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CAIO PAIVA THIMOTIE ARAGON HEEMANN JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 1ª edição, Manaus, 2015

JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS · Penal Internacional e outros tribunais internacionais penais como tribu- ... CAPÍTULO VIII ... “A segunda fase do regramento

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CAIO PAIVA

THIMOTIE ARAGON HEEMANN

JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL

DE DIREITOS HUMANOS

1ª edição, Manaus, 2015

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Todos os direitos desta edição reservados à Dizer o Direito Editora.

Capa:

Kleber Mendes | [email protected]

Projeto gráfico e editoração:

Carla Piaggio | www.carlapiaggio.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

P149 Paiva, Caio Cezar de Figueiredo

Jurisprudência internacional de direitos humanos / Caio Cezar de Figueiredo Paiva e Thimotie Aragon Hee-mann. – Manaus: Dizer o Direito, 2015.

432 p.

ISBN: 978-85-00000-00-0

1. Direitos humanos 2.Direito internacional 3. Hee-mann, Thimotie Aragon I. Título.

CDU 342.7:341

Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Adriana Sena Gomes CRB 5/ 1568

www.dizerodireito.com.br

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação,

por qualquer meio, total ou parcial, constitui violação da lei nº 9.610/98.

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NOTA À 1ª EDIÇÃO

É com muita felicidade que apresentamos ao público o primeiro livro brasileiro que trata especificamente da jurisprudência internacional de direitos humanos. Buscamos expor o conteúdo de maneira clara e siste-mática e com uma linguagem acessível, facilitando a compreensão do lei-tor acerca dos casos internacionais de direitos humanos e seus principais pontos.

Ao desenvolver esta obra, adotamos a classificação do Professor André de Carvalho Ramos e elencamos a Corte Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional e outros tribunais internacionais penais como tribu-nais de direitos humanos. Fizemo-lo porque é inegável que estes tribu-nais, embora não sejam estritamente órgãos de proteção dos direitos hu-manos, acabam por tutelar, seja de forma direta, seja de forma indireta, os direitos humanos dos indivíduos e também os direitos humanos glo-bais — estão entre estes últimos, por exemplo, a autodeterminação dos povos, o direito ao desenvolvimento e a preservação do meio ambiente.

Também inserimos nesta primeira edição os dois novos casos que envol-vem o Brasil na jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de Direi-tos Humanos. Os casos ainda aguardam julgamento pelo tribunal inte-ramericano e, portanto, ainda não receberam um nome em definitivo da Corte até o fechamento desta edição. Por conseguinte, nominamos estes dois casos da forma que eram popularmente conhecidos durante a sua tramitação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Aguardamos as críticas construtivas e sugestões dos leitores.

CAIO PAIVA

THIMOTIE ARAGON HEEMANN

1º de agosto de 2015.

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SUMÁRIO | 7

SUMÁRIO

CAPÍTULO I

GRAMÁTICA BÁSICA DE DIREITOS HUMANOS E DE DIREITO INTERNACIONAL EM SENTIDO AMPLO 11

CAPÍTULO II

CASOS JULGADOS PELA JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 15

Caso Loayza Tamayo vs. Peru 16

Caso Villagrán Morales e Outros vs. Guatemala “Caso dos Meninos de Rua” 26

Caso Olmedo Bustos e Outros vs. Chile (“A Última Tentação de Cristo”) 29

Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua 42

Caso Hilaire, Constantine e Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago 50

Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica 58

Caso Tibi vs. Equador 66

Caso Comunidade Moiwana vs. Suriname 84

Caso Fermin Ramirez vs. Guatemala 89

Caso Yatama vs. Nicarágua 96

Caso Palamara Iribarne vs. Chile 112

Caso González e outras vs. México ("Campo Algodonero") 118

Caso Barreto Leiva vs. Venezuela 123

Caso Vélez Loor vs. Panamá 130

Caso Lopez Mendoza vs. Venezuela 138

Caso Atala Riffo ninãs vs. Chile 148

Caso Povo Indígena Kichwa Sarayaku vs. Equador 152

Caso Furlán vs. Argentina 157

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8 | JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS

Caso Mohamed vs. Argentina 162

Caso Artavia Murillo e outros ("Fecundação in vitro") vs. Costa Rica 167

Caso Mendonza e outros vs. Argentina 172

Caso Comunidades Afrodescendentes Deslocadas da Bacia do Rio Cacarica vs. Colômbia (“Operação Gênesis”) 176

Caso Família Pacheco Tineo vs. Bolívia 183

Caso Liakat Ali Alibus vs. Suriname 191

Caso Brewer Carias vs. Venezuela 197

Caso Norin Catrimán e outros (dirigentes, membros e ativista do povo indígena Mapuche) e vs. Chile 202

Caso Arguelles e outros vs. Argentina 206

CAPÍTULO III

O BRASIL NA JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 211

Caso Ximenes Lopes vs. Brasil 212

Caso Nogueira de Carvalho e outros vs. Brasil 218

Caso Escher e outros vs. Brasil 222

Caso Garibaldi vs. Brasil 228

Caso Gomes Land e outros vs. Brasil ("Caso Guerrilha do Araguaia") 234

Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil 267

Caso Cosme Rosa Genoveva e outros vs. Brasil ("Caso Favela Nova Brasília") 270

CAPÍTULO IV

O BRASIL E AS MEDIDAS PROVISÓRIAS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 275

Caso Penitenciária Urso Branco 276

Caso crianças e adolescentes privados de liberdade

no "Complexo do Tatuapé" da FEBEM 282

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Caso das pessoas privadas de liberdade na Penitenciária "Dr. Sebastião Martins Silveira", São Paulo 284

Caso Unidade de Internação Socioeducativa no Espírito Santo 287

Caso Complexo Penitenciário de Curado em Pernambuco 289

Caso Complexo Penitenciária de Pedrinhas 292

CAPÍTULO V

O BRASIL NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS 295

Caso José Pereira vs. Brasil (Relatório n˚95⁄03, Caso 11.289 — Solução Amistosa) 296

Caso dos Meninos Emasculados do Maranhão 301

Caso Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu vs. Brasil ("Caso Belo Monte") 309

Caso pessoas privadas de liberdade no "Presídio Central de Porto Alegre" 315

Caso Maria da Pena Maia Fernandes vs. Brasil 316

Caso Jailton Neri da Fonseca vs. Brasil 323

Caso Simone André Diniz vs. Brasil 326

CAPÍTULO VI

O BRASIL NO SISTEMA GLOBAL DE DIREITOS HUMANOS 331

Caso Alyne da Silva Pimentel Teixeira vs. Brasil 332

CAPÍTULO VII

CASOS JULGADOS PELA JURISDIÇÃO CONTENCIOSA DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA 339

Caso Reino Unido vs. Albânia ("Caso do Estreito de Corfu") 340

Caso República Democrática do Congo vs. Bélgica ("Caso Yerodia") 347

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Caso Alemanha vs. Itália (Grécia como terceiro inteverniente) ("Caso Ferrini") 359

Caso Bélgica vs. Senegal ("Caso Habre") 366

Caso Austrália vs. Japão ("Caso das Atividades Baleeiras na Antártica") 388

CAPÍTULO VIII

PARECERES CONSULTIVOS DA CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA 391

Caso Reparação de danos sofridos por agente das Nações Unidas ("Caso Folke Bernadotte") 392

CAPÍTULO IX

CASOS JULGADOS PELO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL 397

Caso The Prosecutor vs. Thomas Lubanga Dyilo 398

CasoThe Prosecutor vs. Mathieu Ngudjolo Chui 406

Caso The Prosecutor vs. Germain Katanga 408

CAPÍTULO X

CASOS JULGADOS POR OUTROS TRIBUNAIS INTERNACIONAIS 411

Caso The Prosecutor vs. Charles Taylor ("Caso Diamantes de sangue") 412

Caso The Prosecutor vs. Dusko Tadic 416

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CAPÍTULO I

GRAMÁTICA BÁSICA DE DIREITOS HUMANOS

E DE DIREITO INTERNACIONAL

EM SENTIDO AMPLO

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CAPÍTULO II

CASOS JULGADOS PELA JURISDIÇÃO

CONTENCIOSA DA CORTE INTERAMERICANA

DE DIREITOS HUMANOS

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resumo do cAso

Haniff Hilaire, George Constantine e outras trinta pessoas foram proces-sadas e condenadas, em Trinidad e Tobago, como autoras do crime de homicídio intencional (doloso), a elas tendo sido imposta, consequente-mente, de acordo com a Lei de Delitos contra a Pessoa, a pena de morte, cuja execução se daria através da forca. Referida Lei prescreve a pena de morte como única sanção aplicável ao delito de homicídio doloso.

Das 32 presumidas vítimas, 30 se encontravam presas e aguardando exe-cução da pena capital, enquanto que uma delas teve a sua pena comuta-da e a outra, o senhor Joey Ramiah, foi executada em junho de 1999, mui-to embora a Corte Interamericana, a pedido da Comissão Interamericana, já houvesse adotado diversas medidas provisórias entre 1998 e 1999 para preservar a vida das vítimas, as quais foram ignoradas pelo Estado de-mandado, que denunciou a Convenção Americana em 25/05/1998, não prejudicando, porém, a apuração dos fatos que ensejaram esse Caso, seja porque ocorridos antes da denúncia, seja porque esta, nos termos do art. 78 da CADH, somente produz efeito após um ano.

A Comissão considerou que Trinidad e Tobago violaram diversos disposi-tivos da CADH, mas especialmente os artigos 4.1 (direito à vida), 4.2 (pena de morte automática), 5.1 (direito à integridade pessoal) e 8.1 (direito à du-ração razoável do processo) em relação ao art. 1.1 (obrigação de respeitar direitos), considerando, pois, que a “pena de morte obrigatória”, para todas

caso Hilaire, constantine e Benjamin e outros vs. trinidad e tobago

Órgão Julgador:Corte Interamericana de Direitos Humanos

SenTença:21 de junho de 2012

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as pessoas acusadas de homicídio doloso, sem analisar as circunstâncias do caso concreto, transforma dita pena numa sanção inumana e injusta.

A Corte Interamericana foi instada, então, a decidir se a “pena de morte obrigatória” viola a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), o que respondeu afirmativamente, constatando que a Lei de Delitos contra a Pessoa de Trinidad e Tobago, ao ordenar a aplicação da pena de morte de maneira automática e genérica para o crime de homicídio intencional/doloso, sem qualquer juízo de valor sobre o caso concreto, constitui-se numa privação arbitrária da vida, violando, consequentemente, o art. 4º da CADH. A Corte considera, ainda, que o fato de as vítimas terem sido colocadas em situação de constante ameaça, no denominado corredor da morte, de que a qualquer momento poderiam ser levadas à forca, qua-lifica as condições de detenção como tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes. Considerou a Corte, também, dentre outras conclusões, que Trinidad e Tobago violou o dever de adotar disposições de direito interno (art. 2º), o direito ao prazo razoável (artigos 7.5 e 8.1), direito a um recurso efetivo (artigos 8 e 25) e o direito de todo condenado à morte solicitar anis-tia, indulto ou comutação de pena (art. 4.6).

Por fim, a Corte determinou que o Estado demandado se abstenha de aplicar a Lei de Delitos contra a Pessoa e, dentro de um prazo razoável, a modifique para adequá-la às normas internacionais de proteção dos direitos humanos, destacando, igualmente, que Trinidad e Tobago não deve, em qualquer caso e qualquer que seja o resultado dos novos julga-mentos das vítimas47, aplicar a pena de morte.

Pontos imPortAntes sobre o cAso

1. Fases da regulação jurídica internacional da pena de morteConforme registra André de Carvalho Ramos, há três fases da regulação ju-rídica internacional da pena de morte: “A primeira fase é a da convivência tutelada, na qual a pena de morte era tolerada, porém com estrito regramen-to”, o qual abrangia, segundo o autor, limites como o da natureza do crime, vedação da ampliação, devido processo legal penal e vedações circunstan-

47 Deve-se encarar com naturalidade o fato de que acusados, ainda que de crimes gra-ves, contra a vida p. ex., venham a se tornar vítimas perante o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, desde que tenha havido, no caso, conduta ilegal praticada pelo Estado.

