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INSTITUIÇÃO POLÍTICA E TECNOCRACIA (*) Ivan Luz ( O fascínio que exercemos problemas teóricos da História, seu desenvolvimento, seu contínuo aperfeiçoamento, devem-se refletir, como resultado do aprimoramento do instrumental de pesquisa e do enriquecimento da especulação filosófica, no estudo da história factual e da metodologia do ensino. Na verdade, foram tais os erros acumulados ao longo de tempo longo demais no que toca ao tratamento didático da matéria que um desinteresse progressivamente maior foi atingindo a área de estudo sistemático, em todos os níveis, até ao ponto de caracterizar um desprezo, quase ofensivo, para com os estudiosos e professores de história. O seu campo ficou, assim, considerado como uma espécie de refúgio para onde corriam os frustrados de outras áreas, "os que não deram para outra coisa"... Bastaria, segundo os críticos menos mordazes uma memória relativamente boa para a repetição ronceira e rotineira dos relatos sucessivamente reeditados e ali estava cumprida a exigência única para um bom desempenho no magistério... Em certo grau, muito concorreram para isso os próprios estudiosos da história, acomodados em seu canto de sombra, semi- inertes no desconsolo duma completa falta de estímulo, sem possibilidade de pesquisa, desvalidos de elementos de informação, _enfim, sem um mínimo que os habilitasse a promover uma renovação dos estudos históricos. Do outro lado certos exageros da educação pragmática dirigida para o êxito, segundo certos modelos e inspirações identificados pela análise weberiana, conduziram, por vias pouco transitáveis, à convicção de que os estudos históricos pertenceriam às províncias do humanismo retórico, inútil ao arsenal de que deve estar abastecido o homem do século da tecnologia, "hic et nunc". Teria havido para estas áreas uma como que revalorização do desprimoroso conceito renaniano da História como "pequena ciência conjecturai", já tão desmoralizado diante dos notáveis progressos realizados por sua metodologia, e, por maior que seja a perplexidade que a observação possa causar, um retrocesso a tempos anteriores a Tucídides ou mesmo a Heródoto, como se ainda balbuciássemos na oralidade lendária, no descompromisso com a verdade possível. (*) — Excerto de. palestra na Comissão de Educação da Câmara aos Deputados(*)

Instituição Política e Tecnocracia

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Analise histórica e socio-politica do Brasil desde o Império até o surgimento da utopia tecnocrática nas instituições políticas brasileiras.

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INSTITUIÇÃO POLÍTICA E TECNOCRACIA (*)

Ivan Luz (

O fascínio que exercemos problemas teóricos da História, seu desenvolvimento, seu contínuo aperfeiçoamento, devem-se refletir, como resultado do aprimoramento do instrumental de pesquisa e do enriquecimento da especulação filosófica, no estudo da história factual e da metodologia do ensino.

Na verdade, foram tais os erros acumulados ao longo de tempo longo demais no que toca ao tratamento didático da matéria que um desinteresse progressivamente maior foi atingindo a área de estudo sistemático, em todos os níveis, até ao ponto de caracterizar um desprezo, quase ofensivo, para com os estudiosos e professores de história. O seu campo ficou, assim, considerado como uma espécie de refúgio para onde corriam os frustrados de outras áreas, "os que não deram para outra coisa"... Bastaria, segundo os críticos menos mordazes uma memória relativamente boa para a repetição ronceira e rotineira dos relatos sucessivamente reeditados e ali estava cumprida a exigência única para um bom desempenho no magistério...

Em certo grau, muito concorreram para isso os próprios estudiosos da história, acomodados em seu canto de sombra, semi-inertes no desconsolo duma completa falta de estímulo, sem possibilidade de pesquisa, desvalidos de elementos de informação, _enfim, sem um mínimo que os habilitasse a promover uma renovação dos estudos históricos. Do outro lado certos exageros da educação pragmática dirigida para o êxito, segundo certos modelos e inspirações identificados pela análise weberiana, conduziram, por vias pouco transitáveis, à convicção de que os estudos históricos pertenceriam às províncias do humanismo retórico, inútil ao arsenal de que deve estar abastecido o homem do século da tecnologia, "hic et nunc". Teria havido para estas áreas uma como que revalorização do desprimoroso conceito renaniano da História como "pequena ciência conjecturai", já tão desmoralizado diante dos notáveis progressos realizados por sua metodologia, e, por maior que seja a perplexidade que a observação possa causar, um retrocesso a tempos anteriores a Tucídides ou mesmo a Heródoto, como se ainda balbuciássemos na oralidade lendária, no descompromisso com a verdade possível. (*) — Excerto de. palestra na Comissão de Educação da Câmara aos Deputados(*)

É provável, também, que entre nós, urna certa imunidade às comoções e emoções das grandes tragédias de nossos dias, propiciada por nossa posição geográfica distante do epicentro europeu, haja concorrido para tal resultado, para forjar este conceito de não utilidade objetiva da História.

Realmente, quem leu CIVILIZAÇÃO EM JULGAMENTO, há-de-se lembrar como Toynbee recorda os negros dias que antecederam a Primeira Guerra Mundial e os ensanguentados anos de conflito, quando Tucídides assumiu, de repente, para ele, uma importância que transcendia a da observação contemporânea dos fatos em seu derredor. Foi na "GUERRA DO PELOPONESO", do genial ateniense, que o historiador e assessor do governo britânico procurou a inspiração para entender o seu presente. MARROU — "Do Conhecimento Histórico" — comenta o fato com esta sentença que deveria consertar o estrabismo de certos utilitaristas de vôo curto, teimosos em supor a História um adorno erudito, de salão: "O seu gênio (de Tucídides) fez da guerra do Peloponeso a guerra mais inteligível da história; qualquer guerra se encontra e se revela, por paralelo ou contraste, de alguma forma iluminada por ela". E testemunhando de sua própria experiência: "Lembro-me de, na primavera de 1939, em Nancy, quando se acumulavam sobre Praga e Dantizg as tempestades que iam tomar conta da Europa, ter retomado com meus estudantes, no Primeiro Livro, essa análise, comovente devido à serena claridade, da situação, na Grécia, na véspera do grande conflito: a Europa não se encontrava, como a Grécia nessa altura, numa velada de armas?" É isso: ao apelo das grandes catástrofes em que tervelinham as nações e os homens eles e elas, por suas lideranças mais esclarecidas, voltam-se para o passado, em busca do inteligível no absurdo, a procura da lógica interna da história, das analogias que não se revelam senão ao esforço reflexivo do "nuncet semper" que surge com clareza insuspeitável, quando iluminado pela razão amargurada, a emprestar às coisas humanas a estranha e inquietante dimensão de alfa e de omega.

Sem que tenhamos estado indiferentes ou alheios aos grandes episódios históricos que se desenrolaram na matriz européia e, conseqüentemente, a seus traumas, a verdade é que temo-los vivido e sentido com menor intensidade, a modo de não constituírem eles aquela experiência terrível que representaram para outros povos, campo ubérrimo para a sementeira de idéias.

Aliás, não é preciso que soem essas undécimas horas para que a utilidade da história seja reconhecida apenas no castelo da Dinamarca,

entre o horror e o frio, quando os abantesmas evaporam dos túmulos e vêm cobrar dos vivos os crimes sepultados com os corpos que habitaram. Não, porque independe de nós sermos ou deixarmos de ser um momento, fugaz, é certo, mas sempre um momento, no processo histórico. Obscura que seja essa presença ela é, por si só, pelo fato de ser, de uma veemência extraordinária no testemunho de sua solidão. É que todo presente, trágico ou comedioso, contém um passado virtual, em maior ou menor proporção, e supor-se que há um presente mais real que o passado é uma das ilusões em que se banham os homens como refrigério para os açoites do tempo irreversível... Por isso disse Ortega: "A história, fale do que fale, está sempre falando de nós mesmos, os homens atuais, porque nós somos feitos do passado que continuamos sendo, ainda que de um modo particular de haver sido. Graças a que cada um continua sendo a criança que foi, naquela forma de haver sido, podem vocês ser o que agora são. De outro modo, ou não seriam nada ou continuariam sendo aquela criança de outrora.

A história fala sempre de nós mesmos, de te fabula nanatur. A questão está em que no-la saibam contar e que nós saibamos escuta-la".

Assim compreendida a audiência do passado não é um solilóquio taciturno

e estéril ou um trêfego jogo sem conseqüência, mais diálogo vivo em que se entre-cruzam muitas vozes, desde o "fiat" demiúrgico, desde o Verbo, no princípio.

Seja dito, contudo, que aqui como alhures, nunca arrefeceu o interesse do homem pela História, uma curiosidade absorvente sobre o passado, uma espécie de nostalgia do que foi. Nem mesmo o futurologismo — que temos a tentação de chamar de doença infantil da tecnocracia — conseguiu substituir-se ao prestígio do passado junto ao homem comum, prestígio que se demonstra na abundância duma literatura nem sempre, para não dizer quase nunca, elaborada com seriedade, mas que sacia a sua curiosidade, "quantum. satis". Ainda que não conectada diretamente com seus aspectos pragmáticos, essa ansiedade por conhecer o passado é uma tendência inata do espírito humano, rica de sugestões. O que deve preocupar, no caso, é a circunstância de ela ser explorada comercialmente, derramada pelas estações de estrada de ferro, pelas rodoviárias, nos aeroportos, como produto de consumo para preencher as horas intermediárias da vida...

Uma certa ênfase universalmente emprestada, até há alguns anos atrás, à história política, influiu, outrossim, para o descrédito da História como ciência, obviamente porque o gênero induz a um tratamento apaixonado e faccioso, sob pressão das unilateralidades não compossíveis com o espírito científico, vale dizer, com oespírito da verdade. Quando, porém, a matéria histórica se ampliou como objeto, desdobrando-se na multidão dos aspectos da vida social, as exigências da metodologia não encontraram barreiras. circunstanciais tão ásperas e perigosas e foi possível, então, saber o porque do encanto que exerce sobre nós uma História Económica e Social da Idade Média, de PIRENNE ou uma Introdução à História Social da Economia Pré-Capitalista no Brasil, de OLIVEIRA VIANNA, como exemplos.

A verdade é que o aprimoramento dos métodos de pesquisa, se contribuía

e contribui decisivamente para a cientificação dos estudos históricos, por outro lado exige da .obra de História uma elaboração muito mais séria e cuidada que já se não satisfaz com a repetitividade das narrações copiadas a transformar a heurística na simples procura do elo editorial...

É claro que não estamos avançando qualquer novidade com essas considerações. Depois de um Capistrano, de um Taunay, de um Rodolfo Garcia, ninguém se pode' queixar, neste País, de lhe ter faltado inovadores. E também, é claro que não se está dizendo que não se tenha registrado progresso não só na metodologia do ensino como na temática escolhida como objeto de pesquisa histórica e nesta mesma. Mas seria um desserviço aos interesses da cultura e, particularmente, aos interesses do país, deixar de registrar os malefícios que acompanham a atitude de desprezo pela história e de denunciar as teses cépticas e negativistas acerca da utilidade de seu estudo.

Agora, mais do que em qualquer época ele é indispensável ao homem para que se situe no espaço e no tempo e mais eficazmente se possa defender do processo de desumanização operado pela tecnologia. O que é curioso verificar-se é o paradoxo presente no íntimo do problema, .constante dessa contradição: ao mesmo tempo em que a preocupação "concretista" procura conceituar e servir ao homem existencial, — o homem e a sua circunstância — dispensa-se pouca importância, ou nenhuma, à circunstância, esta que é o seu complemento histórico, por mais imediata, por mais curta que seja a sua temperalidade. A redução da vida a uma atividade afinalítica, sem

passado e sem futuro, será uma forma de alienação tão perigosa do indivíduo no seio de uma coletividade "desossada", sem estrutura cultural e sem memória, sem peculiaridade, sem identidade, sem consciência cronológica que, assim despido de seus atributos, estará mais distanciado do que qualquer outro, de qualquer outra época, do homem concreto das preocupações filosofantes da última rodada...

Essas reflexões constituem para mim, uma ocupação permanente e nas minhas aulas de Introdução ao Estudo da História me demoro sempre no por de relevo a importância do seu estudo, visando a inculcar nos futuros professores, a idéia da importância correspondente de sua missão.

Tecidas estas considerações sobre a importância e a indispensabilidade da história para a compreensão do presente, peço licença para uma citação, tirada a WBER, de conferência que proferiu sob título "A Política como Vocação" e que, juntamente com outra — "A Ciência como Vocação" — foi editada em português pela CULTRIX, edição que integra a relação bibliográfica distribuída. Adaptada às intenções que nos movem e às circunstâncias do momento, ela servirá como indicação prévia de aspectos que o tema a que nos subordinaremos sugere, mas não evidencia desde logo.

