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O FIM DE UM POVO PARANAENSE Os últimos dos XETÁS 1/18 Os últimos dos Xetás Cinqüenta anos depois do primeiro encontro com os brancos, o último grupo indígena a ser contatado no Paraná está reduzido a oito indivíduos Cinco homens e três mulheres carregam a sina de serem os últimos de seu povo. Kuein, Tuca, Tikuein, Tiqüem, Rondon, Aãn, Ana Maria e Maria Rosa Tiguá são os sobreviventes de um grupo que, segundo estimativas de antropólogos, era formado por 450 indivíduos na época em que tiveram os primeiros contatos documentados com os brancos, em 6 de dezembro de 1954. Da cultura e dos hábitos que tornaram os xetás diferentes de qualquer outro grupo indígena do Sul do país, restaram só algumas lembranças. A língua é falada por apenas três pessoas. Os xetás podem ser considerados um povo genuinamente paranaense. Habitavam o Noroeste do estado, entre os rios Ivaí e Paraná. Na época do contato, já eram poucos. Estavam debilitados pela redução de sua área de domínio, ocupada pela agricultura cafeeira. “As disputas com outros povos, os conflitos internos e a fuga eterna dos brancos estavam fazendo a população xetá diminuir”, explica a antropóloga Carmen Lúcia da Silva, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná responsável por um projeto de reagrupamento dos sobreviventes. Embora não se possa atribuir diretamente o fim dos xetás ao contato com os brancos, uma breve cronologia do povo mostra que a relação foi, no mínimo, desagregadora. O primeiro encontro foi uma iniciativa dos índios, que procuraram a administração da Fazenda Santa Rosa, no município de Douradina, uma propriedade que se tornou ponto de referência para o estudo da etnia. Eles sabiam que uma aproximação era inevitável, e deram o primeiro passo para evitar confrontos. Era uma estratégia de sobrevivência, conforme relata o mais velho deles, Kuein. Pelo visto, não deu certo. Sete anos depois, expedições organizadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI, embrião da atual Funai) e pela Universidade do Paraná (hoje UFPR) não conseguiram localizar nenhum subgrupo xetá na floresta. O povo já não existia mais em seu estado original. A maioria havia morrido, por intoxicação alimentar, envenenamento, doenças e assassinatos. Os oito sobreviventes de hoje estão atualmente espalhados entre Santa Catarina, Paraná e São Paulo, vivendo em cidades ou em reservas indígenas de outras etnias. Casaram-se com não-xetás ou com brancos, o que faz com que seus descendentes não possam mais ser considerados xetás. Mas deram sorte de ter recebido o auxílio de indigenistas, que os protegeram. "Se continuassem naquelas condições, seria muito difícil que alguém da etnia estivesse vivo até hoje", diz o assessor do governo do estado para assuntos indígenas, Edívio Battistelli. Até hoje eles só se reuniram duas vezes, a primeira delas há nove anos. "Um dia eu descobri que tinha dois irmãos, que tinham esposas e que tinham filhos. Descobri que eu tinha sobrinhos e que havia mais gente do meu povo", lembra, emocionada, Ana Maria Tiguá. Desde então, alguns dos xetás alimentam o sonho de viverem juntos novamente – um devaneio que pode tornar-se realidade. O projeto para reagrupar os xetás está em andamento desde 2000 e foi entregue à Fundação Nacional do Índio (Funai) na semana passada. Carmen não fala sobre o relatório, mas a idéia é que os oito xetás e seus descendentes ocupem uma área de 6 mil alqueires, entre Douradina e Umuarama. O projeto ainda será discutido e depende da posse das terras, que não pertencem à União. O reagrupamento não é unanimidade entre os estudiosos da tribo.

