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LEI ROUANET PERCURSO E RELATOS
Mecenas: Patrocinador generoso, protetor das
Letras, Cincias e Artes, dos artistas e sbios.
Mecenato: Condio, ttulo ou papel de mecenas.
Novo Dicionrio Aurlio
textos introdutrios 7
entrevistas
Alexandre Machado 15
Alvaro Razuk 18
Dagmar Garroux 21
Danilo Miranda 24
Eliane Costa 28
Fbio Cesnik 32
Helosa Buarque de Hollanda 35
Leonardo Brant 40
Mara Mouro 44
Mequita Andrade 47
Yacoff Sarkovas 50
SUMRIO
artigos relacionados
Polticas culturais no Brasil: trajetria e contemporaneidade [Antonio Albino Canelas Rubim] 65
Minc libera R$ 9,4 mi para Cirque du Soleil no Brasil [Silvana Arantes] 88
MEC cria Lei Rouanet da pesquisa [Renata Cafardo e Herton Escoba] 90
Uma Lei Rouanet da pesquisa [Claudia Izique] 92
Ministrio no tem vocao para Irm Dulce [Marcio Aith] 95
Museu Nacional volta a ser como no tempo do Imprio 98
Nem tanto ao cu, nem tanto terra [Marcelo Gruman] 100
Artistas famosos e o incentivo fiscal [Antoine Kolokathis] 117
leis relacionadas
Lei 7505 de 2 de julho de 1986 123
Lei 10923 de 30 de dezembro de 1990 129
Lei 8685 de 20 de julho de 1993 133
Programa Nacional de Apoio Cultura 141
Projeto de Medida Provisria no aprovada 157
Edital do Proac (exemplo) 161
Projeto de Lei 6722/2010 176
O que muda na Lei Rouanet 202
anexos 205
BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 234
7A Atitude Brasil, empresa que atua nas reas cultural, ambien-
tal e de comunicao social, idealizou e publicou este livro para
retratar os diversos aspectos histricos, tericos e prticos dos
incentivos cultura no Brasil especialmente os da Lei Roua-
net. Nossa inteno informar os vrios setores da sociedade
quanto ao uso da legislao em vigor, s reformas e aos futuros
implementos legais que contemplem as mudanas necessrias
para uma poltica cultural mais respeitosa e eficiente no uso dos
recursos disponibilizados. Reunir as opinies das diferentes pes-
soas e entidades que utilizam ou oferecem apoio produo
cultural no Brasil o objetivo central deste trabalho.
Nossa pesquisa foi importante para identificar a existncia de
pensamentos convergentes entre os diversos setores, todos eles
desejosos de que as mudanas na legislao resultem em maior
democratizao do acesso s mais variadas expresses Arts-
ticas: cinema, msica, dana, teatro, literatura, Artes visuais e
preservao e restaurao de patrimnios materiais e imateriais.
Percebemos, tambm, a importncia do alinhamento da riqueza
e diversidade cultural brasileiras com as novas tecnologias, que
permitem acesso cultura em larga escala.
Expressamos nosso especial agradecimento Companhia
Vale do Rio Doce, patrocinadora nica, que viabilizou este pro-
jeto por tambm acreditar no futuro promissor da produo
Artstico-cultural brasileira.
9Este livro informativo e reflexivo trabalho de referncia sobre
os resultados, expectativas, dvidas, problemas e possveis so-
lues concernentes Lei Rouanet desde sua ltima reformu-
lao. Evidentemente o livro no exaustivo, mas rene dados
suficientes para pesquisa, estudo e compreenso dessa lei e de
sua aplicao. Esse instrumento legal nos seus moldes atuais ,
at onde se sabe, nico na legislao mundial.
A Lei Rouanet foi criada em 1991 (no Governo Fernando
Collor de Mello, sendo Secretrio da Cultura Srgio Paulo Rou-
anet) e reformulada em 1995 (no Governo Fernando Henrique
Cardoso, sendo Ministro da Cultura Francisco Weffort). Como po-
ltica pblica do Brasil para a rea da Cultura, essa lei produziu
amplo espectro de resultados e um no menor volume de dvi-
das, opinies e crticas. Tenham sido positivos ou duvidosos, os
resultados obtidos so dignos de uma anlise para assimilao
de novas expectativas e adaptaes. No h dvida de que a Lei
Rouanet j deu mostras de que chegado o momento de am-
pla discusso, reviso e regulamentao para suprir um elenco
de novas perspectivas e necessidades das atividades culturais
contemporneas.
Doze entrevistados figuras atuantes nos vrios setores
culturais e agentes da legislao atual emitem aqui opinies
recentes sobre a aplicao presente da citada lei, alm de ex-
lei rouanet Percurso e relatos antonio carlos abdalla [Organizador]
Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images
10
ternarem esperanas e comportamentos possveis e desejados
para uma reforma ainda apenas proposta. Foram entrevistados
Alexandre Machado, lvaro Razuk, Dagmar Garroux (Tia Dag),
Danilo Santos de Miranda, Eliane Costa, Fbio Cesnik, Helosa
Buarque de Hollanda, Leonardo Brant, Mara Mouro, Mequita
Andrade e Yacoff Sarkovas.
Alm das entrevistas, do texto integral da lei em vigor e do
projeto de reforma, esto includos neste volume uma coletnea
de textos e pequenos ensaios, a reproduo de documentos ofi-
ciais, tabelas, grficos, uma bibliografia e alguns estudos compa-
rativos que revelam o percurso e os resultados alcanados pela
aplicao da Lei Rouanet nos ltimos dezesseis anos.
So mltiplos os objetivos principais da Lei Rouanet: garan-
tir livre acesso a todas as fontes de cultura e ao pleno exerccio
dos direitos culturais; promover e estimular a regionalizao da
produo cultural e Artstica brasileira, com a valorizao dos
recursos humanos e contedos locais; apoiar, valorizar e disse-
minar o conjunto das manifestaes culturais e seus respecti-
vos criadores; proteger a expresso cultural dos grupos forma-
dores da sociedade brasileira, responsveis pelo pluralismo da
cultura nacional; salvaguardar a sobrevivncia e o continuado
florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade;
preservar os bens materiais e imateriais do patrimnio cultural
e histrico; estimular a produo e difuso dos bens culturais
de valor universal, formadores de conhecimento, cultura e me-
mria; priorizar o produto cultural originrio do Brasil. No
uma empreitada simples e os resultados demandam capacida-
de, coragem, percia e ousadia.
A pesquisa e anlise do tema e objeto desta proposta deve-
r oferecer subsdios importantes para debates e estudos mais
aprofundados, que verifiquem se os objetivos almejados pela
aplicao da Lei Rouanet esto sendo ou no alcanados, em
parte ou no todo, e proponham comportamentos e providncias
para que tais objetivos sejam resgatados e convenientemente
observados e controlados pela sociedade. De que modo o Gover-
no e a iniciativa privada podem atuar na construo, formulao
e promoo de direitos culturais e de polticas pblicas efetivas?
Que espaos, fruns e instncias especficas podem promover
essa interao e Articulao? De que modo tal Articulao pode
combinar controle, eficincia, justia e equidade social na dis-
tribuio e no acesso aos recursos pblicos (renncia fiscal) e
aos bens culturais, materiais e imateriais de valor universal? So
indagaes e desafios como esses que justificam a pertinncia e
a relevncia dos objetos deste trabalho.
Para este livro tomar forma h um desafio na identificao,
seleo, deciso e abrangncia do material a ser tratado e ex-
11
plorado, pois as questes e possibilidades do tema so extensas.
Alm disso, no h como fazer escolhas ou traar caminhos sem
levar em conta o contexto, os fatores, os aspectos e os interesses
locais pblicos e privados que moldam e interferem fortemen-
te nas definies e decises sobre as formas, prioridades, usos
e distribuio dos recursos pblicos para a promoo e pleno
exerccio dos direitos culturais.
parte da legislao vigente e de toda a discusso sobre
sua utilizao, suas alteraes e perspectivas, oportuno lem-
brarmo-nos de uma figura em geral negligenciada mas funda-
mental no patrocnio cultura: o mecenas. Afinal, a Lei Rouanet
foi originalmente proposta para incentivar o mecenato. Parece
justo resgatarmos essa figura, muito importante contemplada
na implantao da lei. Que a Lei Rouanet atenda s expectativas
e demandas para as quais foi criada fato incontestvel to
incontestvel quanto a premncia de se corrigirem as distores
existentes. Que os patrocinadores se convenam dos benefcios
de apoiar a cultura e utilizem de forma prudente e justa os bene-
fcios criados pela legislao um desejo. Que esses fatores se
unam para promover cultura em todas as suas manifestaes
uma obrigao pois essa, afinal, uma das poucas sadas para
redimir o ser humano da mediocridade.
ENTREvISTAS
15
A primeira vez que se tentou incentivar a cultura por meio da
iseno fiscal foi com a Lei Sarney, embrio da Lei Rouanet. At
ento, no esprito da lei, as empresas no investiam em cultura
porque no tinham conhecimento da importncia dessa inds-
tria. A ideia era que, com o tempo, os investimentos na rea fos-
sem realizados pela sua prpria excelncia e que, aos poucos,
as empresas deixassem de receber incentivos governamentais.
Essa situao durou at o governo Fernando Henrique Cardoso.
Na mesma poca, os cineastas brasileiros pleiteavam incenti-
vos baseados na renncia fiscal para investimentos em audiovi-
sual. A produo enfrentava dificuldades aps a extino da Em-
brafilme e do Concine, rgos governamentais de financiamento
e fiscalizao, se houvesse investimento na rea. Mostravam ao
Presidente da Repblica que os grandes movimentos do cinema
no produzidos em Hollywood tiveram apoio substantivo dos go-
vernos, sem que, praticamente, estes investissem um tosto. Tal
proposta, embora discutvel, acabou estimulando outras reas
que foram conquistando o mesmo benefcio o que era justo.
O benefcio trouxe deformaes: as empresas tinham poder
de deciso sobre onde e quanto investir. Assim nasceu uma in-
dstria de empreendimentos culturais baseada em falsa docu-
mentao e prestao de contas, notas frias e troca de facilida-
des. Havia outro problema: as aes eram esparsas e denotavam
alexandre Machado
[p. 13] Mauricio Lima/AFP/Getty Images
Rodrigo Baleia/LatinContent/Getty Images
16
a falta de uma linha de conduta consistente. Praticamente no
existiam o incentivo cultura e a percepo de que formar ou
enriquecer determinada empresa poderia depender de sua vin-
culao com posturas culturais.
