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  • LEI ROUANET PERCURSO E RELATOS

  • Mecenas: Patrocinador generoso, protetor das

    Letras, Cincias e Artes, dos artistas e sbios.

    Mecenato: Condio, ttulo ou papel de mecenas.

    Novo Dicionrio Aurlio

  • textos introdutrios 7

    entrevistas

    Alexandre Machado 15

    Alvaro Razuk 18

    Dagmar Garroux 21

    Danilo Miranda 24

    Eliane Costa 28

    Fbio Cesnik 32

    Helosa Buarque de Hollanda 35

    Leonardo Brant 40

    Mara Mouro 44

    Mequita Andrade 47

    Yacoff Sarkovas 50

    SUMRIO

  • artigos relacionados

    Polticas culturais no Brasil: trajetria e contemporaneidade [Antonio Albino Canelas Rubim] 65

    Minc libera R$ 9,4 mi para Cirque du Soleil no Brasil [Silvana Arantes] 88

    MEC cria Lei Rouanet da pesquisa [Renata Cafardo e Herton Escoba] 90

    Uma Lei Rouanet da pesquisa [Claudia Izique] 92

    Ministrio no tem vocao para Irm Dulce [Marcio Aith] 95

    Museu Nacional volta a ser como no tempo do Imprio 98

    Nem tanto ao cu, nem tanto terra [Marcelo Gruman] 100

    Artistas famosos e o incentivo fiscal [Antoine Kolokathis] 117

    leis relacionadas

    Lei 7505 de 2 de julho de 1986 123

    Lei 10923 de 30 de dezembro de 1990 129

    Lei 8685 de 20 de julho de 1993 133

    Programa Nacional de Apoio Cultura 141

    Projeto de Medida Provisria no aprovada 157

    Edital do Proac (exemplo) 161

    Projeto de Lei 6722/2010 176

    O que muda na Lei Rouanet 202

    anexos 205

    BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 234

  • 7A Atitude Brasil, empresa que atua nas reas cultural, ambien-

    tal e de comunicao social, idealizou e publicou este livro para

    retratar os diversos aspectos histricos, tericos e prticos dos

    incentivos cultura no Brasil especialmente os da Lei Roua-

    net. Nossa inteno informar os vrios setores da sociedade

    quanto ao uso da legislao em vigor, s reformas e aos futuros

    implementos legais que contemplem as mudanas necessrias

    para uma poltica cultural mais respeitosa e eficiente no uso dos

    recursos disponibilizados. Reunir as opinies das diferentes pes-

    soas e entidades que utilizam ou oferecem apoio produo

    cultural no Brasil o objetivo central deste trabalho.

    Nossa pesquisa foi importante para identificar a existncia de

    pensamentos convergentes entre os diversos setores, todos eles

    desejosos de que as mudanas na legislao resultem em maior

    democratizao do acesso s mais variadas expresses Arts-

    ticas: cinema, msica, dana, teatro, literatura, Artes visuais e

    preservao e restaurao de patrimnios materiais e imateriais.

    Percebemos, tambm, a importncia do alinhamento da riqueza

    e diversidade cultural brasileiras com as novas tecnologias, que

    permitem acesso cultura em larga escala.

    Expressamos nosso especial agradecimento Companhia

    Vale do Rio Doce, patrocinadora nica, que viabilizou este pro-

    jeto por tambm acreditar no futuro promissor da produo

    Artstico-cultural brasileira.

  • 9Este livro informativo e reflexivo trabalho de referncia sobre

    os resultados, expectativas, dvidas, problemas e possveis so-

    lues concernentes Lei Rouanet desde sua ltima reformu-

    lao. Evidentemente o livro no exaustivo, mas rene dados

    suficientes para pesquisa, estudo e compreenso dessa lei e de

    sua aplicao. Esse instrumento legal nos seus moldes atuais ,

    at onde se sabe, nico na legislao mundial.

    A Lei Rouanet foi criada em 1991 (no Governo Fernando

    Collor de Mello, sendo Secretrio da Cultura Srgio Paulo Rou-

    anet) e reformulada em 1995 (no Governo Fernando Henrique

    Cardoso, sendo Ministro da Cultura Francisco Weffort). Como po-

    ltica pblica do Brasil para a rea da Cultura, essa lei produziu

    amplo espectro de resultados e um no menor volume de dvi-

    das, opinies e crticas. Tenham sido positivos ou duvidosos, os

    resultados obtidos so dignos de uma anlise para assimilao

    de novas expectativas e adaptaes. No h dvida de que a Lei

    Rouanet j deu mostras de que chegado o momento de am-

    pla discusso, reviso e regulamentao para suprir um elenco

    de novas perspectivas e necessidades das atividades culturais

    contemporneas.

    Doze entrevistados figuras atuantes nos vrios setores

    culturais e agentes da legislao atual emitem aqui opinies

    recentes sobre a aplicao presente da citada lei, alm de ex-

    lei rouanet Percurso e relatos antonio carlos abdalla [Organizador]

    Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images

  • 10

    ternarem esperanas e comportamentos possveis e desejados

    para uma reforma ainda apenas proposta. Foram entrevistados

    Alexandre Machado, lvaro Razuk, Dagmar Garroux (Tia Dag),

    Danilo Santos de Miranda, Eliane Costa, Fbio Cesnik, Helosa

    Buarque de Hollanda, Leonardo Brant, Mara Mouro, Mequita

    Andrade e Yacoff Sarkovas.

    Alm das entrevistas, do texto integral da lei em vigor e do

    projeto de reforma, esto includos neste volume uma coletnea

    de textos e pequenos ensaios, a reproduo de documentos ofi-

    ciais, tabelas, grficos, uma bibliografia e alguns estudos compa-

    rativos que revelam o percurso e os resultados alcanados pela

    aplicao da Lei Rouanet nos ltimos dezesseis anos.

    So mltiplos os objetivos principais da Lei Rouanet: garan-

    tir livre acesso a todas as fontes de cultura e ao pleno exerccio

    dos direitos culturais; promover e estimular a regionalizao da

    produo cultural e Artstica brasileira, com a valorizao dos

    recursos humanos e contedos locais; apoiar, valorizar e disse-

    minar o conjunto das manifestaes culturais e seus respecti-

    vos criadores; proteger a expresso cultural dos grupos forma-

    dores da sociedade brasileira, responsveis pelo pluralismo da

    cultura nacional; salvaguardar a sobrevivncia e o continuado

    florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade;

    preservar os bens materiais e imateriais do patrimnio cultural

    e histrico; estimular a produo e difuso dos bens culturais

    de valor universal, formadores de conhecimento, cultura e me-

    mria; priorizar o produto cultural originrio do Brasil. No

    uma empreitada simples e os resultados demandam capacida-

    de, coragem, percia e ousadia.

    A pesquisa e anlise do tema e objeto desta proposta deve-

    r oferecer subsdios importantes para debates e estudos mais

    aprofundados, que verifiquem se os objetivos almejados pela

    aplicao da Lei Rouanet esto sendo ou no alcanados, em

    parte ou no todo, e proponham comportamentos e providncias

    para que tais objetivos sejam resgatados e convenientemente

    observados e controlados pela sociedade. De que modo o Gover-

    no e a iniciativa privada podem atuar na construo, formulao

    e promoo de direitos culturais e de polticas pblicas efetivas?

    Que espaos, fruns e instncias especficas podem promover

    essa interao e Articulao? De que modo tal Articulao pode

    combinar controle, eficincia, justia e equidade social na dis-

    tribuio e no acesso aos recursos pblicos (renncia fiscal) e

    aos bens culturais, materiais e imateriais de valor universal? So

    indagaes e desafios como esses que justificam a pertinncia e

    a relevncia dos objetos deste trabalho.

    Para este livro tomar forma h um desafio na identificao,

    seleo, deciso e abrangncia do material a ser tratado e ex-

  • 11

    plorado, pois as questes e possibilidades do tema so extensas.

    Alm disso, no h como fazer escolhas ou traar caminhos sem

    levar em conta o contexto, os fatores, os aspectos e os interesses

    locais pblicos e privados que moldam e interferem fortemen-

    te nas definies e decises sobre as formas, prioridades, usos

    e distribuio dos recursos pblicos para a promoo e pleno

    exerccio dos direitos culturais.

    parte da legislao vigente e de toda a discusso sobre

    sua utilizao, suas alteraes e perspectivas, oportuno lem-

    brarmo-nos de uma figura em geral negligenciada mas funda-

    mental no patrocnio cultura: o mecenas. Afinal, a Lei Rouanet

    foi originalmente proposta para incentivar o mecenato. Parece

    justo resgatarmos essa figura, muito importante contemplada

    na implantao da lei. Que a Lei Rouanet atenda s expectativas

    e demandas para as quais foi criada fato incontestvel to

    incontestvel quanto a premncia de se corrigirem as distores

    existentes. Que os patrocinadores se convenam dos benefcios

    de apoiar a cultura e utilizem de forma prudente e justa os bene-

    fcios criados pela legislao um desejo. Que esses fatores se

    unam para promover cultura em todas as suas manifestaes

    uma obrigao pois essa, afinal, uma das poucas sadas para

    redimir o ser humano da mediocridade.

  • ENTREvISTAS

  • 15

    A primeira vez que se tentou incentivar a cultura por meio da

    iseno fiscal foi com a Lei Sarney, embrio da Lei Rouanet. At

    ento, no esprito da lei, as empresas no investiam em cultura

    porque no tinham conhecimento da importncia dessa inds-

    tria. A ideia era que, com o tempo, os investimentos na rea fos-

    sem realizados pela sua prpria excelncia e que, aos poucos,

    as empresas deixassem de receber incentivos governamentais.

    Essa situao durou at o governo Fernando Henrique Cardoso.

    Na mesma poca, os cineastas brasileiros pleiteavam incenti-

    vos baseados na renncia fiscal para investimentos em audiovi-

    sual. A produo enfrentava dificuldades aps a extino da Em-

    brafilme e do Concine, rgos governamentais de financiamento

    e fiscalizao, se houvesse investimento na rea. Mostravam ao

    Presidente da Repblica que os grandes movimentos do cinema

    no produzidos em Hollywood tiveram apoio substantivo dos go-

    vernos, sem que, praticamente, estes investissem um tosto. Tal

    proposta, embora discutvel, acabou estimulando outras reas

    que foram conquistando o mesmo benefcio o que era justo.

    O benefcio trouxe deformaes: as empresas tinham poder

    de deciso sobre onde e quanto investir. Assim nasceu uma in-

    dstria de empreendimentos culturais baseada em falsa docu-

    mentao e prestao de contas, notas frias e troca de facilida-

    des. Havia outro problema: as aes eram esparsas e denotavam

    alexandre Machado

    [p. 13] Mauricio Lima/AFP/Getty Images

    Rodrigo Baleia/LatinContent/Getty Images

  • 16

    a falta de uma linha de conduta consistente. Praticamente no

    existiam o incentivo cultura e a percepo de que formar ou

    enriquecer determinada empresa poderia depender de sua vin-

    culao com posturas culturais.