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Os últimos dos Xetás Cinqüenta anos depois do primeiro encontro com os brancos, o último grupo indígena a ser contatado no Paraná está reduzido a oito indivíduos Cinco homens e três mulheres carregam a sina de serem os últimos de seu povo. Kuein, Tuca, Tikuein, Tiqüem, Rondon, Aãn, Ana Maria e Maria Rosa Tiguá são os sobreviventes de um grupo que, segundo estimativas de antropólogos, era formado por 450 indivíduos na época em que tiveram os primeiros contatos documentados com os brancos, em 6 de dezembro de 1954. Da cultura e dos hábitos que tornaram os xetás diferentes de qualquer outro grupo indígena do Sul do país, restaram só algumas lembranças. A língua é falada por apenas três pessoas. Os xetás podem ser considerados um povo genuinamente paranaense. Habitavam o Noroeste do estado, entre os rios Ivaí e Paraná. Na época do contato, já eram poucos. Estavam debilitados pela redução de sua área de domínio, ocupada pela agricultura cafeeira. “As disputas com outros povos, os conflitos internos e a fuga eterna dos brancos estavam fazendo a população xetá diminuir”, explica a antropóloga Carmen Lúcia da Silva, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná responsável por um projeto de reagrupamento dos sobreviventes. Embora não se possa atribuir diretamente o fim dos xetás ao contato com os brancos, uma breve cronologia do povo mostra que a relação foi, no mínimo, desagregadora. O primeiro encontro foi uma iniciativa dos índios, que procuraram a administração da Fazenda Santa Rosa, no município de Douradina, uma propriedade que se tornou ponto de referência para o estudo da etnia. Eles sabiam que uma aproximação era inevitável, e deram o primeiro passo para evitar confrontos. Era uma estratégia de sobrevivência, conforme relata o mais velho deles, Kuein. Pelo visto, não deu certo. Sete anos depois, expedições organizadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI, embrião da atual Funai) e pela Universidade do Paraná (hoje UFPR) não conseguiram localizar nenhum subgrupo xetá na floresta. O povo já não existia mais em seu estado original. A maioria havia morrido, por intoxicação alimentar, envenenamento, doenças e assassinatos. Os oito sobreviventes de hoje estão atualmente espalhados entre Santa Catarina, Paraná e São Paulo, vivendo em cidades ou em reservas indígenas de outras etnias. Casaram-se com não-xetás ou com brancos, o que faz com que seus descendentes não possam mais ser considerados xetás. Mas deram sorte de ter recebido o auxílio de indigenistas, que os protegeram. "Se continuassem naquelas condições, seria muito difícil que alguém da etnia estivesse vivo até hoje", diz o assessor do governo do estado para assuntos indígenas, Edívio Battistelli. Até hoje eles só se reuniram duas vezes, a primeira delas há nove anos. "Um dia eu descobri que tinha dois irmãos, que tinham esposas e que tinham filhos. Descobri que eu tinha sobrinhos e que havia mais gente do meu povo", lembra, emocionada, Ana Maria Tiguá. Desde então, alguns dos xetás alimentam o sonho de viverem juntos novamente – um devaneio que pode tornar-se realidade. O projeto para reagrupar os xetás está em andamento desde 2000 e foi entregue à Fundação Nacional do Índio (Funai) na semana passada. Carmen não fala sobre o relatório, mas a idéia é que os oito xetás e seus descendentes ocupem uma área de 6 mil alqueires, entre Douradina e Umuarama. O projeto ainda será discutido e depende da posse das terras, que não pertencem à União. O reagrupamento não é unanimidade entre os estudiosos da tribo.

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O indigenista João Rozzo de Menezes, que teve contato com os xetás nos anos 70 e criou dois deles, teme que não dê certo. "Reagrupar esses índios é dizimá-los outra vez. É jogá-los numa vida onde eles não vão se adaptar", opina. À espera de decisões que não podem tomar, os xetás levam sua vida. Em comum, eles têm um sentimento: o de que ainda são um povo. "Eu achava que era sozinha no mundo", diz Ana Maria. "Agora sei que não." Érica Busnardo e Guilherme Voitch http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444743 “A gente falava direto com Deus” Tikuein, mesmo sem ler ou escrever, é líder em uma reserva de guaranis e caingangues. Aos 53 anos, Tikuein Xetá, que os brancos chamam pelo nome de José Luciano da Silva, é um homem respeitado. No costume xetá, os grupos familiares eram centrados em uma figura patriarcal de liderança, papel que Tikuein exerce na reserva indígena de São Jerônimo da Serra, onde vive entre caingangues e guaranis. As casas de seus filhos e filhas, construídas próximas umas das outras, não estão assim por caso: ele e a mulher, Maria Conceição Pereira Martins, 59 anos, estão no centro da vida dos descendentes. "O comando dele e de dona Conceição é natural. Os filhos e filhas e suas esposas e maridos têm um apreço muito grande pelos dois", explica o pastor evangélico Reinaldo Neto, de 24 anos, que há cerca de três meses atua na reserva e acompanha o dia-a-dia do casal. Conceição converteu-se ao cristianismo e freqüenta os cultos da igreja Assembléia de Deus. O livro com fotos dos índios em seu estado original, levados pela equipe da Gazeta do Povo, atraem a curiosidade dos pequenos e despertam velhas lembranças no patriarca. Quando Tikuein conta histórias do tempo em que vivia no mato, os 38 netos o cercam. Ele não lê nem escreve, mas é um dos poucos sobreviventes que têm alguma memória de seu povo. Sabe, por exemplo, fazer os enormes arcos e as flechas de pontas trabalhadas que eram característicos dos xetás. Do pai, Mã, o xetá fala com orgulho. "Era um grande caçador. Nunca deixou faltar comida para nós", diz. Depois do contato com os brancos, Tikuein morou com o pai na fazenda Santa Rosa, onde os xetás fizeram contato e chegaram a viver junto aos brancos. Também habitaram as reservas de Pinhalzinho (em Pinhão) e Laranjinha (em Santa Amélia). "Muitos xetás se separaram de seus pais", conta. "Eu vivi com o meu até o final da vida. Os brancos tentaram, mas não conseguiram me separar dele." Mã morreu, vítima de tuberculose, em 1973, quando Tikuein tinha 20 anos. Tikuein teve ainda um irmão, Tikuein Gaméi, conhecido entre os brancos como Geraldo Brasil, e uma irmã, da qual não teve mais notícias. Assim como o pai, Geraldo Brasil morreu de tuberculose, no hospital regional da Lapa. Foi enterrado como indigente. Sem os irmãos de sangue, Tikuein fez irmãos de luta. Como os primos Kuen e Tucá, de quem fala com carinho e lembra com alegria das conversas na língua nativa. E o guarani Nélson Augustinho Camargo, de 72 anos. Os dois, ainda meninos, foram criados juntos em Pinhalzinho. Foi lá que Tikuein conheceu Conceição, sobrinha de seu Nélson. Meses atrás, conta Nélson, Tikuein pediu que o guarani viesse morar com eles. "Ele e a Conceição não me deixam fazer nada. Me tratam bem, de verdade."