Disse, naquela oportunidade, o grande sociólogo: "... "esta Conferência, que os senhores me pediram para fazer, decepcionará, necessariamente e por múltiplas razões. Numa palestra que tem por título a vocação política, os senhores hão de esperar, instintivamente, que eu tome posição quanto a problemas da atualidade. Ora; a tais problemas eu só me refirirei ao fim da minha exposição e de maneira puramente formal quando vier a abordar certas questões que dizem respeito à significação da atividade política e ao conjunto da conduta humana". Diremos nós, utilizando a introdução do mestre germânico, que por múltiplas razões decepcionaremos, a primeira das quais será a de não tomarmos a expressão política na acepção que mui legitimamente, muitos esperariam induzidos pelo título... "História Política Contemporânea do Brasil", e pelo patrocínio do curso por um Partido Político. Prefirirei também tomar o sentido da expressão "história" como uma cronologia inteligível a serviço de um objetivo global, não como objetivo em si. O contexto histórico será explicativo, ou compreensivo, se o quiserem, de uma ordem de fatos, de fenômenos, de idéias, tanto no que diz com a nossa história nacional, que aborda remos ho je , quan to no que toca à gênese e

desenvolvimento da sociedade industrial de que trataremos em seguida e instrue o processo de análise dos fatores contemporâneos de natureza política, entendida em dimensão moderna, que será objeto da última palestra. Perpassa, assim, as três palestras que pronunciaremos, á intenção de identificar os fatores de transformação das estruturas sociais e políticas que atuaram e atuam na sociedade ocidental, especialmente, e no Brasil conseqüentemente. Parece-me que esse critério permite-nos servir a um só tempo a dois senhores — à ciência e à política —sem incidir na ira de um ou de outro, atendendo, outrossim, aos objetivos visados pela Coordenação do curso. Não posso alimentar a ilusão de que seria possível, em tão curto

espaço de

tempo, condensar, sem deixar extensas zonas obscuras, um volume de informação e crítica que a tantos, com superiores dotes de inteligência e cultura, tem custado tanto esforço, tanta meditação, tanta renúncia, tanto. risco... A nossa maior homenagem a eles é colher na silenciosa eloqüência de suas páginas a idéia que um dia exprimiram, partejada em muitos anos consumidos a serviço do Homem, de sua grandeza, de seus sonhos, de sua paz. Não temos, pois, preocupação alguma com originalidade: temo-la sim, com a fidelidade aos propósitos do curso que; fundamentalmente, são os de despertar o interesse e- estimular o estudo da Ciência Política, vistas à formação de lideranças sem as quais nenhum país encontrará seus próprios caminhos.

Quando Toynbee, referindo-se à unidade do estudo da História, diz que "nenhuma Nação ou Estado Nacional da Europa pode apresentar, isoladamente, uma história que se explique por si mesma" está enunciando uma verdade que não se aplica, apenas, à Europa e que será sempre mais válida à medida em que os meios de comunicação encurtem as distâncias, acelerem a velocidade das idéias, agudizem os conflitos de interesses e tornem-se cada vez mais complexas as relações de interdependência.

A afirmação do grande historiador desata uma série de problemas de Teoria da História que não encontrariam oportunidade para se demorarem nesta comunicação, mas que podem compor um contorno dentro do qual vai-se movimentar a temática que nos foi confiada e por isso merecem, quando nada, uma referência esclarecedora.

Nela estão subentendidas as questões relativas à tipologia histórica, em território comum às pesquisas da 'sociologia e da antropologia cultural quando tratam dos "complexos culturais" da formação, desenvolvimento e peculiaridades dos grupos humanos, tão m a g n i f i c a m e n t e v e r s a d a s . p o r L I N T H O N , K A R D I N E R , MALINOWSKI, WEBER, TOYNBEE, SPENGLER, MARROU e tantos outros da mesma estirpe intelectual.

Nas várias divisões possíveis da matéria histórica as Histórias nacionais encontram o seu lugar, como as histórias políticas também, tais sejam os critérios utilizados. Todos eles, advirta-se, são mais ou menos arbitrários. A história é um complexo contínuo, fluxo permanente que, em si mesmo, não admite divisões, o que não elimina a possibilidade de ser observado modalmente, isto é, sob aspectos que são selecionados pela ótica do observador, por categorias estabelecidas pelo juízo crítico. Assim, a história econômica, a história das artes, a história da cultura, a história da literatura, etc. etc. etc...

Nesta simples enunciação já se podem ver, claramente, as dificuldades. que eriçam o assunto, na confusão de substantivos e adjetivos, nos gêneros e nas espécies... A história da literatura, ou das artes, não será, também, obviamente, história da cultura? A história da cultura não será, também, a história econômica? Qual o conceito exato de Cultura?...

O levantamento desses problemas, ainda que apenas para iniciação, torna-se indispensável à boa compreensão do tema de que vamos tratar intitulado de "Historia Política Contemporânea do Brasil", ou, se preferirem, da maneira como vamos abordá-la. O estudo semiológico da palavra "política" demonstra a versatilidade de suas aplicações muito ampliada neste século.

Hoje a expressão se confunde com método, critérios de ação, plano, projeto... E usada, a qualquer propósito, neste sentido. E a política financeira, a política-agrária, a política estudantil, a política tributária, a política energética, a política educacional, a política de preços, a política partidária, a política rodoviária, de ferro, viária, a

aeroviária, a dos transportes, a das comunicações, a marítima, a de fretes, a do trigo, a do milho, a do café, a da soja, a do cacau... Algumas são mais rabilongas como a política de aproveitamento dos recursos naturais (minerais e vegetais), a política de absorção de mão-de-obra não qualificada, a política de aproveitamento de recursos humanos (?) e, até, a política do bom senso, sistema de normas algo abstratas, subjetivas e muitas vezes cabalísticas da qual diria Descartes ser dispensável porque, segundo ele, se não me trai a memória, bom senso é coisa que, certamente, não falta a ninguém pois que jamais ouvira alguém queixar-se de não tê-1o...

Essa multiplicidade de acepções da palavra confirma á definição aristotélica do homem animal político, ainda que estejamos do sentido das suas raízes etimológicas...

E é um vigoroso desmentido, aqui a alhures, de que esmaece e hiberna a atividade política mal vista pelos executivos autoritários...

Essas amenidades ditas para mais fácil levitação da matéria, imbricam, todavia, como se verá ao longo do curso, no cerne, mesmo, de momentosas questões suscitadas pela tecnologia e no âmago da grave equação a ser resolvida pelo homem moderno, isto é, a conciliação do progresso técnico com a preservação dos valores sem cuja sobrevivência não compensariam os êxitos daquele.

Continuemos, contudo. O uso, pois, da palavra sem o apêndice de uma adjetivação pode

levar a equ ívocos desas t rosos ou a uma gene ra l i zação descaracterizada de amplitude tal que mergulharia o pesquisador num oceano sem fundo. O tema que me foi deferido não padece desse defeito, formalmente. Mas, ressente-se dele, substancialmente. E que "história contemporânea" implica uma noção de tempo, não indica uma particularização da matéria histórica. Quero dizer desde logo, que não estou acusando um pecado da inteligência na escolha do título. Nos currículos universitários lá está a disciplina solenemente consagrada — "História Contemporânea". Ela é conseqüência do beco sem saída em que se meteram os inventores da divisão tripartida da história em Idade Antiga, Idade Média é Moderna.

Realmente, chamar-se de moderno, no século XIX, a um período histórico que se teria iniciado no século XV ou, na melhor das hipóteses, no século XVI, com os Descobrimentos e a Renascença, não poderia satisfazer a homens que não tinham herdado as resistências de Matusalém... Mas, como os homens são mais conservadores do que se imagina, decidiram não ser conveniente, por alegados motivos

didáticos, jogar no lixo a pertinaz e clássica divisão do indivisível e, então, descobriram uma fórmula engenhosamente salvadora: decretaram a existência de uma História Contemporânea. Foi pior a emenda de que o soneto. "História Contemporânea", é, na verdade, urna impossibilidade metafísica. Porque história é tempo e tempo é passado, donde história ser, necessariamente, passado, ainda que este se acumule nos presentes de cada um de nós naquele fugaz momento em que realiza suas virtualidades para, instantaneamente, mergulhar no curso do tempo irreversível.

A que contemporaneidade se liga o fato histórico ou a sucessão seriada dos fatos históricos? A que objetos, a que sujeitos? A uma geração? A duas? Mas então o que é contemporâneo de uma geração não pode ser, por definição contemporâneo de outra: E por acaso, por den t ro mesmo do imprec i so conce i to de ge ração , onde encontraríamos a contemporaneidade nas diferenças etárias?

Podemos, por tudo isso, compreender porque SPENGLER, criticando a divisão tripartida, tanto a condenou, candentemente, nestes termos: "um grave defeito do sistema é que o conceito finalizador de Idade Moderna, impede a prossecução do mesmo método, pois tendo-se alargado repetidas vezes, desde as Cruzadas, não parece já capaz de novos estirões... como se vê pela expressão ridícula e desesperada da Idade Contemporânea".

A conclusão a que, obviamente, chegamos, é a de que não nos resta outra alternativa se não escolher, para uma análise institucional, uni período de tempo histórico que assim possa ser considerado em virtude de um mínimo de unidade, de seriação lógica dos fatos, tanto quanto possível mais próximos dos nossos dias , escolha necessariamente influenciada pela subjetividade que SPANDENEERG via como indefectível na eleição dos períodos históricos.

Também a história política que vamos abordar não poderá ser aquela simples enunciação mnemônica de episódios, com o que desarquivaríamos uma fase ultrapassada há muito pelos progressos dos estudos históricos, mas uma interpretação que não dispense os fatores culturológicos que atuaram sobre os fatos, ensejando, assim, uma visão a um tempo mais vertical e mais ampla dos acontecimentos. Seria a identificação de um "complexo histórico"-, como o chamaria Carlos Rama, onde possamos surpreender a lógica interna da história, de tal maneira que, falando do passado sintamos que afinal, falamos de presente e de nós mesmos.

A questão mais candente com que se defronta a inteligência dos nossos dias, na área da Ciência Política, seja o desenvolvimento

tecnológico e seus reflexos no Poder é um desafio universal. Exigirá, por isso, um rastreamento das transformações operadas no pensamento ocidental e do desenrolar dos fatos históricos nas matrizes européias, a fim de que possamos compreender o problema na sua universalidade e na particularização do contexto nacional.

Pretendendo ter deixado explicado e justificado o sentido que imprimiremos ao tema de que vamos tratar e da distribuição da matéria como feita, iniciemos o seu desenvolvimento.

Sirvo-me, ainda uma vez, da autoridade de outrem para encontrar as muletas de que necessito a fim de caminhar até àquele ponto mais afastado no tempo que a pesquisa possa tomar como sendo o limite mais recuado quando determinados acontecimentos se destacaram na orografia histórica e ganharam expressão nitidamente visível no relevo. Na verdade, quando o Instituto Histórico incumbiu Oliveira Vianna de escrever a monografia referente ao reinado de Pedro II nos anos entre 1887 e 1889, comemorando o centenário do nascimento do Imperador, o grande sociólogo e historiador deparou-se com o problema dos limites do campo histórico, "vexata quaestio" que persegue os pesquisadores.

Resolveu-a extrapolando o período que lhe havia sido reservado, já bem próximo da queda do Império, para remontar aos episódios que antecederam imediatamente a queda de Gabinete Zacarias, em 1868, e lhe sucederam. Justificou-o Oliveira Vianna em termos que, por si só, já constituem uma síntese e por isso merecem transcrição:

"Realmente, nenhuma das grandes forças, que determinaram a queda do Império, se havia gerado dentro do período 1887-1889; todas tinham as suas manifestações iniciadas fora daquele limitado espaço histórico: o abolicionismo, o republicanismo, o federalismo, o militarismo. Este partia de 1870 — pelo menos. O pensamento abolicionista recuava ainda mais — aos primeiros dias do Império, O espírito republicano e federativo, esse vinha ainda de mais longe — mergulhava em cheio as suas raízes no período colonial. Tive, pois, que desobedecer ao plano estabelecido pelo Instituto e remontar a fases anteriores, na pesquisa das causas primeiras daquele extraordinário acontecimento.

Este ponto encontrei-o — e é o pequeno período que vai da queda do gabinete Zacarias em 1868 ao manifesto republicano de 1870. Neste período está o ponto de partida de todo aquele movimento político, que haveria de epilogar-se a 15 de novembro

com a destituição do gabinete Ouro Preto e a queda do .2°. Império. Fixei-me nele — e foi dentro desse horizonte mais dilatado que tentei descrever, nas suas linhas gerais, a marcha evolutiva das grandes forças políticas que derruíram, em 1869, a velha estrutura imperial" Mas adverte: "Digo forças políticas porque somente delas trato

neste volume. Das outras, as econômicas e sociais, principalmente, não é aqui a melhor oportunidade para estudá-las".

De nossa parte, sairemos da mesma base de partida, para o mesmo fim de análise dos fatos políticos que estremeceram os alicerces do Império e por fim o derrubaram para substituí-lo pela República, mas registraremos a inquietação que acompanha a institucionalização política brasileira desde a primeira Constituinte Imperial.

É que os objetivos de nossa palestra são mais amplos do que os da monografia do insigne sociólogo, expressos, aliás, no título da obra — "O ocaso do Império", amplitude, esta, que seus estudos ocuparam sob outros títulos.

Não engrossaremos as fileiras dos pessimistas ou derrotistas que praticam a autoflagelação nacional, enxergando em todos os nossos equívocos e desencontros coletivos a marca de uma congênita incapacidade para a organização e para o método.

Para estes, nós — como outros povos latino-americanos — teríamos a nossa história tecida de um carnaval de anarquia, em cujo seio a política, o poder, as lutas intestinais, a incessante busca de sua própria identidade a afirmação, não passam de espetáculos de opereta, tragicômicos talvez, talvez mais cômicos do que trágicos... Esse estereótipo de turbulentos bigodudos, por baixo das abas dos "sombreros", estendido pela ignorância e pela má fé de certa pirataria política a todos os povos do Continente abaixo do Rio Grande, não chega a ser uma caricatura. E, apenas, já é bastante, a manifestação criais ou menos cínica de quem se habituou a lidar com o chicote do lado do cabo, porque favorecido pelos ventos da história.

Infelizmente esta atitude constou, por muito tempo, da pauta de importações de certa intelectualidade esnobe de nosso País que se presumia na obrigação de ser menos brasileira para se destacar, fazendo-se exilada em sua própria terra.

A estes, de dentro e de fora de nossas fronteiras, nunca lhes acudiu pensar em que os problemas de uma nação jovem,

ocupando um território imenso e inexplorado, que arranca para a independência num período da história marcado por grandes transformações políticas e sociais, seriam de complexidade tal que a complicação da independência política, por si só, já representaria um êxito de proporções formidáveis.

Que se poderia esperar, na verdade, das elites políticas que na época tiveram que enfrentar as tarefas da institucionalização do Império, mal saído da matriz portuguesa? Que obrassem como homens fora de seu tempo e das idéias que, então, circulavam triunfantes no Ocidente? Que tivessem podido entender a realidade social de um grupo cuja unidade periclitava na dispersão de uma geografia descentralizadora e partissem para projetos institucionais que correspondessem a peculiaridades inidentificáveis ainda, por motivos óbvios?

