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JOÃO GAMILLO DE OLIVEIRA TÔRRES  A DEM O CR A CI A COROADA  Teoria Política do Império do Brasil  Armas d o Impé rio d o Bra sil  V O Z E S  A í

Joao Camilo de Oliveira Torres

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    JOO GAMILLO DE OLIVEIRA TRRES

    A DEMOCRACIA

    COROADATeoria Poltica do Imprio do Brasil

    Armas do Imprio do Brasil

    VOZES

    A

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    JOO GAMILLO DE OLIVEIRA TORRESDA ACADEMIA MINEIRA DE LETRAS

    A DEMOCRACIA

    COROADATeoria Poltica do Imprio do Brasil

    P rim io Cidade de Beto Horiz on te", relativo ao ano de 1952

    Prmio Joaquim Sabuco, da Academia Brasiteira de Letras, 1958

    Com 6 itustraes

    2* EDIAO REVISTA

    \

    EDITRA VOZES LIMITADAPETRPOLIS, RJ

    1964

    OFRSS

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    Homo non ordinatur ad communitatempolit icam secundum se totum, et secundumomnia sua.

    Summa Theologica, I II, q. 21, a. 4.

    lussu Dei, per quem Reges regnant;proclamatione subditorum, a qtbus dominimntransfertur in Principes, per ius gentium. . .

    ANTNIO DE SOUSA DE MACEDO, Lusitania Liberata.

    . . . tendo-nos requerido os povos dsteImprio, juntos em cmaras municipais, quens quanto antes jurssemos e fizssemos

    jurar o projeto da Constituio, que havamos oferecido s suas observaes para serem depois presentes nova Assemblia Cons

    tituinte, mostrando o grande desejo que tinham de que le se observasse j como Constituio do Imprio, por lhes merecer a maisplena aprovao, e dle esperarem a sua individual e geral felicidade poltica...

    PrembuIo-justIfIcaSo da Carta de lel promulgando aConstituio Poltica do Imprio do Brasil, datadade 25 de maro de 1824.

    Un tyran peat tre lu au sufrage uni-versel, et tftre pas moins tyran pour cela.Ce qui importe, ce nest pas Vorigine des

    pouvoirs, cest le controle continu et eiicaceque les gouverns exercent sur les gouver-nantst).

    ALAIN, Potitique, Paris, 1952, p. 9.

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    i MEMRIA DE

    LUIS GAMILLO DE OLIVEIRA NETTO

    Irmo e Mestre

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    EXPLICAO PRVIA

    Pertence ste livro srie iniciada com O Positivismo no Brasil. Isto porque h uma srie, que se realizar medida que a vida permitir ao autor que ponha em prtica o seu intento. Nose pensa, evidentemente, vista dos muitos e notrios empecilhosque a isto se opem, na elaborao dos diferentes volumes dentro deluna seqncia; cada qual se far quando possvel. Iremos trabalhando e as plantas nascero a seu tempo. Afinal, a ningum dado saber quando chove e se far sol sempre que se deseja...

    Esta srie, que j est no segundo volume, o que no deixade ser auspicioso, tem por objeto o estudo da histria das idiasno Brasil. Pretendemos, dentro dos mtodos e intenes da disciplina que se intitula a histria das idias, analisar os diferentes sistemas ideolgicos que exerceram influncia no Brasil, sejaem seu desenvolvimento poltico, como no caso presente, seja naformao espiritual, seja ainda na vida religiosa ou social.

    Ora, poucos temas existem disposio do historiador brasileiro de intersse igual ao desenvolvimento poltico do Imprio, visco pelo ngulo e segundo as perspectivas da histria das idias.No, prpriamente, a histria do sculo X IX brasileiro atravs dosacontecimentos, ou pelas pessoas, ou, por exemplo, da organizaoda sociedade imperial. Mas as origens a estrutura e as transformaes do complexo ideolgico que estava na raiz da ao doshomens polticos do Imprio, a ideologia que impulsionou a nossa histria no perodo imperial. E, portanto, o quadro em que se

    moveram homens e acontecimentos.Essa posio justifica o tratamento dado aos temas e o plano da obra: aps uma introduo mais ou menos inevitvel, umapanhado de conjunto acrca das razes ideolgicas e histricas dasituao poltica do Brasil em 1822, seguindo-se a parte principaldo livro, isto , o estudo das instituies do regime imperial e assuas transformaes mais importantes, anlise feita de acrdo como pensamento dos mais abalizados mestres da doutrina e os estadistas de mais destacada influncia; por ltimo, acompanharemosrpidamente as fases principais do desenvolvimento da organiza

    o poltica imperial, destacando em capitulo especial a x>osiosingular do Imperador D. Pedro II, o que se justifica perfeitamente.

    No ser obra para os mestres, que nada vero de nvo, ano ser opinies, nem sempre valiosas, interessantes ou oportunas

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    do autor. Mas, para os principiantes, para aqules que desejam conhecer a matria e necessitam do background r^pectivo, pretende ser til ste ensaio, pelo menos quanto s fontes consultadas,

    nectivas do historiador, dentro das cat^;orias, motivaes e preocupaes da cincia histrica. Pode no chegar nem aisto; no pretende ir alm disto. Nestas condies, a discusso ea apreciao de temas especializados, referentes a questes jurdicas, no visar seno a esclarecer o pensamento dos tratadistas eautores, tomando-o mais acessvel e claro mentalidade moderna;

    jamais se tentar a colocao dos problemas luz da situao dasdoutrinas no estado atual dos estudos; para tanto falece-nos a ne-cessiria competncia.

    Da mesma forma, a discusso dos numerosos assimtos de ca

    rter poltico que surgiro no decorrer dste ensaio no visar seno compreendra- e explicar a significao dos debates no desenvolvimento da monarquia brasileira. Se destas investigaes ocorrerem lies aproveitveis para os males do presente, tal proveito vir de acrscimo, e gratuito, j que outro no foi o intento nosso que a satisfao desta curiosidade de saber e aprenderque o Filsofo coloca na primeira linha de sua Metafsica, comoa fonte e origem da filosofia e de outros modos de ocupar o espirito. .. E o tempo.

    Esperamos, finalmente, que os orticos no nos tomem a malas muitas repeties, as idas e vindas aos mesmos lugares. No esta uma obra de arte; a preocupao maior aqui a procurada verdade no nos permitiu cuidar das galas do estilo. Antescansar o leitor cmn repeties enfadonhas, a deix-lo insatisfeito.Acreditamos que o leitor, paciente e resignado, perdoar estas eoutras falhas.

    Queremos deixar bem claro ainda que, versando quase todoo livro tmnas de debates mn tmo de idias, as necessidades da exposio obrigaram-nos a, de certo modo, participar na discusso, notanto para expor o nosso ponto de vista pessoal sbre o assunto oque, alis, pode ter accmtecido em mais de um caso mas paraexplanar melhor aquilo que nos pareceu ser a tendncia dcnninan-te, a interpretao oficial. Igualmente os julgamentos de valorefetuados neste livro no devem ser levados conta de resultado

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    da peculiar e exclusiva maneira de apreciarmos a importncia doshomens, dos fatos, das instituies, mas, to smente, a soluomais ctmdizente com determinados pontos de vista que consideramos a exata e fiel descrio da situao histrica que nos serve

    de tema. Ns partimos do princpio de que existe uma determinada doutrina poltica subjacente ao conjunto das instituies do Imprio Brasileiro. Como conseqncia, analisamos, debatemos e apreciamos 08 fatos, os homens e as instituies luz dessa doutrina.s pesquisas que motivaram ste ensaio levaram-nos a concluirpela ezistncia de uma como que Weltanscbauung poltica mc-I:essa em discursos, livros e pareceres e na orientao geraldo Conselho de Estado, a qual nos ofereceu a base ideolgica edoutrinria do presente trabalho. ssumimos esta posio para quenos fsse permitido entender os contornos ntimos da organizao

    poltica do Imprio. Igualmente, se comparamos regimes, no o fazemos para demonstrar superioridades (e em tais casos a concluso varia de pessoa para pessoa), mas para mostrar, pela difermi-a, a maneira de ser do fenmeno estudado.

    Por ltimo, cumprimos o grato dev^ de apresentar os nossos agradecimentos aos que, em grande nmero, trouxeram o seuvalioso apoio e coopo:aram para que se tomasse possvel a execuo dste trabalho. Sem esta benvola coadjuvao, jamais teramos atingido a qualquer resultado positivo. Assim, queremos de

    clarar aqui a nossa gratido e as nossas homenagens.Em inimeiro lugar cumpre-nos agradecer a S.AJ. o Prncipe

    D. Pedro de Orlans e Bragana que nos facilitou o acesso a valiosos documentos de seu arquivo particular como os preciosos Conselhos Regente do Imperador D. Pedro I I e ao historiador Guilherme Auler por seu indispensvel auxilio nas pesquisas realizadas em Petrpolis. Destacaremos, tambm, o saudoso Dr.Alcindo Sodr, primeiro diretor do Museu Imperial, e o Dr. Lou-reno Lus Lacombe, pelos documentos inditos que nos comuni

    caram, e o Dr. Vilhena de Morais, pela gentileza de sua acolhidanas visitas que fizemos ao Arquivo Nacional. Igrualmente devo registrar minha gratido aos dedicados diretores do Arquivo PblicoMineiro, o Dr. Oscar Bhering e o Dr. Joo Gomes Teixeira, assim como aos devotados funcionrios do estabelecimento, pelas facilidades que nos ofereceram nas numerosas pesquisas realizadas noestabelecimento. Aos inrofessres Orlando M. Carvalho, Franciscode Assis Magalhes Gomes e Mrio Casassanta, que nos confiaram raros exemplares de suas bibliotecas particulares, tambm osnossos agradecimentos.

    No podmnos deixar de registrar o intersse, sempre desvanecedor, que sempre demonstraram por nossas pesquisas o Sr. Milton Campos e o Prncipe D. Pedro, intersse que constituiu est-

    e k p u c a c a o p r o v i a U

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    mulo permanente ao autor em meio dos trabalhos e dificuldadesque cercaram a elaborao do livro.

    Tendo ste livro, anda em manuscrito, recebido o prmio Cida

    de de Belo Horizonte, criado na administrao do Prefeito JooFranzen de Lima e regulamentado na do Sr. Amrico R. Giannetti,cumprimos o grato dever de render as nossas homenagens nossacapital, na pessoa de seus dedicados administradores, e, igualm^-te, registrar os nomes dos rigorosos e competentes membros da subcomisso de erudio do mencionado concurso, os professres Carlos de Campos, Orlando M. Carvalho e o historiador Joo Dornas Filho, que se houveram com senso crtico, objetividade e imparcialidade. Informamos, a respeito, que submetemos o t ^ t o que

    compareceu ao concurso a uma radical e impiedosa remodelao.Devemos, igualmente, consignar a nossa gratido aos professres Amaro Xisto de Queirs, Francisco Iglsias e Joo EtiomeFilho por haverem lido e formulado teis observaes ao manuscritooriginal e, senhora Sarah Dahmer, por haver executado a performance de reduzi-lo a um texto datilografado limpo e escorreito.