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A fala de Tikuein oculta, propositalmente talvez, episódios carregados de mágoa, dor e fúria. Entre eles estão a separação do irmão e as tentativas de seu pai de recuperá-lo e um desentendimento com a esposa, que terminou com a morte de um índio guarani com a qual Conceição ameaçava fugir. Sobre isso Tikuein não fala. Prefere lembrar do sertão cheio de mato, bichos para comer e rios para tomar banho, uma época sem brancos. "Um tempo em que a gente falava direto com Deus", resume Tikuein. http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444744

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O passado é uma fotografia na parede A foto em preto e branco, emoldurada e pendurada na parede ao lado do pôster do Santos Futebol Clube, é a única ligação de Rondon Xetá com seu passado. A imagem mostra um menino nu com colares no pescoço, aparentando uns dois anos de idade. Do pai, Eirakã, aparecem somente as pernas e as mãos. A mãe, A´ruay, é uma vaga recordação. Ele não se lembra da idade, só sabe que é o mais novo dos oito remanescentes xetás conhecidos e o único que não veio "do mato". Rondon sabe que teve um nome do mato, como eles dizem, mas não sabe qual. O nome do sertanista que desbravou as regiões selvagens e pacificou índios do Sul ao Norte do país lhe foi dado por Dival José Souza, um indigenista hoje aposentado. O sobrenome Xetá foi o padrinho, João Rozzo de Menezes, quem escolheu quando o registrou em um cartório de Ortigueira (região Central do estado). Para estipular uma data de nascimento (3 de abril de 1965), Menezes se baseou na idade do filho de um funcionário. "Eles tinham mais ou menos o mesmo tamanho e, como não tínhamos mais nenhuma informação sobre os meninos (Rondon e seu irmão Tiqüem), arrisquei que eles deviam ter a mesma idade", relembra Menezes. Hoje Rondon vive no posto indígena de Xapecozinho, em Bom Jesus (SC). É casado há 19 anos com a caingangue Librantina Belino Xetá e tem duas filhas, a guarani adotada Juliana, de 16 anos, e Rafaela,

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de 14 anos. Mora com certo conforto em uma casa de cinco cômodos, duas televisões, aparelho de som, microondas e freezer. É conhecido por Xetá pelos 5,8 mil índios caingangues que moram na aldeia e a quem presta serviço como auxiliar de enfermagem. Na aldeia, quem o vê andando a passos tranqüilos, sempre com boné e óculos escuros, sabe alguma coisa da história xetá. "Foi uma tristeza que fizeram com o povo dele", afirma Sebastião Mendes, um dos pacientes visitados numa mnhã de fevereiro. Muitos demoram a acreditar que hoje somente oito pessoas constituem uma raça. Outros tentam encontrar respostas. Como o cacique de Xapecozinho, Nelson Belino, chegam a uma conclusão: "Sobreviveram por teimosia". (EB) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444745 À beira da represa, Ana Maria vive com saudades da família que pouco conheceu Ana Maria Tiguá, 49 anos, passa a maior parte de seu dia só. O marido, Luís Carlos Ferreira, 55, faz serviços de limpeza e jardinagem nas chácaras próximas à represa Billings, em São Bernardo do Campo. O filho Paulo Sérgio Ferreira, 26 anos, faz "bicos" e roda a cidade tentando uma vaga no complicado mercado de trabalho da grande São Paulo. Como uma dos milhões de donas-de-casa do Brasil, Ana sabe que ao fim da tarde, terá de volta a companhia do marido e do filho. O retorno pode ser com a tristeza de Paulo diante da falta de emprego no caos urbano de São Paulo, ou com os problemas do marido pelo salário curto. Não importa. A vida de Ana foi construída com os dois. Na sua história não houve xetás. Separada dos pais ainda menina, Ana foi criada por Nilda Lustosa de Freitas, filha de Antônio Lustosa de Freitas, o dono da Fazenda Santa Rosa, que abrigou os xetás logo após o contato com os brancos. Por toda a vida, Tiguá pensou que seu povo havia morrido. Seus únicos contatos com xetás foram com a sobrinha Maria Rosa Tiguá (da qual Ana acreditava ser prima) e o amigo Geraldo (irmão de Tikuein), com quem brincava na Santa Rosa. Ana soube que não estava sozinha graças ao trabalho de Carmem Lúcia, a antropóloga responsável pelo projeto de reagrupamento dos xetás. "Ela ficou eufórica, chorou de alegria quando soube", lembra o marido Luís Carlos. Depois da descoberta, o desejo dela, do marido e dos filhos é voltar ao Paraná, para a terra dos xetás. "Se a gente ficar sabendo em um dia, no outro a gente chega lá", conta. Da família Lustosa de Freitas, que a criou, Tiguá é reservada ao falar. "Me trataram como filha, mas só me colocaram na escola depois de crescida. Aí não aprendi", explica. Mas Ana não sente raiva, só tristeza e saudade quando vê a fotografia do pai, Eirakã, ainda no mato. (GV) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444746

