vinda do Pentágono, a instituição
americana de defesa, com extrema força nas decisões, apontava para um
“dever de intervenção” como um limite estratégico:
Não ético, como se poderia acreditar ingenuamente, mas estratégico, tal como o que impôs, há mais de quarenta anos, o equilíbrio do terror entre o Leste e o Ocidente com a disuasão, mas ao preço de uma ameaça de extinção de toda a vida no planeta... (VIRILIO, 2000, p. 17)
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A chamada mundialização da cultura e a quebra de fronteiras entre os
Estados deram então a tônica à globalização, inicialmente mobilizada pelo
Ocidente e pelas tradições construídas na Modernidade sobre a civilização
ocidental. Como resposta à utopia do socialismo soviético, na década de 1990,
opera-se uma concepção (não mais um projeto político) de uma sociedade
controlada “pura e inteiramente pelo mercado sem qualquer restrição”
(HOBSBAWM, 2004, p. 542), produzindo bens, serviços e felicidade (MORIN,
2005; HOBSBAWM, 2004), o que é o ideário desse mundo globalizado. A
divisão tradicional dos Estados não responderia mais aos seus próprios
interesses, porque sendo as necessidades globalizadas pelos fluxos de
informação, elas não encontrariam respostas numa formatação original de
configuração de Estado autônomo. Assim, os Estados, na globalização,
estariam sob a égide desse processo global, a serviço de um mundo
globalizado, pontuado pelas regras do mercado.
A Europa, como lembra Sontag, “dos euronegócios, dos eurodólares”
(SONTAG, 2005, p. 364), pronta a enfrentar os desafios do mercado nos finais
do Século XX é a Europa pensada no modelo da globalização. Assim, a
“economia mundial cada vez mais é um todo interdependente” (MORIN &
KERN, 1995, p. 34), esta mundialização “unifica e divide, iguala e desiguala”
(MORIN & KERN, 1995, p. 34).
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
169
Entretanto, esse processo de mundialização dos povos com a quebra de
fronteiras, uma vez mais, rebate nas questões locais. Tanto nas questões de
embates culturais como na produção de hábitos, costumes e novas relações
entre os diferentes povos. O conceito de holograma, de Edgar Morin, pode ser
uma metáfora para entender as questões planetárias:
Não apenas cada parte do mundo faz cada vez mais parte do mundo, mas o mundo enquanto todo está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isso se verifica não só para as nações e povos, mas também para os indivíduos. (MORIN & KERN, 1995, p. 34-35)
Às crises que o socialismo engendrou na região dos Bálcãs segue-se a
crise por conta do desregulamento da sociedade global baseada nas questões
mercadológicas e de um laissez-faire como substituto das antigas economias
soviéticas que também engendraram inúmeras outras crises (HOBSBAWM,
2004). Crises essas que eclodiram em diferentes pontos do mundo. Uma
passagem de Vukovar sobre o Efeito – Borboleta, aplica a metáfora do
holograma:
Isso tudo é parte do efeito-borboleta. Uma borboleta flutuando sobre os Bálcãs
traz em mente um furacão no Pacífico. Como se cada novo crime causasse
mais deteriorização no mundo.
O símbolo da borboleta, como assinalam Chevalier e Gheerbrant (2006),
se baseia em sua metamorfose, a potencialidade: vai da morte à ressurreição.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
170
Podemos compreender, a partir daí, que cada imagem, cada gesto, deixa uma
memória no planeta.
Os efeitos globais e locais são fortemente sentidos nesses dois
patamares intermediários, pois a ligação do todo com a parte, na concepção
moriniana, não é uma relação de soma, mas uma relação sistêmica: parte e
todo se comunicam imaginalmente, numa recursividade (MORIN, 2004;
MORIN, 2006). No caso dos Bálcãs, isso também ocorre quando mostro como
questões localizadas são reflexo de mudanças globais (a sistemática transição
entre socialismo e mundo globalizado), e também que, ao mesmo tempo,
assustam e movem mudanças no mundo todo. É a condição humana que está
ameaçada, como veremos no último capítulo. Mesmo considerando, como
aponta Virilio (2000), o desespero das Nações Unidas quando realizam uma
intervenção na região para solucionar uma questão local a partir da
manipulação de uma situação aparentemente sem solução para a vida do
soldado envolvido (a bomba irá explodir), o que é evidenciado no filme Terra
de ninguém, essa intervenção é feita para impedir que um evento local tenha
repercussões tão ameaçadoras para o mundo globalizado.
De certa forma, existe a consciência dessas questões entre os autores e
produtores dos filmes analisados. Os autores dessa filmografia, um tanto na
contramão da filmografia hollywwodana de entretenimento, não utilizam a
explosão e os efeitos especiais de forma tão maniqueísta, a ponto de
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
171
demonstrar quem é o bom e o mau soldado, mas parecem utilizá-la numa
concepção mais elucidativa das questões locais, isto é, eles dão um tom
próprio, já que são situações vividas em que os próprios autores estiveram
envolvidos (moraram na região e, ao mesmo tempo, se relacionam com as
questões globais) e assim denotam uma consciência dessa crise. Sobre essa
consciência, Morin nos chama atenção para que o abandono do maniqueísmo
e da causalidade linear sejam possibilidades de produção de uma resposta às
questões da Europa e do mundo (MORIN, 1996).
Assim, esses autores, em diferentes medidas, demonstram que é a
deflagração da intolerância advinda do Estado socialista, mas que, ainda
assim, se mantém no processo globalizado, que é combustível para uma
guerra que possa envolver o mundo todo e é também tão eminente. A aludida
deflagração da intolerância é também produto de uma sociedade e, ao mesmo
tempo, produz essa sociedade, traz graves e profundos efeitos no imaginário
europeu e mundial, como nos chama atenção Edgar Morin. Contudo, quando
ela for ressignificada, poderá engendrar estratégias para a busca da tolerância
entre os povos, sendo um grande ensinamento da alteridade.
4.5. Ressignificações: autor e sua obra
Procuro, neste item, pensar as relações entre autor e obra
cinematográfica, para além das dimensões criticadas por Menezes (2001),
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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quanto ao uso que ele fez do conceito de representação, ao operacionalizar
dois tipos de análise: por um lado, o estudo da indústria cultural e, por outro, o
reflexo puramente do social no cinema. Através dos conceitos da Antropologia
do Imaginário, busco compreender melhor que dimensões estão envolvidas
nessa relação de autoria – contexto social, numa nova dimensão para as
questões já pontuadas anteriormente neste capítulo.
Por um lado, é importante compreender que o cinema não é
representação de um ideário social racionalizado, mas, de outro lado, também
não pode ser puro reflexo de uma indústria do entretenimento. Ao se analisar
as relações do autor com sua obra, não se trata de reduzí-lo a uma
compreensão psicologizante da imagem e, principalmente, da criação. Há,
contudo, como bem aponta Leite (1967), no processo criador, questões de
ordem psicológica, mas também condições externas, quadros de referência
que demandam desse criador movimentos de criação. O autor discute que não
se pode recair uma análise de um autor de uma obra apenas buscando
encontrar características de sua personalidade individual nos resultados
artísticos, pois a construção se dá numa relação entre autor e contexto.
Hillman, um dos grandes pensadores contemporâneos, que muito tem
auxiliado na compreensão da imaginação imagética, aponta que as imagens
têm sua força própria e que não necessariamente são reflexo de uma
psicodinâmica pessoal, nem mesmo patológica (HILLMAN, 1988). Isso quer
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
173
dizer que a obra artística não é fruto, em si mesma, tão somente da
personalidade de um determinado criador, tampouco pensada em sua forma
clássica. Parece que um dos grandes desafios que se colocam para a
Antropologia contemporânea é a compreensão dos processos de identificação
e de personificação, que operam com algum sentido de identidade, contudo
mais fluidamente e colocam em discussão a alteridade.
