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 INTRODUÇÃO Este livro trata da população kachin e chan do nordeste da Birmânia, mas  pretende também fornecer uma contribuição à teoria antropológica. Não foi proje tado como uma descrição etnográfica. A maioria dos fatos etnográficos a que me refiro foram publicados anteriormente. Não se deve, pois, procurar qualquer  originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretação desses mesmos fatos. A população de que nos ocupamos é a que habita a região assinalada com o  nome KA CHI N no mapa 1 e mostrad a em grande escala no mapa 2. Essa pop ulação fala difere ntes língua s e dialet os, e exis tem grandes diferenças de cultura entre um a e outra parte da região em questão. N o entanto, é  comum denominar-se a totalidade  dessa população com os termos  chan e kachin.  Neste livro chamarei toda a região de  Reg ião d as Colin as de Kachin. Num nív el grosseiro de generalização, os chans ocupa m o s vale s ribeirin hos  onde cultivam arroz em campos irrigados; são um povo relativamente sofisticado, com uma cultura algo semelhante à dos birmaneses. Os kachins, por outro lado,  ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura  itinerante através de derrubadas e queimadas. A literatura publicada no século passado quase sempre tr ato u esses kachin s como selvagens primitivos e belicosos,  tão diferentes dos chans na aparência, na língua e na cultura geral que devem ser  considerados de origem racial totalmente distinta1. 1 Por exemplo, Malcom (1837); Eickstedt (1944).

leach,_edmund_-_sistemas_políticos_da_alta_birmania_introdução, 3, 6, 7, 9, conclusao

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IN T R O D U O

Este livro trata da populao kachin e chan do nordeste da Birmnia, mas pretende tambm fornecer uma contribuio teoria antropolgica. No foi proje tado como uma descrio etnogrfica. A maioria dos fatos etnogrficos a que me refiro foram publicados anteriormente. No se deve, pois, procurar qualquer originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretao desses mesmos fatos. A populao de que nos ocupamos a que habita a regio assinalada com o nome KACHIN no mapa 1 e mostrada em grande escala no mapa 2. Essa populao fala diferentes lnguas e dialetos, e existem grandes diferenas de cultura entre uma e outra parte da regio em questo. No entanto, comum denominar-se a totalidade dessa populao com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a regio de Regio das Colinas de Kachin. Num nvel grosseiro de generalizao, os chans ocupam os vales ribeirinhos onde cultivam arroz em campos irrigados; so um povo relativamente sofisticado, com uma cultura algo semelhante dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as tcnicas de cultura itinerante atravs de derrubadas e queimadas. A literatura publicada no sculo passado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, to diferentes dos chans na aparncia, na lngua e na cultura geral que devem ser considerados de origem racial totalmente distinta1.

1

Por exemplo, Malcom (1837); Eickstedt (1944).

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Sendo assim, est dentro das convenes normais da antropologia que as monografias sobre os kachins ignorem os chans e as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins e os chans so em quase toda parte vizinhos prximos e esto bastante associados nas questes comuns da vida. Considere-se, por exemplo, o seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testemunha num inqurito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 19302.Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng Raa: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) Idade: 79 Religio: budista zawti Reside em: Man Hkawng, Mng Hko Nascido em: Pao Mo, Mng Hko OcupaSo: Chefe aposentado Pai: Ma La, antigamente Duwa de Pao Mo Quando eu era menino, cerca dc setenta anos atrs, o Regente (chan) Sao Hkam Hseng, que ento reinava em Mng Mao, mandou um parente seu, de nome Hga Hkam, negociar uma aliana com os kachins de Mng Hko. Pouco tempo depois Nga Hkam estabeleceu-se em Pao Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li e meu av MaNaw, ento Duwas de Pao Mo; depois disso nos tomamos chans e budistas e prosperamos grandemente e, como membros do cl Hkam, sempre que amos a Mng Mao ficvamos com o Regente, e inversamente, em Mng Hko nossa casa era deles. [..,]

Parece que essa testemunha considerava que nos ltimos setenta anos ou aproximadamente sua famlia tinha sido simultaneamente kachin e chan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cl Lahtaw(ng). Como chan, era budista e membro do cl Hkam, a casa real do Estado de Mng Mao. Alm disso, Mng Mao - o conhecido Estado Chan desse nome em territrio chins - tratado aqui como sendo uma entidade poltica do mesmo tipo e tendo quase a mesma situao de Mng Hko, que aos olhos da administrao britnica de 1930 nada mais era que um crculo administrativo kachin no Estado Hsenwi do Norte. Dados desse tipo no podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema etnogrfico que, em termos lingsticos, situa kachins e chans em categorias raciais diferentes. O problema, contudo, no simplesmente o de distinguir entre kachins e chans; h tambm a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura

2,

Harvey & Barton (1930), p. 81.66

INTRO D U O

discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategorias so principalmente lingsticas, como quando se distinguem os kachins que falam jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs etc.; outras so sobretudo territoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da Birmnia, ou os hkahkus da regio do Alto Mali Hka (Tringulo) dos gauris, a leste de Bhamo. Porm a tendncia geral tem sido minimizar a importncia dessas distines e dizer que o essencial da cultura kachin uniforme em toda a Regio das Colinas de Kachin3. Livros com ttulos como The Kachin Tribes ofBurma; The Kachins, their Religion and Mythology; The Kachins, their Customs and Traditions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma4 referemse por implicao a todos os kachins onde quer que sejam encontrados, isto , a uma populao de cerca de 300 mil pessoas escassamente espalhadas por uma regio de uns 130 mil quilmetros quadrados*. No faz parte de meu problema imediato discutir at que ponto semelhantes generalizaes sobre a uniformidade da cultura kachin so efetivamente justific veis; meu interesse reside antes no problema de saber at que ponto se pode afirmar que um nico tipo de estrutura social prevalece ao longo da regio kachin. legtimo pensar que a sociedade kachin organizada em toda parte segundo um conjunto particular de princpios, ou ser que essa categoria bastante vaga de kachin inclui muitas formas diferentes de organizao social? Antes de tentar investigar essa questo, devemos primeiro deixar claro o que se entende por continuidade e por mudana com respeito aos sistemas sociais. Sob que circunstncias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A e B que essas duas sociedades tm estruturas sociais fundamentalmente distintas", enquanto entre duas outras sociedades C e D podemos afirmar que nessas duas sociedades a estrutura social essencialmente a mesma? No restante deste captulo de abertura meu objetivo ser explicar o ponto de vista terico a partir do qual abordo essa questo basilar. A tese, em suma, a seguinte. Os antroplogos sociais que, na esteira de Radcliffe-Brown, usam o conceito de estrutura social como uma categoria por meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupem na verdade que as sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilbrio estvel. Ser, ento, possvel descrever, por meio de categorias sociolgicas comuns, sociedades que presumivelmente no esto em equilbrio estvel?

3. 4. 5.

P of exem plo, Hanson (1913), p. 13. Carrapiett (1929); Gilhodes (1922); Hanson (1913); Wehrli (1904). Cf. apndice 5.

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Minha concluso que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente modelos de sistemas de equilbrio, as sociedades reais no podem jamais estar em equilbrio. A discrepncia est ligada ao fato de que, quando estruturas sociais se expressam sob forma cultural, a representao imprecisa em comparao com a fornecida pelas categorias exatas que o socilogo, qua cientista, gostaria de empregar. Digo que essas inconsistncias na lgica da expresso ritual so sempre necessrias para o bom funcionamento de qualquer sistema social. A maior parte de meu livro um desenvolvimento desse tema. Sustento que essa estrutura social em situaes prticas (em contraste com o modeo abstrato do socilogo) consiste num conjunto de idias sobre a distribuio de poder entre pessoas e grupos de pessoas. Os indivduos podem nutrir, e nutrem, idias contra ditrias e incongruentes sobre esse sistema. So capazes de faz-lo sem embarao por causa da forma em que suas idias so expressas. A forma a forma cultural; a expresso a expresso ritual. A ltima parte deste captulo introdutrio uma elaborao desta portentosa observao. Antes, porm, voltemos estrutura social e s unidades sociais.

Estrutura Social Num certo nvel de abstrao podemos discutir a estrutura social simples mente em termos dos princpios de organizao que unem as partes componentes do sistema. Nesse nvel, a forma da estrutura pode ser considerada de maneira totalmente independente do contedo cultural6. Um conhecimento da forma de sociedade entre os caadores gilyaks da Sibria Oriental7 e entre os pastores nucrs do Sudo* me ajuda a entender a forma da sociedade kachin, a despeito do fato de estes ltimos serem, em sua maioria, agricultores itinerantes que habitam a densa floresta de mono das chuvas. Nesse nvel de abstrao, no difcil distinguir um modelo formal de outro. As estruturas que o antroplogo descreve so modelos que existem apenas em sua prpria mente na forma de construes lgicas. Muito mais difcil relacionar tal abstrao com os dados do trabalho emprico de campo. Como podemos ter realmente certeza de que um modelo formal particular se ajusta aos fatos melhor do que qualquer outro modelo possvel?

6. 7. S.

a . Fortes (1949), pp. 54-60. Lvi-Slrauss (1949), captulo XVIII. Evans-Pritchard (1940).

at.

-

sM

INTRO DU O

As sociedades reais existem no tempo e no espao. A situao demogrfica, ecolgica, econmica e de poltica externa no se estruturam num ambiente fixo, mas num ambiente em constante mudana. Toda sociedade real um processo no tempo. As mudanas que resultam desse processo podem ser discutidas sob dois ngulos9. Primeiro, existem as que so coerentes com uma continuidade da ordem formal existente. Por exemplo, quando um chefe morre e substitudo por seu filho, ou quando uma linhagem se segmenta e temos duas linhagens onde anteriormente havia apenas uma, as mudanas so parte do processo de continuidade. No h mudana na estrutura formal. Segundo, existem mudanas que de fato refletem modificaes na estrutura formal. Se, por exemplo, se puder demonstrar que numa localidade particular, durante certo lapso de tempo, um sistema poltico composto de segmentos de linhagem igualitrios substitudo por uma hierarquia ordenada de tipo feudal, podemos falar de uma mudana na estrutura social formal. Quando, neste livro, eu falo de mudanas da estrutura social, sempre me estou referindo a mudanas deste ltimo tipo.