    Por ltimo registraremos as lies e a orientao com queLus Cainillo de Oliveira Netto assistiu ao trabalho de elaboraoda obra, assim como os auxlios que prestou nas pesquisas reali

    zadas no Rio.E ao Sr. Octvio Tarqunio de Sousa e Livraria Jos Oljrm-

    pio Editra, por haverem honrado o nosso trabalho, incluindo-ona coleo Dociunentos Brasileiros, os nossos agradecimentos.

    Afinal, uma obra histrica sempre trabalho de equipe, mesmo quando tem um s a assinar.

    Joo Camillo de Oliveira Trres

    Belo Horizonte, 6 de Janeiro de 1954.

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    PREFACIO A SEGUNDA EDIAO

    ste livro teve um mrito, no dle, muito menos de sen autor, mas do assunto: revelar aos brasileiros de boje a originalidade e a adequao das instituies imperiais. Generosamente recebido pela crtica, e premiado pela Academia Brasileira de Letras,a 1 edio foi consumida rpidamente. Agora, cuidamos de reedit-lo.

    Atendendo a sugestes crticas e s prprias pesquisas que fizemos posteriormente, retocamos grandemente alguns captulos. Lem

    bramos ao leitor que, principalmente, as questes ligadas Federao e Queda do Imprio foram objeto de pesquisas posteriores, que muito contriburam para alterar o presente livro, pesqui-sis que podem ser apreciadas em profundidade nos volmnes A For mao do Federalismo no Brasil e O Presidencialismo no Brasil.De certo modo margem, como complemento e desdobramento dopresente volume, realizamos outros trabalhos, alm dos citados, como O Conselho de Estado e Os Construtores do Imprio, alm daedio anotada dos Conselhos Regente de D. Pedro II.

    Este livro, como se sabe, urna obra otimista, a revelar acapacidade dos estadistas brasileiros para a soluo dos problemasnacionais. Continuamos, hoje como na poca da redao da presente obra, achando que, se nossos bisavs puderam pr em prtica a democracia coroada, enfrentando cabalmente os problemaspolticos da sociedade liberal num pas de fazendas e escravos, osbisnetos dos conselheiros sabero resolver os problemas no maisdifceis da organizao da sociedade justa numa economia em de

    senvolvimento.Queremos agradecer de pblico a todos os que, lendo a primei

    ra edio, formularam crticas e observaes, correes e emendas,o que foi muito til para esta segunda edio. Assim, tambm, queremos agradecer Editra Vozes e a seu diretor Frei Ludovico Gomes de Castro por ter, novamente, nos acolhido entre os seus edi-

    . tados.

    Belo Horizonte, 31 de outubro de 1968.

    JJC.O.T.

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    INTRODUO ,

    Livro de Histria, e de Histria das Idias, a primeira ocupao dste ser situar os problemas em seu tempo; cabe-nos, preliminarmente, compreender a situao histrica em que se moveramos homens nos quais se encarnaram os temas aqui estudados.

    Ora, o presente ensaio tem por objeto a repercusso da ideologia constitucional do sculo X IX na vida brasileira; isto , a ma

    neira pela qual o Estado liberal se organizou no Brasil e as idiasdo liberalismo se introduzir^ neste pas, exatamente sse plur-voco liberalismo, que assmne to variadas e multiformes significaes. . .

    Para as geraes que sofreram as grandes transformaes dosculo XX siu:ge quase como um sonho a aventura do liberalismo a construo de mn mundo fimdado unicamente na liberdade e,o que mais nos aflige, ns que vivemos sob o reino dos instintosdesencadeados, a poltica feita nicamente segundo os ditames darazo pura, deliberadamente afastadas tdas as influncias noturnas e antigas da tradio e as ofuscantes claridades da F. Umacidade construda nicamente de acrdo com as coordenadas cartesianas, eis o grande sonho daqueles homens singulares, sonho quenos aparece hoje como uma aventura de propores apocalpticase que se reveste das tonalidades de certas rebeldias funestas de queo Velho Testamento est cheio.

    Consistiu o sculo X IX numa restaurao e muna revoluo.Como restaurao, tivemos o restabelecimento das prticas tradicionais da democracia limitada da Idade Mdia, restabelecimento

    que Fnelon tentara no auge do absolutismo, ste mesmo Fnelonque se insurgira contra o galicanismo. E a revoluo foi o aparecimento da noo de administrao pblica num govrno nacional.

    Tcnicamente, um rei medieval no governava e, principalmente,no administrava a coisa pblica em mbito nacional. Cuidava nicamente da ordem e da justia, dos aspectos formais e jurdicosdo Estado. Quase tudo o que hoje denominamos govrno e administrao competia s cmaras municipais e rgos semelhantes.Por estas e outras que, na Inglaterra, a Cmara dos Comuns,ou, antes, das Comimas, veio a ter a preponderncia que assumiu: o

    estabelecimento de uma administrao pblica nacional.A grande inveno, porm, de um sculo que se orgulhava

    de seu republicanismo s ^ a a monarquia constitucional, o cabinet

    A D emocracia Coroada 2

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    government. Esta, a sua originalidade: a repblica, ao contieno,era coisa antiga; se dennos ao trmo o significado corrente umpoder executivo forte, distinto realmente do legislativo, e com le

    proveniente dos sufrgios populares tal regime era conhecidodos antigos, com fiel descrio nas Elscrituras (1 Mac 8, 14-16). Amonarquia tradicional um chefe de estado hereditrio, com funes guerreiras e justiceiras, tambm faz parte do patrimnio dasnoes polticas universais e da experincia geral dos homens, poisa passagem da barbrie civilizao se faz, quase sempre, por seuintermdio.

    A idia, porm, da monarquia constitucional: um rei com funes de chefe de Estado; a orientao do govmo, a administrao

    pblica, as finanas e outros assuntos, sob a fiscalizao da representao nacional; um documento escrito, colocado em posio superior na hierarquia das leis, fixando os limites e atribuies doEstado e os direitos dos cidados: eis a grande criao do sculoXIX.

    A monarquia constitucional teve por inventores, principalmente, homens que amavam a liberdade e desconfiavam das utopias esabiam que a liberdade nasce da limitao do poder e que todopoder corrompe e todo poder absoluto corrompe absolutamente. E

    uma teoria da liberdade que se funda no reconhecimento de que aluta pelo poder est sujeita a terrveis tentaes e que nem os povos, nem os reis, n ^ os polticos, podem ter podres absolutos,que dles usaro mal.

    A doutrina constitucionalista reconhece que a hereditariedadeda coroa benfica, pois possibilitar a existncia de um rbitroneutro e relativamente imparcial e, o que importa mais, colocaro poder supremo fora do alcance das ambies dos estadistas eoferecer ao povo um representante supremo da ptria que no

    pertence a partidos e simbolizar, encamando-a numa pessoa vivae concreta, a sobrevivncia da comunidade nacional, no tempo eno espao. O rei, por seu lado, ter a vontade sujeita aos limitesque a Constituio estabelece a todos os i>odres, enquanto que opoder executivo se exerc^ por intermdio de ministros responsveis. Os ministros, isto , os homens que lutam pelo poder, sujeitos a ambies e conduzindo partidrios fanticos, sedentos de mando e de outras coisas, tero igualmente limites e peias: no soos donos da situao. O povo eleger seus representantes e por

    meio dles controlar o govmo; impor sua vontade ao executivoe dominar soberanamente o legislativo. Mas o sistema bicamoaltraar limites ao dos representantes do povo e assegurardireitos s elites.

    Patenteia-se, nesse esquema, o cuidado de evitar os perigosprovenientes da corrupo das trs formas clsmcas de govmo. Osfundadores da monarquia constitucional tinham Aristteles no sub-

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    consciente e sabiam que a monarquia se transforma em despotismo, a aristocracia em oligarquia, e a democracia em demagogia. Elimitavam umas pelas outras. Sabiam que essa desconfiana do

    poder que Duelos associa s experincias monrquicas e que ine-xiste neis repblicas natxuais, isto , naquelas que surgiram semantecedentes monrquicos, deve ter lun carter geral, pois todo homem que luta pelo poder no impor, por si, limites sua ambio.Conheciam o valor dos governos legtimos, temiam as usurpaes,amavam a liberdade e sabiam que tanto os tiranos como as multides sem freio constituem ameaas...

    Afinal, tratava-se de garantir o cidado contra os podres.Hoje, dadas as condies sociais, pede-se ao Estado para garantiro cidado contra as formaes sociais macias.

    Temos, por fim, o captulo das relaes sociais e econmicasno Estado liberal. Sabiam os velhos liberais que a propriedade imna- condio de liberdade e devemos reconhecer a obra da Revoluo Francesa no tocante formao de uma das economias rurais mais distribudas de que h memria. O esforo empreendidopara a constituio de uma sociedade liberal tpica uma sociedade de pequenos proprietrios independentes, em que todos fssemeconomicamente autnomos responde, por si, a muitas das crticas tradicionais ao indiferentismo econmico do velho liberalismo,

    ou sua cooperao para o capitalismo, esta muito mais decorrente da ausncia de previso das conseqncias de certos atos, doque de qualquer outro motivo.

    Ora, a posio democrtica, hoje, como nos dias da Independncia, no teria definio mais justa do que estas nobres palavrasde um estadista mineiro da atualidade:

    A supresso de privilgios em favor de pessoas, de grupos oude classes a grande tarefa da democracia moderna, cujo contedo a igualdade, ao lado da liberdade, que sua base e seu clima( . . . ) No s a opresso poltica e a econmica, como a dos mi

    tos e a do nmero, so fatres inibitrios da liberdade, que impedem a expanso legitima e espontnea da personalidade. *

    Mas, perguntar-se-: que um privilgio? E os casos em quea ausncia de discriminao legal coloca o fraco desamparado emface do forte? No se considerou, durante certo tempo, que as convenes entre sindicatos afetavam a liberdade de contrato e deassociao, por um apgo rigorista a frmulas superadas? Pois dolado patronsd no desapareceu, na grande emprsa capitalista, afigura do patro tradicional, substitudo pela companhia abstra

    ta, pela sociedade annima?...1) Fierre Duelos, L'Evotutlon des Rapports Politlqaes depuis 1750, Paris, 1950 (p

    85), tem a desconfiana do poder como uma das constantes na poltica francesa,e fator de garantia de iiberdade. O temor do Estado sempre disposto a invases tirnicas, seja quai fOr o regime a primeira condio de iiberdade.

    2) Miiton Campos, Compromisso Democrtico, B. Horizonte, 1951, p. 184 eseguintes.

    INTRODUO 19

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    Completando a citao que fazamos, diremos que, as condies presentes do mundo, o ideal democrtico poderia assiunir outra forma, complementar primeira, assim descrita:

    O combate a ssesi fatres se far, sobretudo, pela dignifi-cao do trabalho e pela sua implantao na base da ordem jurdica, que no encontra mais o seu repouso apenas na idia depropriedade privada, mas institui o trabalho em fonte dos direitos, inclusive o de fazer participar os que trabalham dos frutos dolabor comum.

