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A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA EM MINAS GERAIS (1960-2005) TAVARES, Adriana Gomes – UFMG Os livros didáticos exercem um importante papel no ensino-aprendizagem de história, facilitando a compreensão dos alunos nos conteúdos curriculares. A linguagem utilizada, as fontes históricas como documentos escritos e iconográficos e os recursos didáticos empregados, variam de acordo com a série que se destina, desta forma, auxiliam o professor nas temáticas abordadas em sala de aula. Os livros didáticos variam de acordo com as mudanças ocorridas na sociedade, as reformas curriculares do sistema educacional brasileiro, as mudanças sociais, econômicas e políticas, e o próprio desenvolvimento nas pesquisas históricas são fatores que trazem variações e atualização nos conteúdos das temáticas destes livros. Analisamos como os livros didáticos de editoras mineiras (editora do Brasil em Minas Gerais, editora Lê, editora Dimensão) abordam questões referentes à temática cultura e história da África e do negro no Brasil. Nosso recorte temporal se estende da década de 60 até as últimas publicações feitas por editoras de livros didáticos em Minas Gerais (2005). A análise destas obras não contempla uma série específica do ensino fundamental ou médio, procuramos focar exclusivamente os conteúdos dos textos presentes nos livros didáticos de história. A análise crítica destas leituras mostra como diversos autores em diferentes épocas descreviam a tradição e história da África. Mostramos como o negro era apresentado como um dos elementos integrantes na formação do povo brasileiro. Dentre estes autores podemos destacar: MONTANDON (1962); GOMES (1975 e 1979); FARIA (1988); FIGUEIREDO (1998); ALVES e BELISÁRIO (2001); ANASTASIA e PAIVA (2005), dentre outros. Outro ponto importante deste trabalho é a análise dos livros didáticos que foram impressos em Minas Gerais após a lei 10639/03. Esta lei estabelece as diretrizes básicas para incluir, no currículo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade da temática História da África e cultura afro-brasileira. Deste modo, fizemos uma comparação com os livros didáticos das décadas anteriores, procurando mostrar como atualmente está sendo abordada nos livros a temática História da África e dos Africanos, quais foram as mudanças e permanência ocorridas desde a década de sessenta e descrevemos como as concepções historiográficas foram sendo transformadas de acordo com a época em que os livros foram adotados. Concluímos que a linguagem utilizada nos livros didáticos mudou substancialmente ao longo deste período, transformando e delineando outras interpretações e concepções no que diz respeito à cultura e história da África.

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  • A REPRESENTAO DO NEGRO NOS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA EM MINAS GERAIS (1960-2005)

    TAVARES, Adriana Gomes UFMG

    Os livros didticos exercem um importante papel no ensino-aprendizagem de histria, facilitando a compreenso dos alunos nos contedos curriculares. A linguagem utilizada, as fontes histricas como documentos escritos e iconogrficos e os recursos didticos empregados, variam de acordo com a srie que se destina, desta forma, auxiliam o professor nas temticas abordadas em sala de aula. Os livros didticos variam de acordo com as mudanas ocorridas na sociedade, as reformas curriculares do sistema educacional brasileiro, as mudanas sociais, econmicas e polticas, e o prprio desenvolvimento nas pesquisas histricas so fatores que trazem variaes e atualizao nos contedos das temticas destes livros. Analisamos como os livros didticos de editoras mineiras (editora do Brasil em Minas Gerais, editora L, editora Dimenso) abordam questes referentes temtica cultura e histria da frica e do negro no Brasil. Nosso recorte temporal se estende da dcada de 60 at as ltimas publicaes feitas por editoras de livros didticos em Minas Gerais (2005). A anlise destas obras no contempla uma srie especfica do ensino fundamental ou mdio, procuramos focar exclusivamente os contedos dos textos presentes nos livros didticos de histria. A anlise crtica destas leituras mostra como diversos autores em diferentes pocas descreviam a tradio e histria da frica. Mostramos como o negro era apresentado como um dos elementos integrantes na formao do povo brasileiro. Dentre estes autores podemos destacar: MONTANDON (1962); GOMES (1975 e 1979); FARIA (1988); FIGUEIREDO (1998); ALVES e BELISRIO (2001); ANASTASIA e PAIVA (2005), dentre outros. Outro ponto importante deste trabalho a anlise dos livros didticos que foram impressos em Minas Gerais aps a lei 10639/03. Esta lei estabelece as diretrizes bsicas para incluir, no currculo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria da frica e cultura afro-brasileira. Deste modo, fizemos uma comparao com os livros didticos das dcadas anteriores, procurando mostrar como atualmente est sendo abordada nos livros a temtica Histria da frica e dos Africanos, quais foram as mudanas e permanncia ocorridas desde a dcada de sessenta e descrevemos como as concepes historiogrficas foram sendo transformadas de acordo com a poca em que os livros foram adotados. Conclumos que a linguagem utilizada nos livros didticos mudou substancialmente ao longo deste perodo, transformando e delineando outras interpretaes e concepes no que diz respeito cultura e histria da frica.

