Levando o Direito Ao Lazer a Sério

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    REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2009 | v. 73 n. 4 ano XXVII

    75Doutrina

    Bernardo Augusto Ferreira Duarte

    Advogado, graduado em Direito pela PUC Minas. Especialista

    em Direito Constitucional pelo Instituto de Educao Con-tinuada PUC Minas. Mestrando em Direito Pblico pela PUC

    Minas.

    Introduo

    Descrito no rol dos direitos fundamentais, especicamente nos arts. 6, 7, inciso IV, 217, 3, e227, caput, todos da Constituio da Repblica de 1988, o lazer atingiu, contemporaneamente,uma importncia nunca antes imaginada.

    Apesar de amplamente explorado pelos estudiosos da Medicina, da Sociologia e da Psicologia,

    nsia possivelmente provocada pelo elevado grau de abrangncia social, econmica e culturaldesse direito, poucas so, no mbito do Direito (cincia), as contribuies capazes de solucionaros problemas inerentes sua compreenso, eccia e aplicabilidade. No Brasil, por exemplo, oque existem so exploraes rasteiras e pouco reetidas acerca do tema, marcadas seja por um

    aspecto meramente descritivo, seja, como ocorre na maior parte das vezes, por uma tentativade enquadramento do lazer em classicaes pautadas, ainda, em critrios semnticos dasnormas. Outra caracterstica marcante a despreocupao quanto compreenso, tanto no

    plano losco como no pragmtico, dos bices impostos sua efetividade.

    No plano dos discursos de aplicao exercidos pelo Executivo exsurge, ainda, outro problema:a reduo das diversas possibilidades de contedo que o lazer pode alcanar, fenmeno quedecorre da delimitao das polticas desenvolvidas pela Administrao Pblica em torno deprogramas de incentivo prtica desportiva e/ou ao turismo. O problema que tratar o

    lazer como mero direito prtica desportiva ou, ainda, como simples direito decorrente de

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    atividades vinculadas ao turismo signica, inequivocamente, alm da negao de um sem-nmero de dimenses conteudsticas que esse direito pode vir a ter, negligncia em relao imprescindibilidade da participao intersubjetiva na construo desses contedos. Esse

    problema, alis, se deve principalmente a uma compreenso clientelista do direito ao lazer,cuja implementao confundida com a mera concesso estatal. Como se no bastasse, aspolticas pblicas destinadas efetivao desse direito, alm de meramente assistencialistas,esto estritamente vinculadas a uma determinada gesto administrativa, o que diculta a suaimplementao continuada, mormente quando da sucesso eleitoral.

    Em vista dessa realidade, existe uma necessidade premente de se repensar o direito ao lazer,

    no apenas no plano losco, mas tambm no plano dos discursos de aplicao. certo que emoutro artigo cientco1destinado ao tema, algumas questes de suma importncia em relaoao direito ao lazer j foram extensivamente discutidas, tais como, a ttulo de exemplo, osganhos trazidos pelo giro lingustico-pragmtico para a sua correta compreenso e aplicao luz do paradigma democrtico. Faltam, no entanto, muitas questes que carecem de uma

    explorao mais cuidadosa.

    A bem da verdade, como ressaltou o notvel professor Rodolfo Viana Pereira,2falta um melhoresclarecimento acerca do que seja, anal, o direito ao lazer luz do paradigma democrtico. Falta,ainda, uma explicao mais minuciosa acerca de como a Administrao Pblica deve se portarpara decidir corretamente as questes afetas implementao do direito ao lazer. Finalmente,

    falta uma explorao mais contundente acerca das reais repercusses que essa mudana de

    perspectiva (em relao ao estudo e aplicao do lazer) pode trazer para a (re)construo deuma cidadania ativa e efetiva no Brasil, a qual condiga com uma noo de cidadania prpria ao

    paradigma do Estado Democrtico de Direito. o que, adiante, tentar-se- desenvolver.

    1 O direito ao lazer: preparatrio para uma nova abordagem

    Se um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil a cidadania, conforme disposto

    no art. 1, II, da Constituio da Repblica de 1988, no h como negar que a construodesta ltima perpassa, luz do paradigma3 do Estado Democrtico de Direito, pela

    implementao e efetivao de todos os direitos fundamentais descritos na Constituio de1988, entre eles o lazer.

    1Trata-se do artigo intitulado O direito ao lazer sob a tica ps-positivista: uma proposta dialgica de compreenso e implemen-tao, apresentado no XVII Congresso Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Direito intitulado XX Anos da Constituio da Re-pblica do Brasil: reconstruo, perspectivas e desaos (DUARTE, 2008, p. 3313-3344). Disponvel em: .

    2Professor Doutor pela Universidade de Coimbra, por quem fui orientado para a elaborao deste artigo.

    3O termoparadigmafoi cunhado por Thomas Kuhn para o mbito das pesquisas cientcas, como o conjunto de realizaes (cient-cas), universalmente reconhecidas, quefornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de umacincia (KUHN, 1994, p. 6). Aqui, trabalha-se com a ideia de paradigma jurdico, no sentido de um conjunto de vises (contextua-lizadas) de uma dada sociedade, ou, ainda, o conjunto de imagens implcitas que se tem da prpria sociedade, um conhecimentode fundo, um background, que confere s prticas de fazer (e de aplicar o direito) uma perspectiva, orientando o projeto derealizao de uma comunidade jurdica(CATTONI, 2002, p. 54).

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    Levar o lazer a srio, nesse contexto, consider-lo no apenas um direito social, tal comodescrito no art. 6, caput, da Constituio da Repblica de 1988, mas tambm encarar a realidadede que, sob o paradigma democrtico, esse direito condio e consequncia do exerccio de

    uma cidadania ativa e efetiva. entender que considerar a sua importncia enquanto direito,e direito fundamental, no apenas contribui para a inteleco de uma noo de cidadaniacondigna ao paradigma democrtico, mas tambm constitui elemento imprescindvel para aconstruo dessa concepo de cidadania.

    bem verdade que, at hoje, poucas foram as abordagens especcas da doutrina jurdicabrasileira acerca do direito ao lazer. Um dos poucos a se aventurar nessa empreitada foi Jos

    Afonso da Silva, mesmo assim, de maneira supercial, no seu Curso de Direito ConstitucionalPositivo.Em sntese, aps constatar que o art. 6 da Constituio da Repblica de 1988 mencionao lazer entre os direitos sociais, Afonso da Silva assevera:

    Lazer e recreao so funes urbansticas, da porque so manifestaesdo direito urbanstico. Sua natureza social decorre do fato de constiturem

    prestaes estatais que interferem com as condies de trabalho e com aqualidade de vida, donde sua relao com o direito ao meio ambiente sadio eequilibrado. Lazer a entrega ociosidade repousante. Recreao entregaao divertimento, ao esporte, ao brinquedo. Ambos se destinam a refazer as

    foras depois da labuta diria e semanal. Ambos requerem lugares apropriados,tranquilos num, repletos de folguedos e alegrias em outro(2001, p. 318).

    evidente, conforme descrito no artigo intitulado O direito ao lazer sob a tica ps-positivista:uma proposta dialgica de compreenso e implementao, que a abordagem de Afonso daSilva possui um sem-nmero de problemas. Em primeiro lugar, ela parte de uma ciso que noexiste na Constituio da Repblica, a saber, a diviso entre lazer e recreao. Alm disso,

    a abordagem de Afonso da Silva tenta encerrar nela mesma toda a dimenso conteudstica4

    do direito ao lazer, passando ao largo de toda uma gama de conhecimentos produzidos ps-reviravolta lingustico-pragmtica.5Como se no bastasse, tal abordagem parte da premissade que a natureza social do direito ao lazer decorre do fato de ele constituir-se em umaprestao estatal, desconsiderando no apenas a possibilidade de horizontalizao6 desse

    4O tema ser tratado no tpico 2 deste artigo. Sugere-se, para a compreenso da problemtica de uma antecipao da extensototal do contedo de um direito (in abstrato), a leitura de (SOUZA CRUZ, 2007, p. 235-240) e (CATTONI, 2002, p. 112).5A reviravolta lingustico-pragmtica, tambm chamada de giro lingustico-pragmtico, por meio da qual se operou a superao daFilosoa da Conscincia pela Hermenutica Filosca, representou uma guinada na busca pela compreenso tanto das condiesde possibilidade quanto das condies de validade para o conhecimento (compreenso). Por meio dela, que, para alguns, se ini-ciou com Wittgenstein e se desenvolveu por meio dos estudos de Martin Heidegger e Hans Georg Gadamer, passou-se a entenderque a linguagem seria um mediumpara o conhecimento/compreenso, ou, em outras palavras, condio para o conhecimento,que dar-se-ia, ele mesmo, na prpria linguagem e por intermdio da linguagem. J o giro pragmtico, mediante o qual operou-sea superao da Hermenutica Filosca pela Filosoa da Linguagem, decorre de uma crtica primeira, no sentido de que elano teria conseguido, satisfatoriamente, explicar as condies para a validade do conhecimento, por estar, ainda, muito presa stradies. Em resumo, opragmatic turnv na intersubjetividade, isto , no consentimento possibilitado pelo discurso racional,a condio para a validade do conhecimento, ou seja, o meio pelo qual seria possvel chegar ao entendimento correto. Acerca dotema, ver (DUARTE, 2008, p. 3313-3344. Disponvel em: ),(HABERMAS, 2003, p. 17-34, SOUZA CRUZ, 2007: 75-110 e GALLUPO, 2002: 105-114). Para uma compreenso dos antecedentes dogiro lingustico, ver (PEREIRA, 2001, p. 8-21). Para uma noo da metdica cartesiano-iluminista, ver (CAMARGO: 2003, p. 65-80).

    6Em outras palavras, oponvel tambm a particulares no mbito das relaes privadas.

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    direito fundamental, mas tambm, o que mais grave, a realidade de que, aps a instauraodo paradigma democrtico no Brasil, que se deu a partir da promulgao da Constituio daRepblica de 1988 (ver art. 1, caput), direitos no podem mais ser entendidos como simples

    prestaes estatais. Direitos so trunfos, so elementos deontolgicos vinculantes.7 Eles sso legtimos se aqueles a quem se dirigem, ou seja, os seus destinatrios, manifestarem oseu assentimento, ainda que de forma indireta, em relao ao seu contedo, a tal ponto quepossam ser entendidos como coautores de seus prprios direitos. Eis a a importncia da teoriadiscursiva8de Habermas9para a correta compreenso do direito fundamental ao lazer luz doparadigma democrtico.