    E tal devemos procurar, no numa sociedade de indivduos atomizados, mas de pessoas integradas nos grupos naturais, pessoas

    livres, contudo.Para a consecuo dos objetivos da democracia, os homens dosculo X IX inventaram o sistema de equilibrios da monarquia constitucional: visava-se com isto garantir os cidados contra a opresso proveniente do poder poltico, tanto em suas formas conhecidas, quanto em algumas imprevisveis, mas de que tinham a intuio, como as que surgem, hoje, em conseqncia das transformaes na estrutura da sociedade, da presena das massas, da propaganda e de outros fatres novos de perturbao o mito e o

    nmero. Ao texto citado acima ajuntaremos outra colocao, damesma origem:A justia, que a virtude ltima pEira a qual tendem as

    boas aes humanas, tem como principal fundamento a idia deigualdade. Da poder-se dizer que os dois pontos de atrao dademocracia moderna, para os quais se dirigem todos os nossos esforos, so a liberdade e a igualdade ( . . . ) Sem a liberdadecairemos na opresso poltica. Sem a igualdade consolidaremos aopresso econmica. Num e noutro caso estar esquecida a pessoa

    humana e a democracia falhar na sua misso. Compete, pois, s novas geraes armar o homem contra ospodres econmicos segundo as sbias lies dos antigos, que souberam premuni-lo contra a opresso poltica. E no ser, evidentemente, pela supresso da liberdade, que teremos a igualdade. Digna de meditao e de estudo a lio que os criadores da monarquia constitucional nos oferecem: em lugar de tentar a soluo doproblema da justa distribuio das riquezas pela absoro, no Estado, da vida econmica, fazer da autoridade um poder modera

    dor, justiceiro e arbitrai entre as fras em luta na sociedade. E, por intermdio de to sbias lies, evitar a tendncia mo

    derna, que desponta por todos os lados, direita e esquerda, de

    20 A DEMOCRACIA COROADA

    3) Ibidem, p. 329.4) Ibidem, p. 83-84.5) Em estudo recente, Os Bancos e o Estado Moderno (Rio, 1952), o Sr. Jo

    s Saldanha da Gama e Silva formula uma singular teoria do poder moderadoreconmico , extenso das teorias de Benjamin Constant politica bancria moderna (Ver pp. 42-46),

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    identificar o Estado com o corpo poltico, destruindo assim a velha e salutar rebeldia dos cidados contra os podres.

    Passamos a confiar no Estado a ponto de faz-lo nosso pa

    tro, e com isto acreditamos conseguir superar tdas as contradies e todas as oposies dialticas, pois, alm de identificarmos asociedade com o Estado, identificamo-nos com o nosso patro, conseguindo, por ste meio, a mais completa submisso do indivduoao nvo Leviat, Leviat poltico, econmico e ideolgico, embora, por um artifcio retrico, tenhamos mascarado esta submissosob a capa e o nome da liberdade total... '

    Ora, a liberdade s existe, s pode existir, em conseqnciado estado de tenso, de hostilidade mesmo, que ocorre entre o povo e a organizao poltica. Quanto mais hostil aparecer a nossos

    olhos a autoridade, tanto mais garantidos estaremos contra aopresso. A monarquia, se oferece um poder neutro, que tem intersse pessoal em no participar das lutas e querelas, apresenta-se, ao mesmo tempo, como vima possibilidade cheia de promessasdesagradveis. Dai ser mais comum a desconfiana contra o Estado nos regimes monrquicos do que nos republicanos. Sabemos queo rei ao o povo. Mas pensamos que o govrno republicano opovo.

    E no discurso meio ressentido de Samuel aos judeus que que

    riam um rei Neququam; lex enim erit super nos que encontramos a essncia da velha desconfiana do povo contra os reis(1 Reis 7, 11-19), desconfiana que pode levar repblica, masque, se bem aproveitada, possibilita a estabilizao dos governosmais livres que j se conseguiram, os das monarquias constitucionais, capazes inclusive de encontrar a conciliao suprema de nosso tempo: de um sistema de socialismo com a liberdade... De socialismo por intermdio da liberdade...

    INTRODUO 21

    6) "La Rvoution franaise, qui devait tibrer Vhomme et imiter le Pouvoiren le transfrant aux peuples, a mis Vhumanit sur la route de Vchec. Elle sest

    accomplie, en effet, sous le sigue da rationalisme. Celui-ci enlve aa Droit, par leqaelon c roit limiter le Pou voir, l autorit que lui donnait adis sa concordance declareavec des valeurs suprimes, absolues et impratives pour Vhomme parce que d'aneorigine supra-humaine: il fait du Droit une simple technique en vue dun fin utili-taire et politique, done sujette variations. (Fierre Duelos, L'Evolution des RapportsPolitiquee, Pars, 1950, p. 332).

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    CAPITULO I

    DE OURIQUE AO IPIRANGA

    A grande novidade do movimento da Independncia do Brasil, que o tomou radicalmente distinto e singular na Amrica uniformemente republicana (mais por ausncia de dinastas que por

    falta de vontade nos homens), consistiu no fato de j ser o Brasil um reino e como tal permanecer. A condio monrquica doEstado brasileiro, em 1822, no era um dado passivo, semelhante aoque se tem verificado em muitas ocasies, na passagem de certasmonarquias, de absolutas a liberais. Os brasileiros no conseguirama Independncia arrancando-a- fra do Prncipe Regente; pelocontrrio: tiveram nle um aliado e companheiro. D. Pedro, de longa residncia no Brasil, sentia-se , muito mais Chefe do Estado brasileiro do que futuro Rei de Portugal. E os brasileiros correspondiam a esta situao, demonstrando sincera disposio de aceitar

    o fato consumado da monarquia tropical.Se a Independncia se fz de modo todo especial pela mo

    narquia, que espcie de monarquia era essa?

    No possvel o estudo da Histria do Brasil sem a anlisedos nossos antecedentes lusos. Esta continuidade amplia-se extraor-dinriamente com a permanncia da Dinastia; no houve soluode continuidade entre a Colnia e a Independncia, em virtude dalenta, segura e suave evoluo traada por D. Joo VI. E como asrealezas so naturalmente tradicionalistas, temos que procurar a ex

    plicao do grito do Ipiranga numa histria que principia na batalha de Ourique. Para entendermos os nossos dois Pedros, temos de ver as idias de seus avs Afonsinos, Avizes e Braganas.Devemos procurar a noo precisa da monarquia medieval, a portuguesa de preferncia.

    Para o grande especialista de teoria poltica da Idade Mdia,que A. J. Carlyle, competia ao rei fazer justia e aplicar a lei,que nascia dos hbitos da comunidade. Tese confirmada, ponto porponto, pelo autorizado Antnio Sardinha. Vejamos o que dizemambos.

    Segundo Carlyle, possvel definir do seguinte modo a posio autntica do pensamento poltico da Idade Mdia acrca destas e outras questes:

    r r>c c n ____, T ' i

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    O primeiro e fundamental aspecto do pensamento poltico daIdade Mdia foi o princpio de que tda autoridade era expressoda justia... O segundo grande princpio da teoria poltica... o

    de que smente poderia haver uma fonte imediata da autoridadepoltica e que era a prpria comunidade; que no havia outra fonte nem as qualidades pessoais do prncipe, nem a fra, nem,em pocas normais, a eleio direta por Deus, mas a comunidade( . . . ) No o prncipe que superior, mas o direito, e o direitona Idade Mdia era, primordialmente, o costume da comunidade( . . . ) Para os juristas do Mdio Evo o direito positivo normalmente no era uma coisa elaborada conscientemente, mas a expresso do costvune da comunidade ( . . . ) A forma primeira e

    mais importante da concepo da liberdade poltica na Idade Mdia era, pois, a supremacia do direito, no enquanto criado peloprncipe ou qualquer outro legislador, mas como expresso dos hbitos e costumes da comunidade (Quando certos historiadores dizem que as Crtes Gerais no possuam poder legislativo, a modo dos parlamentos modernos, devemos entender a coisa completamente: nem os reis tambm)...

    O rei no est acima do direito, mas sujeito a le; no senhor, mas servo do direito ( . . . ) A noo de que o imperador

    ou o rei medieval podia legislar no passa de iluso ( . . . ) ASupremacia do direito direito que era inicialmente a expressodo costiune e depois o conselho e o consentimento da comunidade fo i o primeiro elemento da concepo da liberdade poltica naIdade Mdia, porque fazia significar que o rei ou o prncipe possuam uma autoridade, augusta certamente, mas limitada, no absoluta. '

    Estas as concluses principais de Carlyle, analisando as doutrinas polticas medievais. Sardinha, estudando de perto a teoria

    e a prtica das Crtes Gerais portugusas, chega a resultados sensivelmente iguais.

    Tda a monumental introduo famosa memria histrica doVisconde de Santarm sbre as Crtes Gerais um hino lusitana antiga liberdade e a afirmao psto que involimtria

    do queinto madrugaram os portuguses na luta pela democracia. Trs ou quatro afirmativas de Antnio Sardinha colocam aquesto em seus trmos:

    A Realeza assim uma dignidade destinada a ministrar a

    justia ( . . . ) E uma dignidade, no um mandato ( . . . ) Opoder do rei, sendo, como , indiviso, , contudo, limitado ( . . . )O rei governava, a Nao administrava-se. 0 rei governava, efetuando pela distribuio da justia e pela defesa do solo a uni-

    1) La Libertad PoUtica, Mxico, 1942, p. 23-27 igualmente em outros historiadores, como G. Sabine, Historia de ia Teoria Politica, Mxico, 1954, que desenvolvelargamente o tema.

    26 PRIMEIRA PARTE: RAIZES IDEOLGICAS E HISTRICAS

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    dde necessria seguranga de todos. A nago administrava-se realizando a multiplicidade dos seus intersses na multiplicidade dosvrios rgos que legitimamente os exprimiam. Era-se soberano

    dentro de vila e trmo ( . . . ) Seria to absiurdo fazer dirigir o Estado por qualquer homem de qualquer comuna, como pr o reia cuidar das convenincias locais nos diversos concelhos que lhematizavam o reino. A autoridade real s intervinha na hiptese dealguns dsses organismos se chocarem ou de abusivamente invadirem a rbita dos outros. Obtida a equao indispensvel economia do grupo, a atividade do Rei reentrava logo na sua esferaprpria. Havia simultneamente uma descentralizao administrativa e uma concentrao poltica virtude especfica dos sistemasmonrquicos. Servia-se existncia superior do agregado, impondo-

    se o equilbrio aos diferentes antagonismos sociais, de cujo entrelaamento a nao resultava. Por outro lado, sses diferentes antagonismos municpios, corporaes, estados provinciais, etc.,etc., viam-se garantidos na sua independncia pela descentralizao administrativa ( . . . ) No fo i outra a constituio de nossamonarquia, conclui Sardinha ao principiar o captulo seguinte. Depois de quase repetir Guizot, /e roi rgae, ne gouverne pas, vairedizer Benjamin Constant logo abaixo: , realmente, a realezaao alto, como fecho de abbada... Mais adiante afirma: Achamos assim, com o advento dos procuradores dos concelhos s cr-tes de Leiria no ano de 1254, a constituio dsse legtimo elemento de representao que est na ndole do princpio monrquico.E, para concluir, conformando teses de Carlyle sbre o carter jurdico da realeza medieval: . . . O direito do Rei era o direito doReino. E cita o famoso Joo Pinto Ribeiro: Os Reys no foramcreados, e ordenados para sua utilidade, e proveyto, se no embeneficio e prol do Reyno... *

    De todo ste rol de citaes, que poderia ser triplicado, de-duzem-se fcilmente tdas as notas principais do sistema demo

    crtico. No claro, do velho cartsmo, nominalmente liberal, masno fundo bem tirnico. Vemos a a noo do imprio da lei, dadistino entre govmo e administrao, a idia descentralizado-ra, o princpio representativo e assim por diante.