Para Hillman (1988), o conceito de personificação ultrapassa a
compreensão do conceito de personalidade que foi proposta pela Psicologia
Ocidental. Essa Psicologia, matizada por diferentes teorias, buscou reconhecer
características engessadas dos fenômenos psicológicos, embasada num
modelo moderno, unilateral, de alcance geral para todos os indivíduos em
todas as culturas, isto é, com um sentido universalizante (MAIA, 1998). Nos
últimos estudos de Jung, havia uma construção da personalidade como
essencialmente múltipla, porque embrionária e conectada à história imaginal da
humanidade. A multiplicidade, para vários autores do Ocidente, inclusive Freud,
a partir de quem o debate sobre o homem ganha também uma dimensão
mítica, segundo Jung, é vista como um desvio. Realizando uma releitura da
obra de Jung, Hillman (1988) passa a considerar a personalidade sempre como
algo inacabado e parcial. Cada parcialidade é sempre vista como uma
parcialidade, e existe, para ele, uma dinâmica que não pode ser explicada por
uma certa dinâmica pessoal, tipológica, pois esta não existe per si, mas por
uma dinâmica arquetipológica.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Uma tradução antropológica dessa questão nos ajuda a entendê-la
através do conceito de trajeto antropológico tão bem operacionalizado na obra
durandiana (DURAND, 2001b). O trajeto antropológico, segundo Badia (1999)
é o conceito pelo meio do qual pode-se compreender a atribuição de sentido às
imagens, indo além de uma leitura meramente histórica ou ideológica.
Tentei buscar, por meio deste estudo, alguns invariantes antropológicos
através de uma hermenêutica de sentido que me possibilitou relacionar as
imagens aos arquétipos, aos mitos, e às formas pelas quais foram
representadas nas lutas, nos processos identificatórios. Contudo, não
considero viável para este estudo a análise dessas imagens sob o ponto de
vista de uma analítica classificatória das imagens, partindo apenas de
categorizações representacionais, sem relacioná-las à uma compreensão
hermenêutica, ou seja, tomando-as como ponto de análise os traços de cultura
ou mesmo os projetos políticos, os aspectos geográficos ou mesmo as marcas
de uma geopolítica.
Utilizei contraposições de sentido dos símbolos, considerando minhas
análises também como parciais, assim como são parciais as obras às quais me
debrucei e também são parciais as imagens que operam nessas imagens
produzidas no cinema. Segundo Durand (1987, apud BADIA, 1999), a
Antropologia do Imaginário buscou redimensionar as noções de inconsciente
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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coletivo e memória coletiva, a partir de uma base arquetipal, portanto, uma
dimensão bio-lógica, estando ancoradas nas dominantes posturais (schèmes)
(DURAND, 2001b; BADIA, 1999; PITTA, 2005). Jung (1982) talvez tenha sido o
primeiro a apontar para a função instauradora do inconsciente coletivo, essa
fecunda compreensão imaginal da realidade para compreender o homem.
Inconsciente coletivo, na definição de Jung é assim apresentado:
uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo portanto uma aquisição pessoal. [...] Enquanto que o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o inconsciente coletivo é constituído de arquétipos. (JUNG, 2000, p. 53)
Formado por arquétipos, que são, seguindo ainda a definição de Jung:
um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. (JUNG, 2000, p. 53)
E complementa:
o arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma facultas praeformandi, uma possibilidade dada a priori da forma de sua representação. O que é herdado não são as idéias, mas as formas, as quais sob esse aspecto particular correspondem aos instintos igualmente determinados por sua forma (JUNG, 2000, p. 91)
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Logo, a matriz do inconsciente coletivo é proveniente da história da
humanidade, definida inicialmente por Jung como sendo transmitida via
hereditariedade (JUNG, 2000). Em Durand, esse conceito foi ressignificado,
quando buscou compreender uma tópica sociocultural, para além de suas
dimensões psicológicas, como aparecia na obra de Jung, mas, com uma
preocupação antropológica, relacionou-o às construções culturais (DURAND,
2001a). Trata-se de uma imagem preliminar, com seu caráter coletivo e inato
(PITTA, 2005). Processo dinâmico que ancora os símbolos e os mitos, os
arquétipos, por meio do trajeto antropológico, os schèmes que, como vimos,
são trajetos encarnados (DURAND, 2003) orientam as diferentes direções
culturais (em direções diferentes das dadas pelos projetos políticos
analisados), e neles aparecem as identificações individuais e coletivas, num
processo fluido e incessante de produção de sentidos, como o que se mostra
nas imagens que selecionamos nos capítulos III e IV.
O que temos que considerar é que existem algumas imagens que se
tornaram invariantes antropológicas, como a oposição entre Oriente e
Ocidente, a oposição entre crueldade e solidarização. Podemos verificar,
inclusive, algumas relações dessas imagens com as culturas, culturas
européias, culturas fronteiriças, etc., e por isso essas imagens são simbólicas.
As imagens apresentadas aqui fazem refletir acerca do papel da função
simbólica operando em sentido profundo no ato de criação deste ou daquele
autor. É, por um lado, a consideração do processo de personificação e da obra
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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como produto de um autor, mas, por outro, como esse autor é produzido, pois
ele sofre os efeitos da atuação dos mitos fundantes que estão presentes no
inconsciente coletivo daqueles povos, como imagens do passado, do presente,
da geografia, da história. Ocorre uma relação muito peculiar que acontece
numa personificação de sua obra.
De modo geral, podemos falar em imagens que apresentei neste
capítulo e no capítulo anterior, a partir de cenas, relações, concepções, de
diálogos, de caracterizações de personagens. A relação entre esses símbolos
e as possibilidades hermenêuticas apontaram para as invariantes
antropológicas relacionadas à condição do homem, e, por isso, mais do que
representadas, essas imagens devem ser norteadoras das ações individuais e
coletivas, que discutirei no próximo capítulo. O mito do progresso não dá conta
de compreender ou de indicar os nortes para os quais a humanidade caminha.
Então, me pergunto, qual será o grande mito que opera na
contemporaneidade? Seriam os autores desses filmes visionários, como
suscita uma terminologia junguiana (LEITE, 1967)? Para Jung (1990), as
imagens do holocausto e todo o teor de culpa e, ao mesmo tempo, medo de
que essas imagens se repitam, ressoam na alma coletiva dos europeus como
uma realidade imaginal, já que estão presentes no inconsciente coletivo do
homem. As imagens do holocausto são, ao mesmo tempo, o terror inexorável
da morte e levam também ao medo desta morte. Ao processo de eufemização,
de atenuação do terror da morte, oferecendo-lhe um sentido otimista dessa
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178
imagem da morte, Maffesoli (2004) aponta que há novos elementos que estão
produzindo a ressurgência da figura feminina: o orgiástico, a tragédia, em
contraposição ao que foi o drama moderno.
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179
Capítulo V. A condição humana, essa invariante antropológica
O agora, o antes, o depois são rastros de um prisma que dissolveu a experiência. O tempo é uma fronteira entre passado e futuro, uma linha que se encolhe às nossas costas, até o ponto exato onde se apaga. A subversão do tempo. (MALDONATO, 2001, p. 111)
Nesta Tese, discuti, nos dois primeiros capítulos, como a proposta
universalizante do socialismo foi instrumentalizada pelo
Estado Iugoslavo, composto por várias etnias. Buscando construir um destino,
no trabalho com a estrutura social a partir de valores universalizantes, esse
projeto foi resultado de dois legados afeitos a profundas distorções: o
Positivismo e o Historicismo. Se, para o Positivismo, bastava controlar e
domesticar a cultura, des- mitificando o que é natural (que apesar de existir,
pode ser controlado pelo homem) (TARNAS, 2005), para o Historicismo, a
perspectiva de mudança da estrutura social, via projeto político des-mitificava o
conhecimento, isto é, radicalizava-o no sentido de abolir dele a dimensão
cosmológica e ontológica (CASTORIADIS, 2000).