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cias. “A segunda fase do regramento internacional da pena de morte é a do banimento com exceções. (...) A terceira — e tão esperada — fase do regra-mento jurídico da pena de morte no plano internacional é a do banimento em qualquer circunstância”48. Podemos dizer que o Brasil se encontra, atual-mente, na “segunda fase” da regulação internacional da pena de morte, eis que, embora tenha aderido ao bloco normativo internacional de repressão à pena de morte (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o seu Segundo Protocolo Facultativo; Convenção Americana de Direitos Huma-nos e o seu Protocolo Adicional), reservou-se no direito de aplicar a pena capital no caso de guerra declarada, nos termos do art. 5º, XLVII, a, da CF.

Indicativo, ainda, do rumo à “terceira fase” da regulação internacional da pena de morte, é o fato de os Tribunais Penais Internacionais ad hoc para a ex-Yugoslávia (1993) e para Ruanda (1994) não terem aplicado a pena capital, que tampouco está prevista no Estatuto de Roma (de 1998) do Tribunal Penal Internacional.

Para os países que, a exemplo do Brasil, estão parados na “segunda fase” da regulação internacional da pena de morte (recordemos: banimento da pena capital com exceções), o Direito Internacional dos Direitos Hu-manos impõe uma condicionante intransponível, qual seja, a de que o sujeito tenha praticado um “crime grave” (neste sentido, o art. 6.2 do PIDCP e o art. 4.1 da CADH). E o que pode ser considerado um crime de natureza “grave”? No âmbito da proteção global dos direitos humanos, o Comitê de Direitos Humanos da ONU já estabeleceu que crimes graves são aqueles que “impliquem em perdas de vidas humanas”49. A jurispru-dência do sistema global é seguida pelo sistema regional americano, o que pode ser visto no próprio precedente formado neste Caso Hilarie,

48 RAMOS, André de Carvalho. In: PETERKE, Sven (Coord.). Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais. Brasília: ESMPU/DF, 2010, p. 248-250.

49 Cf. Observação Geral nº 6 e também as Observações Finais sobre o Irã. Ainda na juris-prudência do Comitê, se encontram precedentes que concluem pela violação do PIDCP no caso de aplicação da pena de morte em crime de roubo à mão armada sem vítima fatal (Caso Lubuto vs. Zambia, 1995) e também em casos de aplicação obrigatória/au-tomática da pena capital, sem analisar as circunstâncias particulares do caso concreto (Caso Kennedy vs. Trinidad y Tobago, em 2000, e Caso Thompson vs. San Vicente y Las Granadinas, em 2002). Também no âmbito da ONU, a antiga Comissão de Direitos Hu-manos instou os Estados a velarem para que “o conceito de ‘crimes mais graves’ se limi-te aos delitos intencionais com consequências fatais ou extremamente graves e que não imponham a pena de morte por atos não violentos” (Cf. Resolução 2005/59 Questão da Pena Capital da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Disponível em: <http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/4339. pdf?view=1>, p. 3).

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em que, mesmo diante de um crime contra a vida (homicídio doloso), a Corte Interamericana censurou a aplicação da pena de morte (muito embora, advirta-se, a principal faceta da decisão relaciona-se à “obriga-toriedade” da pena capital).

2. Repúdio à aplicação obrigatória da pena de morte

No Caso Hilaire e outros vs. Trinidad e Tobago, objeto destes breves aponta-mentos, a importância da decisão da Corte Interamericana está no “repúdio à aplicação obrigatória da pena de morte sem individualização penal e pos-sibilidade de indulto, graça ou anistia”4. Registra Antônio Augusto Cançado Trindade, ainda, ter sido esta “a primeira vez que um tribunal internacional determina que a pena de morte ‘obrigatória’ é violatória de um tratado de di-reitos humanos como a Convenção Americana, que o direito à vida é violado pela aplicação da pena de morte de modo genérico e automático, sem indivi-dualização e sem as garantias do devido processo legal, e que, entre as medi-das de reparação, deve o Estado demandado modificar sua legislação penal para harmonizá-la com a normativa de proteção internacional dos direitos humanos e abster-se, em qualquer caso, de executar os condenados” (§ 1º).

Consta do julgamento deste Caso Hilaire referência, pela Corte Interamerica-na, à decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos em Woodson vs. North Carolina (1976), em que, da mesma forma, se estabeleceu que a condenação obrigatória à pena de morte constitui uma violação das garantias do devido processo da Emenda XIV e do direito a não ser submetido a um tratamento cruel ou incomum da Emenda XIII, em relação com a Constituição dos EUA. Neste mesmo Caso, a Suprema Corte americana também indicou que a im-posição da pena de morte requer uma consideração dos aspectos relevantes do caráter do acusado e as circunstâncias do crime praticado.

3. Pena de morte e aspectos subjetivos do condenado

Sobre “aspectos relevantes” da pessoa do acusado/condenado, o art. 4.5 da CADH estabelece que “Não se deve impor a pena de morte a pessoa que, no momento da perpetração do delito, for menor de dezoito anos, ou maior de setenta, nem aplicá-la a mulher em estado de gravidez”. Importante ressaltar, aqui, a importantíssima conclusão da Comissão Interamericana no Caso Michael Domingues vs. EUA, em 2002, ao assentar que “o Estado atuou em violação de uma norma de jus cogens internacional ao senten-ciar Michael Domingues à pena de morte por um delito que cometeu quan-do tinha 16 anos. Portanto, se o Estado vier a executar o Sr. Domingues em virtude desta sentença, a Comissão conclui que será responsável por uma

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grave e irreparável violação do direito à vida do Sr. Domingues segundo o artigo I da Declaração Americana”50. Curiosidade: o Caso Michael Domin-gues teve como representante da vítima, na Comissão Interamericana, um Defensor Público do Condado Clark (EUA), que havia complementado peti-ção anteriormente apresentada por uma entidade de defesa dos direitos humanos dos EUA. Importante: o Caso Michael Domingues representa uma superação do precedente da Comissão firmado no Caso Roach e Pinkerton vs. EUA, em que se estabeleceu que não existia, naquele momento, uma norma consuetudinária em direito internacional que impedisse a aplica-ção da pena de morte a menores de 18 anos. Interessante: em consulta de lista com os nomes das pessoas executadas nos EUA por crimes cometidos antes dos 18 anos de idade, não se encontra o nome de Michael Domingues, fato que leva a crer que os EUA tenham acatado o parecer da Comissão51.

Ainda sobre a proibição de aplicação da pena de morte a determinados gru-pos de pessoas, embora os Pactos Internacionais prevejam expressamente apenas menores de 18 anos, maiores de 70 anos e mulheres grávidas, impor-tante ressaltar que o Conselho Econômico e Social da ONU, em sua Resolu-ção nº 1989/64, recomenda aos Estados membros abolirem a pena de mor-te — também — para os casos de pessoas que padeçam de retardo mental ou com capacidade mensal claramente limitada. Da mesma forma, a antiga Comissão de Direitos Humanos da ONU, em sua Resolução nº 2005/59, que, além de prever a hipótese dos deficientes mentais, ainda amplia a situação de gravidez para abranger também mulheres com filhos bebês52.

4. Atuação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a res-peito de países que não aderiram a CADHPoderia surgir a seguinte dúvida: mas se os EUA não aderiram à CADH, como a Comissão pode ser instada a se manifestar sobre violações de direitos humanos praticadas por aquele país? A Comissão Interamericana de Direitos Humanos possui uma particularidade interessante, qual seja, a de integrar o sistema da Carta da OEA e também o sistema da Conven-

50 Para consultar e ler na íntegra o Relatório da Comissão neste Caso: <http://cidh.oas.org/annualrep/2002port/ EstadosUnidos.12285.htm> (em português).

51 Cf. OLIVEIRA, Sonia de. A proibição de imposição da pena de morte a delinquentes juvenis como norma jus cogens prevista pela Comissão Interamericana. Revista Bra-sileira de Direito Internacional, Curitiba, v. 5, jan./jun. 2007, p. 88-89.

52 Informação extraída de Estándares internacionales relativos a la aplicación de la pena de muerte. Comisión Internacional de Juristas, Genebra/Suíça, p. 19. Disponí-vel em: <http://www.refworld.org/pdfid/530ef6f94.pdf>.

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ção Americana de Direitos Humanos. E qual a vantagem desta previsão? Simples, porém, muito importante: a Comissão poderá atuar em casos de violação de direitos humanos nos quais o país acusado não tenha ratifica-do a Convenção Americana de Direitos Humanos, mas integre, por outro lado, a OEA — Organização dos Estados Americanos. Vejamos, neste sen-tido, a didática exposição de André de Carvalho Ramos:

“Por disposição expressa da Carta da OEA, partes expressivas das atribuições da Comissão só se desenvolverão sob a égide da Carta da OEA caso o Estado alvo ainda não tiver ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos. Até o momento, somente 24 dos 35 Estados da OEA ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos. Há, então, uma relação de subsidiariedade: caso o Estado tenha ratificado a Convenção Americana, a Comissão atuará sob a égide de tal diploma; se pertencer ao grupo de 11 Estados que ainda não a ratificou a Comissão atuará de acordo com a Carta da OEA e a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

Em síntese, a OEA, com base nos preceitos de sua Carta, não esperou pelo surgimento e fortalecimento do sistema próprio interamericano de proteção aos direitos humanos. Para tanto, a Comissão Interame-ricana de Direitos Humanos foi criada em 1959 e, em seu estatuto, consta a atribuição de promover os direitos humanos proclamados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948.

(...)O Estatuto da Comissão possibilita que ela receba petições indivi-duais contendo alegadas violações a direitos humanos protegidos pela Carta da OEA e pela Declaração Americana, de maneira similar ao sistema de petição individual sob a égide da Convenção Ameri-cana de Direitos Humanos. O objetivo desse sistema é a elabora-ção de recomendação ao Estado para a observância e garantia de direitos humanos protegidos pela Carta da OEA e pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

(...)Caso o Estado não cumpra com tais recomendações, a Comissão de-cide pelo encaminhamento à Assembleia Geral para que esta adote, como órgão político encarregado do respeito às disposições da Carta da OEA, medidas para fomentar o respeito aos direitos humanos”53.

53 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 198-200.

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5. O fenômeno do “corredor da morte”Outro tema importante, que pode ser abordado a partir das considera-ções sobre a pena de morte, é o denominado “fenômeno do corredor da morte” (death row phenomenon), que foi severamente criticado pela Corte Interamericana neste Caso Hilaire. Sobre o assunto, imprescindível lembrar que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no conhecido Caso Soering vs. Reino Unido, determinou que o “corredor da morte” é um tra-tamento cruel, inumano e degradante, e justamente por essa razão impe-diu que o Estado demandado extraditasse o indivíduo demandante (um nacional alemão) aos EUA, onde poderia ser condenado à morte e, conse-quentemente, submetido ao sofrimento intenso e prolongado de espera de execução no “corredor da morte”, cenário que evidenciaria violação do art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

6. Brasil e pena de morte para extraditandoPara finalizar, sem qualquer pretensão de esgotar este — inesgotável — tema da “pena de morte”, devemos recordar que o Brasil não pode entre-gar extraditando a Estado que poderá aplicar a pena de morte, entendi-mento este consolidado na jurisprudência do STF desde 1959 (Plenário, Ext 218) até os dias atuais (Plenário, Ext 1201, julgada em 2011). A exceção, ainda conforme a jurisprudência do Supremo, ficaria por conta da hipóte-se em que a Constituição Federal brasileira admite a aplicação da pena de morte, nos termos do seu art. 5º, XLVII, a, quando seria permitida, portan-to, a extradição (neste sentido: Plenário, Ext 633, julgada em 1996).

incidênciA do temA em ProvAs de concursos

(DPE/SP — DEFENSOR PÚBLICO, 2006 — FCC) Em atenção ao que dispõe o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos seu Segundo Protocolo Adicional com vista à Abolição de Pena de Morte, a pena de morte é:a| proibida em qualquer hipótese, pois o direito à vida é inerente à pes-

soa humana, sendo vedada a formulação de reserva pelo Estado-Par-te, no ato de ratificação do tratado.

b| proibida em qualquer hipótese, exceto mediante reserva formulada pelo Estado-Parte, no ato de ratificação do tratado, relacionada à sua aplicação apenas em tempo de guerra.

c| proibida em qualquer hipótese, exceto mediante reserva formulada pelo Estado-Parte, no ato de ratificação, relacionada à sua aplicação

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apenas aos crimes mais graves, obedecidos os princípios da legalida-de, anterioridade e jurisdicionalidade.

d| permitida nos Estados-partes a que a pena de morte não havia sido abolida, à época da ratificação do tratado, mas reservada aos crimes mais graves, e obedecidos os princípios da legalidade, anterioridade e jurisdicionalidade.

e| permitida nos casos mais graves, obedecido o devido processo legal, a fim de compatibilizar o direito individual à vida com o direito social à segurança pública.