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    A REPRESENTAO DO NEGRO NOS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA EM MINAS GERAIS (1960-2005)

    TAVARES, Adriana Gomes UFMG

    APRESENTAO

    Este artigo pretende analisar o contedo de alguns livros didticos de histria editados em Minas Gerais, ao serem abordadas as temticas referentes cultura e histria da frica e do negro no Brasil; como eram representados os africanos, suas tradies, seu continente; e como o negro se integra na sociedade brasileira. Nosso recorte temporal se estende da dcada de 60 at as publicaes mais recentes feitas por editoras de livros didticos em Minas Gerais, (Editora do Brasil em Minas Gerais, Editora L, Editora Dimenso).

    A anlise crtica destas leituras mostra como diversos autores em diferentes pocas descreviam a tradio e histria da frica. Os livros que iremos analisar so: Vamos conhecer nossa histria?, na 5 edio, de Leonilda Montandon, Editora do Brasil em Minas Gerais (1962); Histria do Brasil, Editora L, Paulo Miranda Gomes e outros, (1975 em sua 2 edio e 1979 na 6 edio , respectivamente para os cursos do ensino mdio e para a 5 srie do ensino fundamental); Construindo a Histria. De Ricardo de Moura Faria e outros, 4 volume, Editora L, 1988; Construindo o Brasil, de Rejane Figueiredo, Editora L, 1998;: Nas trilhas da histria, Ktia Corra Alves e Regina Clia Belisrio, Editora Dimenso, (4 volumes, ensino fundamental), 2001 e Histrias, imagens & textos, de Carla Maria Anastasia e Eduardo Frana Paiva, Editora Dimenso (4 volumes, ensino fundamental), 2004.

    As obras no contemplam sries especficas dos ensinos fundamental e mdio, procuramos nesta anlise, focar exclusivamente o contedo dos textos destes livros didticos de histria, compreendendo como eram descritas as temticas africanas nas dcadas referentes sua publicao.

    Outro ponto importante deste trabalho a anlise dos livros didticos que foram impressos em Minas Gerais aps a lei 10639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-Brasileira, e estabeleceu as diretrizes bsicas para incluso desta temtica nos currculos oficiais das redes de ensino. Deste modo, fizemos uma comparao com os livros didticos das dcadas anteriores, procurando mostrar como atualmente esto sendo abordadas nos livros as temticas Histrias da frica e dos Africanos, quais foram as mudanas e

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    permanncias nas concepes historiogrficas, e como foram sendo transformadas pelos autores de acordo com a poca em que os livros foram escritos.

    OS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA

    Os livros didticos exercem um importante papel no ensino-aprendizagem de histria, facilitando a compreenso dos alunos do que prescrito nos contedos curriculares. A linguagem utilizada, as fontes histricas como documentos escritos e iconogrficos e os recursos didticos empregados, variam de acordo com a srie que se destina e, desta forma, auxiliam o professor nas temticas abordadas em sala de aula.

    Os primeiros livros didticos de histria no Brasil foram publicados em forma de compndios, em meados do sculo XIX, no Rio de Janeiro. Eram inspirados nos autores franceses e traziam em seu contedo temas ligados Histria Universal. Desta forma, estavam imbudos do pensamento europeu e cristo da poca. Estes manuais eram utilizados em escolas freqentadas pela elite local, e muitos destes alunos chegaram a estudar nas edies francesas destes livros.