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O soldado índio que cozinha bem quer voltar ao Noroeste Quando o cozinheiro do Centro de Suprimentos e Manutenção (CSM) da Polícia Militar do Paraná se aposentou, no ano passado, os policiais lotados no local não hesitaram em apontar um substituto: o soldado Tiqüem Xetá, 44 anos. Naquela época, ele trabalhava na bomba de combustível dos carros de polícia. “Não foi um pedido do Tiqüem, mas de alguns soldados que já tinha experimentado a comida dele”, explica o coronel João Antônio Pazinato, comandante do CSM. Desde então, Tiqüem vive sua rotina de preparar o café e o almoço e ajudar nos serviços gerais. Enquanto isso, ele espera. A expectativa de Tiqüem é com o reagrupamento do seu povo. Ele quer estar junto daqueles que o chamavam de Da'hay (uma espécie de palmeira). Segundo os registros do documentarista Vladimir Kózak, esse é o seu nome original. Tiqüem – ou Tikuein, como o índio que vive em São Jerônimo da Serra e não tem parentesco com ele – significa

menino no idioma xetá, e acabou sendo o nome de registro dos pequenos depois do contato com os brancos. Tiqüem viveu a cultura xetá até os seis anos, enquanto viveu com seu pai e depois com seu tio, Kuen. Mais tarde, acompanhou Tuca, Kuen, Tikuein e a antropóloga Carmem Silva na identificação das terras na região de Umuarama. E foi ele quem redigiu uma carta pedindo ao Conselho Indígena do estado apoio para o reagrupamento xetá. "Confesso que ainda é meu sonho e interesse de ver o nosso povo vivendo junto ainda em vida", diz o documento. Pessoalmente, Tiqüem diz que a terra pode dar aos xetás a chance de viver com dignidade. “Se me derem terra eu me viro. Fiz curso técnico em agronomia, sei preparar uma plantação”, explica. Tiqüem é casdo com Ivone Ribeiro dos Santos Xetá, mulher branca que mora em Nova Tebas com os três filhos do casal. Se a terra xetá der certo, Tiqüem não deve compartilhar o momento com a esposa. “Acho que ela vai preferir viver junto dos parentes dela, em Guarapuava”, diz. O soldado Tiqüem já fez sua escolha: “Não tem problema. Viajo para Guarapuava nos fins de semana”. (GV) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444748

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Pesquisadores procuram por xetás perdidos Documentos dos anos 50 já falavam de índios levados em caminhões, sem destino conhecido Embora todos os documentos oficiais sobre os xetás falem em apenas oito remanescentes, pesquisadores trabalham com a hipótese de haver ainda um grupo de índios “perdidos” vivendo em cidades, misturados aos brancos, sem contato com outros de seu grupo nem com as autoridades ligadas à causa indígena. Esses xetás isolados podem não ter a menor idéia de sua origem ou, talvez, pensem que seu povo já está extinto. A maneira como se deu a incorporação dos xetás às comunidades brancas faz com que essas hipóteses façam muto sentido. Seus primeiros contatos não foram intermediados por indigenistas, mas vinculados diretamente a agricultores e colonizadores do Noroeste do Paraná. Menos de quatro anos após o primeiro contato, em 1958, um ofício encaminhado pelo antropólogo José Loureiro Fernandes, da Universidade do Paraná, dá uma amostra de como isso acontecia. Pelo documento, ele informava ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que caminhões da Companhia Brasileira de Colonização e Imigração (Cobrimco), empresa que atuava com loteamento de terras na Serra dos Dourados, teriam sido avistados, pelo menos duas vezes, conduzindo índios para fora de sua região. “Qual o destino?”, indagava. “Nada se sabe. Ninguém ao que parece, tentou averiguar.” Nas histórias dos sobreviventes, dos sertanistas e antropólogos que estudaram e acompanharam o povo, são várias as menções a filhos levados dos pais e de famílias xetás separadas propositalmente. Em muitos casos, tratava-se de gente bem intencionada. “Os brancos encontravam os pequenos no mato e achavam que estavam perdidos. Mas, como os próprios sobreviventes afirmam, índio não se

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perde. Havia também quem tirasse as crianças dos braços do pai, sob o pretexto de estar civilizando os xetás”, diz a antropóloga Carmen Lúcia da Silva, pesquisadora da UFPR especialista no povo xetá. Na outra ponta, estão posseiros e funcionários ligados às companhias colonizadoras da região que atuavam com a intenção de desestruturar os xetás, como consta no relato de Loureiro. Assim, os estudiosos nunca tiveram como mapear com certeza o destino de todos os xetás. Em seus levantamentos, Carmem trabalha com a idéia de que existam, pelo menos, mais quatro xetás. Dois seriam irmãos, e as pistas indicam que eles poderiam estar trabalhando em fazendas na região de Maringá e no estado de Goiás. Um outro menino, provavelmente primo de Tuca, foi tirado da mãe por um frade da Ordem dos Capuchinhos em 1956, nas imediações da fazenda Santa Rosa. O menino recebeu o nome de Natal e foi colocado em um colégio de freiras em Cruzeiro do Oeste, onde ficou até 1960. Há registros ainda de uma menina, que recebeu o nome de Thiara Marques e foi levada por brancos para Campo Mourão. De acordo com os dados de Carmem, Thiara teria sido estuprada pelo filho do casal que a adotou e então foi entregue à dona de um prostíbulo da região. Carmem ainda tem registros de uma passagem dela pela penitenciária Feminina de Piraquara, por crime de homicídio, em 1979. Thiara teria saído da penitenciária em 1983 e depois disso não há mais informações sobre ela. O atual número um a encabeçar a lista de prováveis xetás é Osmar Bispo dos Santos, de trinta e poucos anos, conforme ele mesmo diz. Osmar vive há dez anos na reserva ecológica do Cambuí, perto da divisa entre Curitiba e São José dos Pinhais. Ele lembra pouca coisa de sua infância. Sua primeira memória é a de um menino tendo os pés lavados em algum lugar que lembra a rodoviária de uma cidade pequena. O menino é colocado num ônibus por uma mulher, provavelmente sua mãe. No trajeto, sente-se mal e é repreendido pelo motorista. Passa por várias cidades e acaba descendo em Curitiba, onde é recebido por policiais e levado a um orfanato. A história de Osmar e sua aparência física chamaram a atenção de Indiamara e Indioara Luís Paraná, as filhas do sobrevivente Tuca Xetá que moram no Cambuí, e também de Edívio Batisteli, assessor especial para assuntos indígenas do governo do Paraná. Osmar deve ser apresentado a Tuca e à pesquisadora Carmen nas próximas semanas, mas, por enquanto evita falar sobre o assunto. “Quando estou na rua, trabalhando, dizem: ô índio faz isso, pega isso para mim. Quando tento prestar um vestibular aí com as cotas, dizem que não sou índio”, queixa-se Osmar. Com o segundo grau cursado em São José dos Pinhais, ele pensa em estudar música ou produção sonora e faz bicos fazendo e vendendo velas e trabalhando com coleta de lixo no litoral paranaense. Guilherme Voitch http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444985