Dizem que, apesar dessas deformaes, a injeo de recur-
sos financeiros movimentou a indstria da cultura. Para alguns
especialistas, houve dinheiro lanado no mercado, sim, mas sem
nenhum tipo de Articulao ou seja, ao acaso; era como atirar
dinheiro de cima de um edifcio para quem quisesse us-lo.
preciso separar da opinio que se tem da Lei Rouanet o uso que
dessa lei se faz.
O fato que, antes da Lei Rouanet, a indstria brasileira de
cultura vivia traumatizada, seja por falta de recursos, seja por
gestes como a do presidente Fernando Collor de Mello (1990-
1992), que destruiu tudo o que at ento existia.
A discusso Estado/Cultura, prejudicada pelas prticas ante-
riores, que favoreceram interesses paroquiais em detrimento das
polticas pblicas, est de volta. Uma das ideias por exemplo, a
de como aumentar a participao de Estados que no tm tido
acesso aos recursos incentivados parece simptica quando se
pensa na estrutura de um pas como o Brasil, mas colide com a
essncia da lei, que permite empresa privada destinar os recur-
sos de acordo com seus prprios interesses. Para uma empresa
sediada em So Paulo, a atuao ser preferencialmente em So
Paulo. claro que pode haver interesse em investir em regies
distantes mas, para isso, dever haver planejamento de longo
prazo e as polticas pblicas de investimentos estimulados no
podero ser cortadas de uma hora para a outra, acarretando
dificuldades para as empresas. Tem de existir algum tipo de tran-
sio, como fundos pblicos aptos a assumir gradativamente os
investimentos previstos.
As empresas estatais e empresas de capital misto, que tm
acionistas e interesses prprios como a Petrobras, por exemplo
devero ter suas polticas de investimento em cultura. Essa
uma questo relacionada com a boa ou a m gesto e no com
o fato de o capital ser pblico, misto ou privado.
A leitura que fao que os recursos tm de estar a servio
da publicidade e do marketing (incluindo a formao e a conso-
lidao de uma marca) e levar a empresa a avanar e ter bom
proveito no que estiver fazendo.
A Petrobras, que atua na rea cultural, um exemplo. Mono-
polista no mercado domstico de combustveis at a aprovao
de uma emenda constitucional em 1995, a companhia teve de
se preparar para enfrentar a concorrncia (que praticamente
no a arranhou, mas que ainda pode tentar constituir um mer-
cado). Por isso, at mesmo uma empresa como essa precisa
17
estar preocupada com o fortalecimento de sua marca. O que
discutvel se a empresa pode, para tal fim, utilizar recursos
de iseno fiscal.
Investir na rea da cultura depende de uma poltica interna
bem traada poltica que dever ser de to boa qualidade quan-
to os prprios produtos, respeitar a histria da empresa e ser
compatvel com sua atuao na atividade pblica. Para esse fim
foram criadas regras relativas aos patrocnios: os incentivos de-
veriam ser utilizados para determinadas finalidades e no para
qualquer projeto, como era feito anteriormente, quando no se
tinha nenhuma responsabilidade pblica. Criou-se um edital para
cada rea, com informaes sobre o valor a ser investido e os
critrios de julgamento. Esse edital tornou-se modelo.
Na rea de cinema, por exemplo, detectamos que, no Brasil,
um dos problemas era a criao de uma nova gerao de reali-
zadores. Lembramo-nos de que, em outra poca, antes dos fil-
mes havia a exibio de curtas-metragens. Montamos ento um
programa, o Curta Petrobras s Seis, programao gratuita de fil-
mes para estudantes iniciada em 1999. Foi esse um trabalho que
propiciou o aparecimento de novos realizadores e exps a marca
Petrobras a um pblico jovem e interessado em cultura. Investir
norteado pelos interesses da prpria empresa, mista ou privada
por mais honrados que sejam tais interesses no significa que se
est investindo em projetos bons ou ruins mas, sim, em projetos
no necessariamente identificados com o interesse pblico.
Os valores advindos da renncia fiscal no pertencem mais
empresa que os recolheu. Por isso, acredito que o direito de
definir sobre o uso desse dinheiro cabe ao Estado ou a um fundo
pblico direcionado cultura. preciso, porm, muito cuidado
para que essa instncia no fique atrelada aos governos.
18
Sou arquiteto especializado em projetos e montagem de exposi-
es de Artes visuais desde 1996. Convivo diariamente com a Lei
Rouanet porque a maior parte dos meus trabalhos sustentada
pelos mecanismos de renncia fiscal.
O mercado da cultura cresceu muito desde que comecei a
trabalhar nessa rea. No havia muitos profissionais especiali-
zados eu mesmo no sabia que existiam tantas possibilidades
quando um amigo me convidou para montar uma exposio de
jovens Artistas no local onde atualmente o Museu AfroBrasil,
em So Paulo. Para comear, reformamos o edifcio. Em seguida,
a Antrtica Artes com a Folha, exposio patrocinada pelas duas
empresas, concebida por cinco curadores que haviam viajado
por todo o pas para selecionar novos talentos e montada por um
cenotcnico que trabalhava com teatro, foi inaugurada em 1998.
Hoje, temos no Brasil mo-de-obra especializada para projetar
exposies de Artes visuais, segmento que cresceu com a maior
afluncia do pblico e sua exigncia com relao qualidade.
Alm do Artista bomio e romntico, que sempre vai existir, j
existem profissionais preocupados com detalhes tcnicos muito
precisos, como o ar condicionado ou o gs menos prejudicial
obra de Arte. E at o Arteso, que tem o conhecimento do traba-
lho a ser feito e andou to marginalizado, est comeando a ver
valorizado seu trabalho.
alvaro razuk
19
O mercado das Artes plsticas est maior e muitas empresas fa-
zem trabalho corporativo, pensando em como melhorar o contedo.
Nos ltimos anos, formaram-se profissionais aptos a tratar
das diversas facetas envolvidas na montagem de mostras, tais
como o emprstimo de obras de Arte entre museus e galerias
locais e internacionais, o desenho de embalagens para o trans-
porte, assim como iluminadores, tcnicos de projeo, conserva-
dores e curadores.
A conservao de uma obra de Arte trabalho intenso e pre-
ciso a obra tem que chegar reserva tcnica muito bem em-
balada, ficar um dia esperando at se aclimatar, para depois ser
aberta por um conservador que prepara o laudo correspondente.
O relatrio repetido quando a obra sai. Esse profissional pode
vir de vrias reas.
O conservador vem em geral da rea da histria ou das Artes
plsticas e acaba trabalhando em uma instituio, onde forma-
do por um mestre. Se houver algum problema, o restaurador
chamado. Restauradores de pintura, escultura ou papel podem
frequentar cursos especficos para esse mtier, inclusive no Bra-
sil. So profissionais razoavelmente bem remunerados e h para
eles um mercado de trabalho crescente em funo do aumento
no nmero de museus. Nesse processo, tambm o conservador,
o produtor, os montadores (o cenotcnico que vai construir e
pintar os painis, o marceneiro especializado e os montadores
de obras pessoais) tm noo de esttica e geralmente vm das
Artes plsticas.
As bienais de Arte tm tido importante papel na formao
dos profissionais: ex-assistentes de Artistas do mundo todo, es-
tudantes de Artes plsticas ou at mesmo Artistas formados
acabam se encaminhando para essas carreiras.
Antes, os trabalhos sofriam muitos estragos durante o trans-
porte e a exposio; hoje, isso melhorou muito, porque as exi-
gncias tcnicas para a montagem de uma mostra so maiores
e mais complexas.
H alguns anos, trabalhei na exposio dos pergaminhos do
Mar Morto, feitos de material orgnico um grande achado ar-
queolgico. Estavam esticados com fita adesiva! Um absurdo!
Atualmente, so conservados adequadamente, com controle de
temperatura e umidade, alm de rigorosamente protegidos con-
tra a ao dos raios ultravioleta. Nosso maior problema atual
tirar a cola da fita adesiva. Sei que existem documentos que
datam do Brasil pr-colombiano, feitos com um tipo de tinta que
reagiu com o prprio papel, danificando-os. Antes no se dava
ateno a esse tipo de detalhe, mas hoje h preocupao at
com o papel colocado atrs de uma obra no pode ser de qual-
quer tipo; tem de ser neutro.
20
Lembro-me de que, quando montei uma exposio do Artista
e designer Geraldo de Barros, o curador fez exigncias: tratava-
-se de trabalho feito com um tipo de frmica durvel, mas sujei-
to ao acmulo de umidade por ser de madeira aglomerada; era
preciso levar isso em especial considerao.
De h 10 anos para c, estamos aprendendo a trazer e levar
obras de Arte e, para tanto, existem transportadoras especiali-
zadas. claro que a Lei Rouanet, que viabilizou financeiramente
muitas exposies, foi indiretamente responsvel pelo avano do
nosso segmento. A lei muito importante e movimentou nosso
universo do trabalho, embora no seja ideal e apresente algumas
distores tais como, por exemplo, a concentrao de projetos
culturais no Sudeste do pas, reflexo da concentrao das empre-
sas que optam pela renncia fiscal. Sei que esse um problema
complicado, mas de qualquer forma perfeitamente possvel
encontrar profissionais qualificados fora do eixo RioSo Paulo,
se houver demanda.
21
Fundada em 1994 na regio do Capo Redondo, sul da cidade de
So Paulo, a ONG Casa do Zezinho atende cerca de 1000 crian-
as e jovens de baixa renda, dando a todos eles a oportunidade
de frequentar oficinas e atelis de Arte, praticar esportes e re-
ceber atendimento mdico e odontolgico.
Em um pas como o Brasil, todos os segmentos da sociedade,
inclusive o poder pblico, tm de se conscientizar quanto ao fato
de que vivemos a realidade social da diferena. Diferena nas
escolas, nas moradias.
O que ser um Zezinho? Qual a vivncia de um Zezinho?
Quais so os sonhos de um Zezinho? Quais so as expectativas
da famlia de um Zezinho?
Editamos um livro de fotos e desenhos, Santo Antnio das
Artes Zezinhos, de Saulo Garroux e Levi Mendes Jr., um retrato
da periferia a partir do ponto de vista das pessoas que fazem
parte da Casa do Zezinho. Tiramos fotos da casa, da famlia mas
no s isso; tambm pedimos s crianas que reproduzissem
as fotos em desenhos de seu prprio punho, para assim termos
um comparativo entre a viso do fotgrafo e a viso do Zezinho.