    Outra impropriedade da abordagem de Afonso da Silva acerca do lazer est na armao deque esse direito consistiria na entrega ociosidade repousante. Aqui cabe uma explicao maisminuciosa. Se certo que a palavra lazer, semanticamente, sinnima da palavra cio, tambm igualmente correto que, ps-giro lingustico-pragmtico, a compreenso de uma norma (e olazer, descrito na Constituio, deve ser entendido enquanto norma)10s se opera validamente emvista da linguagem,11que possibilita a inteleco, e da intersubjetividade (tambm possibilitada

    7Nesse sentido, ver (HABERMAS, 2003, p. 317-318). Cumpre ressaltar, aqui, que mesmo os defensores das teorias das normas pro-gramticas, classicao majoritariamente utilizada por essa corrente para a classicao da norma denidora do direito ao lazer,entendem pela juridicidade dessas normas. Nesse sentido, conra (SILVA, 1999, p. 125-140) e (CANOTILHO, 1999, p. 1102). Paracrticas s teorias das normas programticas, ver (DUARTE, 2008, p. 3313-3344. Disponvel em: ).

    8Em apertada sntese, a teoria do discurso, que obriga ao processo democrtico com conotaes mais fortemente normativas doque o modelo liberal, mas menos fortemente normativas do que o modelo republicano, assume por sua vez elementos de ambas aspartes e os combina de uma maneira nova.Em consonncia com o republicanismo,ela reserva uma posio central para o processopoltico de formao da opinio e da vontade, sem no entanto entender a constituio jurdico-estatal como algo secundrio;mais que isso, a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e princpios do Estado de direito como uma respostaconsequente pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condies de comunicao do procedimento democrtico.A teoria do discurso no torna a efetivao de uma poltica deliberativa dependente de um conjunto de cidados coletivamentecapazes de agir, mas sim da institucionalizao dos procedimentos que lhe dizem respeito.(...) Em face disso, a teoria do discursoconta com a intersubjetividade mais avanada presente em processos de entendimento mtuo que se cumprem, por um lado, naforma institucionalizada de aconselhamentos em corporaes parlamentares, bem como, por outro lado, na rede de comunicaoformada pela opinio pblica de poltico. Essas comunicaes sem sujeito, internas e externas s corporaes polticas e progra-madas para tomar decises, formam arenas nas quais pode ocorrer a formao mais ou menos racional da opinio e da vontadeacerca de temas relevantes para o todo social e sobre matrias carentes de regulamentao. A formao de opinio que se dde maneira informal desemboca em decises eletivas institucionalizadas e em resolues legislativas pelas quais o poder criadopela via comunicativa transformado em poder administrativamente aplicvel(HABERMAS, 2002, p. 280-281, grifo acrescido). Oconceito de institucionalizao, por sua vez, refere-se diretamente a um comportamento esperado do ponto de vista normativo,de tal modo que os membros de uma coletividade social sabem qual comportamento eles podem estimular, em que circunstnciase quando(HABERMAS, 2003, p. 221).

    9 importante destacar que a leitura discursiva dos direitos fundamentais, processada por Habermas, retira dos mesmos, numa fasepr-discursiva, sua dimenso subjetiva clssica. Nesse momento, o sistema de direitos (...)deve conter os direitos que os cidadosso obrigados a atribuir-se reciprocamente, caso queiram regular legitimamente a sua convivncia (...)(2003, p. 158). Nesse senti-do, so divididos (1) Direitos maior medida possvel de iguais liberdades subjetivas, (2) Direitos ligados ao statusde membro numaassociao voluntria de parceiros, (3) Direitos que resultam imediatamente da possibilidade de postulao judicial de direitos eda congurao politicamente autnoma da proteo jurdica individual, (4) Direitos participao, em igualdade de chances, emprocessos de formao da opinio e da vontade, e (5) Direitosa condies de vida garantidas social, tcnica e ecologicamente, namedida em que isso for necessrio para um aproveitamento dos direitos elencados de (1) a (4)(HABERMAS, 2003, p. 159-160).

    10Acerca do tema discorrer-se- com mais detalhes no tpico 2. necessrio que se diga, a m de evitar crticas quanto a essaassertiva, que a normatividade do lazer no se encerra no texto dos arts. 6, 7, inciso IV, 217, 3, e 227, caput, todos da CR/88.Isso porque a normatividade do texto s se completa pela fuso de horizontes que se produz entre o intrprete e o texto. Para maisdetalhes, ver (SOUZA CRUZ, 2006a, p. 3) e (PEREIRA, 2001, p. 35-36).

    11Nas palavras de Pereira, o meio pelo qual ocorre a compreenso a linguagem. Tanto o pensamento como a comunicao s sorealizados linguisticamente, eis que ela representa o nosso acesso aos fenmenos, a nossa possibilidade de conhecimento. a lin-guagem que nos abre o mundo, atravs dela que o vivenciamos e nada existe, para o homem, que a ela seja exterior. (...)almde possibilitar o conhecimento dos fenmenos que nos cercam eis que sem linguagem no h comunicao , a ela pertencemos,como se pertence a um grupo ou pas; no a possumos, nela participamos(2001, p. 50-51).

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    pela linguagem), que representa a condio de validade do conhecimento/compreenso dosobjetos, por exemplo, os textos normativos. O processo de inteleco da norma no se operasem que entre objeto (texto) e intrprete ocorra uma fuso de horizontes.12O problema que

    se desvela aqui, e que, crtica e respeitosamente, busca-se superar, a tendncia (que seespalhou pelo mundo) consistente na tentativa de entender o sentido das normas com base,meramente, em critrios sintticos (Teorias Analticas) e semnticos (Teorias Semnticas).13Esse consiste, at hoje, em um dos maiores entraves para o rmamento de uma compreensoconstitucionalmente adequada acerca do direito ao lazer no Brasil.

    O fato que tanto as teorias analticas quanto as semnticas desenvolvem-se ao largo deuma dimenso pragmtica, a qual tida, ps-giro lingustico-pragmtico, como condio devalidade para o conhecimento. Ao abrirem mo dessa dimenso, ambas falham no intento dealcanar seja a compreenso da validade da norma, seja o entendimento do sentido desta. A

    questo, que de fato complexa num primeiro momento, uma vez compreendida, salta aosolhos. O direito ao lazer no consiste apenas na entrega ociosidade repousante. Pelo contrrio,existe uma diversidade incontvel de dimenses conteudsticas que integram o sentido da(s)norma(s) que pode(m) ser construda(s) a partir do texto que dene o direito ao lazer, a(s)qual(is) s se desvela(m) luz de uma realidade vivenciada.14Dizer que o lazer consiste naentrega ociosidade repousante signica negligenciar, por exemplo, a realidade de que essedireito pode relacionar-se diretamente com os direitos trabalhistas, a ponto no apenas decontribuir para construo da norma que se desvela, numa determinada situao vivenciada, apartir da interpretao do art. 7, IV, da Constituio da Repblica. Da mesma forma, signica

    negligenciar a realidade de que o lazer est to relacionado ao direito fundamental sade quea compreenso deste ltimo, de certa forma, no prescinde da considerao do primeiro.15Issoapenas para citar dois exemplos plenamente plausveis.

    12A linguagem possibilita que em seu interior se processe o crculo hermenutico, uma espiral na busca pela compreenso, por meiodo qual o sujeito, atravs de sua pr-compreenso, participa na construo do sentido do objeto (moldado por tais preconceitos),ao passo que o prprio objeto, no desenrolar do processo hermenutico, modica a compreenso do intrprete (PEREIRA, 2001,p. 35).Essa espiralidade da compreenso ocorre em funo de um encontro entre dois mundos/horizontes diversos: o horizontedaquele que compreende e o horizonte de que adveio o objeto (PEREIRA, 2001, p. 36).

    13Em sntese, as Teorias Analticasso aquelasqueelegem como tema central de sua pesquisa a validadedas normas jurdicas,entendida como a relao entre [essas]normas (GALLUPO, 2002, p. 109 grifo no original). J as teorias semnticasso clas-sicadas por Gallupo (2002, p. 109) como Hermenuticas. Contudo, para que no se confunda a interpretao dessa teoria comaquela desenvolvida pela Hermenutica Filosca, prefere-se adotar, aqui, a denominao Semnticas. As Teorias Semnticas so aquelas cuja preocupao est na compreenso dosentidodas normas jurdicas, entendido como a relao entre a norma e oseu signicado (GALLUPO, 2002, p. 109 grifo no original).

    14Ou, para usar uma expresso de Habermas, no interior de um mundo da vida, que corresponde a um pano de fundo intersubje-tivamente compartilhado. Segundo Souza Cruz, o conceito habermasiano de mundo da vida bastante complexo, pois envolve ohorizonte de conscincia individual e da coletividade na qual esse indivduo se insere. Com o fundamento no pensamento husser-liano, esse horizonte compreende a cultura, as tradies, sua percepo de pertencimento a um determinado grupo ou algumainstituio social, bem como a capacidade do indivduo de agir e se comunicar. O mundo da vida de algum incapaz de ler ou deescrever bastante diferente daquele versado nas letras, o que permite dizer que a linguagem dene/circunscreve o mundo davida individual. A dimenso transcendente de contexto do mundo da vida constitui um pano de fundo no qual a humanidade seinsere de forma intersubjetivamente compartilhada, o que transforma aquele que participa de um discurso em algum que est-envolvido-numa-comunicao-lingustica-voltada-para-o-consenso(2006a, p. 94-95).

    15O que se pretende demonstrar aqui a correlao entre o direito sade e o direito ao lazer. J existem, inclusive, trabalhosacadmicos que demonstram ser, o lazer, um meio de promoo da sade. Apenas a ttulo de exemplo, conra-se a monograaintitulada Lazer e promoo da sade: um estudo com prossionais da rea da sade humana , apresentada como critrio paraconcluso da disciplina Seminrio de Monograa II, do Curso de Licenciatura em Educao Fsica da UFMG, de autoria de GabrielaBaranowski Pinto, orientada por Christianne Luce Gomes. Disponvel em: . Acesso em: 11 set. 2008.