Na Antropologia, as visões evolucionistas, de cunho positivista (CUCHE,
2002) tomam o tempo linear e universal como uma variável interveniente no
processo de progresso das culturas rumo ao eurocentrismo, o que resultaria
em classificá-las como mais ou menos primitivas em função desta variável.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
180
Mesmo as perspectivas historicistas de cultura (funcionalistas, culturalistas,
estruturalistas, por exemplo) não compreendem o tempo como imutável, ainda
que ele seja pensado no interior das condições sócio- históricas de uma
determinada sociedade, que produzem culturas, hierarquicamente distintas, ou
mesmo a partir de um conceito mais abrangente que contemple seu
atravessamento pelas classes sociais, pelas linhas identitárias, pelas lutas
sociais, etc. (CUCHE, 2002). No entanto, a literatura sobre culturas em
contextos socialistas não é significativa, mesmo se pudermos considerar que
esse projeto político se guiava por um princípio de universalidade que pudesse
abarcar as produções culturais com tudo o que elas traziam em seu bojo:
hierarquias, contradições, diferenças étnicas, etc. O que quero frisar aqui é que
a discussão do tempo tem sido feita nas discussões culturais, mas o tempo é
também uma construção.
A subversão do tempo da qual nos fala Maldonato (2001) alude ao
conceito de temporalidade, cujas marcas são míticas e simbólicas. Discuti, nos
capítulos anteriores, sobre a necessidade de se repensar a história e a
geografia dos Bálcãs, abarcando as questões postas pela Antropologia do
Imaginário e pela complexidade epistemológica para compreender os Bálcãs
como uma realidade imaginal.
A partir de uma concepção ampliada de tempo, busco discutir, neste
capítulo, as relações entre o arcaico e o contemporâneo, compreendendo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
181
como as formas de vivenciá-lo conduzem em direção ao entendimento da
condição humana, o que será feito por meio do trajeto antropológico.
5.1. Pode um destino ser determinado a priori?
O mito do progresso, sob a égide de Prometeu, constituiu um ideário que
significou, em poucas palavras, a clarividência de uma inverdade histórica
quanto à evolução linear das sociedades, através dos tempos, na direção da
superação de suas condições materiais (TARNAS, 2005). Quando voltadas às
reflexões sobre essa invariante antropológica que é a condição humana,
entramos necessariamente numa discussão sobre o tempo, ou melhor, a
temporalidade. Norbert Elias nos mostra que, desde Descartes até Kant, o
tempo é uma especificidade natural, não construída, pois existe uma relação
com ele de a priori, ou seja, de que seja imutável. Tanto a ciência positivista,
mas também por uma ciência historicista, o tempo é discutido como uma
posição fechada, são ambas reflexo de uma noção cartesiana de relação entre
causa e efeito. O tempo, em ambas, é uma variável importante para a
compreensão dos fenômenos tanto naturais como sociais, mesmo que essas
ciências tenham sido cindidas quando foi construído o modelo ocidental do
pensamento (ELIAS, 1995).
Numa ciência positivista, o tempo é uma variável interveniente cujos
efeitos devem ser controlados a partir de procedimentos que comprovem que
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
182
as outras variáveis controladas tenham maior valor. Já para uma perspectiva
historicista, é o tempo, reflexo de uma superestrutura que é constituída a partir
de uma infra-estrutura material, que explica as condições do presente, pelo
passado. A ampliação (ou o progresso) no futuro é possível, no Positivismo,
pelo maior controle dos efeitos do tempo e, pelo Historicismo Dialético, pelas
mudanças das condições materiais de existência, que trarão as mudanças
superestruturais.
Como aponta Elias (1985), as ciências naturais desmascararam as
relações entre os acontecimentos cotidianos e a natureza, desencantando-a. O
domínio do homem sobre a natureza, colocou sob suas mãos a possibilidade
não só de compreendê-la, mas também domesticá-la, pelos saberes científicos.
A natureza deixa de ser a responsável pelos acontecimentos, pois,
ilusoriamente, guiados pelo mito de Prometeu, os cientistas acreditavam que
poderiam, através do domínio sobre a natureza, guiar o destino humano, que,
controlado pelo homem, produzia uma condição para o progresso (TARNAS,
2005). A partir do Iluminismo, o desenvolvimento científico se radicalizou no
sentido de, explicando o destino humano pelas possibilidades do rigor e
controle científicos, os cientistas fugirem de demarcações mais profundas
sobre a própria condição humana (ELIAS, 1985).
Essa condição de unilatelaridade do homem, foi discutida por Jung,
Hillman e os autores da Antropologia do Imaginário, realizando uma crítica ao
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Historicismo, que apregoou a noção de que é a partir da materialidade histórica
e dos projetos que podem estruturar essa história que ocorreria a
transformação de sua condição. É a partir dessa sua compreensão falsificada
de história e consciência como sinônimos, que reside a idéia de que as
mudanças na história humana se darão a partir da concretização de projetos
engajados nessa transformação e, a partir daí, resultaria a transformação da
superestrutura, duas utopias que caíram por terra. Como aponta Elias,
“homens que se emanciparam, em larga medida, dos mitos naturais entregam-
se depois, repetidas vezes, aos mitos sociais” (ELIAS, 1985, p. 29).
Da mesma forma, o pensamento cristão, como aponta Paz (1995), tem
uma visão evolucionista de tempo. O tempo é visto como um suceder de
acontecimentos, que produzem efeitos sobre outros acontecimentos no
decorrer desse mesmo tempo. As explicações ocidentais, então, sejam elas
científicas ou religiosas, estão ligadas a uma dependência da temporalidade.
Temporalidade essa que é linear, como aponta Paz (1995), é decisiva, aponta
para uma finalidade, o juízo final. A temporalidade está, da mesma forma,
ligada ao passado, e está ligada à temporalidade da existência material
humana, pois o juízo final será dado a partir do que os homens fizeram em
vida. Para esse autor, “a idéia moderna de tempo é fundada no cristianismo”
(PAZ, 1995, p. 168). A Antropologia do Imaginário, como veremos, realizará
uma crítica a noção religiosa de tempo e espaço, à noção positivista de
agnosticismo que se antagoniza à ciência.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
184
Por outro lado, lembra Paz (1995), Platão e Aristóteles já consideravam
o movimento circular como perfeito, infinito, determinando que o movimento
retilíneo seja contingente ao agente exterior. Nas palavras do autor, “o
cristianismo inverte os termos: o tempo retilíneo, o humano, é o que conta
porque é o de nossa salvação ou condenação” (PAZ, 1995, p. 168). O livre-
arbítrio se faz (sérvio arbítrio para Durand quando critica o protestantismo) a
partir da liberdade de escolha de um caminho correto, o da salvação ou da
condenação, dentro da própria vida dos indivíduos, pelas escolhas que dão
sentido à sua salvação, permitindo, assim, que o homem faça seu próprio
destino.