Unidades Sociais No contexto da Regio das Colinas de Kachin, o conceito de uma sociedade apresenta muitas dificuldades que se tornaro cada vez mais evidentes no curso dos prximos captulos. Por ora vou seguir a recomendao insatisfatria de Radcliffe-Brown e interpretar uma sociedade como se significasse alguma localidade conveniente10. Alternativamente, aceito os argumentos de Nadei. Por uma sociedade entendo realmente qualquer unidade poltica autnoma11. As unidades polticas na Regio das Colinas de Kachin variam grandemente de tamanho e parecem ser intrinsecamente instveis. Num extremo da escala pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro famlias que reivindicam firme mente o seu direito de ser considerada uma unidade plenamente autnoma. No outro extremo temos o Estado Chan de Hsenwi, que, antes de 1885, continha 49 subestados (mng), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numerosas outras variedades de sociedade. Esses vrios tipos de sistemas polticos diferem uns

9. Cf. Fortes, op. cit., pp. 54-55. 10. Radcliffe-Brown (1940). 11. Cf. Nadei (1951), p. 187.

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dos outros no s em escala mas tambm nos princpios formais luz dos quais so organizados. aqui que reside o ponto fundamental do nosso problema. Para certas partes da Regio das Colinas de Kachin os registros histricos genunos remontam ao comeo do sculo XIX. Isso mostra claramente que durante os ltimos 130 anos a organizao poltica da regio foi muito instvel. Pequenas unidades polticas autnomas tenderam freqentemente a agregar-se em sistemas maiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno res. Houve mudanas violentas e muito rpidas na distribuio global do poder poltico. E portanto metodologicamente errneo tratar como tipos independentes as diferentes variedades de sistemas polticos que encontramos hoje nessa regio; deveriam ser consideradas claramente como parte de um sistema total mais amplo em contnua mudana. Mas a essncia de minha tese que o processo pelo qual as pequenas unidades se desenvolvem em unidades maiores e as grandes unidades se fragmentam em menores no uma simples parte do processo de continuidade estrutural; no e apenas um processo de segmentao e agregao, um processo que envolve mudana estrutural. o mecanismo desse processo de mudana que nos interessa em particular. No h dvida de que tanto o estudo quanto a descrio da mudana social em contextos antropolgicos comuns apresenta grandes dificuldades. Os estudos de campo so de curta durao, os registros histricos raramente contm dados do tipo correto em pormenores adequados. Em verdade, embora os antroplogos tenham declarado amide um interesse especial pelo assunto, sua discusso terica dos problemas da mudana social tem merecido at agora poucos aplausos12. Mesmo assim, parece-me que pelo menos algumas das dificuldades s surgem como um produto secundrio dos prprios falsos pressupostos do antrop logo acerca da natureza desses dados. Os antroplogos sociais ingleses tenderam a extrair seus conceitos bsicos muito mais de Durkheim do que de Pareto ou de Max Weber. Em conseqncia, esto fortemente predispostos em favor de sociedades que apresentam sintomas de integrao funcional, solidariedade social, uniformidade cultural, equil brio estrutural. Essas sociedades, que os historiadores ou cientistas polticos bem poderiam considerar como moribundas, costumam ser vistas pelos antroplogos como ricas e idealmente afortunadas. As sociedades que exibem sintomas de faccionarismo e conflito interno que conduzem a rpida mudana so, por outro lado, suspeitas de anomia e de decadncia patolgica13.

12. Por exem plo, Malinowski (1945); G. & M. W ilson (1945); Herskovits (1949). 13. Homans (1951), pp. 336 e s.

INTRODUO

Essa predisposio a favorecer as interpretaes do equilbrio decorre da natureza dos materiais do antroplogo e das condies sob as quais ele executa o seu trabalho. O antroplogo social normalmente estuda a populao de um local particular num determinado ponto do tempo e no est muito preocupado com a probabilidade de ser ou no a mesma localidade estudada de novo por outros antroplogos numa data posterior. Desse modo, temos estudos da sociedade trobriand, da sociedade tikopia, da sociedade nuer, mas no da sociedade trobriand de 1914, da sociedade tikopia de 1929, da sociedade nuer de 1935. Quando as sociedades antropolgicas so assim dissociadas do tempo e do espao, a interpretao que dada ao material necessariamente uma anlise de equilbrio, pois, se assim no fosse, decerto pareceria ao leitor que a anlise era incompleta. Mais do que isso, porm: como na maioria dos casos o trabalho de investigao foi realizado definitivamente sem qualquer noo de repetio, a apresentao de equilbrio estvel, os autores escrevem como se os trobrianders, os tikopias, os nuers fossem o que so, agora e para todo o sempre. Com efeito, a confuso entre os conceitos de equilbrio e de estabilidade est to profundamente arraigada na literatura antropolgica que o uso de qualquer desses termos est sujeito a ambi gidade. Eles no so, claro est, a mesma coisa. Minha posio pessoal a que segue.

Sistemas de M odelo Quando o antroplogo tenta descrever um sistema social, ele descreve neces sariamente apenas um modelo da realidade social. Esse modelo representa, com efeito, a hiptese do antroplogo sobre o modo como o sistema social opera. As diferentes partes do sistema de modelo formam, portanto, necessariamente, um todo coerente - um sistema em equilbrio. Isso porm no implica que a realidade social forma um todo coerente; ao contrrio, a situao real na maioria dos casos cheia de incongruncias; e so precisamente essas incongruncias que nos podem propiciar uma compreenso dos processos de mudana social. Em situaes como as que encontramos na Regio das Colinas de Kachin, podemos considerar que qualquer indivduo particular detm uma condio social em sistemas sociais diferentes ao mesmo tempo. Para o prprio indivduo, tais sistemas apresentam-se como alternativas ou incongruncias no esquema de valo res pelo qual ele ordena sua vida. O processo global de mudana estrutural realiza-se por meio da manipulao dessas alternativas como forma de progresso social. Todo indivduo de uma sociedade, cada qual em seu prprio interesse, se71

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empenha em explorar a situao medida que a percebe e, ao faz-lo, a coletividade de indivduos altera a estrutura da prpria sociedade. Essa idia um tanto complicada receber freqente ilustrao nas pginas seguintes, mas o argumento pode ser ilustrado por um simples exemplo. Em matria poltica, os kachins tm diante de si dois modos ideais de vida totalmente contraditrios. Um deles o sistema chan de governo, que se assemelha a uma hierarquia feudal. O outro aquele que denomino neste livro organizao de tipo gumlao-, um sistema essencialmente anarquista e igualitrio. No raro encontrar um kachin ambicioso que assuma os nomes e os ttulos de um prncipe chan a fim de justificar sua pretenso aristocracia, mas que apela simultaneamente a princpios gumlao de igualdade a fim de fugir obrigao de pagar direitos feudais ao seu prprio chefe tradicional. E assim como os indivduos kachins se vem freqentemente diante de uma escolha quanto ao que moralmente correto, da mesma forma pode-se dizer que ao conjunto das comunidades kachin se oferece uma escolha quanto ao tipo de sistema poltico que ser o seu ideal. Em suma, minha tese que em termos de organizao poltica as comunidades kachins oscilam entre dois tipos polares democracia gumlao, de um lado, e autocracia chan, de outro. A maioria das autnticas comunidades kachins no so nem do tipo gumlao nem do tipo chan, mas esto organizadas segundo um sistema descrito neste livro como gumsau, que , com efeito, uma espcie de compromisso entre o ideal gumlao e o chan. Num captulo posterior descrevo o sistema gumsa como se fosse um terceiro modelo esttico entre o modelo gumlao e o chan, mas naturalmente o leitor precisa compreender que as comunidades gumsa no so estticas. Algumas, sob a influn cia de circunstncias econmicas favorveis, tendem cada vez mais para o modelo chan, at que no final os aristocratas kachins sentem que se tornaram chans (sam tai sai), como no caso do ancio de Mng Hko, que encontramos na pgina 66; outras comunidades gumsa movem-se na direo oposta e tornam-se gumlao. A organizao social kachin, tal como descrita nos relatos etnogrficos existentes, sempre o sistema gumsa-, mas minha tese que esse sistema considerado em si mesmo realmente incompreensvel, pois est cheio de contradies inerentes. Apenas enquanto esquema de modelo ele pode ser representado como um sistema de equilbrio15, embora Lvi-Strauss tenha percebido que a estrutura assim repre sentada contm elementos que esto en contradiction avec le systme, et doit donc14. Salvo quando declarado em contrrio, Iodas as palavras nativas usadas neste livro so palavras da lngua jinghpaw pronunciadas de acordo com o sistema de romanizao criado por Hanson; cf. Hanson (1906). 15. Leach (1952), pp. 40-45.

INTRO DU O

entrainer sa ruine16. No campo da realidade social, as estruturas polticas gumsa so essencialmente instveis, e sustento que elas s se tomam plenamente inteli gveis em termos do contraste apresentado pelos tipos polares de organizao gumlao e chan. Outra maneira de estudar os fenmenos de mudana estrutural consiste em dizer que estamos interessados nas mudanas sobrevindas no foco do poder poltico dentro de um dado sistema. A descrio estrutural de um sistema social fornece-nos um modelo ideali zado que declara as relaes de status corretas existentes entre grupos dentro do sistema total e entre as pessoas sociais que compem grupos particulares17. A posio de qualquer pessoa social em tal sistema de modelo necessariamente fixa, conquanto se possa pensar que os indivduos preenchem diferentes posies no desempenho de diferentes tipos de ocupao e em diferentes estgios de sua carreira. Quando nos referimos a mudana estrutural, temos de considerar no apenas as mudanas na posio dos indivduos com respeito a um sistema ideal de relacionamentos de status, mas tambm as mudanas no prprio sistema ideal: ou seja, mudanas na estrutura de poder. O poder em qualquer sistema deve ser pensado como um atributo de deten tores de cargo, isto , de pessoas sociais que ocupam posies s quais o poder est ligado. Os indivduos exercem poder somente em sua capacidade de pessoas sociais. Como regra geral, creio que nunca se justifica que o antroplogo social interprete a ao como sendo inambiguamente orientada para algum fim particular. Por essa razo nunca me contento com os argumentos racionalistas referentes s necessidades e metas como os aventados por Malinowski e por Talcott Parsons1 , mas considero necessrio e justificvel supor que um desejo consciente ou 8 inconsciente de adquirir poder um motivo muito geral nas questes humanas. Por isso, suponho que os indivduos que se defrontam com uma escolha de ao iro geralmente usar tal escolha para adquirir poder, vale dizer, procuraro o reconhe cimento como pessoas sociais que tm poder; ou, para me servir de uma linguagem diferente, eles procuraro ter acesso ao cargo ou ao apreo de seus companheiros que pode lev-los ao cargo. O apreo um produto cultural. O que admirado em uma sociedade pode ser deplorado em outra. A peculiaridade do tipo de situao nas Colinas de Kachin

16. ...em contradio com o sistema, e deve acarretar a sua runa. Lvi-Strauss (1949), p. 325. 17. Para esse uso da expresso pessoa social, cf. especialmente Radcliffe-Brown (1940), p. 5. 18. Malinowski (1944); Parsons (1949); Parsons & Shils (1951), Parte II.

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que um indivduo pode pertencer a mais de um sistema de apreo, e que esses sistemas podem no ser coerentes. A ao que meritria segundo as idias chans pode ser tachada de humilhante no cdigo gumlao. Portanto, raramente clara a melhor maneira de um indivduo adquirir apreo em qualquer situao particular. Isso parece difcil, porm o leitor no precisa imaginar que tal incerteza seja de qualquer modo incomum; em nossa prpria sociedade a ao eticamente correta para um homem de negcios cristo quase sempre igualmente ambgua.