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    O problema da abordagem de Afonso da Silva, decorrente talvez dos objetivos generalistasde seu trabalho, a desconsiderao de que o direito ao lazer tambm poderia ser, seguindoa sua linha de raciocnio, que parte de uma compreenso pr-ordenante16da Constituio, o

    direito ao gozo efetivo da livre vontade, seja para repousar, divertir-se, recrear-se, entreter-se, seja para desenvolver uma formao voltada para a participao social voluntria e paraa livre capacidade criadora, tal como o dene Joffre Dumazedier17(DUMAZEDIER, 1980 apudOLIVEIRA, 2007). Essa, alis, uma caracterstica de vrios estudiosos de outras reas que noa jurdica, os quais pautam seus estudos em dimenses substantivas do direito ao lazer, semperceber que essas dimenses, ou extenses conteudsticas totais, podem (e necessariamentevo) variar de acordo com as circunstncias que compem o mundo da vida do cidado ou doconjunto de cidados.18No estudo realizado por Guilherme C. Magnani, por exemplo, desvelam-se caractersticas acerca do lazer que passaram despercebidas por Afonso da Silva:

    (...) o lazer j no pensado apenas em sua referncia ao mundo do trabalho e,principalmente, no visto como um apndice a ele. Uma rpida enumeraodas instituies, equipamentos, produtos e atividades em torno do lazer academias, clubes, rede de hotis, sistemas de excurses, vesturio, cadernosde turismo de grandes jornais mostra que as formas de ocupar o tempo livreso consideradas per see constituem rentvel empreendimento.

    Esta desvinculao entre o lazer e o universo do trabalho tem a ver, nospases desenvolvidos, com o que um autor contemporneo (LALIVE DPINAY,1992) chama de mudana de ethos: a realizao pessoal no passa maisnecessariamente pelo trabalho ao menos no pelo trabalho remunerado:

    Para muitas pessoas, o trabalho continua sendo uma necessidade, mas nocomo uma forma de auto-realizao (...)os direitos dos seres humanos no soapenas viver e trabalhar, mas viver e desenvolver-se, o que requer seguranano apenas material, mas emocional (p. 439).

    O autor, evidentemente, est falando de sociedades onde os problemas debase foram resolvidos em funo da poltica do bem-estar e onde a populaoeconomicamente ativa entra cada vez mais tarde no mercado de trabalho e saicada vez mais cedo. Neste caso, aumenta o tempo livre e o trabalho remunerado apenas uma das formas de atividade nem sempre graticante ao lado deoutras, como o trabalho domstico, assistencial, comunitrio(MAGNANI, 2007).

    16A expresso Constituiopr-ordenantefoi criada por Rodolfo Viana Pereira em sua tese de doutoramento, que foi convertida,em parte, no livro Direito Constitucional Democrtico: controle e participao como elementos fundamentes e garantidores daconstitucionalidade. Em suas palavras, a constituio pr-ordenante impositiva, eis que sustentada sobre uma legitimaosubstancial, um ncleo tico-moral bem denido acerca dos valores fundamentais da sociedade e dos objetivos prioritrios doEstado(PEREIRA, 2008, p. 83). Esse modelo se contrape, em suas palavras ao da constituio ps-ordenante, dialgica, eis quesustentada sobre uma legitimidade procedimental, um ncleo tico-discursivo aberto multiplicidade dos valores sociais e dosobjetivos fundamentais(2008, p. 83).

    17Joffre Dumazedier (Taverny, 30/11/1915 25/12/2002) foi um socilogo francs pioneiro nos estudos do lazer e de formao.Informao disponvel em: .

    18No que esse seja um equvoco, porquanto aos cientistas de outras reas o que importa, muitas vezes, so os aspectos substan-tivos do lazer.

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    O problema da abordagem de Magnani, alm da delimitao conteudstica do lazer a prioride uma prtica discursiva, est em que, a despeito de esse direito poder ser pensado paraalm de sua referncia ao mundo do trabalho, e esse no um aspecto que se pretende negar,

    hoje, muito mais que antigamente, o lazer integra as relaes trabalhistas, constituindo oque Domenico de Masi, em entrevista a Palieri, chamou de cio criativo. Em introduo mencionada entrevista, que posteriormente virou um livro (O cio criativo), Palieri utilizou asseguintes palavras para apresentar o tema:

    Antigamente as famlias aristocrticas escolhiam um lema para os seus brases.Hoje todos ns, cada um por conta prpria, podemos escolher o seu, mas em vezde esculpi-lo em pedra podemos deix-lo utuando permanentemente na telado computador. O homem que trabalha perde tempo precioso exatamente olema que utua, em espanhol, no computador do Professor Domenico De Masi.

    Isso signica que para ele trabalhar o menos possvel uma losoa de vida?Ou a frase traduz a aspirao a uma virtude que lhe falta? Digamos coma fora paradoxal do humor que o lema sintetiza a teoria de De Masi: o

    futuro pertence a quem souber libertar-se da ideia tradicional do trabalhocomo obrigao ou dever e for capaz de apostar numa mistura de atividades,onde o trabalho se confundir com o tempo livre, com o estudo e com o jogo,enm, com o cio criativo(DE MASI, 2000, p. 10).

    Nas palavras de De Masi:

    (...)entre as atividades que realizamos com o crebro, as mais apreciadas emais valorizadas no mercado de trabalho so as atividades criativas. Porquemesmo as atividades intelectuais, como as manuais, quando so repetitivas,

    podem ser delegadas s mquinas.

    A principal caracterstica da atividade criativa que ela praticamente no sedistingue do jogo e do aprendizado, cando cada vez mais difcil separar estastrs dimenses que antes, em nossa vida, tinham sido separadas de maneiraclara e articial. Quando trabalho, estudo e jogo coincidem, estamos diantedaquela sntese exaltante que eu chamo de cio criativo.

    Assim sendo, acredito que o foco desta nossa conversa deva ser esta trplicepassagem da espcie humana: da atividade fsica para a intelectual, daatividade intelectual de tipo repetitivo atividade intelectual criativa, dotrabalho-labuta nitidamente separado do tempo livre e do estudo ao ciocriativo, no qual estudo, trabalho e jogo acabam coincidindo cada vez mais(DE MASI, 2000, p. 16).

    evidente que a preocupao de De Masi no com o direito ao lazer em si; contudo, suatese contribui para a criao/consolidao de uma nova viso acerca do direito ao lazer, aqual condiga com o paradigma do Estado Democrtico de Direito. Em primeiro lugar, sua tese

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    de que o jogo cada vez mais integra a atividade intelectiva criativa e com ela se confunde (aponto de com ela coincidir) demonstra, ainda que por via transversa, que de fato as dimensesconteudsticas do direito ao lazer variam de acordo com a situao vivenciada, ou melhor, de

    acordo com o mundo da vida que o constitui e no qual se insere o cidado. Alm disso, a tese deDe Masi desvela, de forma bastante original, a proximidade muitas vezes negligenciada entreo lazer e a atividade criativa, o que corrobora a alegao de pertinncia e relevncia de umanova abordagem jurdico-losca acerca desse direito.

    O que se pretende aqui construir uma teoria constitucional acerca do direito ao lazer, queconsidere seriamente a sua importncia enquanto direito fundamental e a sua imprescindibilidade

    para a formao de cidados ativos e efetivos na sociedade brasileira, os quais sejam capazes departicipar de discursos argumentativos em igualdade de condies de fala, na busca pela criaode um direito legtimo, num mundo marcado pela pluralidade de concepes de vida boa. O

    presente estudo, portanto, no se pauta em um conceito acerca do que seja, substantivamente,o direito ao lazer. Funda-se, ao contrrio, na sua importncia enquanto direito fundamental,enquanto condio e consequncia de discursos argumentativos, enquanto direito que possuium carter deontolgico e, nalmente, enquanto direito passvel de horizontalizao, ou seja,

    oponvel a particulares no mbito das relaes privadas.

    Levar o lazer a srio no signica, no entanto, negar a igual importncia dos demais direitosfundamentais previstos na Constituio da Repblica de 1988. Exatamente por isso, estetrabalho no desconsidera que a efetivao de direitos fundamentais pode custar dinheiro, pelo

    que pretende analisar matrias como a reserva do possvel e o mnimo existencial, questesdiretamente relacionadas implementao/efetivao do direito ao lazer, tanto no pano defundo brasileiro como no internacional. A tese que se pretende construir busca compatibilizar olazer com outros direitos fundamentais, na tentativa de construir uma alternativa que, levandoem considerao a participao dos cidados, legitimamente seja capaz de superar a escassez

    de recursos econmicos e o esprito estratgicode pessoas oportunistas. Essas so as questesque, adiante, sero tratadas em mincias.

    2 As diversas facetas do direito ao lazer luz do paradigma

    democrtico: o que de fato interessa

    Diante das colocaes anteriormente ressaltadas, resta saber: em que consiste o direito ao lazer luz do paradigma democrtico?19Sob o pano de fundo do Estado Democrtico de Direito, o lazer um direito fundamental que, concomitantemente, condio e consequncia de discursosargumentativo-deliberativos. Como direito fundamental, ele possui um carter deontolgico,

    19A compreenso que norteia a presente pesquisa desenvolvida por Jrgen Habermas, denominada procedimentalista, ou paraalguns, crtico-delirativa. Sobre isso, ver (SOUZA CRUZ, 2007, p. 239).

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    sendo, ainda, passvel de horizontalizao,20sem que para tanto seja necessria a mediaodo legislador privado. Alm disso, assim como os demais direitos fundamentais, ele possui duasdimenses, uma positiva (que demanda um agir por parte do Estado e/ou particulares) e outra

    negativa (que demanda uma absteno por parte do Estado e/ou particulares), as quais variamde acordo com os casos especcos21em que o lazer invocado. Finalmente, um direito que s

    desvela as suas dimenses conteudsticas ps-discurso, sempre no mbito de uma situao real/vivenciada. Todas essas facetas acerca do direito ao lazer j foram, ainda que supercialmente,trabalhadas no artigo O direito ao lazer sob a tica ps-positivista: uma proposta dialgica

    de compreenso e implementao.22Por isso, o que se pretende aqui no necessariamente

    relatar esses aspectos, mas aprofundar-lhes o estudo com foco no direito ao lazer, a m dermar o posicionamento defendido outrora.