    Dizem que, apesar dessas deformaes, a injeo de recur-

    sos financeiros movimentou a indstria da cultura. Para alguns

    especialistas, houve dinheiro lanado no mercado, sim, mas sem

    nenhum tipo de Articulao ou seja, ao acaso; era como atirar

    dinheiro de cima de um edifcio para quem quisesse us-lo.

    preciso separar da opinio que se tem da Lei Rouanet o uso que

    dessa lei se faz.

    O fato que, antes da Lei Rouanet, a indstria brasileira de

    cultura vivia traumatizada, seja por falta de recursos, seja por

    gestes como a do presidente Fernando Collor de Mello (1990-

    1992), que destruiu tudo o que at ento existia.

    A discusso Estado/Cultura, prejudicada pelas prticas ante-

    riores, que favoreceram interesses paroquiais em detrimento das

    polticas pblicas, est de volta. Uma das ideias por exemplo, a

    de como aumentar a participao de Estados que no tm tido

    acesso aos recursos incentivados parece simptica quando se

    pensa na estrutura de um pas como o Brasil, mas colide com a

    essncia da lei, que permite empresa privada destinar os recur-

    sos de acordo com seus prprios interesses. Para uma empresa

    sediada em So Paulo, a atuao ser preferencialmente em So

    Paulo. claro que pode haver interesse em investir em regies

    distantes mas, para isso, dever haver planejamento de longo

    prazo e as polticas pblicas de investimentos estimulados no

    podero ser cortadas de uma hora para a outra, acarretando

    dificuldades para as empresas. Tem de existir algum tipo de tran-

    sio, como fundos pblicos aptos a assumir gradativamente os

    investimentos previstos.

    As empresas estatais e empresas de capital misto, que tm

    acionistas e interesses prprios como a Petrobras, por exemplo

    devero ter suas polticas de investimento em cultura. Essa

    uma questo relacionada com a boa ou a m gesto e no com

    o fato de o capital ser pblico, misto ou privado.

    A leitura que fao que os recursos tm de estar a servio

    da publicidade e do marketing (incluindo a formao e a conso-

    lidao de uma marca) e levar a empresa a avanar e ter bom

    proveito no que estiver fazendo.

    A Petrobras, que atua na rea cultural, um exemplo. Mono-

    polista no mercado domstico de combustveis at a aprovao

    de uma emenda constitucional em 1995, a companhia teve de

    se preparar para enfrentar a concorrncia (que praticamente

    no a arranhou, mas que ainda pode tentar constituir um mer-

    cado). Por isso, at mesmo uma empresa como essa precisa

  • 17

    estar preocupada com o fortalecimento de sua marca. O que

    discutvel se a empresa pode, para tal fim, utilizar recursos

    de iseno fiscal.

    Investir na rea da cultura depende de uma poltica interna

    bem traada poltica que dever ser de to boa qualidade quan-

    to os prprios produtos, respeitar a histria da empresa e ser

    compatvel com sua atuao na atividade pblica. Para esse fim

    foram criadas regras relativas aos patrocnios: os incentivos de-

    veriam ser utilizados para determinadas finalidades e no para

    qualquer projeto, como era feito anteriormente, quando no se

    tinha nenhuma responsabilidade pblica. Criou-se um edital para

    cada rea, com informaes sobre o valor a ser investido e os

    critrios de julgamento. Esse edital tornou-se modelo.

    Na rea de cinema, por exemplo, detectamos que, no Brasil,

    um dos problemas era a criao de uma nova gerao de reali-

    zadores. Lembramo-nos de que, em outra poca, antes dos fil-

    mes havia a exibio de curtas-metragens. Montamos ento um

    programa, o Curta Petrobras s Seis, programao gratuita de fil-

    mes para estudantes iniciada em 1999. Foi esse um trabalho que

    propiciou o aparecimento de novos realizadores e exps a marca

    Petrobras a um pblico jovem e interessado em cultura. Investir

    norteado pelos interesses da prpria empresa, mista ou privada

    por mais honrados que sejam tais interesses no significa que se

    est investindo em projetos bons ou ruins mas, sim, em projetos

    no necessariamente identificados com o interesse pblico.

    Os valores advindos da renncia fiscal no pertencem mais

    empresa que os recolheu. Por isso, acredito que o direito de

    definir sobre o uso desse dinheiro cabe ao Estado ou a um fundo

    pblico direcionado cultura. preciso, porm, muito cuidado

    para que essa instncia no fique atrelada aos governos.

  • 18

    Sou arquiteto especializado em projetos e montagem de exposi-

    es de Artes visuais desde 1996. Convivo diariamente com a Lei

    Rouanet porque a maior parte dos meus trabalhos sustentada

    pelos mecanismos de renncia fiscal.

    O mercado da cultura cresceu muito desde que comecei a

    trabalhar nessa rea. No havia muitos profissionais especiali-

    zados eu mesmo no sabia que existiam tantas possibilidades

    quando um amigo me convidou para montar uma exposio de

    jovens Artistas no local onde atualmente o Museu AfroBrasil,

    em So Paulo. Para comear, reformamos o edifcio. Em seguida,

    a Antrtica Artes com a Folha, exposio patrocinada pelas duas

    empresas, concebida por cinco curadores que haviam viajado

    por todo o pas para selecionar novos talentos e montada por um

    cenotcnico que trabalhava com teatro, foi inaugurada em 1998.

    Hoje, temos no Brasil mo-de-obra especializada para projetar

    exposies de Artes visuais, segmento que cresceu com a maior

    afluncia do pblico e sua exigncia com relao qualidade.

    Alm do Artista bomio e romntico, que sempre vai existir, j

    existem profissionais preocupados com detalhes tcnicos muito

    precisos, como o ar condicionado ou o gs menos prejudicial

    obra de Arte. E at o Arteso, que tem o conhecimento do traba-

    lho a ser feito e andou to marginalizado, est comeando a ver

    valorizado seu trabalho.

    alvaro razuk

  • 19

    O mercado das Artes plsticas est maior e muitas empresas fa-

    zem trabalho corporativo, pensando em como melhorar o contedo.

    Nos ltimos anos, formaram-se profissionais aptos a tratar

    das diversas facetas envolvidas na montagem de mostras, tais

    como o emprstimo de obras de Arte entre museus e galerias

    locais e internacionais, o desenho de embalagens para o trans-

    porte, assim como iluminadores, tcnicos de projeo, conserva-

    dores e curadores.

    A conservao de uma obra de Arte trabalho intenso e pre-

    ciso a obra tem que chegar reserva tcnica muito bem em-

    balada, ficar um dia esperando at se aclimatar, para depois ser

    aberta por um conservador que prepara o laudo correspondente.

    O relatrio repetido quando a obra sai. Esse profissional pode

    vir de vrias reas.

    O conservador vem em geral da rea da histria ou das Artes

    plsticas e acaba trabalhando em uma instituio, onde forma-

    do por um mestre. Se houver algum problema, o restaurador

    chamado. Restauradores de pintura, escultura ou papel podem

    frequentar cursos especficos para esse mtier, inclusive no Bra-

    sil. So profissionais razoavelmente bem remunerados e h para

    eles um mercado de trabalho crescente em funo do aumento

    no nmero de museus. Nesse processo, tambm o conservador,

    o produtor, os montadores (o cenotcnico que vai construir e

    pintar os painis, o marceneiro especializado e os montadores

    de obras pessoais) tm noo de esttica e geralmente vm das

    Artes plsticas.

    As bienais de Arte tm tido importante papel na formao

    dos profissionais: ex-assistentes de Artistas do mundo todo, es-

    tudantes de Artes plsticas ou at mesmo Artistas formados

    acabam se encaminhando para essas carreiras.

    Antes, os trabalhos sofriam muitos estragos durante o trans-

    porte e a exposio; hoje, isso melhorou muito, porque as exi-

    gncias tcnicas para a montagem de uma mostra so maiores

    e mais complexas.

    H alguns anos, trabalhei na exposio dos pergaminhos do

    Mar Morto, feitos de material orgnico um grande achado ar-

    queolgico. Estavam esticados com fita adesiva! Um absurdo!

    Atualmente, so conservados adequadamente, com controle de

    temperatura e umidade, alm de rigorosamente protegidos con-

    tra a ao dos raios ultravioleta. Nosso maior problema atual

    tirar a cola da fita adesiva. Sei que existem documentos que

    datam do Brasil pr-colombiano, feitos com um tipo de tinta que

    reagiu com o prprio papel, danificando-os. Antes no se dava

    ateno a esse tipo de detalhe, mas hoje h preocupao at

    com o papel colocado atrs de uma obra no pode ser de qual-

    quer tipo; tem de ser neutro.

  • 20

    Lembro-me de que, quando montei uma exposio do Artista

    e designer Geraldo de Barros, o curador fez exigncias: tratava-

    -se de trabalho feito com um tipo de frmica durvel, mas sujei-

    to ao acmulo de umidade por ser de madeira aglomerada; era

    preciso levar isso em especial considerao.

    De h 10 anos para c, estamos aprendendo a trazer e levar

    obras de Arte e, para tanto, existem transportadoras especiali-

    zadas. claro que a Lei Rouanet, que viabilizou financeiramente

    muitas exposies, foi indiretamente responsvel pelo avano do

    nosso segmento. A lei muito importante e movimentou nosso

    universo do trabalho, embora no seja ideal e apresente algumas

    distores tais como, por exemplo, a concentrao de projetos

    culturais no Sudeste do pas, reflexo da concentrao das empre-

    sas que optam pela renncia fiscal. Sei que esse um problema

    complicado, mas de qualquer forma perfeitamente possvel

    encontrar profissionais qualificados fora do eixo RioSo Paulo,

    se houver demanda.

  • 21

    Fundada em 1994 na regio do Capo Redondo, sul da cidade de

    So Paulo, a ONG Casa do Zezinho atende cerca de 1000 crian-

    as e jovens de baixa renda, dando a todos eles a oportunidade

    de frequentar oficinas e atelis de Arte, praticar esportes e re-

    ceber atendimento mdico e odontolgico.

    Em um pas como o Brasil, todos os segmentos da sociedade,

    inclusive o poder pblico, tm de se conscientizar quanto ao fato

    de que vivemos a realidade social da diferena. Diferena nas

    escolas, nas moradias.

    O que ser um Zezinho? Qual a vivncia de um Zezinho?

    Quais so os sonhos de um Zezinho? Quais so as expectativas

    da famlia de um Zezinho?

    Editamos um livro de fotos e desenhos, Santo Antnio das

    Artes Zezinhos, de Saulo Garroux e Levi Mendes Jr., um retrato

    da periferia a partir do ponto de vista das pessoas que fazem

    parte da Casa do Zezinho. Tiramos fotos da casa, da famlia mas

    no s isso; tambm pedimos s crianas que reproduzissem

    as fotos em desenhos de seu prprio punho, para assim termos

    um comparativo entre a viso do fotgrafo e a viso do Zezinho.