    2) AntAnio Sardinha, Introduo Histria e Teoria das Cries Oerais, do Visconde de Santarm, Lisboa, 1924, pp XXIX e seguintes. Nesse extraordinrio capitulo50 da Arte de Furtar, que justifica simultneamente o nacionalismo, o regalismo ea democracia, lemos o seguinte bill of rights quase iguai ao dos norte-americanos: Deus no princ ipio criou o homem iivre e to livre, que a nenhum concedeu dominio sObre outro: e at Ado, cabea de todos, por ser o primeiro, s de animais,aves e peixes o fz senhor. Mas a todos juntos em comunidades deu poder para segovernarem com as leis da natureza. E nesta conformidade, todos juntos, como se

    nhores cada um de sua liberdade, bem a podiam sujeitar a um s que escolhessem,para serem melhor governados com cuidado de um sem se cansarem outros. E aste escolhido pela comunidade d Deus o poder, porque o deu comunidade, etrans ferindo-o esta em um, de Deus fica sendo. E se algum cuidar que s deDeus, e no do povo^ recebem os reis o poder, advirta que sse o rro com quese perdeu a Inglaterra e abriu portas s heresias, com que se fz Papa o rei,admitindo que recebia os podres imediatamente de Deus, como os Sumos Pont fices .

    CAPITULO I: DE OURIQtjrE AO IPIRANGA 27

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    Est realeza veio para o Brasil e aqui se meteu no movimentoda Independncia. D. Pedro I, com as suas preocupaes de constitucionalismo, estava de fato restaurando a verdadeira tradio

    da familia, tradio pervertida por uma moda que viera de Frana para a Pennsula Ibrica nas bagagens do duque de Anjou, queespalhara lises plidos nos feros lees e gmas dos sombrios Fi-lipes do Escurial. O absolutismo em Portugal era tipicamente mercadoria importada. D. Pedro I, porm, tirou a diferena e restabeleceu a tradio.

    3 ) A posio exata de D. Pedro I na Independncia do Brasil, como seu agente principal, acaba de receber da parte do Sr. Otvio Tarquinio de Sousa umainterpretao definitiva. (Ver A Vida de D. Pedro I, Rio, 1952).

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    CAPITULO I I

    UBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE

    De todos os elementos que entraram na constituio da situao histrica do Brasil, em 1822, nenhum mais bem conhecido que

    as idias polticas dominantes na poca. Muitas razes contribuempara isto: so idias que, inalteradas ou pouco deformadas, orientaram o esprito de nossos homens pblicos e de nossos escritoresat h bem pouco tempo. Idias quase contemporneas, seu estudoimo exige apurada tcnica historiogrfica nem o esfro desperso-nalizador prprio da pesquisa cientfica. So conhecidas diretamente, ^ m intermedirios nem riscos de alterao ou deformao.

    A interpretao histrica da realeza portugusa, por outro lado, tem custado grande trabalho de pesquisa documentria alm

    de um notvel esfro de depurao de preconceitos.O estudo da sociedade brasileira, por sua vez, pressupe a existncia de uma sociologia brasileira.

    As idias do liberalismo, porm, que madrugaram no Brasil,aqui penetrando em pleno sculo X V II I, tomaram na fase da Independncia uma estrutura especial graas influncia dos estudos constitucionalistas de Benjamin Constant e de outros tericosda monarquia representativa.

    A Revoluo Francesa, que principiara como tentativa de restaurao dos velhos costumes da realeza medieval, havia, depois de

    grandes tempestades, entrado no prto remansoso da Restaurao,com a sua monarchie selon la Charte. E neste prto ancorara, como sagaz rei Lus X V II I ao leme, quando os bi^ ile iro s iniciavama sua...

    Os resultados positivos da Revoluo Francesa, tomada em sentido lato, como o aparecimento de uma nova situao na histriada Europa, e no uma srie de acontecimentos na vida poltica daFrana, foram os seguintes:

    a) sociedade baseada na diviso econmica e no jurdica das

    classes, com predomnio da burguesia;b) individualismo filosfico, poltico, jurdico e econmico;c) democracia poltica.A primeira destas conseqncias foi a legalizao de grande

    transformao social, que j vinha de longe: a ascenso da classeburguesa e o aparecimento do capitalismo. Todos os fatres agi

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    ram de comum acrdo: as idias da Enciclopdia; as teorias econmicas dos manchesterianos; a abolio dos privilgios feudais;a constituio civil do clero, smbolo da secularizao da sociedade,

    cuja primacial repercusso na vida econmica foi a suspenso dasrestries impostas pela Igreja atividade mercantil; a extinodas corporaes; o apai^imento das novas tcnicas de produzir evender; a supresso das liberdades locais...

    Tudo isto contribuiu para fazer com que as distines sociaisque antes tinham base jurdica (hereditariedade de cargos e funes, estatutos pessoais definidos pela condio social do indivduo,privilgios de famlias, de corporaes, de ordens, de provncias, decidades) passassem a ter fundamentos exclusivamente de ordem eco

    nmica, ficando portanto qualquer posio social acessvel a todos,pois o enriquecimento, em regime de franca liberdade econmica, depende apenas de qualidades individuais. Para Henri Se, a supressode barreiras jurdicas entre as classes e a sua substituio por diferenciaes exclusivamente econmicas seria a conseqncia principal do Capitalismo. ^

    A Revoluo Francesa baseava tda a sua filosofia no individualismo, dando-se palavra o sentido prprio: a doutrina que sefundamenta na atualizao da essncia do ser humano em cada pes

    soa individual. Para os filsofos do liberalismo antigo, cada indivduo concreto possua, em ato, tdas as notas constitutivas do serhumano em si. Alm disto, o ser humano smente existia como indivduo, negando-se, entre outias coisas, a possibilidade de mn destino social para os homens. De fato, se todos os homens realizamem ato a idia de homem, cada qual traar livremente seu prprio destino. A existncia incontestvel de doentes ou iletrados fo ilogo verificada, mas consideravam-na imediatamente como acidental e superada, pela criao de hospitais e escolas. Se os velhosdefensores do individualismo jamais negaram a existncia do analfabetismo ou das doenas, deficincias nascidas, primeira vista,de circunstncias estritamente individuais, fugiram discretamenteda discusso dos problemas oriundos de situaes negativas, originrias de causas coletivas, como a prostituio, por exemplo, que,no obstante ser um complexissimo problema, passou alada dapolcia, reduzindo-se uma srie imensa de calamidades categoriade delito, de perturbao da ordem. O mesmo com o proletariado, que passou condio de pseudoproblema, considerando-se umdisparate aberto a mera possibilidade de existirem homens que, in

    dependentemente de seus esforos, estivessem condenados a umasituao social qualquer. Se algum permanecia operrio, a nicaexplicao plausvel, dentro da teoria individualista, se encontrariaem deficincias pessoais. *

    1) Ver Les Origines du Capitalisme Moderne, Paris, 1936, p. 183 e seguinte.2) Fcii rastrear a presena das infiuncias caivinistas assinaiada por Weber

    e outros.

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    Da, as conseqncias conhecidas: a proibio de rgos e associaes de defesas de classe, a abolio dos vnculos, a reduo da heirua a mera transmisso da propriedade, etc.

    No possvel fazer aqui o processo de individualismo, assunto, alis, suficientemente estudado por muitos autores.

    Mas, pelas condies peculiarssimas da formao brasileira,tais idias encontrariam camx>o frtil e bem lavrado, que permitiria a germinao da semente. E que a Amrica, naturalmente, tendia para o individualismo.

    A terceira das principais conseqncias da Revoluo fo i a democracia poltica, a mais visvel e positiva delas. O govmo esta servio do povo, que se deve associar a le. Enquanto as demaisconseqncias possuam carter mais destrutivo que constmtivo, a

    democracia aparentava uma criao nova e o apogeu de uma evoluo. Foi o edifcio levantado sbre as runas do antigo regime.

    Por um conjunto de circunstncias que poderamos denominaruma fatalidade histrica, a democracia moderna surgiu associada ao individualismo. Uma sociedade organizada dentro do esquema tradicional do liberalismo no pressuposto indispensvel para o funcionamento do Estado liberal, que pode muito bem coexistir com \ima organizao grupai da sociedade e com as reformas sociais mais profimdas. Alis, a justia social se coaduna melhor com o Estado liberal do que com as ditaduras e formas to

    talitrias.De resto a histria est cheia de pseudoproblemas desta es

    pcie. No se tinha por essencial a ligao entre federao e repblica nas alturas de 1889? Pessoas mais bem informadas lembravam, no entanto, que o Estado unitrio fra criao da Revoluo Francesa e que o Antigo Regime era nitidamente federal edescentralizado.

    O principal, porm, da democracia poltica reside no imprio da lei, a regulamentao do conjunto de relaes entre Es

    tado e povo por um documento escrito, contendo dentro de si asrazes e os elementos necessrios a seu prprio cumprimento, taiscomo o princpio da diviso, harmonia e equilbrio dos podres,a garantia das liberdades pblicas. Por influncia do individualismo, os velhos liberais acreditavam que, se o Estado retirasse osobstculos externos ao do homem, ste atingiria, por suas prprias fras, o ideal sonhado de igualdade e fraternidade.

    Agora, no devemos confundir com o individualismo, apenasuma falsa interpretao da doutrina da igualdade jmdica, o prprio conceito de igualdade perante a lei. O que distingue a dou

    trina da igualdade jurdica da teoria individualista , principalmente, o carter tico-jurdico da primeira, e a qualidade filosfica dasegunda. O individualismo uma filosofia da vida que, smente poracaso, se associou doutrina da igualdade jurdica e ao liberalismo.

    CAPITULO II: LIBERDADE!, IGUALDADE E FRATERNIDADE 31

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    Sob certos aspectos, deve ficar bem claro, tal identificao lgica e possui fundamentos; sob outros, porm, veio como resultante de confluncias histricas aleatrias. A identificao entre as

    duas doutrinas ocasionou as maiores confuses. Foi um dos maistrgicos dstes mal-entendidos, aos quais se refere Maritain emvrias de suas obras.

    H uma doutrina mais antiga do que as filosofias do sculoX V III , sistematizada pelos Padres da Igreja, aplicada pelo direitoromano, ensinada por filsofos gregos e pelos esticos: todos oshomens possuem a mesma e comum natureza humana, criada porDeus; todos os cristos pertencem ao Corpo Mstico de Cristo. Perante Deus no existem diferenas entre os homens. H iimn lei

    comum a tda a Humanidade, o direito natural:Todos os homens foram criados por Deus livres e iguais e

    foram dotados pelo seu Criador com uns tantos direitos, entre osquais a vida, a liberdade e a procura da felicidade.