Calógeras descreve a Assembléia Constituinte reunida a 17 de abril de 1823 de maneira algo depreciativa. Diz ele:

"Em regra, esse primeiro ensaio eleitoral havia enviado ao Rio de Janeiro um bando multicor de juristas, altos dignatários da Igreja, párocos da roça e proprietários agrícolas. Nula era sua competência administrativa, e de igual desvalia sua capacidade prática na técnica parlamentar. Alguns deles, apenas, estavam a cômodo nesse meio tão novo para eles. A maioria tinha idéias excessivas sobre sua própria superioridade, e olhava de cima para baixo para os funcionários e membros do próprio governo. Influência ainda da malograda conspiração mineira e da revolução de 1817, em Pernambuco”

Não resta dúvida de que à maioria de seus integrantes faltava um mínimo de experiência parlamentar e de intimidade com-os graves problemas que envolvem o exercício do poder. Apenas alguns tinham atuado nas Cortes Portuguesas em Lisboa como Antônio Carlos, José Ricardo da Costa Aguiar e outros, em condições, aliás, de pouca valia.

A Constituinte perdia-se, freqüentemente, nos labirintos de questiúnculas sem significação para a magnitude da tarefa que deveria realizar.

O formalismo das relações entre a Assembléia e o Imperador, nas minúcias do cerimonial para a primeira fala do trono são de uma superficialidade que beira ao ridículo se olhadas, também,

superficialmente. Na verdade elas subentendiam a tessitura sutil e 'embrionária das relações entre os Poderes, os limites que se pretendia traçar a cada um, o conceito de representatividade da Assembléia, a sua soberania... A Assembléia procurava acomodar-se ao figurino da época. O espírito liberal que a animava dele compartilhava o Imperador, liberal também, sagrado Defensor Perpétuo pela Maçonaria em cujas lojas o liberalismo encarnava. Tudo, no particular, levaria à crença de que a Assembléia e o Imperador não encontrariam dificuldades na definição de suas competências, nas articulação de suas respectivas funções.

Mas, entre a teoria do poder e o efetivo exercício deste vai uma diferença muito grande.

Enquanto a Assembléia se preocupava com as normas que estruturariam o novo Estado e seriam o instrumento do governo do nascente Império, D. Pedro já se via às voltas com as questões objetivas que enfrentava desde a Regência.

A primeira fala do trono do Brasil Império, ditada naquele dia 3 de maio de 1822, perante a primeira Assembléia Constituinte do Brasil que se instalava, e o discurso pronunciado por seu Presidente, oferecem a medida do descompasso entre a ética e a ação do Poder Legislativo e aquelas do Poder Executivo.

D. Pedro relata providências de governo, informa da situação calamitosa das finanças públicas e se demora sobre a herança que recebera em 1821 com a partida de D. João VI para Portugal. Reafirma sua incondicional fidelidade à causa brasileira e coloca, nos limites da época, a questão com que deveríamos lidar, como povo, desde então até agora: a adoção de um modelo próprio de institucionalização dos poderes, da organização nacional, enfim, adequada às nossas realidades, que aparece na fala, não como uma proposta concreta, incabível, por certo, mas como uma aspiração talvez mais intensamente desejada por quem já tinha tocado com as mãos as realidades sociais da jovem nação e pudera perceber os perigos que representava o radicalismo liberal, tão atuante nos prelogômenos da Independência.

Mas a Assembléia paira no ar. O liberalismo utópico voltado para os princípios de 89, é o humus de que se alimentam suas raízes extranacionais.

"A primeira geração — diz OLIVEIRA VIANA — a quem coube lançar as bases da nossa primeira Constituição política, era uma geração que se caracterizava pela origem extranacional da sua cultura." "Esta geração, assim instruída e educada à européia, mesmo mergulhada no seio da nossa rusticidade tropical e no primitivismo da nossa vida partidária, continuava a pensar e a sentir à européia. Era (com peregrinas exceções) uma geração de daltonizados, através de cujas retinas, afeitas, pela adaptação, à visão do meio europeu, todas as realidades do nosso povo e do nosso meio tinham que se refletir naturalmente deformadas. Tendo de organizar uma constituição política para o nosso povo, era natural que não considerassem o nosso povo nas suas peculiaridades essenciais; era natural que procurassem elaborar uma Constituição, objetivando, de preferência os seus ideais políticos, que não eram outros senão os que haviam aprendidos nestes centros universitários, em que iniciaram e completaram a sua educação mental.”

"Esse idealismo utópico encontra, como se vê, para as nossas primeiras gerações políticas, uma poderosa justificativa. Era mesmo impossível evitá-lo; tudo concorria para produzi-lo: a educação extranacional das nossas elites, o ambiente de idealismo que então as envolvia, o estado ainda metafísico e nebuloso da ciência política”.

Estalam, então, os primeiros conflitos ou os primeiros entreveros de um conflito permanente. Daí a importância histórica que revestem os episódios da Primeira Constituinte e, especialmente, a fala do Imperador. Esta, até por força do momento, dever-se-ia referir às tarefas da Assembléia que se instalava e o faz visando expressões que a suceptibil izaram, ciumenta de suas prerrogativas de corpo representativo da soberania nacional…

O Imperador, ao referir-se às constituições originárias das de 1791 e 1792, apoda-as de "teóricas e metafísicas e por isso inexeqüíveis". Ao manifestar seu empenho em que a Constituição que seria elaborada pela Assembléia fosse "tão sábia e tão justa quanto apropriada à localidade e civilização do povo brasileiro" e à esperança de que lhe merecesse a

"imperial aceitação", emitia uma sensata opinião e, ao mesmo tempo, provocava uma grave fricção no relacionamento dos poderes.

A atmosfera de desconfiança era um espólio ainda bem vivo deixado pelas lutas da Independência, como se viu pelos acontecimentos de Pernambuco em 1824 e pelo epílogo dramático de abril de 1831, com a Abdicação.

As idéias que pretendiam se afirmar e se realizar nas estruturas legais do Estado em construção estavam longe de constituir-se num corpo de doutrina com princípios definidos. Na verdade seriam aspirações mais ou menos vagas, de difícil conversão a um sistema de normas objetivas do Direito Constitucional por um corpo de legisladores desafeitos a trabalhos de tal envergadura, na maioria, mesmo, incapazes para tentá-lo.

Nestas horas intermediárias que tanto podem ser crepusculares como diluculares, os perfis, os contornos, por mais nítidos que sejam, fundem-se e se confundem em vultos amalgamados às sombras... Se a estas se acrescentarem as penumbras da desconfiança, bem se pode imaginar as conseqüências.

É certo que a Assembléia se compunha — como nota AFONSO ARINOS — da maioria defensora de um regime monárquico-constitucional para o país: "A geração de homens públicos que criou a Constituição do Império era, na maioria e pelos representantes mais prestigiosos, partidária do regime monárquico parlamentar e moderador. Havia, sem dúvida, elementos mais radicais, ou exaltados, que preconizavam uma democracia avançada e sonhavam com a República, embora muito raramente o proclamasse. Mas tais elementos eram 'tidos por meios extravagantes e não exerciam influência efetiva nos acontecimentos”.

Ainda assim, a pretensão do Imperador de colocar uma condicional inteiramente subjetiva e personalíssima para legitimar a Constituição futura, repercutia desagradavelmente.

O contexto do período em que se engastara a imperial condição não era, também, tranqüilizador para os direitos soberanos da Assembléia. Basta lê-lo e se verá que os sinos de alarme que logo dois dias após foram tocados no augusto recinto tinham sua razão de ser: "Como Imperador constitucional e mui principalmente como defensor perpétuo desse Império, disse ao povo, "no dia de dezembro do ano

próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha espada defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do Brasil e de mim". O imperador, sem muita sutileza, lembrava aos constituintes que fora coroado e sagrado defensor perpétuo do Império. Independentemente deles e da Constituição futura... Em outras palavras: desembainharia a espada para defender a pátria e a nação, incondicionalmente, mas só o faria na defesa da Constituição que seria elaborada se ela fosse digna da Pátria e dele próprio, com o que desejava deixar claro que seus compromissos e deveres eram com aquelas e na medida de seus próprios critérios; que as fontes de seu poder, se já não as tivesse como de origem divina, sem dúvida que não nasciam naquele recinto…

Tanto que falava "mui-principalmente”, como defensor perpétuo do Império...

Diante das críticas que representantes mais avançados imediatamente fizeram à fala imperial, José Bonifácio, entre outros, fez-lhe a defesa. Sabidamente, o Andrada, era adepto da monarquia constitucional do tipo inglês e repelia os princípios ideológicos da Revolução Francesa cujo corolário de desgraças na história de então desfila perante a Assembléia.

De seu discurso, uma frase se destaca, de profundo realismo a revelar o porte de estadista que gizava a sua figura. Homem de sua época, não se lhe poderia exigir, como dissemos antes, que caminhasse inteiramente à sua margem; que suas concepções políticas resultassem de uma análise sociológica da realidade brasileira; que visse o fundo da paisagem; que pesasse outros fatores que não os que jogavam o jogo imediato do poder, mas o sentido realista de sua inteligência no apreender os fenômenos acessíveis à sua visão crítica, revela-se na afirmação corajosamente lançada à face dos comiceiros da liberdade, na fumaça da pólvora. "Queremos — diz ele — uma Constituição que nos dê aquela liberdade de que somos capazes”.

Em torno desta sentença prudente e sábia subiram e desceram as marés políticas deste País.

Destaquei-a porque foi dita pelo Patriarca da Independência, no momento em que o constitucionalismo era revolução; destaquei-o porque sendo revolução não descartava o passado e procurava encontrar nas

instituições que tinham, bem ou mal, quantas vezes excessivamente mal, encarnado o princípio da autoridade, a seiva com que se alimentariam as novas para que o excesso de liberdade não representasse para elas e que o excesso de autoridade havia representado para as outras.

Mas o certo é que a Assembléia tinha motivos para estranhar a atitude imperial. E o certo é que sua composição monárquica e moderada não exigia advertências daquela ordem.

Mas certo é também que, se o Imperador ultrapassara os limites do seu território, com a impulsividade de seu temperamento; certo também que a Assembléia, por seu turno praticara o mesmo pecado, quando pretendera legislar em caráter ordinário, sem a sanção daquele, quando sua missão se restringia à elaboração do texto constitucional e a legislar ordinariamente para reformas urgentes, função que não sendo constituinte, presumia a sanção.

Resultou dessa recíproca violação de territórios ciumentamente guardados, a dissolução da Assembléia.

O Imperador prometeu convocar outra Assembléia que, segundo o proclamou, receberia um projeto, de suas mãos, "duas vezes mais liberal" que o vetado pela Constituinte dissolvida. Nunca a fez eleger. E acabou por outorgar a Carta de 25 de março de 1824.

Como se vê, o constitucionalismo não foi inaugurado entre nós sob os melhores auspícios. Ao contrário, começou sua carreira sofrendo vicissitudes que o acompanhariam ao longo de toda a caminhada mas que recrudesceriam em crise endêmica a partir da proclamação da República, com a constituição de 1891.

Se tivéssemos podido organizar a autoridade, em conseqüência, organizar a liberdade de maneira a que a liberdade criasse a autoridade e a autoridade garantisse a liberdade, em termos perfeitos e tal mecanismo se tivesse ajustado num sistema de normas também perfeito, na estrutura e no funcionamento, teríamos, sem dúvida, resolvido o problema antinômico fundamental entre o Homem e o Poder, desatualizado a tragédia de Sófocles, e esgotado um filão precioso a grande parte de imaginativos homens de teatro... E a Europa ter-se-ia curvado perante o Brasil um pouco mais cedo.

Não seria de se exigir tanto. Mas bem que se poderia pensar em que, se tivéssemos trabalhado a lavra aberta pelo Imperador, seja, a de fazer de-

nosso constitucionalismo uma arte de atender à localidade e civilização do povo brasileiro, e à sentença do Patriarca, aquela de que a Constituição nos deveria dar a liberdade de que somos capazes, por certo teríamos caminhado bem mais celeremente na história e evitado que a nau do Estado rasgasse, tantas vezes, o casco nos arrecifes da rota. Afinal, a Independência deveu tanto a ambos que não seria desarrazoado ouvi-los.

Mas não foi isso que aconteceu. As elites políticas não souberam fazê-lo, a princípio excusadamente, e depois indesculpavelmente porque já então dispunham de experiência histórica que atravessara quase todo um século.

Da Constituição outorgada não se pode falar o pior. O reverso, se pode dizer. TOBIAS MONTEIRO, dentre os que a compararam com o projeto da Assembléia, considera-a superior na sua quase totalidade.

Mas não percamos de vista que não nos propusemos fazer a história do Direito Constitucional Brasileiro. O que se pretende é, como está dito no roteiro, colocar em foco problemas emergentes do relacionamento entre o institucionalismo jurídico político e as realidades nacionais e estimular uma atividade crítica realista e criativa, procurando identificar a natureza dos fatores de transformação social e política que trabalharam a sociedade ocidental e a brasileira, particularmente.

Daí porque, sem alongar o estudo do texto de 1824, ser indispensável por em relevo um aspecto que se tornou o fulcro dos mais acirrados debates teóricos entre os constitucionalistas e políticos do Império, e, na construção de parlamentarismo da monarquia, o ponto de fricção mais incandescente entre os teóricos do poder, entre as disputas do poder.

Referimo-nos à instituição do Poder Moderador. Vinha ele regulamentado no título V, definido como "a chave de toda a organização política", sendo privativo do Imperador, na qualidade de chefe supremo da Nação e seu primeiro represente, para que incessantemente vele pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos" (art. 98).

Parece estar fora de dúvida que o instituto foi introduzido na Constituição pelo próprio Imperador, aproveitando as lições de BENJAMIN CONSTANT, expressas nos "Estudos de Direito Constitucional”.