Ritual Para elaborar esta argumentao devo primeiramente explicar como uso o conceito de ritual. O ritual, digo eu, serve para expressar o status do indivduo enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporaria mente. Obviamente, a importncia de semelhante aforismo depender do sentido que se deve atribuir palavra ritual. Os antroplogos sociais ingleses, em sua maioria, seguiram Durkheim ao dividir as aes sociais em duas grandes classes - a saber, ritos religiosos que so sagrados e atos tcnicos que so profanos. Das muitas dificuldades que resultam dessa posio, uma das mais importantes diz respeito definio e classificao de magia. Haver uma classe especial de aes que se podem descrever como atos mgicos e, se houver, pertencero categoria sagrada ou categoria profana, estaro mais ligadas natureza e funo dos atos religiosos ou s dos atos tcnicos? Vrias respostas foram dadas a essa pergunta. Malinowski, por exemplo, situa a magia no terreno do sagrado19; Mauss parece consider-la profana20. Mas, independentemente de a principal dicotomia estar situada entre o mgico-religioso (sagrado) e o tcnico (profano), ou entre o religioso (sagrado) e o mgico-tcnico (profano), permanece o pressuposto de que situaes de algum modo sagradas e profanas so distintas como totalidades. Ritual pois uma palavra usada para descrever as aes sociais que ocorrem em situaes sagradas. Uso a palavra de modo diferente deste. Do ponto de vista do observador, as aes afiguram-se meios para atingir fins, e perfeitamente exeqvel seguir a recomendao de Malinowski e classifi car as aes sociais no tocante a seus fins - isto , as necessidades bsicas que

19. M alinowski (1948), p. 67. 20. Mauss (1947), p. 207.

IN TRO D U O

parecem satisfazer. Mas os fatos que se revelam desse modo so fatos tcnicos; a anlise no fornece nenhum critrio para distinguir as peculiaridades de alguma cultura ou de alguma sociedade. Pouqussimas aes, com efeito, tm essa forma elementar funcionalmente definida. Por exemplo, se se deseja cultivar arroz, certamente essencial e funcionalmente necessrio limpar um pedao de cho e jogar sementes nele. E sem dvida as perspectivas de uma boa colheita melhoraro se o terreno for cercado e as ervas daninhas forem capinadas de quando em quando. Os kachins fazem todas essas coisas e, na medida em que o fazem, esto executando simples atos tcnicos de um tipo funcional. Essas aes servem para atender a necessidades bsicas. Mas h muito mais do que isso. No procedimento costu meiro dos kachins, as rotinas de limpar o terreno, plantar as sementes, cercar o pedao de terra e capinar as ervas daninhas so todas padronizadas de acordo com as convenes formais e entremeadas com todos os tipos de adornos e ornatos tecnicamente suprfluos. So esses adornos e ornatos que tornam o desempenho um desempenho kachin, e no um mero ato funcional. E o mesmo sucede com todo tipo de ao tcnica; h sempre o elemento que funcionalmente essencial, e outro elemento que apenas o costume local, um adorno esttico. Tais adornos estticos, Malinowski os chama de costume neutro21, e nesse esquema de anlise funcional so tratados como irrelevncias menores. Parece-me, contudo, que so precisamen te esses adornos costumeiros que fornecem ao antroplogo social seus dados bsicos. Logicamente, esttica e tica so idnticas22. Se quisermos entender as normas ticas de uma sociedade, a esttica que devemos estudar. Na origem, os pormenores do costume podem ser um acidente histrico; mas para os indivduos que vivem numa sociedade tais pormenores nunca podem ser irrelevantes, so parte do sistema total de comunicao interpessoal dentro do grupo. So aes simbli cas, representaes. tarefa do antroplogo tentar descobrir e traduzir para seu prprio jargo tcnico aquilo que est simbolizado ou representado. Tudo isso, claro, est muito prximo de Durkheim. Mas Durkheim e seus discpulos parecem ter acreditado que as representaes coletivas estavam confi nadas esfera do sagrado, e desde que afirmam que a dicotomia entre o sagrado e o profano era universal e absoluta, inferia-se que s eram especificamente sagrados os smbolos que o antroplogo submetia anlise. Quanto a mim, acho injustificvel a nfase que Durkheim coloca na dicoto mia absoluta entre o sagrado e o profano23. Parece, antes, que as aes acontecem

21. Malinowski, in Hogbin (1934), p. xxvi. 22. Wittgenstein (1922), 6.421. 23. Durkheim (1925), p. 53.

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numa escala contnua. Num extremo temos as aes que so inteiramente profanas, inteiramente funcionais, pura e simples tcnica; no outro, temos as aes que so inteiramente sagradas, estritamente estticas, tecnicamente no-funcionais. Entre esses dois extremos temos a grande maioria das aes sociais que participam em parte de uma das esferas e em parte da outra. Desse ponto de vista, tcnica e ritual, profano e sagrado no denotam tipos de ao, mas aspectos de virtualmente qualquer tipo de ao. A tcnica tem conseqncias materiais econmicas que so mensurveis e predizveis; o ritual, por outro lado, uma declarao simblica que diz alguma coisa sobre os indivduos envolvidos na ao. Assim, de certos pontos de vista pode-se dizer que um sacrifcio religioso kachin um ato puramente tcnico e econmico. um procedimento para matar gado e distribuir a carne, e acho que talvez haja pouca dvida de que para a maioria dos kachins isso parece ser o aspecto mais importante da questo. Um natgalaw (executar um nat, sacrifcio) quase sinnimo de uma boa festa. Mas do ponto de vista do observador h muita coisa que ocorre num sacrifcio que absolutamente irrelevante no que concerne a matadouro, a cozi mento e a distribuio de carne. So esses outros aspectos que tm significado como smbolos de status social, e so esses outros aspectos que descrevo como rituais quer envolvam ou no diretamente qualquer conceituao do sobrenatural ou do metafsico24. O mito, em minha terminologia, a contrapartida do ritual; mito implica ritual, ritual implica mito, ambos so uma s e a mesma coisa. Essa posio ligeiramente diferente das teorias de Jane Harrison, de Durkheim e de Malinowski. A doutrina clssica na antropologia social inglesa que mito e ritual so entidades conceitualmente distintas que perpetuam uma outra mediante uma interdepen dncia funcional - o rito uma dramatizao do mito, o mito a sano ou a justificativa do rito. Esse enfoque do material torna possvel discutir os mitos isoladamente como constituindo um sistema de crenas, e de fato uma parte muito grande da literatura antropolgica sobre religio diz respeito quase totalmente discusso do contedo da crena e da racionalidade ou no desse contedo. Mas tais argumentos parecem-me um contra-senso escolstico. A meu ver, o mito encarado como uma afirmao em palavras diz a mesma coisa que o ritual encarado como uma afirmao em ao. Indagar sobre o contedo da crena que no est contido no contedo do ritual um contra-senso. Se eu desenhar um diagrama grosseiro de um automvel no quadro-negro e escrever embaixo isto um carro, ambas as declaraes - o desenho e o escrito

24. Cf. a distino feita por Merton (1951) entre funo manifesta e funo latente.

IUTRODVO

- dizem a mesma coisa - nenhuma diz mais do que a outra, e seria claramente um contra-senso perguntar: "0 carro Ford ou Cadillac? De igual modo, pareceme que, se eu vir um kachin matando um porco e lhe perguntar 0 que est fazendo e ele disser nat jaw nngai - Estou dando-o aos nats" esta afirmao 6 apenas uma descrio do que ele est fazendo. um contra-senso fazer perguntas como: Os nats tm pernas? Eles comem carne? Eles vivem no cu? Em algumas partes deste livro farei freqentes referncias mitologia kachin, mas no farei nenhuma tentativa de encontrar qualquer coerncia lgica nos mitos a que me refiro. Os mitos, para mim, so apenas um modo de descrever certos tipos de comportamento humano; o jargo do antroplogo e o uso que ele faz dos modelos estruturais so outras tantas maneiras de descrever os mesmos tipos de comportamento humano. Na anlise sociolgica nunca podemos ter uma autono mia absoluta. Por abstrata que seja a minha representao, minha preocupao sempre com o mundo material do comportamento humano observvel, nunca com a metafsica ou com sistemas de idias que tais.

Interpretao Em suma, portanto, minha opinio aqui que ao ritual e crena devem ser entendidas como formas de afirmao simblica sobre a ordem social. Embora eu no afirme que os antroplogos esto sempre em condies de interpretar esse simbolismo, digo entretanto que a principal tarefa da antropologia social tentar tal interpretao25. Devo admitir aqui um pressuposto psicolgico bsico. Suponho que todos os seres humanos, qualquer que seja a sua cultura e o seu grau de complexidade mental, tendem a construir smbolos e a fazer associaes mentais do mesmo tipo geral. Isso uma suposio muito ampla, se bem que todos os antroplogos a faam. A situao importa nisto: suponho que com pacincia eu, um ingls, posso aprender a falar qualquer outra lngua verbal - por exemplo, kachin. Alem disso, suponho que ento serei capaz de dar uma traduo aproximada em ingls de qualquer afirmao verbal comum feita por um kachin. Quando se trata de afirma es que, embora verbais, so inteiramente simblicas - como, por exemplo, na poesia a traduo toma-se muito difcil, visto que uma traduo literal, palavra , por palavra, provavelmente no traz quaisquer associaes para o leitor ingls

25. O conceito de tid o s, tal com o foi desenvolvido por Batcson (1936), lem relevncia para essa parte de minha argumentao.

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comum; suponho todavia que posso, com pacincia, chegar a compreender apro ximadamente at mesmo a poesia de uma cultura estrangeira e que posso ento comunicar a outros essa compreenso. Da mesma maneira, suponho que posso dar uma interpretao aproximada mesmo de aes simblicas no-verbais, como itens do ritual. difcil justificar completamente esse tipo de suposio, mas sem ele todas as atividades dos antroplogos tornam-se sem sentido. Desse ponto de vista posso voltar ao problema que levantei no comeo deste captulo, isto , a relao entre uma estrutura social considerada como modelo abstrato de uma sociedade ideal e a estrutura social de qualquer sociedade emprica concreta. Estou afirmando que onde quer que eu encontre um ritual (no sentido em que o defini) posso, como antroplogo, interpret-lo. O ritual em seu contexto cultural um modelo de smbolos; as palavras com que o interpreto so outro modelo de smbolos composto largamente de termos tcnicos inventados por antroplogos - palavras como linhagem, classe, status etc. Os dois sistemas de smbolo tm algo em comum, a saber, uma estrutura comum. De igual modo, uma partitura musical e sua execuo tm uma estrutura comum26. Isso o que estou querendo dizer quando afirmo que o ritual torna explcita a estrutura social. A estrutura que simbolizada no ritual o sistema das relaes corretas socialmente aprovadas entre indivduos e grupos. Essas relaes no so formal mente reconhecidas em todos os tempos. Quando os homens esto envolvidos em atividades prticas para satisfazer o que Malinowski denomina as necessidades bsicas, as implicaes das relaes estruturais podem ser totalmente desprezadas; nm chefe kachin trabalha em seu campo lado a lado com o menor dos seus servos. Na verdade, estou preparado para afirmar que o desprezo da estrutura formal essencial para o prosseguimento das atividades sociais informais ordinrias. No entanto, se quisermos evitar a anarquia, os indivduos que compem uma sociedade devem de tempos em tempos ser lembrados, pelo menos em smbolo, da ordem bsica que presumivelmente guia suas atividades sociais. Os desempenhos rituais tm essa funo para o grupo participante como um todo27; eles tornam momentaneamente explcito aquilo que de outro modo fico.