    Isto uma verdade de ordem metafsica indiscutvel. A vidasocial e a diviso do trabalho geraram diferenas, que se juntarams de origem somtica, como a doena, a fraqueza, a incapacidade fsica. Os homens, como disseram muito bem os pais da Ptria Americana, foram criados livres e iguais, mas, ao contrrio

    do que afirmaram os jacobinos franceses, no nascem e no soiguais, pois existem diferenas biolgicas entre indivduos, e a sociedade os divide mais ainda. E os homens no nascem livres:nasce uma criana frgil e indefesa, que ao se tomar uma pessoa na idade adulta consegue, em casos excepcionais, ser livre.A liberdade no consiste apenas na libertao de restries exteriores, do constrangimento fsico. Temos aqui um dos aspectosparciais do problema da liberdade, e o desconhecimento dos demaisgerou muitos dos equvocos no liberalismo. Liberdade , tambm,

    um poder, xima fra de ao, e consiste em fazer o que se quer,o que a vontade livre determina. Ora, a vontade no uma fra instintiva e cega, mas a ao livre e consciente do esprito emprocura do bem. Um primeiro caminho para a liberdade est nodomnio das paixes e da vida dos sentidos. O homem livre temo poder de fazer o que quer e no o que deseja, o que faria dleum escravo das paixes, apesar de livre de constrangimentos exteriores. No fazer tudo o que lhe sugere a sensibilidade e, sim,o moralmente mais valioso. Uma criana, ento, no livre nem

    3 ) Sbre a doutrina do Corpo Mistico e suas aplIcaSes no smente s questes teolgicas , mas s de carter pr tico e moral, j existe uma extensa e va liosa bibliografia, entre as quais se contam os tratados de Mersch, Jungermeister,

    Journet, Penido , e uma importante En cclica do Pap a Pio X II . Embora o seuintersse evidente e a sua extraordinria riqueza, o tema escapa totalmente aosobjetivos imediatos dste ensaio: limitar-nos-emos a mera referncia, e lembramosque, mesmo no Brasil, o assunto j tem tido o seu justo desenvolvimento, comonos belos ensaios do Pe. Maurilio T. L. Penido: O Corpo Mstico, Petrpolis,1944 e O Mistrio da Igreja, Petrpolis, 1952, e de Alceu Amoroso Lima, PelaCristianizafo da Idade Nova, Rio, 1946.

    32 PRIMEIRA PARTE: RAIZES IDEOLGICAS E HISTRICAS

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    no sentido objetivo nem no sentido subjetivo da liberdade, no conhece a liberdade nem como direito nem como poder. A liberdade uma conquista da humanidade, um esforo constante e inadode dificuldades. Assim, o adulto mais livre do que a criana, e

    podemos dizer que, de um modo geral, somos hoje mais livres quehomens de outros tempos. Lvres, mesmo, quantos homens o foram? S. Paulo no nos fala na contradio dilacerante entre avontade e o instinto, ou melhor, entre a vontade reta e a sensibilidade corrupta? No fao o bem que quero e sim o mal queno quero . . . Na vida de S. Agostinho uma constante e spera luta pela liberdade a vitria no foi alcanada seno comextrema dificuldade. At o fim le confessava ter a liberdade ameaada. E bem possvel que S. Francisco tenha sido realmente onico homem livre no mundo.

    O mesmo se d com a igualdade. Perante o direito natural,todos os homens so iguais. H iima igualdade natural, do homemem estado natural.

    Mas, como pode informar qualquer pessoa nem precisocitar o Conde Joseph de Maistre o homem-em-si no existe, uma idia, um universal. O conflito ideolgico subjacente Revoluo Francesa pode ser descrito entre os que smente viam ohomem-em-si (Rousseau) e queriam obrigar as coisas a seguirem os arqutipos eternos e aqules que s viam os homens indi

    viduais concretos, no admitindo possibilidade de uma idia universal de homem (De Maistre). Mas, se cada homem singular no o homem-em-si, todos os homens participam desta idia universal de ser humano. H uma perfeio natural e ideal, um arqutipo do ser humano, contendo tdas as notas da hmnanidade emsi. O homem natural (assim como o estado natural) no existeem nenhiun lugar da terra, mas possui existncia abstrata comoideal a ser atingido.

    O estado natural no uma situao do homem ou de certapoca da histria, e sim um modo de ser de determinada situao

    conforme a natureza do homem: o estado de perfeio, que seriao natural naquela situao. Assim, com relao igualdade, devemos, sempre, procurar aproximar a situao atual daquela queseria a natural na presente situao do mundo, um estado emque, dispondo dos elementos de que dispomos, estivesse o homemmais prximo da perfeio. Em qualquer poca histrica podemosdistingruir o seu estado natural prprio; assim, a Idade Mdiade S. Lus, de S. Francisco, de NunAlvares e outros, seria o estado natural prprio de uma civilizao fundada sbre o feudalismo; a explorao dos viles, as perseguies s bruxas, etc., eiso estado antinatural da Idade Mdia. igualdade essencial dohomem corresponde, em regra, uma certa desigualdade no plano social concreto. No possvel, sem forar as regras do raciocnio,

    A Democracia Coroada 3

    CAPITULO II: LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE 83

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    postular a igualdade essencial do homem, seno como direito, como conceito-limite. O que tem existncia real e efetiva o indivduo singular concreto, que tem em si a marca do homem, que

    procura ser o Homem, no obstante a impossibilidade metafsicaque impede ao singular de ser universal. Por isto os homens soiguais por natureza, existem desigualmente e desejam, com justodireito, a igualdade.

    Como resolver a questo surgida pela contraposio entre aigualdade como aspirao e as desigualdades de fato? Dando iguaispossibilidades a todos, como propunham com tda sabedoria os liberais. Mas e as possibilidades que no so comuns? E as desigualdades necessrias, provenientes de superioridades, legtimas e

    benficas, de virtude ou inteligncia?No primeiro caso temos as contribuies desta nova atitude

    em face dos problemas, que poderamos denominar socialista, isto , o esfro e a orientao no sentido de conceder a todos asconces apropriadas ao gzo dos seus direitos.

    Quanto s desigualdades existenciais de valor positivo, elasconstituem os elementos de elite, o escol, as pessoas ou agrupamentos que conseguem a realizao efetiva de mn tipo de humanidade superior, autnticos profetas de uma era melhor, pois tomamvisveis e atuais os tipos humanos ainda no realizados no seio damultido dos que vivem imersos na mediocridade do quotidiano emundanal, como diria a filosofia existencial. Um regime de igualdade fra, de proibio de desigualdades por superioridade que algumas pessoas excessivamente ingnuas pensam ser objetivodos comunistas, fazendo pouco da inteligncia e do realismo dosmarxistas impediria os amplos caminhos que as personalidadesde exceo abrem ao progresso. Todos devem ter iguais possibilidades, medida simultaneamente democrtica e aristocrtica; democrtica, por anular os privilgios, aa excees legais; aristocrtica, por incentivar a seleo dos melhores. Nada to antiaristocrticocomo o privilgio, obstculo formao de autnticas elites e conservador das falsas, incapazes de se manterem sem apoio externo.Uma aristocracia em constante recrutamento uma aristocraciasempre em forma. As famlias realmente nobres estaro sempreem lugar de destaque. As que no resistirem concorrncia voltaro ao anonimato. E as de boa qualidade, devido necessida

    de de conservarem as posies adquiridas, no se entregaro ociosidade. E um bem que deve ser defendido, a existncia de superioridades, espontneas ou no, surgidas na sociedade. Claro quetais superioridades no podem surgir da inferioridade forada dosdemais.

    Uma conceituao adequada e justa da igualdade jurdica deve tomar conhecimento das seguintes regras: igualdade de oportunidades; ausncia de leis de exceo que no sejam por utlida-

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    de pblica; estabelecimento de medidas anulando as desigualdadesperniciosas.

    A ltima das regras apontadas no era bem vista entre os

    liberais da velha escola. Os socialistas, exagerando por seu turno,numa reao por vzes salutar, propunham, nos velhos tempos daInternacional, a igualdade econmica. Ora, se a participao dosindivduos na produo diversa, diferente tem que ser a remunerao. E exigiro diferenas quanto ao pagamento tambm asdiferentes necessidades de consumo. Por isto, as retribuies desiguais do trabalho, por motivo de capacidade, ou de necessidade,devem ser consideradas, nicamente, exigncias da justia. O queno est de acrdo com a natureza do homem, na situao atualdp mundo, o fato de inmeros entes humanos no receberem uma

    remunerao adequada s suas necessidades ou proporcional suaparticipao na vida econmica. E de no terem meios de abolira sua condio.

    Alm das desigualdades prpriamente ditas, temos, na sociedade, distines de outra ordem, que so meras diferenciaes, semque possamos efetuar julgamentos de valor a seu respeito.

    Uma recolocao do problema da igualdade, portanto, leva-nosa substituir esta noo pela de justia, conceito anlogo, enquanto que a de igualdade no pode escapar pecha de unvoco. Que

    a justia, seno o tratamento proporcional entre os homens?Os homens so iguais, e por isto devem ter direitos e de

    vores iguais, assim como iguais possibilidades. So iguais, mas noesto igualmente na sociedade, as situaes respectivas criando diversidade de condies. Dado o elementar dever de justia que consiste em tratar desigualmente sres desiguais, de modo a todos seremunerarem igualmente, a igualdade natural do homem smentese realiza por um sistema de leis diferenciais. Fazer uma lei igualpara o rico e o pobre, o mercador e o campons, o homem e amulher, entregar o fraco discrio do forte. Alm disto, hque respeitar os intersses comuns das classes e das profisses, osassuntos da economia interna das clsses e profisses. Temos defugir da atitude dos latter-day liberais, como diz Lippman, que, emlugar de tomarem a liberdade e a igualdade como xim objetivo aser atingido, consideravam-nas um fato j existente. No o alvode nossos esforos, mas o ponto de partida. Viviam como se jestivssemos no reino da liberdade, igualdade e fraternidade, impedindo assim que se realizassem os grandes ideais da humanidade pelo fato de os terem prviamente por definitivamente realiza

    dos. O nosso tempo teve como herana de resolver esta srie deequvocos: oposio entre democracia social e democracia pol tica;contradio entre a justia que procura o socialismo e a liberdadeque oferece o liberalismo, e assim por diante. Enquanto, porm,

    CAPITULO II: LIBERDADE^ IGUALDADE E FRATERNIDADE 85

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    OS povos procuravam a soluo dos problemas, os ditadores colocaram as contradies a seu servio.