Rompendo com a visão aristotélica de movimento, na Modernidade, que
apóia-se na filosofia mecanicista de Descartes e nas leis dos movimentos
planetários de Kepler (TARNAS, 2005; FIGUEIREDO, 1995), Newton explicou
o movimento através das leis da atração, ou seja, utilizando-se da tradição
pitagórica (matemática). Esta orientava-se na direção da explicação
mecanicista de um vetor que impulsiona o movimento, que é, então,
determinado por essa força de atração. Vejamos em Tarnas uma grande
aproximação do seu pensamento com o de Paz:
A cosmologia newtoniano-cartesiana estava agora estabelecida com fundamento de uma inovadora visão de mundo. Pelo início do século XVIII, qualquer pessoa instruída no Ocidente sabia que Deus havia criado o mundo como um complexo sistema mecânico, composto de partículas materiais que se movimentavam num infinito espaço neutro segundo alguns princípios básicos, como a inércia e a gravidade, que poderiam ser matematicamente analisados. [...] Assim, a nova imagem do Criador era a de um arquiteto divino, mestre matemático e relojoeiro; o Universo era visto como um
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fenômeno fundamentalmente impessoal e de regularidade uniforme. O papel do Homem nesse Universo poderia ser melhor avaliado a partir da evidência de que, em virtude de sua inteligência, ele havia captado a ordem essencial do Universo e agora poderia utilizar esse conhecimento em seu próprio benefício (TARNAS, 2005, p. 293-294)
Apesar de o futuro moderno ser inalcançável e irrealizável, porque é
infinito, o futuro seria concebido como de perfeição, estabelecido por certas leis
prospectivas e, até mais tarde, com o Historicismo, a partir do passado, passa-
se a prever o futuro (PAZ, 1995). A idéia de se controlar o tempo (e também o
espaço) se colocou no plano político, com sua tradução para o plano social,
com a dominação da Europa. Como lembra Elias (1985), houve, no Ocidente,
desde o Império Romano, uma tentativa de se trilhar o destino a partir da
negação do outro pela dominação, e de construção de um destino dos Estados
por meio das guerras sucessórias e reorganizações dos Estados no interior da
Europa. Isso ocorreu no desenrolar da Primeira Guerra Mundial, como discuti
no primeiro capítulo, que, segundo Berengér (1997), na certeza de um destino
melhor para a Europa, os Bálcãs foram cambiados de donos, foram-lhes
negadas a alteridade e a diferença em prol da construção de Estado (s)
hegemônico (s). O mesmo ocorreu na Segunda Guerra Mundial, por meio do
nacional-socialismo alemão, cujo líder (Hitler) não fazia idéia das
conseqüências, nos níveis sociais, de uma guerra (ELIAS, 1985), mas estava
construindo um destino para a humanidade, baseado na idéia de dominação de
uma raça superior. A realidade imaginal dessas questões atinge os povos
europeus com dimensões muito mais profundas do que os pensadores sociais
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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conseguem alcançar. É necessário um olhar mítico das questões estruturantes
das matrizes do imaginário antropológico.
Olhando esse fenômeno através dos efeitos sobre as diferentes
nacionalidades européias, na Primeira Guerra Mundial e, depois, na dominação
contemporânea das sociedades orientais pelos Estados europeus:
A expansão européia transtornou o ritmo das sociedades orientais; quebrou a forma do tempo e o sentido da sucessão. Foi algo mais que uma invasão. Esses povos haviam sofrido já outras dominações e sabiam que é o jugo do estranho, porém a presença européia lhes pareceu uma dissonância. [...] pensar que o tempo é progresso sem fim, mais que um paradoxo místico, lhes pareceu uma aberração. (PAZ, 1995, p. 169)
Sintetizando esse item, a ciência, a técnica e a certeza do progresso
fizeram com que os povos balcânicos internalizassem a crença em Prometeu.
E é por meio da possibilidade utópica desse progresso que se estendia a
todos, que se tornou possível a radicalização dessa crença de apagamento das
diferenças e de união dos diferentes Estados balcânicos sob a égide de um
Estado centralizador, progressista, que garantiria as condições materiais a
partir do controle de leis que atuariam nesse projeto: o Estado Iugoslavo.
5.2. identidade e identificações
No interior dos conceitos modernos acerca do homem, a condição
humana fora explicada pelas considerações científicas repressivas, passíveis
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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de universalização e de enclausuramento no interior desses projetos políticos
já discutidos. É necessário aqui retomar questões profundas das sociedades
ocidentais, e dos solos onde jorraram os elementos mais ricos dessa história
contemporânea guiada por múltiplos devires sociais. Retomo, para isso,
autores diferentes, que deixaram contribuições significativas, nem sempre bem
compreendidos, dentre eles Carl Gustav Jung e Michel Maffesoli.
As lutas sociais não podem ser tomadas apenas do ponto de vista de
uma solução homogeneizadora, pois ao buscar unificar, elas negavam as
diferenças. O conceito de multidimensionalidade mostra-se extremamente útil
para essa reflexão (MORIN, 1995). Multidimensionalidade significa a quebra, o
rompimento com a visão de unilateralidade do conhecimento, conforme o
projeto iluminista apregoou, baseando-se na lei da causalidade única. O autor
discute a construção da realidade baseada nas relações entre os sistemas e
subsistemas, sendo o conhecimento dotado de muitas dimensões, devendo ser
todas consideradas. Nesse sentido, um paradigma explicativo único não pode
ser aceito quando viramos o nosso olhar para uma realidade tão complexa
como essa, a dos Bálcãs. Para construir os desvelamentos possíveis que essa
realidade apresenta, deve-se levar em conta outras questões, além dos
determinismos sociais ou econômicos que embasam as visões do projeto
político socialista.
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Ao confluir com essas idéias, Hillman (1995) entende a personalidade
como sendo múltipla, é como uma condição natural do homem. Entretanto, no
Ocidente, essa personalidade sempre foi vista como parcial, já que construiu-
se, no Ocidente, a idéia de um indivíduo completo, universal, que pudesse
integrar-se à sociedade. Para James Hillman:
A personificação irá permitir que a multiplicidade dos fenômenos psíquicos seja experimentada como vozes, faces, nomes. Os fenômenos psíquicos podem então ser percebidos com precisão e particularidade, em lugar de serem generalizados nos moldes de uma psicologia de faculdades como sentimentos, idéias, sensações e quetais (HILLMAN, 1995, p. 88).
Em Jung, em quem Hillman apóia seu pensamento e o amplia, já
estavam as bases dessa compreensão de identificação. Maroni (1998)
assevera que a sociedade promove uma ditadura do recalque de algumas
forças. Podemos compreender, no projeto político do socialismo, lembrando
Ivekovic (1997), como as particularidades foram abortadas em função de
falsificações históricas, no processo de construção do Estado Iugoslavo.
Jung, ao criticar o homem-massa, afirma: “quanto maior a multidão, mais
‘indigno’ o indivíduo” (JUNG, 1989, p. 8). Em sua sensação de impotência e de
insignificância (quando enclausura sua subjetividade, que é múltipla), o homem
se vê arrebatado por um sentimento de impossibilidade de desenvolver sua
personalidade. Não é à toa, como aponta Maroni (1998), que Jung tenha
tomado partido do que fora reprimido, do frágil, desse homem derrotado pelo
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
189
processo da sociedade moderna. O autor, em seu profícuo movimento
intelectual, construiu elementos em favor da possibilidade da vivência dessa
personalidade múltipla, operada através dos arquétipos e restaurada pela
relação do homem com a religiosidade (no sentido do re-ligare, religação dos
saberes).
Num filme mais recente que não fez parte da etnografia fílmica,
Grbavica, a mãe (Esma) tenta apagar o destino da filha (Sara) que foi fruto de
um estupro. Ela faz isso porque vive a fragilidade de ser diferente: ser mãe
solteira de um pai acidental, sérvio, comum para muitas mulheres na Bósnia.
Acorrentada pela impossibilidade de viver um destino e por temer ainda mais
que a filha tenha que sofrer por isso, oculta a paternidade da gravidez. Sem
perceber, ela própria torna-se uma vítima do conflito; mais ainda, vítima de uma
sociedade que enclausura as identificações, as diferenças, a alteridade.