Entende AFONSO ARINOS que a intenção deste foi muito mais de garantir o seu poder pessoal de que a função reguladora do entendimento entre os outros poderes. A parte o aspecto subjetivo da afirmação, é razoável entender-se que o Imperador teria em vista ambos os propósitos... A experiência vivida nas suas relações com a Constituinte não aconselharia outra coisa. A tendência do poder, em todas as épocas, é manter-se e, quando possível, expandir-se. Já se disse, aliás, quando constituiu-se moda-tentar explicar a expansão do poder imperialista no mundo comparando esta expansão com o fenômeno físico da expansão dos gazes, que o poder é "gazeificante", e que mereceu de MARROU uma crítica bem ao estilo francês.

Não importam, porém, para a nossa análise, as origens do instituto d'ora em diante. O fato histórico, de conseqüências densas, fosse ou não fosse aquele "enxerto de absolutismos" com que o apelidou CLOVIS BEVILAQUA, lá ficou, sobranceiro a toda história política do Império e continua subjacente nas cogitações dos estudiosos de nossos assuntos.

O que importa é meditar sobre o que representava como expressão de uma tendência, de um modo de ver e de sentir os nossos problemas em meio às correntes de idéias que percorriam o continente brasileiro, todas elas provindas de fontes exógenas. E isto veremos na próxima palestra.

Três ordens de idéias, identifica OLIVEIRA VIANNA, arregimentavam os idealistas de então. Diz ele: "Havia destarte, três ordens de idealistas:

a) os que ambicionavam transladar para entre nós o regime constitucional inglês com o seu parlamentarismo clássico;

b) os que desejavam estabelecer em nosso povo as instituições políticas americanas com o seu espírito federativo e descentralizador;

c) os que pretendiam dar corpo e vida às utopias engenhadas pelo racionalismo dos enciclopedistas e pela imaginação sonhadora dos convencionais franceses.

"Os que seguiam as inspirações francesas eram os que se chamavam propriamente "liberais": sua grande preocupação era o desenvolvimento do princípio democrático, por um lado, e, por outro, a organização das garantias individuais, das liberdades políticas, dos direitos do cidadão. Os que se orientavam pelo padrão inglês constituíam a falange dos "constitucionalistas" e dos "parlamentaristas" — porque pleiteavam a realização do espírito da Constituição de' 24, que era, segundo eles, o do parlamentarismo à inglesa. O grupo dos americanizastes era o dos "federalistas" — porque só compreendiam um governo federativo para o Brasil e reagiam, contra os que pleiteavam a monarquia unitária, isto é, contra os "parlamentaristas" e "constitucionalistas".

As academias de ensino superior, fundadas poucos anos após a Independência, passaram a ser os grandes centros de cultivo e distribuição do idealismo político, ao lado das sociedades, clubes de várias designações e das lojas maçónicas. Brilharam intensamente as Academias da Bahia, do Recife e de São Paulo na luta pela abolição, pelo federalismo, pela República, já nos derradeiros dias do Império. A imprensa, essencialmente doutrinária, disseminava os ideais em luta hegemônica. As elites coimbrãs que cercaram o berço do Império nascente, tramitaram sua visão política para as gerações que se sucederam nos bancos acadêmicos, constituindo uma herança que produzia talentos magníficos, espíritos nimbados de uma auréola de grandeza que uma visão crítica ainda que reveladora de seu desajustamento à realidade social com que deveriam lidar, não empana. Mesmo porque se seu pecado era professar um idealismo utópico, desgarrado daquelas realidades, utópicos outrossim, certamente, seriam os que deles exigissem a compreensão, já naquela época, das peculiaridades que a história e a geografia imprimiam à comunidade nacional, se nos relevam chamar assim ao conjunto demográfico disperso e mal nucleado, aqui e ali, na vastidão do território.

Exigir-se que, além dessa compreensão, elaborassem elas um modelo próprio de organização política e funcionamento adequado de estruturas administrativas — de instrumentos do governo, enfim — é demasia que não faria homenagem aos méritos da crítica.

É nesse ambiente fervilhante, reflexo das agitações que sacudiam a Europa e a América do Norte, que se inicia a obra da Independência, defrontando-se os seus estadistas, desde logo, com os dois problemas básicos que desafiavam as elites dirigentes de então como desafiaram as subseqüentes, como desafiam as dos nossos dias, sejam, o problema da organização do Poder Central e o da unidade nacional, na verdade duas faces de uma mesma questão. Ou melhor, duas da multifacetada problemática política de nosso país, desdobrando-se em descentralização e centralização, federação e estado unitário, descentralização administrativa e centralização política, federação territorial e descentralização funcional, toda uma teMática rica de opções e que, historicamente, sacudia a nação, em busca de um ponto de eqüilíbrio sobre a qual pudesse apoiar seu progresso e realizar o bem comum do seu povo.

Foi o Poder Moderador, ao longo do Império, que desempenhou o papel de divisor de águas entre as vertentes ideológicas de nitidez mais expressiva e o proselitismo partidário reformista.

O exame dos programas liberais de 1831, de 62, 68 e republicano de 1870 fornece precioso manancial de matéria informativa a respeito das reivindicações liberais.

A limitação dos poderes do Imperador, definidos na organização do Poder Moderador, ou a extinção radical deste, eram uma constante a permear as intenções de todos.

Com o Ato Adicional de 1834 as reivindicações liberais conseguiram obter algumas vitórias. O Imperador já abdicara, no 7 de Abril, e partira para se envolver nas questões d'além mar. Acalmaram-se as suspeitas sobre supostas tendências imperiais a favorecer o partido português e uma restauração que nunca lhe atravessara a cabeça.

Os liberais aproveitam-se das circunstâncias para tentar demolir o Poder Moderador, o Conselho de Estado e a vitaliciedade do Senado, isto é, todas as instituições que expressavam as características centralizadoras do sistema constitucional e que identificavam com instrumento do absolutismo.

Mas, se com o Ato sancionado pela Regência de 1834 não conseguiam suprimir o Poder Moderador nem a vitaliciedade do Senado, obtiveram, os liberais, a extinção do Conselho de Estado e — conquista principal — a descentralização política com a implantação do Poder Legislativo provincial.

Os excessos, federalistas do Ato Adicional logo se manifestaram nos excessos autonomistas das províncias, ameaçando a unidade nacional, usurpando competências privativas da Constituição do Império.

Em 1840, a Lei da Interpretação, restringe os excessos liberais e, em 1841 restaurava-se o Conselho de Estado, ainda que com poderes minimizados.

"No jogo pendular da História — diz AFONSO ARINOS — voltavam a denominar as forças conservadoras”.

Este "jogo pendular" era o fluxo e o refluxo das forças políticas em tomo do Centro; era o centrifugismo e o centripetismo que caracterizariam as duas grandes tendências para que se inclinariam o idealismo utópico e o idealismo realista e marcariam a nossa vida de povo independente, suas inquietações, suas agitações, o desperdício, tantas vezes, de suas energias cívicas, de seu patriotismo tantas outras mal aproveitado.

Esta pendulação encontrou sempre forças preponderantes que fizeram prevalecer o Poder Nacional contra a anarquia local e o perigo de estilhaçamento da unidade do Império.

Assim ocorreu com o Ato Adicional contra o municipalismo dissociador do Código_de Processo de 1832. Assim em 1840 com a Lei de Interpretação contra o provincialismo autônomo e fragmentário do Ato Adicional. Foi assim — OLIVEIRA VIANNA — em 1893 e em 1937, contra a revivescência do caudilhismo militar ou provincial saído da Constituição de 1891 e da de 34 (o mesmo que a Monarquia havia abolido em 1828, na Revolução do Equadro, em 1832, nos vários motivos regenciais; em 1836 na Revolução dos Farros; em 42 na Revolução de São Paulo e Minas; em 1848 na Revolução de Pernambuco — e que o sistema federativo, com a Constituição de 1891, havia permitido que se reconstituísse e engrandecesse".

Não fora a clarividência, mais instintiva, ou intuitiva se preferirem, de alguns dos nossos pró-homens e a Nação se teria multipartido seguindo o destino fragmentário da Arriérica Espanhola.

Digo instintiva ou intuitiva porque só mesmo um sexto sentido nestes homens poderia neutralizar as conseqüências, necessariamente catastróficas, para a unidade do grupo, decorrentes de artificialismo das suas instituições políticas.

Realmente, foi o Poder Moderador que salvou a unidade do Império quando um parlamentarismo, não instituído mas praticado, se estabeleceu em conflito aberto com suas bases teóricas ou, melhor dizendo, em conflito aberto com a sua principal base teórica que é a existência de uma opinião pública organizada de cujas inspirações e exteriorizações se alimenta e legitima. O governo de gabinete a pressupõe. Todo seu mecanismo tem por fundamento uma opinião pública informada, vigilante, consciente, participante, capaz de se pronunciar quando se instale uma crise de governo. Que um sistema desses pudesse funcionar na Inglaterra, razoavelmente, vá. Que se pensasse em transplantá-lo para o Brasil do sec. XIX, há um século e meio, na pureza anglicana de suas linhas, seria tentativa que nenhum Dr. Barnard contemporâneo poderia arriscar sem atentado à deontologia política, tantos os perigos legais para o paciente. Pois, como se viu, não faltaram esses pioneiros audazes das técnicas de transplante entre nós, já nos primeiros instantes da Independência. Foram contidos pelos que, mantendo os pés na terra, sabiam, perfeitamente, ou sentiam, confusamente, que não se poderia encontrar naqueles brasis ásperos e estirados, de população ruralistas que a geografia e as estruturas de produção atomizavam pelas distâncias, algo que se parecesse com uma "opinião pública" suficientemente capacitada a pronunciamentos políticos que dirimisse confrontos ou contrastes entre um Parlamento e um Gabinete, em torno de questões totalmente inacessíveis às possibilidades de sua compreensão.

Quando Pedro II atinge a maioridade, por antecipação, aos' 14 anos, em julho de 1840, o país já mais pacificado com o encerramento das turbulências provinciais, teria que enfrentar, ainda, cinco anos da Revolução Federalista Farroupilha.

Ingressaria, após, num período de estabilização que se estenderia até o início da Guerra do Paraguai.

A conciliação permitira que os dois grandes Partidos do Império — o Conservador e o liberal — se compusessem sob as vistas do Imperador e a condução do Paraná. Mas a Conciliação não indicava que se tivessem fundido os contrários numa síntese eliminatória das contradições fundamentais entre a realidade nacional e as estruturas políticas do Império; ou, como se diria hoje, que se tivessem por eliminados os antagonismos que impediam a organização nacional atenta às peculiaridades que mais de trezentos anos de história configuravam numa personalidade própria, feita, embora, de componentes múltiplos, exógenos de várias origens, mas já se amalgamando sob a pressão da mesologia geográfica e social lentamente cristalizada.

Ao reverso, revelava uma outra face dos desajustamentos: os dois partidos políticos e seus programas. Esta, aliás, no terreno da política prática e, não teórica, seria uma constante que atravessaria o período imperial e invadiria o republicano. Ela explica, em grande parte, a conduta política de Pedro II que não apenas via em volta do trono aqueles representantes mais categorizados agirem em descompasso completo. Minas; em 1848 na Revolução de Pernambuco e que o sistema federativo, com a Constituição de 1891, havia permitido que se reconstituisse e engrandecesse".

Não fora a clarividência, mais instintiva, ou intuitiva se preferirem, de alguns dos nossos pró-homens e a Nação se teria multipartido seguindo o destino fragmentário da América Espanhola.

Digo instintiva ou intuitiva porque só mesmo um sexto sentido nestes homens poderia neutralizar as conseqüências, necessariamente catastróficas, para a unidade do grupo, decorrentes de artificialismo das suas instituições políticas.

Realmente, foi o Poder Moderador que salvou a unidade do Império quando um parlamentarismo, não instituído mas praticado, se estabeleceu em conflito aberto com suas bases teóricas ou, melhor dizendo, em conflito aberto com a sua principal base teórica que é a existência de uma opinião pública organizada de cujas inspirações e exteriorizações se alimenta e legitima. O governo de gabinete a

pressupõe. Todo seu mecanismo tem por fundamento uma opinião pública informada, vigilante, consciente, participante, capaz de se pronunciar quando se instale uma crise de governo. Que um sistema desses pudesse funcionar na Inglaterra, razoavelmente, vá. Que se pensasse em transplantá-lo para o Brasil do sec. XIX, há um século e meio, na pureza anglicana de suas linhas, seria tentativa que nenhum Dr. Barnard contemporâneo poderia arrriscar sem atentado à deontologia política, tantos os perigos legais para o paciente. Pois, como se viu, não faltaram esses pioneiros audazes das técnicas de transplante entre nós, já nos primeiros instantes da Independência. Foram contidos pelos que, mantendo os pés na terra, sabiam, perfeitamente, ou sentiam, confusamente, que não se poderia encontrar naqueles brasis ásperos e estirados, de população ruralistas que a geografia e as estruturas de produção atomizazavam pelas distâncias, algo que se parecesse com uma "opinião pública". suficientemente capacitada a pronunciamentos políticos que dirimisse confrontos ou contrastes entre um Parlamento e um Gabinete, em torno de questões totalmente inacessíveis às possibilidades de sua compreensão.

Quando Pedro II atinge a maioridade, por antecipação, aos' 14 anos, em julho de 1840, o país já mais pacificado com o encerramento das turbulências provinciais, teria que enfrentar, ainda, cinco anos da Revolução Federalista Farroupilha.

Ingressaria, após, num período de estabilização que se estenderia até o início da Guerra do Paraguai.

A conciliação permitira que os dois grandes Partidos do Império — o Conservador e o liberal — se compusessem sob as vistas do Imperador e a condução do Paraná. Mas a Conciliação não indicava que se tivessem fundido os contrários numa síntese eliminatória das contradições fundamentais entre a realidade nacional e as estruturas políticas do Império; ou, como se diria hoje, que se tivessem por eliminados os antagonismos que impediam a organização nacional atenta às peculiaridades que mais de trezentos anos de história configuravam numa personalidade própria, feita, embora, de componentes múltiplos, exógenos de várias origens, mas já se amalgamando sob a pressão da mesologia geográfica e social lentamente cristalizada.

