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13 relativas a essas populações 1 . Segundo os estudos demográficos, os afrodescendentes constituem uma parte significativa da totalidade da população da América Latina e Caribe. Algumas estimações oscilam entre 80 e 150 milhões de afrodescendentes em um total de 900 milhões de habitantes de toda a região (BELLO, 2003; ANTON, 2009). Além da origem comum africana, as populações negras latino- americanas e caribenhas compartilham uma série de situações históricas e socioculturais, como o contexto colonial e de escravidão no qual foram inseridas. Destacam-se também os processos de construção cultural e de adaptação que essas populações vivenciaram no continente, que vão além das “huellas de africanía” desveladas pelos estudos históricos e antropológicos. Outro elemento de confluência observado está relacionado com as situações de racismo, segregação e exclusão impostas pelas sociedades coloniais, reproduzidas sob novas formas após a abolição definitiva da escravidão e o advento das repúblicas independentes. 1 Existem múltiplos conceitos ou categorias de representação e de autorrepresentação utilizados para designar o conjunto de descendentes africanos (subsaarianos ou da também chamada África negra) que chegaram às Américas, fundamentalmente no contexto colonial. Essas distintas formas de designação são produzidas em condições históricas e políticas específicas, nas quais essas populações estão inseridas. Ressalta-se que há um intenso debate público e acadêmico sobre a pertinência do uso desses conceitos ou categorias, contudo, não é o propósito desse texto aprofundar em sua análise. Considerando as especificidades locais dos estudos aqui apresentados nesse dossiê e tendo como principal objetivo oferecer uma descrição dos diferentes contextos nacionais, serão utilizados indistintamente os termos: populações de origem africana, afrodescendentes, afro- americanas, afro-latino-americanas, afro-caribenhas, negras, afro-colombianas, afro-brasileiras, etc. A FRODESCENDENTES NA A MÉRICA L ATINA E C ARIBE : NOVOS CAMINHOS , NOVAS PERSPECTIVAS EM UM CONTEXTO GLOBAL MULTICULTURAL Rebecca Lemos Igreja – CEPPAC - Universidade de Brasília Carlos Agudelo - URMIS Universidade Paris VII e Universidade de Nice e Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento – IRD/ França Nos últimos anos, vários países da América Latina e do Caribe promoveram reformas legislativas e institucionais com o objetivo de reconhecer e afirmar o caráter multiétnico e multicultural da nação. Esse movimento foi identificado como um “giro multicultural” que começou a ser implantado desde o final dos anos 80. Em boa parte desses países, a categoria de alteridade, antes atribuída especialmente aos povos indígenas, foi estendida às populações de origem africana que, dessa maneira, ganharam maior visibilidade enquanto populações culturalmente diferenciadas. É nesse contexto que o conceito de afrodescendente adquire um status quase generalizado no seio das instituições internacionais e estatais e entre os movimentos políticos, sociais e culturais da região, sem que com isso desapareçam outras formas de denominação nacional

LEMOS IGREJA, Rebecca; AGUDELO, Carlos. Afrodescendentes Na América Latina e Caribe Novos Olhares, Novas Perspectivas Em Um Contexto Global Multicultural

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Nos últimos anos, vários países daAmérica Latina e do Caribe promoveram reformas legislativas e institucionais com o objetivo de reconhecer e afirmar o caráter multiétnico e multicultural da nação. Esse movimento foi identificado como um “giro multicultural” que começou a ser implantado desde o final dos anos 80. Em boa parte desses países, a categoria de alteridade, antes atribuída especialmente aos povos indígenas, foi estendida às populações de origem africana que, dessa maneira, ganharam maior visibilidade enquanto populações culturalmente diferenciadas. É nesse contexto que o conceito de afrodescendente adquire um status quase generalizado no seio das instituições internacionais e estatais e entre os movimentos políticos, sociais e culturais da região, sem que com isso desapareçam outras formas de denominação nacional relativas a essas populações.Segundo os estudos demográficos, osafrodescendentes constituem uma parte significativa da totalidade da população da América Latina e Caribe. Algumas estimações oscilam entre 80 e 150 milhões de afrodescendentes em um total de 900 milhões de habitantes de toda a região (BELLO, 2003; ANTON, 2009). Além da origemcomum africana, as populações negras latinoamericanas e caribenhas compartilham uma série de situações históricas e socioculturais, como o contexto colonial e de escravidão no qual foram inseridas. Destacam-se também os processos de construção cultural e de adaptação que essas populações vivenciaram no continente, que vão além das “huellas de africanía” desveladas pelos estudos históricos e antropológicos. Outro elemento de confluência observado está relacionado com as situações de racismo, segregação e exclusão impostas pelas sociedades coloniais, reproduzidas sob novas formas após a abolição definitiva da escravidão e o advento das repúblicas independentes.

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    relativas a essas populaes1.

    Segundo os estudos demogrficos, os afrodescendentes constituem uma parte significativa da totalidade da populao da Amrica Latina e Caribe. Algumas estimaes oscilam entre 80 e 150 milhes de afrodescendentes em um total de 900 milhes de habitantes de toda a regio (BELLO, 2003; ANTON, 2009). Alm da origem comum africana, as populaes negras latino-americanas e caribenhas compartilham uma srie de situaes histricas e socioculturais, como o contexto colonial e de escravido no qual foram inseridas. Destacam-se tambm os processos de construo cultural e de adaptao que essas populaes vivenciaram no continente, que vo alm das huellas de africana desveladas pelos estudos histricos e antropolgicos. Outro elemento de confluncia observado est relacionado com as situaes de racismo, segregao e excluso impostas pelas sociedades coloniais, reproduzidas sob novas formas aps a abolio definitiva da escravido e o advento das repblicas independentes.