5.3. Condição humana e múltiplos devires
As questões por mim apontadas nos dois primeiros capítulos acerca da
construção histórica da geografia e das identidades nos Bálcãs nos
demonstram a multiplicidade de questões que envolvem o destino dessa
região. É necessário cumprir um caminho outro para se entender outros
ângulos das questões postas até aqui.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
190
Trata-se de compreender a condição humana por meio de uma
interpretação que leve em conta o destino visto de outra forma. Não de um
destino apenas construído com uma finalidade cristã de salvação, ou mesmo
que ainda indefinido, sem finalidade, progressivo, como viu a ciência. Nas
palavras de Michel Maffesoli:
É contra esse “cristianismo” que se insurge a impiedade contemporânea. O aspecto juvenil de sua efervescência, a “frescura” de suas revoltas, a busca exacerbada de um gozo multiforme, tudo isso permite ver no “mundo antigo” sua pátria de origem. “Mundo antigo” que, certamente, se faz necessário compreender de uma maneira metafórica, quer dizer, tudo o que contravém aos diversos “imperialismos categóricos” do moralismo moderno. (MAFFESOLI, 2003b, p. 28)
A fé, seja ela na religião cristã, seja ela posta no progresso (PAZ, 1995;
TARNAS, 2005) fizeram com que se acreditasse num destino construído a
priori em espaços cujos preâmbulos nada tinham de tão desconhecidos. Ao
invés de um destino paradoxal e místico, como o fora na Idade Média, houve a
sua substituição por uma possibilidade de construção de uma história coletiva,
já na Modernidade, pelos projetos políticos.
A partir daqui, o destino será compreendido pelo conceito de arquétipo,
pois ele nos permite interpretá-lo de forma diferente, inclusive entendendo o
vivenciar do inconsciente como experiência interior (LIUDIVIK, 2005). A
experiência interior experimenta a vida não só material, mas a vida da alma,
que se conhece mais intimamente, mais profundamente, por meio do mito
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
191
(HILLMAN, 1995). Os mitos enredam as histórias humanas, eles falam através
de nós, como já nos lembrava Lévi-Strauss.
Jung, em seus pressupostos, já apresentava uma ampliação dos
conceitos fundamentais da Psicologia, mas mais que isso, um desdobramento
que possibilitava uma espécie de arqueologia da alma, reintegrando, presente
e passado (LIUDVIK, 2005), o que conflui com as idéias de James Hillman:
O ser humano está inserido no âmbito da alma é a metáfora que inclui o humano. [...] Mesmo que a vida humana seja somente uma manifestação da psique, uma vida humana é sempre uma vida psicológica – que é como a psicologia arquetípica lê a noção aristotélica de alma como vida e a doutrina cristã da alma como imortal, isto é, além das fronteiras dos limites do indivíduo (HILLMAN, 1995, p. 42).
É através dos mitos, dos arquétipos, dos schèmes e do trajeto
antropológico (DURAND, 2001b) que se torna possível discutir a condição
humana. Articulando a natureza à cultura, a cultura à sua dimensão mítica,
para os vários autores citados neste capítulo, as dimensões biológicas
desenvolvidas nessa discussão nos ajudam a compreender como elas regem
as metáforas pelas quais as imagens arquetípicas re-significam o mundo, o
mundo sagrado e o mundo profano juntos. Esse mundo da alma, abarcando
nessa alma do mundo, reflete e é refletido em cada um e no mundo. O tempo,
o destino, o moderno e o arcaico, o ontem, o hoje, o amanhã, a vida material e
a imortalidade são repensados, articulados nesse sentido. Discutir a condição
humana é compreender como o Homem está inserido nas questões do mundo.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
192
Por isso, as questões representadas nos filmes discutidos nos capítulos
III e IV batem tanto à minha porta. O que acontece e é representado ali,
naqueles filmes, me conduz a uma exegese da minha própria alma. Ao
construir um filme, cada um dos autores, por vivenciarem tão de perto cada
questão ali envolvida, e mais, por fazerem parte desse mundo que metaforiza
todas as temáticas da alma; por talvez se inserirem e compreenderem que a
vida humana é somente uma manifestação de uma psique coletiva, que vai
além dos limites dessa vida, está, de certa forma, re-pensando seu lugar no
interior da própria existência (HILLMAN, 1995). Nesse sentido, o filme, na
concepção da Psicologia Arquetípica, se torna uma “retórica”:
A perspectiva da alma é inseparável da maneira de falar em alma, uma maneira que evoca a alma, puxa-a para a vida, e nos induz a uma perspectiva psicológica. Em sua preocupação com a retórica, a psicologia arquetípica vem contando com recursos poéticos e literários para ampliar sua visão, sempre trabalhando com o “enxergar através” de metáforas mecanicistas e personalistas (empregadas por outras psicologias) de forma a recuperar a alma daqueles literalismos. (HILLMAN, 1995, p. 43-44)
Assim, o trabalho com as imagens que realizei nos capítulos III e IV
desta Tese buscaram construir um sentido de relações entre os mitos e
símbolos com a universalidade das imagens, bem como em relação à tópica
sociocultural do imaginário (DURAND, 2001a; HILLMAN, 1995). A
compreensão acerca da ciclicidade do tempo e a circularidade causal (MORIN,
1996; ALMEIDA, 2006) me ajudaram a compreender melhor os símbolos e
relacioná-los ao inconsciente coletivo, a essa alma do mundo. Dessa forma,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
193
pensar mais profundamente a condição humana não implica apenas em refletir
sobre seu reflexo, a vida humana no cotidiano, como aponta Hillman (1995),
mas significa ainda reencontrar “a experiência psíquica mais radical, a do
encontro com o inconsciente coletivo, é uma abolição do tempo profano”
(LIUDVIK, 2005, p. 70). Abolição não só do tempo profano (positivista ou
historicista), mas com o tempo postulado pelo pensamento da Igreja (PAZ,
1995). A construção da condição humana realiza um reencontro com o mito,
com os antepassados, através de uma cultura que faça a ligação com eles
(MORIN, 1997), e assim realiza um encontro com o homo religious, um retorno
ao sagrado, à natureza religada pela cultura e pelos mitos, que existe na
condição humana e está em cada um de nós.
Trata-se de compreender a condição humana embasada nessa
sacralidade e que, ao mesmo tempo em que se liga ao passado, se liga ao
futuro inevitável: a morte. Se a ciência criou a possibilidade do progresso
histórico a partir do conhecimento científico posto em favor da humanidade e o
pensamento da Igreja considerou a finitude material como parte do processo
em direção à imortalidade, ambas não puderam, entretanto, fugir da
constatação de que a morte existe.
Para uma perspectiva da imagem, o imaginar vai além do reflexo de
uma psique unilateral, preocupa-se mais com o próprio destino humano, o
reencontro com a alma do mundo. Metaforizada pelo sonho, pela arte, pela
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
194
literatura, pelas possíveis viagens que o homem pode realizar como
experiência humana, Maldonato propõe, de certa forma, uma morte do tempo
(MALDONATO, 2001). Não uma morte do tempo da alma, mas uma morte do
tempo cronológico, linear, como posto pela ciência cartesiana, que realizou, por
sua vez, a morte do tempo circular, que é a condição para se pensar o destino
humano.
Então, essa re-ligação aqui proposta para compreender a condição
humana necessita de um olhar politeísta, que considere as diferenças e,
principalmente, as identificações dos atores sociais com as questões do mundo
(MAFFESOLI, 2004). A multiplicidade, a pluralidade de identificações pode ser
um mote redundante na direção da condição humana, que se liga à alma desse
mundo, através das imagens. Imagens que estruturam e movem o mundo,
imagens que vertem nas diferentes possibilidades sócio – culturais. Temos
aqui, principalmente, o questionamento do mito do herói, a crítica ao
antropocentrismo tal qual identificado como a auto-referência do homem, o
auto-centramento do homem, e a metáfora arquetípica, como realizei, por meio
da análise de arquétipos e símbolos que estiveram presentes nos filmes para
metaforizar as experiências vividas desses habitantes dos Bálcãs.
O tempo, então, para além das construções como categoria analítica do
social (ELIAS, 1995), deveria ser pensado como instante. É no instante que
jorra o tempo (BACHELARD, 2007). Maffesoli também concorda com eles: “é
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exatamente isso que está na questão do instante e do presente: remetem à
vida, à experiência, mais que à representação ou à teoria da vida em sistemas
abrangentes e rígidos” (MAFFESOLI, 2003a, p. 52). O passado, bem como o
futuro, se presentificam na vida ordinária, segundo este autor. As dimensões
arquetípicas e míticas estão presentes nessa vida ordinária, por isso mesmo
Maffesoli fala sobre o retorno do trágico, trágico que sempre ali esteve, aqui e
acolá, isto é, no inconsciente coletivo.