Gabarito: a alternativa correta é a letra (B), conforme explicação veiculada nos Pontos Importantes sobre o Caso.

(MPT — 16º CONCURSO PROCURADOR DO TRABALHO — ADAPTADA) As-sinale a alternativa INCORRETA:

•De acordo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, em ne-nhum caso pode a pena de morte ser aplicada a delitos políticos, nem a delitos comuns conexos com delitos políticos.

Gabarito: a alternativa (C) está correta e, por isso, não deveria ter sido marcada. Neste sentido, dispõe o art. 4.4 da CADH: “Em nenhum caso pode a pena de morte ser aplicada a delitos políticos, nem a delitos co-muns conexos com delitos políticos”.

Embora não se trate de uma Questão de Concurso, chamo a atenção dos alunos que estudam — principalmente — para o concurso do MPF para o seguinte Caso apresentado por André de Carvalho Ramos no Manual Prático de Direitos Humanos Internacionais, produzido pela Es-cola Superior do Ministério Público da União (ESMPU):

O Estado X inflige a pena de morte a delinquentes adolescentes a par-tir dos 14 anos. Ele não ratificou nenhum tratado internacional vetando essa prática. Ademais, corroborou várias vezes sua opinião oficial de que tal prática seria seu “bom direito”. A prática de impor a pena de morte aos jovens autores de delitos violaria, mesmo assim, obrigações internacionais emanadas dos direitos humanos?

comentário: A resposta, coincidente com a apresentada pelo professor André de Carvalho Ramos, se encontra nos Pontos Importantes sobre o Caso, destacando-se, pois, o importantíssimo Caso Michael Domingues vs. EUA apreciado pela Comissão Interamericana.

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resumo do cAso

O caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, popularmente conhecido como “caso Guerrilha do Araguaia”, trata da responsabilidade do Estado bra-sileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de aproximadamente setenta pessoas, entre elas integrantes do PCB (Parti-do Comunista Brasileiro) e camponeses da região do Araguaia, situada no Estado do Tocantins, entre 1972 e 1975.

A maioria das vítimas desaparecidas integrava (ou pelo menos havia uma suspeita de que o fizessem) o movimento de resistência intitulado “Guer-rilha do Araguaia”, conhecido por realizar atos de resistência e oposição aos militares. Naquela época, o governo do Estado brasileiro implemen-tou ações com o objetivo de exterminar todos os integrantes do movi-mento “Guerrilha do Araguaia”, no que obteve êxito.

Ocorre que, no dia 28 de agosto de 1979, o Brasil aprovou a Lei Federal nº 6.683, popularmente conhecida como “Lei da Anistia”. Esse diploma nor-mativo perdoou todos aqueles que haviam cometidos crimes políticos ou conexos com eles no período da ditadura militar, o que acabou gerando a irresponsabilidade de todos os agentes do Estado brasileiro que par-ticiparam dos massacres ocorridos no período da ditadura, inclusive em relação aos fatos ocorridos na região do Araguaia.

A controvérsia chegou até a Comissão Americana de Direitos Humanos no dia 07 de agosto de 1995, através de petição apresentada pelo Centro

caso Gomes land e outros vs. Brasil ("caso Guerrilha do araguaia")

Órgão Julgador: Corte Interamericana de Direitos Humanos

deCiSão: 24 de novembro de 2010

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de Justiça e de Direito Internacional (CEIJL) e também pela organização não-governamental Human Rights Watch, em nome dos familiares dos desaparecidos na região do Araguaia.

No dia 21 de novembro de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos aprovou um relatório de mérito sobre o feito, com o propósi-to de que o Brasil adotasse suas recomendações. O prazo foi prorrogado duas vezes sem que o Estado se manifestasse sobre o caso, o que levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a submeter o caso à Cor-te Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão pugnou pela respon-sabilização do Estado brasileiro pela violação dos seguintes dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos: artigo 3º (direito ao re-conhecimento da personalidade jurídica), artigo 4º (direito à vida), artigo 5º (direito à integridade pessoal), artigo 7º (direito à liberdade pessoal), artigo 8º (garantias judiciais), artigo 13 (liberdade de pensamento e de ex-pressão) e artigo 25 (proteção judicial). A Comissão Interamericana de Di-reitos Humanos ainda fez referência à promulgação da Lei da Anistia no Estado brasileiro, que ocasionou a não-realização da investigação penal e do cumprimento do dever de perseguir e julgar os responsáveis pelos massacres no caso Gomes Lund vs. Brasil.

O Estado Brasileiro alegou quatro exceções preliminares, postulando que a Corte: a) não poderia atuar como uma “quarta instância” diante do Judiciá-rio Brasileiro; b) declarasse a sua incompetência, em razão dos fatos ocorri-dos no caso “Guerrilha do Araguaia” terem ocorrido antes da aceitação da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo Brasil (cláu-sula ratione temporis); c) a falta de interesse processual dos representantes das vítimas no caso; d) a falta do esgotamento dos recursos administrati-vos. Entretanto, nenhuma destas exceções foi acolhida pela Corte Intera-mericana de Direitos Humanos, que passou a julgar o mérito da causa.

No mérito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu por una-nimidade que:

“3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investi-gação e sanção de graves violações de direitos humanos são incom-patíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

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4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurí-dica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Huma-nos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em confor-midade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.

5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garan-tias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos ar-tigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.

6. O Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pen-samento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Ame-ricana sobre Direitos Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber infor-mação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção Ame-ricana, em relação com os artigos 1.1 e 13.1 do mesmo instrumento, por exceder o prazo razoável da Ação Ordinária, todo o anterior em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 212, 213 e 225 da pre-sente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 196 a 225 desta mesma decisão.

7. O Estado é responsável pela violação do direito à integridade pes-soal, consagrado no artigo 5.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo instrumento, em prejuízo dos familiares indicados nos parágrafos 243 e 244 da presen-te Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 235 a 244 desta mesma decisão”.

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que a sua sentença constitui per se uma forma de reparação, além de outras

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medidas que devem ser tomadas pelo Brasil como forma de reparação no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. São elas:

1. O Estado deverá conduzir eficazmente a investigação penal dos fa-tos do presente caso, esclarecer, responsabilizar penalmente e aplicar sanções e consequências dispostas em lei;

2. Determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial;

3. O Estado não poderá aplicar a lei de anistia em benefício dos auto-res, ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se da obrigação;

4. As autoridades que realizarão as investigações disponham de todos os recursos necessários para realizá-las da melhor forma possível, as pessoas que participem da investigação recebam a devida segurança, não sejam realizados atos que prejudiquem o processo investigativo;

5. Que os supostos responsáveis militares sejam julgados em jurisdi-ção ordinária e não em jurisdição militar;

6. O resultado dos processos deverá ser publicamente divulgado, para que a sociedade brasileira conheça os fatos, objeto do presente caso;

7. O Estado deve esforçar-se para que, com brevidade, sejam encontra-dos os restos mortais das vítimas da Guerrilha do Araguaia. O Estado também deve ser encarregado de custear possíveis despesas funerárias;

8. Conceder o prazo de seis meses, contados a partir da notificação da sentença para requerer atendimento psicológico e psiquiátrico, que deverá ser prestado por entidades públicas, na localidade mais próxi-ma à vítima, e os medicamentos necessários;

9. A sentença deverá ser publicada no Diário Oficial e também em um jornal de grande circulação nacional. A sentença ainda deve ser publicada em formato de livro eletrônico na internet;

10. Deve ser realizado um ato público para o reconhecimento de res-ponsabilidade internacional, no prazo de um ano após a publicação da sentença, na presença de altas autoridades nacionais, com cober-tura do evento pela imprensa;

11. O Estado brasileiro deverá implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos em todos os níveis das forças armadas;

12. Realizar a tipificação do delito de desaparecimento forçado;

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13. O Estado brasileiro deverá adotar medidas legislativas que refor-cem o acesso à informação da população;

14. Realizar a criação de uma Comissão da Verdade para que se inves-tigue e se faça conhecer toda a verdade sobre os fatos ocorridos no período da ditadura militar;

15. O pagamento da quantia de US$ 3.000,00 (três mil dólares) para cada familiar da vítima pelo dano material;

16. O pagamento da quantia de US$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil dólares) para cada familiar direto e de US$ 15.000,00 (quinze mil dó-lares) para cada familiar indireto;

17. O pagamento de US$ 5.000,00 (cinco mil dólares) aos familiares e US$ 35.000,00 (trinta e cinco mil dólares) a favor do grupo “Tortura Nunca Mais” da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo e do Centro pela Justiça e o Direito Internacio-nal, respectivamente a título de custas e gastos”237.

Pontos imPortAntes sobre o cAso

1. O caso “Guerrilha do Araguaia” envolve o tema da justiça de transi-ção e suas quatro dimensõesO caso Gomes Lund e outros vs. Brasil é mais um caso julgado pela Corte In-teramericana de Direitos Humanos238 envolvendo Leis de Anistia, Justiça de transição e suas quatro dimensões. Em uma breve síntese, entende-se por justiça de transição (ou “transitional justice”) um conjunto de mecanismos judiciais ou extrajudiciais utilizados por uma sociedade como um ritual de passagem à ordem democrática após graves violações de direitos huma-nos por regimes autoritários e ditatoriais, de forma que se assegure a res-ponsabilidade dos violadores de direitos humanos, o resguardo da justiça e a busca da reconciliação. Assim, a justiça de transição compreende diversas práticas administrativas e judiciais que visam deslegitimar o regime antId.

237 Uma breve síntese da sentença do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/ casos/articulos/seriec_219_por.pdf>.

238 O primeiro caso julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos envolven-do Justiça de Transição e Leis de Anistia foi o caso Barrios Altos vs. Peru. Outros julgados envolvendo o tema também já foram apreciados e julgados pela Corte IDH, são eles: Almonacid Arellano e outros vs. Chile, La Cantuta vs. Peru, Gelman vs. Uruguai, entre outros.

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ocrático anterior, como por exemplo, prover indenizações aos familiares das vítimas, responsabilizar o Estado pelos abusos cometidos etc. Histori-camente, o conceito de “justiça de transição” e suas quatro dimensões é de autoria do Conselho de Segurança da ONU. Vejamos o conceito Onusiano proferido por Jorge Chediek, representante residente do Programa das Na-ções Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e coordenador residente do Sistema ONU Brasil: “Para a família da ONU, justiça de transição é o conjun-to de mecanismos usados para tratar o legado histórico da violência dos re-gimes autoritários. Em seus elementos centrais estão a verdade e a memória, através do conhecimento dos fatos e do resgate da história. Se o Desenvol-vimento Humano só existe de fato quando abrange também o reconheci-mento dos direitos das pessoas, podemos dizer que temos a obrigação moral de apoiar a criação de mecanismos e processos que promovam a justiça e a reconciliação. No Brasil, tanto a Comissão de Anistia quanto a Comissão da Verdade configuram-se como ferramentas vitais para o processo histórico de resgate e reparação, capazes de garantir procedimentos mais transparentes e eficazes. É papel da ONU, como agente de mudança e de transformação, sen-sibilizar e predicar àqueles que não compartilham destes ideais a importân-cia da construção e do respeito aos Direitos Humanos, pedra fundamental sobre a qual está edificada a Carta das Nações Unidas. É através desse prisma que os ideais de um mundo mais justo e pacífico devem ser concretizados. Justiça, paz e democracia não são objetivos que se excluem. Ao contrário, são imperativos que se reforçam”239.