    1 Existem mltiplos conceitos ou categorias de representao e de autorrepresentao utilizados para designar o conjunto de descendentes africanos (subsaarianos ou da tambm chamada frica negra) que chegaram s Amricas, fundamentalmente no contexto colonial. Essas distintas formas de designao so produzidas em condies histricas e polticas especficas, nas quais essas populaes esto inseridas. Ressalta-se que h um intenso debate pblico e acadmico sobre a pertinncia do uso desses conceitos ou categorias, contudo, no o propsito desse texto aprofundar em sua anlise. Considerando as especificidades locais dos estudos aqui apresentados nesse dossi e tendo como principal objetivo oferecer uma descrio dos diferentes contextos nacionais, sero utilizados indistintamente os termos: populaes de origem africana, afrodescendentes, afro-americanas, afro-latino-americanas, afro-caribenhas, negras, afro-colombianas, afro-brasileiras, etc.

    Afrodescendentes nA AmricA LAtinA e cAribe: novos cAminhos, novAs perspectivAs em um contexto gLobAL muLticuLturAL Rebecca Lemos Igreja CEPPAC - Universidade

    de Braslia

    Carlos Agudelo - URMIS Universidade Paris VII e Universidade de Nice e Instituto de Pesquisa

    para o Desenvolvimento IRD/ Frana

    Nos ltimos anos, vrios pases da Amrica Latina e do Caribe promoveram reformas legislativas e institucionais com o objetivo de reconhecer e afirmar o carter multitnico e multicultural da nao. Esse movimento foi identificado como um giro multicultural que comeou a ser implantado desde o final dos anos 80. Em boa parte desses pases, a categoria de alteridade, antes atribuda especialmente aos povos indgenas, foi estendida s populaes de origem africana que, dessa maneira, ganharam maior visibilidade enquanto populaes culturalmente diferenciadas. nesse contexto que o conceito de afrodescendente adquire um status quase generalizado no seio das instituies internacionais e estatais e entre os movimentos polticos, sociais e culturais da regio, sem que com isso desapaream outras formas de denominao nacional

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    No obstante, essas populaes afrodescendentes esto tambm diversificadas segundo as particularidades dos processos histricos regionais ou nacionais e das dinmicas socioculturais em que esto inseridas. Constituem populaes rurais ou urbanas, situadas em regies costeiras e insulares ou no interior continental, que desenvolveram prticas culturais e religiosidades especficas (como as religies afro-brasileiras, afro-cubanas, o vodu haitiano, os diferentes cultos aos ancestrais dos garfunas da Amrica Central, dos Saramaka ou dos Dyuka do Suriname e mesmo algumas formas particulares sincrticas de catolicismo popular); ou ao contrrio, populaes cujos comportamentos socioculturais e religiosos no se diferenciam, em termos gerais, da maioria da populao da localidade, regio ou pas em que habitam. As populaes afrodescendentes esto, portanto, inseridas em dinmicas sociais diversas, relacionadas com as especificidades de sua insero em cada pas (implantao histria, peso demogrfico, influencia cultural nas sociedades nacionais, polticas pblicas relacionadas com elas e como se deram os processos de mobilizao poltica e social).

    Entre marcos de referncia comuns e especificidades, cada pas desenvolve seus prprios mecanismos de integrao e/ou excluso de suas populaes negras atravs de comportamentos sociais consolidados ou elaborao de polticas pblicas. Se anteriormente, como j mencionamos, a discusso na Amrica Latina sobre direitos coletivos, diferenas culturais, identidades tnicas, polticas pblicas de incluso e outros temas que desde uns 30 anos assumem tambm a denominao de multiculturais, tinha como referncia os povos indgenas, a partir do

    final dos anos 80, expresses reivindicativas de movimentos negros tornam-se mais visveis e so includas nessa discusso. Direitos culturais, territoriais e polticos das populaes negras passam, portanto, a ser parte das agendas polticas nacionais e globais2. Observa-se atualmente, em vrios pases da regio, o desenvolvimento de diferentes modos de reconhecimento institucional da diversidade cultural e tnica, assim como novas formas de combate discriminao racial e ao racismo, nos quais so explicitamente includas suas populaes negras. Deve-se, contudo, sempre considerar com cuidado as particularidades locais dessas formas de reconhecimento e de atuao institucional.

    O LONgO CAMINhO PARA A INCLUSO

    Mediante uma perspectiva histrica, pode-se observar que as mobilizaes polticas coletivas dos afrodescendentes na regio so episdicas. Constituem exemplos significativos de mobilizao durante o perodo histrico da colonizao, as formas de resistncia desenvolvidas por eles para fazer frente escravido e, de maneira especial, a independncia do Haiti. Com o advento das repblicas e os processos de construo nacional ao longo do sculo XIX, a prtica poltica mais corrente das populaes negras foi a militncia em foras partidrias nacionais. Se, em alguns locais, observa-se a organizao de partidos

    2 Adotamos o conceito de global como caracterstico do fenmeno da globalizao ou mundializao, que assumimos como sinnimos, que aludem no somente aos processos econmicos (sua acepo inicial), mas tambm s dinmicas culturais sociais e polticas. A globalizao gera mudanas significativas nas relaes entre os indivduos, as sociedades e os estados. Trata-se de uma intensificao das relaes em escala planetria (gIDDENS, 1994)

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    autnomos negros como resposta persistncia de formas de discriminao (HELG, 1995), encontram-se tambm algumas experincias de mobilizao poltica ao longo do sculo XX, nas quais as caractersticas fundamentais eram as reivindicaes feitas ao Estado por medidas contra a discriminao e o racismo e pelo direito a uma cidadania plena. o caso, por exemplo, da Frente Negra Brasileira dos anos 303.

    Em geral, a partir dos anos 80, em um contexto marcado pela globalizao, que so registradas gradualmente, por parte de alguns Estados latino-americanos e do Caribe, medidas que promovem o reconhecimento institucionalizado do carter diverso das sociedades, em ruptura com o modelo universalista e republicano da cidadania homogeneizante ou de repblicas mestias (WADE, 1997, GrOS, 1997) 4. Nesse momento, afiana-se o reconhecimento dos direitos dos povos indgenas e, posteriormente, das populaes negras. Embora as mobilizaes indgenas ganhem maior espao nesse cenrio, as mobilizaes de setores de populaes negras tambm esto atuantes, ainda que com menor visibilidade.