A cultura familiar, o bairro, o ambiente social e os sonhos
do Zezinho estaro presentes nas pginas do livro. necessrio
descobrir o que significa para esses meninos no ter formao,
informao, moradia, saneamento bsico e escola democrtica.
dagmar garroux
Tia Dag educadora e fundadora da Casa do Zezinho
22
Tambm necessrio que entendamos como treinar e capaci-
tar, em apenas seis meses, pessoas que pularam todas as etapas
do desenvolvimento humano brincar, alfabetizar-se, passear,
instruir-se. Enfim, por que motivo os pobres tm de se capacitar
apenas para telemarketing, limpeza ou portaria? No que essas
profisses sejam menos dignas, mas esses jovens sequer tiveram
a chance de dizer o que querem ser!
Retratar o Zezinho em todos os espaos que ele percorre faz
parte da pedagogia do arco-ris, que criei ao longo destes anos
de trabalho: se os pilares da educao formal so ser, saber e
fazer Arte, na pedagogia do arco-ris foram transformados em
filosofia, cincia, conhecimento e Arte.
Os sinais da educao so os cinco sentidos, que tm de estar
muito mais aguados. Para se conhecer o Zezinho, so impres-
cindveis olhar e ouvido apurados. So tambm indispensveis o
tato que representa, na realidade, o afeto: o abraar, o beijar e
o olfato. Os participantes da Casa do Zezinho vivem em lugares
que cheiram mal; colocamos na Casa, ento, incenso e perfume
para tornar o ambiente agradvel, de modo a penetrar na alma
e utilizamos tambm a msica para aguar a audio. Atrair,
encantar o jovem na cadeia do conhecimento um dos papis
da Casa do Zezinho. Nesse tipo informal de educao, o produto
cultural absolutamente imprescindvel.
Temos um banco de dados dos Zezinhos que passaram pela
Casa e suas respectivas histrias. Perdemos vinte deles: foram
para o trfico e morreram, esto presos ou se prostituram. Mas
tambm temos exemplos como o do Agenor, hoje educador de
Artes plsticas da Casa, que entrou aqui aos 12 anos, cresceu,
fez faculdade. A pessoa sobe de patamar na vida. Sentimos tanto
isso que pretendemos todos os funcionrios da Casa tenham um
dia sido Zezinhos.
No necessrio possuir mente evoluda para investir em
cultura. Investe-se em cultura quando se percebe que possvel
criar uma identidade.
Santo Antonio das Artes Zezinhos foi um projeto editorial
que recebeu recursos incentivados por meio da Lei Rouanet.
Eu no entendia a lei. Ficava confusa quanto ao que podia e
que no podia ser entendido como cultura portanto, o que po-
dia e que no podia ser financiado. difcil fazermos uso de algo
que no entendemos por completo. S comecei a recorrer Lei
Rouanet em 2009, com a ajuda de produtores culturais.
O livro, que no didtico, chega como produto cultural e
educacional. Ser distribudo a empresas, fornecedores, ONGs
parceiras e algumas faculdades. um projeto realizado com o
patrocnio do banco Socit Gnrale, francs. Levantamos
R$180 mil graas ao apoio da Lei Rouanet. O banco j nosso
23
parceiro h dois anos no projeto chamado Comunicao e Educa-
o para o Sculo 21, destinado a jovens de 15 a 21 anos.
Eu conhecia uma funcionria do banco que tinha informa-
es sobre a Casa do Zezinho. Ela me levou ao Instituto Soci-
t Gnrale, onde apresentei o projeto do livro e mostrei por
que era inovador. Era um mundo que o diretor da empresa
no conhecia.
O que empresrios e executivos notam quando vm Casa
do Zezinho so crianas pobres em um bairro de classe mdia no
alto da montanha. Mas a primeira coisa que fao lev-los at a
favela de onde realmente vem o Zezinho.
De uns anos para c, tenho recorrido a outras leis como, por
exemplo, a Lei Municipal de Incentivo Cultura (Lei Mendona),
que permite a pessoas fsicas ou jurdicas patrocinar um projeto
cultural e deduzir do seu Imposto Sobre Servios (ISS), ou do
seu Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), uma parte do
valor investido.
Quando chegamos ao Capo Redondo, o local era zona de
guerra. Observamos que as poucas palavras de que esses me-
ninos dispunham para se expressar a precariedade de seu vo-
cabulrio gerava violncia; eles entravam em conflito em qual-
quer tipo de negociao, o que acarretava agresso fsica e at
mesmo mo armada.
Hoje tudo isso mudou completamente. Os moradores apren-
deram a se organizar nos prprios bairros, criaram associaes
e at mesmo negcios prprios. s vezes difcil reconhecer a
importncia da cultura na formao do indivduo, mas o maior
potencial dos moradores da periferia , sem dvida alguma, a
capacidade de Articulao que eles adquirem por meio das Artes
visuais, da msica e da dana.
A princpio, a influncia que a criana mostra no bem acei-
ta pela prpria famlia. Aos poucos, porm, conseguimos alterar
esse estado de coisas. No ltimo inverno, uma de nossas edu-
cadoras presenteou um Zezinho com um cachecol. Os demais
tambm quiseram ter cachecol... A educadora trouxe agulhas e
novelos para quem quisesse aprender a fazer cachecis. Meninos
e meninas se candidataram. Tricotaram e levaram seus trabalhos
para casa. Foi com isso que a maioria das mes se lembrou do dia
em que elas aprenderam a fazer tric. Houve dilogo. Tric tam-
bm cultura. Temos outros projetos que queremos apresentar
Lei Rouanet: a orquestra de tambores e um grupo de dana.
24
cultura toda e qualquer produo do ser humano da pedra
que virou machado na pr-histria fibra tica e engloba o
domnio da matria e o processo de criao. o que torna a vida
melhor e mais bonita, em todos os sentidos, incluindo a questo
do simblico: a obra de Arte, a mais nobre de todas as mani-
festaes. Faz parte desse universo o processo que o homem
desenvolveu para tornar-se capaz de conviver com a natureza,
com o outro e consigo mesmo ao descobrir sua condio. Nesse
sentido, a cultura tem grande abrangncia.
Temos um imaginrio poderoso ainda em grande parte im-
portado, mas adaptado nossa realidade o que o torna dife-
rente do dos pases onde fomos busc-lo. Temos uma fuso de
imaginrios. Nunca fomos to globais e nunca fomos to locais
procuramos o equilbrio entre as duas tendncias e vivemos
um momento em que se percebeu a importncia dessa realidade.
Mas ainda h mais discurso do que prtica. Nosso Ministrio
da Cultura conta com uma parcela nfima do Oramento da Unio.
Alguns pases nem isso tm, o que torna nossa situao mediana;
mas sabemos que, em outros, a cultura tudo. A Frana um
exemplo: para ser o que , valoriza sua tradio cultural fortssima.
H anos, quando Mitterrand ainda estava no poder, Jacques
Lang, ministro da Cultura e herdeiro de grandes nomes como
o de Andr Malraux, criou a ideia da administrao da cultura:
danilo Miranda
25
ele no tratava do assunto Cultura dentro do seu ministrio, do
ponto de vista administrativo, mas tratava de qualquer assunto
que envolvesse cultura em qualquer ministrio. justamente o
que tem de acontecer.
Quando se deseja melhorar o sistema penitencirio, por
exemplo, a cultura tem um papel a desempenhar; quando h
necessidade de mudana de paradigmas comportamentais, a
cultura tem um papel a desempenhar; quando a comunicao
necessita de alteraes, a cultura tem um papel a desempenhar.
Essa importncia da cultura ainda no chegou ao ponto de ser
entendida como parte de um processo, mas alguns pases j che-
garam a esse nvel de desenvolvimento.
O Brasil j avanou bastante, mas ainda tem um longo cami-
nho a percorrer. Quando dispunha da estrutura administrativa
do Ministrio da Educao (que at hoje se chama Ministrio da
Educao e Cultura MEC mas, na realidade, apenas Minist-
rio da Educao), a rea cultural era contemplada com recur-
sos, uma vez que a reserva constitucional para a educao lhe
garantia uma parte. Com a criao do Ministrio da Cultura, a
reserva acabou questo tcnica, mas de peso. Ou seja, houve
valorizao da cultura, que chegou ao nvel ministerial; mas, por
outro lado, houve tambm desvalorizao, porque foram retira-
dos recursos antes garantidos. Infelizmente, isso no foi resta-
belecido at hoje. Existe um discurso de valorizao da cultura,
de transformar o Ministrio da Cultura em fora expressiva no
pas mas, na prtica, o dinheiro previsto no oramento no
chega a 1% do mesmo.
O ex-ministro Gilberto Gil pretendia chegar a 1%. O minis-
tro Juca Ferreira tambm. Em pases que seguem a cartilha da
UNESCO fala-se no mnimo de 2% do oramento.
O Estado tem de se envolver em duas reas: primeiro, a que
eu chamaria de infraestrutura dando condies para que a cul-
tura acontea em salas, museus, locais histricos, velhas igre-
jas, velhos centros espritas, velhas sinagogas antes de criar
qualquer coisa nova, precisamos garantir o que est em pre-
crio estado de conservao. A Lei Rouanet de alguma forma
tem de contribuir para isso. Em segundo lugar viria o fomento:
dar condies e dispor de aes efetivas para que aconteam
concursos, cursos, bolsas, acesso para aqueles que iro criar e
consumir. Ao Ministrio da Cultura no cabe realizar msica, te-
atro, etc. mas, sim, abrir caminhos para que estes aconteam.
A Lei Sarney, que tinha aspectos prticos complicados, teve
funo didtica porque criou um modelo. A Lei Rouanet gerou
uma mentalidade por parte do empresariado e da sociedade bra-
sileira. Cumpriu e cumpre essa misso e aqui reside a dvida a
respeito da poltica de tbula rasa que a reforma pretende fazer.
26
Esquecer e comear de novo seria errado. preciso ver o que
est errado e tentar corrigir os erros.
Est errada, por exemplo, a vinculao do marketing ao
incentivo. A soluo o poder pblico exigir o que a lei j es-
tabelece: o interesse pblico como critrio para a aprovao
de projetos.
No mercado de empresas privadas existem fenmenos curio-
sos que trazem benefcios principalmente para os bancos. Tais
empresas criaram suas prprias estruturas ligadas cultura
isso tem sido positivo para sua imagem mas deveria haver uma
definio mais clara desses investimentos, patrimnio realizado
com dinheiro pblico. No acho que isso seja totalmente negati-
vo, mas tem de ser regulamentado.