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“Se ficasse, teria morrido com eles” Tuca conta como o pai implorou que ficasse na floresta com ele, nos anos 60. Em meio a risadas, Tucanambá José Paraná, 58 anos, conta como foi encontrado pelos brancos. “Estava catando fruta na árvore quando eles apareceram. Uns amigos que estavam em baixo apontaram pra mim e se mandaram. Daí eu fiquei sozinho, desci da árvore e acompanhei eles.” Começou então um tempo em que Tuca, como é chamado, deixou de ser um índio como os outros e transformou-se em uma espécie de mediador entre as duas culturas – um papel que dura até hoje. Se, no passado, ele guiava expedições pela Serra dos Dourados atrás de seu povo, hoje ele conduz os xetás remanescentes na reivindicação de seus direitos. O título de porta-voz dos xetás não partiu dele. Foi um caminho inevitável, resultado de seu bom relacionamento com os brancos e da liderança que exerce no grupo. Por ora, um de seus principais objetivos é retornar às terras do Noroeste do estado. Ele conhece a burocracia que cerca o processo sobre o reagrupamento e explica para os companheiros, quantas vezes for preciso, cada passo da tramitação. Sabe que não poderá voltar a viver da mesma forma que viveram seus antepassados, mas a possibilidade de ser enterrado no seu território alimenta diariamente sua esperança de lutar. O tembetá não está mais na boca, mas o furo no lábio o lembra constantemente de que está faltando algo. Depois de tanto tempo, ele ainda manipula a cera da abelha e a transforma no möu, pequenas esculturas de bichos que as crianças xetás usavam para brincar. O idioma oficial usado na sua casa, na aldeia Rio das Cobras, em Novas Laranjeiras (região Central do estado) é o português, mas ele não hesita em demonstrar com o primo Kuein um diálogo em xetá. Mesmo com a falta de prática, as palavras e expressões na língua mãe, ao que parece, ainda saem com facilidade da mente. A memória ativa e coesa de Tuca faz com que ele seja profundamente respeitado e admirado por indigenistas e estudiosos. Não à toa, as histórias de seus contemporâneos se ligam entre si por meio dele, o que o torna personagem central da reconstituição da história recente dos xetás. Ele se recorda da vida logo após o contato com os brancos. Por um bom tempo, Tuca se sentiu acuado num mundo que não era o dele, sem entender a língua falada pelos que os que o cercavam e sem poder comer o alimento que eles comiam. Assim que chegou em Curitiba, ele foi despido de seus símbolos, colares e brincos que adornavam o pescoço e orelhas. Naquele momento, o único alento foi reencontrar o primo Kaiuá, que tinha sido capturado um tempo antes que ele. “Fiquei feliz da vida quando vi o Kaiuá porque daí eu não era mais sozinho”. Com o tempo, Tuca foi aprendendo o português, se acostumando a dormir em camas e já não estranhava mais o sabor salgado da comida. Só retornaria ao local de onde foi tirado dez anos depois, na década de 60, na condição de intérprete de uma expedição que tentaria contato com os xetás. Já usava roupas e não trazia consigo seus adornos corporais. Foi nessa oportunidade que também viu o pai pela última vez. Enquanto tentava convencê-lo a seguir com o grupo de expedição, o pai implorava-lhe que voltasse para o mato. “Não podia mais ficar. Se ficasse, teria morrido com eles também”, diz. Foram três expedições.