    3 Agustn Lao Montes (2009) apresenta uma periodizao e categorizao dessas experincias para o conjunto das Amricas, nas quais inclui nos anos 20 e 30 a influncia das correntes da Negritude, o Nacionalismo Negro de Marcus garvey e outras variantes pan-africanistas. Nos anos 60 e 70, a influncia decorre das lutas antirracistas nos Estados Unidos e contra o Apartheid na frica do Sul e, em geral, das lutas anticoloniais na frica. Deve-se ressaltar que as influncias desses processos sobre as comunidades e populaes negras latino-americanas e caribenhas foram, em termos gerais, marginais e restritas, sobretudo, a alguns setores dos movimentos negros. 4 Os pases nos quais so mais explcitas essas mudanas promoveram mudanas constitucionais como Brasil, Colmbia, Nicargua, Equador, Bolvia e Venezuela. Os demais pases da regio elaboraram reformas, leis e mudanas no discurso oficial nos quais se reconhecem as diversidades nacionais.

    Organismos internacionais como o Banco Mundial (BM), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organizao das Naes Unidas (ONU), o Programa de Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a Organizao Internacional de Trabalho (OIT), a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO), a Organizao dos Estados Americanos (OEA), grandes fundaes e organizaes no governamentais (ONGs) de cooperao e desenvolvimento, constituem atores primordiais que atuaro nas transformaes das polticas pblicas dos pases latino-americanos, principalmente no que diz respeito efetivao dos direitos de grupos racial ou etnicamente diferenciados. O discurso dominante dessas instituies consolida nos anos 90 a incluso de variveis tnico-raciais nos estudos, pesquisas e estratgias de luta contra a excluso, a pobreza, a proteo do meio-ambiente e da biodiversidade. Nessa mesma perspectiva, sob influncia do modelo neoliberal, os planos que circulam internacionalmente sobre governabilidade democrtica 5, reduo do tamanho do Estado e descentralizao vm associados com a necessidade de dar maior representatividade aos novos interlocutores sociais, dentre os quais tero lugar destacados os grupos indgenas e negros.

    Os processos de mobilizao nacional ou a discusso no espao pblico das problemticas das populaes negras vo se fortalecendo em ritmos diferenciados e em relao com os contextos especficos de cada pas. Em uma dinmica de mtua retroalimentao, os ativismos nacionais apoiam-se nas mobilizaes transnacionais das reivindicaes

    5 Sobre a gnesis desse conceito no marco das polticas de desenvolvimento aplicadas pelos organismos internacionais na Amrica Latina e Caribe ver Prats (2001).

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    das populaes negras, ao mesmo tempo em que so, igualmente, o sustento dessas mobilizaes. Momento importante que deu maior visibilidade s mobilizaes negras na Amrica Latina foi a participao de alguns setores no mbito do movimento que confrontou a celebrao dos 500 anos de descobrimento. Encontro de dois mundos, promovido por governos latino-americanos e o governo espanhol em 1992. A contestao do movimento indgena a essa celebrao mediante a alterao do lema para 500 anos de resistncia indgena e a promoo de mobilizaes em mbito continental ampliou-se com a unio de setores do movimento negro, alterando o lema, mais uma vez, para 500 anos de resistncia indgena, negra e popular na Amrica. Em 1992, tambm surge a red de mujeres afrolatinoamericanas y caribeas no mbito do Primer encuentro de mujeres negras realizado na repblica Dominicana. Em 1994, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) lana o programa A rota dos Escravos incentivando a criao de uma rede transnacional de pesquisa que realce a histria do trfico de escravos. A histria e a memria da escravido e, sobretudo, as formas de resistncia das populaes negras escravizadas, constituem um elemento fundamental do discurso poltico do movimento negro. Por essa razo, as atividades e a produo bibliogrfica do programa A rota dos Escravos constituem um apoio essencial para dar fundamento e legitimar esse discurso6.

    6 A Rota de Escravos promove uma srie de eventos na Amrica Latina, no Caribe e na frica, nos quais participam historiadores e intelectuais especialistas no tema, alguns deles lderes e ativistas de movimentos negros em seus respectivos pases.

    Ainda nesses anos, as redes transnacionais dos movimentos negros continuaram se multiplicando: em 1994 surge a red Continental de Organizaciones Afroamericanas no Uruguai; em 1995 surge a Organizacin Negra Centroamericana (ONECA). A rede Afromrica XXI surgir no ano seguinte, em 1996. Em geral, essas redes coincidem-se na denncia da discriminao racial que sofrem as populaes negras na regio; na valorizao das origens africanas e das contribuies que essas populaes fizeram para a construo das sociedades nacionais, at ento invisibilizadas pela histria oficial; na consolidao da memria das formas de resistncia escravido; e, finalmente, na demanda aos estados nacionais e organismos internacionais de elaborao de polticas pblicas de incluso social que visem superao dos obstculos que situam as populaes negras nos setores de maior grau de marginalizao. Os processos de mobilizaes e os avanos em matria de reconhecimento que vo alcanar as mobilizaes indgenas influenciaro e incidiro diretamente na dinmica que tomar as aes do movimento negro.

    Como parte do processo de preparao da Organizao das Naes Unidas (ONU) da Conferncia Mundial de Combate ao racismo, Discriminao racial, Discriminao racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata que acontece em Durban frica do Sul em setembro de 2001, realizada uma srie de reunies nacionais, sub-regionais e do conjunto da Amrica Latina e Caribe. Ali conflui a grande maioria das organizaes negras nacionais, assim como as redes transnacionais

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    que acabamos de mencionar. No mbito dessas atividades surge no ano 2000 uma nova rede, a Alianza estratgica afrolatinoamericana y caribea, conformada pelas organizaes mais importantes da regio e a qual se integram algumas das redes preexistentes7.