A Petrobras, por exemplo, empresa de capital misto, tem par-
te dos seus recursos vinculada a uma verba publicitria e de
marketing. O que ela no pode fazer utilizar os recursos da Lei
Rouanet, resultantes de renncia fiscal, como parte dessa verba
de marketing. No pode ser o mesmo dinheiro. Essa mistura
o grande defeito da lei, que tem de ser corrigido. Um Artista
como o Roberto Carlos no precisa da lei, mas nada o impede de
us-la, embora possa no haver interesse pblico em suas apre-
sentaes. Quando falo em interesse publico, falo da expresso
Artstica, de seu contedo e da possibilidade de permitir acesso
populao. Quem recebe recursos da Lei Rouanet no deveria
vender o espetculo a preo de mercado.
O Vale Cultura uma boa sada: vai trazer recursos para a
cultura que iro estimular o acesso mesma.
O eixo RioSo Paulo a regio do pas que produz informa-
es e forma opinies. Com o Vale Cultura, trabalhadores de todo
o pas tero acesso a esses bens e podero consumi-los. Na vi-
rada do milnio, o SESC fez um levantamento para determinar o
que estava acontecendo no pas na rea cultural. Era uma espcie
de radiografia sem interveno nem de rgos governamentais,
nem da imprensa, e nem mesmo dos SESC locais. Conseguimos
localizar cerca de 150 produtores. Para que a populao brasileira
conhea o trabalho nascido fora do referido eixo, preciso traar
uma poltica que d condies para a realizao desse trabalho.
No SESC, temos alguns programas como, por exemplo, o Palco
Giratrio, que leva uma pea teatral do Amap para a Bahia; da
Bahia para o Rio Grande do Sul; do Rio Grande do Sul para o Mato
Grosso... Fazemos um giro de maneira objetiva. Trata-se de um
grande festival nacional que lota as salas de espetculos.
Temos de avanar. At o final desta dcada teremos um PIB
de pelo menos US$ 3 trilhes e certamente mais de 200 milhes
de habitantes uma realidade que nos vai colocar entre as cinco
ou seis principais naes. Copa do Mundo, Olimpadas... tudo isso
27
no passa de mero sinal; o mais importante descobrir nossa
vocao em termos de cultura, de educao mas ainda no
temos infraestrutura para tanto. Ainda existe espao para as leis
de incentivo cultura, como a Lei Rouanet.
O fator determinante deve necessariamente ser o interesse
pblico. A lei clara nesse particular, que no obedecido. E o
mecanismo de controle, de verificao e de acompanhamento
ainda muito frgil.
28
A Lei Rouanet foi criada em um determinado contexto. Hoje, a
cultura tem nova conceituao e novos usos para o desenvolvi-
mento, para a mediao de conflitos, para a questo da preser-
vao patrimonial e, finalmente, como foco em algumas reas
por exemplo, a das grandes exposies. Em um ambiente glo-
balizado, onde so muitas as variveis, a cultura um vetor de
desenvolvimento. Estamos no Rio de Janeiro, onde a periferia
est no centro desafiando a prpria geometria. A cultura a
ponte entre esses mundos partidos. O ex-ministro da Cultura, Gil-
berto Gil, disse que a cultura possui trs dimenses: a simblica,
a cidad e a econmica.
Quando discutimos a Lei Rouanet, falamos de questes que
jamais poderiam ter sido pensadas na poca em que foi elabo-
rada. A cultura digital, as comunidades virtuais, os portais para a
literatura, por exemplo, ainda no se enquadram na lei, embora
estejam alinhados com a proposta do Ministrio da Cultura (MinC)
de apoiar no s a criao cultural, mas tambm sua difuso. So
diretrizes amplas e positivas. Sou admiradora da poltica pblica
para a cultura elaborada pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferrei-
ra. Quando o ministro Gil tomou posse, lembro-me de que um jor-
nalista lhe perguntou: Ministro, qual ser a caracterstica de sua
gesto? Ao que ele respondeu: Abrangncia. Essa tnica vem
subsidiando toda a ao do MinC se entendermos abrangncia
eliane costa
Formada em fsica, Eliane Costa ingressou na rea de informtica da
Petrobras em 1975. Atuou como produtora cultural independente.
gerente de patrocnio da Petrobras
29
como acessibilidade aos bens culturais e ao financiamento via edi-
tais, com melhor equilbrio regional da distribuio dos recursos.
a democratizao do acesso nas duas pontas: para o produtor
cultural financiar um projeto por meio de seleo pblica; e para
o cidado poder assistir a um espetculo.
Seria ideal que projetos em sintonia com a poltica pblica
para a cultura conseguissem o patrocnio incentivado de 100%.
Estou aqui me referindo cultura digital, mas no precisamos ir
to longe: enquanto os projetos de msica popular podem rece-
ber 30% do patrocnio (Artigo 26), a lei permite um incentivo
de 100% para a msica erudita (Artigo 18). Um projeto de m-
sica popular da Paraba, por exemplo, que tem muitssimo me-
nos oportunidades de acesso s fontes de financiamento, vai ter
menos seduo para o empresariado interessado em investir em
cultura do que outro, de msica erudita, no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro ou de So Paulo. So distores.
A legislao no permite hoje a abrangncia da proposta
do MinC. A acessibilidade por exemplo, das pessoas que tm
deficincias visuais, auditivas ou dificuldade de locomoo
no recebe a ateno da Lei Rouanet. Acabamos de lanar um
projeto, escolhido mediante edital de seleo pblica, chama-
do Musibraile, software que permite imprimir partituras em
braile anteriormente s existia um mtodo vendido na Frana
por R$ 800 mil. O Musibraile destina-se a msicos com defi-
cincias visuais que podero imprimir partituras em qualquer
impressora e no apenas nas impressoras braile, que custam
R$27 mil reais. No meu entender, tal programa deveria ter in-
centivo de 100%, mas a Lei Rouanet no prev isso: esse pro-
grama se enquadra na categoria msica, mas pressupe inter-
veno da informtica, item imprevisvel em 1991. Deveramos
tentar fazer com que os festivais de cinema se adequassem a
essas pessoas: filmes com legendas para deficientes auditivos
e udio-descrio para deficientes visuais.
O incio da gesto do ministro Gilberto Gil marcou uma era
na questo da poltica pblica para a cultura. Novos patamares
para a construo da poltica pblica foram colocados de for-
ma participativa, com fruns municipais, estaduais, nacionais
e virtuais. Legislar de cima para baixo, de forma centralizada,
bem mais rpido do que trabalhar de forma democrtica.
Democracia d trabalho e leva tempo, mas os resultados tm
mais validade e repercusso. Como cidad, sou entusiasta do
contedo da poltica pblica e do seu modelo participativo de
construo. Direitos autorais ou acesso ao conhecimento, por
exemplo, constituem questes que so discutidas em um frum
de cultura digital. essa uma nova forma de construir polticas
pblicas para a cultura.
30
O MinC conseguiu grandes avanos nos ltimos seis anos.
Hoje, muitas empresas, privadas ou mistas, que no trabalhavam
com editais de seleo dos projetos, aderiram a essa poltica e
os selecionados mencionam solues de acessibilidade, preos
de ingressos, apresentao em espaos alternativos mais dis-
ponveis populao como um todo. O estmulo aos editais de
seleo pblica so um avano fundamental.
At mesmo as organizaes que atuam no mercado privado
como, por exemplo, a Votorantim e a Natura aderiram aos edi-
tais. Essa poltica fundamental para o acesso do produtor. A Pe-
trobras tem um projeto o registro das canes de acalanto de
mes indgenas de tribos do sul do Par, que dificilmente conse-
guiria patrocnio (at mesmo de uma empresa como a Petrobras,
preocupada com a questo do registro de patrimnio material)
se ele no tivesse chegado via edital de seleo pblica mesmo
porque muitas empresas no tm acesso aos gabinetes ou esto
mais preocupadas com a questo da visibilidade da sua marca.
No nenhum demrito as empresas se preocuparem com
sua prpria promoo. Acho que cada empresa tem sua poltica
de patrocnio associada a um planejamento estratgico e a um
posicionamento no mercado. A utilizao abusiva dos incentivos
oferecidos pela Lei Rouanet, como a promoo de produtos ou a
promoo da prpria empresa, existe cada vez menos. Claro que
no podemos generalizar, mas havia muito disso no mercado. O in-
centivo da Lei Rouanet a renncia fiscal; portanto, trata-se de re-
curso pblico. Acho bastante justo e os proponentes de projetos
patrocinados entendem isso de forma natural que determinado
projeto retorne para a sociedade de alguma forma: seja pelo seu
produto final, seja pela contratao de estagirios, seja pelo in-
tercmbio do conhecimento criado. Todos os festivais de cinema,
teatro e msica que a Petrobras promove tm exibies gratuitas
em escolas e praas e resultam em oficinas para a comunidade de
Artistas locais. Essa uma atuao da Petrobras, no exigncia da
lei; mas segue a poltica pblica de cultura iniciada pelo ministro
Gilberto Gil e mantida pelo ministro Juca Ferreira.
A Petrobras patrocina vrios projetos que trabalham com o
fortalecimento da cidadania, construo do sentimento de per-
tencimento e recuperao de renda. a maior empresa patroci-
nadora da cultura brasileira h at mesmo pessoas no exterior
que pensavam ser Petrobras uma produtora de audiovisual, uma
vez que todos os filmes que l chegam so por ela patrocinados!
Temos projetos dentro das reas discriminadas pelos editais
e outros que chamamos de escolha direta projetos convida-
dos pela empresa ou por ela apresentados e julgados aptos. So
projetos de oportunidade. Alm disso, temos os projetos associa-
dos s polticas pblicas encaminhados pelo MinC, o que amplia
31
nossa seleo pblica de editais externos. H basicamente trs
frentes: projetos selecionados por editais, projetos da escolha
direta e projetos da seleo pblica. De 2001 at hoje, recebemos
20 mil e poucos projetos ao longo de um ano. Temos mais de mil
projetos escolhidos em processo de seleo pblica. A comisso
selecionadora formada por pessoas externas companhia e
soberana. Essa uma inovao que passou a ser seguida por
outras empresas e constitui referncia no MinC, tanto na rea
privada quanto na estatal. Neste momento, por exemplo, uma co-
misso de msica trabalha sob a coordenao de um funcionrio
da Petrobras que no tem direito a voto. Quem vota so pessoas
da rea de msica, tais como realizadores e crticos. Mais de 250
pessoas da rea acadmica, da imprensa e do mercado j atu-
aram nessas comisses. Para uma empresa como a Petrobras,
que trabalha com o patrocnio de projetos culturais para agregar
visibilidade e reputao sua marca, isso muito importante.