26. Russell (1948), p. 479. 27. Pata o indivduo, a participao num ritual pode tambm ter outras funes - por exem plo, uma funao psicolgica catrtica mas isso, a meu ver, est fora do mbito do antroplogo social.

in t k o d v A o

Estrutura Social e Cultura Minha opinio quanto ao tipo de relao que existe entre estrutura social e cultura58 uma decorrncia imediata disso. A cultura proporciona a forma, a roupagem da situao social. Para mim, a situao cultural um fator dado, um produto e um acidente da histria. No sei por que as mulheres kachins antes de se casarem andam com a cabea descoberta e o cabelo cortado curto, mas usam um turbante depois, tanto quanto no sei por que as mulheres inglesas pem um anel num dedo particular para denotar a mesma mudana de status social; tudo o que me interessa que nesse contexto kachin o uso de um turbante por uma mulher tem esse significado simblico. uma afirmao sobre o status da mulher. Porm a estrutura da situao largamente independente da sua forma cultural. O mesmo tipo de relao estrutural pode existir em muitas culturas diferentes e ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. No exemplo que acabamos de dar, o casamento um relao estrutural que comum tanto sociedade inglesa quanto kachin; simbolizado por um anel em uma e por um turbante na outra. Isso significa que um nico e mesmo elemento da estrutura social pode aparecer com uma roupagem cultural na localidade A e outra roupagem cultural na localidade B. Mas A e B podem ser lugares adjacentes no mapa. Em outras palavras, no existe razo intrnseca pela qual as fronteiras significativas dos sistemas sociais devam sempre coincidir com as fronteiras culturais. Admito que as diferenas de cultura so estruturalmente significativas, mas o mero fato de dois grupos de pessoas serem de cultura diferente no implica necessariamente - como quase sempre se sups - que pertenam a dois sistemas sociais totalmente diferentes. Nesse livro pressuponho o contrrio. Em qualquer regio geogrfica que carea de fronteiras naturais bsicas, provvel que os seres humanos das regies adjacentes do mapa tenham relaes uns com os outros - pelo menos at certo ponto no importa quais possam ser

28. Como este livro pode ser lido tanlo por antroplogos americanos com o ingleses, devo advertir que o termo cultura, tal com o o uso, no aquela categoria abrangente que constitui o tema da antropologia cultura] americana. Sou um antroplogo social e estou interessado na estrutura social da sociedade kachin. Para mim, os conceitos de cultura e sociedade so absolutamente distintos. Se se considera a sociedade com o um agregado de relaes sociais, enlSo a cultura o contendo dessas relaes, A sociedade encarece o componente humano, o agregado de pessoas e as relaes entre elas. A cultura enfatiza o componente dos recursos acumulados, (anto imaterial com o material, que as pessoas herdam, empregam, Iransmutam, aumentam e transmitem (Firth, 1951, p. 27). Para o uso algo diferente do termo cultura corrente entre os antroplogos americanos, ver Kroeber (1952) e Kroeber & Kluckhohn (1952).

S IS T E M A S P O L T IC O S D A A L T A B IR M N IA

seus atributos culturais. Na medida em que essas relaes so ordenadas e no totalmente fortuitas, h implcita nelas uma estrutura social. Mas - pode-se per guntar - se as estruturas sociais so expressas em sm bolos culturais com o se podem expressar as relaes culturais entre grupos de cultura diferente? Minha resposta que a manuteno da diferena cultural e a insistncia nessa diferena podem por si mesmas tomar a ao ritual expressiva das relaes sociais. Na regio geogrfica discutida neste livro, as variaes culturais entre um grupo e outro so muito numerosas e muito acentuadas. Mas as pessoas que falam uma lngua diferente, usam roupa diferente, adoram divindades diferentes etc. no so vistas com o estrangeiros inteiramente, fora do mbito do reconhecimento social. Os kachins e os chans so mutuamente arrogantes uns com os outros, mas presume-se que os kachins e os chans tm, apesar de tudo, um antepassado comum. N esse contexto, atributos culturais como lngua, roupa e procedimento ritual so m eros rtulos sim blicos que denotam os diferentes setores de um sistema estru tural nico e extenso. Para os meus propsitos, o que tem significado real o modelo estrutural bsico, e no o m odelo cultural manifesto. Estou interessado no tanto na interpre tao estrutural de uma cultura particular, mas no modo com o as estruturas particulares podem admitir vrias interpretaes culturais e no modo com o estru turas diferentes podem ser representadas pelo m esm o conjunto de sm bolos cultu rais. A o tratar desse tema, procuro demonstrar um mecanismo bsico da mudana social.

AS CATEGORIAS CHAN E KACHIN E SU A S SU BDIV IS ES

Deve ter ficado evidente, pelo que foi dito, que um requisito bsico para a compreenso da tese deste livro que o leitor seja capaz de conceituar para si mesmo exatamente o que se entende por categoria kachin e chan e suas vrias subdivises, e tambm pelas subcategorias contrastantes kachin gumsa e kachin gumlao. O presente captulo uma tentativa de tornar claras essas distines no plano muito superficial da etnografia descritiva; somente mais tarde patentear-se- at onde se podem distinguir as categorias no nvel da estrutura social,

Chan Examinemos em primeiro lugar a categoria chan. A palavra nessa forma deriva do birmans. Os termos geogrficos Assam e Sio so vocbulos correlatos. O equivalente kachin (jinghpaw) do birmans chan sam. Os birmaneses aplicam o termo chan, de maneira bastante coerente, a todos os habitantes da Birmnia poltica e da regio fronteiria entre Birmnia e Yun-nan que se autodenominam Tais. No oeste e no sudeste da Birmnia isso envolve certa ambigidade, uma vez que os birmaneses distinguem os chans dos siameses, embora ambos os grupos se autode nominem tais. Mas para o noroeste da Birmnia a definio suficientemente clara. Os chans, assim definidos, encontram-se territorialmente dispersos, mas tm uma cultura razoavelmente uniforme. As variaes dialetais entre diferentes loca

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lidades so considerveis, mas ainda assim, parte umas poucas excees espe ciais, pode-se dizer que todos os chans da Birmnia do Norte e do Yun-nan Ocidental falam uma mesma lngua, a saber, o tai. As excees so os chans de Mng Hsa (os maingthas ou achangs), que falam o que parece ser um dialeto do maru; os chans do vale do Kubaw, que falam atualmente uma corruptela do birmans; e pequenos bolses heterogneos de chans nas regies do alto Chindwin e do vale do Hukawng, cuja lngua atual parece ser principalmente o jinghpaw, com forte mistura do tai e do assams. A maior parte da populao conhecida pelo nome de kadu parece entrar nessa categoria1. H tambm um pequeno grupo de pessoas que habitam o Irrawaddy, perto de Sinbo, que vivem como chans mas falam uma lngua chamada hpon, mais ou menos intermediria entre o maru e o birmans. Segundo parece, a maioria dos derradeiros falantes do hpon - existem apenas algumas centenas deles - consideram-se tais. Um critrio mais importante de identidade de grupo que todos os chans so budistas2. verdade que a maioria no muito devota, e o budismo chan inclui vrias seitas decididamente herticas, mas ser budista simbolicamente importante como ndice da complexidade chan. Quando, como sucede com no pouca freqn cia, um kachin se torna um chan (sam tai), a adoo do budismo uma parte decisiva do processo. O indivduo que na Birmnia atual (1951) recebe o ttulo oficial de Chefe do Estado de Kachin um budista-kachin-e-chan desse gnero. Um segundo critrio geral que todos os povoados chans esto associados cultura do arroz irrigado. Podemos aqui combinar o conceito chan com os dados citados no captulo 2. A Birmnia do Norte uma regio de colinas e montanhas. Os chans esto espalhados por essa regio, mas no aleatoriamente. Os povoados chans ocorrem somente ao longo dos vales dos rios ou em bolses de territrio plano nas colinas. Esses povoados esto sempre associados s terras de arroz irrigado. H portanto uma grosseira equivalncia entre cultura e sofisticao. Nessa regio, a prosperidade que provm das plancies onde se cultiva o arroz irrigado subentende o budismo, que por sua vez subentende a vinculao a um Estado feudal chan. As nicas excees a essa generalizao encontram-se mais ou menos fora da regio que estamos estudando. Os palaungs no derivam sua prosperidade econmica do arroz irrigado, mas do cultivo do ch; so budistas e tm um sistema social do tipo chan, mas habitam as colinas3. Existem tambm alguns habitantes sofisticados nos Estados de Was, que se enriqueceram com os lucros decorrentes

1. 2. 3.

Ver tambm p. 108. Na Indochina h um grupo no budista conhecido com o tai negro, mas concentro-me aqui apenas nos chans da Regio das Colinas de Kachin. Milne (1924); Cameron (1911); Lowis (1906).

SISTEMAS POLTICOS DA ALTA BIRMNIA

da cultura da papoula. Ainda vivem nas montanhas, mas adotaram o budismo e so conhecidos pela designao de tais lois (isto , chans das colinas). A proposio inversa apenas aproximadamente verdadeira. No interior da Regio das Colinas de Kachin a maioria das comunidades (mas no todas) que dependem totalmente do cultivo do arroz irrigado so chans (ou birmaneses). As principais excees so as seguintes. A leste, na parte alta da bacia do rio Shweli, ao norte de Tengyueh, a populao que cultiva arroz, na sua maioria, fala o chins. Mais para o oeste, no vale do Hukawng, h regies de arroz irrigado em que os habitantes atuais se consideram mais kachins (jinghpaw) do que chans. Finalmen te, em Assam, na fronteira ocidental da regio, o campnio assams comum cultiva o arroz irrigado. Devo ainda acrescentar que nos distritos administrativos de Bhamo e de Myitkyina, na Birmnia, os primeiros Estados Chans j no existem como entidades polticas separadas. Nessas regies no se pode estabelecer uma distino clara entre os componentes chans e os birmaneses da populao que habita o vale. O cultivo de arroz pelos chans feito quase sempre em regies planas que permitem o uso de arados e grades puxados por bfalos. As comunidades chans esto muito ocasionalmente associadas aos sistemas de terraos de colina como os mencionados no captulo 2, mas a maioria dos sistemas de terraos de colina dessa regio so cultivados por kachins. Tentei indicar nos mapas 3 e 4 a distribuio aproximada de povoados chans, mas os bolses desses assentamentos so amide to pequenos que s um mapa em pequena escala poderia dar uma verdadeira indicao do quanto, geografica mente falando, os chans e os kachins esto misturados. Os birmaneses estabelecem uma distino entre os chans birmaneses (Shan B m ahy, os chans chineses (Shan Tayok) e os chans hkam tis. Grosso modo, os chans birmaneses compreendem os chans dos Estados Chans birmaneses, onde o budismo mais ou menos do tipo birmans e onde os prncipes (saohpa) h muito esto subordinados nominalmente ao rei birmans. Os chans chineses so os dos Estados Chans do Yun-nan, o mais importante dos quais se situa na regio ao sul de Tengyueh e a oeste do Salween. Muitos dos chans que ora residem na Birmnia, nos distritos de Bhamo e de Myitkyina, so imigrantes recentes do Yun-nan e so classificados pelos birmaneses como chans chineses. Os chans hkamtis so consi derados um subtipo dos chans birmaneses. Com base na histria, podemos defini-

4.

Aparentem ente, essa expresso usual somente nos distritos de Bhamo e de Myitkyina; ver Bennison (1933), p. 189.96

Mapa 4. Distribuio da populao chan e kachin por volta de 1825 na poro norte da Regio das Colinas de Kachin.