    A cultura familiar, o bairro, o ambiente social e os sonhos

    do Zezinho estaro presentes nas pginas do livro. necessrio

    descobrir o que significa para esses meninos no ter formao,

    informao, moradia, saneamento bsico e escola democrtica.

    dagmar garroux

    Tia Dag educadora e fundadora da Casa do Zezinho

  • 22

    Tambm necessrio que entendamos como treinar e capaci-

    tar, em apenas seis meses, pessoas que pularam todas as etapas

    do desenvolvimento humano brincar, alfabetizar-se, passear,

    instruir-se. Enfim, por que motivo os pobres tm de se capacitar

    apenas para telemarketing, limpeza ou portaria? No que essas

    profisses sejam menos dignas, mas esses jovens sequer tiveram

    a chance de dizer o que querem ser!

    Retratar o Zezinho em todos os espaos que ele percorre faz

    parte da pedagogia do arco-ris, que criei ao longo destes anos

    de trabalho: se os pilares da educao formal so ser, saber e

    fazer Arte, na pedagogia do arco-ris foram transformados em

    filosofia, cincia, conhecimento e Arte.

    Os sinais da educao so os cinco sentidos, que tm de estar

    muito mais aguados. Para se conhecer o Zezinho, so impres-

    cindveis olhar e ouvido apurados. So tambm indispensveis o

    tato que representa, na realidade, o afeto: o abraar, o beijar e

    o olfato. Os participantes da Casa do Zezinho vivem em lugares

    que cheiram mal; colocamos na Casa, ento, incenso e perfume

    para tornar o ambiente agradvel, de modo a penetrar na alma

    e utilizamos tambm a msica para aguar a audio. Atrair,

    encantar o jovem na cadeia do conhecimento um dos papis

    da Casa do Zezinho. Nesse tipo informal de educao, o produto

    cultural absolutamente imprescindvel.

    Temos um banco de dados dos Zezinhos que passaram pela

    Casa e suas respectivas histrias. Perdemos vinte deles: foram

    para o trfico e morreram, esto presos ou se prostituram. Mas

    tambm temos exemplos como o do Agenor, hoje educador de

    Artes plsticas da Casa, que entrou aqui aos 12 anos, cresceu,

    fez faculdade. A pessoa sobe de patamar na vida. Sentimos tanto

    isso que pretendemos todos os funcionrios da Casa tenham um

    dia sido Zezinhos.

    No necessrio possuir mente evoluda para investir em

    cultura. Investe-se em cultura quando se percebe que possvel

    criar uma identidade.

    Santo Antonio das Artes Zezinhos foi um projeto editorial

    que recebeu recursos incentivados por meio da Lei Rouanet.

    Eu no entendia a lei. Ficava confusa quanto ao que podia e

    que no podia ser entendido como cultura portanto, o que po-

    dia e que no podia ser financiado. difcil fazermos uso de algo

    que no entendemos por completo. S comecei a recorrer Lei

    Rouanet em 2009, com a ajuda de produtores culturais.

    O livro, que no didtico, chega como produto cultural e

    educacional. Ser distribudo a empresas, fornecedores, ONGs

    parceiras e algumas faculdades. um projeto realizado com o

    patrocnio do banco Socit Gnrale, francs. Levantamos

    R$180 mil graas ao apoio da Lei Rouanet. O banco j nosso

  • 23

    parceiro h dois anos no projeto chamado Comunicao e Educa-

    o para o Sculo 21, destinado a jovens de 15 a 21 anos.

    Eu conhecia uma funcionria do banco que tinha informa-

    es sobre a Casa do Zezinho. Ela me levou ao Instituto Soci-

    t Gnrale, onde apresentei o projeto do livro e mostrei por

    que era inovador. Era um mundo que o diretor da empresa

    no conhecia.

    O que empresrios e executivos notam quando vm Casa

    do Zezinho so crianas pobres em um bairro de classe mdia no

    alto da montanha. Mas a primeira coisa que fao lev-los at a

    favela de onde realmente vem o Zezinho.

    De uns anos para c, tenho recorrido a outras leis como, por

    exemplo, a Lei Municipal de Incentivo Cultura (Lei Mendona),

    que permite a pessoas fsicas ou jurdicas patrocinar um projeto

    cultural e deduzir do seu Imposto Sobre Servios (ISS), ou do

    seu Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), uma parte do

    valor investido.

    Quando chegamos ao Capo Redondo, o local era zona de

    guerra. Observamos que as poucas palavras de que esses me-

    ninos dispunham para se expressar a precariedade de seu vo-

    cabulrio gerava violncia; eles entravam em conflito em qual-

    quer tipo de negociao, o que acarretava agresso fsica e at

    mesmo mo armada.

    Hoje tudo isso mudou completamente. Os moradores apren-

    deram a se organizar nos prprios bairros, criaram associaes

    e at mesmo negcios prprios. s vezes difcil reconhecer a

    importncia da cultura na formao do indivduo, mas o maior

    potencial dos moradores da periferia , sem dvida alguma, a

    capacidade de Articulao que eles adquirem por meio das Artes

    visuais, da msica e da dana.

    A princpio, a influncia que a criana mostra no bem acei-

    ta pela prpria famlia. Aos poucos, porm, conseguimos alterar

    esse estado de coisas. No ltimo inverno, uma de nossas edu-

    cadoras presenteou um Zezinho com um cachecol. Os demais

    tambm quiseram ter cachecol... A educadora trouxe agulhas e

    novelos para quem quisesse aprender a fazer cachecis. Meninos

    e meninas se candidataram. Tricotaram e levaram seus trabalhos

    para casa. Foi com isso que a maioria das mes se lembrou do dia

    em que elas aprenderam a fazer tric. Houve dilogo. Tric tam-

    bm cultura. Temos outros projetos que queremos apresentar

    Lei Rouanet: a orquestra de tambores e um grupo de dana.

  • 24

    cultura toda e qualquer produo do ser humano da pedra

    que virou machado na pr-histria fibra tica e engloba o

    domnio da matria e o processo de criao. o que torna a vida

    melhor e mais bonita, em todos os sentidos, incluindo a questo

    do simblico: a obra de Arte, a mais nobre de todas as mani-

    festaes. Faz parte desse universo o processo que o homem

    desenvolveu para tornar-se capaz de conviver com a natureza,

    com o outro e consigo mesmo ao descobrir sua condio. Nesse

    sentido, a cultura tem grande abrangncia.

    Temos um imaginrio poderoso ainda em grande parte im-

    portado, mas adaptado nossa realidade o que o torna dife-

    rente do dos pases onde fomos busc-lo. Temos uma fuso de

    imaginrios. Nunca fomos to globais e nunca fomos to locais

    procuramos o equilbrio entre as duas tendncias e vivemos

    um momento em que se percebeu a importncia dessa realidade.

    Mas ainda h mais discurso do que prtica. Nosso Ministrio

    da Cultura conta com uma parcela nfima do Oramento da Unio.

    Alguns pases nem isso tm, o que torna nossa situao mediana;

    mas sabemos que, em outros, a cultura tudo. A Frana um

    exemplo: para ser o que , valoriza sua tradio cultural fortssima.

    H anos, quando Mitterrand ainda estava no poder, Jacques

    Lang, ministro da Cultura e herdeiro de grandes nomes como

    o de Andr Malraux, criou a ideia da administrao da cultura:

    danilo Miranda

  • 25

    ele no tratava do assunto Cultura dentro do seu ministrio, do

    ponto de vista administrativo, mas tratava de qualquer assunto

    que envolvesse cultura em qualquer ministrio. justamente o

    que tem de acontecer.

    Quando se deseja melhorar o sistema penitencirio, por

    exemplo, a cultura tem um papel a desempenhar; quando h

    necessidade de mudana de paradigmas comportamentais, a

    cultura tem um papel a desempenhar; quando a comunicao

    necessita de alteraes, a cultura tem um papel a desempenhar.

    Essa importncia da cultura ainda no chegou ao ponto de ser

    entendida como parte de um processo, mas alguns pases j che-

    garam a esse nvel de desenvolvimento.

    O Brasil j avanou bastante, mas ainda tem um longo cami-

    nho a percorrer. Quando dispunha da estrutura administrativa

    do Ministrio da Educao (que at hoje se chama Ministrio da

    Educao e Cultura MEC mas, na realidade, apenas Minist-

    rio da Educao), a rea cultural era contemplada com recur-

    sos, uma vez que a reserva constitucional para a educao lhe

    garantia uma parte. Com a criao do Ministrio da Cultura, a

    reserva acabou questo tcnica, mas de peso. Ou seja, houve

    valorizao da cultura, que chegou ao nvel ministerial; mas, por

    outro lado, houve tambm desvalorizao, porque foram retira-

    dos recursos antes garantidos. Infelizmente, isso no foi resta-

    belecido at hoje. Existe um discurso de valorizao da cultura,

    de transformar o Ministrio da Cultura em fora expressiva no

    pas mas, na prtica, o dinheiro previsto no oramento no

    chega a 1% do mesmo.

    O ex-ministro Gilberto Gil pretendia chegar a 1%. O minis-

    tro Juca Ferreira tambm. Em pases que seguem a cartilha da

    UNESCO fala-se no mnimo de 2% do oramento.

    O Estado tem de se envolver em duas reas: primeiro, a que

    eu chamaria de infraestrutura dando condies para que a cul-

    tura acontea em salas, museus, locais histricos, velhas igre-

    jas, velhos centros espritas, velhas sinagogas antes de criar

    qualquer coisa nova, precisamos garantir o que est em pre-

    crio estado de conservao. A Lei Rouanet de alguma forma

    tem de contribuir para isso. Em segundo lugar viria o fomento:

    dar condies e dispor de aes efetivas para que aconteam

    concursos, cursos, bolsas, acesso para aqueles que iro criar e

    consumir. Ao Ministrio da Cultura no cabe realizar msica, te-

    atro, etc. mas, sim, abrir caminhos para que estes aconteam.

    A Lei Sarney, que tinha aspectos prticos complicados, teve

    funo didtica porque criou um modelo. A Lei Rouanet gerou

    uma mentalidade por parte do empresariado e da sociedade bra-

    sileira. Cumpriu e cumpre essa misso e aqui reside a dvida a

    respeito da poltica de tbula rasa que a reforma pretende fazer.

  • 26

    Esquecer e comear de novo seria errado. preciso ver o que

    est errado e tentar corrigir os erros.

    Est errada, por exemplo, a vinculao do marketing ao

    incentivo. A soluo o poder pblico exigir o que a lei j es-

    tabelece: o interesse pblico como critrio para a aprovao

    de projetos.

    No mercado de empresas privadas existem fenmenos curio-

    sos que trazem benefcios principalmente para os bancos. Tais

    empresas criaram suas prprias estruturas ligadas cultura

    isso tem sido positivo para sua imagem mas deveria haver uma

    definio mais clara desses investimentos, patrimnio realizado

    com dinheiro pblico. No acho que isso seja totalmente negati-

    vo, mas tem de ser regulamentado.