    O evento mais significativo desse processo de preparao da Conferncia foi a Pr-conferncia de las Amricas contra el racismo realizada em Santiago do Chile em 2000. Essa reunio contou com a presena de representantes da maioria dos governos latino-americanos e do Caribe. Na pr-conferncia de Santiago foram delineados os elementos que conformariam a posio dos movimentos indgenas e negros em relao aos objetivos da Conferncia de Durban. A inteno foi comprometer os Estados da regio, assim como as instituies internacionais, com uma agenda poltica para a superao da discriminao racial e a excluso social. Um dos aspectos de significao poltica e simblica de importncia da pr-conferncia de Santiago foi a oficializao do conceito afrodescendente que adotado como a forma genrica mais apropriada para designar as populaes de origem africana na Amrica Latina e Caribe. O objetivo , por um lado, usar o conceito para se diferenciar da denominao african-american ou afro-americanos das populaes negras dos Estados Unidos; por outro lado, encontrar um conceito genrico para superar o debate sobre a pertinncia poltica e histrica da categoria negro e de outras acepes nacionais como afro-colombiano, afro-brasileiro, etc. A adoo do termo afrodescendente, usado de forma

    7 Para ver de forma mais detalhada as caractersticas de cada uma dessas redes ver (AgUDELO, 2006,2010)

    generalizada pela maioria dos organismos internacionais, comeando pela Organizao das Naes Unidas (ONU), e por boa parte do movimento poltico negro, no esgota, contudo, o debate e o uso de outras formas de nomear as populaes negras. Entre muitos setores, a utilizao do termo negro e a afirmao combinada da origem africana com a do pas ou regio especfica de implantao (afro-equatoriano, afro-caribe, etc.) continuam sendo reivindicadas como legtimos.8

    Com o impulso da Organizao das Naes Unidas (ONU) e as demais instituies internacionais, que j estavam implicadas no tema9, e a dinmica de mobilizao negra nos diferentes pases so criadas as condies para que os governos expressem sua vontade poltica de se comprometerem com as orientaes em matria de luta contra a excluso e o racismo preconizadas na Conferncia de Durban.

    Outra mobilizao poltica negra importante surge em 2003, com as reunies de congressistas afrodescendentes da Amrica Latina e Caribe. A primeira reunio foi realizada em Braslia em 2003, a segunda em Bogot em 2004, em 2005 foi a vez de San Jos e Limn na Costa rica, em 2006 no Panam e, finalmente, foi realizada uma reunio em Cali, Colmbia, em 2008. O propsito geral destacado nos diferentes encontros foi o de construir mecanismos de coordenao das suas atividades, definidas como voltadas ao apoio e

    8 Como explicamos a princpio desse texto, as diferentes formas de denominar essas populaes surgiram em contextos histricos e polticos precisos. 9 Como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) e outras instituies j mencionadas anteriormente.

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    participao ativa em todas as reivindicaes de direitos das populaes negras do continente. O objetivo era pressionar os parlamentos de seus pases para que se comprometessem em atender essas reivindicaes. Um aspecto importante destacado e denunciado pelos parlamentares que se envolveram nessa mobilizao a sub-representao poltica das populaes negras na regio (AGUDELO, 2005).

    Em 2004, por iniciativa da organizao uruguaia Mundo Afro, surge uma nova rede, as Oficinas regionales de Anlisis y Promocin de Polticas Pblicas en Equidad racial (OrAPPEr). Atualmente, as Oficinas esto presentes na Costa rica, Nicargua, Panam, Venezuela, Colmbia, Equador, Bolvia, Peru, Chile, Uruguai, Argentina, Paraguai e Canad. OrAPPEr promove, por sua vez, a criao de uma nova rede, a Coalicin Latinoamericana y Caribea de Ciudades contra el racismo, la Discriminacin y la Xenofobia com apoio da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) e o governo do Equador. Apoiando-se nos discursos das anteriores redes (Alianza estratgica, Afroamrica XXI, etc.), OrAPPEr e a Coalicin privilegiam um trabalho de presso poltica sobre as instituies pblicas (prefeituras, ministrios, institutos descentralizados, etc.) para que elas tomem medidas concretas em relao s situaes de desigualdade racial em matria de acesso a servios pblicos, emprego, educao, participao poltica e visibilidade cultural.

    Em novembro de 2012 foi ativada em Cuba a Articulacin regional Afrodescendente de Amrica Latina y el Caribe (ArAAC), que se

    apresenta como uma aliana contra o racismo, o imperialismo e a globalizao neoliberal capitalista. Como veremos mais adiante, essa nova instncia a expresso de um esforo de demarcao ideolgica e poltica no interior dos movimentos negros da regio.

    Essas diversas redes representam uma forma organizativa transnacional com funcionamento intermitente, em razo dos muitos fatores que condicionam a sua ao. As possibilidades materiais para o seu desenvolvimento tm dependido, em grande medida, do apoio das agncias internacionais de cooperao e, portanto, das mudanas nas relaes com as mesmas. Contudo, as prioridades de seus integrantes, que por momentos tm optado ou se sentido obrigados a optarem pelas lutas nacionais, so outro fator que explicam o surgimento ou desaparecimento de ditos espaos transnacionais de mobilizao (AGUDELO, 2006). Alm dos limites que podem ter essa forma de funcionamento das redes transnacionais, elas representam apenas uma das facetas dos processos de interao global, nos que intervm diferentes tipos de atores (instituies, ONGs, estados, movimentos polticos, etc.) implicados na problemtica das populaes negras.