    J foi dito que o direito ao lazer, sob um vis democrtico, no pode ser entendido como umanorma de cunho programtico, nem como um valor/comando otimizvel em coliso com osdemais direitos no mbito da aplicao.23Foi dito, ainda, que esse direito fundamental , ao

    mesmo tempo, condio e consequncia de discursos argumentativo-deliberativos. Contudo,a dvida perdurou: o que, anal de contas, signica essa ltima assertiva? Em primeirolugar, essa armao exprime, entre outras coisas, que luz do paradigma democrtico oscidados assumem um papel fundamental na construo dos diversos contedos substantivos

    que o lazer pode vir a ter. E mais, signica que o lazer, conquanto despido de uma dimensosubstantiva, condio sem a qual os cidados no podem ser entendidos como iguais,elemento contraftico (igualdade de condies de fala) que viabiliza o discurso. Essa teoria

    carece de uma explicao mais detalhada.

    Foi com Habermas24e, portanto, sob o vis da teoria do discurso, que os direitos fundamentais

    passaram a ser compreendidos como condio e consequncia de um procedimento discursivo.Sua inteno sempre foi produzir uma teoria procedimental que possibilitasse aos cidadosa criao legtima de seus prprios direitos. Sua teoria, a despeito de no abrir mo de uma

    20Acerca das diversas teorias relativas horizontalizao dos direitos fundamentais, ver Souza Cruz (2007, p. 342-355). A teoriaque se adota no presente artigo a da eccia direta, adotada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 201819/RJ, DJde 27/10/2006,que aponta para desnecessidade de mediao do legislador privado para que os direitos fundamentais sejam ecazes no mbito das

    relaes privadas. Disponvel em: . Acesso em: 04 fev. 2009.21O termo caso especcono utilizado aqui, necessariamente, como sinnimo de caso concreto(levado a juzo). Signica, emverdade, uma srie de situaes vivenciadas, um mundo da vida, o qual pode, ou no, abranger um caso levado a juzo.

    22Tambm neste artigo, desenvolvi uma srie de crticas s teorias das normas programticas e jurisprudncia dos valores. Aqui, osesforos sero despendidos para o aprofundamento das dimenses democrticas do direito ao lazer. Apenas para rememorar, a partirda jurisprudncia do Tribunal Constitucional Alemo, aps a promulgao da Lei Fundamental de Bonh (1949), e, portanto, ps-holo-causto, que a confuso entre direitos e valores se inicia. Essa a fase da to conhecida Jurisprudncia dos Valores. Acerca do tema,vide (PEREIRA, 2008, p. 83-85; CAMARGO, 2003, p. 117-127 e HABERMAS, 2003, p. 314-315). Segundo Pereira (2008, p. 83), a doutrinada tbua de valores e da ordem de valores origina-se concretamente em 15 de janeiro de 1958, no julgamento do caso Lth.

    23Ver (DUARTE, 2008, p. 3316-3320). Disponvel em: . Parauma abrangente compreenso da crtica de Habermas teoria da Jurisprudncia dos Valores e ao princpio da proporcionalidadedesenvolvido por Alexy, bem como compreenso deste ltimo acerca dos direitos fundamentais, ver (HABERMAS, 2003, p. 317-323), (CATTONI, 1998, p. 139), (CATTONI, 2000, p. 58-74), (SOUZA CRUZ, 2004, p. 232-244), (SOUZA CRUZ, 2007, p. 276).

    24Ver Habermas (2002, p. 280) e (2003, p. 158-159).

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    perspectiva conteudstica25dos direitos fundamentais, no se centrou, num primeiro momento,no vis substancialista desses direitos. Dizer isso no signica defender que, sob o visprocedimentalista, os direitos fundamentais sejam vazios, sem substncia e contedo. Essa

    abordagem dicotmica dos direitos fundamentais meramente explicativa, tendo em vistaque ambas as conotaes (condio e consequncia) coexistem, ou seja, so simultneas.Mesmo porque, bom que se diga, direitos so (re)construdos a todo momento, seja emprocedimentos discursivos por intermdio de um agir comunicativo,26seja em procedimentosjudiciais, seja diuturnamente, nas relaes intersubjetivas. Portanto, a distino descritaalhures no desconsidera os ganhos trazidos pelo giro lingustico-pragmtico.27O que Habermas

    quis, ao cindir os direitos fundamentais em condio e consequncia da prtica discursiva, foito-somente enfatizar que, enquanto condies necessrias que possibilitam o exerccio daautonomia poltica, esses direitos no poderiam limitar o discurso.28Exatamente por isso no

    faria sentido, em uma fase pr-discursiva, enfatizar o carter substantivo, ou conteudstico,dos direitos fundamentais.

    Dizer que o lazer condio da (para a) prtica discursiva entend-lo como uma das liberdades(cuja dimenso, positiva ou negativa, vai variar ps-discurso) descritas por Habermas comopossibilitadoras do discurso. Em outras palavras, entend-lo como que incluso entre os direitosfundamentais que resultam da congurao politicamente autnoma do direito maior medida

    possvel de iguais liberdades subjetivas de ao (HABERMAS, 2003, p. 159) ou, ainda, entre osdireitos fundamentais a condies de vida garantidas social, tcnica e ecologicamente, namedida em que isso for necessrio para um aproveitamento, em igualdade de chances, (dos

    demais direitos que possibilitam o discurso)(HABERMAS, 2003, p. 159). Isso signica que, nafase pr-discursiva, o direito ao lazer despido de sua dimenso substantiva para transformar-seem condiopara que qualquer comunidade humana possa se fazer compreender e buscarconsensos ou acordos sobre quaisquer questes, sejam elas morais, polticas, ticas, cientcas,estticas ou religiosas(SOUZA CRUZ, 2006b, p. 78).

    25A falta de conteudstica uma das crticas de Lenio Streck teoria do discurso. A resposta de Souza Cruz caminha no sentido deque metafsico pretender encarar um direito fundamental como algo meramente substantivo, buscando ressaltar como se vem grande parte de nossos manuais de Direito Constitucional seus aspectos conteudsticos. (...)Desse modo, cabe a pergunta:o exame dos direitos fundamentais pode ser empreendido desconsiderando uma de suas facetas, ou seja, seu contedo ou suaforma? Melhor dizendo: no mbito do giro lingustico-pragmtico possvel separ-los ou dizer que um mais relevante do que

    o outro? Em nossa opinio, no! E, de certo, Habermas deixa isso bem claro! (...)A pergunta simples: como entabular discursossobre o que quer que seja sem um contedo? Esta a questo central daqueles que associam o procedimentalismo habermasia-no a alguma coisa desligada de substncia: no percebem que a linguagem e o discurso so aparatos da espcie humana que lhepermite coeso social, e transmisso de informaes e ao. Ora, se o giro lingustico herdado de Heidegger traduz o mundo comolinguagem, de que forma a mesma pode se abster de contedo? Dizer que os direitos fundamentais assumem a dupla contingnciade serem condio e consequncia do discurso expe claramente o fato de que os crtico-deliberativos no do as costas para ocontedo do Direito (2007, p. 237-240).

    26Conra-se (HABERMAS, 2003, p. 158), onde ele explica a sua ideia de autolegislao de cidados.

    27Conra-se: (...)A gnese lgica desses direitos forma um processo circular, no qual o cdigo do Direito e o mecanismo para aproduo do direito legtimo, portanto o princpio da democracia, se constituem de modo cooriginrio. O processo de apresenta-o vai do concreto ao abstrato sendo que a concreo acontece porque a perspectiva da representao, inicialmente trazida defora, internalizada pelo sistema de Direitos, representado (HABERMAS, 2003, p. 158).

    28Nas palavras de Habermas, os direitos fundamentais so condies necessrias que apenas possibilitam o exerccio da autonomiapoltica; como condies possibilitadoras, eles no podem circunscrever a soberania do legislador, mesmo que estejam sua dis-posio. Condies possibilitadoras no impem limitao quilo que constituem(2003, p. 165).

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    Eis o que diz Souza Cruz:

    Mas quais os direitos fundamentais que realizam a congurao do medium

    argumentativo do princpio da democracia? Em outras palavras, quais so osdireitos admissveis pelo ltro do princpio da moralidade? Eles so os direitosfundamentais universais, que Habermas divide em cinco categorias.

    Os primeiros seriam derivados da congurao politicamente autnoma dodireito maior medida possvel de iguais liberdades subjetivas de ao,que podem ser exemplicados tanto atravs de uma releitura discursiva dosdireitos liberais clssicos ligados liberdade, vida, integridade fsica, propriedade, intimidade, quanto aos direitos sociais como o direito aotrabalho e dignidade humana (2006a, p. 169).

    A tese que ora se defende de que tambm o lazer estaria incluso entre essas liberdades,tendo em vista que, nas palavras do prprio Habermas, nessa fase pr-discursiva haveriam

    de ser respeitados precisamente os direitos que os cidados so obrigados a atribuir-sereciprocamente, caso queiram regular legitimamente a sua convivncia com os meios doDireito Positivo (2003, p. 158-159). certo, no entanto, que ainda que a leitura acerca dosprimeiros direitoscondicionantes do discurso seja no sentido de entend-los como uma releitura

    discursiva dos direitos liberais clssicos, entende-se perfeitamente cabvel a compreenso dolazer como que incluso entre os direitos29que, ao propiciarem condies de vida social, tcnicae ecolgica aos cidados, garante-lhes a possibilidade de fruio dos demais direitos descritospor Habermas como condicionantes/possibilitadores da prtica deliberativa. O importante, e

    isso que se pretende destacar neste momento, que na fase pr-discursiva o lazer no tidocomo direito prtica desportiva, leitura de um livro, possibilidade de fazer uma viagem,de assistir a um lme ou a uma pea teatral apenas para citar alguns exemplos de dimensessubjetivas que esse direito pode eventualmente assumir. Ao contrrio, enquanto condio da

    prtica discursiva esse direito est, necessariamente, despido de uma dimenso substantiva,porquanto essa ltima, luz do paradigma democrtico, no prescinde da participao ativados cidados para ser construda.

    Poder-se-ia questionar, nesse ponto, se de fato o direito ao lazer condio sem a qual no

    poderia ocorrer a prtica discursiva. Uma anlise pouco reetida dessa questo tende a apontarpara uma resposta negativa. A questo, contudo, mais complexa do que parece. Conforme jse disse em outra oportunidade,30a interligao entre os direitos fundamentais to evidenteque a sua negativa signica, metaforicamente, fechar os olhos para se esconder do sol. No hcomo negar, por exemplo, que o usufruto de direitos como a vida, a sade e o trabalho (entreeles, o direito ao descanso semanal, ao salrio mnimo capaz de atender s necessidades vitais

    bsicas do indivduo e da famlia, s frias etc.) evidentemente subentende o usufruto do direito

    29Nesse sentido, ver Habermas (2003, p. 160).