Ao reverso, revelava uma outra face dos desajustamentos: os dois partidos políticos e seus programas.

Esta, aliás, no terreno da política prática e, não teórica, seria uma constante que atravessaria o período imperial e invadiria o

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republicano. Ela explica, em grande parte, a conduta política de Pedro II que não apenas via em volta do trono

—218— aqueles representantes mais categorizados agirem em descompasso completo com os princípios que pregavam os programas partidários, como as freqüentes usurpações recíprocas que as facções se faziam. Via também que os programas, afinal, não passavam de rótulos ou vaguidades de contorno difusos que serviam para agrupar muitos homens e interesses e bem menos idéias...

As reformas liberais, propugnadas por estes, bandeiras de suas hostes, foram os conservadores que as fizeram eleição direta, a reforma judiciária, as leis de emancipação civil, foram realizadas por estes. Quando no poder, os liberais se esqueciam rapidamente do que diziam quando na oposição. Exemplo disso e sua atitude frente à lei de 1841 que apontavam como compressora das franquias da oposição, mas que nunca, quando no governo, encontraram tempo para revogar... porque lhes servia à luta para manterem-se nele. Donde a conclusão: não havia opinião pública organizada, capaz de sustentar um governo de gabinete, dando-lhe legitimidade social, como não havia uma opinião partidária capaz de exprimir uma acresão popular que seria levada em conta quando as circunstâncias exigissem que a consulta fosse feita segundo as normas de funcionamento do regime.

Não é de se admirar, com efeito, que o Imperador praticasse a política da gangorra, escolhendo ora um, ora outro partido para as tarefas de governo, já que em nada se distinguiam um do outro...

Em 1868, quando da queda do Gabinete Zacarias, terá sido a prática desse jogo, já agora influenciado por outros componentes, que fez do episódio um momento de enorme importância para a história das instituições políticas brasileiras.

Não é difícil veríficar-,se que eram de natureza política, preponderantemente política, os fatores das crises institucionais que até então se manifestaram no Império e as fórmulas salvadoras que- acudiam às elites dirigentes para optimizar o regime. As transformações corresponderiam, assim, à realização de estereótipos criados pelo teorismo político.

Todas as preocupações giravam em torno de temas destes territórios, cada qual, a seu tempo, respondendo pelos males nacionais: limites aos poderes, mecânica do sistema parlamentar, sistemas eleitorais — como a eleição direta de Saraiva, a lei dos círculos, a própria monarquia, enfim... Agora, todavia, os tempos eram outros. Um fato dos mais importantes ocorrera em meio à longa dominação do Partido Liberal, no governo desde 1862: a guerra do Paraguai e com ela, a irrupção, na cena política, ou, se o quiserem, na arena de disputa do poder, da coorporaçãó armada. Esta como que toma consciência de seu papel de preservadora da unidade nacional, que desempenhara como instrumento -

do poder civil pela estupenda ação de Caxias e que desempenharia, desde então, mas já com poder de iniciativa no processo político. Por outro lado, a simpli. cidade de nossa organização econômica não engendrava uma multiplicidade de interesses que, em busca da proteção, procurassem voz política institucionalizando-se em partidos. O Liberal e o Conservador eram bastantes para os expressarem. Em torno do primeiro ajuntaram-se os interesses da burguesia comercial, os idealistas liberais e, a intelectucilidade urbana. O segundo aglutinava a aristocracia rural, os homens do café e do açúcar. Contudo a organização elementar de nossa economia estava longe de provocar a influência poderosa que o jogo dos interesses econômicos teve no nascimento dos dois grandes Partidos americanos, o Republicano e o Democrata, por exemplo, embora lá, como aqui, o mesmo movimento centrifugo e centrípeto tenha presidido a formação das duas organizações.

Até então a presentaça ou as disputas de tais interesses — legítimos, evfdenternente — no confronto das forças políticas, nunca havia ameaçado as bases da monarquia nem pré-opinado sobre formas de governo e assuntos desse tipo, aos quais eram indiferentes, tanto quanto estes não os levavam em conta.

Mas agora, um movimento de funda repercussão no contexto sócio-econômico do país estava em marcha: o abolicionismo, que desde 1860 começara a influir politicamente. E isso era um componente novo a mais na crise do poder que derrubaria o trono.

A queda do batinete zacarias não era, assim, apenas uma queda de gabinete, como tantas outras.

E conhecido o incidente que deu por terra com o gabinete chefiado por ele. Na lista tríplice de senadores pelo Rio Grande do Norte, entre dois nomes obscuros, constava o de Sales Tomas de

Homem, figura reffilgente de talento e cultura. O Imperador escolheu Torres Homem, como era de sua exclusiva competência no exercício do Poder Moderador. Zacarias, que presidia o Gabiente, sem qualquer problema de maior gravidade a estremecer as suas bases parlamentares, discorda e se demite.

E conveniente traçar um perfil rápido do político que deu causa ao desate de um processo histórico de tanta importância para a análise do desenvolvimento de nossas instituições.

Ninguém, talvez, melhor que Nabuco, terá retratado personalidade e deste homem duro e fiel ao "seu partido", isolado nas suas convicções de que seria ao país servindo ao grupo partidário que integrava:

"O partido, diz Nabuco, era a sua família espiritual; a ele sacrificara o coração, a simpatia, as inclinações próprias; ele podia dizer da política... que o mais repulsivo dos vícios é a sentimentalidade. Não havia nele traço de sentimentalismo; nenhuma afeição; nenhuma fraqueza, nenhuma condescendência 'íntima projetava a sua sombra sobre os atos, as palavras, o pensamento, mesmo, do político. A sua posição lembrava um navio de guerra, com os portalós fenchados, e convés limpo, os fogos acesos, a equipagem a postos, solitário, inabordável, pronto para a ação". Faltava-lhe, nota OLIVEIRA VIANNA, contudo, a

mentalidade do homem do estado: "O verdadeiro estadiata, como observa um biógrafo de Hamílton, pratica a política da colméia, ao passo que os "políticos" praticam outra política — a política da abelha. No primeiro, tudo se subordina ao interesse coletivo. Nos segundos, tudo se subordina ao interesse individual. Zacarias, é, claro, não se inclui entre os primeiros, mas não seria justo incluí-lo entre os segundos". "Ele praticaria a política da colméia, desde quo conceito da

colméia fosse o do partido”.

Demitido Zacarias, liberal, o Imperador chama Itaboraí, conservador, que organiza um gabinete conservador, diante de uma Câmara que, até à véspera, se manifestara unanimemente liberal, porque liberal era o gabinete... e sem conhecimento da Câmara, contra a sistemática do regime.

A indignação dos liberais apeados do poder foi indescritível. A descrença no sistema parlamentar do Império, a desconfiança no Poder Moderador exercido pelo monarca e sua política de rotatividade dos

partidos seriam as alavancas' daí por diante utilizadas pela dialética dos adversários do trono. O Poder Moderador, passou, então, a ser considerado como Poder Pessoal, incompatível com os princípios da monarquia constitucional, porque se manifestava essencialmente discricionário, desgarrado dos cânones do sistema.

❍Imperador; na verdade, tinha suas razões para agir como agiu diante da inconsistência dos partidos, tantas vezes revelada, ao longo de seu reinado.

❍conflito centralização - descentralização, bem expresso no Ato Adicional, na Lei de Interpretação, ofereceria, como se disse, os elementos básicos que orientariam as duas correntes.

Era de se esperar que assim definidos os dois Partidos, podadas as demasias liberais, esmaecidas às ameaças restauradoras e o reacionarismo regressista, o bipartidarismo permitese o funcionamento adequado do sistema parlamentar, com a autenticidade teórica e prática das agremiações.

Entretanto, isso não aconteceu. Nada impediu que surgisse a Facção Aulica... Foi esta que, de mãos dadas com os liberais, forçou a Maioridade em 1840.

Uma força extrapartidária, pois, movida uma multiplicidade de causas que se inserem no processo histórico, atraídas pela perspectiva dum trono que governaria de verdade e não apenas reinaria, encontrara acesso fácil no inconformismo oposicionista e se tornara em centro vital de decisão política. "Começa então -- diz Afonso Arinos — o antagonismo partidário a perder a sua razão 'de ser, política e programática, passando a simples luta de facções. Daí a necessidade de uma forte coalizão dos Partidos ir-se evidenciando pouco a pouco".

A Facção Aulica passara a desempenhar um papel de centro de gravidade ante o deseqüilíbrio dós Partidos; tendo rompido com os conservadores fizera o gabinete liberal em 1844, chefiado por Macaé...

Os Partidos abraçaram-se na Conciliação... Pode-se dizer: enfraqueceram-se na Conciliação, dividindo o Poder entre si... E Afonso Arinos lembra que muitos observadores vêem a reforma eleitoral do Paraná como visando à quebra da homogeneidade dos partidos para que não se expressassem em maiorias parlamentares...

❍ procedimento dos políticos pertencentes a ambos os partidos também

não era de molde a merecer as homenagens do Imperador. Foi o próprio Zacarias

quem, já em 1870, em pronunciamento famoso, reconhecia isso dizendo:

"O conservador não respeita o liberal; o liberal não respeita o conservador; o conservador flagela o liberal; o liberal flagela o conservador — e o resultado é que a Coroa tem em má conta um e outro". Ora D. Pedro assistira a todos estes acontecimentos

torvelinhando à volta do trono; a dança dos partidos, e artificialismo dum sistema cujos-pressupostos sabia não estarem cumpridos. Não poderia levar muito a sério o seu mecanismo.

Sabia perfeitamente que não havia no País uma opinião pública por trás das representações parlamentares, tanto que se esforçou_ sempre, por encontrar um processo eleitoral que as sagrasse de legitimidade, não apenas jurídica, formal, mas substancial.

Diante da atitude de Zacarias, atitude pessoal, despreza o fato de não haver uma questão política a perturbar as relações entre a Câmara e sua maioria liberal, e o gabinete, igualmente liberal, e convoca um conservador, praticando uma imperdoável heresia contra a dogmática do sistema...

—221 —

É bem provável que o Imperador tenha se aproveitado da oportunidade para desatar o nó do conflito entre Zacarias e Caxias gerado entre intrigas políticas em torno da condução da guerra, entregue pelo ministro liberal ao militar conservador. Este -pertencia à estirpe de homens que fazem a política da colméia, mas para quem a colméia é a Nação. Aquele praticaria a política da Colméia desde que esta fosse o seu Partido, através do qual pensava servir à Nação…

Quando os ataques a Caxias partiram do Partido Liberal, não se poderia esperar de Zacarias que agisse como estadista, como lhe impunham as circunstâncias. Agiu — ou não agiu — consoante seu psicologismo, como homem de partido. O conflito era inevitável. Para o Imperador seria mais do que conveniente que se alguém devera sair este não fosse -o que enfrentava a tarefa imensa de reorganizar o exército e prosseguir na guerra. Entre um Gabinete e a Nação, o Imperador não titubearia no momento em que tivesse de fazer a escolha. O momento forneceu-o o próprio Zacarias...

Mas a verdade -é que o ambiente era de insatisfação geral. Descrido o regime, o anseio por uma nova ordem de coisas facilitou o progresso das idéias republicanas.

Forças exógenas, como os interesses do capitalismo britânico na abolição da escravatura, e endógenas, como a expansão cafeeira que dera ao Império prosperidade financeira, trabalharam os subterrâneos da velha instituição. No Primeiro Congresso Republicano Provincial de tiú, dos 29 representantes, 14 eram advogados e 9 fazendeiros, sendo que, daqueles, muitos exerciam profissão nas zonas cafeeiras... O positivismo ganhava adeptos entre republicanos como Silva Jardim, Julio de Castilhos, Demétrio Ribeiro... A questão religiosa atirara a Monarquia contra a Igreja. No Exército, a questão militar abrira feridas que sucessivamente sangravam mais e mais. A desafeição geral pela Coroa e pela própria pessoa do Imperador, quebrando a solidariedade moral entre a monarquia e as várias forças que a sustentavam — elemento indispensável à sustentação de qualquer regime ou governo — tudo isso deu por terra com o trono.

A República era uma fatalidade. Não que ela representasse uma aspiração popular.- Muito ao

contrário, o Partido Republicano era inexpressivo e tanto o proselitismo periódico como a dispersão dos centros de propaganda se concentravam mais numerosamente no Brasil Meridional e em Minas. O povo, ele mesmo, não consolidara uma opinião entre formas de governo ou regimes. O Exército também não era, na sua totalidade, republicano.

Mas a República foi proclamada e um clarim tocou silêncio sobre o paço de São Cristóvão.

O sonhos dos que viam na implantação do novo regime a solução de todos os nossos problemas, em breve foi desfeito. A Nação mergulhou em dificuldades de outra ordem. A descentralização federativa ameaçou a unidade nacional, a política dos governadores estimulou a formação de oligarquias estaduais, de clãs parentais cujos resíduos, até hoje, se mantêm vivos e, tudo, provocou novas reações violentas, novas tentativas, novas frustrações.

As Forças Armadas, que a partir da guerra do Paraguai, começaram a tomar consciência de seu papel de preservadores da unidade nacional, como se disse, por elas garantida a partir da Independência quando Caxias soldou-a do Maranhão ao Rio Grande do Sul, proclamada a República sentiram-se responsáveis pelas conseqüências de sua direta intervenção no processo político institucional. E não mais se alhearam dele. O sistemático esvaziamento doutrinário e programático dos partidos políticos, transformados em grupos de oligarcas, organizados para tomada do poder, sem quadros capazes de saber, ao menos, o que fazer com ele, simples ajuntamento de pessoas em torno de interesses

pessoais, haveria de acentuar, cada vez mais, a tendência a uma participação ativa da corporação armada no processo político. Mais adiante, quando tratamos do relacionamento entre tecnocratas e militares ver-se-á porque.