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los como os chans que possivelmente estabeleceram uma certa aliana poltica com o antigo Estado Chan de Mogaung (Mng Kawng). At a metade do sculo XVIII os Estados Chans da Birmnia do Norte conservaram um grau significativo de independncia e demonstraram muito mais lealdade China que Birmnia. No ltimo quartel do sculo XVIII, no curso de uma srie de guerras algo irresolvidas entre a Birmnia e a China, os vrios principados chans da regio do alto Irrawaddy (Mogaung, Mohnyin, Waingmaw, Bhamo) parecem ter tomado o partido dos chineses; em conseqncia, sofreram uma destruio nas mos dos exrcitos birmaneses5. A partir do final do sculo XVIII no houve prncipes chans (saohpa) regulares nesses Estados. Estes eram tratados como dependncias feudais diretas da coroa birmanesa. Os rendimentos do departamento de myosa dependiam da merc do rei e o governante do Estado (myowun) era nomeado diretamente pelo castelo de Ava. Hkamti6parece ter sido originariamente um ttulo associado famlia real de Mogaung. Depois da eliminao de Mogaung como unidade poltica independente, continuou a servir para descrever aqueles principados chans que anteriormente haviam sido dependncias polticas de Mogaung num sentido feudal. Como esses Estados Hkamtis desempenharam um papel de relevo nos neg cios dos kachins, vale a pena enumer-los em detalhe.a . Hkamti Long (Grande Hkamti), hoje uma confederao de sete pequenos principados chans, situada perto das cabeceiras do Irrawaddy (Mali Hka). Embora a princpio tenha sido talvez colonizado diretamente desde a China, Hkamti Long parece ter sido uma dependncia de Mogaung nos sculos XVII e XVIII7. No mapa 2, Hkamti Long aparece com o nome de Putao; os principados componentes so mostrados no mapa 4. b. Chans do vale do Hukawng, sobretudo os de Maingkwan, Ningbyen e Taro. Esses chans so hoje, em sua maioria, dependentes politicamente dos kachins circunvizinhos. Diz-se que so os remanescentes de uma populao outrora muito mais numerosa em linhagens feudais8 (mapa 4). c. Singkaling Hkamti. Pequeno Estado chan no alto Chindwin. O grosso da populao local formado de kachins e de nagas. O elemento chan, inclusive a famlia governante, parece ter vindo de Ningbyen, no vale do Hukawng'* (mapas 3 e 4). d. Os Hkamti de Assam. Localizados a leste de Sadiya e tambm na margem do Dihing perto de Ledo (mapa 4). Os primeiros derivam de colonizadores vindos de Hkamti Long que entraram em Assam por volta de 1795. Os ltimos provm de vrios grupos de colonizadores

5. 6. 7. 8. 9.

Ver Imbault-Huart (1878), onde Meng Kong = Mogaung; Meng Yang = Mohnyin. Conhecem -se as variantes: Kanti, Kansi, Khampti, Khamti etc. Barnard (1925); MacGregor (1894). Kawlu Ma Nawng (1942), p. 41. Chan S tates and Karenni, pp. 75-76.

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chans que entraram em Assam, durante os sculos XVIII e XIX, procedentes do vale do Hukawng1 . Nos ltimos 120 anos os hkamtis de Assam sempre estiveram muito misturados 0 com os assameses, os mishmis, os nagas e os kachins (singphos)1 . 1 e. A regio das Minas de Jade, que foram um fator importante na queda dos prncipes do Mogaung no sculo XVIII, estiveram, pelo menos nos ltimos sessenta anos, sob o controle de uma linhagem de chefes kachins. Esses chefes, chamados embora de kachins pela administrao britnica, imitaram as maneiras dos chans e casaram-se nas famlias chans. Assumiram tambm o ttulo de Kansi (Kanti) duwa como herdeiros, segundo parece, do domnio chan original1 2 (mapa 2).

Por essa lista pode-se ver que existe uma confuso entre o uso do termo hkamti para denotar um grupo particular de povos de origem tnica supostamente comum e o uso do mesmo termo como o nome de um estado poltico. Essa ambigidade aplica-se tambm ao termo mais geral chan. Quase todos os Estados Chans da Regio das Colinas de Kachin incluem elementos de populao no-chan. Em muitos casos, os elementos no-chans so muito mais numerosos que os elementos chans. A capital poltica de um estado chan , em todos os casos, uma municipalidade localizada na vizinhana de terras de arroz irrigado, mas as depen dncias feudais de tal estado podem incluir no apenas outras comunidades de chans cultivadores de arroz irrigado, como tambm vrias aldeias de colina com uma populao no-chan e uma economia de taungya. Em alguns casos, a hierar quia poltica da resultante um tanto complexa. Por exemplo, antes de 1895, o atual Estado de Mng Wan, chan chins, inclua no s as aldeias chans do vale do Nam Wan como tambm numerosos povoados kachins que hoje esto no lado birmans da fronteira. Em sua maioria, os aldees chans da plancie de Nam Wan no pagavam seus impostos feudais diretamente aos saohpa de Mng Wan, mas a um ou outro de vrios chefes tribais kachins. Os chefes kachins, por seu turno, pagavam seus impostos aos saohpa de Mng Wan. Os aldees chans pagavam seus impostos com arroz, enquanto os chefes kachins pagavam os seus com plvora, arranjo economicamente muito satisfatrio para ambas as partes13. Uma referncia ao Chan States Gazeteeru mostra que em 1900 havia nume rosos exemplos similares nos quais os domnios polticos kachins estavam integra dos numa estrutura feudal chan mais ampla. A total separao poltica do territrio kashin e chan, que prevaleceu durante a ltima fase do regime britnico na

10. 11. 12. 13. 14.

Dalton (1872), p. 6. Ver, especialmente, Pemberton (1835); Mackenzie (1884); Michell (1883). Hertz (1912). R.N.E.F. (1899), p. 3. Scott & Hardiman (1900-1901).

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Birmnia, no era um fenmeno natural, mas fruto de uma ao administrativa por parte do poder superior. A distribuio esparsa da crescente populao cultivadora de arroz irrigado e budista, de lngua tai, foi objeto de freqentes comentrios e especulao pseudo-histrica. Parece que a teoria explicativa aventada mais comumente a de que os povos de lngua tibetano-birmanesa e os de lngua tai representam duas famlias tnicas diferentes. Atribui-se aos povos tibetano-birmaneses uma tendn cia geral a migrar do Norte para o Sul. Segundo essa teoria, a migrao para o Sul foi temporariamente interrompida entre os sculos VIII e XII d. C. por uma infiltrao em sentido oeste dos chans de lngua tai. Essa migrao dos chans para o Oeste corresponde expanso poltica do Imprio Chan de Nanchao, que tinha sua capital nas vizinhanas de Tali. Mais tarde, com o declnio do poderio poltico chan, supe-se que se tenha reencetado o movimento tibetano-birmans para o Sul. De acordo com essa teoria, os kachins de fala jinghpaw so os ltimos dos tibetano-birmaneses a chegarem do Norte; durante os sculos XVIII e XIX, supe-se que tenham devastado os chans, de modo que os chans da Birmnia do Norte de hoje so meros sobreviventes dessa invaso pag15. Essa complicada interpretao dos testemunhos desnecessria. Como Von Eickstedt reconheceu claramente16, a essncia da cultura chan (tai) a sua associa o com o cultivo do arroz irrigado. Na Regio das Colinas de Kachin, com rarssimas excees, onde quer que exista uma extenso de terreno adequado para o cultivo do arroz irrigado, ou encontramos chans ou no encontramos ningum. S excepcionalmente que deparamos com algum dos povos kachins domicilia dos nas plancies e nos vales. E, vice-versa, em localidades adequadas somente para o cultivo de taungya, ou encontramos kachins ou no encontramos ningum. A inferncia clara; improvvel que a distribuio dos povoados chans tenha sido alguma vez, em qualquer poca desde a difuso original da cultura chan, substancialmente diversa do que agora. Se, como bem possvel, houve anterior mente uma populao chan numericamente maior do que a atual, isso no implica que os chans estivessem mais amplamente dispersos; significa apenas que os povoados chans atuais eram anteriormente um pouco maiores. Nunca houve uma populao chan domiciliada nas regies de montanha. Somente em localidades como o vale do Hukawng, onde vamos encontrar kachins cultivando o arroz pelos

15. H uma extensa literatura sobre este tpico; ver, por exem plo, Enriquez (1933); Hanson (1913); Lowis (1919); Eickstedt (1944). Na crtica, Green (1933; 1934) indicou que as diferenas nos tipos fsicos no Nordeste da Birmnia no correspondem de modo nenhum s distribuies lingsticas; isso invalida toda a tese. 16. Eickstedt (1944).

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mtodos chans, que se pode inferir com alguma probabilidade que os kachins tenham devastado ou desalojado uma populao chan. E quanto a isso, se deparamos com povos de lngua kachin cultivando arroz pelos mtodos chans, quase se poderia inferir que esses kachins j esto em via de se tomarem chans. bem possvel que nos ltimos mil anos, ou aproximadamente, tenham ocorrido muitas migraes e mudanas demogrficas substanciais entre a popula o monlanhesa ao longo da Regio das Colinas de Kachin, mas cumpre lembrar que essas mudanas poderiam ocorrer sem afetar a posio da populao chan nas plancies e nos vales. Fatos ou inferncias sobre a histria de um segmento da populao total podem, portanto, dar-nos certos indcios sobre a histria do outro. Histria fatual, pois qualquer parte da Regio das Colinas de Kachin fragmentria. Dou um resumo dessa histria estabelecida no captulo 8, juntamente com minhas prprias conjecturas sobre alguns dos fatos decisivos acerca dos quais no dispomos seno de provas circunstanciais. Mas no captulo 8 ocupo-me principalmente da histria kachin, e por isso ser melhor expor desde j minhas conjecturas sobre os chans. Um dos fatos que se podem dar como estabelecidos que os chineses, j no sculo I d. C., estavam familiarizados com vrias rotas do Yun-nan ndia. No podemos saber ao certo quais eram essas rotas, mas, desde que so constitudas apenas por um nmero muito limitado de desfiladeiros atravs das principais cadeias de montanhas, as rotas no podem ter diferido muito das que conhecemos hoje. No desarrazoado ver a colonizao chan original dos vales dos rios como um processo associado permanncia dessas rotas de comrcio. H testemunhos de que as comunicaes eram mantidas atravs de uma srie de pequenas guarni es militares estabelecidas em postos apropriados ao longo da rota. claro que essas guarnies precisaram manter-se a si mesmas e deveriam portanto estar situadas num terreno adequado ao cultivo do arroz. 0 povoado assim formado iria constituir o ncleo de uma regio de cultura complexa que, com o passar do tempo, evoluiria para um tipo de Estado chan subalterno. A extenso em que qualquer estado particular iria desenvolver-se seria condicionada pelas circunstncias locais. Em Hkamti Long, por exemplo, a rea apropriada a desenvolver-se em plancie de arroz substancial, e, segundo parece, no passado foi de fato cultivada uma rea muito maior do que agora. As rotas comerciais atravs de Hkamti Long permaneceram pouco usadas por mais de um sculo: antigamente, quando essa rota comercial era muito mais freqentada, possvel que a populao tenha sido maior. Em contrapartida, a escala da comunidade chan em Sima-pa dificilmente deve ter mudado durante sculos. Trata-se de uma pequena plancie de arroz de10!