    30Ver (DUARTE, 2008, p. 3320-3323. Disponvel em: ).

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    ao lazer, da mesma forma que a fruio do direito vida subentende o gozo do direito sade,e vice-versa. No h vida sem sade, assim como no h sade sem lazer. Da mesma forma,para a construo do sentido da norma que descreve as possibilidades conteudsticas do direito

    ao trabalho anteriormente destacadas, no h como desconsiderar o lazer. E se relacionadosesto em uma fase ps-discursiva, em que os direitos assumem substncia, evidentementeessa interligao e correlao tambm est presente na fase pr-discursiva. Mesmo porque,se certo que no h vida sem sade, e no h sade sem lazer, igualmente verdadeiro quealgum que esteja de fato doente dicilmente disponibilizar-se- a participar de um discurso

    tal como proposto por Habermas (mesmo porque no ter condies para tanto). Exatamenteem virtude disso que o lazer assume o papel, juntamente com outros direitos fundamentais,de condio que possibilita a prtica discursivo-deliberativa.

    J em um segundo momento (ps-discursivo), esse direito assume sustncia, ou, nas palavras

    de Cattoni (2002), contedo ou extenso total. A questo bastante simples: o direito aolazer, agora produto de um procedimento deliberativo inscrito em um mundo da vida que opossibilita, assume densidade de contedo, (caracterizando-se) por (obter) substncia (SOUZACRUZ, 2006b, p. 79). Em outras palavras, to logo os discursos legislativos e jurisdicionais

    tenham se concludo, a sim, os direitos fundamentais, (entre os quais est o lazer) assumemuma dimenso substantiva (SOUZA CRUZ, 2006a, p. 168). A diferena, e nisso que a teoriadiscursiva contribui para a tese ora defendida, que, luz do paradigma democrtico, so oscidados que, discursivamente, deniro as dimenses conteudsticas do direito ao lazer. So

    eles que deniro as atividades que, individual ou coletivamente, representam o lazer num

    caso especco e cujo exerccio representa o pleno gozo desse direito. Isso signica, em outraspalavras, que o lazer s ser considerado como o direito prtica desportiva, por exemplo,quando os cidados afetados pela norma que regulamenta o desporto assim decidirem/

    entenderem discursivamente. Explique-se melhor essa assertiva. S faz sentido entender odever do Estado de fomentar prticas desportivas (art. 217 da Constituio da Repblica de1988), como uma das formas de contribuir para a efetivao do direito ao lazer se, e apenasse, essa possibilidade conteudstica for intersubjetivamente construda, seja em discursos de

    justicao ou de aplicao, seja diuturnamente, no mbito das relaes interpessoais. Noartigo intitulado Mandado de injuno e direito ao lazer: o renascimento de uma garantia

    constitucional e o alvejar de um direito fundamental h uma passagem que explica bem aquesto acima descrita:

    Em sede de mandado de injuno, toda e qualquer deciso que venha aregulamentar o caso concreto h de considerar, necessariamente, os argumentostrazidos ao processo pelas partes. Nesse sentido, a soluo do caso concretono se d de modo solipsista, por um juiz afastado da realidade do caso eimerso nos limites de sua conscincia, mas encontra sentido na consideraodos argumentos trazidos ao processo, que contribuem determinantemente paraa formao da resposta correta para aquela situao especca. Isso se aplica,

    por bvio, tanto em demandas individuais quanto em demandas coletivas.

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    Por outro lado, qualquer tipo de norma que venha a ser, eventualmente,criada para regulamentao do direito ao lazer h de considerar um processodeliberativo democrtico, protagonizado pela participao dos cidados, de

    tal forma que a norma atenda aos anseios da comunidade e seja, dessa forma,legtima. Portanto, tambm fora do processo judicial haver de ser respeitadoo discurso, na tentativa de construo de normas que viabilizem o exerccio dodireito ao lazer.

    Essa intersubjetividade, alis, interfere tambm na tomada autnoma dedecises pelos cidados, os quais, em uma dada situao, resolvem escolher

    pelo livro bola, ou pela bola ao skate. Essa deciso, aparentemente individual,necessariamente tomada por um indivduo inserido em um mundo da vidaintersubjetivamente compartilhado, o qual, inegavelmente, inuencia na suatomada de decises(DUARTE; RIBEIRO, 2008, p. 24).

    O que se defende, portanto, no a imprescindibilidade de que todas as diversas possibilidadesconteudsticas vericveis a partir da norma que dene o direito ao lazer, necessariamente,recebam o assentimento de todos os cidados que integram a comunidade jurdica, em todos

    os momentos em que o lazer venha a ser invocado. Um consenso nesse sentido impossvel emsociedades plurais31como a atual. O que se est a propor que qualquer tipo de norma quevenha a ser, eventualmente, criada para regulamentao do direito ao lazer, impregnando-o deuma srie de dimenses conteudsticas as quais, repita-se, no se encerram no texto da norma ,

    h de considerar um processo deliberativo democrtico, protagonizado pela participao doscidados, de tal forma que a norma atenda aos anseios da comunidade e seja, dessa forma,legtima. Em outra parte do artigo supracitado, chegou-se a defender o seguinte:

    (...) as eventuais normas elaboradas pelo Poder Legislativo com o intuitode regulamentar o direito ao lazer, ao contrrio do que possa parecer ato momento, no devem estar relacionadas com uma determinada espcie delazer, cuja innidade uma caracterstica marcante, porquanto, nesse caso,estar-se-ia criando uma srie de estatutosregulamentadores do lazer, tal comoo Estatuto do Torcedor, descrito pela Lei n. 10.761/2003. Ao contrrio, o que oPoder Legislativo deveria fazer para, ecazmente, regulamentar o direito aolazer seria criar leis que, em primeiro lugar, estivessem contextualizadas com

    os anseios da comunidade em relao ao lazer. Para isso, essas leis deveriam,necessariamente, ser discutidas com a comunidade, a m de que fosserespeitado um processo democrtico de formao da vontade (caracterizado

    pelo discurso), que garantiria um assentimento intersubjetivo, de forma queos cidados (entendidos como coassociados livres e iguais perante o direito)

    pudessem ser considerados, ao nal, como os seus prprios formadores.Essas normas, intimamente vinculadas a uma generalidade de anseios dacomunidade em relao ao direito ao lazer, tenderiam a criar centros de

    31Segundo lvaro Ricardo, em sociedades profanizadas com as atuais (...)os projetos pessoais e as concepes do que seja vidaboa so as mais distintas em termos de religio, tica, economia, opo sexual etc.(CRUZ, 2007, p. 279), o que torna impossvel adenio de um ethos jurdico dominante capaz de fornecer quais seriam os valores igualmente dominantes para ns de aplicaodo Direito.

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    entretenimento (nas escolas, bairros, vilas, guetos, favelas etc.), onde essesanseios viessem a ser efetivamente postos em prtica (sua criao seria decompetncia do Municpio, uma vez que a regulamentao do exerccio do

    direito ao lazer representaria, a priori, uma questo de interesse local art.30, I, CR/88); ou, ainda, caracterizar-se-iam pela criao de formas de acessoa reas eventualmente existentes, embaraadas, por exemplo, pelo exercciodo direito propriedade privada (como, por exemplo, criando servides detrnsito a m de possibilitar o acesso de turistas a cachoeiras localizadas emcidades histricas, ou praias, cravadas em propriedades privadas, tendo emvista serem os rios, mares, praias etc., bens de uso comum do povo (art. 99, I,CC/2002),(DUARTE; RIBEIRO, 2008, p. 440).

    O problema que essa proposta, a despeito de considerar a imprescindibilidade da participaointersubjetiva na construo das diversas formas de implementao do lazer, no levou em

    conta a possibilidade de horizontalizao desse direito. Alm disso, ela olvidou a importnciade uma articulao entre os trs entes da Federao na busca pela concretizao de direitosfundamentais.32 E, aqui, cabe inserir uma advertncia: aps o giro lingustico-pragmticotornou-se patente que toda e qualquer tentativa de predenio do contedo de um direitofora da anlise de um caso especco est fadada ao reducionismo e, consequentemente, aoinsucesso.33 Isso porque, como se sabe, toda e qualquer atribuio de signicado h de serprocedida in concreto, sempre intersubjetivamente, seja dentro de um procedimento realizadoem contraditrio, respeitadas as garantias constitucionais do processo, seja fora do processo,dentro de um pano de fundo intersubjetivamente compartilhado, que constitui e, ao mesmo

    tempo, localiza os cidados na sociedade. No que os discursos de fundamentao sejamdespidos de contedo. A questo que a sua extenso total s pode ser depreendida a partirda interpretao do texto da norma, ou seja, da construo do sentido da norma, que seopera a partir do texto,34mas s se desvela a partir de uma fuso de horizontes que se produzentre o intrprete e o texto. Isso torna evidente a decincia da tentativa de predenir olazer como mero direito social, seja porque essa concepo encontra-se ainda aferrada a umaclassicao meramente histrica desse direito fundamental, seja porque se pauta em umaleitura puramente semntica da Constituio de 1988, seja porque pretende encerrar no textoda norma todas as suas possibilidades de extenso ou contedo.

    A bem da verdade, a distino entre direitos individuais, coletivos, sociais e difusos, luz doparadigma democrtico, s vlida se pautada no processo argumentativo de aplicao dasnormas que os consagram (CATTONI, 2002, p. 110-111). Isso signica um avano considervel

    32Acerca do tema, vide reportagem intitulada O futuro dos direitos sociais, publicada pela UNB-Siindjus DF, em outubro de 2008,no caderno/jornal Constituio e Democracia.

    33Uma questo relacionada ao direito ao lazer de decientes fsicos, que a princpio parece de interesse local, pode perfeitamentepassar a ser de competncia comum da Unio, Estados, Municpios e Distrito Federal em vista da adequao da norma s especi-cidades de um caso concreto. Como exemplo, tem-se o caso hipottico em que o lazer dos decientes tido como uma forma decombate marginalizao e promoo de integrao social (art. 23, inciso X, da CR/88).