Para Bachelard (2007), nós construímos, racionalmente, um simples
hábito de ser. Mas o instante poético seria, para ele, a possibilidade da
vivência de um instante complexo, um instante que rompe com a continuidade
de um tempo encadeado. A arte viveria, segundo ele, a simultaneidade,
naquele momento. Mais especificamente com relação às análises que realizei
nesta Tese, os filmes não teriam essa dimensão de ruptura com o tempo
encadeado, e não condensariam simultaneidade de tempos em um só tempo?
Os autores, porque viveram a História e a compreenderam como negadora do
Outro, e assim, deles mesmos, foram afetados pela realidade imaginal dos
Bálcãs, mobilizada por mitologias, símbolos, arquétipos, nessa simultaneidade
do instante poético.
Defendo aqui que os múltiplos devires dos homens e mulheres dos
Bálcãs se fazem presentes nessas produções. Em Grbavica é a realidade de
duas mulheres que é enfocada. Se o tempo fosse histórico, encadeado, linear,
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como pressupõe a ciência moderna, a solução dos conflitos internos que Esma
vive ocorreria com sessões de psicoterapia. Entretanto, marcas profundas em
sua alma, mas não apenas na sua, mas de sua filha e na alma coletiva desses
moradores dos Bálcãs, por meio da redundância da crueldade, presente na
região, faz com que essa ferida seja muito profunda. Ela é mote para um
destino muito mais improrrogável do que se fosse de outro modo. A crueldade
é histórica, eivada pelas diferentes violências simbólicas engendradas pelos
vários projetos, pelo atentado a Sarajevo que culminou com a I Guerra Mundial
e com a limpeza étnica promovida pelos sérvios, da qual Esma e Sara, como
milhares de outras mulheres e seus filhos e filhas, foram vítimas. Anos se
passaram e esse passado não foi apagado. Não apenas porque elas viveram
(e vivem) essa ferida, mas porque esta ferida é muito profunda, está na
profundidade da alma coletiva do povo dos Bálcãs. Não foi através da
racionalidade cartesiana que pude compreender esse processo, bem como não
por ela que os autores produziram os roteiros que deram origem a essas
produções. Essa ferida está presente no imaginário dos Bálcãs e por isso jorra,
nesse momento, como uma realidade imaginal, captada por meio de metáforas
e metonímias.
5.4. A realidade imaginal dos Bálcãs
Como aponta Pitta (2005), não apenas cada indivíduo, mas cada cultura
estabelece uma relação entre a sensibilidade e o meio. Nessa relação há que
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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se compreender o dinamismo existente, a partir de uma polarização (que pode
ser compreendida, no caso dos Bálcãs, nos diferentes momentos em que se
dão as emergências das diferenças, ao longo de todo o processo histórico, e,
em seguida, as tentativas de harmonização dessas diferenças) o imaginário de
uma determinada cultura. Sendo assim, eu proponho aqui relacionar quais são
as questões que parecem envolver o imaginário balcânico por mim estudado.
Para concretizar a minha proposta, retomo uma argumentação de Durand:
Se desenharmos um círculo para representar o conjunto imaginário de uma determinada época de uma sociedade, podemos dividi-lo em duas “fatias” na horizontal, as quais correspondem, de baixo para cima, às três instâncias freudianas e que aqui serão aplicadas metaforicamente a uma sociedade. A fatia inferior, a mais “profunda”, representa um “isso” antropológico, o lugar que Jung denomina o “inconsciente coletivo”, mas que nós preferimos chamar de “inconsciente específico” e que está ligado à estrutura psicopsicológica do animal social, o Sapiens sapiens. É neste campo que os esquemas arquetípicos provocam as “imagens arquetípicas”, Urbilder. As estruturas dessas imagens, conquanto embaçadas, nem por isso são menos precisas [...]. Este “inconsciente específico” forma-se quase no estado de origem (tal como o gesso “adquire a forma” num molde) das imagens simbólicas sustentadas pelo meio ambiente, especialmente pelos papéis, as personae (as máscaras), desempenhadas no jogo social, e constituem a segunda “fatia” horizontal do nosso diagrama, correspondendo, metaforicamente, ao “ego” freudiano. É a zona das estratificações onde são modelados os diversos papéis conforme às classes, castas, faixas etárias, sexos e graus de parentesco ou em papéis valorizados e papéis marginalizados, de acordo com um corte vertical do círculo por um diâmetro (DURAND, 2001a, p. 93-94).
Compreendendo que essa imaginação simbólica possui, em seu interior,
essa dinâmica relacional entre os aspectos arquetípicos e as questões
materiais e culturais vividas pelos habitantes dos Bálcãs, podemos realizar
através dos símbolos levantados nos capítulos III e IV desta Tese um
desvelamento de quais são as dinâmicas aqui envolvidas. Compreender uma
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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determinada dinâmica mítica atuando no interior de uma dada formação sócio-
cultural significa realizar a condição de que os símbolos tendem para uma certa
direção: “cada imagem – seja ela mítica, literária ou visual – se forma em torno
de uma orientação fundamental [...] de toda experiência individual e coletiva”
(PITTA, 2005, p. 22).
Os símbolos dos filmes por mim estudados estão diretamente
relacionados ao que Durand dimensionou como os símbolos do regime noturno
da imagem. Por regime noturno da imagem, esse autor entende:
vai se empenhar em fundir e harmonizar. Fará isso de duas maneiras distintas, que correspondem a duas estruturas do imaginário: a mística e a sintética. Neste regime, a queda heróica é transformada em descida e o abismo em taça. Não se trata mais de ascenção em busca do poder, mas de descida interior em busca do conhecimento (PITTA, 2005, p. 29)
O eufemismo, que é mobilizado como saída da encruzilhada através dos
símbolos da inversão está presente nas produções estudadas: na forma
relacionada não mais ao estupro, mas ao símbolo da fecundidade (Bela
Aldeia, Bela Chama; Vukovar; Grbavica; Beautiful People; Antes da
Chuva). Mesmo que o estupro fosse vivenciado a partir da tragédia da guerra,
o seu reverso, a fecundidade é, muitas vezes, a expressão de uma esperança.
Trata-se de uma situação adversa, para um olhar cartesiano ou empírico-
racional nos moldes positivistas ou historicistas, entretanto, é, pela crueldade
do estupro que são construídas as possibilidades de superação dessa
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crueldade. A filha do casal de Beautiful People recebe o nome de Caos,
entretanto ela representa a esperança, a possibilidade de superação das
adversidades sob as quais essa criança foi gerada.
A fecundidade ressoa ainda no isomorfismo da mãe-pátria, integrante
dos símbolos da inversão, e também se faz presente nas produções
estudadas. Em Beautiful People, é na Inglaterra, outra pátria européia, onde
se recebem os refugiados de pátrias destruídas. Ali eles encontram uma
possibilidade de integração junto aos demais povos da Europa. Em Vukovar e
Bela Aldeia, Bela Chama se reconstroem, pela memória dos personagens, a
região geográfica onde viviam em harmonia, discutindo a tragédia vivida na
história de um passado recente, relembrado pela memória, que antes acolhia a
todos os povos, era preciso retomá-la para ser eficaz no presente. Em
Vukovar, recorda-se, inclusive, do Rio Danúbio, operando com profundo
significado de acolhimento para a cidade que dá nome ao filme.
O eterno retorno à casa, símbolo da intimidade, também está presente.
Em Bela Aldeia, Bela Chama, o personagem do “professor” que faz parte do
exército sérvio, mesmo deparando-se com as casas sendo destruídas pelo
fogo, relembra a sua beleza, pelas chamas que elas produzem. Ao aconchego
do lar, antes relembrado quando em contato com a tragédia da destruição, o
personagem busca uma forma de compreender, de forma otimista, pela
elaboração do passado vivido, a crueldade também presente. Em Vukovar e
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
200
Antes da Chuva estão presentes o retorno ao lar como missões individuais
dos personagens.