SISTEM AS P O L li

O S D A A L T A BIRM NIA

mais ou menos sete quilmetros quadrados, situada a uma altitude elevada (cerca de 1700 metros acima do nvel do mar). Constitui uma das principais passagens do Yun-nan para a Alta Birmnia e situa-se na rota das antigas caravanas de jade de Mogaung para Tengyueh. Est portanto localizada estrategicamente e esteve certamente ali durante longo tempo. apenas um lugarejo, mas em alguma poca do passado pode ter sido um pouco maior, pois fica a pelo menos um dia de marcha de qualquer outra comunidade chan ou chinesa, e toda a terra de arroz que disponvel no local est plenamente ocupada (mapa 2, p. 87). Essa explicao segundo a qual a localizao e a escala das comunidades chans foram determinadas pela estratgia e economia das rotas comerciais claramente especulativa, mas ajusta-se melhor aos fatos conhecidos do que as teorias que explicam a atual distribuio dos povoados chans como o resultado de alguma fabulosa conquista militar em larga escala17. Uma importante implicao de minha tese que a cultura chan, tal como a conhecemos hoje, no deve ser considerada um complexo importado de fora, j pronto, para a regio, como a maioria das autoridades no assunto parece ter suposto. um desenvolvimento nativo resultante da interao econmica, durante um longo perodo, de colnias militares de pequena escala com uma populao montanhesa nativa. O processo pelo qual ocone o desenvolvimento de tipo chan bem ilustrado pela descrio de Mng Ka feita por Davies. Os atuais habitantes de Mng Ka so chineses de lngua lisu; sua semelhana cultural geral com os chans de comunida des similares, como a de Sima-pa, muito grande. O topnimo Mng Ka chan. Davies escreve o seguinte:A pequena plancie de arroz de Mong Ka (1 700 km1 habitada por chineses e lisus. A ) terra totalmente cultivada, mas no frtil, e o povo no obtm dela seno o necessrio para viver [...] O chefe de Mng Ka conhecido pelo nome de Yang-hsing-kuan, que significa simplesmente o funcionrio cujo sobrenome Yang. Seu cargo hereditrio. Parece que um seu antepassado, numa outra poca, conquistou os habitantes lisus originais para o governo chins e, como recompensa, ele e seus homens se estabeleceram ali como colonizadores-soldados, e o governo do lugar foi dado a ele e a seus descendentes. Os lisus e os chineses agora vivem juntos em perfeita amizade e sem dvida os colonizadores originais casaram-se com mulheres lisus de modo que seus descendentes so por raa to lisus quanto chineses1 . 9

Existem vrios outros tipos de testemunhos que respaldam a opinio de que grandes pores de povos hoje conhecidos como chans so descendentes de17. desnecessrio dizer que as prprias tradies chans sobre o assunto sio expressas em funo de conquistas militares [cf. Elias (1876)], mas lais relatos no tm valor histrico. 18. Davies (1909), pp. 37-38. Mftng Ka um posto de servio na rota de Sadon para Tengyueh.

A S CATEG O RIAS C H A N E K AC H IN E SU A S SU BD IVIS ES

membros de tribos das colinas que foram, no passado recente, assimilados por formas mais requintadas de cultura budista-chan. Por exemplo, Wilcox, o primeiro ingls a visitar Hkamti Long, menciona que a massa da populao trabalhadora da tribo khaphok, cujo dialeto estreitamente aparentado com o singpho19. Esse termo chan kha-phok ou hka-hpaw pode traduzir-se por escravo kachin20. Barnard, mais tarde uma autoridade na mesma regio, menciona que dois grupos de classe baixa da sociedade hkamti so denominados hsampyens (isto , sam hpyen) e chares21. Na lngua jinghpaw esses termos significariam soldado mercenrio chan e "soldado contratado, respectivamente; subentende-se que esses chans de classe baixa so de origem kachin jinghpaw. De modo anlogo, se se examinar, como fizemos, a longa sucesso de referncias aos hkamtis de Assam que aparecem em documentos de lngua inglesa, oficiais e outros, entre 1824 e 1940, inevitvel a concluso de que os ancestrais de muitos povos hoje classificados como hkamtis (isto , chans) teriam sido mais apropriadamente classificados, um sculo atrs, sob algum outro nome, como singpho, lisu ou nung (isto , kachins). Detalhes sobre essa mudana evidente de identidade cultural so dados no apndice 1. O que eu quero ressaltar aqui que a localizao territorial, a relativa complexidade e as principais caractersticas da organizao econmica do que chamamos agora de sociedade chan so determinadas em grande parte pelo meio ambiente. Dados os requisitos de uma economia assentada no cultivo do arroz irrigado nesse terreno, os povoados chans dificilmente seriam diferentes do que so. Eis por que me sinto autorizado a tratar o sistema social de tipo chan como um ponto relativamente estvel no fluxo total. Nos meus ltimos captulos tericos discuto os sistemas sociais kachins - o tipo gumlao e o tipo gumsa - como sendo intrinsecamente instveis, ao passo que considero o tipo oposto, chan, como intrinsecamente estvel. A justificao para isso deve ser encontrada em dados de campo como os que mencionei acima. A cultura chan atual estende-se por bolses esparsos de Assam a Tongking e, para o sul, a Bangkok e ao Cambodja. Os povos das colinas vizinhos dos chans so espantosamente variados em sua cultura; os chans, dada sua ampla disperso e sua forma esparsa de povoamento, so espantosamente uniformes. Minha tese que essa uniformidade est correlacionada a uma uniformidade da organizao poltica chan, que por sua vez largamente determinada pelos fatos econmicos especficos da situao chan. Minha suposio histrica que os chans dos vales assimilaram em

SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA

toda parte, durante sculos, seus vizinhos das colinas, mas os fatores econmicos imutveis na situao significaram que o padro de assimilao foi muito semelhan te em toda parte. A prpria cultura chan foi relativamente pouco modificada.

Kachin Isso quanto ao sentido bsico do termo chan; a categoria kachin mais complicada. Primeiro, a prpria palavra. Kachin uma romanizao do termo birmans cn Essa grafia comeou a ser usada por volta de 1890. Antes dessa data a forma usual era Kakhyen. Para os birmaneses a categoria originariamente era vaga, aplicada indistinta mente aos brbaros das fronteiras do Nordeste. Aparece pela primeira vez em ingls por volta de 183722. Era usada, ento, como um termo geral para designar os membros das tribos que no eram palaungs, que viviam no distrito de Bhamo e no Estado de Hsenwi do Norte. Essa populao era na poca, como hoje, poliglota; inclua falantes das lnguas e dialetos atualmente conhecidos pelos nomes de jinghpaw, gauri, maru, atsi, lachi e lisu. De incio, portanto, o kachin no era uma categoria lingstica. Outra categoria de populao birmanesa foi a princpio romantzada com a designao de theinbaw. Outras verses da mesma palavra aparecem na literatura na forma de singpho, singfo, chingpaw, jinghpaw etc. uma categoria que os povos que falam a lngua que hoje denominamos jinghpaw aplicam-se a si mesmos. Mas, assim como consideramos que a expresso inglesa We Britons tanto pode incluir quanto excluir os escoceses, os galeses e os canadenses na mente do falante, assim a expresso Ns jinghpaw (anhte jinghpaw n) ambgua. Comumente inclui muitos povos que no falam a lngua jinghpaw, e na verdade a palavra pode ser usada at para abarcar toda a humanidade. Os birma neses usavam theinbaw principalmente com referncia aos brbaros do distrito de Mogaung e do vale do Hukawng. Parecem t-los tratado como uma categoria diferente dos kakhyens. Os britnicos foram os primeiros a estabelecer, por volta de 1824, contato poltico com os falantes do jinghpaw e de outras lnguas kachins em Assam; os povos em questo eram ento chamados singphos e kakoos. Em 1837, o servio de inteligncia militar britnico tinha reunido um corpo de informaes muito subs tancial, relativo no apenas aos singphos de Assam mas tambm aos seus parentes

22. Hannay (1837); Burney (1837); Ricturdson (1837); Malcom (1839).

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4S CATEG O RIAS C H A N E K A C H IN E SU AS SU BD IVIS ES

tribais do vale do Hukawng e das regies a nordeste de Mogaung23. Nesses informes, o termo singpho usado para designar os falantes do jinghpaw residentes no vale de Hukawng e seus parentes prximos de Assam, enquanto kakoo abrange o jinghpaw das regies do Tringulo e do Sumprabum, e tambm o maru, o lachi, o lisu, o nung e o duleng. Os kakoos eram considerados uma variedade dos singohos, mas de um tipo algo inferior24. Segundo parece, supunha-se nessa poca que a categoria inglesa singpho e a categoria birmanesa theinbaw eram idnticas, porm a categoria kakhyen ainda era considerada distinta25. Dez anos depois, Hannay, que fora responsvel por parte do trabalho original do exrcito britnico acima mencionado, publicou um tratado sobre The Singphos or Kakhyens ofBurma26, onde reunia sob uma categoria nica os montanheses a leste de Bhamo, os singphos do vale do Hukawng e de Assam, e os heterogneos kakoos dos vales do Mali Hka e do N'mai Hka27. No esquema de Hannay, a populao total da Birmnia ao norte de Bhamo entra apenas em duas categorias: os chans e os kakhyens. Evidentemente, o que mais impressionou Hannay foi a similaridade cultural geral entre os diferentes grupos de povos das colinas. Percebeu que esses grupos no falavam a mesma lngua, mas isso no lhe pareceu particularmente relevante. As opinies de Hannay foram aceitas de modo geral at o final do sculo. Por exemplo, em 1891 um escritor2* considerava que os gauris, que falam o dialeto jinghpaw, e os szis (atsis), que falam um dialeto maru, eram pores "estreitamente aparentadas da mesma subtribo dos kachins, Kachin era ainda, portanto, uma categoria cultural, e no lingstica. Nesse perodo, contudo, a expresso Colinas de Kachin foi introduzida no jargo administrativo oficial da Birmnia britnica e levou noo altamente artificial de que um kachin era algum que vivia num tipo particular de terreno mais do que uma pessoa de caractersticas culturais particulares. Isso visto claramente quando se comparam duas diretrizes governamentais contraditrias publicadas em 1892 e 1893, respectivamente.

23. S d ectio n o fF a p c rs (1873); W ilcox (1832); Pemberton (1835). 24. A s regis Kakoo" no eram conhecidas diretamente, mas havja as aldeias lisus, nungs e dulengs em A ssa m eh aviaasaid eiasm aru sn oH u taw n g.O term ok ak oo-.e. h k a k h u -6 a designao cm jinghpaw de rio acima (pessoas)" em oposio a hka nam, rio abaixo. A regio tferida aparece no mapa 4, p. 97, 25. Malcom, ii, 243. 26. Hannay (1847). 27. Burncy (1842), p. 340, tambm faz a identificao kakhyens ou singphos". 28. George (1891).

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1892

Tribos e cls kachins dentro de nossa linha de postos fronteirios e aldeias estabele cidas [...] devem ser colocados em p de igualdade com os chans birmaneses e outros entre os quais eles se fixaram.

Aqui, kachin uma categoria cultural. Mas1893 As Colinas de Kachin deveriam ser administradas na medida em que estavam includas dentro da rea provisria de nossa administrao em linhas distintas dos trechos de terra baixa, onde s deviam vigorar a lei ordinria e os tributos ordinrios1^,.