    DURBAN, INSTRUMENTO ESTRATgICO

    Da Conferncia de Durban surgir um instrumento reivindicativo que ser mobilizado por todas as expresses do movimento negro na Amrica Latina, tanto nas suas redes transnacionais como nos espaos nacionais: a Declarao e plano de ao de

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    Durban.10 Nesse documento esto plasmados os compromissos que o conjunto dos Estados de Amrica Latina, presentes em dita conferncia, subscreveram para lutar contra a discriminao e o racismo manifestado contra os grupos tnicos e as minorias.11

    O protagonismo nesse processo de visibilidade da problemtica negra na Amrica Latina, que nos anos 90 instituies como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) avocaram, assumido nos anos subsequentes a Durban por instituies como o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ou a Secretaria Geral Iberoamericana (SEGIB), a Agencia Espaola de Cooperacin Internacional para el Desarrollo- (AECID) , a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL), a Organizao dos Estados Americanos (OEA) e a United States Agency for International Development (USAID) entre outras, que mantm a dinmica de promoo de polticas de cooperao e que acompanham as mobilizaes de setores do movimento negro.12

    10 http://www.un.org/spanish/comun/docs/?symbol=A/CONF.189/12 (15/07/2013). 11 Para o caso da Amrica Latina, incluem-se nos grupos tnicos, os povos indgenas, os afrodescendentes e os ciganos (cuja presena invisvel em alguns pases). Em geral, o conceito minorias est relacionado aos migrantes, homossexuais e pode tambm fazer aluso a minorias religiosas ou outros grupos considerados como potenciais vtimas de discriminao. 12 O Banco Mundial e o BID mantm ainda alguns programas destinados s populaes negras na regio, mas suas atuaes tm diminudo expressivamente em relao ao incio dos anos 90. Essas instituies promoveram projetos de desenvolvimento para zonas de forte presena de populaes negras em situaes de marginalidade e pobreza extrema atravs de mecanismos de microcrdito, combinados com polticas de cooperao. Para o caso de Colmbia, est o exemplo do Plan de Desarrollo del Pacfico realizado com

    Por conseguinte, em maro de 2008, realizado no Panam o seminrio Poblaciones Afrodescendientes en Amrica Latina, convocado pela Secretaria Geral Iberoamericana (SEGIB). Esse encontro surge do mandato da XVII Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y de Gobierno realizada em Santiago do Chile em 2007, onde recomendada a realizao de um compndio de informao sobre a situao da populao afrodescendente de Iberoamrica.13 Consultores da CEPAL apresentaram no evento relatrios de diagnstico que foram, ento, discutidos com representantes da maioria dos movimentos negros da regio.14 Como continuidade desse encontro, o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) elabora o projeto regional Poblacin Afrodescendiente de Amrica Latina. Para a apresentao dos resultados de dito projeto, organizado no Panam, em novembro de 2009, o seminrio Derechos de la poblacin afrodescendiente de Amrica Latina: Desafos para su Implementacin15. Esses eventos promovem avaliaes sobre o respeito aos direitos das populaes afrodescendentes, tendo como referncia a agenda global que ganhou legitimidade nos anos 90 e, em

    fundos do BID ou o Programa Nacional de Recursos Naturais do Banco Mundial, igualmente para a regio do Pacfico colombiano, habitado majoritariamente por populaes negras (AgUDELO, 2004 e 2005). Contudo, esses organismos desenvolvem projetos similares em outros pases e regies como o Brasil e Amrica Central. As anlises da origem e evoluo das polticas dessas instituies destinadas s populaes negras merecem uma investigao especfica. 13 http://segib.org/upload/File/Infordelseminario_AFro.pdf (15/07/2013).14 Ver os documentos em http://segib.org/es/node/4433 (15/07/2013).15 http://www.afrodescendientes-undp.org/page.php?page=3 (17/07/2013).

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    particular, os compromissos da Conferncia de Durban. O Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) contribui com esse processo avaliativo incluindo como referncia o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milnio - ODM16, nos quais os afrodescendentes so considerados como uma das prioridades das Naes Unidas, considerando que constituem uma parte majoritria dos setores mais pobres e desfavorecidos das sociedades latino-americanas.

    Em geral, as avaliaes demonstram mudanas qualitativas em termos de incluso da problemtica afro-latino-americana nas agendas polticas globais (especialmente dos organismos internacionais) e nas agendas da maioria dos governos da regio que, em alguns casos, manifestam-se mediante reformas constitucionais e, em outros casos, por meio de leis e decretos ou a criao de instncias especficas dos governos que tratam de seus assuntos. Nesse sentido, em alguns pases, a visibilidade adquirida pelas expresses polticas ou associativas negras representa um avano em relao ao panorama de finais dos anos 80. Superando uma espcie de invisibilidade poltica, os movimentos negros passam a fazer parte dos interlocutores do debate poltico nacional, uma vez que o tema das polticas de reconhecimento e a luta contra a discriminao racial ocupam, desde ento, um lugar primordial nas agendas dos governos da regio.

    No obstante, um aspecto que ainda corrobora uma avaliao claramente negativa, mesmo em pases como o Brasil que apresenta o maior

    16 http://www.pnud.org.br/ODM.aspx

    nvel de polticas pblicas de incluso para suas populaes negras, a persistncia de diferenas de condies socioeconmicas entre brancos e negros, que mantem a maioria dos negros na base da pirmide social, com altos graus de pobreza, segregao e marginalidade. Os diversos estudos e diagnsticos realizados tanto em mbito nacional quanto em toda a regio coincidem ao demonstrarem indicadores sociais negativos para os afrodescendentes17. As estatsticas em matria de acesso aos servios bsicos como sade, moradia, gua potvel, saneamento, eletricidade, educao, emprego, recreao, etc, confirmam que as polticas elaboradas com o objetivo de superar esses ndices negativos no deram ainda os resultados positivos esperados. Para o caso do Brasil, essa constatao est fundamentada em estatsticas econmicas slidas e com grande legitimidade nacional18.