O velho dilema que servira de fulcro em torno do qual girara, ora se condensando — centripetamente — ora se dispersando — centrifugamente — o processo da institucionalização política brasileira, sob o Império, permanecia.

A Conscituição de 1891 vitoriara o pensamento centrifugador, com o enfraquecimento do Poder central. Do parlamentarismo utópico, em grande parte neutralizado em seus efeitos negativos pelo Poder Moderador que o artificialismo do sistema forçava a um exercício arbitrário, passavamos à república utópica...

A influência norte-americana que já se insinuara no Ato Adicional de 1834, foi decisiva.

Sem renunciarmos às nossas tradições francófilas, acentuávamos a tripartição dos Poderes, mas deixavamos os figurinos ingleses para nos inspirarmos nas linhas do Capitólio de Washington para onde se votava a oratória de Quintino, deslumbrado com as realizações da democracia do Norte.

Como consequência da reação ao poder pessoal do Imperador que passou a ser considerado como fonte dos males e desencontros nacionais, a República trataria mais de organizar a liberdade do que de organizar a autoridade. A chave dos problemas nacionais estava em fazer da Constituição um estatuto de limitação ao poder, no mais puro estilo do constitucionalismo histórico, nascido do contra-absolutismo.

A mensagem de Deodoro lida no "antigo paço de São Cristóvão", no ato solene de abertura das sessões do Congresso, a que Barbalho nos seus Comentários chama de "razão de ordem" da nova Constituição, demonstra o estado de ânimo dos espíritos contra a monarquia. Lendo-se hoje a mensagem bem se pode avaliar das injustiças 'a que o espírito de facção pode conduzir. Tem-se a impressão de que o Brasil saía das mãos de um régulo impiedoso, último rebento duma dinastia de tiranos que o tinham atado a grilhões cujos ferros teriam ensanguentado o séc XIX, do Amazonas ao Rio Grande!

Segundo a "razão de ordem" de Deodoro, a república só não se tinha implantado em 1831 quando do "banimento" de Pedro I porque (sie)" o só ainda quase berço de um órfão que ele confiou à nossa guarda e carinhos" teria contido.

Ora, às vésperas, ainda, de 15 de novembro, os republicanos, após o golpe militar, corriam a procurar Deodoro, pois, este mesmo, não sabia exatamente, se ficaria na derrubada do Gabinete de Ouro Preto ou se chegaria à demolição da instituição monáquica... E o próprio Rui Barbosa não manifestava pela República maiores entusiasmos. Era federalista, isso sim, federação, com ou sem república". O problema, para ele, era a tradicional dicotomia — centralização e descentralização. Uma nota curiosa no advento da República: os primeiros republicanos eram avessos aos partidos nacionais. A instituição partidária emergia desmoralizada dos escombros da monarquia.

Ouça-se o que dizia João Pinheiro: "Muitas têm sido, no regime republicano, as tentativas para a criação de partidos, não se tendo, entretanto, conseguido, até agora, a formação de-um só que tenha alcançado apoio sério da opinião. Semelhante partidarismo que faz a Monarquia tombar ante a indiferença nacional, deve ser banido da República, que precisa sanar o grande mal que nos aflige"!

Também na América do Norte os pais da Constituição não haviam pensado em instituir partidos permanentes.

O federal ismo central izador de Hamilton e a teoria descentralizadora de Jefferson, fortemente influenciadas, como nota BEARD, pelos interesses em busca de proteção política em choque nos instantes pendulares que Se seguiram ao movi' mento federativo das colônias logo polarizado num centro de equilíbrio, até por medida de salvação da nascente União, federalizando-se, deram ensejo ao nascimento dos dois grandes Partidos americanos. Os interesses financeiros, naturalmente expansionistas, advogavam a centralização que lhes permitiria uma institucionalização jurídica normativa e interpretativa ou, melhormente, construtiva, capaz de lhes garntir a expansão sem os tropeços do regionalismo, naturalmente egoísta, no sentido social; estes, por sua vez, regiam à centralização na medida em que a viam como ameaça ao espírito tradicional do "self-government", herdado da velha Inglaterra e que, encontrara nas amplidões americanas terreno propício a seu desenvolvimento, por mais forte justificação.

Partido Republicano e Partido Democrático surgiram,. desse modo, do antagonismo inicial entre as forças centralistas e descentralistas de uma forma, como observa BIMKLEY, toda natural: a combinação dos grupos que contribuíram para redigir a Constituição estava a cargo do governo Federal, estabelecido de acordo com suas

cláusulas e dentro em pouco, sob a batuta de Hamilton, aplicou normas tão ostensivamente favoráveis aos interesses comerciais e financeiros que originou a oposição organizada dos agraristas. Para surpresa, assim, dos pais da Constituição os partidos apareceram como centros de polarização política dos interesses conflitantes no espaço econômico-social da Nação Americana.

Entre nós os partidos não tinham uma infra-estrutura de interesses poderosos da qual surgissem identificados, assim, com uma realidade social subjacente.

Já apontamos essa circunstância quando analisamos os dois grandes partidos do Império. E claro que, a crescente complexidade da organização econômica faria com que seus capitães da indústria e os representantes da aristocracia rural, quatrocentona ou não, procurassem ingressar nos partidos políticos e ingressaram neles, realmente. Todavia não se pode dizer que o fizessem aderindo a programas em que enxergasem uma identidade de idéias e interesses objetivamente considerados convergentes com os de sua categoria econômica. Procuravam, mais, certamente, uma posição de influência na máquina do poder para manipulá-lo mais à vontade em favor de sua economia pessoal...

Não há severidade nesta afirmação e muito menos em julgamento moral do político republicano. Exploradores do poder sempre houve e sempre haverá, em qualquer clima. A verdade é que quando as instituições não oferecem condutas normais para que se expressem as forças que trabalham a sua realidade orgânica, essas procuram fazer-se ouvir, ou impor, através de. processos ind i r e tos cu jos m é t o d o s f a c i l m e n t e desgarram dos princípios da moral política e da moral administrativa. A corrupção surge, então, como filha dum concubinato que poderia ser evidado pelo patrimônio legítimo entre a realidade orgânica da Nação e sua projeção política institucional.

Não desejaria que se interpretasse esse comentário como uma posição extremada contra o partido político, como se ele fosse intrinsecamente imprestável à realização dos fins do Estado. Absolutamente, não. Nego, sim, que a chamada democracia partidária seja a única forma possível de se realizar a democracia,

como querem muitos. Mas entendo a democracia partidária como uma forma possível, perfeitamente viável, de se organizar a democracia. Apenas entendo que para viabilizar esta missão, um conjunto de pressupostos devem existir para que ela se cumpra. Não importam, somente, as normas de direito eleitoral que permitem a participação do povo na criação do poder ou no se representar em seu exercício cíclico através do partido. Importa, hoje, principalmente, criar uma estrutura de governo em que o partido participe das decisões do poder, como organismo vivo em cujo seio encontrem formas legítimas de expressão das categorias de interesses, antes mesmo que tais decisões, quando for o caso, cheguem a nível de elaboração legislativa final 'no Poder Legislativo. Esta seria uma forma de manter atuante e participante o partido, impedindo a sua hibernação na entressafra da colheita eleitoral. Porque, fundamentalmente é essa apatia das organizações partidárias, limitadas a um papel de instrumento de captação da vontade popular, que as conduziu ao alheamento das realidades do país, ao descrédito, arrastando para o mesmo desprestígio a atividade política, assim tão mal entendida, e, conseqüentemente, o político em' cuja figura encarnaram as deficiências que são muito mais das estruturas do que dele próprio.

Ao longo da República, pois, permaneceram a se agravaram os fatores de disjunção entre as instituições políticas e o País real que se entremostraram no. Império. As ações e reações em tomo da centralização e descentralização que tiveram lá o Poder Moderador como um divisor de águas das várias vertentes ideológicas, vieram a se manifestar em torno do Presidencialismo, com o' federalismo extremado, a política dos governadores manietando o poder central através de suas bancadas na Câmara e no Senado e o domínio de forças militares de caráter estadual, com grave ameaça a unidade nacional.

Sucederam-se as revoluções como sísmicos abalos na lenta estratificação das camadas sociais em busca de acomodação. Sucederam-se as reformas constitucionais como se sucederam as Constituições.

Estas tiveram que, gradualmente, observar reivindicações sociais que pressionaram as fluídas disposições de caráter mais ideológico ou doutrinário do texto de 1891, porque novos componentes trazidos pela já apontada complexidade crescente da economia e das forças de produção mais sofisticadas reclamavam lugar ao sol.

O federalismo político, delirantemente liberal, começou a ceder passo a um federalismo econômico, em que" os Estados abriam mão

das prerrogativas de sua autonomia formal, preferindo as vantagens da solidariedade nos projetos de desenvolvimento regional. Era inevitável o fortalecimento dos poderes reservados à União, num movimento de retorno à organização centrípeta em reação ao centrifugismo da primeira constituição republicana.

A inquietação nacional na procura de seus próprios caminhos haveria de encontrar na corporação armada uma força atuante que se engajara, definitivamente, no processo político institucional desde a proclamação da República, feita sob a responsabilidade da espada de Deodoro, que a manejou, meio a contragosto, como se viu, sob influência da juventude militar idealista e dos republicanos audazes.

Esta mesma juventude fardada assumiria, com o tenentismo, a reação centralizadora contra a perigosa política dos governadores. Envolvida no processo pol í t ico cometer ia equívocos que incessantemente procuraria emendar, mas dela não se poderia dizer que esteve alguma vez a serviço de interesses de facção contra os interesses nacionais. Muitas vezes até, ainda em exemplos recentes, foram as facções que se decepcionaram quando supunharmque as espadas sairíam de suas bainhas para socorrer. escuros partidários...

A amplitude e gravidade dos problema nacionais multiplicados pela progressiva complexidade da vida moderna, exigindo das elites dirigentes preparo adequado para enfrentá-los, encontrou os partidos políticos e as lideranças políticas inteiramente desarmadas para tarefa de tal magnitude. Em sentido inverso, as exigências da racionalização do poder, o conceito de guerra total, a participação brasileira no último conflito mundial, levaram os Estados Maiores a expandirem o campo de suas preocupações...

A improvisação, a eficiência administrativa deixada à eventual vocação dos ocupantes dos postos, não se compadeceria com as exigências do planejamento.

E o espaço que caberia às organizações partidárias ocupar, na estruturação de um pensamento político nacional e na execução de urna diretriz superiormente considerada, foi ocupado por outras forças, saídas, umas das escolas superiores das corporações armadas, outras das especializações preponderantemente da área dos estudos econômicos.

O Poder Legislativo sofreria, mais diretamente, as conseqüências dessas transformações provocadas, sem dúvida, pelo impacto tecnológico e seu aceleramento progressivo.

Este o novo componente da crise institucional. A meu ver o mais importante, o mais sério, e mais perigoso de todos aqueles que até agora influíram no desenvolvimento e nas transformações das instituições políticas brasileiras. Porque neste não se jogam, apenas, os valores dessas estruturas, em si mesmas, mas o próprio sentido de vida que devamos escolher para nós próprios e para a comunidade nacional.

Procuramos, em rápida exposição oral, fixar os fatores das transformações operadas nas estruturas sociais e políticas do Ocidente europeu, bem como a revolução de idéias e sentimento que o sacudiu, como indispensável introdução à análise dos problemas gerados pela tecnologia nos dias em curso.

A civilização tecnológica, último produto da ciência aplicada, é afinalista e essa característica ameaça fazer da nossa época uma espécie de introdução à teoria do nada.

Talvez fosse mais apropriado dizer-se que a civilização tecnológica tem um fim em si mesma, o que seria uma forma de expressar o mesmo pensamento com a vantagem de deixar, desde logo, explícito o aspecto mais grave dos problemas que suscita, e que se pode definir como o da ausência do sentido de vida no homem contemporâneo.

MAX WEBER, quando ainda a velocidade do progresso tecnológico não havia atingido a espantosa aceleração que registra em nossos dias, depois de considerações sobre o significado da intelectualização científica, colocara o problema nesta pergunta inquietante: "esse processo de desencantamento, realizado ao longo dos milênios da civilização ocidental e, em termos mais gerais, esse "progresso" do qual participa a ciência como elemento e motor, tem significação que ultrapasse essa pura prática e essa pura técnica?".

Com a obsessão da eficiência a inspirar-lhes as decisões os homens que movem as suas alavancas tendem a esquecer e esquecem, aos poucos, a função instrumental dos sistemas e organizações gerados por ela. O delírio organizacional e a intolerância agressiva do espírito de sistema são sintomas que indicam o atingimento dessa fase degenerativa quando, então, não jogam quaisquer considerações, de qualquer natureza, desde que não estejam a serviço da eficiência, símbolo e mito da nova ordem. O resultado dessa refração na bissetriz do ângulo de visão é que um universo extenso e plúrimo de fenômenos, de juízos, de realidades que se movimentam na área trabalhada por um procedimento técnico, por este atingido em maior ou menor

proporção, será medido por uma escala de valores cujo crivo não guarda qualquer relação com outros padrões que não os impostos pela ideologia tecnológica: o eficienciologismo, dir-se-ia, com licença dos misoneistas eventuais...

Nas áreas sociais onde o processo tecnológico se instalou originariamente a substituição de valores tradicionais se fez por etapas, operando transformações que acompanharam o ritmo de sua constante aceleração num processo mais lento que; se nem por isso deixou de ser danoso, pelo menos permitiu sobrevivesse um resíduo que poderá ser o núcleo de uma reação que se tem o direito de esperar para não desesperar. Já nos espaços sociais pré-tecnológicos atingidos, abruptamente, pela importação da civilização técnica, a onda de choque age arrazadoramente sobre a tessitura dos valores consagrados em que se apóia a unidade e tipicidade que os diversificam de outros espaços sociais.