Aqui, kachin uma categoria geogrfica. Mais ou menos a partir de 1900, as idias etnolgicas dos lingistas come aram a impor-se3 . Grierson e outros especialistas formularam a teoria segundo a B qual uma anlise da atual distribuio de lnguas e dialetos revelaria o curso das migraes histricas das diversas raas das quais supostamente descendem a populao moderna. Uma conseqncia dessa teoria foi que em todos os censos birmaneses realizados entre 1911 e 1941 a populao foi classificada por raa - sendo raa um sinnimo de lngua31. De igual modo, nos manuais intitulados As Tribos da Birmnian e As Raas da Birmnia33 a populao efetivamente classificada pela lngua. Na regio kachin essa doutrina conduziu a um paradoxo. Presumia-se que os kachins eram uma raa, portanto deviam ter uma lngua especial. Assim, o dicionrio jinghpaw descrito como A Dictionary o f the Kachin L a n g u a g e Mas isso implicaria que os membros das tribos das colinas da regio de Kachin que no falam o jinghpaw no podem ser kachins. Todos os censos oficiais da populao feitos entre 1911 e 1941, portanto, arrolam os falantes do maru, do lachi, do szi, do maingtha, do hpon, do nung e do lisu sob ttulos totalmente distintos dos falantes do kachin (jinghpaw). Por mais lgico que isso possa parecer aos lingistas, etnologicamente absurdo. Os missionrios35, o exrcito36 e a administrao local37 sempre continua ram a usar kachin como um termo geral no sentido de Hannay. Farei o mesmo.

29. R.N.E.F. (1893), Ap.; R.N.E.F. (1894), p. 3. 30. L ow is (1903), pp. 117-118.

31. Tsylor (1923). 32. Lowis (1919).33. Enriquez (1933). i

34. Hanson (1906).35. Hanson (1913), captulos 1 e 2. 36. Enriquei (1933), p. 56. 37. Kachin Hill Tribc Regulalion 1895, com emendas em 1 8 9 8 ,1 9 0 2 ,1 9 1 0 ,1 9 2 1 ,1 9 2 2 ,1 9 3 8 . '*

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A S CA TEGOF1AS CHAN E KA CH1N SV A S SUBDIVISES

Desde a partida dos britnicos, os antigos distritos administrativos de Bhamo e de Myitkyina constituram-se numa unidade poltica semi-autnoma conhecida pela designao de Estado Kachin (Jinghpaw Mungdan), e presumivelmente toda a populao dessa regio que no so chans nem birmaneses agora oficialmente considerada kachin (jinghpaw), independente da lngua que fala. Entretanto, nos confins da Universidade de Rangun, um kachin ainda algum que fala o jinghpaw! tudo muito complicado. As subcategorias de kachin, no sentido em que utilizo o termo, so de trs espcies: (a) lingstica, (b) territorial e (c) poltica. A partir do final deste captulo, quase a totalidade deste livro diz respeito a distines polticas, especialmente aquelas que os prprios kachins denotam pelos termos gumsa e gumlao. Nesta ltima discusso quase no menciono as distines lingsticas, Isso no quer dizer que considero irrelevantes as diferenas lingsticas, mas apenas que no me sinto competente para discutir o assunto em detalhe. No entanto, desde que grande parte da etnografia existente sobre a regio est escrita em termos de categorias lingsticas, devo dar alguma indicao do que sejam essas categorias. Devo tambm procurar moslrar, pelo menos aproximada mente, como essas categorias lingsticas se combinam com as diferenas polticas nas quais eu prprio estou sobremaneira interessado. 0 nmero total de dialetos discernveis falados na Regio das Colinas de Kachin enorme. Os lingistas costumam distinguir quatro lnguas diferentes (alm do tai), com numerosas subcategorias. A classificao exata de vrios desses dialetos - por exemplo, atsi, maingtha e hpon - parece ser opcional, mas a classificao seguinte aceita de modo geral.1. J in g h p a w - to d o s o s d ialetos s o m ais ou m en o s m utuam ente in telig v eis a. Jinghpaw norm al - con form e en sin ad o nas esco la s m ission rias b. Gauri c. T sasen d. D u len g e. Hkahku / . H tingnai 2.

Maru -

n u m erosos d ialetos con sid erad os m utuam ente in in telig v eis (o m anj est m ais perto

do birm ans do que do jin gh p aw ) a. Mara normal - con form e en sin ad o nas e sc o la s b. Lachi c. A tsi - aparentem ente um hbrido de maru e jin gh p aw d. M aingtha (a ch a n g ) - aparentem ente um hbrido d o atsi e d o chan e. H pon - p rovavelm ente um d ialeto d o maru

SIST E M A S PO LTIC O S DA ALTA BIRM NIA

3. Nung - vrios dialetos distintos. Os dialetos rawang e daru so considerados mutuamente ininteligveis. Lingisticamente, considera-se o nung mais prximo do tibetano do que do jinghpaw. Os dialetos nungs do Sul provavelmente se fundem com o maru do Norte3*. 4. Lisu - vrios dialetos regionalmente distintos. Essa lngua difere amplamente tanto do jinghpaw quanto do maru, mas a gramtica do tipo birmans. Os falantes do lisu so marginais s Colinas de Kachin, conforme se discute neste livro.

Nas reas marginais existem importantes grupos dialetais que no entram diretamente em nenhuma dessas categorias. No distrito de Katha, a oeste do Irrawaddy, existe, por exemplo, uma populao de cerca de 40 mil habitantes localmente conhecidos pelo nome de kadus. So mais ou menos birmaneses na cultura, mas sua lngua parece conter forte mistura do jinghpaw e de outros dialetos kachins. No sei at agora se as generalizaes dadas mais adiante neste livro se aplicam a essa populao kadu. Analogamente, na fronteira ocidental da Regio das Colinas de Kachin, a lngua jinghpaw se funde com o dialeto naga e o kuki. Tambm aqui a confuso de lnguas est associada a uma complicada inter-relao entre chans, kachins e nagas, mas por enquanto faltam todos os detalhes39. Alguns dialetos kachins ocorrem apenas numa localidade distinta - por exemplo, gauri, tsasen, hpon outros esto largamente disseminados e territorial mente misturados com outras lnguas - por exemplo, maru, atsi, jinghpaw normal. Nos mapas 3 e 4 tentei indicar os fatos puros e simples sobre a distribuio lingstica na medida em que estes so conhecidos, mas essa informao quando muito bastante aproximada. De um lado, o jinghpaw normal largamente usado como lingua franca por grupos que tm uma lngua-me totalmente diferente o caso, por exemplo, de muitas aldeias nagas na franja norte-ocidental da Regio das Colinas de Kachin; de outro, a fuso de grupos lingsticos muitas vezes demasiado variegada para ser mostrada em qualquer mapa de escala reduzida. Para ilustrar esse ltimo ponto, posso mencionar que em 1940, na comunidade kachin de Hpalang, que submetida a uma anlise minuciosa no captulo 4, no menos de seis diferentes dialetos eram falados como lngua-me numa comunidade de 130 famlias! O aspecto dessa situao que interessou aos lingistas o histrico: de que modo essa surpreendente distribuio veio a ocorrer? A questo propicia um bom

38.

A literatura menciona ainda um povo chamado naingvaw descrito com o maru do Norte oti maru negio; mas naingvaw apenas a designao maru de povo de naing (nung) e um termo aplicado pelos marus do Sul a uma populaSo descrita corrtumente como nung; e.g., ver Pritchard (1914). Para melhor descrio de nung, ver Qarnard (1934). 39. Grani Brown (1925), captulos 2 e 8; Dewar (1933).

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-4 JC .1 TEGORIAS C H A N E KACH IN SU AS SU BD tViSO E S

exerccio para a imaginao. Posso pensar em vrias possibilidades, mas como no h provas que as apoiem, vou deixar as coisas como esto. Mas outro aspecto do mapa das lnguas recebeu muito menos ateno: o que significa a diferena lingstica nas vidas da populao atual? Aqui h populaes de cultura quase idntica que aparentemente mantm diferenas lingsticas para grande embarao delas prprias. Por qu? Os lingistas presumiram que o grupo populacional que, objetivamente considerado, fala a mesma lngua por fora uma unidade importantssima. Referem-se ao maru, ao lachi, ao jinghpaw e descrevem tais grupos como raas. Ora, certamente verdade que localmente o grupo lingstico sempre tem grande importncia. Numa comunidade mista de falantes de lisu, de atsi, de maru e de jinghpaw, os falantes de jinghpaw enquanto grupo manifestaro decerto alguma solidariedade entre si contra o resto. Isso porm totalmente diferente de afirmar que todos os falantes de jinghpaw da Regio das Colinas de Kachin so de certo modo distintos enquanto grupo social de todos os falantes de atsi ou de todos os falantes de maru. Politicamente falando, os atsis so totalmente indistinguveis, como grupo, dos jinghpaws gumsa. A importncia da solidariedade do grupo lingstico no uma coisa que se possa determinar a partir dos princpios bsicos; um tema para investigao. Minha prpria experincia de campo me convence de que o kachin mdio, como o ingls mdio, est vivamente atento s diferenas de dialeto e mesmo de sotaque; mas os valores que ele atribui a tais diferenas no so os do gramtico. Penso que talvez se possa compreender a situao geral por analogia com fenmenos corres pondentes nas Ilhas Britnicas. Nesse pas usamos a identidade lingstica de vrias maneiras diferentes. Em primeiro lugar, a unidade de lngua pode ser usada como um distintivo de classe social. Na Inglaterra, o sotaque dapublic school um critrio altamente sensvel a esse respeito. A partir da lngua da classe mdia alta inglesa podemos notar (a) que no est localizada em nenhum lugar especfico, (b) que, embora as pessoas que usam essa lngua nem todas se conheam entre si, podem reconhecer facilmente o status uma da outra s por esse ndice, (c) que essa forma de lngua de elite tende a ser imitada pelos que no so da elite, de sorte que outras formas dialetais so gradativamente eliminadas e (d) que a elite, reconhecendo essa imitao, est criando continuamente novas elaboraes lingsticas para distinguir-se do rebanho comum. Na Birmnia do Norte, tanto o tai quanto o jinghpaw podem ser considerados lnguas da classe mdia alta nesse sentido, embora atualmente o status do tai esteja em declnio. Historicamente, os grupos que falam tai e jinghpaw tenderam