Outrossim, o Conselho de Segurança da ONU também definiu quatro práticas para lidar com o regime de exceção. A doutrina costuma chamar essas facetas de “dimensões”. São elas: a) direito à memória e à verdade; b) direito à reparação das vítimas (e seus familiares); c) o adequado trata-mento jurídico aos crimes cometidos no passado; d) a reforma das insti-tuições para a democracia. Sobre o conceito de justiça de transição e suas dimensões, é a lição de André de Carvalho Ramos: “A justiça de transição engloba o conjunto de dispositivos que regula a restauração do Estado de Direito após regimes ditatoriais ou conflitos armados internos, engloban-do quatro dimensões (ou facetas): (i) direito à verdade e à memória; (ii) o direito à reparação das vítimas; (iii) o dever de responsabilização dos perpe-tradores das violações de direitos humanos e, finalmente (iv) a formatação

239 CHEDIEK, Jorge. Justiça de Transição. Manual para a América Latina. ONU. Brasil e Nova Iorque. p.16. Disponível em: <http:// www.dhnet.org.br/verdade/resisten-cia/a_pdf/manual_justica_transicao_america_latina.pdf>.

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democrática das instituições protagonistas da ditadura (por exemplo, as Forças Armadas)”240.

Vejamos cada uma das facetas da justiça de transição:

1.1. Direito à verdade e à memóriaO direito à verdade e à memória nada mais é do que uma busca de toda informação ou esclarecimento de interesse público para que a população saiba o que realmente aconteceu ou não durante o período do regime antId.ocrático. Essa faceta da justiça de transição pode ser concretiza-da através de medidas administrativas, resguardando a história do país afetado pelo regime antId.ocrático, e também através de ações judiciais que visem obter a devida reparação pelos danos sofridos no regime an-tId.ocrático, bem como responsabilizar os responsáveis pelas violações de direitos humanos. Nessa linha, André de Carvalho Ramos esclarece que o direito à verdade e à memória é dotado de uma dupla finalidade. Vejamos o esclarecimento do autor: “O direito à verdade consiste na exigência de toda informação de interesse público, bem como exigir o esclarecimento de situações inverídicas relacionadas a violações de direitos humanos. Tem du-pla finalidade: o conhecimento e também o reconhecimento das situações, combatendo a mentira e a negação de eventos, o que concretiza o direito à memória. (...) O direito à verdade é concretizado tanto na sua faceta históri-ca, mediante Comissões da Verdade (ver abaixo a Lei n. 12.528/2012), quanto na sua faceta judicial (fruto das ações judiciais — cíveis e criminais — de punição dos agentes responsáveis)”241.

1.2. Direito à reparação das vítimasEssa dimensão da justiça de transição pode ser realizada tanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto pelo próprio Judiciário bra-sileiro. O direito à reparação das vítimas pode ocorrer de inúmeras ma-neiras, tais como: a publicação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Diário Oficial da União como pedido de desculpas; a descoberta do que efetivamente ocorreu no período do regime antId.ocrático; a localização dos corpos das vítimas do delito de desapareci-mento forçado no período ditatorial; a concessão de indenizações para os familiares das vítimas etc. No caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro

240 15 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 623241 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 623.

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a indenizar diversos familiares das vítimas desaparecidas na região do Araguaia. Além disso, e como concretização do direito à reparação das vítimas (e seus familiares), o Judiciário brasileiro vem entendendo que a Lei de Anistia não pode ser estendida à esfera civil, o que possibilita que as pessoas suspeitas de cometer atos ilícitos no período entre 1661 e 1979 possam ser demandadas na justiça para que reparem seus danos.

1.3. A reforma das instituições para a democraciaDesde o advento da Constituição Federal de 1988, o Brasil vem evoluindo para o cumprimento dessa dimensão da justiça de transição. A Constitui-ção Federal de 1988 estabeleceu no Brasil o que muitos entendem como o regime mais democrático de toda a história brasileira. Nesta linha, as próprias Forças Armadas passaram por um processo de reformulação e democratização desde o fim do período ditatorial. Atualmente, a liberda-de de expressão, a liberdade de ir e vir, o direito de reunião e o direito de associação, estão consagrados como direitos fundamentais e não podem sofrer limitação arbitrária por parte do Estado. Entretanto, se reconhece que o Brasil ainda pode melhorar seu regime democrático, principalmen-te no que tange a concretização de direitos sociais242.

2. Divergência entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos HumanosNo dia 21 de outubro de 2008, o Conselho Federal da OAB ajuizou uma ADPF almejando conferir interpretação conforme a Constituição para que a Lei da Anistia brasileira fosse interpretada no sentido de excluir os agentes da ditadura militar dos seus efeitos. Em síntese, o Conselho Federal da OAB invocou preceitos fundamentais constitucionais como o princípio da igualdade, o direito à verdade, o princípio republicano e a dignidade da pessoa humana. Ocorre que, no dia 28 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a demanda proposta pelo CFOAB. Segundo o STF, a Lei da Anistia deve ser aplicada aos atos crimi-nosos cometidos pelos agentes da ditadura. Já no dia 24 de novembro de 2010, quase sete meses após a decisão proferida pelo Supremo na ADPF 153, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, reconhecendo a invalidade da Lei de Anistia brasi-

242 Segundo o conceito moderno, a democracia não consistiria somente no governo das maiorias, mas também em um regime em que todos os indivíduos possam exercer seus direitos básicos sem qualquer privação ou arbitrariedade.

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leira e condenando o Estado brasileiro a investigar e punir os agentes da ditadura militar pelas graves violações de direitos humanos ocasionadas na região do Araguaia durante o período ditatorial. Segundo a Corte In-teramericana de Direitos Humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos todas as anistias de graves violações de direitos humanos e não somente as “autoanistias”243. Desse modo, restou instalada uma divergência entre a jurisprudência da Corte Interamerica-na de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal.

2.1. Critérios para solucionar essa divergência: Diálogo das Cortes e Teo-ria do Duplo ControleDiante da celeuma instalada em razão da divergência entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a doutri-na244 propõe dois critérios para que se tente uma harmonização entre os entendimentos colocados em questão.

O primeiro critério, considerado de natureza preventiva, é o do “diálogo das cortes”. Embora não haja um verdadeiro “conflito” entre uma decisão do Supremo Tribunal Federal e uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é necessário que os tribunais domésticos e interna-cionais andem lado a lado para que a proteção internacional dos direitos humanos se perfectibilize da melhor maneira possível. Com a adoção do “diálogo das cortes”, haveria uma maior interação entre os tribunais na-cionais e internacionais e, consequentemente, menos ações de responsa-bilização por violações de direitos humanos, dado que os entendimentos dos tribunais nacionais estariam, muito provavelmente, alinhados com a jurisprudência das cortes internacionais. Sobre o diálogo das cortes, é a lição de André de Carvalho Ramos: “(...) como seria possível a execução da parte central da condenação brasileira no caso Gomes Lund, que é justa-mente a obrigação de investigar, perseguir em juízo e punir criminalmente os agentes da ditadura militar que violaram barbaramente os direitos hu-manos naquele período? Antes de responder, parto da seguinte premissa: não há conflito insolúvel entre às decisões do STF e da Corte de San José, uma vez que ambos os tribunais têm a grave incumbência de proteger os direitos humanos. Eventuais conflitos são apenas conflitos aparentes, fruto do pluralismo normativo que assola o mundo de hoje, aptos a serem solu-cionados pela via hermenêutica. Para resolver esses conflitos aparentes, há

243 As leis de “autoanistias” também são chamadas de “anistia amnésica”. 244 Esses critérios de solução foram criados por André de Carvalho Ramos.

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dois entendimentos. O primeiro deles é preventivo e consiste no apelo ao ‘Diálogo das Cortes’ e à fertilização cruzada entre os tribunais. Com isso, an-tevejo, no futuro, o uso pelo STF das posições dos diversos órgãos internacio-nais de direitos humanos aos quais o Brasil já se submeteu. Claro que não é possível obrigar os juízos nacionais ao ‘diálogo das Cortes’, pois isso des-naturaria a independência funcional e o Estado Democrático de Direito”245.

No atual estágio da proteção internacional dos direitos humanos, o crité-rio do diálogo das cortes é, na maioria das vezes, insuficiente. No Brasil, o próprio STF tem postura lamentável ao ignorar, na grande maioria dos casos, os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, fa-zendo-lhes menção apenas quando determinado entendimento da Corte IDH corrobora o entendimento que o STF pretende que prevaleça.

O segundo critério é o da “teoria do duplo controle (ou do duplo crivo” de direitos humanos. Caracterizada a insuficiência do “diálogo das cortes”, a doutrina criou a teoria do duplo controle (ou duplo crivo) de direitos hu-manos para tentar solucionar a divergência entre a jurisprudência nacio-nal e a internacional. Segundo essa teoria, os direitos humanos possuem no Brasil uma dupla garantia: controle abstrato de constitucionalidade, exercido pelo Supremo Tribunal Federal, e o controle de convencionalida-de autêntico246, exercido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, com base na teoria do duplo controle de direitos humanos, seria possível dirimir uma eventual controvérsia aparente entre uma decisão do Supremo Tribunal Federal e uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; seria necessário para tanto que o entendimento espo-sado por ambas as Cortes respeite ao mesmo tempo o crivo da constitu-cionalidade e o crivo da convencionalidade247. Vejamos a lição do criador da teoria do duplo controle, o professor e Procurador Regional da Repúbli-ca André de Carvalho Ramos: “De um lado, o STF, que é o guardião da Cons-tituição e exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153 (controle abstrato de constitucionalidade), a maioria dos votos decidiu que o formato amplo de anistia foi recepcionado pela nova ordem consti-

245 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 393-394.

246 Segundo a doutrina, há duas modalidades de controle de convencionalidade: o con-trole provisório e o controle autêntico. Essa discussão será abordada oportunamente.

247 A Corte Interamericana de Direitos Humanos utilizou a expressão “control de con-vencionalidad”, pela primeira vez (25 de novembro de 2003), no julgamento de “Myrna Mack Chang vs. Guatemala”.

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tucional. Por outro lado, a Corte de San José é guardiã da Convenção Ameri-cana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade. Para a Corte IDH, a Lei da Anistia não é passível de ser invocada pelos agentes da dita-dura. Com base nessa separação, é possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de San José. Assim, ao mesmo tempo em que se respeita o crivo de constitucionalidade do STF, deve ser incorporado o crivo de convencionalidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todo ato interno (não importa a natureza ou origem) deve obediência aos dois crivos. Caso não supere um deles (por violar direitos humanos), deve o Estado envidar todos esforços para cessar a conduta ilícita e reparar os da-nos causados. No caso da ADPF 153 houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destroçada no controle de convencionalidade. Cabe, agora, aos órgãos internos (Ministério Público, Poderes Executivos, Legislativo e Judiciário) cumprirem a sentença internacional. A partir da teoria do duplo controle, agora deveremos exigir que todo ato interno se conforme não só ao teor da jurisprudência do STF, mas também ao teor da jurisprudência interamericana, cujo conteúdo deve ser estudado já nas Faculdades de Direito”248.

Ainda sobre a teoria do duplo controle, é importante ressaltar que o Minis-tério Público Federal adota essa teoria, conforme o parecer do PGR na ADPF 320, que será julgada pelo Supremo Tribunal Federal em um futuro próximo.

2.2. A propositura de uma nova ADPF pelo PSOL e a não-violação do ne bis in Id.Irresignado com a postura do Estado brasileiro diante da inércia e do não-cumprimento da decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, o Partido So-cialismo e Liberdade (PSOL) ingressou no dia 15 de maio de 2014 com uma ADPF no Supremo Tribunal Federal para que a corte máxima do Judiciário brasileiro reconheça a validade e o efeito vinculante da de-cisão proferida pela Corte IDH no caso da Guerrilha do Araguaia. Em-bora possa parecer um tanto confuso, não há que se falar em qualquer conflito entre a ADPF 153 (já julgada pelo Supremo Tribunal Federal) e a

248 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva: 2014, p. 408.