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A cada uma, ele constatava a diminuição da população de sua etnia. “Acompanhei todas as expedições, mas não conseguir poupar minha gente do fim”, lamenta Tuca. Érica Busnardo http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444987 Futuro em grupo é incerto para descendentes Nem todos os filhos e netos dos xetás admitem a possibilidade de deixar sua vida atual e mudar-se para uma nova reserva É nos cerca de 80 descendentes xetás, divididos em 20 famílias, que reside a esperança de continuidade do povo da Serra dos Dourados. A manutenção da língua, o restabelecimento dos costumes e da cultura depende da lição dos oito índios xetás do mato, especialmente de Kuen, Tuca e Tikuein. Só haverá futuro, porém, quando os filhos de casamentos interétnicos (como os especialistas se referem aos filhos dos xetás com guaranis, caigangues, brancos e negros) deixarem de ser meio xetá, ou apenas filhos de pai ou de mãe xetá. “Sou xetá”, diz Indioara Luís Paraná, 33 anos, filha mais velha de Tuca, que mora na reserva ecológica do Cambuí, em Curitiba, mostrando a dose de orgulho necessária para o sucesso do reagrupamento. Indioara, que, junto da irmã Indiamara, 31 anos, se classifica como uma “fã” do pai, é representante de uma corrente que engloba a maioria dos descendentes xetás. A admiração das duas, a liderança de Tikuein junto aos sete filhos, a busca de uma vida melhor de Paulo Sérgio, filho da tiguá Ana Maria, e a curiosidade guerreira de Indianara, filha da tiguá Maria Rosa são indícios de que o sonho do povo xetá pode obter sucesso. O reagrupamento, porém, não está nos planos de uma outra parte dos xetás. Rafaela Belino Xetá, filha de Rondon, tem 14 anos e leva uma vida como qualquer menina de sua idade, na aldeia de Xapecozinho, em Bom Jesus (SC). Sente-se segura em sua comunidade, tem amigas e suas referências no local onde vive. É categórica ao afirmar que, se tivesse opção, não sairia de lá. Assim como ela, sua irmã Juliana, de 16 anos, uma guarani adotada por Rondon ainda bebê, também não pensa em mudar-se. Juliana termina este ano o segundo grau e pensa em fazer uma faculdade. Em Xapecozinho ela sabe o que fazer, mas em terras que ela conhece somente por histórias lhe restam só incertezas. A história é a mesma com os filhos de Aãn. Eles não pensam em estudar, mas estão estabilizados na aldeia de Mangueirinha, em Turvo, onde vivem. Os filhos Sebastião e Arican são casados e têm filhos. Dizem respeitar uma possível mudança da mãe, mas não falam em acompanhá-la. (GV/EB) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444988 A procura infinita de Kuein por companhia e felicidade Aos 66 anos, o mais velho dos sobreviventes ainda pensa em casar e morar com a família nas suas antigas terras Com prováveis 66 anos de idade, Kuein Nhaguakã Xetá, é o mais velho da etnia e ainda alimenta dois sonhos na vida. O primeiro é voltar a conviver com seu povo em seu território tradicional, na Serra dos Dourados, perto de Umuarama. O segundo é encontrar uma companheira – Kuein é o único entre os oito remanescentes xetás que permanece solteiro e não teve filhos.

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Difícil entender por que as mulheres fugiram dele. Kuein é uma daquelas pessoas que despertam sensação de felicidade. A primeira impressão que fica no seu interlocutor é de que todos os problemas pelo qual passou ao longo dos anos são pequenos diante da capacidade de superação desse grande homem de aproximadamente 1,50 m de altura. Para o indigenista João Rozzo de Menezes, que conviveu com ele, dos oito xetás ainda vivos Kuein foi quem mais sofreu. Enquanto uns deixaram a aldeia ainda crianças, Kuein deixou sua comunidade aos 16 anos de idade. Sua adaptação ao novo mundo foi, por isso, mais traumática. Apesar de tudo, Kuein

parece ser sempre feliz. Anda ligeiro e fala ainda mais ligeiro, e acaba por se perder no tempo de suas memórias. Numa hora ainda está no mato, criança com os pais, noutra está no ritual onde teve os lábios perfurados, entre os seis e os sete anos. Lembra, rindo, dos aviões que via passando no céu, quando ainda vivia na floresta. “Morria de medo. A gente pensava que era um besouro grande e que ia nos engolir. Por isso a gente se escondia no mato”, conta. Do pai ouviu muitas histórias sobre os temidos brancos, que um dia iriam invadir suas terras e deixá-los sem nada. Ele também sentia medo disso. Kuein foi um dos seis xetás que procuraram o contato branco, em 1954, na fazenda Santa Rosa. “Eu me lembro de estar vestido com meus brincos de penas, tanga, tembetá na boca. Me tomaram tudo, fiquei sem nada da minha gente”, descreveu ele em um depoimento para a antropóloga Carmen Lúcia da Silva. Desde então, andou de aldeia em aldeia, entre o Paraná e o Rio Grande do Sul, até se estabelecer há aproximadamente dez anos na reserva Rio das Cobras, em Novas Laranjeiras (região central do estado), onde mora com o primo Tuca. “Sempre procurei um lugar onde me acostumasse, estava difícil porque todos da minha gente tinham morrido”, diz.

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Apesar de mais velho, Kuein tem pouco controle sobre sua vida. É Tuca, cerca de dez anos mais novo, quem toma as decisões da casa. Kuein não conversa com estranhos sem que Tuca esteja por perto. Aposentado pelo Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural), recebe R$ 260,00, mas não sabe disso. É o Tuca quem usa o dinheiro, veste e alimenta Kuein. A perspectiva do reagrupamento dos xetás torna Kuein muito mais próximo de seu primeiro sonho. Já o segundo, o de encontrar uma companheira, parece ser uma procura infinita. Casar e ter filhos, como outros xetás fizeram, é para ele voltar no tempo e reencontrar a moça que lhe foi prometida ainda na adolescência. Ao contrário dele, a moça, cujo rosto ele ainda guarda na memória, não sobreviveu ao destino sombrio dos xetás. (EB) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444989 O sonho dourado dos xetás

Indigenistas temem uma longa batalha jurídica para estabelecer uma reserva indígena para o grupo, em sua terra de origem Plantações de cana-de-açúcar,

fazendas de gado, áreas de reflorestamento

de pínus e pequenas

propriedades. Essa é a paisagem atual entre Ivaté e

Douradina (Noroeste do Paraná), nas terras onde nasceram Kuein, Tuca, Tikuein, Aãn, Tiqüem, Maria Rosa e

Ana Maria e onde os xetás foram um povo.