O tempo cíclico, já representante da estrutura sintética do imaginário é
representado em todas as produções, como já discuti anteriormente.
Retomando uma passagem de Antes da Chuva, a frase aparece escrita num
muro:
O tempo nunca morre. O círculo não é redondo.
Tanto pela estrutura mística (eufemismo, isomorfismo e a moradia) como
pela estrutura sintética (o tempo cíclico) podemos realizar uma confluência das
imagens em suas relações imaginais, isto é, ressonantes, constituindo, assim,
uma realidade imaginal dos Bálcãs, onde operam dimensões arquetípicas
(especialmente a queda do herói, o caos e a morte e renascimento); pelos
símbolos do círculo, da moradia, da grande mãe-pátria e da fecundidade.
Essas ressonâncias vêm bater à nossa porta de forma tão avassaladora,
fazendo-nos repensar as questões que as Ciências Sociais deixaram de lado,
ao tentar compreender os fenômenos que se dedicaram a estudar, partindo de
análises ligadas a uma história desconectada da alma coletiva.
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
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Conclusão
O estudo sobre a filmografia dos Bálcãs produzida na década de 1990
focou os conflitos político-culturais ocorridos nessa região geográfica e imaginal
deflagraram diferentes posicionamentos numa guerra, que foram, ao mesmo
tempo, locais e globais. Conflitos que foram vistos pelo mundo todo e que
representaram a ruína do projeto do socialismo real que, sob sua égide, negou
a alteridade das diferentes etnias que ali vivem, mas que, ao mesmo tempo,
contribuíram para a percepção da ruína de todo o pensamento moderno: a
ciência, a técnica e o esquecimento das questões míticas na vida do homem
contemporâneo.
Pesquisei de uma perspectiva pluridisciplinar, pois apoiei-me em autores
advindos de diferentes áreas do conhecimento, desde autores da Ciência
Política (BERMAN,1987; THOMAZ,1997; IVEKOVIC, 1997), da História
(HOBSBAWM,2004, 2005; BERÉNGER, 1997; BLACKBURN, 1997), da
Literatura (SONTAG, 2003, 2005), Psicologia (JUNG,1984, 1989, 1990, 2000;
HILLMAN, 1995), Sociologia (JAMESON, 2002; GIDDENS, 1997), Antropologia
(RÚBEN, 1986; BATALLA, 1991; CUCHE, 2002), Filosofia e psicanálise
(MALDONATO, 2001, 2004; TARNAS, 2005; VIRILIO, 2000; BAUDRILLARD,
2004) até as Teorias do Cinema (EISENSTEIN, 2002; MENEZES, 2001;
AUMONT, 1995). Busquei concretizar os objetivos propostos para essa análise
na perspectiva antropológica de Edgar Morin, Gilbert Durand e Michel
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Maffesoli, incorporando a contribuição de outros autores no âmago da
epistemologia da Antropologia do Imaginário e do pensamento complexo.
Assim, discuti a possibilidade de operacionalizar, via análise das imagens, e
particularmente através do imaginário antropológico, as questões sociais,
étnicas e míticas apresentadas sobre a região dos Bálcãs e representadas em
filmes. Com base nessas imagens, realizei uma discussão mais ampla acerca
da condição humana na contemporaneidade, em profunda tensão com as
questões da Modernidade, suas contradições e a necessidade do repensar o
homem, seu destino e suas possibilidades.
Para tanto, busquei reconstruir a realidade apresentada nos filmes para
além dos conceitos de representação e identidade, apropriando-me da noção
de realidade imaginal, que nos conecta com as dimensões míticas e
arquetípicas da existência (DURAND, 2001b; HILLMAN, 1995). A realidade,
reconstruída a partir dos símbolos, dos mitos e dos arquétipos que constituem
e mobilizam as imagens, torna-se mais profunda, pois guardam sentido
multidimensional (MORIN, 2004), para além de explicações deterministas.
Compreender a multidimensionalidade significa dotar um fenômeno de
múltiplas dimensões, inclusive interligadas, conectadas, a partir da
compreensão das imagens e da relação da parte com o todo. Trata-se, como
nos fala Hillman, não entender a imagem “simplesmente como revelação”
(HILLMAN, 1995, p. 37).
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203
Para isso, no primeiro capítulo discuti a construção histórica dos Bálcãs,
região de fronteira entre o Ocidente e Oriente que já foi dominada por três
projetos políticos diferentes: pelo Império Otomano, pelo Império Austro-
Húngaro, posteriormente foi parte do grande domínio do socialismo e espaço
para grandes disputas ao longo dos tempos, deflagrando, inclusive, a Primeira
Guerra Mundial. Nesse espaço, foram engendradas lutas entre as diferentes
nações que ali conviveram. No Estado socialista da Iugoslávia, essas etnias
foram aprisionadas sob a égide de um projeto posto pela ideologia do
comunismo, a fim de organizar, como uma utopia, esse Estado, composto por
tantas diferenças. Essas diferenças foram deflagradas quando o estado
socialista ruiu, bem como as instituições que o apoiavam, sendo mostradas ao
mundo por meio das imagens da mídia televisa, especialmente, construindo um
ideário de política do medo, baseada numa tentativa de explicação a partir de
um ódio ancestral que foi contido pelo Estado Iugoslavo (THOMAZ, 1997)
No Capítulo II desta Tese discuti sobre as identidades que estiveram sob
a égide deste Estado socialista. Não me detive numa perspectiva mais clássica
de descrição dos povos ali envolvidos, mas na crítica em relação às
identidades essencialistas. A partir da compreensão crítica sobre os
dinamismos operantes nas identidades, apoiado em Rúben (1986), Ivekovic
(1997) e Oliveira (1994), fiz uma releitura sobre as explicações sobre os
processos identitários e pude reformulá-las, considerando o conceito de cultura
proposto por Edgar Morin. Para ele, é através da cultura que o homem constrói
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
204
sua identidade, religando-se aos “seus antepassados, aos seus mortos, às
suas tradições” (MORIN, 1997, p. 165).
Depois de ter reconstruído um caminho acerca dos processos históricos
da região, realizei a análise de cinco produções fílmicas. A partir dessa
etnografia fílmica, fui pontuando temas e problemas e compreendendo-os a
partir dos símbolos. Pude realizar uma discussão acerca das questões
arquetípicas relacionadas aos símbolos sobre a territorialidade e ao imaginário
político, que estão presentes nas produções, considerando as posições
discutidas por Wunenburger (2003) e suas relações com as questões sobre o
sagrado na configuração e no ideário do Estado, quando ele propõe uma leitura
para além das teses contratualistas sobre as formações estatutárias.
Pude discutir também que as imagens do passado estão presentes em
diferentes momentos, nos processos de construção dos territórios e, a partir do
olhar dos personagens para suas cidades, seus rios, suas montanhas, seus
museus, sua vida, eles ressignificam essas imagens, que operam
sobremaneira em seu devir individual e coletivo, produzindo novos sentidos
acerca da realidade. Retomei o conceito de arquétipo desde a psicologia
junguiana para compreender que estas formas são invariantes e estão
presentes na psique (JUNG, 2000). Sendo assim, um arquétipo atua na
formação das imagens e na existência humana, não sendo as imagens
propriamente ditas, que são construídas por meio de símbolos (DURAND,
Identidade e imaginário no cinema contemporâneo: análise dos conflitos político-culturais nos Bálcãs Rafael Siqueira de Guimarães
205
2001a), mas que são parte importante dessas imagens. Procurei deter-me aos
símbolos que aparecem nas produções fílmicas, a fim de contextualizá-los e
analisá-los, a partir de uma hermenêutica de sentido.