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ADPF 320, proposta pelo PSOL em 2014, visto que são ações com preten-sões diversas. O objetivo da ADPF 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, era que o STF adotasse uma interpretação da Lei de Anistia, nos conformes da Constituição, de forma a excluir do alcance de sua prote-ção os agentes da ditadura. Como já abordamos anteriormente, o STF decidiu pela improcedência da primeira ADPF. Já na ADPF 320, o objetivo da demanda é obter do Supremo Tribunal Federal o reconhecimento da validade e do caráter vinculante da decisão proferida no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Assim, não há que se falar em qualquer conflito ou violação ao princípio do ne bis in Id. neste caso.

Não deixamos de lamentar o fato de ser necessária a propositura de uma nova ADPF para que o Estado brasileiro cumpra os ditames da sentença do caso Gomes Lund. Isso porque o Brasil aderiu à jurisdição da Corte Inte-ramericana de Direitos Humanos, e as decisões da Corte de San José são vinculantes. Assim, por uma proteção internacional dos direitos humanos cada vez mais ampla, espera-se que, com uma nova composição do Su-premo Tribunal Federal, o julgamento da ADPF 320 tenha destino diverso da ADPF 153. O Ministério Público Federal já exarou parecer favorável pelo conhecimento e procedência parcial da ADPF 320.

3. Dever de investigar e punir como norma de jus cogens

As “garantias de não-repetição” consistem em uma das formas de repa-ração por violação de direitos humanos utilizadas pela Corte Interame-ricana de Direitos Humanos para que se assegure que os Estados julga-dos por sua jurisdição não tornem a violar direitos humanos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. Dentro dessas garantias de não-repetição, insere-se o dever de investigar e punir, conforme o qual o Estado condenado pela jurisdição da Corte IDH é sentenciado a investigar e punir os autores das violações de direitos humanos. Desse modo, evita-se tanto a reincidência da conduta violadora de direitos humanos quanto a própria impunidade dos responsáveis. O dever de investigar e punir foi utilizado pela primeira vez no caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras249,

249 Foi em razão do dever de investigar e de punir aplicado pela Corte IDH no caso Velásquez Rodriguez vs. Honduras que nasceu a “Doutrina Velásquez Rodriguez”. Essa doutrina determina que o Estado deve reprimir penalmente as violações de direitos humanos. Desse modo, se o Estado condenado se quedar inerte nesta ta-refa, será responsabilizado tanto pelas violações dos direitos humanos ocorridas em seu território, quanto pela impunidade dos autores dessas violações.

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primeiro caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos desde o início de seus trabalhos no ano de 1988. Vejamos a lição de An-dré de Carvalho Ramos sobre o ponto em análise: “Diante da gravidade das condutas de violações de direitos humanos, pode ser fixado o dever do Estado em investigar e punir os responsáveis pelas violações, de modo a evitar a impunidade e prevenir a ocorrência de novas violações. Tal objetivo de prevenção da ocorrência de novas violações insere o chamado “dever de investigar, processar e punir” como forma de garantia de não repetição”250.

O dever de investigar e punir foi utilizado pela Corte Interamericana de Di-reitos Humanos na sentença proferida contra o Estado brasileiro no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. O tribunal interamericano ordenou que o Bra-sil investigasse os fatos e punisse os responsáveis pelas violações de direitos humanos na região do Araguaia. Nessa linha, a Corte IDH reiterou o caráter de norma de jus cogens do dever de investigar e punir, ressaltando o caráter cogente e imperativo dessa norma para a comunidade internacional como um todo. Com o intuito de elucidar qualquer dúvida sobre o conceito de nor-ma de jus cogens, vejamos a explicação de André de Carvalho Ramos sobre o que são essas normas imperativas: “No Direito Internacional, a norma im-perativa em sentido estrito (também denominada norma cogente ou norma de jus cogens) é aquela que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo, e que, por isso, possui superiorida-de normativa no choque com outras normas de Direito Internacional. Assim, pertencer ao jus cogens não significa ser considerado norma obrigatória, pois todas as normas internacionais o são: significa que, além de obrigatória, a norma cogente não pode ser alterada pela vontade de um Estado”251.

4. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu um manda-do internacional implícito de criminalização contra o Brasil: a tipifica-ção do delito de desaparecimento forçadoAo condenar o Estado brasileiro no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ordenou que o Brasil proce-desse à tipificação do crime de desaparecimento forçado. Quando uma lei, tratado ou até mesmo uma sentença internacional profere uma or-dem de criminalização de determinada conduta, estamos diante do que

250 RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, p. 291-292.

251 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Interna-cional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 152-153

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a doutrina convencionou chamar de mandado de criminalização. Esses mandados de criminalização podem ser nacionais (quando previstos na Constituição Federal) ou internacionais (quando previstos em um tratado internacional ou ainda em uma decisão de um tribunal internacional). Atendo-nos ao âmbito internacional, caso a ordem para a tipificação de uma determinada conduta esteja prevista em um tratado internacional, dar-se-á o nome de mandado internacional expresso de criminalização. Nesse sentido, é a lição de André de Carvalho Ramos: “Quanto à primeira obrigação (criminalizar condutas), os tratados de direitos humanos esti-pulam diversos mandados internacionais expressos de criminalização, que consistem em cláusulas previstas em tratados ordenando a tipificação pe-nal nacional de determinada conduta, a imposição de determinada pena, a vedação de determinados benefícios (por exemplo, a proibição da prescri-ção penal) ou até mesmo o tratamento prisional específico”252.

Por outro lado, caso o comando para a tipificação de uma determinada con-duta advenha de uma sentença de determinado tribunal internacional, atri-bui-se o nome de mandado internacional implícito de criminalização. Nesse sentido, invoca-se novamente a doutrina de André de Carvalho Ramos: “A justificativa para a existência de mandados implícitos de criminalização está na chamada dupla dimensão dos direitos humanos, já vista, e também, no próprio princípio da proibição de insuficiência (faceta positiva da proporcio-nalidade). Os mandados implícitos de criminalização pressupõem a atividade de interpretação de textos normativos. No direito Internacional dos Direitos Humanos, tais mandados foram extraídos de textos convencionais, em es-pecial graças à atividade hermenêutica de duas Cortes regionais de direitos humanos: a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Europeia de Direitos Humanos. Estas interpretaram, respectivamente, a Convenção Ame-ricana de Direitos Humanos e a Convenção Europeia de Direitos Humanos no sentido de reconhecer a necessidade de punição penal aos autores de viola-ções de direitos humanos. (...) Assim sendo, o Direito Internacional dos Direi-tos Humanos estipulou verdadeiros mandados implícitos de criminalização por meio do reconhecimento do dever de investigar e punir criminalmente os autores de violações de direitos humanos. De fato, para que se puna criminal-mente é necessário que o Estado antes tenha tipificado a conduta em tela”253.

252 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Interna-cional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 245.

253 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Interna-cional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 249-250.

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Questiona-se: seria possível a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenar o Brasil pelo delito de desaparecimento forçado ainda que o Es-tado brasileiro não tenha esta conduta criminalizada em sua legislação interna? Sim! Segundo o entendimento da Corte Interamericana de Direi-tos Humanos no caso Caballero Delgado e Santana vs. Colômbia (1993), a ausência de tipificação do delito de desaparecimento não deve impedir a condenação do Estado em âmbito internacional. O fato de o Estado ainda não ter criminalizado a conduta de desaparecimento forçado deve servir como mola propulsora para uma condenação em âmbito internacional e, por conseguinte, uma futura tipificação do delito em análise254. Portanto, ao condenar o Brasil pelo desaparecimento forçado de uma série de indiví-duos na região do Araguaia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos nada mais fez do que manter o seu entendimento já consolidado.

Por fim, e a título de curiosidade, ressalta-se que tramita na Câmara dos De-putados um PL de autoria do senador Vital do Rego para tipificar a conduta de desaparecimento forçado e acrescentá-lo ao rol de crimes hediondos. Tra-ta-se do PL 6.240/2013, que possui a seguinte ementa: “Acrescenta art. 149-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoa, e acrescenta inciso VIII ao art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para considerar esse crime hediondo”.

4.1. Primeira aparição do desaparecimento forçado na jurisdição da Cor-te Interamericana de Direitos Humanos e a questão do ônus da provaÉ possível dizer que as discussões envolvendo o delito de desaparecimen-to forçado “nasceram” junto com a atividade judicante da Corte Intera-mericana de Direitos Humanos. Isso porque os três primeiros casos julga-dos pela Corte de San José versaram sobre o tema: Velásquez Rodriguez vs. Honduras, Fairén Garbi e Solis vs. Honduras e Godínez Cruz vs. Honduras. A doutrina costuma fazer referência a estes três casos como “os três casos hondurenhos”. Nestes casos, a Corte Interamericana de Direitos Huma-nos firmou sua jurisprudência tradicional no sentido de que, nos casos envolvendo o delito de desaparecimento forçado, o ônus de provar que o indivíduo não está desaparecido é do Estado.

Ainda nessa linha de raciocínio e segundo seu próprio entendimento acerca do ônus da prova no delito de desaparecimento forçado, a Corte

254 A Corte Interamericana de Direitos Humanos também adotou este entendimen-to nos casos Heliodoro Portugal vs. Panamá (sentença proferida em 12.08.2008) e Goiburú e outros vs. Paraguai (sentença proferida em 22.09.2006).

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Interamericana de Direitos Humanos decidiu no caso Anzualdo Castro vs. Peru que, diante de circunstâncias razoáveis para suspeitar que algum in-divíduo tenha sido vítima do crime de desaparecimento forçado, o Estado deve abrir uma investigação ex officio.

Atualmente, o delito de desaparecimento forçado é um dos temas mais frequentes nos julgamentos da Corte IDH. Citamos como exemplos de casos envolvendo o delito de desaparecimento forçado: Heliodoro Portu-gal vs. Panamá, Bámaca Velásquez vs. Guatemala, Blanco Romero e outros vs. Venezuela, Caballero Delgado e Santana vs. Colombia, Gómez Palomino vs. Peru, Anzualdo Castro vs. Peru, La Masacre de Mapiripán vs. Colombia, González Medina e Familiares vs. República Dominicana e Osório Rivera e Familiares vs. Peru.

4.2. Elementos estruturantes do delito de desaparecimento forçado se-gundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos

Nos casos Gómez Palomino vs. Peru (2005), Osório Rivera e Familiares vs. Peru (2013), González Medina e Familiares vs. República Dominicana (2012) e Gelman vs. Uruguai (2011), a Corte Interamericana de Direitos Humanos definiu os três elementos estruturantes para que se reste configurado o delito de desaparecimento forçado. São eles: a) a privação da liberdade; b) a intervenção direta de agentes estatais ou a aquiescência destes; e c) a negativa de reconhecer a detenção e de revelar o fim ou o paradeiro da pessoa interessada.

4.3. Desaparecimento forçado, extradição e dupla tipicidade

Para viabilizar o pleito da extradição, o requisito da dupla tipicidade é me-dida que se impõe. Entende-se por princípio da dupla tipicidade (também chamado de “princípio da dupla incriminação” ou da “identidade da in-fração”) a necessidade de que determinada conduta seja tipificada tan-to no estado requerido quanto no estado requerente da extradição. Para que seja satisfeito o requisito da dupla tipicidade, não é necessário que a conduta criminosa tenha o mesmo nomen juris em ambos os países.

Ao realizar a análise de pedidos de extradição envolvendo o delito de desaparecimento forçado, o Supremo Tribunal Federal entendeu que estaria satisfeito o princípio da dupla tipicidade, mesmo não havendo a tipificação do delito de desaparecimento na ordem interna brasileira. Para chegar a este raciocínio, o STF entendeu que o delito de sequestro previsto no art. 146 do Código Penal brasileiro seria equivalente ao deli-

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to de desaparecimento forçado para fins de aferir se está preenchida ou não a dupla tipicidade255.