    A Petrobras, por exemplo, empresa de capital misto, tem par-

    te dos seus recursos vinculada a uma verba publicitria e de

    marketing. O que ela no pode fazer utilizar os recursos da Lei

    Rouanet, resultantes de renncia fiscal, como parte dessa verba

    de marketing. No pode ser o mesmo dinheiro. Essa mistura

    o grande defeito da lei, que tem de ser corrigido. Um Artista

    como o Roberto Carlos no precisa da lei, mas nada o impede de

    us-la, embora possa no haver interesse pblico em suas apre-

    sentaes. Quando falo em interesse publico, falo da expresso

    Artstica, de seu contedo e da possibilidade de permitir acesso

    populao. Quem recebe recursos da Lei Rouanet no deveria

    vender o espetculo a preo de mercado.

    O Vale Cultura uma boa sada: vai trazer recursos para a

    cultura que iro estimular o acesso mesma.

    O eixo RioSo Paulo a regio do pas que produz informa-

    es e forma opinies. Com o Vale Cultura, trabalhadores de todo

    o pas tero acesso a esses bens e podero consumi-los. Na vi-

    rada do milnio, o SESC fez um levantamento para determinar o

    que estava acontecendo no pas na rea cultural. Era uma espcie

    de radiografia sem interveno nem de rgos governamentais,

    nem da imprensa, e nem mesmo dos SESC locais. Conseguimos

    localizar cerca de 150 produtores. Para que a populao brasileira

    conhea o trabalho nascido fora do referido eixo, preciso traar

    uma poltica que d condies para a realizao desse trabalho.

    No SESC, temos alguns programas como, por exemplo, o Palco

    Giratrio, que leva uma pea teatral do Amap para a Bahia; da

    Bahia para o Rio Grande do Sul; do Rio Grande do Sul para o Mato

    Grosso... Fazemos um giro de maneira objetiva. Trata-se de um

    grande festival nacional que lota as salas de espetculos.

    Temos de avanar. At o final desta dcada teremos um PIB

    de pelo menos US$ 3 trilhes e certamente mais de 200 milhes

    de habitantes uma realidade que nos vai colocar entre as cinco

    ou seis principais naes. Copa do Mundo, Olimpadas... tudo isso

  • 27

    no passa de mero sinal; o mais importante descobrir nossa

    vocao em termos de cultura, de educao mas ainda no

    temos infraestrutura para tanto. Ainda existe espao para as leis

    de incentivo cultura, como a Lei Rouanet.

    O fator determinante deve necessariamente ser o interesse

    pblico. A lei clara nesse particular, que no obedecido. E o

    mecanismo de controle, de verificao e de acompanhamento

    ainda muito frgil.

  • 28

    A Lei Rouanet foi criada em um determinado contexto. Hoje, a

    cultura tem nova conceituao e novos usos para o desenvolvi-

    mento, para a mediao de conflitos, para a questo da preser-

    vao patrimonial e, finalmente, como foco em algumas reas

    por exemplo, a das grandes exposies. Em um ambiente glo-

    balizado, onde so muitas as variveis, a cultura um vetor de

    desenvolvimento. Estamos no Rio de Janeiro, onde a periferia

    est no centro desafiando a prpria geometria. A cultura a

    ponte entre esses mundos partidos. O ex-ministro da Cultura, Gil-

    berto Gil, disse que a cultura possui trs dimenses: a simblica,

    a cidad e a econmica.

    Quando discutimos a Lei Rouanet, falamos de questes que

    jamais poderiam ter sido pensadas na poca em que foi elabo-

    rada. A cultura digital, as comunidades virtuais, os portais para a

    literatura, por exemplo, ainda no se enquadram na lei, embora

    estejam alinhados com a proposta do Ministrio da Cultura (MinC)

    de apoiar no s a criao cultural, mas tambm sua difuso. So

    diretrizes amplas e positivas. Sou admiradora da poltica pblica

    para a cultura elaborada pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferrei-

    ra. Quando o ministro Gil tomou posse, lembro-me de que um jor-

    nalista lhe perguntou: Ministro, qual ser a caracterstica de sua

    gesto? Ao que ele respondeu: Abrangncia. Essa tnica vem

    subsidiando toda a ao do MinC se entendermos abrangncia

    eliane costa

    Formada em fsica, Eliane Costa ingressou na rea de informtica da

    Petrobras em 1975. Atuou como produtora cultural independente.

    gerente de patrocnio da Petrobras

  • 29

    como acessibilidade aos bens culturais e ao financiamento via edi-

    tais, com melhor equilbrio regional da distribuio dos recursos.

    a democratizao do acesso nas duas pontas: para o produtor

    cultural financiar um projeto por meio de seleo pblica; e para

    o cidado poder assistir a um espetculo.

    Seria ideal que projetos em sintonia com a poltica pblica

    para a cultura conseguissem o patrocnio incentivado de 100%.

    Estou aqui me referindo cultura digital, mas no precisamos ir

    to longe: enquanto os projetos de msica popular podem rece-

    ber 30% do patrocnio (Artigo 26), a lei permite um incentivo

    de 100% para a msica erudita (Artigo 18). Um projeto de m-

    sica popular da Paraba, por exemplo, que tem muitssimo me-

    nos oportunidades de acesso s fontes de financiamento, vai ter

    menos seduo para o empresariado interessado em investir em

    cultura do que outro, de msica erudita, no Teatro Municipal do

    Rio de Janeiro ou de So Paulo. So distores.

    A legislao no permite hoje a abrangncia da proposta

    do MinC. A acessibilidade por exemplo, das pessoas que tm

    deficincias visuais, auditivas ou dificuldade de locomoo

    no recebe a ateno da Lei Rouanet. Acabamos de lanar um

    projeto, escolhido mediante edital de seleo pblica, chama-

    do Musibraile, software que permite imprimir partituras em

    braile anteriormente s existia um mtodo vendido na Frana

    por R$ 800 mil. O Musibraile destina-se a msicos com defi-

    cincias visuais que podero imprimir partituras em qualquer

    impressora e no apenas nas impressoras braile, que custam

    R$27 mil reais. No meu entender, tal programa deveria ter in-

    centivo de 100%, mas a Lei Rouanet no prev isso: esse pro-

    grama se enquadra na categoria msica, mas pressupe inter-

    veno da informtica, item imprevisvel em 1991. Deveramos

    tentar fazer com que os festivais de cinema se adequassem a

    essas pessoas: filmes com legendas para deficientes auditivos

    e udio-descrio para deficientes visuais.

    O incio da gesto do ministro Gilberto Gil marcou uma era

    na questo da poltica pblica para a cultura. Novos patamares

    para a construo da poltica pblica foram colocados de for-

    ma participativa, com fruns municipais, estaduais, nacionais

    e virtuais. Legislar de cima para baixo, de forma centralizada,

    bem mais rpido do que trabalhar de forma democrtica.

    Democracia d trabalho e leva tempo, mas os resultados tm

    mais validade e repercusso. Como cidad, sou entusiasta do

    contedo da poltica pblica e do seu modelo participativo de

    construo. Direitos autorais ou acesso ao conhecimento, por

    exemplo, constituem questes que so discutidas em um frum

    de cultura digital. essa uma nova forma de construir polticas

    pblicas para a cultura.

  • 30

    O MinC conseguiu grandes avanos nos ltimos seis anos.

    Hoje, muitas empresas, privadas ou mistas, que no trabalhavam

    com editais de seleo dos projetos, aderiram a essa poltica e

    os selecionados mencionam solues de acessibilidade, preos

    de ingressos, apresentao em espaos alternativos mais dis-

    ponveis populao como um todo. O estmulo aos editais de

    seleo pblica so um avano fundamental.

    At mesmo as organizaes que atuam no mercado privado

    como, por exemplo, a Votorantim e a Natura aderiram aos edi-

    tais. Essa poltica fundamental para o acesso do produtor. A Pe-

    trobras tem um projeto o registro das canes de acalanto de

    mes indgenas de tribos do sul do Par, que dificilmente conse-

    guiria patrocnio (at mesmo de uma empresa como a Petrobras,

    preocupada com a questo do registro de patrimnio material)

    se ele no tivesse chegado via edital de seleo pblica mesmo

    porque muitas empresas no tm acesso aos gabinetes ou esto

    mais preocupadas com a questo da visibilidade da sua marca.

    No nenhum demrito as empresas se preocuparem com

    sua prpria promoo. Acho que cada empresa tem sua poltica

    de patrocnio associada a um planejamento estratgico e a um

    posicionamento no mercado. A utilizao abusiva dos incentivos

    oferecidos pela Lei Rouanet, como a promoo de produtos ou a

    promoo da prpria empresa, existe cada vez menos. Claro que

    no podemos generalizar, mas havia muito disso no mercado. O in-

    centivo da Lei Rouanet a renncia fiscal; portanto, trata-se de re-

    curso pblico. Acho bastante justo e os proponentes de projetos

    patrocinados entendem isso de forma natural que determinado

    projeto retorne para a sociedade de alguma forma: seja pelo seu

    produto final, seja pela contratao de estagirios, seja pelo in-

    tercmbio do conhecimento criado. Todos os festivais de cinema,

    teatro e msica que a Petrobras promove tm exibies gratuitas

    em escolas e praas e resultam em oficinas para a comunidade de

    Artistas locais. Essa uma atuao da Petrobras, no exigncia da

    lei; mas segue a poltica pblica de cultura iniciada pelo ministro

    Gilberto Gil e mantida pelo ministro Juca Ferreira.

    A Petrobras patrocina vrios projetos que trabalham com o

    fortalecimento da cidadania, construo do sentimento de per-

    tencimento e recuperao de renda. a maior empresa patroci-

    nadora da cultura brasileira h at mesmo pessoas no exterior

    que pensavam ser Petrobras uma produtora de audiovisual, uma

    vez que todos os filmes que l chegam so por ela patrocinados!

    Temos projetos dentro das reas discriminadas pelos editais

    e outros que chamamos de escolha direta projetos convida-

    dos pela empresa ou por ela apresentados e julgados aptos. So

    projetos de oportunidade. Alm disso, temos os projetos associa-

    dos s polticas pblicas encaminhados pelo MinC, o que amplia

  • 31

    nossa seleo pblica de editais externos. H basicamente trs

    frentes: projetos selecionados por editais, projetos da escolha

    direta e projetos da seleo pblica. De 2001 at hoje, recebemos

    20 mil e poucos projetos ao longo de um ano. Temos mais de mil

    projetos escolhidos em processo de seleo pblica. A comisso

    selecionadora formada por pessoas externas companhia e

    soberana. Essa uma inovao que passou a ser seguida por

    outras empresas e constitui referncia no MinC, tanto na rea

    privada quanto na estatal. Neste momento, por exemplo, uma co-

    misso de msica trabalha sob a coordenao de um funcionrio

    da Petrobras que no tem direito a voto. Quem vota so pessoas

    da rea de msica, tais como realizadores e crticos. Mais de 250

    pessoas da rea acadmica, da imprensa e do mercado j atu-

    aram nessas comisses. Para uma empresa como a Petrobras,

    que trabalha com o patrocnio de projetos culturais para agregar

    visibilidade e reputao sua marca, isso muito importante.