    O grande equvoco nasceu de no ser visvel que a justia so

    cial, em lugar de ser uma exigncia contra os Direitos do Homem, o desejo de fazer com que os Direitos do Homem sejam (reitos de todos os homens. *

    4) Ver 0 nosso A Libertao do Liberalismo, Rio, 1949. Citaramos igualmente, como exata colocao de certos elementos centrais da justa configurao daquesto, os seguintes textos do Sr. Milton Campos: A supresso de priv ilgiosem favor de pessoas, de grupos ou de classes a grande tarefa da democracia moderna, cujo contedo a igualdade, ao lado da liberdade, que a suabase e seu clima . (Compromisso Democrtico, Belo Hor izonte, 1951, p. 328)." . . . Os dois pontos de atrao da democracia moderna ( . . . ) a liberdade e aigualdade ( . . . ) "Sem a Iiberdade cairemos na opresso poltica. Sem a igualdade consolidaremos a opresso econm ica. Num e noutro caso estar esquecidaa pessoa humana e a democracia falhar na sua misso . (Ibidem , p. 83-84). A

    reviso do liberalismo n que concerne extenso dos "dire itos do homema todos os homens vem recebendo tratamentos adequados da parte de vrios autores, como, por exemplo, Walter Lippman, The Qood Society, Boston, 1943, eW. Roepke, Expiication Economique du Monde Moderne, Paris, 1952.

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    CAPITULO I I I

    A SOCIEDADE BRASILEIRA

    Podemos atribuir aos positivistas brasileiros (ou, mais precisamente, a Miguel Lemos e Teixeira Mendes) a primazia no afirmar

    a geral indiferenciao da sociedade brasileireu O povo brasileiro,juridicamente falando, sempre fo i uma sociedade sem classes, situao que tiveram em mira os homens da Revoluo Francesa eque constituiu, segundo Henri Se, uma das conseqncias positivas do capitalismo: uma sociedade na qual a posio do homemse define por motivos de ordem econmica e no jurdica. NoAntigo Regime determinava-se o lugar ocupado pelo indivduo porefeito de seu estatuto legal; provinha do nascimento o direito aocupar as suas posies. No sistema que surgiu em conseqncia

    das transformaes polticas e econmicas ocorridas na primeirametade do sculo XIX, j no teria o indivduo lun lugar marcado no conjunto da sociedade; formalmente, tdas as p

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    ofereceu, e em grande nmero, aos desajustados de tda sorte, quepululavam na Europa do Renascimento, para que encontrassem umaoportunidade de resolver a vida por suas prprias mos, sem se su

    jeitarem aos mil regulamentos de um perodo histrico definido pela passagem do feudalismo e do corporativismo para o absolutismo e o mercantilismo. Basta recordar o que representou o NvoMundo para resolver os problemas dos Aventureiros, dos excedentes das corporaes, dos filhos de famlias muito numerosas,dos cristos novos, dos hereges, dos fidalgos arruinados ou degradados por motivos mais ou menos fteis, de tda essa massade deslocados que crescia margem da sociedade e qual HenriPirenne dedicou estudos muito elucidativos. Vieram todos encontrar na Amrica uma oportunidade admirvel e nica para o de

    senvolvimento de suas atividades, inclusive quando no eram muito excelentes pessoas. Convm, alis, recordar que o nome de umcadete, o Infante D. Henrique, o Navegador, se encontra intimamente ligado ao movimento das descobertas martimas.

    Ora, um continente ocupado por uma categoria de pessoas emque as restries sociais haviam pesado fortemente, a ponto decriar o dilema imigrao ou morte no poderia fugir ao quetem sido: um continente individualista. Os pioneiros americanosviveram uma grande aventima em estilo rousseauniano: libertaram-

    se das cadeias com as quais haviam nascido e tomaram-se livresem meio da selva contempornea da Criao.

    Simultneamente principalmente no Brasil outro elemento entrou em cena: a democracia racial. Vinham homens de certo modo excntricos sociedade do tempo, e quase sempre homens, sendo raxas as mulheres, mesmo erradas, como pedirao jesuta. Da fundarem-se famlias inteiramente margem das normas e usos estabelecidos, inclusive dos preconceitos de cr. Osaventureiros no tiveram necessidade de que o Papa lhes dissesse

    que os selvagens eram homens e, como tais, naturalmente cristose dignos do Batismo: sabiam que as ndias eram mulheres e agiamem conseqncia. O intercurso sexual entre pessoas de raas diferentes de que o nosso pas tem sido palco, por sua extenso eprofundidade, tomou-se fenmeno de mbito mundial, e um acontecimento de importncia capital, cujo estudo em detalhes pode serperfeitamente dispensado em virtude da massa de elementos j existentes para o conhecimento do assunto. *

    Na verdade, se os patriarcas fundadores do Brasil no deno

    tavam grande entusiasmo pelo tipo de sociedade estratificada e hie-

    38 PRIMEIRA PARTE: RAIZES IDEOLGICAS E HISTRICAS

    2) Principalmente Historia Social Econmica de la Edad Media, Mxico, 1941,pp. 33-34.

    3) E hoje amplamente satisfatria a bibliografia sbre o assunto, desde os estudos clssicos de Nina Rodrigues e Manuel Quirino, at os modernos de Gilberto Freyre, Artur Ramos, Donald Pierson, Joo Dornas Filho, Aires da Mata Machado Filho, Maurcio Goulart, etc.

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    rarquizada de onde provinham e de cujas estruturas rgidas, namaioria das vzes, eram vtimas, as condies de vida no nvocontinente os obrigavam a saltar barreiras mais altas e mais for

    tes que as da sociedade feudal, barreiras quase naturais.O certo que a sociedade brasileira, durante o perodo de

    formao, tenda para uma quase completa homogeneizao, inclusive a racial. Muito ilustrar a nossa tese um depoimento antigode um estrangeiro, Handelmann; * nota o grave pesquisador germnico que o Brasil no conhecia distines jurdicas especiais entre pessoas de cr diferente, excluida a situao especial do escravo. O mulato, o prto livre e o branco eram iguais perante a lei,no obstante as distines que o costume estabelecia, sempre de mo

    do extralegal. Os cidados brasileiros eram iguais perante a lei,sem outra diferena que no seja a dos seus talentos e virtudes.E quanto a costumes, no h que entrar em detalhes. Estamos,evidentemente, a longa distncia de um tipo ideal que se no realizar em lugar nenhum; mas estamos muito na frente de qualquer outro povo. Isto o que interessa.

    Poder-se-ia contrapor a esta viso da realidade social brasileira o fato de haver a escravido, que separava uma grande camada da populao de outra por distines jurdicas, sociais e econmicas muito ntidas. No podemos, porm, considerar os escravoscomo cidados, nem dizer que les constituam uma classe.Eram antes uma populao dentro do povo brasileiro, estrangeirosno assimilados. Com o correr dos tempos, os indivduos de origem africana como que se naturalizavam brasileiros, incorporando-se devidamente ao seio da comunidade nacional. Processo de incorporao lentssimo, como se pode muito bem compreender, masseguro. Bem rpido, porm, se relevarmos a distncia cultural queos negros atravessavam, das selvas africanas vida semi-europiado Brasil. Desde os primeiros dias, no entanto, verificou-se lun claro movimento de ascenso social do negro, quer pela mestiagem,quer pela conquista de posies elevadas pelos elementos mais bemdotados. Eram homens que se naturalizavam, que deixavam deser africanos e passavam a brasileiros. sse movimento vinhados tempos coloniais e projetou-se ao longo do Imprio, na sriede exemplos que todos conhecem, que indicam a queda sucessivadas barreiras que separavam os senhores de seus antigos escravos. Barreiras que, no fimdo, no eram seno as que habitualmen

    te separavam naturais de estrangeiros, agravadas com a posio jurdica especial do instituto da escravido. Em 13 de maio de 1888nada mais houve que uma grande naturalizao da populao deorigem africana. Naquele tempo, Jos do Patrocnio proclamava enfticamente: Ns os latinos...

    CAPITULO m : A SOCIEDADE BRASILEERA. 39

    4) Histria do Brasil, ediSo da Revista do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro, Rio, 1931.

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    Se nunca houve aqui fidalguia (os estudos genealgicos sofontes de constantes surprsas desagradveis), o clero no Brasil en

    contrava-se numa situao excepcional. Em Minas, onde havia amaior concentrao de populao desde o sculo XV III, smentesurgiram conventos em nossos dias. Os jesutas que poderiamcriar situaes desagradveis ao poder pblico foram expulsosem 1759. O resto se encaixou mais ou menos slidamente na mquina burocrtico-eclesistica do Padreado e da Mesa de Conscincia e Ordens. O resultado mais curioso do fenmeno que tivemosum clero fortemente secularizado, numa sociedade fortemente sa-cralizada. Se as circunstncias sociais haviam impedido a formao

    de uma aristocracia, o regalismo e o Padreado, por sua vez, contriburam para que no houvesse um clero como classe social, como estado, e sim como categoria de funcionrios pblicos.

    Como no se encontravam universidades na Colnia, como noas encontraria hoje uma pessoa muito exigente, no existia classeintelectual poderosa, fora do Estado.

    Tudo conspirou, portanto, para que no Brasil no ocorressemoutras distines entre as classes, que as de ordem econmica rea

    lizando o estilo burgus da diviso da sociedade. Os poucos tiposde aristocracia surgidos na colnia tendiam ao desaparecimento nodecorrer do Imprio: nossa economia, muito instvel, impedia aformao de uma sociedade baseada em estratos definidos e hierarquias rgidas.

    Devemos anotar, entre outras coisas, a importncia, nos centros urbanos, ou de forte concentrao urbana Minas Gerais principalmente das corporaes de ofcios e irmandades religiosas,

    criaes tpicas do Terceiro Estado no Antigo Regime e que, noBrasil como na Europa, foram instrumentos de ascenso social.Podemos dizer que as corporaes e as irmandades coloniais no

    obstante as discriminaes raciais: irmandades separadas para brancos, pardos e negros deram aos homens de cr a oportunidadedesejada de serem assimilados sociedade brasileira. Dentro deuma irmandade de prtos, os negros eram gente: escolhiam livremente os seus chefes e exerciam uma funo social reconhecida,podendo mesmo ombrear ou suplantar os brancos na beleza dostemplos e imponncia das procisses.

    40 PRIMEIRA PARTE; RAIZES IDEOLGICAS E HISTRICAS

    5 ) Burguesia no sentido de ausncia de diferenciaes legais entre as classes.No fundo a base principal era a classe rural, e a expresso "burguesia rural ,evidentemente, contraditria, social e gramaticalmente contraditria. E esta classe rural se organizava feudallsticamente em trno da Guarda Nacional e outrasInstituies. A abolio dos Vnculos e a carncia de quaisquer Instituies legalmente estabelecidas para fundar uma discriminao, impediam que o nosso feudalismo se constitusse amplamente. Seria, sempre, uma formao marginal, extralegal. Ora, uma distino entre classes fundada nicamente em fatres econmicos e em costumes corresponde ao estilo burgus da organizao social. Burguei i t f l d t i i fi d I i

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    J nos ofcios, os mestios tiveram oportunidade de adquiriruma posio social de relvo dentro da sociedade. No so poucosos exemplos ilustres: basta mencionar o Aleijadinho. *

    Alm disto, h o clero, como sempre, instrumento poderosode ascenso social. J em tempos de D. Joo V I tivemos o casomemorvel do Pe. Jos Maurcio Nimes Garcia, msico da Crte.Isto sem falar nos vrios casos de filhos de pais incgnitos queatingiram altas posies. O principal dles foi Regente do Imprioe Senador: Feij.