    34Segundo vila, a matria bruta utilizada pelo intrprete o texto normativo ou dispositivo constitui uma mera possibilidadede Direito. A transformao dos textos normativos em normas jurdicas depende da construo de contedo de sentido pelo pr-prio intrprete (2003, p. 24). Esse tambm o entendimento de Souza Cruz (2006b, p. 88).

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    89Doutrina

    visto que abre ao direito ao lazer um sem-nmero de possibilidades de extenso e contedo,as quais so denidas a posteriori, de acordo com os argumentos traados em vista dasespecicidades de um determinado caso.

    (...) Se partirmos de uma concepo procedimentalista do Direito, em quequalquer proposio jurdica fruto de interpretao, sob o pano de fundo devises paradigmticas concorrentes, no se pode predenir o contedoou aextenso totalde um dispositivo normativo, que ganha sentido em cada novocaso concreto, predeterminando-se materialmente a argumentao jurdica. necessrio, mais uma vez, romper com uma teoria material do Direito edos direitos que estabelece um modelo padro, xo, para sua efetivao, atmesmo porque a dinmica de uma sociedade democrtica e pluralista no secoaduna com vises privilegiadas e excessivamente concretas do que seja vida,liberdade, igualdade, segurana, trabalho ou at mesmo dignidade humana

    (CATTONI, 2002, p. 112).

    Assim que, num determinado contexto, o lazer poder ser considerado como um direitoindividual de assistir a um lme ou a uma pea teatral, de praticar esportes, ou, ainda, de ler um

    livro, caso seja invocado individualmente e assim argumente aquele que pleiteia a adequaoda norma ao fato. Por outro lado, poder ser tido como direito individual homogneo de fazeruma viagem sem custo na passagem, caso o pedido se funda, em vista das circunstncias do casoconcreto, no art. 40 da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso).35Pode, ainda, ser tido como odireito difuso dos portadores de decincia visual instalao/implantao em parques ou em

    centros de entretenimento de atrativos que lhes atendam o anseio pelo exerccio do lazer.

    36

    Ademais, pode ser compreendido como direito social dos cidados que integram a comunidadebrasileira, como, por exemplo, aqueles que trabalham e recebem como contraprestao darelao empregatcia apenas um salrio mnimo, o qual, nos termos do art. 7, inciso IV,

    da Constituio da Repblica de 1988, deve ser capaz de atender a suas necessidades vitaisbsicas e s de sua famlia com moradia, alimentao, educao, sade, lazer, vesturio,higiene, transporte e previdncia social (grifo acrescido). Isso demonstra, entre outras coisas,que, se o lazer fosse predeterminado como o direito social prtica desportiva do futebol, o

    resultado disso no seria apenas a reduo drstica do contedo desse direito, mas, sobretudo,a deslegitimao de uma possvel escolha individual, por exemplo, do livro ou da guitarra

    em detrimento da bola, quando se estivesse falando de lazer. Em outras palavras, estar-se-iaimpossibilitando que, argumentativamente, e de acordo com as especicidades de um caso, os

    cidados construssem a sua prpria concepo acerca do lazer (respeitadas, evidentemente,as limitaes textuais). Da o porqu de o Direito no poder ser tratado de uma forma gradual

    35Art. 40.No sistema de transporte coletivo interestadual observar-se-, nos termos da legislao especca: I a reserva de duasvagas gratuitas por veculo para idosos com renda igual ou inferior a dois salrios-mnimos; II desconto de 50%, no mnimo, novalor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitas, com renda igual ou inferior a dois salrios-mnimos. Paraefeito da Lei n. 10.741/2003, considera-se idoso aquele que possui idade igual ou superior a 60 anos (art. 1, caput).

    36Acerca do tema, ver artigo intitulado O Direito ao Lazer do Deciente Visual em reas Naturais Pblicas e Unidades de Conser-vao, disponvel em: , acesso em 14 abr. 07 e, ainda, as consideraes de Duarte eRibeiro (2008, p. 24) acerca da possibilidade de impetrao de mandado de injuno como meio de soluo do problema.

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    pelos tribunais, sob pena de se proclamar o que seja o direito-para-o-juiz. Da o porqu de asdecises judidicais no prescindirem da participao ativa das partes para sua formao.37Dao porqu de sobuma perspectiva democrtica, ser impossvel Administrao Pblica criar,

    legitimamente, polticas pblicas voltadas implementao do direito ao lazer sem considerara participao dos cidados na sua construo.38

    , portanto, a argumentao desenvolvida por aquele(s) que pleiteia(m) o exerccio do direito aolazer, necessariamente voltada adequao da norma s especicidades fticas que circundamo caso real, que ser determinante para a qualicao, a posteriori, da natureza e extensototal desse direito fundamental. tambm no caso especco que sero denidas a dimenso

    positiva ou negativa do direito ao lazer, bem como a extenso de sua eccia, se horizontal ouvertical. Expliquem-se melhor essas ltimas assertivas.

    Ao contrrio do que se defendia h pouco tempo, todos os direitos39fundamentais40possuem umaface positiva e outra negativa. Aquela, demanda um agir por parte do Estado e/ou particulares,estes ltimos no caso de horizontalizao do direito fundamental ao lazer. Esta, demanda do

    Estado e/ou particulares apenas uma absteno para ser efetivada. No h como defender,portanto, que alguns direitos, por demandarem do Estado um agir muitas vezes dispendioso,possuem aplicao diferida, sendo realizveis apenas nos limites da reserva do possvel. Essaarmao no pretende negar a realidade, ressaltada por Amaral (2001), de que a escassez

    inexorvel, repercutindo diretamente, e no de forma meramente aparente,41na efetivao

    de direitos fundamentais. O que se pretende ressaltar, e essa a novidade, que o argumento

    utilizado contra os direitos sociais tambm se aplica aos demais direitos fundamentais. Noh como distinguir direitos com base no critrio da dimenso positiva e/ou negativa. No casodo lazer, por exemplo, se por um lado o Estado deve abster-se de determinar, principalmente

    a priori, o que seja ou no o lazer para o cidado (ou conjunto de cidados), por outro, deveproporcionar-lhe condies para o exerccio efetivo desse direito. certo que h um controle

    37Defende-se, aqui, a possibilidade de as partes contriburem, no curso do processo, para a formao da sentena. Isso porque,sob o paradigma democrtico, a soluo do caso concreto no se d de modo solipsista, por um juiz afastado da realidade do casoe imerso nos limites de sua conscincia. Ao contrrio, encontra sentido na considerao dos argumentos trazidos ao processo, quecontribuem para a formao da resposta correta para aquela situao especca, tendo em vista que auxiliam a busca pela normamais adequada aos fatos (CORDEIRO LEAL, 2002).

    38Essa armao ser melhor explicada no tpico 3 do presente trabalho.

    39Em The cost of rigths: why liberty depends on taxes, Stephen Holmes e Cass R. Sunstein desenvolvem a tese, bastante convin-cente por sinal, de que tambm as liberdades sob a proteo do Bill of Rigths (direitos liberais clssicos individuais e polticos)demandariam, para sua existncia, tanto uma absteno (refrain), quanto um agir (an act) do Estado. Esse livro rompeu com aclssica distino entre os direitos em liberdades negativas e direitos positivos. Para mais detalhes, vide (HOLMES; SUSTEIN, 1999,p. 35-48, Chapter one All rights are positive).

    40Nas palavras de Bonavides, os direitos sociais, por sua natureza, demandariam, prestaes materiais nem sempre resgatveispor exiguidade, carncia ou limitao essencial de meios e recursos (2007, p. 564). J os direitos individuais e polticos, segundoFerreira Filho, correspodem [riam]a um dever de absteno, de no interferir por parte do Estado, [no reclamando, pois,]demodo geral, qualquer ao positiva por parte [deste](2003, p. 246). Apenas para esclarecer, assume-se como verdadeira, nesteartigo, a concepo de Souza Cruz no sentido de que a classicao dos Direitos Fundamentais meramente acadmica, (...)[sua]ciso (...) fora da argumentao metafsica (2007, p. 187).

    41E nesse ponto, concorda-se com Carvalho Netto no sentido de que um dos grandes desaos postos na atualidade sabermos quese, por um lado, os direitos fundamentais promovem a incluso social, por outro e a um s tempo, produzem excluses funda-mentais. A qualquer armao de direitos corresponde uma delimitao, ou seja, corresponde ao fechamento do corpo daquelestitulados a esses direitos, demarcao do campo invisvel dos excludos de tais direitos (2003, p. 145).

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    por parte do Estado, porquanto a construo do sentido da norma que dene o direito ao lazerexige o reconhecimento dos limites do texto constitucional, de sua supremacia, bem como desua coerncia sistmica.42No entanto, se um indivduo entender que descansar aos domingos

    representa substantivamente, dentro do mundo da vida no qual est inserido, o gozo efetivodo direito ao lazer, desde que, para isso, no viole os direitos de outros cidados, desejvelque o Estado apenas permita que ele assim proceda. o que ocorre tambm no mbito dasrelaes privadas. Se, por exemplo, um particular rma um contrato (sem vcios) com umaacademia, certo que o lazer, por gurar inclusive como um dos objetos do negcio jurdico

    (ainda que no expresso), vincula a parte contratada no mbito daquilo que foi acordado.Nesse caso, a menos que a academia, no contexto da prestao dos servios contratados, violeoutros direitos fundamentais, no h que se falar em interferncia alguma (a no ser no sentidode scalizao) por parte do Estado. Portanto, no pode a reserva do possvel ser sempre a

    justicativa automtica para a no efetivao do exerccio do direito ao lazer, mesmo porque,enquanto condio e consequncia do exerccio de uma cidadania ativa e efetiva, ele contribuidiretamente para a construo de uma noo de cidadania prpria ao paradigma do EstadoDemocrtico de Direito. Resta, pois, em vista disso, saber como superar a escassez no plano

    pragmtico, e como, anal de contas, o lazer pode contribuir para a construo dessa nooto desenvolvida de cidadania. o que adiante ser discutido.

    3 Uma proposta para a superao da escassez e do meroassistencialismo no tocante ao lazer

    Feitas as consideraes anteriores, falta esclarecer como a Administrao Pblica deve seportar para decidir corretamente as questes afetas implementao do direito ao lazer,num contexto de escassez de recursos e reuxo43participativo. Alm disso, falta justicar porque essa releitura do direito ao lazer contribui para a construo de uma noo de cidadania

    adequada ao paradigma democrtico, expresso pela Constituio da Repblica de 1988.