    Por outro lado, nem todo projeto projeto de mercado: os

    projetos so aes que o Ministrio da Cultura tem de empre-

    ender e que no podem disputar recursos com os proponentes

    que pleiteiam incentivos. preciso, porm, ficar muito atento ao

    problema de que um dos grandes usurios dos recursos dispo-

    nibilizados pela Lei Rouanet o prprio poder pblico federal,

    estadual e municipal.

  • 32

    Na cultura, h uma avalanche de recursos sendo investidos em

    diversos segmentos. A Lei Rouanet possibilitou enormes avan-

    os: no s permitiu a realizao de projetos, mas tambm pro-

    fissionalizou o setor. Hoje h mais Artistas e mais produtores,

    mas existem tambm mais tcnicos, contadores, auditores e

    advogados especializados. Eu mesmo sou advogado especiali-

    zado em direito administrativo e trabalho com cultura, esporte

    e terceiro setor.

    Existem trs formas de o produtor cultural buscar recursos

    incentivados por meio da Lei Rouanet:

    1. ir atrs do dinheiro do Estado. Recorre-se ao Fundo Nacio-

    nal de Cultura, mas 20% saem do bolso de quem deseja realizar

    o projeto (com exceo das emendas parlamentares e doaes

    vinculadas ao Fundo);

    2. optar pelo modelo privado. O produtor cultural procura

    uma empresa e esta oferece todo o patrocnio; e

    3. escolher o mecenato. O produtor submete um projeto ao

    Ministrio da Cultura ou a outro mecanismo de incentivo em ou-

    tra esfera do governo. Se o projeto preencher os quesitos e for

    aprovado, recebe uma chancela. De posse da chancela, o produ-

    tor ento procura uma empresa disposta a transferir o dinheiro

    para o projeto. Esta opo dar ao financiador o direito de abater

    entre 64 e 100% de seu Imposto de Renda devido.

    Fbio cesnik

    Advogado, scio da Cesnik, Quintino e Salinas Advogados,

    Fbio Cesnik autor do livro Guia do Incentivo Cultura e co-autor dos

    livros Projetos Culturais e Globalizao da Cultura

  • 33

    O mecenato como indutor de poltica no pode acabar, pois

    excelente. Os incentivos so instrumentos tticos que tm de se

    perpetuar e ser aperfeioados.

    O Estado, quando regulamentou a Lei Rouanet em 1995, ven-

    deu a ideia do investimento em cultura como estratgia de co-

    municao. Criou uma cartilha chamada Cultur , Bom Negcio.

    Havia textos do Ministrio dizendo que os empresrios poderiam

    abater parte do Imposto de Renda e fazer marketing com o di-

    nheiro do incentivo fiscal. Os empresrios entenderam que pode-

    riam ser agentes ativos do processo. O Estado vendeu o modelo

    e, ato contnuo, endeusou o investimento em comunicao. No

    momento seguinte, porm, demonizou quem havia optado por

    isso. O processo ficou muito do lado do marketing, por conta do

    que foi vendido pelo prprio Estado. Mas isso nada tem de ilegal.

    Em matria de renncia fiscal da Unio, os incentivos cultura

    representam uma parcela muito pequena dos incentivos conce-

    didos a outros segmentos.

    Para entender a razo de ser das leis de incentivo, preci-

    so entender que elas so criadas para atender algum tipo de

    poltica pblica. A reduo do IPI na venda de automveis, por

    exemplo, tem em vista a manuteno da gerao de emprego e

    de renda dentro do setor automobilstico. O incentivo ao papel

    jornal que permite os jornais chegarem s nossas casas com

    o preo de costume fruto do compromisso do Estado com a

    renncia de impostos (esses de natureza constitucional).

    No caso da cultura, a poltica pblica que est por trs da

    criao das leis de incentivo ainda se acha mal resolvida. Se

    imaginarmos que haver desenvolvimento social e econmico,

    as leis tm cumprido o seu papel mas isso est ocorrendo de

    maneira pouco ordenada e, s vezes, desequilibrada.

    A Lei Rouanet tem de permanecer em vigor. Mas o que preci-

    sa ser mais bem desenvolvido questo nada grave em relao

    ao mecanismo pensar, do ponto de vista das polticas pbli-

    cas, como e onde queremos e podemos chegar.

    No futuro, tal como agora, a Lei Rouanet ser criticada do

    ponto de vista da distribuio regional dos investimentos. Desde

    o momento em que foi concebida, sabia-se que as regies com

    maior nmero de empresas com lucro real e maior possibilida-

    de de investir na cultura seriam as do Sudeste. Hoje a crtica

    no apresenta nenhuma novidade. No caso do Vale Cultura, o

    modelo est sendo pensado da mesma forma: quem pode desti-

    nar dinheiro ao Vale Cultura a empresa tributada no lucro real,

    e somente ela. (O Vale Cultura, na verdade, no faz parte da Lei

    Rouanet, mas pertence a outra lei autnoma, nova).

    A Lei de Incentivo ao Esporte d 100% de incentivo em todas

    as atividades esportivas financiadas, na atividade do desporto

  • 34

    educacional, na de participao e na do desporto de rendimento.

    Com relao ao desporto educacional, metade dos que atuam

    nas aes educacionais realizadas por meio da lei tem de ser

    proveniente da rede pblica de ensino um critrio social da lei.

    As atividades de lazer e participao tm de ser realizadas prio-

    ritariamente em reas de vulnerabilidade social, item que leva

    construo de quadras em favela, por exemplo. J o desporto

    de rendimento estimula a formao de atletas para competies.

    O foco justamente esse e no tem, a priori, a preocupao de

    desenvolvimento social mas, sim, a de formao de atletas.

    esse o olhar que ainda no temos quando trabalhamos com

    a Lei Rouanet. Quando perguntaram ao ministro do esporte se

    ele achou injusto que o treinamento de jogadores que, no futuro,

    seriam vendidos por milhes ao exterior fosse realizado com o

    dinheiro do Estado, ele respondeu que isso significava que o pro-

    jeto dera certo. Se o desenvolvimento de projetos de rendimento

    gera bons jogadores e estes representam lucro aos clubes, si-

    nal de que o projeto foi vitorioso.

    Na rea da Rouanet, criou-se o mito de que tudo deve ser

    social. Toda vez que o projeto de um Artista famoso aprovado,

    essa perspectiva social teria de estar presente? Como podemos

    olhar para um projeto dessa natureza sob um ponto de vista so-

    cial? Desenvolver um projeto de mercado como, por exemplo,

    possibilitar a vinda do Cirque du Soleil para o Brasil significa

    gerar emprego e renda. O debate, porm, tem muita hipocrisia

    em relao ao valor dos ingressos, por exemplo.

    Antes de definir onde a lei tem de verter suas prioridades,

    preciso traar polticas diferentes para coisas que so diferen-

    tes. Existe preocupao com as prioridades tanto por parte do

    governo quanto do setor privado, o que mostra que as pessoas

    j esto bem conscientizadas.

    O debate em torno da Lei Rouanet tem dois pontos: primeiro,

    precisamos definir aonde queremos chegar em termos sociais

    e econmicos; segundo, lembrar-nos de que esse mecanismo

    convive com outros. Mexer nos instrumentos de financiamento

    da cultura significa trazer todos os mecanismos para o mesmo

    debate na medida em que disputam a mesma rea.

    Em tempo: hoje, poucas pessoas fsicas investem em cultura

    parte de seu Imposto de Renda devido. So as empresas que

    fazem esse tipo de investimento, esperando retorno para suas

    marcas. Para as pessoas fsicas que tm 6% de seu IR dispon-

    veis, h mais de uma opo: investir em cultura (Lei Rouanet),

    cinema (Lei do Audiovisual), esporte (Lei do Esporte) ou infncia

    (Estatuto da Criana e do Adolescente).

  • 35

    Trabalho em duas frentes: numa empresa onde se editam livros e

    se realizam eventos, seminrios e exposies; e na Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, onde coordeno o Programa Avanado

    de Cultura Contempornea. A Universidade tem seus prprios

    canais de financiamento, tais como o CNPQ mas na primeira

    atividade que, desde o comeo, tenho viabilizado todos os meus

    projetos com o apoio da Lei Rouanet.

    Desenvolvo projetos culturais ligados literatura: o Portal

    Literal site oficial de cinco grandes autores (Lygia Fagundes

    Telles, Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verssimo e

    Zuenir Ventura) de uma revista online chamada Idiossincrasia,

    de resenhas e Artigos, nasceu em 2002. Desde 2008, o Portal

    Literal passou a ser 2.0, ou seja, abriu-se a um formato cola-

    borativo no qual, a partir da votao de seus pares, qualquer

    interessado pode ver seu trabalho nele publicado. O Portal, des-

    de o comeo, tem o patrocnio da Petrobras. Sua insero dele

    na Lei foi extremamente problemtica porque a Lei no estava

    preparada para absorver projetos da rea digital. Onde colocar

    o Portal no mbito das categorias da Lei? A Lei do Audiovisual,

    opo aparentemente possvel, mostrou-se invivel, porque no

    admitia incluir literatura, ainda que em mdia digital. Todas as

    renovaes deste patrocnio trouxeram problemas por conta do

    despreparo da Lei para lidar com novas linguagens. necessria

    Heloisa Buarque de Hollanda

  • 36

    uma reviso da Lei Rouanet. Ela deveria, alm disso, reconhecer

    que estamos numa era digital. No nosso caso, queramos apenas

    divulgar literatura em grande escala, sem qualquer inteno co-

    mercial ou de venda de livros. Mas para a lei literatura livro e

    s reconhecida no formato impresso...

    Outro srio problema da Lei Rouanet o tempo exigido para a

    formatao e aprovao do projeto e obteno do patrocnio. No

    h mecanismo pr-determinado. Quando, porm, surge algum

    problema a como, por exemplo, a mudana de um funcionrio

    o processo acaba ficando travado. Em consequncia disso, pode

    acontecer de se perder um patrocnio por decurso de prazo.

    Passa o ano e todo o processo tem de ser reiniciado. Quan-

    do se tem o patrocnio assegurado, inclusive mediante a apre-

    sentao de uma carta de inteno, no certo que o tempo de

    aprovao na Lei vai conseguir ser sincronizado com o tempo

    de garantia daquele patrocnio. No existem na Lei mecanismos

    prprios para esses casos de patrocnio j assegurado. Eu mes-

    ma j perdi dois patrocnios grandes porque o projeto no foi

    aprovado a tempo. Para se conseguir uma aprovao a tempo,

    importante preverem-se idas a Braslia, pois existe aqui [no

    Rio de Janeiro] uma auditoria que no tem poder decisrio. A

    existncia de uma ouvidoria local com maiores poderes facili-

    taria bastante. Tem-se de investir em passagem e estadia para

    ir a Braslia e verificar o andamento do projeto. Isso deveria ser

    feito regionalmente.