Para encerrar, é importante ressaltar que o desaparecimento forçado não pode ser considerado crime político para fins de extradição, conforme ar-tigo 13 da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado256. Sobre o ponto, importante registrar que, embora o Brasil tenha ratificado a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, o mes-mo não pode se falar da Convenção Interamericana sobre o Desapareci-mento Forçado, que, embora tenha sido aprovada pelo Congresso Nacio-nal, ainda não foi ratificada pelo Estado brasileiro.Ainda sobre a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pes-soas contra o Desaparecimento Forçado, o artigo 5º do referido compro-misso internacional prevê que: “a prática generalizada de desaparecimen-to forçado constitui crime contra a humanidade, tal como define o direito internacional aplicável, o qual está sujeito às condições nele previstas”257. A matéria foi tratada da mesma maneira pelo Estatuto de Roma (TPI).

5. O Brasil foi processado por violações de direitos humanos cometi-das antes de sua adesão à jurisdição da Corte Interamericana de Di-reitos HumanosUma das exceções preliminares arguidas pelo Estado brasileiro no caso Gomes Lund vs. Brasil foi justamente a incompetência da Corte Interame-ricana de Direitos Humanos para julgar o feito. Isso foi alegado porque o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos no dia 10 de dezembro de 1998, mais de duas dé-cadas após os fatos ocorridos na região do Araguaia. Assim, segundo o Estado brasileiro, o processamento do caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos violaria sua cláusula ratione temporis258. Ocorre que,

255 STF, Extradições 974, 1278 e 1150.256 O Brasil assinou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas

contra o Desaparecimento Forçado no dia 6 de fevereiro 2007. O Decreto Legislati-vo do Congresso Nacional foi aprovado em 1º de setembro de 2010 e a Convenção em análise foi ratificada em 29 de novembro de 2010.

257 Os crimes contra humanidade são normas de jus cogens. Este também foi o enten-dimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Arellano Almona-cid vs. Chile.

258 Segundo essa cláusula, a Corte de San José só pode julgar determinado Estado por fatos ocorridos após a aceitação da sua jurisdição.

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no paradigmático caso Nicholas Blake vs. Guatemala, a própria jurispru-dência da Corte Interamericana de Direitos Humanos já havia admitido sua própria competência para julgar um Estado por fatos anteriores ao reconhecimento de sua jurisdição. No caso Blake, a Corte IDH reconheceu que o assassinato do jornalista americano Nicholas Blake não havia sido investigado de maneira adequada, o que inviabilizou a responsabilização dos violadores de direitos humanos. Segundo a Corte Interamericana, es-sas obrigações de investigar e responsabilizar os autores de tais violações possuiriam o caráter permanente, sendo, portanto, posteriores ao reco-nhecimento da jurisdição pelo Estado da Guatemala259.

Foi com base nesse entendimento que a Corte Interamericana de Direitos Humanos rejeitou a exceção preliminar proposta pelo Estado brasileiro e determinou sua própria competência para julgar o feito. Segundo a Corte IDH, os corpos das vítimas do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil conti-nuam desaparecidos e os responsáveis pelos desaparecimentos forçados não foram responsabilizados. Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que o próprio delito de desaparecimento forçado seria de caráter permanente, pois, a cada instante passado sem que se encontrem os corpos desaparecidos e se responsabilizem os autores dos delitos, o direito à vida e à integridade física estariam sendo violados. Nesse sentido, é a lição de André de Carvalho Ramos: “No caso brasileiro, em face do ocorrido na chamada ‘Guerrilha do Araguaia’ e nos casos de tortura, homicídios e desaparecimentos forçados, a situação é semelhante. Os fatos e a lei da anistia são da década de 1970, bem antes do reconheci-mento brasileiro da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Di-reitos Humanos, mas os corpos continuam desaparecidos e os responsáveis por eventuais violações de direitos humanos continuam impunes, uma vez que a anistia impediu as possíveis ações penais. Assim, a lógica do Caso Bla-ke pode ser perfeitamente aplicada ao Brasil, tornando ineficaz a cláusula temporal inserida no nosso ato internacional de reconhecimento da jurisdi-ção da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Saliente-se, por fim, que o Caso Blake, que nos traz essa interpretação sobre os limites à jurisdição temporal da Corte, foi sentenciado em 24 de janeiro de 1998, quase um ano depois do reconhecimento pelo Brasil da jurisdição da Corte Interamerica-

259 Além do caso Blake vs. Guatemala, o entendimento envolvendo o dever de “inves-tigar e punir” e seu caráter permanente foi adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Comunidade Mowana vs. Suriname (Sentença proferida em 08 de fevereiro de 2006).

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na de Direitos Humanos (1998). Ou seja, o Brasil tinha ciência e sabia desse precedente antes de reconhecer a jurisdição da Corte. Com isso, a Corte es-tabeleceu que possui jurisdição para analisar os atos de caráter continuo ou permanente. No caso Gomes Lund, a Corte recordou o caráter continuo ou permanente do desaparecimento forçado de pessoas e considerou que a própria existência do desaparecimento forçado permite concluir que houve desrespeito — contínuo — aos deveres de prevenir violação do direito à vida e integridade física”260.

6. Jurisprudência nacional correlata sobre o temaA jurisprudência brasileira vem enfrentando os mais diversos casos en-volvendo fatos ocorridos no período da ditadura militar. Logo, além das duas ADPFs já enfrentadas, é importante que mencionemos os julgados mais importantes em âmbito nacional.

6.1. Possibilidade de penhora da remuneração econômica recebida a título de anistia políticaSegundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a remuneração recebida a título de anistia política não configura verba salarial. Logo, pelo entendimento do STJ, tal remuneração pode ser penhorada, conforme o julgado a seguir:

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 557 DO CPC. ANISTIA POLÍTICA. REMUNERAÇÃO ECONÔMICA. CARÁTER INDENIZATÓRIO. PENHORA. POSSIBILIDADE. 1. Nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, fica superada eventual ofensa ao art. 557 do Código de Processo Civil pelo julgamento colegiado do agravo regimental interposto contra decisão singular do Relator. 2. Discute-se nos autos a possibilidade de penhora da remuneração econômica recebida em decorrência da concessão de anistia polí-tica, na forma do art. 5º da Lei nº 10.559/2002 (prestação mensal, permanente e continuada). 3. A reparação econômica prevista na Lei 10.559/02 possui caráter indenizatório (art. 1º, inciso II). Logo, a sua natureza não salarial possibilita a penhora para garantia do crédito tributário, nos termos do art. 184 do CTN c/c art. 649 do CPC. Recurso especial improvido. (REsp 1362089/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, j. em 20/06/2013, DJe 28/06/2013) (grifo nosso).

260 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 386-387.

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6.2. Imprescritibilidade da pretensão indenizatória em virtude de da-nos decorrentes da perseguição política na época da ditadura militarSegundo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, os danos decorren-tes de perseguição política na época da ditadura militar são imprescritíveis. Assim, é pacífico o entendimento de que não se aplica o prazo prescricional quinquenal do Decreto nº 20.910/1932. Vejamos um julgado nesse sentido:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS DECORRENTES DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA NA ÉPOCA DA DITADURA MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE. PRECEDENTES. ALEGAÇÃO DE CON-TRARIEDADE A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA DO STF. 1. O acórdão impugnado decidiu em conformidade com a orien-tação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não se aplica a prescrição quinquenal do Decreto n. 20.910/1932 às ações de reparação de danos sofridos em razão de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, durante o Regime Militar, pois nesse caso é imprescritível a pretensão. 2. No mesmo sentido, os seguintes precedentes: AgRg no REsp 1.417.171/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 16/12/2013; AgRg no AREsp 330.242/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 5/12/2013; AgRg no REsp 1.301.122/RJ, Primeira Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 25/9/2013; AgRg no REsp 1.128.042/ PR, Primeira Turma, Rel. Min. Sér-gio Kukina, DJe 23/8/2013. 3. O Superior Tribunal de Justiça não é com-petente para analisar, em sede de recurso especial, eventual violação de dispositivos constitucionais, sob pena de usurpar-se da competên-cia do Supremo Tribunal Federal. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1424680/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, j. em 03/04/2014, DJe 09/04/2014) (grifo nosso).

7. Instituição da Comissão Nacional da VerdadeUma das determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil foi a instituição da famosa Comis-são Nacional da Verdade. Esta comissão foi criada pela Lei nº 12.528/2011 e não possui caráter jurisdicional. Logo no artigo 1º do referido diploma legal atribui-se à comissão a finalidade de “examinar graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias (período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição [de 1988]), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

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Ainda nessa linha, a Lei 12.528/2011 estabeleceu uma série de objetivos a serem perseguidos pela Comissão Nacional da Verdade:

“Art. 3º São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

I – esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos mencionados no caput do art. 1º;

II – promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua au-toria, ainda que ocorridos no exterior;

III – identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos hu-manos mencionadas no caput do art. 1º e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;

IV – encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, nos termos do art. 1º da Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995;

V – colaborar com todas as instâncias do poder público para apura-ção de violação de direitos humanos;

VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para preve-nir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e pro-mover a efetiva reconciliação nacional; e

VII – promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da his-tória dos casos de graves violações de direitos humanos, bem como co-laborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações”.

Por fim, é importante fazer menção ao relatório final da Comissão Na-cional da Verdade, entregue no dia 10 de dezembro de 2014 à presidente Dilma Rousseff, após dois anos e meio de depoimentos e pesquisas com o intuito de desmistificar os fatos ocorridos no período da ditadura militar. Segundo esse relatório, houve graves e sistemáticas violações aos direitos humanos no período do regime antId.ocrático no Brasil; elas não se resu-miram de forma alguma a casos isolados.

8. Não-admissibilidade da Corte Interamericana de Direitos Huma-nos como uma “quarta instância”Logo em sede de exceção preliminar, o Brasil informou à Corte Interame-ricana de Direitos Humanos da existência de uma decisão proferida pelo

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Supremo Tribunal Federal sobre o caso. Assim, para o Estado brasileiro, caso a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidisse prosseguir no julgamento do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, ela acabaria se tornando uma instância revisora de julgamentos locais, caracterizando-se como uma “quarta instância”, o que seria proibido. A exceção alega-da pelo Estado brasileiro não foi acolhida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, sob o argumento de que não há qualquer hierarquia entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. O que deve haver é uma relação de diálogo, complementa-ridade e reciprocidade, mas jamais de hierarquia. Outrossim, a própria Corte IDH não possui o intuito de revisar as decisões das cortes internas, mas apenas de realizar o controle de convencionalidade da Lei de Anis-tia brasileira em face da Convenção Americana de Direitos Humanos, pouco importando a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153, que é enxergada pela Corte IDH como mero fato. Desse modo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não pode ser rotulada como uma “quarta instância” perante a hierarquia do Judiciário, seja ele brasileiro ou de outro Estado-membro da Convenção Americana de Direitos Hu-manos. Nesse sentido, é a lição de André de Carvalho Ramos: “Como o processo perante San José ainda estava em curso, tanto que a ADPF 153 foi julgada improcedente por maioria de votos, o Brasil imediatamente peticionou perante a Corte IDH arguindo mais uma exceção preliminar: a existência de uma decisão da mais Alta Corte Brasileira levaria a Corte IDH a um papel proibido de ser uma ‘quarta instância’ judicial, reforman-do o julgamento local. Para o Estado, caso o julgamento internacional prosseguisse, a Corte IDH se transformaria em uma instância de revisão das decisões judiciais do STF, uma verdadeira ‘quarta instância’. Só que a jurisdição interamericana de direitos humanos aprecia a conduta do Estado brasileiro em face da Convenção Americana de Direitos Humanos. Não há, então, nenhuma pretensão de rescindir julgados nacionais, mas sim em obrigar o Estado a respeitar os direitos humanos. Por isso, o que a Corte fez foi um ‘controle de convencionalidade’, analisando a Lei da Anis-tia em face da Convenção Americana de Direitos Humanos, pouco impor-tando a análise feita pelo STF sobre a compatibilidade da Lei da Anistia em face da Constituição Federal brasileira”261.