    Em primeiro lugar, ainda que se defenda uma concepo dialgica de atuao da AdministraoPblica,44 sobretudo no que toca criao e implementao de polticas pblicas, 45 entre

    42

    Nas palavras de Pereira (2001), a Constituio o locushermenutico no Direito. Vale ressaltar que a compreenso de razoabi-lidade, no presente trabalho, est ligada exatamente garantia de coerncia lgica e interna do sistema jurdico. Nesse sentido,ver (SOUZA CRUZ, 2007, p. 361).

    43O termo reuxo foi criado por Norberto Bobbio para designar uma categoria de eventos que inclui trs fenmenos particulares: oafastamento da poltica, a renncia poltica e a recusa da poltica (PEREIRA, 2008, p. 137). Segundo Pereira, a face mais concretadesse reuxo o abstencionismo, o qual se caracteriza por uma profunda apatia e desinteresse pela poltica por parte de largossetores da sociedade (2008, p. 139).

    44Essa a concepo adotada neste trabalho. Para mais detalhes, conra-se (DUARTE, 2008, p. 3323-3328. Disponvel em: ).

    45Nas palavras de Dallari Bucci, as polticas so instrumentos de ao dos governos o government by policiesque desenvolve eaprimora o government by Law (2006, p. 252).Em suas palavras, uma poltica s pblica quando contempla interesses igualmentepblicos, isto , da coletividade. As polticas pblicas, a seu ver, devem ser a expresso de um processo pblico, no sentido deabertura participao de todos os interessados, diretos e indiretos, para manifestao clara e transparente das posies em jogo(DALLARI BUCCI, 2006, p. 269). Essa perspectiva j se afasta da concepo inicialmente cunhada para o termo luz do paradigmasocial. luz do paradigma democrtico, polticas pblicas no so simplesmente planos, nem meramente programas. Elas so,

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    elas as voltadas efetivao do exerccio do direito em estudo, seria implausvel defender aobrigatoriedade de abertura de audincias pblicas todas as vezes em que o Estado se propusessea decidir questes afetas ao lazer. Alm de ser inexequvel e contrria prpria ideia de

    governabilidade, uma proposta como essa desconsidera uma questo de suma importncia, asaber,a constatao de que nem tudo poltica, ou seja, de que a vida humana no se resolveintegralmente no espao poltico, j que o homem comum, ausentes os grandes perodos deefervescncia poltica, refugia-se na sua vida privada(PEREIRA, 2008, p. 137).

    Quando se sustenta ser impossvel Administrao Pblica, sob uma perspectiva democrtica,criar legitimamente polticas pblicas voltadas implementao do direito ao lazer sem levar

    em conta a participao dos cidados, pretende-se enfatizar, em verdade, a importncia daexistncia, no mbito da esfera pblica, de canais de comunicao46que permitam a formao deconsensos acerca dos melhores meios de efetivar esse direito. A funo dessas arenas pblicas,que integram e constituem a esfera pblica, possibilitar a formao de opinies e consensosacerca do lazer e dos melhores meios de efetivar esse direito, e no, necessariamente, vincular

    a atuao administrativa. Essas opinies inuenciam, e devem obrigatoriamente ser levadasem conta pela Administrao Pblica, em vista da coerncia e da racionalidade dos argumentosque as balizam. No entanto, elas s sero vinculantes se forem institucionalizadas na formade leis. E isso mais que desejvel, porquanto transforma propostas de polticas pblicas (de

    governo) relativas ao lazer em polticas de Estado.47O grande problema, e a maior fonte de

    crticas teoria ora proposta, que se as opinies formadas dentro das diversas arenas decomunicao, incluindo as institucionalizadas pelo Poder Pblico (como o caso dos conselhos

    gestores), no vinculam o administrador pblico no concernente s polticas pblicas relativasao lazer, elas, em verdade, de nada representariam no plano pragmtico. Em outras palavras,

    elas informariam o administrador pblico, que, no entanto, continuaria a agir de acordo comsua discricionariedade, e o que pior, de forma assistencialista/clientelista. No bem assim.Se essas opinies de fato forem levadas em conta, o esforo argumentativo a ser despendido

    pelo administrador e pelo seu staffpara justicar uma poltica pblica outra que no aquela

    em verdade, formas de agir do Poder Pblico; os atos e tambm as omisses cuja realizao deve dar-se dentro dos parmetrosda legalidade e da constitucionalidade, o que implica que passem a ser reconhecidos pelo direito e a gerar efeitos jurdicos(DALLARI BUCCI, 2006, p. 255). Elas no podem ser entendidas como pautas pblicas de vida boa impostas aos cidados por umaAdministrao Pblica garante de bens e servios. Sua legitimidade no pode ser extrada simplesmente de um agir intervencio-nista da Administrao Pblica, sob pena de resultar em mero assistencialismo, nem tampouco, advir puramente das imposiesprovenientes dos inuxos do mercado. Elas devem sua correio, e possibilidade mesma de, democraticamente, obrigar a condutahumana, ao assentimento intersubjetivo dos cidados, obtido atravs do discurso. Isso signica que, sob a gide do paradigmademocrtico, tanto na formulao, quanto na execuo de polticas pblicas, a Administrao Pblica h de estar aberta e atenta participao popular, de forma que, direta ou indiretamente, a autonomia privada participe na construo do interesse pblico,atribuindo-lhe legitimidade pelo assentimento.

    46Como j foi dito, esses canais de comunicao, que constituem a noo de esfera pblica desenvolvida por Habermas, no selimitam aos conselhos gestores, mas englobam toda uma gama de conselhos comunicativos, populares, fruns civis no governa-mentais, podendo se estender para dentro das faculdades, ou se expressar atravs da produo acadmica, ou, ainda, em sindi-catos e partidos polticos, Igrejas, instituies pias e assistenciais, public interest groupsformadoras do chamado terceiro setor,tais como as organizaes no governamentais, no trabalho da imprensa livre, nas diversas formas de expresso literria, artsticaou esttica difundidas pelos diversos mecanismos de comunicao de massa e at mesmo na comunicao difusa propiciada pelainternet(SOUZA CRUZ, 2006a, p. 117-118).

    47Ver Bucci (2006, p. 18-20) e, mais uma vez, reportagem O futuro dos direitos sociais, publicada pela UNB-Siindjus DF, em outubrode 2008, no caderno/jornal Constituio e Democracia.

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    que foi objeto de consenso no interior das arenas pblicas institucionalizadas ser muitomaior. E aqui vale uma ressalva. luz do paradigma democrtico, a atuao do administradorpblico sempre vinculada Constituio, cujo texto est recheado de partes que enaltecem a

    importncia da participao popular. Portanto, ainda que soe como mera retrica, a inunciadessas opinies consensuais acerca do direito ao lazer e dos melhores meios de efetiv-losob o agir do administrador muito grande, quase que igual fora exercida pela normaque se produz a partir do texto constitucional. O problema real, portanto, no est em se aparticipao vincula ou apenas direciona as decises do administrador pblico. O que de fato

    problemtico, e que acaba sendo escancarado por toda essa discusso, o reuxo democrtico-participativoque acomete a populao brasileira em geral.48Como resolver esse problema odilema que deve ser respondido.

    A bem da verdade, para solucionar o reuxo democrtico-participativo, e, por conseguinte, oproblema do assistencialismo inerente s polticas pblicas referentes ao direito ao lazer, serianecessrio, e isso que se prope aqui, investir na interligao entre o direito ao lazer e os

    outros direitos fundamentais, de tal forma que as escolhas acerca do primeiro se mostrassempossveis nas mais diversas reas e momentos da vida. A primeira possibilidade aumentara carga horria nas escolas (educao infantil, ensino fundamental e ensino mdio), quepassariam a funcionar em perodo integral e, num esquema de revezamento, permitiriam o

    exerccio de atividades relacionadas ao lazer, tudo com base no critrio eletivo-argumentativoprotagonizado pelos alunos. As escolhas referentes ao lazer comeariam, portanto, na escola,ambiente que contribui para a construo de uma cultura poltica mais engajada.49As propostas

    de entretenimento, nesse caso, poderiam ser colhidas anualmente de arenas internas, tais comoos grmios estudantis. As reunies, voltadas para o engajamento de alunos de todas as idades

    num modelo de gesto educacional participativa, ainda permitiriam a discusso em torno dasmais diversas formas substantivas de exerccio do lazer. O investimento para ampliao dasescolas, com a construo de reas de entretenimento que possibilitassem uma adequao detal monta, deveria partir tanto do setor pblico quanto do privado. Isso signica que tambm

    as escolas particulares deveriam participar, obrigatoriamente, da implementao de umapoltica pblica de Estado50 como essa. A segunda possibilidade tambm se funda em umaproposta de correlao entre os direitos fundamentais, desta feita, entre o lazer e o trabalho.

    Trata-se do incentivo a que, no mbito das relaes de emprego, comecem a surgir programas

    48 Segundo Pereira, razoavelmente difcil traar o quadro preciso dos motivos que geram o desinteresse crescente pela poltica,eis que variam conforme referncias temticas, espaciais e temporais, mas a constatao pode ser tomada em seu sentido objeti-vo, isto , a absteno traduz tambm a incapacidade, segundo distintos graus de intensidade, da congurao atual dos regimesdemocrticos de estimularem o envolvimento pblico dos indivduos, a participao poltica dos cidados (2008, p. 139).

    49Entende-se, aqui, que uma cultura poltica que venha em apoio do cidado, direcionando-o para a participao, importantepara o desenvolvimento de uma poltica deliberativa. Contudo, essa cultura pode ser desenvolvida por meio da institucionalizaode procedimentos como o que ora se prope, e que, necessariamente, precisa passar pelo crivo discursivo-deliberativo. Para de-talhes acerca da evoluo do entendimento de Habermas acerca do tema, sugere-se a leitura de (HABERMAS, 1990, p. 111; 2002,p. 280) e (SOUZA CRUZ, 2006b, p. 91-92).

    50Observe-se o que diz o art. 205 da Constituio da Repblica de 1988:A educao, direito de todos e dever do Estado e da fam-lia, ser promovida e incentivada com a colaborao da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo parao exerccio da cidadania e sua qualicao para o trabalho.