Por outro lado, nem todo projeto projeto de mercado: os
projetos so aes que o Ministrio da Cultura tem de empre-
ender e que no podem disputar recursos com os proponentes
que pleiteiam incentivos. preciso, porm, ficar muito atento ao
problema de que um dos grandes usurios dos recursos dispo-
nibilizados pela Lei Rouanet o prprio poder pblico federal,
estadual e municipal.
32
Na cultura, h uma avalanche de recursos sendo investidos em
diversos segmentos. A Lei Rouanet possibilitou enormes avan-
os: no s permitiu a realizao de projetos, mas tambm pro-
fissionalizou o setor. Hoje h mais Artistas e mais produtores,
mas existem tambm mais tcnicos, contadores, auditores e
advogados especializados. Eu mesmo sou advogado especiali-
zado em direito administrativo e trabalho com cultura, esporte
e terceiro setor.
Existem trs formas de o produtor cultural buscar recursos
incentivados por meio da Lei Rouanet:
1. ir atrs do dinheiro do Estado. Recorre-se ao Fundo Nacio-
nal de Cultura, mas 20% saem do bolso de quem deseja realizar
o projeto (com exceo das emendas parlamentares e doaes
vinculadas ao Fundo);
2. optar pelo modelo privado. O produtor cultural procura
uma empresa e esta oferece todo o patrocnio; e
3. escolher o mecenato. O produtor submete um projeto ao
Ministrio da Cultura ou a outro mecanismo de incentivo em ou-
tra esfera do governo. Se o projeto preencher os quesitos e for
aprovado, recebe uma chancela. De posse da chancela, o produ-
tor ento procura uma empresa disposta a transferir o dinheiro
para o projeto. Esta opo dar ao financiador o direito de abater
entre 64 e 100% de seu Imposto de Renda devido.
Fbio cesnik
Advogado, scio da Cesnik, Quintino e Salinas Advogados,
Fbio Cesnik autor do livro Guia do Incentivo Cultura e co-autor dos
livros Projetos Culturais e Globalizao da Cultura
33
O mecenato como indutor de poltica no pode acabar, pois
excelente. Os incentivos so instrumentos tticos que tm de se
perpetuar e ser aperfeioados.
O Estado, quando regulamentou a Lei Rouanet em 1995, ven-
deu a ideia do investimento em cultura como estratgia de co-
municao. Criou uma cartilha chamada Cultur , Bom Negcio.
Havia textos do Ministrio dizendo que os empresrios poderiam
abater parte do Imposto de Renda e fazer marketing com o di-
nheiro do incentivo fiscal. Os empresrios entenderam que pode-
riam ser agentes ativos do processo. O Estado vendeu o modelo
e, ato contnuo, endeusou o investimento em comunicao. No
momento seguinte, porm, demonizou quem havia optado por
isso. O processo ficou muito do lado do marketing, por conta do
que foi vendido pelo prprio Estado. Mas isso nada tem de ilegal.
Em matria de renncia fiscal da Unio, os incentivos cultura
representam uma parcela muito pequena dos incentivos conce-
didos a outros segmentos.
Para entender a razo de ser das leis de incentivo, preci-
so entender que elas so criadas para atender algum tipo de
poltica pblica. A reduo do IPI na venda de automveis, por
exemplo, tem em vista a manuteno da gerao de emprego e
de renda dentro do setor automobilstico. O incentivo ao papel
jornal que permite os jornais chegarem s nossas casas com
o preo de costume fruto do compromisso do Estado com a
renncia de impostos (esses de natureza constitucional).
No caso da cultura, a poltica pblica que est por trs da
criao das leis de incentivo ainda se acha mal resolvida. Se
imaginarmos que haver desenvolvimento social e econmico,
as leis tm cumprido o seu papel mas isso est ocorrendo de
maneira pouco ordenada e, s vezes, desequilibrada.
A Lei Rouanet tem de permanecer em vigor. Mas o que preci-
sa ser mais bem desenvolvido questo nada grave em relao
ao mecanismo pensar, do ponto de vista das polticas pbli-
cas, como e onde queremos e podemos chegar.
No futuro, tal como agora, a Lei Rouanet ser criticada do
ponto de vista da distribuio regional dos investimentos. Desde
o momento em que foi concebida, sabia-se que as regies com
maior nmero de empresas com lucro real e maior possibilida-
de de investir na cultura seriam as do Sudeste. Hoje a crtica
no apresenta nenhuma novidade. No caso do Vale Cultura, o
modelo est sendo pensado da mesma forma: quem pode desti-
nar dinheiro ao Vale Cultura a empresa tributada no lucro real,
e somente ela. (O Vale Cultura, na verdade, no faz parte da Lei
Rouanet, mas pertence a outra lei autnoma, nova).
A Lei de Incentivo ao Esporte d 100% de incentivo em todas
as atividades esportivas financiadas, na atividade do desporto
34
educacional, na de participao e na do desporto de rendimento.
Com relao ao desporto educacional, metade dos que atuam
nas aes educacionais realizadas por meio da lei tem de ser
proveniente da rede pblica de ensino um critrio social da lei.
As atividades de lazer e participao tm de ser realizadas prio-
ritariamente em reas de vulnerabilidade social, item que leva
construo de quadras em favela, por exemplo. J o desporto
de rendimento estimula a formao de atletas para competies.
O foco justamente esse e no tem, a priori, a preocupao de
desenvolvimento social mas, sim, a de formao de atletas.
esse o olhar que ainda no temos quando trabalhamos com
a Lei Rouanet. Quando perguntaram ao ministro do esporte se
ele achou injusto que o treinamento de jogadores que, no futuro,
seriam vendidos por milhes ao exterior fosse realizado com o
dinheiro do Estado, ele respondeu que isso significava que o pro-
jeto dera certo. Se o desenvolvimento de projetos de rendimento
gera bons jogadores e estes representam lucro aos clubes, si-
nal de que o projeto foi vitorioso.
Na rea da Rouanet, criou-se o mito de que tudo deve ser
social. Toda vez que o projeto de um Artista famoso aprovado,
essa perspectiva social teria de estar presente? Como podemos
olhar para um projeto dessa natureza sob um ponto de vista so-
cial? Desenvolver um projeto de mercado como, por exemplo,
possibilitar a vinda do Cirque du Soleil para o Brasil significa
gerar emprego e renda. O debate, porm, tem muita hipocrisia
em relao ao valor dos ingressos, por exemplo.
Antes de definir onde a lei tem de verter suas prioridades,
preciso traar polticas diferentes para coisas que so diferen-
tes. Existe preocupao com as prioridades tanto por parte do
governo quanto do setor privado, o que mostra que as pessoas
j esto bem conscientizadas.
O debate em torno da Lei Rouanet tem dois pontos: primeiro,
precisamos definir aonde queremos chegar em termos sociais
e econmicos; segundo, lembrar-nos de que esse mecanismo
convive com outros. Mexer nos instrumentos de financiamento
da cultura significa trazer todos os mecanismos para o mesmo
debate na medida em que disputam a mesma rea.
Em tempo: hoje, poucas pessoas fsicas investem em cultura
parte de seu Imposto de Renda devido. So as empresas que
fazem esse tipo de investimento, esperando retorno para suas
marcas. Para as pessoas fsicas que tm 6% de seu IR dispon-
veis, h mais de uma opo: investir em cultura (Lei Rouanet),
cinema (Lei do Audiovisual), esporte (Lei do Esporte) ou infncia
(Estatuto da Criana e do Adolescente).
35
Trabalho em duas frentes: numa empresa onde se editam livros e
se realizam eventos, seminrios e exposies; e na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, onde coordeno o Programa Avanado
de Cultura Contempornea. A Universidade tem seus prprios
canais de financiamento, tais como o CNPQ mas na primeira
atividade que, desde o comeo, tenho viabilizado todos os meus
projetos com o apoio da Lei Rouanet.
Desenvolvo projetos culturais ligados literatura: o Portal
Literal site oficial de cinco grandes autores (Lygia Fagundes
Telles, Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verssimo e
Zuenir Ventura) de uma revista online chamada Idiossincrasia,
de resenhas e Artigos, nasceu em 2002. Desde 2008, o Portal
Literal passou a ser 2.0, ou seja, abriu-se a um formato cola-
borativo no qual, a partir da votao de seus pares, qualquer
interessado pode ver seu trabalho nele publicado. O Portal, des-
de o comeo, tem o patrocnio da Petrobras. Sua insero dele
na Lei foi extremamente problemtica porque a Lei no estava
preparada para absorver projetos da rea digital. Onde colocar
o Portal no mbito das categorias da Lei? A Lei do Audiovisual,
opo aparentemente possvel, mostrou-se invivel, porque no
admitia incluir literatura, ainda que em mdia digital. Todas as
renovaes deste patrocnio trouxeram problemas por conta do
despreparo da Lei para lidar com novas linguagens. necessria
Heloisa Buarque de Hollanda
36
uma reviso da Lei Rouanet. Ela deveria, alm disso, reconhecer
que estamos numa era digital. No nosso caso, queramos apenas
divulgar literatura em grande escala, sem qualquer inteno co-
mercial ou de venda de livros. Mas para a lei literatura livro e
s reconhecida no formato impresso...
Outro srio problema da Lei Rouanet o tempo exigido para a
formatao e aprovao do projeto e obteno do patrocnio. No
h mecanismo pr-determinado. Quando, porm, surge algum
problema a como, por exemplo, a mudana de um funcionrio
o processo acaba ficando travado. Em consequncia disso, pode
acontecer de se perder um patrocnio por decurso de prazo.
Passa o ano e todo o processo tem de ser reiniciado. Quan-
do se tem o patrocnio assegurado, inclusive mediante a apre-
sentao de uma carta de inteno, no certo que o tempo de
aprovao na Lei vai conseguir ser sincronizado com o tempo
de garantia daquele patrocnio. No existem na Lei mecanismos
prprios para esses casos de patrocnio j assegurado. Eu mes-
ma j perdi dois patrocnios grandes porque o projeto no foi
aprovado a tempo. Para se conseguir uma aprovao a tempo,
importante preverem-se idas a Braslia, pois existe aqui [no
Rio de Janeiro] uma auditoria que no tem poder decisrio. A
existncia de uma ouvidoria local com maiores poderes facili-
taria bastante. Tem-se de investir em passagem e estadia para
ir a Braslia e verificar o andamento do projeto. Isso deveria ser
feito regionalmente.