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Para reagrupar os sobreviventes e seus filhos e netos na região onde viviam os xetás há cerca de cinqüenta anos, a Fundação Nacional do Índio (Funai) terá de travar uma longa negociação com os atuais proprietários. O projeto de reagrupamento, de autoria da antropóloga Carmen Lúcia já chegou a Funai, mas o caminho a ser percorrido promete ser espinhoso. “Se a Funai aceitar a proposta, abre-se o período para o contraditório, onde todos que se sentirem prejudicados pelo projeto podem reclamar”, explica Edívio Batistelli, assessor especial para assuntos indígenas do estado do Paraná. Os técnicos da Funai ainda nem deram seu parecer sobre o relatório, mas o trabalho de Carmen já é motivo de tensão. A simples menção ao caso já faz as linhas telefônicas da Funai de Guarapuava, que dá suporte ao grupo de trabalho, tocarem diariamente. Entre os atuais donos da terra estão bancos, usinas de cana, juízes, grandes e pequenos fazendeiros, diz Carmen, que faz questão de não tratar os proprietários como vilões da história. “Eles só têm de entender que os xetás não são um inimigo. Os índios, assim como boa parte deles, foram vítimas. A solução para eles é procurar o estado, que tem de repará-los.” Para a batalha jurídica que pode ser criada, os xetás e aqueles que assumem sua causa contam com dois argumentos: a Constituição Federal, que garante e regulamenta a posse de terra para os povos indígenas, e a memória do grupo. “Eles não vão apontar uma terra que não é deles. Quem viveu lá e lembra dessa época, como Kuein e Tuca, vai dizer exatamente onde os xetás habitavam”, explica o indianista João Rozzo de Menezes, que chegou a integrar o grupo de estudo de reagrupamento da terra xetá mas se afastou do projeto. João é contrário à tese, mas defende uma indenização do estado para os sobreviventes xetás. “Há muito pouco tempo eu também estava descrente que esse reagrupamento desse certo. Hoje estou plenamente convicto de que é possível”, opina Batistelli. Em seu favor, os xetás contam com um precedente. Recentemente, os xavantes conseguiram delimitar sua terra na Região Centro-Oeste do país, depois de dez anos de batalhas jurídicas. Sem papéis ou documentos, os xavantes conseguiram sua terra pela memória. Ao que parece é o suficiente. Kuein por exemplo, mesmo longe, demonstra em seus relatos uma riqueza de detalhes quando lembra da época em que os xetás habitavam a serra. “Em uma das caminhadas que tivemos na região, não estávamos conseguindo encontrar um pequeno riacho, indicado por um mapa cartográfico. O Kuein colocou a mão na cintura, olhou bem e foi nos levando, direto, até o riacho”, conta Carmen. A memória viva dos sobreviventes já foi motivo de sofrimento para os mesmos. Em um dos primeiros retornos à região, Carmen lembra da tristeza de Kuein, Tuca e de Tikuien. “Eles choravam, reclamavam na língua, dizendo que o branco tinha comido tudo: índio, bicho, mato”. A tristeza dos índios tem razão de ser. A Serra dos Dourados não é mais fonte inesgotável de tucanos, macacos, antas e até cobras, que faziam parte da dieta do grupo. Nas florestas não se encontram as palmeiras jerivá e macaúba, nem as bananas de macaco também utilizadas para a alimentação. Para viver, os xetás terão de plantar. Dos sobreviventes, porém, apenas Tikuein e os filhos trabalham com agricultura – isso embora o soldado Tiqüem tenha feito um curso de técnico agrícola. “O Tikuien, de São Jerônimo, é o único que tem condições de se dar bem com a terra”, confirma o indianista João Rozzo de Menezes. O reagrupamento é sem dúvida, um desafio. Mas é a única solução para evitar o fim de um povo, a extinção de uma cultura única.