    Quanto mentalidade reinante, tive um projeto, por exemplo,

    do fotgrafo brasileiro Alair Gomes, j falecido, que estava ex-

    pondo na Frana. Eu tinha todo o material em mos para produ-

    zir um livro e uma exposio; planejava um grande evento, pois

    o fotgrafo era muito bom. Ao procurar patrocnio, disseram-me

    que ele no era bom para a imagem da empresa porque gostava

    muito de fotografar rapazes na praia. A obra dele, porm, no

    agressiva nem pornogrfica; simplesmente uma questo geo-

    mtrica, de luz e sombra. Ento, na verdade, tanto a pessoa dele

    quanto o tema por ele escolhido estavam sendo alvos de crtica

    injustamente negativa.

    Depois de algum tempo, organizei um guia gay chamado Rio

    Diferente, muito legal, falando do Rio de Janeiro, comentando fa-

    tos observados na cidade agora eleita paraso gay. Apresentei

    o projeto Johnson & Johnson; mas no consegui o patrocnio,

    porque no guia eu mencionava at mesmo camisinha e AIDS.

    No consegui patrocnio de nenhuma empresa, pois a temtica

    era homossexual. Existe muito disso o af de no associar

    imagem da empresa noes tidas por algumas pessoas como

    negativas. Mas a Johnson & Johnson no fabricante, entre

    outras coisas, de camisinhas? Tenho um filho que cineasta e

  • 37

    est fazendo uma coisa chamada Arte Pornogrfica, com gran-

    des nomes das Artes plsticas como, por exemplo, Cildo Meirel-

    les. Meu filho tem encontrado muita dificuldade para fazer o que

    eu chamaria de obra pornogrfica, e a respeitabilidade de alguns

    dos autores questionvel. Isso at d para entender um pouco;

    eu gostaria de agregar minha imagem figura do Meirelles, mas

    no sei o que isso significa em termos de uma empresa vincular-

    -se a um patrocnio desses. As empresas agora gostam do social,

    com cultura de periferia e marketing social. O verde tambm;

    no trabalho nessa rea, mas podemos dizer que existem dois

    polos hoje o social e o verde ou, ento, grandes obras da

    humanidade que no se encontram em nenhuma dessas duas

    vertentes. Ideias novas so de difcil aceitao.

    Essa noo de verde um lance de marketing das empre-

    sas. As empresas gostam do social porque agregam uma ima-

    gem. No sei se isso veio por conquista das periferias; acho que

    o marketing social tem hoje um valor profundo e, claro, traz

    benefcios comunidade. Podemos dizer que as pessoas, de al-

    guma forma, esto chegando s questes culturais. E a Lei Rou-

    anet tem a papel muito importante. O aspecto de maior valor da

    Lei Rouanet tem at agora sido a Arte, a literatura e a msica.

    Considero Gilberto Gil um gnio, pois foi o primeiro Ministro da

    Cultura que estendeu esse patrocnio para o Brasil inteiro. Meta-

    de dos Pontos de Cultura no funciona mas isso pouco impor-

    ta, pois h um conceito para a poltica cultural. No era possvel

    continuar tudo nas mos s do Carlos Barreto ficar nas mos

    de muito pouca gente. Foi do Gil a ideia de que criar cultura

    muito mais ampla do que fazer cinema. A partir disso ele criou os

    Pontos de Cultura, que valem mais como conceito. Isso ampliou a

    maneira de olhar para o Brasil e para a cultura. Cultura passou a

    ser uma coisa mais vasta. H muito material, uma economia cria-

    tiva. Tecer tapetes, por exemplo, passou a ser considerado cultu-

    ra. Constataram-se outras formas de reconhecimento de cultura,

    de patrimnio cultural, e a segunda coisa que Gil fez foi abrir

    espao para a era digital, que ainda no foi metabolizada pela lei.

    De qualquer forma, foi ele que possibilitou isso. A fulminante ges-

    to dele marcou um avano na perspectiva. Estou lendo um livro

    chamado Free, do Chris Anderson, onde h um captulo sobre o

    Brasil e a gesto Gilberto Gil. um best-seller americano sobre

    direito autoral compartilhado, um livro top de linha.

    As possibilidades vislumbradas j transpem um pouco o eixo

    RioSo PauloBraslia. Estou elaborando, por exemplo, a coleo

    Tramas Urbanas. Ao todo sero vinte livros. Foi muito difcil encon-

    trar material fora desse eixo, mas eu sabia que era preciso encon-

    trar. Fui procurando e achando e, se no fosse pela presso que

    senti, isso no teria ocorrido. Tramas Urbanas so movimentos

  • 38

    culturais da periferia, contados por seus protagonistas. No eixo

    RioSo Paulo mais fcil, por ser evidente. Neste momento vou

    lanar um guia do Recife, a respeito de Arte eletrnica na favela.

    Dentro desse movimento h um personagem no Par que se

    chama Pablo Capil inventor de um sistema financeiro chama-

    do CuboCard. Ele inventou um carto de crdito de trocas e fez

    uma relao de preos de servios. Dessa forma, tantas horas de

    estdio de gravao valem tantos pontos no CuboCard. A impres-

    so de discos vale outros tantos. tudo eletrnico. Por exemplo,

    um grupo do Rio Grande do Sul que no tem dinheiro para gra-

    var um CD consegue algum que faa a gravao em troca de

    um servio com o CuboCard. um escambo formal entre vrias

    reas culturais.

    Os Pontos de Cultura ajudam muito a descobrir o que h de

    interessante e inovador sendo feito fora do eixo cultural tradi-

    cional, porque do acesso a um catlogo de produtores. H um

    evento anual de que eu sempre participo e que se chama Teia,

    realizado cada vez num estado diferente, juntando todos os Pon-

    tos de Cultura. Esse encontro fundamental para se conhecer o

    que h de bom na cultura brasileira.

    Alem disso, a internet instrumento poderoso par dar acesso

    a esse tipo de informao a pesquisadores. Trabalhei com litera-

    tura desde muito jovem a princpio com literatura de resistncia

    ao governo militar, depois com literatura produzida por mulheres e

    literatura de negros excludos. Cheguei favela mas, pela minha

    prpria trajetria profissional, sempre trabalhei com literatura off,

    perifrica. Minha tese de doutorado foi sobre a poesia marginal,

    uma poesia de contracultura e de resistncia ao governo militar.

    Do ponto de vista do efeito da internet na literatura, inte-

    ressante dizer que, ao contrrio do que se imagina, as pessoas,

    principalmente as das camadas jovens, esto lendo muito mais

    e escrevendo muito mais. No Japo, a febre da escrita jovem

    grande e at se cunhou o termo bookaholic. Os jovens japoneses

    leem livros de celular, escritos em fragmentos e enviados pelo

    Twitter. So livros mesmo, s vezes grandes, so romances de

    celular em minicaptulos. H um, por exemplo, que, quando im-

    presso em forma de livro/papel, vendeu imediatamente duzentos

    mil exemplares para adolescentes daquele pas. a histria de

    um adolescente com cncer que tem uma namorada pela qual

    apaixonado. Ele no quer que ela saiba da doena dele. Num

    folhetim de cem pginas, o autor descreve seu drama.

    No Brasil, por outro lado, temos o fenmeno novo do merca-

    do infanto-juvenil em franco desenvolvimento. Falo da literatura

    impressa em papel mas, por exemplo, um outro gnero que

    os adolescentes gostam muito o que se chama de fanfiction

    (literatura de fs). Quem f de um livro ou de um autor se d

  • 39

    o direito de reescrev-lo, inventar novos destinos para os per-

    sonagens, inserir novas situaes, etc. Machado de Assis, por

    exemplo, tem vrios de seus romances em verses fanfction.

    Na periferia, a literatura completamente diferente. A literatu-

    ra de periferia no sentida apenas como um prazer, no uma

    expresso individual de sentimentos e experincias apensas. isso

    tudo e mais um recurso de insero social e educacional. A leitura

    e a escrita so instrumentos de gerao de renda, de ascenso

    social e so assim valorizadas. Literatura poder. Ferrez tem um

    exemplo interessante: antes de falar de literatura, ele diz que para

    se passar de jardineiro a paisagista, tem-se de estudar e ler muito.

    E ento menciona a diferena de salrio entre um e outro.

    Em So Paulo h um sarau de periferia chamado Coperifa

    (Cooperativa Cultural da Periferia), com Srgio Vaz, que estimu-

    la a formao de leitores. um tipo de encontro hiphop, com

    rappers e poetas. O encontro se d toda quarta-feira num bar

    chamado Z do Batido, com quatrocentas pessoas recitando

    poemas. Paralelamente, na periferia vrias lojas de objetos de

    consumo como tnis, bons, etc. vendem tambm livro, que

    assim exibido como objeto de desejo, de consumo.

    O problema que a Lei Rouanet no prev essa Arte infor-

    mal, digital, descentralizada da atualidade em suas rubricas. Com

    isso, muitos projetos ficam emperrados.

    As empresas esto aplicando dinheiro contando com o re-

    torno para sua marca. Eventualmente, eu ganho dinheiro com

    projetos, mas no com a captao. Num projeto de R$200 mil eu

    ganho R$10 mil. Trabalho seis meses, e no posso cobrar mais

    que isso; caso contrrio, o projeto no se realiza. At a gastei

    muito mais, com telefonemas, com a equipe de mais duas pes-

    soas e com a manuteno do escritrio da editora. No d para

    viver dos projetos, pois a lei no garante captao justa.

    Um assunto que est sempre em pauta, mas no se concreti-

    za, o da acessibilidade. Os institutos que tratam disso realizam

    um trabalho louvvel, mas o dinheiro que deveria ser socializado

    na realidade no o , pois acaba voltando-se para a imagem da

    empresa. Melhor no ter esse trabalho do que faz-lo para

    enriquecer as pessoas que esto promovendo o projeto. O pa-

    trocnio deveria ser feito com recursos da prpria empresa, e

    no com as compensaes fiscais previstas pela Lei. Da manei-

    ra como vem sendo feito, servio de marketing empresarial.

    Meus projetos nunca passam dos R$200 mil, e eu consigo no

    final captar um pouco menos. O Portal mais caro, R$300 mil. O

    prazo para captao tambm um problema srio. Consegue-se

    o patrocinador, mas a aprovao na Lei no est finalizada. H

    dois ou trs anos houve um problema interno, e a aprovao se

    atrasou por um ano. Acabamos perdendo o patrocnio.

  • 40

    leonardo Brant As mudanas no desenvolvimento cultural, se compararmos o Bra-sil de hoje e o Brasil de h 18 anos, no so estatisticamente cal-

    culadas. Pensemos no perodo de abertura poltica, na transio

    democrtica e no que a poltica cultural diante desse processo.

    Da chegada da Coroa ao Brasil ao governo Collor houve forte

    e paternalista relao entre cultura e Estado o que pode ser

    considerado at mesmo perigoso.