261 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 385.

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9. Indagação didática: com fulcro na imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e para perfectibilizar o direito à verdade e à reparação dos familiares das vítimas, é possível a persecução penal dos agentes da ditadura no Poder Judiciário Brasileiro? O tema é polêmico e dá ensejo a diversas discussões. Recentemente, o Ministério Público Federal propôs uma série de ações penais contra agen-tes militares que supostamente teriam sido autores de crimes contra a humanidade na época dos anos de chumbo. Nas ações penais, o MPF alegou a prática de delitos de caráter permanente pelos acusados, assim como a não abrangência destes crimes pela Lei de Anistia brasileira. Cita-se como exemplo os casos envolvendo o atentado no Riocentro262, a ação penal proposta contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra263 e a exor-dial acusatória ajuizada contra o coronel Sebastião Curió264. A ação penal no caso envolvendo os acusados de participar do atentado no Riocentro foi aceita em primeira instância, mas trancada, via habeas corpus, em se-gundo grau. Segundo o TRF da 2ª Região, “A jurisprudência brasileira não pode importar normas do Tribunal de Nuremberg sobre a existência de cri-mes contra a humanidade, inexistente na legislação brasileira”265. O relator do habeas corpus que trancou a ação penal no caso Riocentro, Des. Fed. Ivan Athié, ainda concluiu que “não podemos admitir que normas aliení-genas sejam usadas como se integrassem o ordenamento jurídico brasilei-ro, em nome de um sentimento de justiçamento perigosamente em voga no nosso país atualmente”. Argumentos semelhantes guiaram a decisão do mesmo Tribunal Federal em relação ao caso Sebastião Curió266. Por fim, a Ação Penal movida contra o Coronel Ustra foi suspensa pelo STF267. O PGR recorreu desta decisão, alegando que os crimes cometidos por Ustra

262 Seis pessoas foram acusadas de participar do atentado no Riocentro, no Rio de Janeiro, durante um show em comemoração ao Dia do Trabalho, em 1981.

263 O coronel do Exército Carlos Brilhante Ustra foi acusado pelo suposto sequestro e cárcere privado de Edgar de Aquino Duarte, fuzileiro expulso das Forças Armadas e que desapareceu em 1974 após ser preso por outros militares.

264 O coronel do Exército Sebastião Curió foi acusado do sequestro de militantes de esquerda na chamada Guerrilha do Araguaia, na mesma região onde ocorreram os fatos do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

265 Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Habeas Corpus nº 0005684-20.2014.4.02.0000.266 Tribunal Regional Federal da 1ª Região, EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM HABEAS

CORPUS nº 0038460-71.2012.4.01.0000/MT.267 Supremo Tribunal Federal, Reclamação 19.760. Relatora Min. Rosa Weber. O mes-

mo entendimento foi seguido pelo Ministro Teori Zavascki no caso Rubens Paiva (Reclamação 18.686).

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não estariam abarcados pela proteção conferida pela Lei de Anistia, ante o caráter permanente dos delitos imputados ao acusado. Já adiantamos desde já que não é possível concordar com os argumentos exarados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que refutam a importação de nor-mas internacionais para a aplicação no ordenamento jurídico interno. Mas, antes de expor o nosso posicionamento, é importante demonstrar-mos as diversas correntes doutrinárias sobre o tema:

1ª Corrente: a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é norma de jus cogens e possui caráter consuetudinário (e também con-vencional)A existência da Convenção Internacional sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade, de 1968, apenas decla-rou a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de crimes contra a huma-nidade, ante a existência prévia de um costume internacional no sentido da imprescritibilidade desses delitos, conforme a Resolução 2338 da Orga-nizações das Nações Unidas, de 18 de dezembro de 1967. Assim, conforme dito paradoxalmente pelo próprio relator do habeas corpus que trancou uma das ações penais envolvendo o tema, desde a época do Tribunal de Nuremberg (i.e., mesmo antes da Convenção de 1968) já se admitia a im-prescritibilidade destes delitos. É bem verdade que o Brasil não é parte da Convenção Internacional sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade; entretanto, tal fato não causa maiores empecilhos para que o Estado brasileiro reconheça a imprescri-tibilidade destes delitos, ante o caráter consuetudinário da norma que regula a questão268. Ainda nesse sentido, há mais um argumento a ser so-pesado: o caráter de jus cogens da imprescritibilidade dos crimes de guer-ra e contra a humanidade, já reconhecido pela ONU e também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos269. Por fim, convém relembrar a

268 Em nenhum momento durante a formação do costume internacional o Estado brasileiro foi objetor persistente. Sobre a teoria do objetor persistente, é a lição de Paulo Henrique Gonçalves Portella: “Em todo caso, existe a possibilidade de que um sujeito de Direito Internacional não reconheça expressamente um costume exis-tente ou em gestação, traduzida na figura do persistent objector, expressão cuja melhor tradução até agora encontrada na doutrina brasileira é ‘objetor persistente’ (...)” (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p.66).

269 Corte IDH. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. Exceções Preliminares, Fundo, Reparações e Custas. Sentença de 26 de setembro de 2006. Serie C, nº. 154.

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previsão da imprescritibilidade para os delitos em análise no Estatuto de Roma, convenção que regula o Tribunal Penal Internacional270.

2ª Corrente: impossibilidade do reconhecimento da imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e dos crimes de guerra (atualmente adotada pelas cortes nacionais)

Não é possível reconhecer a imprescritibilidade dos delitos contra a hu-manidade e de guerra; logo, não é possível promover a persecução penal contra os agentes da ditadura pelos fatos atentatórios aos direitos huma-nos que foram cometidos no período da ditadura militar brasileira, pois os mesmos estariam prescritos. Outros argumentos, principalmente o sentimento de insegurança jurídica em uma possível admissão da impor-tação de normas internacionais para o ordenamento jurídico brasileiro, também são frequentemente invocados pelas cortes domésticas.

Não podemos concordar com o posicionamento adotado pelos tribu-nais brasileiros. Isso porque o próprio Supremo Tribunal Federal fre-quentemente aplica o costume internacional diretamente em nosso país, como se law of the land fosse, sem qualquer processo de integra-ção. Nesse sentido, é possível encontrar um amplo acervo de julgados do STF sobre o tema envolvendo imunidades de jurisdição dos Estados estrangeiros271, no qual o principal argumento para a Corte Constitucio-nal brasileira reconhecer a impossibilidade (em regra) de se processar um Estado estrangeiro nas cortes domésticas é justamente o costume internacional272. A respeito deste tema, é a lição de André de Carvalho Ramos: “Denomino essa aplicação direta de normas internacionais extra-convencionais de ‘fenômeno da impregnação’, pelo qual tais normas são aplicadas diretamente no ordenamento brasileiro, sem qualquer media-ção do Congresso Nacional (ausência de Decreto Legislativo), e sem qual-quer promulgação por Decreto Executivo”273.

270 Artigo 29 do Estatuto de Roma: “Os crimes da competência da Corte não prescreverão”. 271 Para aprofundar neste tema, ver nossos comentários sobre Caso Alemanha vs. Itá-

lia, julgado pela Corte Internacional de Justiça.272 Supremo Tribunal Federal, Ação Civil Originária n. 298-DF. Relator, Min. Decio Mi-

randa, julgado em 1982, Ação Cível 9.696. Relator, Ministro Sydney Sanches, entre outros. No Superior Tribunal de Justiça, ver, AgRg no RO 108 / RJ, Relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira. Julgado em 17 de dezembro de 2013, entre outros.

273 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Interna-cional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 287.

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Assim, diante da prática do Supremo Tribunal Federal em aplicar o cos-tume internacional como se lei brasileira fosse, e também em prol de uma proteção mais efetiva aos direitos humanos, nos filiamos à primei-ra corrente, capitaneada na doutrina brasileira por André de Carvalho Ramos, que admite a aplicação do costume internacional da impres-critibilidade dos crimes de guerra e contra a humanidade diretamente no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, entendemos ser possível a persecução penal contra os agentes estatais violadores de direitos hu-manos no período da ditadura militar274.

incidênciA do temA em ProvAs de concursos

(ADVOGADO DA UNIÃO, 2012 — CESPE) No que concerne aos direitos hu-manos no âmbito do direito internacional, julgue os itens que se seguem. •Na sentença do caso Gomes Lund versus Brasil, a Corte Interamericana

de Direitos Humanos estabeleceu que o dever de investigar e punir os responsáveis pela prática de desaparecimentos forçados possui cará-ter de jus cogens.

Gabarito: Correto. O ponto foi abordado anteriormente.

(PGR — PROCURADOR DA REPÚBLICA, 2008) De acordo com a jurispru-dência da corte interamericana de direitos humanos sobre as violações dos direitos humanos, praticadas pelos regimes de exceção na américa latina, é incorreto afirmar que: a| A justiça transicional pode justificar a validade interna e externa de

leis sobre anistias, se tiverem sido incorporadas ou expressamente mantidas pela Constituição.

b| A punição dos responsáveis pelas violações é decorrência do conceito de Estado de Direito e do devido processo legal.

c| O conhecimento dos registros de desaparecidos constitui um direito dúplice, individual e coletivo, podendo, no primeiro caso, ser exercido pelos familiares das vítimas.

274 É também a posição de MARX, Ivan Cláudio. Justiça de Transição — Necessidade e Factibilidade da Punição aos Crimes da Ditadura. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. Foi também o entendimento adotado pela Corte Suprema de Justiça da Nação Ar-gentina, conforme o caso Arancibia Clavel. Causa nº 259, julgado em 24/08/2004 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, conforme comentários do caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

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d| As violações dos direitos humanos geram a responsabilidade inter-nacional do Estado à sua devida e justa reparação.

Gabarito: A assertiva “A” é o gabarito, eis que o enunciado se encontra equivocado. A justiça transnacional não justifica a validade sobre leis de anistia. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos não admite a impunidade dos violadores de direitos humanos no pe-ríodo da ditadura militar. O entendimento foi adotado no caso Gomes Lund vs. Brasil e em outros julgados, como nos casos Barrios Altos vs. Peru, Almonacid Arellano e outros vs. Chile, La Cantuta vs. Peru e Gelman vs. Uruguai. As outras assertivas da questão em comento estão corretas.

(PGR — 28º CONCURSO PROCURADOR DA REPÚBLICA, 2015 — ADAPTADA) Assinale a alternativa correta:•A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos admi-

te, nos processos de redemocratização ocorridos na América Latina nas últimas décadas, a anistia total nos casos de graves violações de direi-tos humanos realizadas pelos agentes da ditadura militar, desde que tal anistia seja fruto de um acordo entre o regime militar e a oposição.

Gabarito: Errado. A Corte Interamericana de Direitos Humanos não ad-mite a validade de leis de anistia em casos de violações de direitos hu-manos. Foi o entendimento exarado pela Corte de San José no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

(DPE/SE — DEFENSOR PÚBLICO, 2012 — CESPE, ADAPTADA) De acordo com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos:•Não compete a essa corte conhecer de violações contínuas ou perma-

nentes conexas a atentados contra o direito à vida ocorridos antes do reconhecimento de sua jurisdição pelo Brasil.

Gabarito: Errado. O enunciado trata do entendimento aplicado pela Cor-te IDH no paradigmático caso Blake vs. Guatemala. Foi também o en-tendimento adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

(SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR — ANALISTA JUDICIÁRIO, 2011 — CESPE) Em dezembro de 2010, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos jul-gou improcedente o pedido de condenação do Estado brasileiro pelo de-saparecimento de algumas pessoas no combate à guerrilha do Araguaia.Gabarito: Errado. A Corte Interamericana julgou procedente o pedido de condenação do Estado brasileiro no caso “Guerrilha do Araguaia”.