    A existncia desses dados consolidados no Brasil, demonstrando as lacunas existentes entre as condies socioeconmicas de brancos e negros, deu suporte elaborao de polticas de aes afirmativas, especialmente ao estabelecimento de cotas raciais na admisso na universidade e no servio pblico. Deve-se ressaltar a importncia das reunies brasileiras preparatrias para a Conferncia de Durban e a posterior realizao da conferncia como motivadoras para a organizao desses dados. Alm disso, esses eventos ofereceram, como em

    17 Ver (CEPAL, 2012) e igualmente um estudo da CEPAL e SEgIB, baseados em mltiplos estudos nacionais realiza uma snteses dos resultados obtidos (BELLO, PAIxO, 2008). 18 Destacam-se os trabalhos do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

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    outros pases latino-americanos, o fundamento necessrio e legitimador para as reivindicaes das populaes negras brasileiras e para a elaborao de polticas pblicas voltadas para elas19. No caso das aes afirmativas, elas so vistas, nesse contexto, como polticas compensatrias que visam reparar as injustias do passado, herdeiras da escravido, e promover a insero dos afrodescendentes em espaos dos quais esto excludos e que so fundamentais para a sua incluso social. No se trataria, portanto, de polticas multiculturalistas que aportam alguma forma de reconhecimento tnico e cultural. Contudo, essas iniciativas so adotadas no mesmo mbito de discusso sobre propostas multiculturalistas, muitas vezes consideradas como polticas complementares, motivadas e apoiadas igualmente pelas instituies internacionais (IGrEJA, 2005).

    Outros pases do continente vo introduzindo gradualmente variveis etnorraciais nos levantamentos de dados e posteriores anlises das condies socioeconmicas de suas populaes para que, de forma confivel, possam atestar, ou no, essa tendncia generalizada de manuteno do desnvel existente entre brancos e negros. No obstante, muitos pases da regio enfrentam ainda uma grande dificuldade para elaborao desses insumos estatsticos. Por essa razo,

    19 A participao da delegao brasileira foi uma das maiores presentes em Durban. Alm disso, o relatrio apresentado pelo governo do pas foi considerado bastante aberto, pois nele o Estado brasileiro comprometeu-se a reconhecer sua responsabilidade histrica pelo escravismo; a efetivar o reconhecimento das terras quilombolas; a criar um foro afro-indgena para a definio conjunta de polticas especficas de incluso social; e, por fim, a adotar as cotas e outras medidas afirmativas (IGREJA,2005).

    uma das reivindicaes que mais mobilizam os movimentos negros e que conta com o respaldo das instituies internacionais a necessidade de que os Estados instituam ou melhorem os sistemas estatsticos para que deem conta, de forma concreta, dos nveis socioeconmicos e outras variveis que determinem o grau de incluso social dos afrodescendentes20.

    Apesar da presena nos eventos latino-americanos de ativistas de muitas organizaes que surgiram na dcada passada, nota-se um refluxo dos processos transnacionais de coordenao e uma maior concentrao nas agendas nacionais. Essa situao prpria do carter intermitente, j observado, do funcionamento das redes transnacionais. Nas dinmicas nacionais o balano contrastante: embora haja maior visibilidade das populaes negras, suas organizaes e suas problemticas, tambm se verificam processos de enfraquecimento e desgaste. A falta de resultados positivos das polticas de reconhecimento em matria de incluso social acaba por no incentivar o crescimento da adeso dos representantes negros ao discurso poltico multicultural.

    Tanto nos espaos de intercmbio transnacional quanto no mbito nacional, o slogan central continua sendo o pleito pela efetivao dos compromissos dos Estados com a Declarao e Plano de Ao de Durban. Ante a evidncia do

    20 As populaes negras compartilham esses ndices negativos com as populaes indgenas e outros setores marginalizados em cada pas, ainda que a representao por grupos sociais mostre claramente a presena majoritria dos negros e indgenas em situao de marginalidade (BELLO,PAIxO, 2008).

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    resultado deficiente em matria de cumprimento de tais obrigaes, a maioria dos setores dos movimentos tnicos promoveu a realizao de uma nova avaliao e o relanamento do Plano. Organizada pela ONU, a Conferncia de Exame de Durban foi realizada em abril de 2009 em Genebra21. Todavia, a Conferncia foi considerada por parte das organizaes negras presentes como improdutiva. Ainda que os Estados latino-americanos signatrios tenham reafirmado seus compromissos com o Plano de Ao de Durban, os participantes denunciaram a falta de uma implicao mais consequente por parte das Organizaes das Naes Unidas (ONU) e dos pases que boicotaram a reunio com sua ausncia22. Alm disso, muitas organizaes indgenas e negras no contaram com o apoio necessrio para sua participao. O que se constatou que a visibilidade de tal encontro foi marginal.23

    DO ANO AO DECNIO DOS AFRODESCENDENTES

    A Assembleia Geral das Naes Unidas (AGNU), durante o 65 perodo ordinrio de sesses, proclamou 2011 como o Ano Internacional dos Afrodescendentes. Segundo a resoluo, o propsito

    21 http://www.un.org/es/durbanreview2009/ (18/07/2013).22 Os pases que no participaram foram Austrlia, Canad, Alemanha, Israel, Itlia, holanda, Estados Unidos e Nova Zelndia. A origem do boicote foi o desacordo em relao posio da Conferncia que considera a conduta de Israel com o povo da Palestina como racista. Israel e os demais pases que boicotaram a reunio consideraram tal posio como antissemita. 23 Declaraes de Mercedes Moya, representante do Proceso de Comunidades Negras(PCN) e a rede Alianza Estratgica afrolatinoamericana y caribenha em genebra. Entrevista pessoal realizada em genebra, Novembro de 2009.

    dessa celebrao era (...) fortalecer as medidas nacionais e a cooperao regional e internacional em benefcio dos afrodescendentes, em relao ao gozo pleno de seus direitos econmicos, culturais, sociais, civis e polticos 24. Os compromissos de Durban continuavam sendo o marco de referncia fundamental no qual essa resoluo apoiou-se.