    Podemos considerar uma verdade historicamente demonstr-vel que a sociedade brasileira tendia igualdade como a seu lugar natural.

    Finalmente, havia uma base de organizao poltica democr

    tica, nas Cmaras Municipais, com seus amplos podres de ordemdeliberativa, executiva e judiciria. Escaparia ao escopo do presente ensaio tun estudo aprofundado da organizao e funcionamento das Cmaras Municipais da Colnia que conheceram vria sorte conforme os lugares.

    Oliveira Viana escreveu dois alentados volumes, eruditos echeios de sugestivas anlises, para demonstrar uma tese queno falta quem a defenda com formosos argumentos e pouca fidelidade aos fatos: o carter extico da democracia no Brasil, tese que, para grande alegria de seus sustentadores, andou gozandode carter oficial em certa poca, O saudoso mestre fliuninenseexcluiu Minas Gerais de suas concluses, e em Instituies Polticas Brasileiras' reconhece e confirma o que vrios autores ensinam tradicionalmente sbre a matria e que condensamos em OHomem e a Montanha. Mas, com a excluso de Minas Gerais, atese transforma-se numa generalizao um pouco forada. E seria Minas luna exceo?

    O fato que temos uma experincia secular de democracia,concluso que no controvertida e que os clssicos j souberam

    tratar. S no que escreveu Diogo de Vasconcelos sbre o tema,com a sua conhecida segurana e seu real senso histrico, no obstante o seu ar meio romntico e a hostilidade s citaes, prpria dos clssicos, s no velho patriarca muita coisa existe de extraordinrio intersse.

    No h que recordar o fato bem conhecido dos hbitos deconvivncia democrtica, nascidos da vida em comum nas lavrasdos primeiros tempos, e na residncia em centros urbanos na fasedefinitiva, O que denominamos com nfase o latifndio urbanoe em profundidade, criando um tipo social distinto do senhor de

    engenho, assim como a presena da autoridade prxima, eis os fatres principais de uma sociedade em que existia certa igualdade

    CAPITULO n i: A SOCIEDADE BRASILEIRA. 41

    6) Ver 0 nosso O Homem e a Montanha, Belo Horizonte, 1945, Capitulo IX.7) Instituies Polticas Brasileiras. Rio, 1949, vol. I, p. 149.

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    42 PRIMEIRA PARTE: RAIZES IDEOLGICAS E HISTRICAS

    social e jurdica e em que smente o poder pblico era fonte de autoridade.

    Certamente, ste background social e econmico, mais tpicode Minas, viria dar fra ao que era comum em todo o Brasil: aCmara Municipal. As Cmaras eram autnomas em face dos governadores; possuam magistrados seus e, principalmente, um tipo de votao secreta. Tericamente, as Cmaras de Minas noeram mais livremente organizadas que as de qualquer outra capitania. Graas, porm, s condies da estrutura social monta-nhesa, funcionavam mais livremente. Dizemos isto em tese, poisno consideramos definitivas as concluses de Oliveira Viana acr

    ca do carter excepcional da democracia mineira; seria uma distino de grau, e no de substncia.

    Em Minas, porm, as Cmaras funcionavam com eficincia.Houve, pelo menos, um caso de governador, o Conde de Galveias,grande fidalgo e futuro vice-rei, que lanou todo o pso de suaautoridade, cabalando os votos de funcionrios e de pessoas dependentes do govrno, para ter como resultado a vitria espetacular dos candidatos da oposio, dos quais o Bobadela ilustre, vindo depois de Galveias, conseguiu o apoio, pelos processos usuais

    em tais casos.E tivemos, inclusive, formas de parlamentos gerais, reunidos

    para o fim mximo dos parlamentos, isto , a poltica fiscal: ajunta de procuradores das Cmaras reunidas em 24 de maro de1734. noventa anos antes da Constituio do Imprio, cuja cartaconvocatria Diogo de Vasconcelos considera o mais antigo documento do sistema representativo, esquecido da Magna Carta e dasCrtes Gerais. Na Amrica, porm, deve ter sido o mais antigo.Apesar de terem existido outras coisas no gnero. A verdade que o sistema representativo no foi seno reimplantado no sculo XIX.*

    Ofereceram estas velhas Cmaras Municipais a base democrtica para a Independncia, a qual nos deu a democracia em mbito nacional, que j possuamos no plano local. *

    8) SObre as Juntas v. nossa Histria de Minas Oerals, vol. I, pp. 257 eseguintes.

    9) Dlogo de Vasconcelos, em sua Histria Mdia das Minas Gerais (Rio, 1948),narra-nos grande cpia de fatos eminentemente ilustrativos, inclusive vitrias oposicionistas em eleies municipais, como a que aconteceu durante o govrno doConde de Galveias. Cita o referido autor, com destaque (pp . 85-86), as juntasrealizadas em Minas no ano de 1734, cujas instrues convocatrias, baixadas porel-rei D. JoSo V, considera o venerado historiador como o mais antigo documento do sistema represen tativo", depois do rescrito do Imperador Honrio, nosculo IV. Descontado o exagro de tal primazia, vale a referencia ao fato de seruma experincia do sistema representativo. Uma tentativa de interpretao do poderio das cmaras municipais, luz da pesquisa moderna e dos dados sociolgicos atualizados, que merece destaque e referncia: Coronelismo, Enxada e Voto,de Vitor Nunes Leal (Rio, 1949). Confirma-se ai, plenamente, a real autonomiadas cmaras coloniais e a sua utilizao como instrumento de afirmaes dos clslocais.

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    CAPITULO IV

    AS FONTES DOUTRINRIAS

    1. BENJAMIN CONSTANT

    No h prova melhor de que o povo brasileiro tinha cons

    cincia do muito que devia ao romntico autor de Adolphe doque lhe escolherem o nome para batizarem o futuro Fundador,da Repblica, exatamente um dos homens que mais contriburampara a destruio do conjunto de instituies derivadas das idiasdo escritor francs.

    Como bom romntico, Benjamin Constant inspira-se na Idade Mdia, ama, a liberdade, teme a Revoluo e admira a Inglaterra, Representou no direito pblico o papel que Chateaubrianddesempenhou no campo de outras atividades, sendo, com ste, ummeio-trmo poltico entre De Bonnald e De Maistre de mn lado,e os autores liberais e republicanos de outro. Acontecimento queconstitui uma das grandes originalidades brasileiras, a influnciadesmedida do positivismo religioso seria outra o Imprio adotou quase integralmente as idias do publicista francs. Delas smente se afastou quando se achavam demasiado distantes da realidade brasileira, conseirando, porm, o esprito, como se deu nocaso da constituio do Senado. O velho Guizot considerava a influncia de Benjamin Constant no Brasil uma coisa simplesmenteespantosa.

    Duas ou trs idias bsicas fundamentam a teoria do Estadoelaborada por Benjamin Constant.

    A primeira delas de no possuir o povo, soberano embora, podres absolutos. Todo poder conhece limites em seu emprgo,est sujeito a regras e normas, a comear pelas da moral. Foi, talvez, um dos primeiros a afirmar que a liberdade admite condiesde uso. Do ponto de vista filosfico, encontra-se to distante deRousseau como os catlicos de nosso tempo, Maritain, Fulton Sheenou Tristo de Atade.

    Para que o Estado possa exercer devidamente a sua missona sociedade, cumpre que se adote o princpio da diviso dos podres, base de tda doutrina liberal autntica, que, reconhecendoas deficincias da natureza humana, procura resguard-la por meiode um conjunto de pesos e contrapesos, de fras em equilbrio. A

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    doutrina da diviso dos podres, expressa de modo lapidar na Constituio do Imprio a diviso e harmonia dos podres polticos o princpio conservador dos direitos dos cidados e o mais seguro

    meio de fazer efetivas as garantias que a Constituio oferece procura realizar a liberdade, no pressupondo uma utopia, masreconhecendo que, sendo o homem um ser deficiente, abusar naturalmente do poder se no houver freios sua vontade.

    Para Benjamin Constant eram cinco, e no trs como nos demais autores, os podres polticos: o poder rgio, o poder executivo, o poder representativo da tradio, o poder representativo da opinio e o poder judicirio. Os brasileiros adotaramintegralmente essa diviso, alterando-a apenas no que se refere ao

    poder representativo da tradio, substituindo a Cmara hereditria preconizada por Benjamin Constant em contradio coma tendncia brasileira igualdade por um senado vitalcio, cmara representativa da tradio poltica.

    A justificao de sua teoria que no original do autorde Adolphe, perfeito divulgador, e sim de Clermont-Tonnerre

    jaz nos seguintes pontos capitais. Ao monarca cabe o poder moderador, o poder neutro que mantm os demais podres em equilbrio: pertence a mn prncipe hereditrio, sem intersses concorrentes com os dos particulares e cujo bem particular o bem comum: o rei nunca parte e sim o juiz nato na sociedade e noEstado. O poder executivo um poder ativo, exercido pelos ministros: a fra impulsiva do bem comum e promotora da vidasocial. Deveser responsvel perante a opinio pblica, enquantoque o poder moderador , tcnicamente, irresponsvel, como rgo julgador da responsabilidade dos ministros.

    A funo legislativa do Estado cabe a uma assemblia bica-meral.

    A opinio pblica atual pertence a uma cmara eleita pelopovo, por um curto prazo, podendo ser dissolvida, quando houvernecessidade de uma apelao ao juzo do povo, nos casos de conflito entre a cmara e o ministrio. Para contrabalanar a extrema mobilidade da Cmara dos Deputados, vem o Senado, que Ben

    jamin Constant queria hereditrio, representando a nobreza tradicional. Seria o voto da qualidade em face do voto da quantidade da Cmara.

    Por fim vinha o poder judicirio, encarregado de implantara justia na sociedade.

    2. FILANGIERI

    Se coube a Benjamin Constant ser a influncia clara e oficial na feitura da Constituio, no podemos deixar em silncioa contribuio de Caetano Filangieri, cuja preponderncia para a

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    fonnao cultural de D. Pedro I ve io assinalar com nfase o Sr.Octvio Tarqunio de Sousa em sua monumental A Vida de D. Pedro I. No fugiria, alis, a doutrina do napolitano ao esprito queinspiraria o texto constitucional: a edio francesa das obras deFilangieri se faz acompanhar de longo, cuidadoso e amplamenteelogiativo estudo da lavra de Benjamin Constant. Difcil, porm,ser fixar com exatido a marca deixada por Filangieri: acreditamos at que, leitura primeira (por seu intermdio o futuro Imperador iniciar-se-ia no convvio dos mestres contemporneos dacincia poltica), ajudou a lastrear o pensamento do mo prncipe, deu-lhe forma e fixou certas bases mestras pertencem-lhe, arigor, antes as infra-estruturas, do que as armaturas visveis dadoutrina.