Quanto mentalidade reinante, tive um projeto, por exemplo,
do fotgrafo brasileiro Alair Gomes, j falecido, que estava ex-
pondo na Frana. Eu tinha todo o material em mos para produ-
zir um livro e uma exposio; planejava um grande evento, pois
o fotgrafo era muito bom. Ao procurar patrocnio, disseram-me
que ele no era bom para a imagem da empresa porque gostava
muito de fotografar rapazes na praia. A obra dele, porm, no
agressiva nem pornogrfica; simplesmente uma questo geo-
mtrica, de luz e sombra. Ento, na verdade, tanto a pessoa dele
quanto o tema por ele escolhido estavam sendo alvos de crtica
injustamente negativa.
Depois de algum tempo, organizei um guia gay chamado Rio
Diferente, muito legal, falando do Rio de Janeiro, comentando fa-
tos observados na cidade agora eleita paraso gay. Apresentei
o projeto Johnson & Johnson; mas no consegui o patrocnio,
porque no guia eu mencionava at mesmo camisinha e AIDS.
No consegui patrocnio de nenhuma empresa, pois a temtica
era homossexual. Existe muito disso o af de no associar
imagem da empresa noes tidas por algumas pessoas como
negativas. Mas a Johnson & Johnson no fabricante, entre
outras coisas, de camisinhas? Tenho um filho que cineasta e
37
est fazendo uma coisa chamada Arte Pornogrfica, com gran-
des nomes das Artes plsticas como, por exemplo, Cildo Meirel-
les. Meu filho tem encontrado muita dificuldade para fazer o que
eu chamaria de obra pornogrfica, e a respeitabilidade de alguns
dos autores questionvel. Isso at d para entender um pouco;
eu gostaria de agregar minha imagem figura do Meirelles, mas
no sei o que isso significa em termos de uma empresa vincular-
-se a um patrocnio desses. As empresas agora gostam do social,
com cultura de periferia e marketing social. O verde tambm;
no trabalho nessa rea, mas podemos dizer que existem dois
polos hoje o social e o verde ou, ento, grandes obras da
humanidade que no se encontram em nenhuma dessas duas
vertentes. Ideias novas so de difcil aceitao.
Essa noo de verde um lance de marketing das empre-
sas. As empresas gostam do social porque agregam uma ima-
gem. No sei se isso veio por conquista das periferias; acho que
o marketing social tem hoje um valor profundo e, claro, traz
benefcios comunidade. Podemos dizer que as pessoas, de al-
guma forma, esto chegando s questes culturais. E a Lei Rou-
anet tem a papel muito importante. O aspecto de maior valor da
Lei Rouanet tem at agora sido a Arte, a literatura e a msica.
Considero Gilberto Gil um gnio, pois foi o primeiro Ministro da
Cultura que estendeu esse patrocnio para o Brasil inteiro. Meta-
de dos Pontos de Cultura no funciona mas isso pouco impor-
ta, pois h um conceito para a poltica cultural. No era possvel
continuar tudo nas mos s do Carlos Barreto ficar nas mos
de muito pouca gente. Foi do Gil a ideia de que criar cultura
muito mais ampla do que fazer cinema. A partir disso ele criou os
Pontos de Cultura, que valem mais como conceito. Isso ampliou a
maneira de olhar para o Brasil e para a cultura. Cultura passou a
ser uma coisa mais vasta. H muito material, uma economia cria-
tiva. Tecer tapetes, por exemplo, passou a ser considerado cultu-
ra. Constataram-se outras formas de reconhecimento de cultura,
de patrimnio cultural, e a segunda coisa que Gil fez foi abrir
espao para a era digital, que ainda no foi metabolizada pela lei.
De qualquer forma, foi ele que possibilitou isso. A fulminante ges-
to dele marcou um avano na perspectiva. Estou lendo um livro
chamado Free, do Chris Anderson, onde h um captulo sobre o
Brasil e a gesto Gilberto Gil. um best-seller americano sobre
direito autoral compartilhado, um livro top de linha.
As possibilidades vislumbradas j transpem um pouco o eixo
RioSo PauloBraslia. Estou elaborando, por exemplo, a coleo
Tramas Urbanas. Ao todo sero vinte livros. Foi muito difcil encon-
trar material fora desse eixo, mas eu sabia que era preciso encon-
trar. Fui procurando e achando e, se no fosse pela presso que
senti, isso no teria ocorrido. Tramas Urbanas so movimentos
38
culturais da periferia, contados por seus protagonistas. No eixo
RioSo Paulo mais fcil, por ser evidente. Neste momento vou
lanar um guia do Recife, a respeito de Arte eletrnica na favela.
Dentro desse movimento h um personagem no Par que se
chama Pablo Capil inventor de um sistema financeiro chama-
do CuboCard. Ele inventou um carto de crdito de trocas e fez
uma relao de preos de servios. Dessa forma, tantas horas de
estdio de gravao valem tantos pontos no CuboCard. A impres-
so de discos vale outros tantos. tudo eletrnico. Por exemplo,
um grupo do Rio Grande do Sul que no tem dinheiro para gra-
var um CD consegue algum que faa a gravao em troca de
um servio com o CuboCard. um escambo formal entre vrias
reas culturais.
Os Pontos de Cultura ajudam muito a descobrir o que h de
interessante e inovador sendo feito fora do eixo cultural tradi-
cional, porque do acesso a um catlogo de produtores. H um
evento anual de que eu sempre participo e que se chama Teia,
realizado cada vez num estado diferente, juntando todos os Pon-
tos de Cultura. Esse encontro fundamental para se conhecer o
que h de bom na cultura brasileira.
Alem disso, a internet instrumento poderoso par dar acesso
a esse tipo de informao a pesquisadores. Trabalhei com litera-
tura desde muito jovem a princpio com literatura de resistncia
ao governo militar, depois com literatura produzida por mulheres e
literatura de negros excludos. Cheguei favela mas, pela minha
prpria trajetria profissional, sempre trabalhei com literatura off,
perifrica. Minha tese de doutorado foi sobre a poesia marginal,
uma poesia de contracultura e de resistncia ao governo militar.
Do ponto de vista do efeito da internet na literatura, inte-
ressante dizer que, ao contrrio do que se imagina, as pessoas,
principalmente as das camadas jovens, esto lendo muito mais
e escrevendo muito mais. No Japo, a febre da escrita jovem
grande e at se cunhou o termo bookaholic. Os jovens japoneses
leem livros de celular, escritos em fragmentos e enviados pelo
Twitter. So livros mesmo, s vezes grandes, so romances de
celular em minicaptulos. H um, por exemplo, que, quando im-
presso em forma de livro/papel, vendeu imediatamente duzentos
mil exemplares para adolescentes daquele pas. a histria de
um adolescente com cncer que tem uma namorada pela qual
apaixonado. Ele no quer que ela saiba da doena dele. Num
folhetim de cem pginas, o autor descreve seu drama.
No Brasil, por outro lado, temos o fenmeno novo do merca-
do infanto-juvenil em franco desenvolvimento. Falo da literatura
impressa em papel mas, por exemplo, um outro gnero que
os adolescentes gostam muito o que se chama de fanfiction
(literatura de fs). Quem f de um livro ou de um autor se d
39
o direito de reescrev-lo, inventar novos destinos para os per-
sonagens, inserir novas situaes, etc. Machado de Assis, por
exemplo, tem vrios de seus romances em verses fanfction.
Na periferia, a literatura completamente diferente. A literatu-
ra de periferia no sentida apenas como um prazer, no uma
expresso individual de sentimentos e experincias apensas. isso
tudo e mais um recurso de insero social e educacional. A leitura
e a escrita so instrumentos de gerao de renda, de ascenso
social e so assim valorizadas. Literatura poder. Ferrez tem um
exemplo interessante: antes de falar de literatura, ele diz que para
se passar de jardineiro a paisagista, tem-se de estudar e ler muito.
E ento menciona a diferena de salrio entre um e outro.
Em So Paulo h um sarau de periferia chamado Coperifa
(Cooperativa Cultural da Periferia), com Srgio Vaz, que estimu-
la a formao de leitores. um tipo de encontro hiphop, com
rappers e poetas. O encontro se d toda quarta-feira num bar
chamado Z do Batido, com quatrocentas pessoas recitando
poemas. Paralelamente, na periferia vrias lojas de objetos de
consumo como tnis, bons, etc. vendem tambm livro, que
assim exibido como objeto de desejo, de consumo.
O problema que a Lei Rouanet no prev essa Arte infor-
mal, digital, descentralizada da atualidade em suas rubricas. Com
isso, muitos projetos ficam emperrados.
As empresas esto aplicando dinheiro contando com o re-
torno para sua marca. Eventualmente, eu ganho dinheiro com
projetos, mas no com a captao. Num projeto de R$200 mil eu
ganho R$10 mil. Trabalho seis meses, e no posso cobrar mais
que isso; caso contrrio, o projeto no se realiza. At a gastei
muito mais, com telefonemas, com a equipe de mais duas pes-
soas e com a manuteno do escritrio da editora. No d para
viver dos projetos, pois a lei no garante captao justa.
Um assunto que est sempre em pauta, mas no se concreti-
za, o da acessibilidade. Os institutos que tratam disso realizam
um trabalho louvvel, mas o dinheiro que deveria ser socializado
na realidade no o , pois acaba voltando-se para a imagem da
empresa. Melhor no ter esse trabalho do que faz-lo para
enriquecer as pessoas que esto promovendo o projeto. O pa-
trocnio deveria ser feito com recursos da prpria empresa, e
no com as compensaes fiscais previstas pela Lei. Da manei-
ra como vem sendo feito, servio de marketing empresarial.
Meus projetos nunca passam dos R$200 mil, e eu consigo no
final captar um pouco menos. O Portal mais caro, R$300 mil. O
prazo para captao tambm um problema srio. Consegue-se
o patrocinador, mas a aprovao na Lei no est finalizada. H
dois ou trs anos houve um problema interno, e a aprovao se
atrasou por um ano. Acabamos perdendo o patrocnio.
40
leonardo Brant As mudanas no desenvolvimento cultural, se compararmos o Bra-sil de hoje e o Brasil de h 18 anos, no so estatisticamente cal-
culadas. Pensemos no perodo de abertura poltica, na transio
democrtica e no que a poltica cultural diante desse processo.
Da chegada da Coroa ao Brasil ao governo Collor houve forte
e paternalista relao entre cultura e Estado o que pode ser
considerado at mesmo perigoso.