Foi necessário também realizar, no quarto capítulo, uma discussão
acerca de quais questões envolvem uma produção de um filme. Não se pode
deixar de contextualizar as relações que a produção cinematográfica tem com
a técnica (AUMONT, 1995; EISENSTEIN, 2002) e com a indústria cultural
(MORIN, 2003; 2005, JAMESON, 2002; THOMPSON, 2002). Entretanto, ao
analisar também os fenômenos da globalização e da mídia no interior das
produções fílmicas, proponho compreender que o processo tem mão dupla.
Para chegar ao Ocidente, o autor da região deve utilizar uma linguagem que se
aproxime de uma abordagem mais ligada ao cinema comercial hollywoodano,
Entretanto, por ser também um esteta, e por ter ele vivido na região onde
aconteceram os conflitos e são postos em imagens fílmicas, cada autor, à sua
maneira, constrói um movimento dinâmico entre essa aproximação com o
cinema comercial e uma discussão mais profunda acerca do processo. Nesse
caminho, desvelam-se algumas questões importantes sobre as construções
identitárias, sobre a crueldade, sobre o sentimento desesperado de povos que
se vêem sem perspectiva, tendo sido negados seus direitos de liberdade,
submetendo-se à barbárie e fazendo uso dela, ao mesmo tempo. A crueldade,
como bem lembra Maffesoli (2000) é um dos produtos da mudança e é uma
das imagens dos filmes, mas parece que não seguem o sentido da política do
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medo colocado por Thomaz (1997). Os produtos de mudança desvelam a
crueldade recíproca entre eles e as relações que ruíram quando
desestruturam-se algumas (in) certezas da antiga Iugoslávia.
No quinto capítulo, realizei uma discussão acerca a condição humana,
refletindo sobre as questões que envolvem o destino humano (MAFFESOLI,
2000): as crises que o homem vive na contemporaneidade e a consciência
acerca dessas crises (MORIN & KERN, 1995). Procurei mostrar como, a partir
do imaginário, essas questões podem ser compreendidas (DURAND, 2001a).
Os conflitos étnico-religiosos dos Bálcãs são muito distantes de nós, já
que não os vivemos localmente, estando diretamente envolvidos nos diversos
lados desta guerra ou mesmo participando das Forças de Paz. Entretanto, fui
extremamente tocado pessoalmente por essas questões, a partir dessas
imagens. Essa angústia de que existia algo ocorrendo tão longe e tão perto,
que ainda não podia compreender teoricamente, foi o que me levou a este
trabalho de pesquisa. Quando o lugar se torna um arquétipo (MAFFESOLI,
2004), é o estrangeiro que existe em cada um de nós que aflora. Os percalços
da condição humana não são apenas objeto para os psicólogos, pois o
momento em que vivemos nos leva a repensar nossa existência, retomando
aquilo que foi enclausurado, durante tanto tempo. Esse lugar é, ao mesmo
tempo, um não-lugar (AUGÉ,1994), já que não é um lócus da antropologia
tradicional. Assim, ele “nunca existe sob uma forma pura; lugares se
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recompõem nele; relações se reconstituem nele; as ‘astúcias milenares’ da
‘invenção do cotidiano’ [...] [desenvolvem] suas estratégias” (AUGÉ, 1994, p.
74).
Nem sempre foi tranqüilo caminhar no conceber e estruturar esta Tese,
mas a filmografia realizada sobre essa história, decididamente, vai além dessa
história, une todos os homens. Nessa história vivida e sentida, o autor de
cinema (e sua equipe), por mais que não sejam totalmente autônomos em sua
produção, são capazes de relacionar e evidenciar, a partir de sua obra, as
questões que os afligem. E são questões que afligem a toda a humanidade,
estão profundamente relacionadas e memorizadas no inconsciente do autor,
quando ele dá alguma forma à sua arte, e ao modo como essa arte pode atingir
aos demais. Possibilita que elaboremos perdas, dividamos sentimentos,
operando também como uma catarse e uma forma de ação, uma maneira de
demonstrar a consciência da tragédia que eles vivem e que toda a sociedade
está por viver.
Assim, o destino humano alude à história da humanidade. A história não
é apenas dos Bálcãs, mas também é minha, diz respeito a todos nós. Alguns
desses autores de filmes representam algum tipo de esperança de uma
possibilidade que pode partir do Ocidente. Para outros, a esperança não é tão
evidente, mas de acordo com o trabalho que aqui realizei, posso concluir que,
mesmo que questões racionais estejam envolvidas quando se realiza um filme,
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208
operacionalizadas num roteiro, por exemplo, há questões de ordem mais
profunda operando no sentido de repensar, a partir da manifestação artística, o
mundo, a sociedade, o devir. Essas questões produzem uma redundância, pois
é “através do poder de repetição que o símbolo preenche indefinidamente a
sua inadequação fundamental” (DURAND, 1993, p. 13). Entretanto, ela é uma
redundância aperfeiçoante, como completa esse autor, pois ela realiza, numa
espiral, uma acumulação de aproximações.
O autor se transforma, nesta perspectiva, num ser privilegiado, no
sentido de que ele tem uma forma de elaboração, um insight que o liga às suas
questões mais profundas que o leva a transformar essas imagens que residem
em seu inconsciente em um material que pode ser dividido com os demais: um
filme. Mesmo através de um estudo específico, as questões como as que foram
introduzidas pelos autores, de onde partem, como elaboram/reelaboram o
mundo no qual esses autores/atores sociais vivem, como eles o interpretam,
propõem ou seguem caminhos para os relacionamentos humanos, mostram
quais são as suas expectativas sobre sua região e, portanto, falam sobre a
humanidade, sentimento que nos une a todos os homens.
Realizei esse percurso recuperando algumas veredas que
desembocaram na anti-história da anti-filosofia (BADIA, 1999, p.53-54). Como
destaca esse autor, o percurso teórico-metodológico aqui empregado baseou-
se na não-metricidade, ou seja, numa abordagem compreensiva; no não-
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causalismo-objetivo, fugindo da suposta objetividade científica, que se impôs à
ciência moderna; no não-agnosticismo, que retoma o pensamento gnóstico,
dando valor ao arquetípico, dando um papel fundamental à sua dominância, e o
não-dualismo, abarcando a dimensão simbólica no processo de produção de
conhecimento. Compreendo, assim, que os saberes que ficaram
marginalizados durante séculos de uma produção de conhecimento científico,
do interior dos cânones da Ciência, foram sendo construídos e devem ter
espaço na formação dos deltas dessa bacia semântica que está sendo
engendrada. Resultante a partir de uma crise, que me ative aqui aos
fenômenos localizados, mas que é global e é vivida, sentida, percebida,
fazendo transparecer as feridas psíquicas na condição humana, aludidas
miticamente.
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Anexo: Fichas técnicas dos filmes analisados
Informações retiradas do International Movie Database (http://imdb.com/)
Vukovar (Vukovar Poste Restante)
Direção: Boro Draskovic
Roteiro: Boro Draskovic/ Maja Draskovic
Ano de produção: 1994
Duração: 96 min./cor
Bela Aldeia, Bela Chama (Lepa sela lepo gore)
Direção: Srdjan Dragojevic
Roteiro: Srdjan Dragojevic/Vanja Bulic
Ano de produção: 1996
Duração: 115 min./cor
Beautiful People
Direção: Jasmin Dizdar
Roteiro: Jasmin Dizdar
Ano de produção: 1999
Duração: 107 min./cor
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Terra de Ninguém (No man´s land)
Direção: Danis Tanovic
Roteiro: Danis Tanovic
Ano de produção: 2001
Duração: 98 min./cor
Antes da chuva (Before the rain)
Direção: Milcho Manchevski
Roteiro: Milcho Manchevski
Ano de produção: 1994
Duração: 113 min./cor
Grbavica
Direção: Jasmila Zbanic
Roteiro: Jasmila Zbanic
Ano de produção: 2006
Duração: 90 min./cor