    No final deste mesmo sculo tornou-se recorrente nestas publicaes o conceito europeu de civilizao. Lembremos que neste perodo o imperialismo europeu se expandia sobre a sia e a frica. Um aparato ideolgico que justificasse esta poltica tornou-se imprescindvel, pois enfatizava a misso de levar a civilizao aos povos brbaros e selvagens. Portanto, as publicaes deste perodo so fortemente influenciadas por este discurso, que tratava os povos dominados como inferiores e com indiferena, tratando-os como uma curiosidade teratolgica.

    Devemos lembrar que o contexto histrico em que estavam inseridos os primeiros autores de livros didticos a tratar desses temas influenciou sobremaneira seus atos e pensamentos e que, portanto, revelaram muitas vezes um racismo inconsciente, decorrente de uma concepo de mundo que acreditavam correta: ... evidente que um inconsciente racismo penetra nos textos escolares, mesmo quando a finalidade aparente da estria e da poesia a de apresentar criana a realidade de diferenas tnicas, atravs de uma compreenso e uma simpatia um pouco vagas... (ECO: 1980, 53).

    Na segunda metade do sc XIX, a disciplina histria do Brasil tornou-se independente da histria universal nos liceus do Rio de Janeiro, por isso, os livros editados a partir deste perodo tiveram um contedo mais especfico. Quem elaborava estes compndios eram os intelectuais do IHGB (Instituto Histrico e Geogrfico

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    Brasileiro), e estes manuais didticos propunham uma abordagem cronolgica da histria, incentivavam a memorizao dos fatos histricos e seguiam uma abordagem de teor positivista, em que eram exaltados os grandes personagens e os grandes feitos de nossa histria.

    Durante o sculo XX, algumas inovaes importantes ocorreram nos manuais didticos de histria, como novas unidades temticas, em que eram abordadas histrias ligadas ao cotidiano local e a insero mais rotineira e ilustraes mais elaboradas de cunho didtico. Estas publicaes tiveram tanto sucesso nos colgios do Brasil que foram reeditadas por vrias dcadas chegando at aos meados da dcada de 60.

    OS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA E A TEMTICA AFRICANA

    Mesmo com as inovaes metodolgicas e tericas que os livros de histria receberam neste perodo, atravs deles continuou-se propagando discursos preconceituosos e errneos no que diz respeito aos temas ligados histria da frica e dos africanos. Desta forma, precisamos considerar dois aspectos: o primeiro que reproduz um pensamento genrico que trata os negros e outros povos como uma raa inferiorizada, desprezando sua cultura e considerando-os como povos a-histricos. A outra diz respeito prpria histria do Brasil: a escravido dos africanos durou mais de 300 anos, e a liberdade dada posteriormente aos negros pode ser considerada somente uma liberdade jurdica, pois no houve uma integrao efetiva dos negros na sociedade.

    No seria possvel que os livros didticos de histria no fossem imbudos deste contexto, portanto, a utilizao de diversos livros com aspectos preconceituosos sobre a histria da frica e dos africanos continuou por longo tempo:

    ... Podemos dizer, ento, que o raciocnio no depende tanto de uma escolha ideolgica, quanto de uma carncia cultural. O uso preguioso e continuado de modelos ultrapassados leva, de texto para texto, atravs de uma longa cadeia de emprstimos e citaes, utilizao de uma matria que, no mnimo, precede a constituio das Naes Unidas... (ECO: 1980, 53)

    Esta afirmao evidencia-se ao analisarmos o livro de Leonilda Montandon, Vamos conhecer nossa histria?, na sua 5 edio, de 1962. O texto se inicia com

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    graves desacertos ao descrever os primeiros habitantes do Brasil, nos dizeres da autora: No podendo contar com os ndios para os trabalhos da lavoura, os portugueses lanaram mo de escravos vindos da frica os quais eram mais dceis e submissos que os ndios e muito mais resistentes." Os pretos vindos do continente africano, constituram o terceiro elemento para a formao do povo brasileiro. (MONTANDON: 1962, 31).

    O primeiro deslize do livro cometido ao narrar que os portugueses no puderam contar com o trabalho dos ndios para as lavouras, restando aos portugueses a opo de trazer os escravos vindos da frica, pois os africanos eram mais dceis e submissos que os ndios e muito mais resistentes. Desta forma, com um prvio e negativo juzo de valor, os negros so inseridos na histria do Brasil. A impresso que causa a leitura deste trecho que os africanos no possuam uma origem definida, apenas so originrios de um vasto continente, que os mesmos constituem um povo subordinado, dcil e pacato, (comparados aos ndios, que j eram considerados incapazes), e que eram muito mais resistentes ao exercer o trabalho na lavoura.