O ex-presidente Fernando Collor de Mello (19901992) desman-
chou nosso aparato institucional e, particularmente, de poltica
cultural. A Lei Rouanet surgiu como novo elemento poltico-cul-
tural quando foi instituda em 1991, durante seu governo. Ficou
paralisada por um bom tempo, pois no havia condies para o
seu funcionamento, mas desenvolveu-se confirmando predicados
e intenes do legislador, ou seja, promoveu uma cultura sustenta-
da basicamente na relao entre economia de mercado e iniciativa
privada. Fez da cultura mercadoria. O governo era o regulador dos
recursos e foi assim que a iniciativa privada passou a desempe-
nhar um papel importante no processo. O Artista e o produtor
cultural ficaram na trincheira entre empresas e Estado.
O fortalecimento da indstria do cinema e da msica, no fi-
nal da dcada de 1990, foi creditado Lei Rouanet e tambm
Lei do Audiovisual. Filmes como Carlota Joaquina, por exemplo,
foram patrocinados por esses mecanismos. O boom do showbiz
Leonardo Brant pesquisador de polticas culturais, presidente da
Brant Associados, autor do livro O Poder da Cultura, entre outros,
e editor do site Cultura e Mercado
41
ligado s Artes cnicas, s grandes festas populares, que no
existia h 18 anos, tambm surgiu em decorrncia da Lei Rou-
anet. Alm disso, um nmero enorme de centros culturais, mu-
seus e festivais surgiram no pas.
Hoje no se tem um volume de recursos garantidos para o se-
tor cultural. A referida lei poder ser reformulada, ou at mesmo
revogada, para dar lugar a outra. H muita desinformao com re-
lao ao papel constitucional do Estado na cultura. Para a deman-
da de hoje, precisamos buscar outras formas de sustentabilidade.
Produtores e Artistas sabem que a fronteira com o setor pri-
vado tambm contraditria e conflituosa: oferece benefcios
para o processo de criao o mercado cultural, evidente, est
formando uma base mas no existem fundamentos para uma
relao de mercado. A indstria que se formou foi turbinada por-
que recebeu muito dinheiro. Houve investimentos, mas a cadeia
econmica como um todo no foi atendida.
Estaramos fundando uma relao empresarial com o Artista
e inserindo em seu universo um tipo de conhecimento e de exi-
gncia que ele no domina? O Artista estaria mesmo perdendo
um pouco de sua relao com o pblico, pois no depende deste
para sobreviver?
Tenho trabalhado na criao de um fundo pblico autnomo,
no governamental, para que a prpria sociedade aprenda a ge-
rir o seu imaginrio. Reuniria vrias instncias de representao.
Atualmente, nas comisses, existe um representante das Artes
visuais e outro de cinema, por exemplo. Tais representantes no
esto aptos a definir reas que precisam ser financiadas, pois
no tm distanciamento tico para isso. , ento, necessrio que
a sociedade se aproprie desses mecanismos. A Arte no seria
algo que precisa de sustento mas, sim, o sustento da sociedade.
Na Inglaterra, existem recursos das loterias canalizados para
conselhos regionais de Artes, geridos pela sociedade, que define
a poltica da regio e distribui o dinheiro local. As pessoas que
compem tais conselhos so cidados comuns. Os resultados so
fantsticos. A viso da diversidade cultural das mais contempo-
rneas: a cultura a que se faz l. No importa de onde o Artista
seja originrio, desde que ele crie e se expresse em territrio do
Reino Unido, pois isso representa uma vantagem para esse pas.
O ingls vai a uma casa lotrica e deposita seu dinheiro para fi-
nanciar Arte. Para ele, como recompensa, pode haver um prmio
(aqui no Brasil, quem vai loteria o faz to somente porque quer
ficar rico). A ideia j foi discutida e, inclusive, j existiu um projeto
nesse sentido no Brasil, mas houve tambm resistncia da pr-
pria Caixa Econmica, que considerou o modelo ingls invivel.
Quem entende de loteria a Caixa e no o Ministrio da Cultura...
O assunto pode ser retomado.
42
Um dos problemas da cultura a falta de dinheiro, mas esse
no o seu maior problema. Problema maior a percepo da
nossa sociedade em relao cultura. J somos um pas muito
avanado em termos culturais. Cultura compensa nossa fragilida-
de educacional. O Brasil tem um problema de formao tcnica
de base e de acesso ao conhecimento, mas as pessoas esto evo-
luindo, apesar de no terem bases educacionais. O que fez com
que uma pessoa alfabetizada aos 16 anos, que no teve acesso
ao aparato educacional, se desenvolvesse diante das questes
que afligem a ela e comunidade qual pertence? A partir de
relaes culturais estabelecidas por ela e seus iguais, tal pes-
soa foi capaz de buscar solues para seus problemas. Isso o
que eu chamo de dinmica cultural: buscar solues por meio
da convivncia, da participao cvica. Existe uma gama enorme
de redes socioculturais montadas a partir dessas questes. A
questo da sociabilidade uma questo cultural que est muito
atrelada ao desenvolvimento de uma nao, da tica e da prpria
sobrevivncia. Tem, pois, de ser incentivada. O Estado brasileiro
precisa reconhecer melhor essas dinmicas e conseguir recursos
para potencializ-las. o que o ministro Gilberto Gil (20032008)
chamou de o cultural antropolgico.
O pas, porm, no possui mecanismos para ativar essa nos-
sa capacidade.
O incentivo aos gris (regionalismo brasileiro corresponden-
te ao termo francs utilizado para nomear os mestres africa-
nos que transmitem sua cultura por meio da narrao oral), por
exemplo, parte integrante do Cultura Viva, programa interes-
sante e inovador que se formou mas, pelo menos por enquanto,
se mostrou frgil do ponto de vista institucional. uma pena
mas so parcos os recursos para ativar as capacidades culturais,
as formas de sociabilizao, de troca, de dilogo, que propicia-
riam a busca pelas sadas para os nossos prprios problemas.
Em Braslia, os funcionrios governamentais, fechados para
o mundo, atendendo demandas polticas e miditicas, se des-
vinculam da realidade. Do nosso dinheiro, 30% vo para a edu-
cao. No falta de dinheiro. Se o Estado tiver responsabili-
dade em relao cultura, vai saber reconhecer as dinmicas
culturais, criar uma estrutura de acesso e garantir os direitos
de expresso dos cidados. Mas h tambm a percepo da im-
portncia da cultura: quando o Presidente diz que aqueles li-
vros no servem para nada... Lula a sntese do povo brasileiro,
que sente orgulho da prpria ignorncia, um dos entraves ao
incentivo cultura. Garantir o conhecimento cultural significa
possibilitar acesso cultura. Isso s se realiza com investimento:
preciso termos um centro, uma biblioteca, uma hemeroteca.
preciso termos internet.
43
Vivemos em um pas capitalista e a Arte precisa achar um
lugar dentro do capitalismo para se manter. necessrio encon-
trar uma brecha, pois o Estado agora quer ser copatrocinador
de cultura. Se as empresas esto patrocinando cultura e ditando
seus interesses comerciais, o governo, copatrocinador, tambm
visar aos seus interesses. Isso muito perigoso! No por a
que o Estado tem de entrar.
O ser humano se constitui a partir do imaginrio. Ele cria um
referencial para si mesmo e para a organizao social. A Arte, o
cinema e a msica so a ponte para isso. Sem imaginrio, a gente
no existe: o dinheiro smbolo, papel to simblico quanto a
Monalisa, uma escultura ou fotografia. Quem agrega valor a ele
o nosso imaginrio coletivo, que se alimenta de Arte. Precisamos
beber em todas as fontes e saber processar isso dentro de um
ambiente rico e bem potencializado pelo compromisso pblico.
44
Fiz trs longas-metragens e estou editando o quarto. Meu pri-
meiro trabalho de direo e roteiro foi o longa--metragem Al?!,
de 1998, financiado pela Lei Rouanet quando esta era ainda bas-
tante desconhecida. Para esse trabalho, contamos com Myriam
Muniz, uma das protagonistas, que por ele recebeu o prmio de
melhor atriz. O segundo foi Avassaladoras, produzido em 2002
com o apoio financeiro j no do Ministrio da Cultura (MinC)
mas, sim, da Agncia Nacional de Cinema (Ancine); o projeto foi
viabilizado pela Lei do Audiovisual, de 1993, destinada a projetos
de cinema, e se transformou em seriado de televiso. O terceiro,
Doutores da Alegria, e o quarto, sobre empreendedores sociais,
so documentrios e tambm foram financiados pela Lei do Au-
diovisual. Os documentrios nem sempre so curtos. Doutores
da Alegria, por exemplo, tem 90 minutos de durao. Mostra os
palhaos que visitam crianas internadas em hospitais mas,
na verdade, examina tanto a filosofia do palhao atrs do nariz
vermelho quanto sua capacidade de observar a vida por um n-
gulo diferente.
As leis de incentivo fiscal possibilitaram o renascimento do
cinema brasileiro e so a forma mais utilizada de fazer filmes no
Brasil mas existem distores.
Em primeiro lugar, no temos um mercado slido e lucrativo
por vrias razes: o Brasil possui poucas salas de exibio por
Mara Mouro
Mara Mouro diretora e roteirista. Dirigiu comerciais, curtas-
e longas-metragens, vdeos e documentrios. Tem vrios
trabalhos premiados no Brasil e no exterior
45
habitante (em torno de duas mil, quando deveramos ter no m-
nimo cinco mil, se compararmos nossos ndices com os de outros
pases da Amrica Latina) e a maioria das nossas cidades nem
cinema tem.
Em segundo lugar, o ingresso carssimo uma famlia de clas-
se mdia, com dois filhos, no consegue ir ao cinema sem gastar
pelo menos R$100,00. Isso pesa! Existem vrias razes para os
ingressos serem to caros; uma delas a meia-entrada. Dizem que
h gente que quer mudar esse quadro, criando um ingresso nico
com valor situado entre o da meia-entrada e o da inteira.
Outra questo que os projetos viabilizados graas Lei do
Audiovisual no precisam necessariamente gerar lucro nas bilhe-
terias, uma vez que as somas aplicadas sero descontadas na hora
de pagar os impostos, tenha o filme sido bem sucedido ou no.
Outra crtica s leis de incentivo que estas no democra-
tizam o acesso cultura, pois quem est nos grandes centros
como So Paulo e Rio de Janeiro tem mais facilidade de chegar
s empresas privadas do que quem est fora desse eixo. Outro
fator que poucas pessoas tm acesso s empresas privadas.