ISTEM A5 P O L /T IC

< ALTA BIRM NIA A

constantemente a assimilar os seus vizinhos que falam naga, maru e palaung. Essa assimilao no ocorreu em decorrncia de alguma poltica ativa de conquista, mas porque, nas regies de lngua mista, o poder poltico esteve por muito tempo nas mos dos aristocratas de fala tai ou jinghpaw. Assim, tomar-se tai ou tomar-se jinghpaw teve vantagens polticas ou econmicas. Em reao a isso, os aristocra tas genuinamente tais ou jinghpaws desenvolveram por seu turno formas lings ticas prprias. Fizeram isso mediante a incorporao em sua fala diria de numerosas expresses floreadas e poticas tiradas da linguagem de seu ritual religioso. Quando dois estranhos que falam jinghpaw se encontram, o sotaque e a fraseologia traem no apenas o seu lugar de origem como tambm a sua classe social. Em segundo lugar, a unidade lingstica pode ser usada como um distintivo de solidariedade poltica ou nacional. Nas Ilhas Britnicas, a capacidade de falar gals constitui exatamente esse distintivo. Devo observar que muitas dessas comu nidades de fala galesa usam o ingls em seus negcios cotidianos comuns e s mantm o uso de sua lngua nativa ao preo de considervel embarao. Na Birmnia do Norte, grupos lingsticos localizados, como o hpon, o maingtha, o gauri e o duleng (e, no caso, muitos outros que escaparam observao dos lingistas), tm esse tipo de solidariedade poltica. Tais grupos costumam ter uma tradio de origem e de descendncia comum e compartilham uma ampla gama de costumes comuns. A unidade lingstica aqui apenas um distintivo cultural dentre muitos que servem para distinguir entre ns e eles. Em terceiro lugar, a unidade lingstica pode ser um remanescente da histria. fato objetivo que a maioria dos irlandeses continuam falando ingls. As razes disso so histricas. No me parece que nesse caso se possa dizer que essa unidade lingstica denota algum profundo sentimento subjetivo de solidariedade social! Mas tambm no posso concordar em que a lngua comum dos irlandeses e dos ingleses seja um acidente histrico que , sociologicamente, de todo irrelevante. Os fatos histricos que explicam a circunstncia de os irlandeses falarem ingls explicam tambm, em grande parte, a atual organizao social irlandesa. Na Birmnia do Norte, a presente distribuio de lnguas deve ser vista como um remanescente histrico. Hoje as comunidades de lngua jinghpaw, maru, nung, lisu e tai encontram-se misturadas. Deve ter havido uma poca no passado em que esses grupos lingsticos estavam territorialmente separados. Se pudssemos des cobrir como veio a ocorrer a atual distribuio, isso sem dvida seria muito relevante para a nossa compreenso da atual situao social. Infelizmente, a reconstituio histrica em tais casos muito difcil. A maior parte das suposies que se costumavam fazer no passado so totalmente absurdas. tio

A S CATEGORIAS CHAH E KA C H IS E SUAS SUBDIVISES

Como indiquei, foi geralmente aceito como dogma que aqueles que falam uma lngua particular formam uma unidade nica e definvel, e que o grupo de pessoas que constituem essa unidade sempre teve uma cultura particular e uma histria particular. por isso que, quando descrevemos a histria de uma lngua, estamos descrevendo a histria do grupo de pessoas que hoje falam essa lngua. a grupos desse tipo que se alude quando encontramos referncia s raas e s tribos da Birmnia. Essa doutrina acadmica, sem embargo de sua convenincia, no se relaciona com os fatos empricos. Pode-se estabelecer facilmente que a maioria dos membros dessas raas e tribos supostamente distintas casam-se entre si. Ademais, evidente que corpos substanciais de populao se transferiram ainda no sculo passado de um grupo lingstico para outro40. Os grupos lingsticos no so portanto estabelecidos hereditariamente, nem so estveis atravs do tempo. Isso reduz ao absurdo toda a tese lingstico-histrica. Por exemplo, pelos critrios lingsticos o palaung uma forma de linguagem austro-asitica. Assim, segundo a tese dos lingistas, os palaungs deviam ser a raa mais antiga encontrada na Regio das Colinas de.Kachin, Nessa mesma base, os chans de fala tai deveriam ser a raa mais recente a entrar na regio. Por isso, suposto que raa, cultura e lngua coincidam, de esperar que os palaungs sejam culturalmente muito diversos de seus vizinhos chans. Em verdade, porm, chans e palaungs casam-se entre si e na cultura geral os palaungs cultivadores de ch esto muito mais prximos dos chans do que qualquer um dos demais povos das colinas da regio. Alm disso, palaungs e chans so membros de um sistema poltico comum. Meu interesse pessoal no mapa de distribuio lingstica das Colinas de Kachin no reside basicamente em seu valor como testemunho histrico, mas no aparente paradoxo de que, embora em certos casos os kachins paream ser exces sivamente conservadores quanto lngua - de modo que pequenos grupos que vivem como vizinhos prximos e freqentam o mesmo mercado chan ainda continuam a falar lnguas totalmente diversas em outros parecem quase to dispostos a mudar sua lngua quanto um homem se dispe a trocar de roupa41. Os dois lados desse paradoxo exemplificam o mesmo fato social, a saber, o de que, em minha terminologia, a circunstncia de um homem falar uma lngua em vez de outra um ato ritual, uma afirmao sobre seu status pessoal; falar a mesma lngua que os vizinhos expressa solidariedade para com esses vizinhos, falar uma lngua diferente da dos vizinhos expressa distncia social ou mesmo hostilidade.

40, Para m ais testemunhos sobre este assunto, ver apndice 1. 41. Grant Brown (1925), captulo 2; Green (1933), p. 245.111

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jtS CA TEG O R tAS CH AN K A C H IN E S U A S SU BD IVIS ES

freqente, cada pequena unidade local uma entidade poltica autnoma. Em tais condies, quer-me parecer, onde cada chefe subalterno de aldeia est pronto a afirmar que to bom quanto o seu vizinho, podemos esperar encontrar um faccionarismo lingstico obstinadamente persistente mesmo em face da autorida de poltica nominalmente centralizada. Devo admitir que essa teoria, a ser vlida, implicaria uma distribuio de lnguas e dialetos diferente daquela que de fato ocorre, mas tentarei explicar isso mais adiante. Por ora, suficiente que esses fatos fiquem claros. A distribuio dos sistemas polticos gumsa e gumlao em relao aos grupos territoriais e lingsticos aproximadamente a seguinte (ver mapas 2 e 3):A Zona A, no que respeita aos kachins, quase que inteiramente de lngua jinghpaw. H um ou dois bolses de populao de origem mam e lisu e existem grupos substanciais na regio do vale do Hukawng que reclamam origem assamesa. A tendncia, contudo, que tais grupos adotem alfngua jinghpaw. A zona inclui regies gumsa e gumlao, mas noexiste uma correlao bvia entre dialeto e forma poltica. Assim, uma das formas mais claramente distintas de jinghpaw a falada pelos tsasens (singphos) do norte do vale do Hukawng e de Assam, mas os que falam o dialeto tsasen so parte gumsa e parte gumlao. A Zona B , em termos lingsticos, altamente poliglota. Pode-se subdividir essa zona em trs setores: i. A regio dos Estados Chans da Birmnia do Norte. Aqui as comunidades de lngua jinghpaw, atsi, maru, lachi, lisu, palaungechan esto misturadas de um modo deveras fantstico. A totalidade do setor politicamente gumsa. At que os britnicos criassem uma separao administrativa arbitrria, as aldeias das colinas eram todas, teoricamente, dependncias de um ou de outro saohpa chan local (mapa 2, Zona B. Ao sul da latitude 24' N). ii. A regio dos Estados Chan Chineses. Prevalece uma mistura lingstica similar. Os kachins, em sua maioria, falam o atsi. Todos so gumsa e teoricamente dependem do saohpa chan local. A administrao chinesa dos kachins" parece em geral ter sido mais indireta do que sucedia com a inglesa, de modo que um saohpa chan-chins, embora impiedosamente onerado de impostos por seus superiores chineses, tinha mais influncia poltica em seu domnio do que seu congnere na Birmnia britnica (mapa 2. Zona B da lat. 24 N lat. 26* N). iii. A Regio de NamTamai. Aqui h uma mistura de lisu e nung e dialetos intermedi rios, como o tangser e o kwinhpang. Os nungs aqui so gumlao, a exemplo de algumas comunidades mistas lisu-nungs. A maioria das aldeias lisus parece estar organizada num sistema estratificado de classes totalmente diverso do sistema kachin gumsa. Por essa razo, a meu ver, a principal regio lisu no vale do Salween situa-se fora da Regio das Colinas de Kachin. Zona C. A parte meridional dessa zona compreende principalmente a regio fronteiria entre Sadon e Namhkam. A mistura lingstica aqui semelhante encontrada na Zona B (i), mas existem pouqussimos palaungs. Penso que em 1940 todas as aldeias da regio eram nominalmente gumsa, mas isso p od e ter resultado da preferncia da Administrao britnica por113

SISTEM AS PO LTIC O S D A ALTA BIRM NIA

Em qualquer sistema poltico costumam-se encontrar subgrupos que se mantm em oposio a outros como faces. Tais subgrupos podem ter status equivalente ou classificar-se como superiores e inferiores. A lngua comum um modo pelo qual se pode expressar a unidade desse subgrupo. Uma explicao para a estrutura poliglota da comunidade de Hpalang, com seus seis grupos dialetais diferentes, seria ento que uma comunidade dividida em faces. Os seis grupos lingsticos em Hpalang so seis faces que usam a lngua como um distintivo da solidariedade e da diferena entre grupos. Desse ponto de vista, o fato emprico de encontrarmos, em algumas partes das Colinas de Kachin, exemplos extremos desse tipo de faccionarismo lingstico, enquanto em outras regies os subgrupos kachins misturados adotam prontamen te a lngua jinghpaw, deve ser visto como um indcio ou sintoma de algum contraste na ideologia poltica. Isso nos reconduz ao tpico gumsa versus gumlao, sobre o qual muito terei a dizer daqui a pouco. Aqui, uma generalizao ser suficiente. A ideologia gumsa, de maneira bastaote grosseira, representa a sociedade como um estado feudal em grande escala. um sistema que implica uma hierarquia ordenada do mundo social; implica tambm uma integrao poltica em grande escala. Cada grupo estabeleceu uma relao com todos os outros. A exemplo da Igreja Catlica Romana, um sistema universal; teoricamente, o faccionarismo est excludo. Ora, quer-me parecer que existe uma incongruncia inerente entre o exerccio eficaz dessa autoridade poltica centralizada e a manuteno a longo prazo das diferenas lingsticas localizadas. Por conseguinte, se encontramos um sistema poltico que abarca vrios grupos lingsticos e esses grupos lingsticos so ordenados numa hierarquia de classe, superior e inferior, h uma probabilidade prima facie de que a situao lingstica seja instvel e de que os grupos lingsticos de classe superior tendam a assimilar os grupos de classe inferior. Isso vale claramente para a nossa prpria experincia da sociedade europia e decorre de causas econmicas extremamente simples. vantajoso para o indivduo identifi car-se lingisticamente com aqueles que possuem influncia poltica e econmica. Em termos kachins, isso pareceria significar que, onde o sistema poltico gumsa, autocrtico, hierarquicamente ordenado, funciona com tanta eficincia quanto teoricamente se supe que funcione, podemos esperar encontrar uma tendncia uniformidade lingstica dentro do domnio poltico de algum chefe gumsa particular. A teoria poltica kachin oposta, denotada pelo termo gumlao, , em sua forma extrema, um republicanismo anrquico. Cada homem to bom quanto o seu vizinho, no existem diferenas de classe, nem chefes; uma teoria protestante, em contraste com uma catlica. E, claro est, entre os gumlao, o faccionarismo 112

A S C ATEG O RIAS C H AN E K A C H IN E SU A S SU BD IVIS ES

freqente, cada pequena unidade local uma entidade poltica autnoma. Em tais condies, quer-me parecer, onde cada chefe subalterno de aldeia est pronto a afirmar que to bom quanto o seu vizinho, podemos esperar encontrar um faccionarismo lingstico obstinadamente persistente mesmo em face da autorida