Por isso, dela se pode dizer que é "ocasião de escândalo", no sentido evangélico da expressão. Os processos utilizados na comunicação de massa postos pela tecnologia a serviço da publicidade comercial, por exemplo — Eros a serviço de sociedade de consumo, para se aproveitar o que a crítica de Marcuse tem de aproveitável — fornecem a medida desse desabusado descompromisso com outros valores que serão atacados, destruídos, erradicados, dos hábitos e da memória do grupo ou seguimento social visado, sacrificados à eficiência dos métodos de venda.

Uma vez se instale na terra desertada daqueles valores ela opera uma substituição segundo seus próprios critérios.

Ao amoralismo total, à neutralidade ética da civilização tecnológica, não comove a destruição das estruturas sociais que se sustentam sobre princípios não quantificáveis, nem ela está programada para entender outro tipo de relação que não se encontre nos territórios sob jurisdição exclusiva dos fenômenos de produção e consumo e da sofisticação dos sistemas organizacionais, visando, sempre, à eficiência É essa indiferença ou idiossincrasia ao que exista fora — acima ou além —

dos seus mecanismos, que estimula a confusão de meios e fins na ética tecnicista.

Ora, a eficiência é atributo eventual de 1111(1 processo, de um sistema, de - u'a metódica e nada indica que, por ser altamente eficiente, não seja tal processo, tal sistema, tal metódica, altamente danosos a uma ordem de valores, muitos tão altos que intangíveis e

que, nem por lhes serem ignorados, devém ser, necessariamente, destruídos.

A civilização tecnológica promove, assim, a formação de uma mentalidade, ou ideologia própria, que agride a tudo aquilo que se constitua de elementos incompatíveis com os do seu projeto. Se são barreiras levantadas por preconceitos de natureza moral ou religiosa, removam-nas. Se são hábitos de vida comunitária, como festas, comemorações coletivas etc. que interfiram na programação do trabalho, nos índices do homem-hora, na rentabilidade de investimento empresarial, eliminem-nos, ainda que isso represente a perda da tradição histórica e, conseqüentemente, da identidade do grupo que entra em processo de regressão cultura e al ienação em virtude do desaparecimento progressivo dos traços comuns do seu psicologismo.

Neste sentido, como em outros, a civilização tecnológica é antinacional. A diversificação histórica que tipifica a personalidade moral das nações lhe é indiferente ou só tem interesse na medida em que apareça como obstáculo a seus métodos, neste caso como fator a ser eliminado; a uniformidade é peculiar à ideologia tecnicista, é atmosfera indispensável às suas funções vitais...

Assim, não é de estranhar a feição antinacional e, logo, internacionalizante, que vão definindo isso que hoje a análise sociológica e a Ciência Política apontam como um poder — o Poder Tecnocrático — que se instala, clandestinamente, à sombra e sob a proteção das estruturas ostensivas do poder do Estado, quando não se identifica com elas para mais rapidamente elimiá-lo.

A propósito, JACQUES BILLY, com título já traduzido para o português — Les Techniciens et le Pouvir — historiando a evolução da tecnocracia na França, desde antes do regime de Vichi, não encontrou dificuldade em registrar a influência das idéias de Saint-Simon a informar as diretrizes dos tecnocratas em ascenção e no alto "espírito de classe" que os une.

Originários de determinados centros de estudos, formados em métodos e por padrões comuns de análise e de ação, os tecnocratas passaram, ali, a realizar uma verdadeira "colonização" dos setores empresariais e da administração estatal. O grupo de politécnicos tendo à frente Jean Coutrot chegou a constitui-se em seita secreta (!), com ramificações internacionais, apoiado pelo Banco Worms, o que lhe valeu um processo, que não chegou ao fim, após a Libertação. Aspirava, o grupo, a una tecnocracia total, sob inspiração do industrialismo — sainsimonista, a mesma de que se alimentaram Marx e Engels...

Ora, o industrialismo sainsimonista objetivava, justamente a destruição do Estado para substituí-lo por uma facção, a da liderança industrial que se organizaria espontaneamente, com uma "pirâmide de competências"... O Estado, sob qualquer concepção da Ciência Política, é conceito estranho à ideologia •tecnocrática. As estruturas do poder que constituem a sua ossatura, estas sim, interessam-na e muito, porque seu domínio e manejo permitem a tomada de decisões e sua imposição coactiva. Os discípulos de Saint-Simon foram, no particular, menos utópicos, bem mais práticos... Na verdade, por que atacar de fora para dentro se é possível atacar de dentro para fora? Por vezes a história ou a mitologia terá alguma utilidade...

A eliminação do Estado está, então, na rota da tecnocracia, mesmo que não esteja na intenção dos tecnocratas. Estes, na maioria das vezes, não perdem tempo com preocupações dessa ordem. Deferem-nas ao pensamento político, sem cotação na sua bolsa de valores, atividade não registrável em sua caderneta de campo, onde só se encontram normas técnicas referentes à produção, consumo, investimento, rentabilidade, PNB, etc., tudo enfim que diga respeito ao nível de vida e nada que tenha a ver com o estilo de vida...

A destruição do espírito nacional será, assim, na melhor das hipóteses, uma fatalidade encarada como inevitável pela tecnocracia.

Quando seus representantes falam em termos de Nação como: objetivo nacional, desenvolvimento nacional, etc., eles não exprimem um conceito sociológico ou político e muito menos expressam o reconhecimento de uma personalidade moral ou, se preferirem, de um complexo histórico definido — um tipo. Eles não levariam em consideração, se lhe chegassem a reconhecê-la, a existência, pois, de uma personalidade de base que Kardiner define como "uma configuração psicológica particular própria dos membros de urna dada sociedade e que se manifesta por certo estilo de vida no qual os indivíduos bordam suas variantes singulares", fruto de instituições secundárias sistemas de valores e ideologias políticas jurídicas ou morais. Isso estaria em contradição com o pragmatismo da sua inventiva que costuma atribuir um soberano desprezo a valores "não tecnológicos", ao que seria uma espécie de artesanato intelectual da massa de não iniciados... ou, no máximo, um produto cuja fisionomia particularizada na análise das ciências sociais seria desinfluente na adoção de critérios técnicos necessários à solução dos problemas da comunidade em causa.

O sentido pejorativo, conferido à expressão "folclore", significativamente provem do perfeccionismo racionalista da suposta

onisciência tecnocrática. No contexto da ideologia tecnicista a nação não será mais que um campo de trabalho; o pior é que pode ser, também, apenas, uma hipótese de trabalho... Por isso mesmo é preciso muita cautela e pouca pressa no apontar certos associacionismos que são mais aparentes-que reais. Refiro-me ao vezo, muito em voga, de identificar o desenvolvimento de certos processos históricos contemporâneos como resultante de uma aliança entre tecnocratas e militares.

Ainda recentemente, em livro editado pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra; sob título "Le Regime Modemisateur du Brésil", está aliança é apontada. Na verdade, nada mais incompatível que a ideologia tecnocrática, com todas as características antes anotadas, e a natureza do espírito militar. Esse é, fundamentalmente, constituído de todos aqueles valores que aquela agride e destrói. É dentro dos muros castrenses que se acrisola o "espírito nacional" e onde ele se refugia quando a Nação — realidade histórica e social, humanidade particularizada — enfraquece no lhe tributar ó culto e no cultivá-lo, ou têm a sua unidade ameaçada pelos destemperos passionais das disputas do poder ou por eventual inimigo externo. Essa é uma função também histórica e também social — da corporação armada, em todas as latitudes e sob todos os climas. Quando o Exército Vermelho e, nele integrado, o povo russo, lutou, desesperadamente, contra a invasão nazista, não o fez na defesa do regime comunista nem da tecno-burocracia ali instalada, mas da Santa Rússia, tão santa, intangível, intocável, quanto era sob os Remanoff. Quase meio século de internacionalismo, de "operários... uni-vos", de apelos por sobre as fronteiras, desaparecem, instantaneamente, para dar lugar ao sentimento de Pátria -("pequeno burguês..."), galvanizando espíritos e vontades, desmoralizando as teorias do anti-herói, na legenda de Stalingrado... De certas idéias e adjacências, delas diria Voltaire que seriam mais respeitáveis que apreciáveis...

A desmitificação é coisa da linha da produção de certos "laboratórios de ciências sociais", ácido corrosivo com que se pretende deformar a fisionomia do homem, diluí-la no inexpressivo, sem alma e sem vontade. Causa preocupação verificar-se que a muitos ela não se apresente como mera falsificação grotescado gesto de Francisco de Assis desnudando-se ante o Tribunal Eclesiástico à cuja barra o levara a mediocridade dinherista de 13 ernardone. Lá é a dissolução no "mass men", o despojamento do homem de suas grandezas para a vacuidade das almas mortas. Aqui, ao contrário, renúncia total e humildade como gesto de ave que se agacha, mas para melhor

impulsionar o voo, no dizer de alguém, afirmação deslumbrante do Homem, inteligente, racional, livre, magnífico na fé com que afrontará, solitário, um mundo de confusão e ódio incendiado pelas rivalidades em que se consumiam os burgos medievais.

Pois são, justamente, aquelas disparidades que impedem a convincência entre a mentalidade militar e a mentalidade tecnocrática, radical e definitivamente incompossíveis.

Note-se bem, que não me refiro ao técnico, refiro-me ao tecnocrata. Este último é aquele outro quando ultrapassa suas hoje indispensáveis funções de assessoramento para, infiltrando-se nas estruturas do poder — especialmente no poder do Estado — assumir competência de decisão, ou influência decisiva quando fará prevalecer, então, consciente ou inconscientemente, a ideologia tecnocrática, a mística da eficiência "tout- court" que confunde meios e fins e acaba por sacrificar os últimos às exigências dos primeiros. Uma coisa é o governo com os técnicos, outra o governo dos técnicos — a tecnocracia.

A ninguém, em são juízo, ocorreria supor seja possível o governo dos povos, em plena era tecnológica e doente da crescente complexidade- dos problemas contemporâneos, sem o concurso do técnico, sem o assessoramento do especialista. A improvisação é palavra definitivamente riscada do dicionário do poder. Contê-los, aos técnicos, nos limites de seu território instrumental, eis o problema em foco. Impedir que creiam ou procurem fazer que outros creiam, que a produção, a produtividade e suas técnicas, o desenvolvimento econômico e seus modelos, os tipos de organização e seus sistemas operacionais, sejam um fim em si mesmos, quando são meios postos a serviço de fins, eis a questão.

Ora, o espírito de missão nacional está na r a i z m e s m a d a c o r p o r a ç ã o a r m a d a , revigorada, sempre, por uma linha de tempo que não dispensa o passado para pensar e projetar o futuro. Não haveria parceiro mais i n c ô m o d o p a r a u m g r u p a m e n t o essencia lmente miss ionár io , c ien te e consciente do que quer e do que não quer, do que, alguém incapaz de "centrar o seu próprio ser", no conceito de Bergmann; o antípoda de "I'home situe" de Buedeau, isto é, um alienado da linha de tempo, indiferente e hostil, até, aos valores que a compõe, formado, ou deformado, para modelar

presentes, unicamente em função de futuros, sem qualquer compromisso com o passado, com a tradição, com a história, com a memória do grupo. Ora, sem tradição não pode haver soldado. Esta é que alimenta, na corporação armada, a — 230 — chama votiva do culto à Pátria, culto que não é, absolutamente, uma visão racional dos problemas da comunicade política política ou social, mas um complexo quase litúrgico de sentimentos afetivos, nobreza de amor que se exterioriza numa simbologia inconfundível e se extrama no holocausto se a tanto o solicitar o dever de defendê-la. Isso, ela — a corporação armada — aprende e isso ela ensina, de geração a geração; isso, a medula de sua organização, a alma de seu corpo. -

Nada menos isso do que o homem da civilização tecnológica amestrado pela tecnocracia, coisificado pelos tecnocratas. Desejaria saber onde um desses bípedes programados, em que nos ameaça transformar a civilização tecnológica, encontraria motivos para oferecer-se em sacrifício de sangue na defesa de urna fórmula de acelerar a produção, melhorar a produtividade, ou aperfeiçoar a circulação da riqueza...

Se fosse verdadeira,, pois, essa união espúria entre militares e tecnocratas não restaria düvida de que uma das partes ou ambas, a um só tempo, estariam equivocadas... E como a história tem menos pressa que os seus intérpretes afoitos — máxime quando se trata de fatos contemporâneos — cedo ou tarde o divórcio aconteceria por incompatibilidade de gênios...

Mas o certo é que tal união é apenas aparente. Se alguma corporação existe que distingua, com precisão, meios e, fins, esta é a corporação armada. Para o pensamento militar os meios serão sempre os meios, os fins serão sempre os fins.

Seja na atividade tática de combinação, pela manobra, de ação dos meios de combate, seja na concepção da estratégia como arte de coordenação e emprego de recursos, não apenas militares, mas econômicos, políticos, psico-sociais, tendo em vista o alcance de um determinado objetivo, o pensamento militar jamais se perderá nos labirintos de uma atividade afinalista.

O equívoco estaria, talvez, ao interpretar a coincidência de certos atributos comuns e numa evidente convergência de interesses da. corporação armada e da indústria. Um seria a racionalização da organização e das atividades militares e. a sua eficiência, intrínsecas e

indesligáveis do seu sistema. Ambas constituem verdadeiros tabus da sociedade tecnológica e da mentalidade tecnicista. A diferença, porém, está em que tal coincidência não revela uma identidade de natureza, mas uma semelhança de modo. O racioncínio tecnicista se esgota neste; o espírito militar se utiliza deste e vai além na perseguição de um objetivo que corresponde à sua essência missionária, que não se exaure na utilização do método, mas está fora — acima e além — do método. Os atributos de racionalidade e eficiência de seus sistemas não se voltam, pois, para dentro, para alimentar um movimento circular, mas distendem-se linearmente a serviço dé'uma finalidade. Em outras palavras: é meta-sistêmica.

Outro, seriam as afinidades entre a corporação armada e os industriais. Mas isto estaria longe de se constituir numa peculiaridade da época. Ao contrário, o que vemos é a corporação armada como fator de impulsão no dealbar do industrialismo quando a padronização dos armamentos, viaturas, uniformes, etc., inaugurou a produção em massa para atender à demanda crescente dos exércitos.