    Ao longo do mesmo ano, multiplicaram-se os foros, encontros, seminrios, cpulas, tanto na esfera nacional quanto internacional. Entre os que alcanaram maior visibilidade podemos mencionar, em ordem cronolgica, o IV Encuentro de Afrodescendientes y las Transformaciones revolucionarias en Amrica y el Caribe realizado em Caracas de 19 a 22 de junho; a Cumbre Mundial de Afrodescendientes, Desarrollo Integral, sostenible con Identidad em Ceiba, Honduras, de 18 a 21 de agosto; o Foro sobre acaparamiento de territorios en frica y Amrica Latina tambm realizado em Ceiba, Honduras nos dias 18 e 19 de agosto; a reunio de Alto Nvel para comemorar os 10 anos da declarao de Durban em 22 de setembro, no marco da Assembleia Geral da ONU em Nova York; a Cumbre mundial de la juventud afrodescendiente realizada entre 5 e 7 de outubro; o Dialogo regional de Juventudes Afrodescendientes sobre Democracia y Ciudadana ocorrido em Quito nos dias 20 e 21 de outubro de 2011 e organizado pelo PNUD; o Encontro AFrOXXI e o Encontro Ibero-americano do Ano Internacional dos Afrodescendentes que aconteceu entre 17 e 19

    24 Resoluo 64/169 da AgNU,http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N09/471/97/PDF/N0947197.pdf?OpenElement (19/07/2013).

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    de novembro em Salvador, Brasil. Esse evento foi organizado pela SEGIB e pelo governo brasileiro, com o apoio da ONU. Em termos gerais e com diferentes matizes, os contedos programticos e reivindicativos preconizados em Durban foram reiterados nesses espaos. Entre algumas proposies aprovadas destaca-se a proposta da ONU de proclamao do Decnio dos afrodescendentes. A proposta foi apresentada na Assembleia Geral de 2013, quando foi adotada, por consenso, uma resoluo que estabelece a celebrao do Decnio de 1 de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2024. O propsito priorizar, durante esse perodo de tempo, as medidas necessrias para lograr as reivindicaes das populaes negras em escala mundial.

    mencionada tambm de forma reiterada em vrios desses eventos, a necessidade de se criar um Fundo Internacional de recursos destinado a apoiar a elaborao de polticas pblicas nacionais que visem concretizao das reivindicaes apresentadas. Embora essa demanda no conste na resoluo da ONU sobre o decnio dos afrodescendentes, um assunto constantemente debatido por diferentes expresses do movimento negro nesses eventos transnacionais. No existe, contudo, unanimidade em torno da modalidade e os mecanismos que devem ser estabelecidos para a efetivao de tal Fundo. 25

    25 Na Conferncia de Durban debateu-se sobre o Fundo de forma conjunta com a reivindicao das reparaes para os povos africanos e afrodescendentes pelo impacto negativo da escravido. Embora a legitimidade da reivindicao tenha sido reconhecida, o tema da reparao foi finalmente retirado de pauta por falta de acordo e divergncias entre os setores dos movimentos negros latino-americanos, estadunidenses e africanos sobre as modalidades de sua implementao. Esse ponto um tema permanente de estudo e debate nas instncias criadas pela Conferncia de Durban. Ver: http://alainet.org/active/2818&lang=es (19/07/2013).

    INCERTEZAS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

    As polticas de reconhecimento ou multiculturais so o resultado de uma interao complexa entre o Estado e diversos atores (organizaes sociais, movimentos polticos, ONG, autoridades locais, organismos internacionais, agentes de cooperao para o desenvolvimento, etc.). A dinmica dessa interao, originada no contexto da globalizao, ser determinante para os posicionamentos assumidos pela agenda poltica nacional e internacional em relao ao tema. nesse contexto que se situam os diversos eventos, programas e atividades, como a celebrao em 1992 dos 500 anos de resistncia indgena, negra e popular nas Amricas; o programa A rota dos Escravos da UNESCO; a constituio de distintas redes transnacionais; os diversos foros sobre o tema, em especial, a preparao e realizao da Conferncia de Durban; e iniciativas como o ano e o decnio internacional dos afrodescendentes. Da conferncia de Durban surge a Declarao e Plano de ao de Durban, documento que sintetiza de forma mais aperfeioada as reivindicaes das populaes negras, em sua luta contra a discriminao racial e pela incluso social.

    Embora seja certo que nos ltimos 20 anos houve o traspasse de uma invisibilidade oficial dos afrodescendentes latino-americanos a formas de reconhecimento institucional, ainda permanece sem resposta satisfatria a maior parte das reivindicaes sociais e polticas presentes nos discursos dos diferentes atores que interatuam nesse processo de instaurao do multiculturalismo. Os nmeros continuam corroborando que a maioria das populaes

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    negras na regio encontra-se em condies de pobreza, marginalidade e excluso social. As explicaes para os fracos resultados em matria de incluso social so objeto constante de debate.

    Alguns setores do movimento negro assumem posies crticas ao multiculturalismo, considerando a tendncia neoliberal que marca a elaborao das polticas de reconhecimento, que finalmente no so suficientes para atacar as causas estruturais da excluso das populaes negras. At o presente, a anlise das formas de comportamento poltico das diferentes expresses do movimento negro mostra uma variedade de posicionamentos em funo das conjunturas e contextos especficos. Afora os matizes ideolgicos e polticos que se explicitam no interior desses movimentos, elementos de confluncia entre eles continuam a ser afirmados como, por exemplo, a reivindicao da agenda de Durban que, at o presente, continua a ser o referencial mais significativo e legitimador da mobilizao. Enquanto isso, o reiterado compromisso dos Estados e as instituies internacionais ao redor de Durban mostra um desnivelamento entre as declaraes de princpios e de respaldo e a vontade e determinao necessrias para no somente impulsar, mas tambm e, sobretudo, executar medidas concretas que se consolidem em avanos tangveis na incluso dos afrodescendentes.

    Atravs das reflexes expostas evidencia-se o papel que exerce os espaos transnacionais de ao e suas influncias sobre a dinmica de elaborao das polticas de reconhecimento das populaes negras da regio. Embora os

    elementos que so apresentados deem conta de um processo de transformaes significativo em matria de debate pblico e de aes relacionadas com as reivindicaes de reconhecimento e incluso das populaes negras, tambm explicitam as ambiguidades ou limites dessas polticas multiculturais. Finalmente, fica ainda em aberto a interrogao sobre as perspectivas que so apresentadas pela problemtica da plena incluso cidad das populaes negras no marco das polticas multiculturais vigentes na regio. Nesse sentido que defendemos que os processos de reconhecimento de direitos dessas populaes enfrentam uma encruzilhada na qual se continua a debater sobre os rumos a serem tomados, tanto na forma como no contedo dos mesmos.