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(TJ/SP — OFICIAL ESCREVENTE, 2011 — VUNESP) A Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou a repressão e os crimes cometidos pelo regime militar brasileiro (...). A sentença divulgada nesta terça-feira (14.12.2010) determina que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pes-soas, entre os anos de 1972 e 1974. Esta é a primeira condenação internacio-nal do Brasil em um caso envolvendo a ditadura militar (1964-1985) (www.cartacapital.com.br, 15.12.2010). A condenação citada refere-se ao episódio:

a| do levante do Forte Copacabana.

b| da guerrilha do Araguaia.

c| da Intentona Comunista.

d| das greves do ABC.

e| do Congresso da UNE.

Gabarito: Assertiva “B”.

(DPE/SP — DEFENSOR PÚBLICO, 2010 — FCC) Recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, em que se requeria declaração daquela Corte no sentido de reconhecer que a anistia concedida pela Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, aos crimes políticos ou conexos, não se estende aos crimes comuns praticados pelos “agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”. A respeito das chamadas “leis de autoanistia”, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se posicionou diversas vezes. A partir da jurisprudência deste tribunal é correto afirmar: a| O fato de um Estado parte ser signatário das Convenções de Genebra

sobre Direito Internacional Humanitário não serve de fundamenta-ção para sua condenação pela Corte Interamericana de Direitos Hu-manos, pois há plena separação entre aquele sistema de normas e as que compõem o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

b| Os agentes estatais que tenham praticado atos de tortura em perío-do não democrático, objeto de lei de anistia, não podem mais ser pro-cessados ante a irretroatividade de lei penal mais severa.

c| O Estado parte na Convenção Americana de Direitos Humanos tem o dever de punir os responsáveis por crimes de lesa humanidade, não podendo aventar a prescrição criminal para deixar de fazê-lo, mesmo que os fatos tenham ocorrido há mais de vinte anos.

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d| Por se tratar de um tribunal de natureza civil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos não pode determinar que um Estado parte leve a juízo criminal agentes públicos que supostamente cometeram cri-mes de lesa humanidade.

e| O fato de a prática do desaparecimento forçado de opositores polí-ticos ser anterior à ratificação da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo país impede a apreciação do caso perante a Corte In-teramericana de Direitos Humanos.

A assertiva “A” está errada. O fato de um Estado parte ser signatário das Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário pode servir como fundamentação para sua condenação pela Corte Interameri-cana de Direitos Humanos. É oportuno relembrar que a Corte Interameri-cana de Direitos Humanos pode examinar qualquer tratado aplicável no continente americano e não apenas tratados que possuem a vigência de seus efeitos atrelada ao continente americano.

A assertiva “B” está errada. A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu justamente ao contrário no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

A assertiva “C” está correta. Foi o que a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Os crimes de lesa-humanidade são crimes de jus cogens e portanto, imprescritíveis diante da ordem internacional.

A assertiva “D” está errada. A Corte IDH não é propriamente um tribunal de natureza cível, eis que também julga fatos envolvendo matéria crimi-nal. O próprio caso Gomes Lund vs. Brasil demonstra o equívoco do enun-ciado, pois os agentes públicos que supostamente cometeram crimes de lesa-humanidade podem ser julgados pela Corte Interamericana de Di-reitos Humanos.

A assertiva “E” está errada. O enunciado trata do entendimento aplicado pela Corte IDH no paradigmático caso Blake vs. Guatemala. Foi também o entendimento adotado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

Gabarito: Letra C.

(MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR — PROMOTOR, 2013 — FASE DISCURSIVA) 1.b. (30 PONTOS) Em 29.04.2010, o plenário do Supremo Tribunal Fede-ral encerrou o julgamento da ADPF nº 153 e reconheceu a plena validade

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da Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia) no contexto da Constituição de 1988. A decisão polêmica teve repercussão internacional e o Tribunal foi alvo de críticas. Recentemente, o Ministério Público Federal ofereceu ação penal contra agentes militares pelo sequestro do jornalista Mário Al-ves e pelos supostos crimes praticados durante os eventos conhecidos como “guerrilha do Araguaia”. Elabore texto dissertativo abordando os seguintes pontos.a| Decisão do STF na ADPF nº 153:

a.1 | feitos da decisão e sua vinculatividade para os órgãos do Poder Judi-ciário, Administração Pública, Poder Legislativo e o próprio STF;

a.2 | Efeitos políticos, penais e civis da decisão do STF;

a.3 | Compatibilidade dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei nº 12.528, de 18.11.2011, e das iniciativas do Minis-tério Público Federal descritas acima com a decisão do STF.

b| Pode o Brasil ser responsabilizado com base na Convenção America-na sobre Direitos Humanos por eventuais crimes praticados entre os anos de 1961 e 1979?

b.1 | Hierarquia dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro;

b.2 | Jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos para in-vestigar os supostos crimes.

espelho do Gabarito adotado pela banca:

• Fundamento jurídico e legal da eficácia erga omnes e do efeito vincu-lante no caso da ação de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9.882/99 (art. 10, § 3º). Abrangência da vinculatividade. Situação institucional do Poder Legislativo e do próprio STF. Regime jurídico dos efeitos da decisão para o Poder Judiciário e Administração Pública. Pre-cedentes do STF. (6 pontos)

•Repercussão internacional da decisão do STF em comparação com o sistema internacional e/ ou interamericano de direitos humanos (Caso “Gomes Lund” com sentença de 24.11.2010). Menção às consequências no campo dos direitos políticos. Efeito penal e extinção de punibilida-de (fundamento: art. 107, II, CP e/ou art. 123, II, CPM). Conhecimento da polêmica em relação à possibilidade de persecução penal. Efeitos civis e indenização. Responsabilidade civil do Estado. Responsabilidade do

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particular. Fundamentos (art. 63 (1) da Convenção Americana de Direi-tos Humanos; art. 3, VII, da Lei nº 12.528/2011, dentre outros). Enfoque constitucional. (6 pontos)

•A Comissão da Verdade não tem caráter jurisdicional ou persecutório (art. 4, § 4º, da Lei nº 12.528/2011). Análise de sua compatibilidade entre sua criação e a decisão do STF. Atuação do Ministério Público Federal e análise de sua compatibilidade com as exceções do regime jurídico da anistia de 1979 (art. 1º, § 2º, Lei nº 6.683/79). Sequestro e prescrição. Atuação do Ministério Público Federal e polêmica em torno do respeito à decisão do STF. (6 pontos)

•Regime jurídico dos tratados no Brasil. Hipóteses de tratados que versem sobre direitos humanos antes e depois da Emenda Constitucional nº 45/2004 (art. 5º, § 2º da Constituição e art. 5º, § 3º, da Constituição). Prece-dentes do STF (RE 80004; RE nº 349.703; RE nº 466.343). Supralegalidade dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos (6 pontos)

•Menção à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos com base na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Arts. 61 a 65. Eventuais limites impostos pelo Go-verno Brasileiro e aceitação da jurisdição da Corte. Decreto nº 678/92. Questões de direito intertemporal. Enfoque constitucional. (6 pontos)

(27º CONCURSO PROCURADOR DA REPÚBLICA, 2014 — PROVA ORAL) A Corte Interamericana de Direitos Humanos admite a “teoria da quarta instância”? breve resposta: A teoria da “quarta instância” não é admitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O ponto em questionamento foi analisado anteriormente.

(27º CONCURSO PROCURADOR DA REPÚBLICA, 2014 — PROVA ORAL) A Cor-te Interamericana de Direitos Humanos possui competência para julgar determinado Estado por fatos anteriores a admissão por este Estado da sua jurisdição? breve resposta: O candidato deveria afirmar que, em regra, a Corte Intera-mericana não julga Estados por fatos ocorridos antes que estes realizam a adesão de sua jurisdição. Entretanto, também deveria ser ressaltado o entendimento paradigmático do caso Blake vs. Guatemala e também aderido pela Corte IDH no caso Gomes Lund e outros vs. Brasil.

(DPE/SP — DEFENSOR PÚBLICO, 2013 — PROVA DISCURSIVA) Discorra sobre o diálogo entre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o

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Supremo Tribunal Federal no controle de convencionalidade do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, analise criticamente e cite três ca-sos jurisprudenciais pertinentes ao assunto.Gabarito adotado pela banca: “(...) Nos casos divergentes, o STF, em suas de-cisões, desrespeita precedentes da Corte IDH, como a ADPF 153 e o Caso Gomes Lund”.

(PGR — 28º CONCURSO PROCURADOR DA REPÚBLICA, 2015 — ADAPTADA) Assinale a alternativa correta:O costume internacional e as resoluções vinculantes do Conselho de Se-gurança da Organização das Nações Unidas são incorporadas interna-mente no direito brasileiro por intermédio de decreto presidencial.

Gabarito: Errado. O costume internacional é aplicado diretamente no orde-namento jurídico brasileiro sem qualquer processo formal de incorporação.

(DPE/RJ — DEFENSOR PÚBLICO, 2015 — PROVA DISCURSIVA 1ª FASE) Em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade publicou relatório final, após exaustivas investigações, sobre as violações de direitos hu-manos perpetradas pelo Estado entre os anos de 1946 e 1988. Entre as recomendações da CNV:“II Recomendações

(11) Fortalecimento das Defensorias Públicas

27. No contexto das graves violações de direitos humanos investigadas pela CNV, sobressaiu a percepção de que a dificuldade de acesso dos presos à Jus-tiça facilitou grandemente a possibilidade de que fossem vítimas de abusos, por ação ou omissão da administração pública. Como esse quadro subsiste nos dias de hoje, recomenda-se o fortalecimento das Defensorias Públicas, criadas constitucionalmente para o atendimento da população de baixa renda e revestidas das condições institucionais para propiciar maior proteção das pessoas detidas. O contato pessoal do Defensor Público com o preso nos distritos policiais e no sistema prisional é a melhor garantia para o exercício pleno do direito de defesa e para a prevenção de abusos e violações de direi-tos fundamentais, especialmente tortura e maus-tratos”. (Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Parte V, Recomendações, pág 969). Nesse contexto, defina Justiça Transicional, apontando seus elementos centrais e as possíveis hipóteses de atuação do Defensor Público (6 pontos).

Gabarito: Em virtude da não disponibilização de um “espelho” de prova pela banca examinadora da Defensoria Pública do Estado do Rio de Ja-

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neiro, os autores desta obra sugerem o seguinte gabarito. Um conceito de Justiça de Transição que poderia ser lembrado pelo candidato seria a Justiça de Transição como um conjunto de mecanismos judiciais ou ex-trajudiciais utilizados por uma sociedade como um ritual de passagem à ordem democrática após graves violações de direitos humanos por regimes autoritários e ditatoriais, de forma que se assegure a responsa-bilidade dos violadores de direitos humanos, o resguardo da justiça e a busca da reconciliação. Já os elementos centrais, também chamados de “dimensões” por boa parte da doutrina, foram definidos pelo Conselho de Segurança da ONU na seguinte ordem: a) direito à memória e à verdade; b) direito à reparação das vítimas (e seus familiares); c) o adequado trata-mento jurídico aos crimes cometidos no passado; d) a reforma das institui-ções para a democracia. No contexto da Justiça de Transição e da recons-trução das instituições democráticas, o Defensor Público pode se deparar com diversas situações práticas. A mais comum é o ajuizamento de ações indenizatórias em favor das vítimas torturadas no período ditatorial pelos agentes estatais275. No mesmo contexto, o Defensor Público pode postular aos órgãos internacionais de direitos humanos para responsabilizar o Es-tado brasileiro por acontecimentos atentatórios aos direitos humanos que se tenham dado na época da ditadura militar brasileira. Por fim, é possível atribuir aos Defensores Públicos Federais276 a tarefa de defender em juízo os militares denunciados por crimes cometidos à época da ditadura, caso os denunciados não possuam advogado particular, pois o direito à defesa deve ser conferido também aos possíveis violadores de direitos humanos.

275 Vale relembrar que esta pretensão é imprescritível, conforme já comentado nesta obra.276 As ações penais visando responsabilizar os agentes da ditadura militar por violações

de direitos humanos são processadas e julgadas na Justiça Federal. Assim, em caso de necessidade de designação de um Defensor Público para um caso envolvendo a matéria, a defesa recairá sobre um membro da Defensoria Pública da União.

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