JOHN HUGHES, em livro fascinante, explica a gênese histórica deste entendimento entre a instituição militar e a indústria: "O grande precursor dá vida e da organização industrial ia ser encontrado no exército. Do modo mais concreto, a arte da guerra estimulou a arte da invenção mecânica; foi a primeira a necessitar o emprego do ferro em grande escala; o canhão — mecanicamente um motor de explosão de um cilindro — foi o protótipo do gera- dor de força; as fortificações exigiram o aperfeiçoamento de todas as técnicas de construção; a procura incessante de mercadorias em massa estimulou o progresso da organização fabril; e o equipamento militar exigiu, pela primeira vez, material completamente estandartizado. De mais vital importância, contudo, do_ que essas correlações específicas entre forças militares e industriais, em matéria de produção, foram as influências da vida militar sobre os homens que atuavam no plano das indústrias. A vida do senhor e do escravo, na economia nova, fora esboçada, como assinalou LEWIS MUNFORD, pela de oficial e soldado. E muito antes de se ter explorado e utilizado a complexidade da organização econômica em companhias, jás os estados maiores haviam traçado um esquema da arte de organizar massas de homens; levantamentos topográficos, planos de campanha, mapas e gráficos de ações rea l izadas ou proje tadas , coordenação de unidades especializadas, divisão de trabalho. Todas essas materias tinham-se tornado artes requintadas, nas mãos dos chefes cuja força estava nos

canhões, antes de serem adotadas pelos chefes cuja autoridade e poder era a sociedade de responsabilidade limitada.

Ao mesmo tempo e de modo análogo, hábitos paralelos de vida e de pensamento tinham sido herdados pelo soldado e pelo operário; o proletário militar e o inferior do sistema industrial eram virtualmente tipos sobressalentes de humanidade. Tomando por modelo os quartéis, o sistema manufatureiro foi um método de organização que evoluiu logicamente. A arregimentação militar serviu admiravelmente de exemplo para a arregimentação industrial_. Em ambas tratava-se de equipar os homens para fins e processos de agir que não se inspiravam nem no espírito, nem na vontade do indivíduo. Fato estranho, que o senso do dever e da disciplina, escarnecido pelos utilitaristas — sacrifício de interesse pessoal aos desígnios da comunidade — tenha sido formulado, na Sociedade Liberal, unicamente pelo exército, mas em grau sem precedentes na história. Fato estranho e profético, que essa sociedade moldasse o seu sistema de produção pelo de destruição".

Dou-me por perdoado pelas medidas da citação, indispensável, todavia. Já se vê que certa literatura contemporânea que expõe, com um

certo sensacionalismo de segredo revelado, as íntimas relações entre as corporações armadas e os industriais, não deixando de ser útil, não está, todavia, arando em campo novo... Tais ligações não têm o caráter conspiratório, cavernoso, humbroso, que lhes emprestam certos interesses mais de olho na perspectiva do "best seller" do que no buraco da fechadura... Ao contrário, elas se inserem num longo processo histórico, conseqüência fatal do seu desenvolvimento, estão expostas ao sol da praça, ao fácil alcance da observação.

Um terceiro atributo comum estaria na hierarquização e na disciplina da empresa cuja verticalidade ainda é norma na organização empresarial contemporânea.

Poderia tomar, em obra de Ciência Política, um exemplo ilustrativo do raciocínio metodológico militar, com a vantagem de estar aplicado a uma análise geopolítica. Refiro-me ao livro do Gal. Golbery do Couto e Silva — "Aspectos Geo-polígicos do Brasil". Interessa-nos, particularmente, a nota final intitulada "Formulação de um Conceito Estratégico Nacional Ensaio Metodológico". A sua leitura por si só informa, melhor do que qualquer comentário, sobre a diferença fundamental entre a mentalidade tecnicista ou tecnocrata e o raciocínio metodológico próprio da formação castrense.

No item da Nota 3 define o autor o que sejam os Objetivos Nacionais Permanentes (ONP), nestes termos: "Os Objetivos

Nacionais Permanentes nada mais são que a tradução dos interesses e aspirações do grupo nacional, tendo em vista a sua própria sobrevivência como grupo, isto é, asseguradas as três condições básicas de autodeterminação, integração crescente e a prosperidade, dentro do quadro espacial seja imposto pela tradição histórica, seja requerido por condições julgadas essenciais àquela mesma sobrevivência. Tais objetivos definem, portanto, á atitude do grupo considerado em sua vida interior e em sua vida de relação (nos contatos, sobretudo, com outros grupos nacionais). A elaboração dos ONP é, por assim dizer, instintiva e resulta naturalmente de processo histórico através do qual o grupo adquire e plasma uma consciência nacional".

Chamo a atenção, primeiramente para a letra b deste item, onde está dito que a elaboração dos ONP resulta, naturalmente do processo histórico, através do qual o, grupo adquire e plasma uma consciência nacional.

Eis aí um conceito que nenhum raciocínio tecnocrático subescreveria simplesmente porque envolve fatores e valores que não constam de suas tábulas próprias. "Plasmar uma consciência nacional", isto é, adquirir uma peculiaridade diversificadora como grupo humano, é atividade que, espontânea ou dirigida, não entra nas -cogitações do tecnicisrrio porque são' valores "não tecnológicos", estão fora do seu universo quantificado. O tecnicismo é neutro perante eles.

Adiante, o raciocínio militar, atento às distorções que podem perturbar a visão dos interesses nacionais, isto é, atento às verdadeiras finalidades a que .deve servir um sistema lógico de procedimento (político, econômico, financeiro, etc.), adverte:

"Ao buscar defini-lãs em termos precisos, importa eliminar, tanto quanto possível, -as superestruturas ideológicas e as racionalizações mais ou menos especiosas com as quais, freqüentemente, se mascaram as aspirações e interesses de fundo mais egoísta e caráter mais agressivo (exs.: o liberalismo econômico inglês disfarçando os interesses vitais ligados a manutenção de um privilégio econômico indiscutível —; o resultante da mais rápida industrialização da Inglaterra; a doutrina do Lebensraum e dos Have not encobrindo o apetite imperialista germânico; o comunismo stalinista como justificativa da tradicional política de expansão da Rússia)". O raciocínio tecnicista também não subescreveria esta diretriz e

por dois motivos: primeiro porque não leva em consideração qualquer

tipo de ideologia política ou sistema de idéias que não se enquadram nós seus mecanismos concebidos para serem eficientes e só para serem eficientes; segundo porque esses mecanismos constituem, eles próprios, uma superestrutura ideológica a que a metodologia tecnocrática Serve com fidelidade ortodoxa.

Ora, aquela maneira integral, complexiva — visão de Estado Maior — de encarar os problemas nacionais e de propor u'a metodologia para sua solução é, tipicamente, um pensamento político para cuja formação concorrem fatores que tendem a fixar as linhas fundamentais da personalidade nacional, grupo diferenciado pela evolução histórica. Nada mais contrastante com tais objetivos que a mentalidade tecnocrátiCa, como definida.

Àquele pensamento político é indispensável a colaboração do técnico, o assessoramento dos especialistas, a sua visão particularizada e minuciosa, o desenvolvimento racional de seus processo de ação. Ele, o técnico, é, -na sociedade moderna, tão indispensável e útil, enquanto técnico, quantO perigoso e nefasto quando transfere sua visão unilateral para o campo dos problemas de natureza política e, assumindo posições de decisão de poder, invade o campo das questões políticas. Essas exigem flexibilidade, capacidade de abrangência, visão das interconexões dos problemas setoriais, enfim, para usar imagem corriqueira — exigem que se veja a floresta sem deixar de ver as árvores.

Por isso mesmo, o pensamento militar guarda muito mais afinidade com o pensamento político do que com a ideologia tecnocrática, já na sua essência, já mesmo nas circunstâncias históricas do mundo contemporâneo, que o impelem à ação

O político e o militar encontram-se em territórios muito mais comum aos dois do que ao tecnocrata; estranho e hostil a ambos. Mas, naquele território comum de dois, ambos encontrarão o técnico sem o qual um e outro não atingirão suas finalidades, no intrincado processo de especialização imposto pela tecnologia.

Tomei do exemplo objetivo de autor brasileiro, como tentei analisar e explicar os motivos que, ao longo de nossa história, levaram a corporação armada a mostrar-se sensível ao processo político, tendo em vista o tema•que me foi dado a tratar.

Mas, poderia encontrar a mesma tendência em muitas nações e, especialmente numa em que se usava chamar o exército de "O Grande

Mudo", de tal forma procurava manter-se alheio às questões políticas, apenas instrumento do poder político. Refiro-me à França.

JACQUES BILLY, que cito com reservas sobre seu ponto de vista do que entende por organização tecnocrática daquela corporação armada, escreve: "Ora, desde 1945, o Exército foi "sensibilizado" pelos problemas, políticos: conferiu-lhe o. Decreto de 17 de agosto de 1945 a faculdade de votar e de ser votado; as sucessivas operações na Indo-China e na Argélia fizeram-no descobrir a importância da arma ideológica, da subversão, do comportamento psicológico da guerra. O Exército fez suas algumas dessas técnicas de ação e de vitória, ao mesmo tempo que descobria as fraquezas do arcabouço político da Nação. Se ainda é mal definida a sua orientação política, já não lhe escapa a consciência da própria força dentro da nação, tanto mais que possui, sobre as outras forças rivais, a superioridade de uma organização e de uma disciplina muito adiantada" E mais adiante: "Continuará:Sendo, sem dúvida, instrumento do poder político, mas a crise desse poder, em maio de 19'58, mostrou-lhe o peso de que dispõe na orientação dos destinos da Nação. Já os teóricos (cf. Rossilon, 'Patrie et progrès") arquitetaram uma doutrina de Estado socialista-nacional largamente escorado nas forças tecnocráticas públicas e, particularmente, no Exército ao poder público, são, muito diversas as suas ligações com os diferentes grupos sociais da Nação, para que pareça realizável o programa: os seus 50.000 oficiais, que se apóiam em um corpo hierarquizado de suboficiais, não raro formados nas técnicas especializadas no mundo contemporâneo, já têm plena consciência do caráter a um tempo técnico e político da missão que lhes incumbe".

— 234 — Estas reflexões me parecem de extrema importância para o

desfazimento de muitos equívocos na apreciação dos problemas políticos contemporâneos, entendendo-se a expressão 'política" numa dimensão que ultrapassa, de muito, o sentido pejorativo com que circula entre os desatentos às transformações profundas que se operam em torno de nós e só têm olhos para a superfície onde o exercício de ver não inclui o de pensar.

Conclusivamente: a crise institucional de nossos dias não se limita mais a gizar as funções dos poderes clássicos e os conflitos entre eles.

Trata-se, na verdade, de reconhecer a emergência dum outro poder — O Poder Tecnocrático — fator novo a ser considerado nas equações

do poder social e político e que ameaça aos demais, ameaça as nações, a sobrevivência do Estado, a cada um de nós, como pessoa humana.

Seria pura perda de tempo fazer análise política contemporânea, entre nós ou alhures, desprezando essa presença terivelmente real.

Convencidos disso introduzimo-lo nas especulações críticas que fizemos em torno do tema, mais na intenção de despertar para ele a atenção dos participantes do curso, a tentar a explicação de nossa contemporaneidade política, do que na presunção de esgotar a multiplicidade de suas implicações.

Admito que o êxito tecnológico se de um lado apresenta aspectos positivos na busca ao bem estar coletivo, de outro anestesia a sensibilidade geral, permitindo que sejam estirpados dos povos e dos homens valores cuja ausência se registra nos alarmantes índices ascensionais de criminalidade, de neurose, de loucura, de violência que, por mais graves que sejam, não movem as vítimas, já paraplégicas,- nem levam ninguém a estabelecer uma relação de causa e efeito e a inquirir se vale ã pena o progresso (?) a tal preço.

O que se perguntam os que preferem garimpar na área da Ciência Política diante disso é se estarão chegando ao fim- os Estados nacionais; se o nacionalismo, entendido como consciência dos interesses da comunidade nacional, noção de destino comum, reverência aos símbolos que encarnam sentimentos de amor à Pátria, solidariedade social, honra e dignidade coletiva, etc., desaparecerá para que se faça o vácuo, o nada que sufoca o homem tecnológico, incapaz, como notou MICHEL BERGMANN, -de "centrar o seu próprio ser". O que se indaga é se essa é uma fatalidade diante da qual devem capitular as Nações, dissolvidas num universalismo uniforme, porque esses seriam os ventos da história que soprariam de Menilmontant... O que se indaga é se os povos, por suas lideranças, estão conformados com se acóelharem diante da magnitude do problema e se deixarem transfoimar num rebanho tangido pelos mecanicistas do século, igualizados das etapas russas ao Tenessee, de Gobi à Terra do Fogo e ao Caribe. O que se põe, finalmente, diante da inteligência, .é a questão de saber se a liberdade do homem de interferir no processo histórico, será, ainda, forte bastante para se afirmar, impondo, soberanamente, li.mites ao-progresso quando este ameaça a civilização. Em outros termos: se os povos saberão distinguir, em seu benefício, aquilo que a tecnocracia não distingue, isto é, nível de vida e„ estilo de vida. Ou, se quiserem, entre ter continuado a ser e ter deixando de ser.

Não se trata do dilema shakspeareano. Esses verbos, afinal, não são compatíveis. Podem ser conjugados a um só tempo. Podem e devem, deixe-se claro. Tais questões, intimamente conectadas com problemas relativos

ao Poder, sua institucionalização e exercício, são eminentemente políticas.

Refletir sobre elas atualiza nosso pensamento político pois que, sem desligá-lo dos aspectos tradicionais de nosso passado histórico, permite-hos dosar nos-. sas experiências refletidas num presente cheio de novas perspectivas, reconhecê-las, identificá-las, aceitá-las ou repudiá-las, mas sabendo porque as aceitamos ou as repudiamos