    Em primeiro lugar no era Filangieri um constitucionalistaem sentido estrito redigiu algumas pginas de filosofia poltica,discutindo, em tese, sub species aeternitatis, questes tericas, pu-"ramente doutrinrias. Benjamin Constant justifica-lhe a atitude, como soluo inevitvel, pois, no sculo X V III, principalmente nosdomnios del-rei de Duas Siclias, a prudncia no era virtude desprezvel. O conveniente seria evitar complicaes polticas, conservando meios de ao para sugerir medidas concretas para a soluo dos diferentes problemas: seria um reformador, jamais um revolucionrio. Tanto assim que, no obstante sua morte prematura,

    pde exercer cargos pblicos e prestar reais servios a seu pas.A sua obra principal foi o tratado da Cincia da Legislao,

    no qual exps todo um programa de govrno. No acompanharemos a sua exposio em detalhe, por no vir ao encontro de nossos objetivos: assinalaremos, apenas, alguns temas principais.

    Evidentemente no se poder dizer que Filangieri tenha sidoum liberal, nem mesmo por antecipao; a sua posio mdia est na linha da Auiklaerung, de reformismo moderado e progressista. Benjamin Constant alterna elogios e criticas s suas posies

    mais destacadas, pois, embora partidrio da extino do sistema dascorporaes, Filangieri acreditava no poder do Estado para alterarou melhorar o sistema econmico. Ao leitor moderno, surge comoum homem de inteligncia lcida e de grande poder de observao, possuindo um vivo sentimento das falhas do sistema econmico, da organizao administrativa e do aparelhamento legal de seutempo. Admitia uma bondade absoluta nas leis e outra relativae expe minuciosamente as diversas relaes das leis em sua bondade relativa. E no encadeamento de seu programa traz contribuies que no perderam o sabor de novidades e outras dificilmen

    te explicveis. . . E para que se possa ter mna amostra concretade suas idias reproduziremos as primeiras linhas do captulo X IVdo Livro II, que trata de assuntos econmicos: o vulgo, sempreofuscado por tudo o que grande, admira as grandes cidades e

    CAPlTXnJO IV: AS FONTES DOUTRINRIAS 46

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    aa capitais imensas; o filsofo no v ai seno outros tantos tmulos suntuosos que uma nago moribunda edifica e aumenta para nelas colocar as suas cinzas em meio do esplendor e do fausto...

    ste reformista esclarecido, de idias moderadas, que preferiaqui um monarca benevolente e amigo do povo s idias revolucionrias e no demonstrava entusiasmo algum pelo sistema poltico ingls, fundava a sua reforma das leis no binmio conservao e tranqilidade objeto nico da cincia da legislao.As leis procuram realizar ste ideal de conservao e tranqilidade.

    E quais os objetivos da legislao? A populao e a riqueza,pois o Estado necessita de homens e os homens de subsistncia.

    Filangieri, moderno neste ponto, situa-se em posio inversa deMalthus e coloca o incremento da produo a servio do aiunentoda populao. Benjamin Constant, discpulo alarmado de Malthus,executa uma curiosa espcie de acrobacia mental para rebater asidias de Filangieri, sem arriscar-se muito claramente a defendero malthusianismo. Mas as idias de Filangieri a respeito de poltica demogrfica e de poltica econmica mostram que ste jovem fidalgo napolitano tinha algiuna coisa em mente. Admitia seisobstculos ao aumento da populao, obstculos que convinha ao

    monarca afastar: nmero imenso de no proprietrios; grandes proprietrios em excesso, e pequenos em carncia; riquezasexorbitantes e inalienveis dos eclesisticos; tributos excessivos,impostos insuportveis e maneira violenta de cobr-los; estadoatual das tropas na Europa; incontinncia pblica. Como o velho reino das Duas Siclias no era, por ento, tun modlo, concordaremos que, talvez, fsse razovel esta crtica universal ao sistema social e econmico da poca ningum escapa. No nos esqueamos de que prope a reforma agrria e o combate in

    continncia pblica generalizada... Eram trs, para le, os obstculos ao aumento das riquezas: os que nascem do govmo, osque nascem das leis e os que nascem do tamanho excessivo dascapitais... Finalmente, captulo XXXVI do Livro II, Dos meiosprprios para estabelecer uma forma de igualdade na distribuiodo dinheiro e das riquezas no Estado, e os obstculos que a istoope a legislao. V-se perfeitamente que Filangieri tem mn lugar de destaque na histria das idias sociais.

    Depois de estudar as leis polticas e econmicas, que cuidam

    da populao e da riqueza, passa Filangieri ao estudo das leis criminais a matria do L ivro III , no quil apresenta um amploprograma de melhorias positivas das leis em vigor.

    Um espantoso programa de reforma de ensino, que nos fazlembrar a Repblica de Plato por suas preocupaes de mincias,ocupa o Livro IV. Dividindo a sociedade em duas classes, a dosprofissionais manuais e a dos intelectuais, Filangieri estabelece um

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    CAPITULO V

    A REVOLUO LEGTIMA

    O que h de mais espantoso, de mais extraordinrio, de maisinaudito na Independncia do Brasil provm de ter sido mna revoluo legtima, quando o hbito das revolues no outro se

    no destruir uma forma de legitimidade, para no dizer toda alegitimidade existente. As revolues possuem dupla face: destroemurna ordem existente e estabelecem outra.

    A Independncia do Brasil, porm, foi urna revoluo legt ima: nada quis destruir. Apenas construir. O Brasil passou de monarqua absoluta a monarquia constitucional, de reino unido a nao soberana, tudo isto graas ao de instrumentos de govrnoe instituies vindas da situao anterior. Na verdade, a Independncia foi o reconhecimento, por parte do govrno legal do Bra

    sil, de certas situaes de fato do pas real.O Brasil, desde o famoso ato de D. Joo VI, era Reino Uni

    do a Portugal e no mais urna colnia. Reino Unido, porm, comdestinos comuns aos da poro europia da commonwealth. Ora,as demaggicas, facciosas, anrquicas, horrorosas, maquiavlicasCrtes de Lisboa, como se no fsse suficiente a permanncia dorei na Europa, resolveram reacionriamente reduzir o Brasil antiga situao de Colnia. O ato que fizera do Brasil Reino Unido, admirvel golpe de inteligncia e sabedoria, no visara seno

    reconhecer uma situao de fato e proclamar grande progressoalcanado pelo Brasil. Nada justificava que o pas permanecesse emsituao de inferioridade com relao a Portugal. O Brasil estavaperfeitamente apto a govemar-se a si mesmo e o faria de qualquer jeito. Os deputados recolonizadores pretendiam negar a realidade brasileira e a lei real que fizera o Brasil co-soberano comPortugal. Revolta contra os fatos e as leis, revolta intolervel,absurda e inepta. D. Joo VI, designando seu primognito comoRegente, enquanto que ao abandonar Portugal deixara por l o

    vcuo, demonstrou ter muito mais noo da situao poltica domomento do que os agitadores das Crtes. Convm recordar queo gesto do Rei seria repetido pelo filho: a coroa do Brasil para D.Pedro e a de Portugal para D. Maria. Era o reconhecimento tcito de que o futuro da histria de Portugal estava no Brasil, co-

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    mo O proclamou Almeida Garrett, nos clebres versos finais dopoema Cames.

    O repdio do govm o regencial do prncipe D. Pedro a estas

    manobras reacionrias dos deputados reacionrias e rebeldes pode ser definido como reao de urna legitimidade em perigo. Poristo no foram revoltosos (apesar de revolucionrios) os nossoshomens de 1822: defendiam a ordem contra os rebeldes. Era umgovrno implantando a obedincia sua autoridade ameaada. Eesta a nota principal: no houve golpe de Estado, quase sempreperturbador da ordem, mais perturbador que qualquer motim detropas indisciplinadas.

    Por dois motivos a fundao do Imprio foi uma revoluo

    legtima, pelos fins: o restabelecimento da ordem legal ameaadapelas Crtes e o reconhecimento de que as condies polticas doBrasil e do mimdo convergiam para a formao de uma situao democrtica. Pelos meios: o Estado brasileiro, por seu chefe, o Prncipe-Regente, e o Povo brasileiro, por seus rgos representativos,as Cmaras Municipais (alm de uma ou outra manifestao direta da populao), ambos convergiram para a consecuo dos finslegtimos: a autonomia poltica do Brasil e o govrno representativo. Finalmente: o tratado de 29 de agsto de 1825, ao reconhecer a Independncia do Brasil, justificou e legalizou a atitude deD. Pedro I do ponto de vista portugus: D. Joo V I aprovou, sancionou e concordou com tudo.

    O dado mais original, portanto, da Revoluo que deu ao Brasil a sua Independncia poltica o fato de haver sido uma revoluo legtima, que teve como conseqncia o estabelecimentode um regime nascido da unio de uma realeza legitima com umademocracia legtima.

    Fexrero, no seu estudo clssico sbre a questo da legitimi

    dade das formas de govrno (e do qual estamos tirando a substncia destas reflexes), considera como normais nossa civilizao dois sistemas polticos: a monarquia legtima e a democracialegtima, alm das variantes nascidas das combinaes entre asduas. Ora, no Brasil, graas cooperao sincera verificada nosdias da Independncia, tivemos, unidos e combinados numa sntese orgnica, muna verdadeira unio substancial, os dois regimes que,em outras situaes, aparecem apenas justapostos, muitas vzes comsacrifcio de suas atribuies prprias ou de suas legitimidades

    respectivas. No houve trao de combinazioni no processo polticocondensado na Constituio de 1824: o Imperador do Brasil exercia tdas as funes e gozava de tdas as regalias normais ao reide Portugal; o povo do Brasil possua os direitos e eram-lhe garantidas tdas as liberdades essenciais democracia.

    A Democracia Coroada 4

    CAPITULO V: A REVOLUO LEGITIMA 49

  • 8/10/2019 Joao Camilo de Oliveira Torres

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    Se a Constituio do Imprio Brasileiro j seria, desde a origem, um fato portentoso, pois veio de luna revoluo legitima,continha dentro de seu seio o que pareceria impossvel, verdadeiromilagre, a Guglielmo Ferrero: a conciliao de todos os princpiosde legitimidade.

    O grande pensador poltico italiano admite os seguintes princpios de legitimidade: o hereditrio, o aristo-monrquico, o democrtico e o eletivo, todos justos e racionais at certo ponto, eabsurdos alm dste limite e todos visando imunizar o homem contra o mdo. So falhos e limitados, pois se empregados de modoirrestrito podero provocar o perigo contrrio quele contra o qualpretendamos tomar precaues. Os perigos que ameaam a vida emsociedade aparecem em pares de contrrios e vivemos eternamente de Cila para Carbdis, provocando a tirania para lutar contra aanarquia e substituindo o despotismo pelo caos. Assim, quase evidentemente, a aristocracia e a democracia se equilibram, a hereditariedade e a eleio anulam-se. Mas, se vamos fazer revoluo contra o absolutismo, no conseguiremos aplacar o mdo a qualquerespcie de hereditariedade, tais os inconvenientes de que somos testemunhas. Naturalmente, aos homens encarregados de sepultar ofeudalismo tda desig^ialdade haveria de cheirar a privilgio. A di

    tadura pode parecer uma beleza a quem se acha diante de umasociedade desgovernada ou de uma furiosa multido. A calamidade de tdas as revolues est em que lutamos contra um regimeexistente e numa fase infeliz de sua vida. Lutamos, pois, contrauma sit