Existe tambm o risco de o produtor ficar na mo de uma cultura
pasteurizada pelas leis de incentivo. O que deve ser produzido
culturalmente pode vir a ser delineado pelos departamentos de
marketing ou de finanas das empresas patrocinadoras. Empre-
endedorismo social, sustentabilidade e ecologia so temas ben-
vindos na atualidade. Filmes experimentais ou mais polmicos
tm mais dificuldade de ser aprovados. S se consegue fazer
um filme com temticas mais pesadas porque alguns editais da
Petrobras e de algumas grandes estatais levam em considerao
outros fatores como a carreira e a importncia do ator, do dire-
tor ou do roteirista. Por outro lado, h o mercado consumidor,
que pode oscilar de acordo com o parque de exibio ou o preo
do ingresso.
Apesar dessas dificuldades, o cinema nacional conseguiu che-
gar a um patamar de bilheteria equivalente a at 20% dos re-
sultados alcanados por filmes americanos, ou cinco milhes de
ingressos. A ndia tem Bollywood porque a televiso no domi-
nante. A Nigria, Nollywood DVDS distribudos por camels que
movimentam uma enorme indstria do cinema. No nosso pas, a
cultura da televiso muito forte e domina o audiovisual brasilei-
ro. No deveria ser concorrente; deveria, sim, ser parceira e pode-
ria representar uma forma de escoar a produo cinematogrfica.
Em vrios outros pases, a produo cinematogrfica recebe parte
do faturamento da televiso, mas isso no ocorre no Brasil.
Antigamente a televiso brasileira no comprava contedo
independente. Ela j foi to distante do cinema nacional que, no
incio dos anos 1990, os dois eram praticamente inimigos. Essa
46
relao est mudando graas estratgia de algumas emisso-
ras e no obrigatoriedade imposta por alguma lei. A tev
percebeu que tambm poderia fazer dinheiro com o cinema na-
cional e passou a investir em produes com temtica prpria
que pudessem dar retorno financeiro. Assim, algumas sries se
transformaram em filmes. Os Normais e O Auto da Compadecida,
por exemplo, que eram seriados da TV Globo, tornaram-se filmes.
O processo inverso tambm ocorreu: alguns filmes foram lana-
dos na televiso e depois exibidos em salas de cinema. A partir
de certo momento, a Globo Filmes decidiu financiar longas-me-
tragens independentemente de sua grade televisiva e oferece
tempo de mdia na poca do lanamento. Existem dois modos
de parceria coproduo e apoio, que se verificam em diversos
nveis. A TV Cultura de So Paulo j apoiou o cinema promo-
vendo um concurso: o filme ganhava uma verba e, em troca, era
veiculado pela emissora.
Nos Estados Unidos, onde no h lei de incentivo fiscal, a in-
dstria cinematogrfica levanta emprstimos bancrios ou re-
corre a outros mecanismos financeiros que possibilitam a produ-
o. Os custos de produo e divulgao tm de ser amortizados.
Se no houver possibilidade de retorno via bilheteria, simples-
mente no haver filme. Obviamente, os produtores perdem em
alguns filmes, mas ganham em outros e, dessa forma, o cinema
se torna rentvel. O produtor independente tambm precisa con-
seguir um financiador e sofre muito com isso.
No Brasil, como o dinheiro da bilheteria dificilmente cobre os
investimentos realizados, o prprio sistema financeiro no se dis-
pe a correr o risco de conceder emprstimos. Se o fizesse, talvez
pedisse todos os bens do produtor como garantia e quantos pro-
dutores tm o dinheiro equivalente a um financiamento?
As leis de incentivo fiscal tm data para acabar e ningum
sabe o que acontecer com a indstria cinematogrfica brasilei-
ra quando isso ocorrer.
47
A Lei Rouanet entrou em vigor desde sua publicao oficial,
em 1992 mas, do governo Collor ao governo Itamar, embo-
ra homologada e regulamentada, praticamente s existiu no
papel. Foi na primeira gesto de Fernando Henrique Cardoso
(1995-1999), com Francisco Weffort no Ministrio da Cultura,
que esse benefcio para a cultura brasileira comeou a ser utili-
zado e, seu uso, aprofundado (Weffort seria o ministro nos dois
mandatos do tucano, de 1999 a 2003). O importante que a
lei que permite a aplicao de recursos em troca de dedues
tributrias foi utilizada principalmente por empresas privadas
que investiram em cultura.
Fui coordenadora da Lei Rouanet na Secretaria de Livro e
Leitura do Ministrio da Cultura (MinC). Tivemos a oportunidade
de documentar e registrar a histria cultural do Brasil. Houve in-
vestimento e produo na rea editorial vrios livros, principal-
mente de pesquisa na rea de patrimnio e restaurao que no
poderiam ser lanados comercialmente por serem caros, foram
editados. Um exemplo a publicao baseada numa pesquisa
sobre a msica barroca, que no teria sido vivel sem o auxlio
da lei. Alm de dicionrios, editamos obras que registram a rica
diversidade cultural do Brasil. Foi um momento difcil e diferente
para o pas. Queramos estimular o hbito da leitura, principal-
mente na poca em que se comeou a falar insistentemente do
Mequita andrade
48
analfabetismo funcional. Mas acredito que em todas as reas da
cultura teatro, msica, dana houve acrscimo e estmulo gra-
as Lei Rouanet.
Conseguir verbas para financiar projetos culturais era difcil
para todos. Acompanhamos exemplos importantes, como o do
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN),
que ento se deparava com problemas financeiros para realizar
uma obra de restauro, mas conseguiu verbas por meio do incen-
tivo fiscal. O investimento realizado por uma empresa patrocina-
dora podia at favorec-la do ponto de vista mercadolgico, mas
uma igreja que estava desmoronando estava sendo restaurada
e era isso que importava naquele momento. Fazer com que a
lei ficasse conhecida por todos foi nossa prioridade.
As dificuldades eram grandes: precisvamos que a Lei Roua-
net certificasse os projetos culturais que passavam pela avalia-
o tcnica: o contedo qualitativo era mais importante que o
preo. Outro ponto importante era a prestao de contas, pois
ali se estava criando um modelo.
Para se ter uma ideia, recebamos mensalmente mais de 300
projetos culturais para avaliao. O problema que, de cada 100
que o MinC aprovava, menos de 20% conseguiam levantar recur-
sos de patrocnio no mercado. Nesse sentido, acho que por parte
do ministrio existia um grande trabalho que estava simplesmen-
te sendo desperdiado tnhamos que divulgar a existncia da
lei e democratizar o acesso do patrocnio ao produtor. Era uma
situao que seria considerada insustentvel em qualquer or-
ganizao e em qualquer momento da histria, uma vez que a
lei no dispunha de recursos. Mas assim foi nascendo uma nova
categoria de profissionais: produtores culturais, analistas de pro-
jetos, restauradores e captadores. Os captadores, por exemplo,
eram pessoas que tinham entrada nas empresas e que, pela pr-
pria lei, tinham direito a uma remunerao equivalente a 10%
dos investimentos. Isso causava certo desconforto, pois existiam
projetos milionrios, como os da rea de restauro do patrimnio.
Alguns ajustes, ainda na gesto de Weffort, foram feitos, mas o
volume era demasiado grande e havia pouco dinheiro para reali-
zar as mudanas de forma rpida e democrtica.
Para contornar a questo, estabelecemos um teto de R$100
mil para o captador, por projeto, mas no sei se isso foi a soluo
para tudo. Tambm no sei se o ministro Gilberto Gil manteve
essa norma em sua gesto, mas acredito que ele tenha adotado
vrios dos modelos desde o incio.
Voltando ao assunto do estmulo leitura, em 2007, j fora do
MinC, idealizei o Ponto Livro Livre, projeto iniciado em Braslia e
que se prope a deixar livros numa estante em algum ponto de
comrcio. A tese mostrar que o importante ler, no ter livros.
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A iniciativa est funcionando at hoje. Temos cerca de 30 pontos:
Alto Paraso, Campos do Jordo. Com frequncia, as pessoas me
do livros para que eu abra novos pontos. O interessado leva os
livros que quer ler, mas no precisa traz-los de volta. E tambm
no precisa colocar nenhum exemplar no lugar. Soubemos at
mesmo que alguns exemplares foram parar no exterior. Consegui
uma editora que doou os primeiros acervos e promoveu a troca de
livros. Esse projeto me deu muito prazer, pois em apenas um ano
tivemos a participao de mais de mil pessoas. Iniciativas na rea
da cultura que no tm incentivo fiscal tambm podem ser bem
sucedidas basta colocar em prtica o que sabemos e dispender
uma parte do nosso tempo para isso. Os restaurantes Amrica, de
So Paulo, aderiram e implantaram o projeto aos sbados: Ponto
Livro Livre para crianas. A ideia ainda no deu certo em outras
empresas, mas no desistimos. Por que no poderia haver uma
estante de livros em locais de convivncia, como os restaurantes,
para onde as pessoas possam lev-los e onde tenham a oportu-
nidade de troc-los? Um dia destes vi essa ao em uma escola
de Uberaba com os dizeres: O evento comeou em Braslia. Ago-
ra, estamos adotando aqui o Ponto Livro Livre. Troque... Em So
Paulo, dei com um exemplar que vinha com a mensagem Troque
este livro. Passe este livro para a frente. Isso mostra que est
havendo uma movimentao, como o prprio bookcrossing a
troca, nascida em outros pases, onde os livros so colocados nas
praas pblicas. O livro pode ser registrado na internet, para que
o ex-dono o acompanhe...
As escolas at mesmo as particulares fazem da leitura
uma obrigao para as crianas. Esse um fator que possivel-
mente prejudica a noo de leitura como lazer. Volto a dizer que
muitas das iniciativas que vo adiante na cultura so aquelas que
precisam de boa vontade.
Sou muito atenta a aes que a sociedade civil ou o governo
faz em prol da leitura e tenho constatado um aumento nas aes
desse tipo. O prprio Plano Nacional do Livro e Leitura, do MinC,
de alguma forma est se interessando pela ideia da troca, mas a
concepo do Livro Livre um pouco anrquica para que o po-
der pblico possa abra-la. Por isso, importante a sociedade
continuar realizando aes individuais. S coletivamente que
conseguiremos estimular o hbito da leitura.
50
o incentivo fiscal cultura no Brasil
A cultura e as Artes movimentam parte cada vez mais significa-
tiva da economia planetria. As indstrias criativas no param
de crescer para alimentar uma demanda, que parece inesgot-
vel, por esttica, smbolos, lazer, entretenimento e ascendn-
cia. Porm, os recursos gerados por esse v