    O ex-presidente Fernando Collor de Mello (19901992) desman-

    chou nosso aparato institucional e, particularmente, de poltica

    cultural. A Lei Rouanet surgiu como novo elemento poltico-cul-

    tural quando foi instituda em 1991, durante seu governo. Ficou

    paralisada por um bom tempo, pois no havia condies para o

    seu funcionamento, mas desenvolveu-se confirmando predicados

    e intenes do legislador, ou seja, promoveu uma cultura sustenta-

    da basicamente na relao entre economia de mercado e iniciativa

    privada. Fez da cultura mercadoria. O governo era o regulador dos

    recursos e foi assim que a iniciativa privada passou a desempe-

    nhar um papel importante no processo. O Artista e o produtor

    cultural ficaram na trincheira entre empresas e Estado.

    O fortalecimento da indstria do cinema e da msica, no fi-

    nal da dcada de 1990, foi creditado Lei Rouanet e tambm

    Lei do Audiovisual. Filmes como Carlota Joaquina, por exemplo,

    foram patrocinados por esses mecanismos. O boom do showbiz

    Leonardo Brant pesquisador de polticas culturais, presidente da

    Brant Associados, autor do livro O Poder da Cultura, entre outros,

    e editor do site Cultura e Mercado

  • 41

    ligado s Artes cnicas, s grandes festas populares, que no

    existia h 18 anos, tambm surgiu em decorrncia da Lei Rou-

    anet. Alm disso, um nmero enorme de centros culturais, mu-

    seus e festivais surgiram no pas.

    Hoje no se tem um volume de recursos garantidos para o se-

    tor cultural. A referida lei poder ser reformulada, ou at mesmo

    revogada, para dar lugar a outra. H muita desinformao com re-

    lao ao papel constitucional do Estado na cultura. Para a deman-

    da de hoje, precisamos buscar outras formas de sustentabilidade.

    Produtores e Artistas sabem que a fronteira com o setor pri-

    vado tambm contraditria e conflituosa: oferece benefcios

    para o processo de criao o mercado cultural, evidente, est

    formando uma base mas no existem fundamentos para uma

    relao de mercado. A indstria que se formou foi turbinada por-

    que recebeu muito dinheiro. Houve investimentos, mas a cadeia

    econmica como um todo no foi atendida.

    Estaramos fundando uma relao empresarial com o Artista

    e inserindo em seu universo um tipo de conhecimento e de exi-

    gncia que ele no domina? O Artista estaria mesmo perdendo

    um pouco de sua relao com o pblico, pois no depende deste

    para sobreviver?

    Tenho trabalhado na criao de um fundo pblico autnomo,

    no governamental, para que a prpria sociedade aprenda a ge-

    rir o seu imaginrio. Reuniria vrias instncias de representao.

    Atualmente, nas comisses, existe um representante das Artes

    visuais e outro de cinema, por exemplo. Tais representantes no

    esto aptos a definir reas que precisam ser financiadas, pois

    no tm distanciamento tico para isso. , ento, necessrio que

    a sociedade se aproprie desses mecanismos. A Arte no seria

    algo que precisa de sustento mas, sim, o sustento da sociedade.

    Na Inglaterra, existem recursos das loterias canalizados para

    conselhos regionais de Artes, geridos pela sociedade, que define

    a poltica da regio e distribui o dinheiro local. As pessoas que

    compem tais conselhos so cidados comuns. Os resultados so

    fantsticos. A viso da diversidade cultural das mais contempo-

    rneas: a cultura a que se faz l. No importa de onde o Artista

    seja originrio, desde que ele crie e se expresse em territrio do

    Reino Unido, pois isso representa uma vantagem para esse pas.

    O ingls vai a uma casa lotrica e deposita seu dinheiro para fi-

    nanciar Arte. Para ele, como recompensa, pode haver um prmio

    (aqui no Brasil, quem vai loteria o faz to somente porque quer

    ficar rico). A ideia j foi discutida e, inclusive, j existiu um projeto

    nesse sentido no Brasil, mas houve tambm resistncia da pr-

    pria Caixa Econmica, que considerou o modelo ingls invivel.

    Quem entende de loteria a Caixa e no o Ministrio da Cultura...

    O assunto pode ser retomado.

  • 42

    Um dos problemas da cultura a falta de dinheiro, mas esse

    no o seu maior problema. Problema maior a percepo da

    nossa sociedade em relao cultura. J somos um pas muito

    avanado em termos culturais. Cultura compensa nossa fragilida-

    de educacional. O Brasil tem um problema de formao tcnica

    de base e de acesso ao conhecimento, mas as pessoas esto evo-

    luindo, apesar de no terem bases educacionais. O que fez com

    que uma pessoa alfabetizada aos 16 anos, que no teve acesso

    ao aparato educacional, se desenvolvesse diante das questes

    que afligem a ela e comunidade qual pertence? A partir de

    relaes culturais estabelecidas por ela e seus iguais, tal pes-

    soa foi capaz de buscar solues para seus problemas. Isso o

    que eu chamo de dinmica cultural: buscar solues por meio

    da convivncia, da participao cvica. Existe uma gama enorme

    de redes socioculturais montadas a partir dessas questes. A

    questo da sociabilidade uma questo cultural que est muito

    atrelada ao desenvolvimento de uma nao, da tica e da prpria

    sobrevivncia. Tem, pois, de ser incentivada. O Estado brasileiro

    precisa reconhecer melhor essas dinmicas e conseguir recursos

    para potencializ-las. o que o ministro Gilberto Gil (20032008)

    chamou de o cultural antropolgico.

    O pas, porm, no possui mecanismos para ativar essa nos-

    sa capacidade.

    O incentivo aos gris (regionalismo brasileiro corresponden-

    te ao termo francs utilizado para nomear os mestres africa-

    nos que transmitem sua cultura por meio da narrao oral), por

    exemplo, parte integrante do Cultura Viva, programa interes-

    sante e inovador que se formou mas, pelo menos por enquanto,

    se mostrou frgil do ponto de vista institucional. uma pena

    mas so parcos os recursos para ativar as capacidades culturais,

    as formas de sociabilizao, de troca, de dilogo, que propicia-

    riam a busca pelas sadas para os nossos prprios problemas.

    Em Braslia, os funcionrios governamentais, fechados para

    o mundo, atendendo demandas polticas e miditicas, se des-

    vinculam da realidade. Do nosso dinheiro, 30% vo para a edu-

    cao. No falta de dinheiro. Se o Estado tiver responsabili-

    dade em relao cultura, vai saber reconhecer as dinmicas

    culturais, criar uma estrutura de acesso e garantir os direitos

    de expresso dos cidados. Mas h tambm a percepo da im-

    portncia da cultura: quando o Presidente diz que aqueles li-

    vros no servem para nada... Lula a sntese do povo brasileiro,

    que sente orgulho da prpria ignorncia, um dos entraves ao

    incentivo cultura. Garantir o conhecimento cultural significa

    possibilitar acesso cultura. Isso s se realiza com investimento:

    preciso termos um centro, uma biblioteca, uma hemeroteca.

    preciso termos internet.

  • 43

    Vivemos em um pas capitalista e a Arte precisa achar um

    lugar dentro do capitalismo para se manter. necessrio encon-

    trar uma brecha, pois o Estado agora quer ser copatrocinador

    de cultura. Se as empresas esto patrocinando cultura e ditando

    seus interesses comerciais, o governo, copatrocinador, tambm

    visar aos seus interesses. Isso muito perigoso! No por a

    que o Estado tem de entrar.

    O ser humano se constitui a partir do imaginrio. Ele cria um

    referencial para si mesmo e para a organizao social. A Arte, o

    cinema e a msica so a ponte para isso. Sem imaginrio, a gente

    no existe: o dinheiro smbolo, papel to simblico quanto a

    Monalisa, uma escultura ou fotografia. Quem agrega valor a ele

    o nosso imaginrio coletivo, que se alimenta de Arte. Precisamos

    beber em todas as fontes e saber processar isso dentro de um

    ambiente rico e bem potencializado pelo compromisso pblico.

  • 44

    Fiz trs longas-metragens e estou editando o quarto. Meu pri-

    meiro trabalho de direo e roteiro foi o longa--metragem Al?!,

    de 1998, financiado pela Lei Rouanet quando esta era ainda bas-

    tante desconhecida. Para esse trabalho, contamos com Myriam

    Muniz, uma das protagonistas, que por ele recebeu o prmio de

    melhor atriz. O segundo foi Avassaladoras, produzido em 2002

    com o apoio financeiro j no do Ministrio da Cultura (MinC)

    mas, sim, da Agncia Nacional de Cinema (Ancine); o projeto foi

    viabilizado pela Lei do Audiovisual, de 1993, destinada a projetos

    de cinema, e se transformou em seriado de televiso. O terceiro,

    Doutores da Alegria, e o quarto, sobre empreendedores sociais,

    so documentrios e tambm foram financiados pela Lei do Au-

    diovisual. Os documentrios nem sempre so curtos. Doutores

    da Alegria, por exemplo, tem 90 minutos de durao. Mostra os

    palhaos que visitam crianas internadas em hospitais mas,

    na verdade, examina tanto a filosofia do palhao atrs do nariz

    vermelho quanto sua capacidade de observar a vida por um n-

    gulo diferente.

    As leis de incentivo fiscal possibilitaram o renascimento do

    cinema brasileiro e so a forma mais utilizada de fazer filmes no

    Brasil mas existem distores.

    Em primeiro lugar, no temos um mercado slido e lucrativo

    por vrias razes: o Brasil possui poucas salas de exibio por

    Mara Mouro

    Mara Mouro diretora e roteirista. Dirigiu comerciais, curtas-

    e longas-metragens, vdeos e documentrios. Tem vrios

    trabalhos premiados no Brasil e no exterior

  • 45

    habitante (em torno de duas mil, quando deveramos ter no m-

    nimo cinco mil, se compararmos nossos ndices com os de outros

    pases da Amrica Latina) e a maioria das nossas cidades nem

    cinema tem.

    Em segundo lugar, o ingresso carssimo uma famlia de clas-

    se mdia, com dois filhos, no consegue ir ao cinema sem gastar

    pelo menos R$100,00. Isso pesa! Existem vrias razes para os

    ingressos serem to caros; uma delas a meia-entrada. Dizem que

    h gente que quer mudar esse quadro, criando um ingresso nico

    com valor situado entre o da meia-entrada e o da inteira.

    Outra questo que os projetos viabilizados graas Lei do

    Audiovisual no precisam necessariamente gerar lucro nas bilhe-

    terias, uma vez que as somas aplicadas sero descontadas na hora

    de pagar os impostos, tenha o filme sido bem sucedido ou no.

    Outra crtica s leis de incentivo que estas no democra-

    tizam o acesso cultura, pois quem est nos grandes centros

    como So Paulo e Rio de Janeiro tem mais facilidade de chegar

    s empresas privadas do que quem est fora desse eixo. Outro

    fator que poucas pessoas tm acesso s empresas privadas.