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    que integrem trabalho e qualidade de vida. Aqui, mediante uma poltica de incentivo scal, 51o Estado buscaria incentivar os mais diversos setores empresariais a investir em programasligados ao exerccio do lazer. A diferena dessa proposta a obrigatoriedade (a ela inerente) de

    participao dos afetados pela aludida poltica de incentivo. Essa participao dar-se-ia por meiodos sindicatos, bem como mediante a adeso dos empregados interessados. da que emergiriamas propostas substantivas (o qu) e materiais (como) relativas implementao do direito ao lazernessa rea.52Essa proposta tambm busca incutir no trabalhador e nos empresrios uma culturademocrtico-participativa. A terceira proposta voltada aos cidados da terceira idade. Ela sebaseia na interligao entre possveis dimenses substantivas do direito de ir e vir, do direito

    cultura e do direito ao lazer. Sua concretude est exatamente na ampliao de polticas pblicasque j existem, tais como a gratuidade de passagem em transportes coletivos e a meia-entradaem centros de entretenimento (espetculos desportivos, cinemas, teatros etc.). evidente

    que as propostas j descritas necessariamente devem passar pelo crivo discursivo-deliberativo,protagonizado pelos cidados por elas afetados, a m de que se aperfeioem em densidade decontedo e ultrapassem o carter meramente assistencialista, assumindo um vis democrtico.

    A tese desenvolvida neste trabalho busca solucionar o problema da escassez de recursoseconmicos mediante as possibilidades de horizontalizao do direito ao lazer e a intensicao de

    polticas pblicas que correlacionem dimenses substantivas dos diversos direitos fundamentais,as quais s so legtimas se construdas atravs da participao discursiva.53Alis, exatamente

    51Algo parecido, mas muito mais participativo, e sem a limitao substancial desvelada pelo texto do art. 1, da Lei n. 11.438/2006

    (Lei de Incentivo ao Esporte). Nos termos desse artigo, a partir do ano-calendrio de 2007 e at o ano-calendrio de 2015, in-clusive, podero ser deduzidos do imposto de renda devido, apurado na Declarao de Ajuste Anual pelas pessoas fsicas ou emcada perodo de apurao, trimestral ou anual, pela pessoa jurdica tributada com base no lucro real os valores despendidos attulo de patrocnio ou doao, no apoio direto a projetos desportivos e paradesportivos previamente aprovados pelo Ministriodo Esporte.

    52Algo parecido vem sendo protagonizado pela sociedade empresria Sul Amrica Seguros/ING, na cidade de Belo Horizonte/MG. Apoltica uma forma de benefcio aos funcionrios da empresa. S internamente h informaes acerca da poltica.

    53Conra-se, nesse sentido, o resultado de algumas decises comunitrias das cidades de Porto Alegre (RS) 1, Rio de Janeiro (RJ) 2 e Belo Horizonte(MG) 3, que, ao mesmo tempo em que demonstram claramente o anseio da populao brasileira pelo direitoao lazer, desvelam opinies claras acerca de como, onde e porque as polticas pblicas municipais, destinadas implementaodesse direito, devem ser realizadas:

    1 reas de Lazer SMAM. Podero ser demandados: urbanizao total, ou reformas de praas; recuperao de recantos em par-ques; implantao de equipamentos de lazer; esporte (canchas de bochas, pistas de skateetc.) e recreao em parques e praasadministrados pela SMAM. O atendimento de implantao de equipamentos de esporte (canchas de bochas, pistas de skateetc.) erecreao em reas da SMAM ca condicionado anlise das dimenses da rea, sua topograa e da presena de equipamentos ououtro obstculo fsico. No sero atendidas demandas em reas particulares, estaduais e federais;

    Prioridades Temticas das Regies

    As obras, aes e servios da Prefeitura Municipal abrangem 13 grandes temas. Estas so as prioridades temticas do OramentoParticipativo. A populao estabelece uma ordem de prioridade para os investimentos anuais de acordo com estes temas e tambmclassica suas demandas nestas prioridades.

    REAS DE LAZER (SMAM)

    a) Urbanizao ou reforma de praas e parques nas reas administradas pela SMAM;

    b) Recantos infantis nas reas administradas pela SMAM.

    ESPORTE E LAZER (SME)

    a) Campos de futebol nas reas pblicas municipais;

    b) Equipamentos esportivos nas reas pblicas municipais;

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    essa participao, voltada para a formao de consensos com base nos melhores argumentos,que possibilita a superao tambm do esprito estratgico de pessoas oportunistas.54

    O mais importante, no entanto, que, se de fato o direito ao lazer agura-se como condioe consequncia do exerccio de uma cidadania ativa e efetiva, o que j foi devidamentedemonstrado, no h como negar a sua relevncia para a formao de uma noo de cidadaniaadequada ao paradigma democrtico. Isso porque, sob a tica democrtica, cidado no maisaquele que recebe passivamente as benesses de um Estado clientelista, tais como pautas devida boa, denidas a partir de um critrio de convenincia do administrador pblico. O cidado, luz do paradigma democrtico, aquele que participa da construo das normas que voreger o seu convvio social. por isso que a releitura que se props acerca do direito ao lazercontribui para a construo de uma noo de cidadania equivalente quela expressa como umdos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil. E exatamente em virtude disso que esse

    direito h de ser garantido ainda que num patamar que represente o mnimo existencial,55o qual deve ser xado dentro de uma lgica de reciprocidade, no mbito dos discursos defundamentao. Isso levar o direito ao lazer verdadeiramente a srio.

    Consideraes nais

    Diante de tudo o que foi delineado, resta devidamente comprovado que o direito ao lazer, luz do paradigma democrtico, agura-se como direito fundamental imprescindvel para aformao de cidados ativos e efetivos na sociedade brasileira, devendo, exatamente por isso,

    ser levado a srio em toda a sua amplitude conteudstica.Para que isso fosse possvel, foi necessrio explorar algumas abordagens desenvolvidas

    c) Equipamentos de lazer nas reas pblicas municipais;

    d) Reforma e Ampliao dos Centros Comunitrios. (Disponvel no site da Prefeitura de Porto Alegre. ). Acesso em: 11 fev. 2007.

    2 Plano Estratgico II Resultados Planos Estratgicos Regionais Bangu Oramento Participativo OP2004.

    Concluso das obras da biblioteca popular de Bangu e criao de bibliotecas (digitais e pblicas, com no mnimo 10 mil ttulos) naregio. Criao de reas de esporte e lazer nas praas da regio (pista de skate, brinquedos, ciclovias, quadras): Praa Abrolhosem Padre Miguel, Praa Charruas em Realengo, entre outras. Utilizao da rea externa da fbrica de cartuchos do exrcito pararea de lazer na extenso das ruas Oliveira Braga e Gal. Raposo at a Rua Gal. Azeredo. (Disponvel em: ). Acesso em: 11 fev. 07.

    3 Lixo vira quadra de esportes com obras do Oramento Participativo.

    A comunidade da Vila Leonina, regio Oeste de Belo Horizonte, ganhou um espao de esportes e lazer. Onde antes, de acordo comos moradores da regio, era um lixo, no ltimo dia 10/11 a Prefeitura de Belo Horizonte e a Regional Oeste inauguraram a Praa doEnsino, obra aprovada no Oramento Participativo 2003/2004. Com custo total de R$316.847,47, houve a construo de uma reade lazer complayground, rea com equipamento para ginstica, uma quadra poliesportiva e uma de vlei, alm da arquibancada.A iluminao da praa, urbanizao e via de acesso ao local tambm foram adequadas.

    54Pessoas que, valendo-se do texto da Constituio que dene o lazer entre os direitos fundamentais, camuam meros caprichosem alegaes de dever do Estado em proporcionar-lhes acesso ao lazer, fantasiando normas impregnadas de uma dimenso subs-tantiva que, em verdade, extrapolam em muito as possibilidades semnticas do texto e a coerncia sistmica do ordenamentonormativo constitucional.

    55Por mnimo existencial entende-se, com Barcelos, ser exatamente o conjunto de circunstncias materiais mnimas a que todo ohomem tem direito, o ncleo irredutvel da dignidade da pessoa humana. Aludido conceito deve ser desconectado da lei da colisoe de tcnicas de argumentao axiolgicas. Deve, portanto, levar em conta uma conotao de posio equitativa de oportunida-des partindo-se da garantia de um conjunto bsico de atendimento das necessidades do indivduo(SOUZA CRUZ, 2007, p. 365).

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    96 Doutrina

    no Brasil acerca do direito ao lazer, desvelando-lhes suas inadequaes ao paradigma doEstado Democrtico de Direito, bem como suas falhas decorrentes da desconsiderao dosganhos trazidos pela reviravolta lingustico-pragmtica. Demonstrou-se, nesse sentido, que o

    principal problema das abordagens analisadas estava na tentativa de delimitao do contedosubstantivo do lazer a prioride uma prtica discursivo-deliberativa protagonizada pelos cidadosdestinatrios desse direito.

    Feito isso, props-se uma nova leitura em relao ao direito ao lazer, fundada no em umconceito acerca do que, substantivamente, esse direito representa, mas, ao contrrio, na sua

    importncia como direito fundamental que, concomitantemente, condio e consequnciade discursos argumentativo-deliberativos. Nessa parte, ressaltou-se, ainda, que enquantodireito fundamental o lazer possui um carter deontolgico, sendo, inclusive, passvel dehorizontalizao. Demonstrou-se, tambm, que, assim como os demais direitos fundamentais,

    o lazer possui duas dimenses, uma positiva (que demanda um agir por parte do Estado e/ou particulares) e outra negativa (que demanda uma absteno por parte do Estado e/ou particulares), as quais variam de acordo com os casos especcos em que esse direito invocado. Em seguida, esclareceu-se que o lazer s desvela as suas dimenses conteudsticas

    ps-discurso, sempre no mbito de uma situao real/vivenciada.

    Na parte nal, esclareceu-se como a Administrao Pblica deveria se portar para decidircorretamente as questes afetas implementao do direito ao lazer num contexto de escassezde recursos e reuxo participativo para, enm, justicar o porqu de a releitura proposta

    contribuir para a construo de uma noo de cidadania adequada ao paradigma democrtico,expresso pela Constituio da Repblica de 1988.

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  • 7/26/2019 Levando o Direito Ao Lazer a Srio

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    REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAISoutubro | novembro | dezembro 2009 | v. 73 n. 4 ano XXVII

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