    Como mencionamos, de forma diferenciada a esse enfoque nas polticas de reconhecimento multicultural, temos o exemplo do Brasil, pas que aposta essencialmente na promoo de polticas de aes afirmativas, embora tenha implementado, igualmente, polticas dirigidas ao reconhecimento cultural e a titulao de terras de comunidades quilombolas. Essa opo responde s especificidades do contexto histrico e sociocultural brasileiro e a forma em que se estabeleceram as relaes raciais no pas, determinante para a explicao da posio socioeconmica desprivilegiada da populao negra. Embora tenha significado um avano importante no tratamento da questo racial no pas, a introduo das aes afirmativas demonstra ser insuficiente para a correo das condies desiguais entre brancos e negros e para a superao do racismo e da discriminao. Pode-se afirmar que a concentrao do debate

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    pblico e das aes institucionais nessas polticas tm desconsiderado outras polticas antirracistas e demais aes valorativas que possam contribuir para o enfrentamento da discriminao e do racismo. Assim, ficam tambm pendentes novas propostas que possam complementar essas polticas na busca de incluso dessas populaes.

    SOBRE O CONTEDO DO DOSSI

    Dando continuidade a essas reflexes introdutrias e reafirmando o fato de que so variadas as experincias do caminho percorrido pelas populaes afrodescendentes nas sociedades latino-americanas e caribenhas, o dossi que aqui se apresenta uma contribuio significativa para a busca de compreenso dessa problemtica. Os artigos que o compem oferecem dados, informaes e resultados de pesquisas realizadas em vrios pases da regio.

    ressaltamos que com a influncia e motivao da onda multicultural que se afirmou na Amrica Latina desde os anos 90, multiplicaram-se os programas de pesquisa e difuso de resultados atravs de diferentes formatos, tanto no mbito nacional como transnacional, envolvendo vrios pases da regio. Sem pretender ser exaustivos, podemos mencionar algumas dessas iniciativas nas que participamos a maioria dos autores desse dossi: os projetos desenvolvidos pela UNESCO na Amrica Central (Del Olvido a la Memoria) e o j citado A rota dos Escravos concernente a toda regio latino-americana e caribenha; o projeto

    Identidades y Movilidades. Una comparacion Colombia - Mexico que teve a participao de pesquisadores e instituies do Mxico, Colmbia e Frana (CIESAS, ICANH, IrD); o projeto Afrodescendientes y esclavitudes en las Amricas (AFrODESC) coordenado pela Agence nationale de la recherche (Agncia nacional de pesquisa ANr/Frana), que incluiu pesquisadores da Amrica Central, Mxico e Colmbia e foi desenvolvido igualmente por uma equipe multidisciplinar e plurinacional. Podemos mencionar tambm o trabalho sobre o tema desenvolvido pela Universidade de Austin Texas e, em particular, o Consejo de Investigaciones sobre Centroamrica y el Caribe (CCArC); para os pases andinos, a Catedra de Estudios afro-andinos da Universidade Andina Simon Bolvar no Equador; finalmente, os trabalhos do programa de estudos sobre frica e dispora africana (AADS) da Universidade Internacional da Flrida (FIU). Em todos os casos mencionados, trata-se de estudos e pesquisas desenvolvidas por equipes multidisciplinares e plurinacionais.

    O dossi tambm possui carter pluridisciplinar, composto por contribuies a partir da histria, a antropologia, a geografia, a sociologia e as cincias polticas. Buscamos incluir estudos sobre as populaes afrodescendentes cuja difuso normalmente restrita aos espaos nacionais ou pouco conhecida no meio latino-americano. o caso das contribuies sobre Nicargua, Belize, Honduras, Costa rica, Mxico, Argentina, Cuba, e as partes sobre Bolvia, Chile, Peru e Equador que se encontram no artigo de rahier y Douge-Prosper. Esses

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    artigos esto acompanhados pelos estudos sobre a Colmbia e Brasil que, por sua vez, possuem um slido e amplamente difundido campo de estudos sobre as relaes raciais.

    ressaltamos que o propsito principal desse dossi contribuir para romper o desconhecimento que existe, especialmente no Brasil, sobre a realidade das condies e reivindicaes das populaes afrodescendentes em pases da Amrica Central, do Caribe, ou ainda mais prximos, como os outros pases da Amrica do Sul. Embora os estudos sobre raa e racismo no Brasil, assim como o debate sobre as aes afirmativas, demonstrem uma grande vitalidade, ficaram, sobretudo, circunscritos ao contexto nacional ou ao dilogo com a experincia estadunidense, estabelecendo pouco contato com as experincias dos demais pases latino-americanos. Especificamente, o debate sobre as aes afirmativas esteve preso discusso sobre a compatibilidade dessas polticas com a particularidade das relaes raciais brasileiras, concebidas normalmente como sendo relaes mais fludas e ambguas, inseridas em um contexto historicamente marcado por discursos oficiais de miscigenao e de democracia racial (GrIN 2001). Alm disso, a poltica de cotas raciais implementadas colocou em evidncia uma comparao do Brasil com os Estados Unidos, j que, para muitos crticos, seria uma poltica mais adaptada ao sistema segregacionista e racista tipicamente estadunidense, possuindo, portanto, um carter de algo importado no contexto brasileiro (BOUrDIEU e WACQUANT, 1999). O debate em torno dessas questes, ou seja, a

    adaptabilidade das aes afirmativas ao contexto brasileiro e a comparao com os Estados Unidos, criou importantes antagonismos entre os favorveis e opositores a essas polticas, contribuindo para enclausurar o tema no mbito nacional. Por consequncia, a participao de intelectuais e representantes negros nos cenrios transnacionais latino-americanos, como os que descrevemos aqui, foi bastante reduzida. Assim sendo, cremos que pouco foi explorado sobre as confluncias do contexto racial brasileiro e os demais pases latino-americanos e caribenhos, o que poderia ter contribudo para o enriquecimento da discusso sobre o tema no pas.

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