    Existe tambm o risco de o produtor ficar na mo de uma cultura

    pasteurizada pelas leis de incentivo. O que deve ser produzido

    culturalmente pode vir a ser delineado pelos departamentos de

    marketing ou de finanas das empresas patrocinadoras. Empre-

    endedorismo social, sustentabilidade e ecologia so temas ben-

    vindos na atualidade. Filmes experimentais ou mais polmicos

    tm mais dificuldade de ser aprovados. S se consegue fazer

    um filme com temticas mais pesadas porque alguns editais da

    Petrobras e de algumas grandes estatais levam em considerao

    outros fatores como a carreira e a importncia do ator, do dire-

    tor ou do roteirista. Por outro lado, h o mercado consumidor,

    que pode oscilar de acordo com o parque de exibio ou o preo

    do ingresso.

    Apesar dessas dificuldades, o cinema nacional conseguiu che-

    gar a um patamar de bilheteria equivalente a at 20% dos re-

    sultados alcanados por filmes americanos, ou cinco milhes de

    ingressos. A ndia tem Bollywood porque a televiso no domi-

    nante. A Nigria, Nollywood DVDS distribudos por camels que

    movimentam uma enorme indstria do cinema. No nosso pas, a

    cultura da televiso muito forte e domina o audiovisual brasilei-

    ro. No deveria ser concorrente; deveria, sim, ser parceira e pode-

    ria representar uma forma de escoar a produo cinematogrfica.

    Em vrios outros pases, a produo cinematogrfica recebe parte

    do faturamento da televiso, mas isso no ocorre no Brasil.

    Antigamente a televiso brasileira no comprava contedo

    independente. Ela j foi to distante do cinema nacional que, no

    incio dos anos 1990, os dois eram praticamente inimigos. Essa

  • 46

    relao est mudando graas estratgia de algumas emisso-

    ras e no obrigatoriedade imposta por alguma lei. A tev

    percebeu que tambm poderia fazer dinheiro com o cinema na-

    cional e passou a investir em produes com temtica prpria

    que pudessem dar retorno financeiro. Assim, algumas sries se

    transformaram em filmes. Os Normais e O Auto da Compadecida,

    por exemplo, que eram seriados da TV Globo, tornaram-se filmes.

    O processo inverso tambm ocorreu: alguns filmes foram lana-

    dos na televiso e depois exibidos em salas de cinema. A partir

    de certo momento, a Globo Filmes decidiu financiar longas-me-

    tragens independentemente de sua grade televisiva e oferece

    tempo de mdia na poca do lanamento. Existem dois modos

    de parceria coproduo e apoio, que se verificam em diversos

    nveis. A TV Cultura de So Paulo j apoiou o cinema promo-

    vendo um concurso: o filme ganhava uma verba e, em troca, era

    veiculado pela emissora.

    Nos Estados Unidos, onde no h lei de incentivo fiscal, a in-

    dstria cinematogrfica levanta emprstimos bancrios ou re-

    corre a outros mecanismos financeiros que possibilitam a produ-

    o. Os custos de produo e divulgao tm de ser amortizados.

    Se no houver possibilidade de retorno via bilheteria, simples-

    mente no haver filme. Obviamente, os produtores perdem em

    alguns filmes, mas ganham em outros e, dessa forma, o cinema

    se torna rentvel. O produtor independente tambm precisa con-

    seguir um financiador e sofre muito com isso.

    No Brasil, como o dinheiro da bilheteria dificilmente cobre os

    investimentos realizados, o prprio sistema financeiro no se dis-

    pe a correr o risco de conceder emprstimos. Se o fizesse, talvez

    pedisse todos os bens do produtor como garantia e quantos pro-

    dutores tm o dinheiro equivalente a um financiamento?

    As leis de incentivo fiscal tm data para acabar e ningum

    sabe o que acontecer com a indstria cinematogrfica brasilei-

    ra quando isso ocorrer.

  • 47

    A Lei Rouanet entrou em vigor desde sua publicao oficial,

    em 1992 mas, do governo Collor ao governo Itamar, embo-

    ra homologada e regulamentada, praticamente s existiu no

    papel. Foi na primeira gesto de Fernando Henrique Cardoso

    (1995-1999), com Francisco Weffort no Ministrio da Cultura,

    que esse benefcio para a cultura brasileira comeou a ser utili-

    zado e, seu uso, aprofundado (Weffort seria o ministro nos dois

    mandatos do tucano, de 1999 a 2003). O importante que a

    lei que permite a aplicao de recursos em troca de dedues

    tributrias foi utilizada principalmente por empresas privadas

    que investiram em cultura.

    Fui coordenadora da Lei Rouanet na Secretaria de Livro e

    Leitura do Ministrio da Cultura (MinC). Tivemos a oportunidade

    de documentar e registrar a histria cultural do Brasil. Houve in-

    vestimento e produo na rea editorial vrios livros, principal-

    mente de pesquisa na rea de patrimnio e restaurao que no

    poderiam ser lanados comercialmente por serem caros, foram

    editados. Um exemplo a publicao baseada numa pesquisa

    sobre a msica barroca, que no teria sido vivel sem o auxlio

    da lei. Alm de dicionrios, editamos obras que registram a rica

    diversidade cultural do Brasil. Foi um momento difcil e diferente

    para o pas. Queramos estimular o hbito da leitura, principal-

    mente na poca em que se comeou a falar insistentemente do

    Mequita andrade

  • 48

    analfabetismo funcional. Mas acredito que em todas as reas da

    cultura teatro, msica, dana houve acrscimo e estmulo gra-

    as Lei Rouanet.

    Conseguir verbas para financiar projetos culturais era difcil

    para todos. Acompanhamos exemplos importantes, como o do

    Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN),

    que ento se deparava com problemas financeiros para realizar

    uma obra de restauro, mas conseguiu verbas por meio do incen-

    tivo fiscal. O investimento realizado por uma empresa patrocina-

    dora podia at favorec-la do ponto de vista mercadolgico, mas

    uma igreja que estava desmoronando estava sendo restaurada

    e era isso que importava naquele momento. Fazer com que a

    lei ficasse conhecida por todos foi nossa prioridade.

    As dificuldades eram grandes: precisvamos que a Lei Roua-

    net certificasse os projetos culturais que passavam pela avalia-

    o tcnica: o contedo qualitativo era mais importante que o

    preo. Outro ponto importante era a prestao de contas, pois

    ali se estava criando um modelo.

    Para se ter uma ideia, recebamos mensalmente mais de 300

    projetos culturais para avaliao. O problema que, de cada 100

    que o MinC aprovava, menos de 20% conseguiam levantar recur-

    sos de patrocnio no mercado. Nesse sentido, acho que por parte

    do ministrio existia um grande trabalho que estava simplesmen-

    te sendo desperdiado tnhamos que divulgar a existncia da

    lei e democratizar o acesso do patrocnio ao produtor. Era uma

    situao que seria considerada insustentvel em qualquer or-

    ganizao e em qualquer momento da histria, uma vez que a

    lei no dispunha de recursos. Mas assim foi nascendo uma nova

    categoria de profissionais: produtores culturais, analistas de pro-

    jetos, restauradores e captadores. Os captadores, por exemplo,

    eram pessoas que tinham entrada nas empresas e que, pela pr-

    pria lei, tinham direito a uma remunerao equivalente a 10%

    dos investimentos. Isso causava certo desconforto, pois existiam

    projetos milionrios, como os da rea de restauro do patrimnio.

    Alguns ajustes, ainda na gesto de Weffort, foram feitos, mas o

    volume era demasiado grande e havia pouco dinheiro para reali-

    zar as mudanas de forma rpida e democrtica.

    Para contornar a questo, estabelecemos um teto de R$100

    mil para o captador, por projeto, mas no sei se isso foi a soluo

    para tudo. Tambm no sei se o ministro Gilberto Gil manteve

    essa norma em sua gesto, mas acredito que ele tenha adotado

    vrios dos modelos desde o incio.

    Voltando ao assunto do estmulo leitura, em 2007, j fora do

    MinC, idealizei o Ponto Livro Livre, projeto iniciado em Braslia e

    que se prope a deixar livros numa estante em algum ponto de

    comrcio. A tese mostrar que o importante ler, no ter livros.

  • 49

    A iniciativa est funcionando at hoje. Temos cerca de 30 pontos:

    Alto Paraso, Campos do Jordo. Com frequncia, as pessoas me

    do livros para que eu abra novos pontos. O interessado leva os

    livros que quer ler, mas no precisa traz-los de volta. E tambm

    no precisa colocar nenhum exemplar no lugar. Soubemos at

    mesmo que alguns exemplares foram parar no exterior. Consegui

    uma editora que doou os primeiros acervos e promoveu a troca de

    livros. Esse projeto me deu muito prazer, pois em apenas um ano

    tivemos a participao de mais de mil pessoas. Iniciativas na rea

    da cultura que no tm incentivo fiscal tambm podem ser bem

    sucedidas basta colocar em prtica o que sabemos e dispender

    uma parte do nosso tempo para isso. Os restaurantes Amrica, de

    So Paulo, aderiram e implantaram o projeto aos sbados: Ponto

    Livro Livre para crianas. A ideia ainda no deu certo em outras

    empresas, mas no desistimos. Por que no poderia haver uma

    estante de livros em locais de convivncia, como os restaurantes,

    para onde as pessoas possam lev-los e onde tenham a oportu-

    nidade de troc-los? Um dia destes vi essa ao em uma escola

    de Uberaba com os dizeres: O evento comeou em Braslia. Ago-

    ra, estamos adotando aqui o Ponto Livro Livre. Troque... Em So

    Paulo, dei com um exemplar que vinha com a mensagem Troque

    este livro. Passe este livro para a frente. Isso mostra que est

    havendo uma movimentao, como o prprio bookcrossing a

    troca, nascida em outros pases, onde os livros so colocados nas

    praas pblicas. O livro pode ser registrado na internet, para que

    o ex-dono o acompanhe...

    As escolas at mesmo as particulares fazem da leitura

    uma obrigao para as crianas. Esse um fator que possivel-

    mente prejudica a noo de leitura como lazer. Volto a dizer que

    muitas das iniciativas que vo adiante na cultura so aquelas que

    precisam de boa vontade.

    Sou muito atenta a aes que a sociedade civil ou o governo

    faz em prol da leitura e tenho constatado um aumento nas aes

    desse tipo. O prprio Plano Nacional do Livro e Leitura, do MinC,

    de alguma forma est se interessando pela ideia da troca, mas a

    concepo do Livro Livre um pouco anrquica para que o po-

    der pblico possa abra-la. Por isso, importante a sociedade

    continuar realizando aes individuais. S coletivamente que

    conseguiremos estimular o hbito da leitura.

  • 50

    o incentivo fiscal cultura no Brasil

    A cultura e as Artes movimentam parte cada vez mais significa-

    tiva da economia planetria. As indstrias criativas no param

    de crescer para alimentar uma demanda, que parece inesgot-

    vel, por esttica, smbolos, lazer, entretenimento e ascendn-

    cia. Porm, os recursos gerados por esse v