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O escritor e intelectual Caio Prado Júnior escreveu que o índio foi o problema mais complexo que a colonização teve que enfrentar. Referia-se a resistência cultural e até física com que os povos indígenas lutaram contra o processo de aculturação e desestruturação promovido pelos colonizadores. Os sobreviventes xetás, continuam de certo modo sendo um “problema” para a sociedade dos brancos. “O branco nos tirou da terra e nunca nos ajudou. Agora precisamos dessa ajuda. Queremos estar juntos no nosso lugar”, diz Tikuein. Ele quer voltar a viver na Serra dos Dourados. Os xetás querem voltar a ser um povo. Guilherme Voitch e Érica Busnardo http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=445222 Pesquisa pode levar a dicionário Uma boa notícia pode ser decisiva para a continuidade da cultura do povo xetá. A língua deve finalmente ganhar uma transcrição fonética apurada. O trabalho está sendo retomado pelo lingüista e pesquisador Aryon Rodrigues, da Universidade de Brasília (UnB), e deve dar origem a um dicionário xetá. Aryon participou das expedições de estudo dos xetás entre 1960 e 1962, com o documentarista Vladimir Kózak. O professor foi então transferido da Universidade do Paraná (atual UFPR) para a UnB. Aryon retornou ainda à Serra dos Dourados em 1967, onde fez mais algumas gravações com Arikã, um dos índios adultos vivos na época, hoje já morto. O trabalho se perdeu com o tempo e a movimentação política da época. “O período militar complicou tudo”, explica. O lingüista publicou ainda uma análise da língua xetá em 1976, na primeira edição do caderno de estudos lingüísticos da Unicamp. Depois disso disso, as gravações da língua xetá ficaram de lado. O trabalho só foi retomado depois do contato com Carmen Lúcia, a antropóloga responsável pelo projeto de reagrupamento. Aryon está agora trabalhando com um bolsista da UnB e deve receber a visita de um dos oito sobreviventes. O pesquisador da UnB diz que a língua do povo da Serra dos Dourados guarda várias semelhanças com os vizinhos paranaenses guaranis. “Eles também não marcam o plural e não distingüem feminino de masculino, mas há características e expressões que tornam a língua própria”, explica. Se o estudo der certo, o próximo passo é formar professores bilíngües, diz Edívio Batistelli, assessor especial para assuntos indígenas do governo Paraná. “Reagrupados e com alguém que ensine, as crianças aprenderiam a língua”, diz. “Manter a língua é o primeiro passo para que eles continuem sendo um povo”, diz Carmen. (GV) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=445223 Maria Rosa, perto do horror dos brancos Esquecida na terra que um dia foi dos xetás, a tiguá sobrevive com a ajuda da filha

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Maria Rosa Tiguá do Brasil, 54 anos, usa com orgulho a camiseta que lembra a inauguração do Bosque dos Xetás, um memorial à sua etnia erguido em Umurama. “Todo mundo vive pedindo uma dessas”, diz a única xetá que ainda vive na terra outrora habitada por seu povo. Tiguá – palavra que, no idioma do grupo, significa “menina” – queixa-se das más condições do bosque. O pequeno auditório para palestras e encontros no parque tem o teto quebrado e móveis amontoados em um canto. As paredes estão riscadas e o chão há muito não recebe uma faxina. Tiguá explica que a prefeitura está sem dinheiro. “Os 200 reais que eu recebia de ajuda para cuidar do lugar estão vindo com atraso. Também não estou vendendo mais meu crochê no bosque porque não me pagam mais os fios”, diz Maria – que, com a ajuda da filha Indianara, 19 anos, vai tentar dar entrada na aposentadoria pelo Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). É com o auxílio de Indianara, que vende CDs no centro de Umuarama, que a Tiguá consegue sobreviver. Avó dedicada, Maria passa as tardes cuidando dos netos William, de cinco anos, e Larissa, de 3 meses, em uma casa de pouco mais de cinqüenta metros quadrados em um bairro humilde de Umuarama, o Jardim Arco-Íris. Tiguá não estudou e nunca teve registro de trabalho em carteira. Sua vida foi construída junto a seu padrinho, Antônio Lustosa de Freitas, o dono da fazenda Santa Rosa, que teve o primeiro encontro com os xetás. Maria teria sido encontrada perdida no mato por Antônio. Segundo os outros xetás, os pais da menina ainda tentaram resgatá-la, sem sucesso. Entre as duas versões está a xetá que prefere não fazer escolhas. “Não lembro desse tempo”, explica. As recordações de Tiguá começam pelo difícil período de adaptação à nova vida. “Eu me lembro que não sabia falar o português, e aquela gente também não me entendia. Eu não queria ficar ali, mas não sabia como dizer... deixei de falar. Dona Carolina (esposa de Antônio Lustosa de Freitas) disse que eu passei um ano sem falar com ninguém, como se fosse muda “, diz a Tiguá em depoimento a antropóloga Carmen Silva, autora do projeto de reagrupamento dos xetás. Um dia, a menina índia voltou a falar em português. Sem mágoas, Tiguá foi fiel a seu Antônio, até o final da vida. “Lembro dela vestindo meu pai, doente, nos seus últimos dias. A Tiguá sempre teve um carinho muito grande por ele e ele por ela “, conta Cleuracy Aparecida Gil, irmã de criação de Maria. Tiguá é econômica nas palavras. Sua voz de criança oculta a tristeza, a raiva. É Indianara quem fala sobre uma irmã perdida. Tiguá só se explica depois do anúncio da filha. A gravidez veio quando a xetá trabalhava como doméstica para uma família no Mato Grosso do Sul. O pai foi o filho adotivo do casal de patrões. “A minha patroa, avó da criança, disse que eu não podia ali ficar com a Indianara e o nenê. Eu não tinha como ir embora, estava longe, sem dinheiro.” “Obrigaram ela a dar a menina”, explica Indianara. Maria nunca mais viu a criança. A filha foi chamada de Tânia e entregue a um casal de amigos dos patrões. Tiguá esqueceu a dor seu seu povo, mas viveu o horror da vida dos brancos. (GV) http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=445224

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Produção do material O fim de um povo paranaense é uma série de matérias produzidas pelo Núcleo de Reportagens Especiais da Gazeta do Povo. Reportagem – Érica Busnardo e Guilherme Voitch Fotos – Hedeson Alves e Henry Milléo Edição – Franco Iacomini Diagramação – Ricardo Humberto Infografia – Lyn Jannuzzi Ilustrações – Gilberto Yamamoto http://tudoparana.globo.com/site.phtml?url=gazetadopovo/brasil/conteudo.phtml?id=444749