    Outro aspecto a ser analisado, a maneira de descrever a raa africana: Os pretos vindos do continente africano, constituram o terceiro elemento para a formao do povo brasileiro (p. 31). A autora continua: Da mestiagem dos europeus com os silvcolas surgiu o caboclo, tipo espalhado por todo o Brasil. Do cruzamento entre brancos e pretos, surgiu o mulato. Os caboclos, por sua vez, uniram-se aos ndios formando uma raa mais pura, a dos caribocas sem mescla de sangue africano.... (p.31)

    A autora deixa transparecer claramente que a mestiagem que envolve o sangue africano no pura. O preconceito neste trecho ntido.

    interessante pontuar que o livro de Leonilda Montandon destinado s crianas da 4 srie do ensino primrio. A leitura errnea de interpretaes pode trazer prejuzos formao dos alunos, deste modo tais interpretaes estariam promovendo a desigualdade, possibilitando formas de racismo e discriminaes de origem tnica, cultural e religiosa, de acordo com Eco (1980): ... preciso lembrar que a criana no l apenas esses trechos, mas l o livro todo e o l frase por frase e certas frases imprimem-se na sua mente com a nitidez das recordaes indelveis. E isto ns o sabemos muito bem por experincia prpria, pois tambm ns temos nossas recordaes dos dias da escola... (ECO: 1980, 17).

    No que diz respeito abolio da escravatura a autora escreve: Um dos fatos mais importantes do govrno de Pedro ll foi a extino da

    escravatura no Brasil. Voc no pode imaginar, nem de longe, o que foi o comrcio de negros trazidos da frica e sua escravido por quase trs sculos!" (p. 74)

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    "A descoberta das minas e os servios da lavoura exigiam trabalhadores e os pretos ofereciam a necessria resistncia para tais trabalhos. Por esta razo, comeou o trfico de negros os quais eram caados e presos nas selvas africanas como se fssem animais. Para c eles eram trazidos nos pores dos navios e vendidos nos leiles pblicos. Nos engenhos, nas minas, nas fazendas, os pobres pretos nem sempre encontravam senhores bons, justos e amigos. Muitas vzes caam em poder de patres que eram verdadeiros verdugos..." (p. 74).

    Para este trecho necessrio fazer algumas consideraes: Aqui mais uma vez a autora descreve que os pretos ofereciam a necessria resistncia para tais trabalhos, e que por esta razo iniciou-se o trfico de negros. Notamos que a maneira com que a autora descreve deixa transparecer que o trfico negreiro teve incio porque na poca no existiam trabalhadores que pudessem exercer as funes para tais trabalhos, e o pior, que somente os pretos possuam propriedades fsicas para tais funes. Outro trecho que vale a pena ressaltar a expresso pobres pretos, onde fica evidente que, mais uma vez, os negros so caracterizados com inferioridade e desigualdade. A partir desta leitura a criana pode ter a impresso de que na histria no houve escravido com outros povos, e que os africanos foram os nicos a serem escravizados, justamente por serem inferiores e serem resistentes para os trabalhos das minas e para os servios da lavoura.

    Outro livro a ser analisado Histria do Brasil, em sua 2 edio, editora L, 1975, escritos por Paulo Miranda Gomes, Alade Inah Gonzlez, Nelson de Moura. A linguagem utilizada neste livro mais elaborada, por se tratar de um manual didtico destinado aos alunos do 2 grau (atual ensino mdio) e para concursos vestibulares.

    Os autores, ao escrever sobre a formao inicial do povo brasileiro definem:

    ...foi um longo e lento processo, em que intervieram os trs grandes grupos tnicos de que se constitui a humanidade: o branco, o amarelo e o negro...nenhum dos trs grupos...pode ser lembrado como etnicamente homogneo. Assim, os prprios portugueses, elementos que menos diferenciaes apresentaram nesse campo, concorreram com tipos fsicos acentuadamente diversos, resultado da secular miscigenao havida na Pennsula Ibrica. (p. 59)

    Para explicitar o surgimento da cultura brasileira os autores assim expem:

    ... certo que a base do processo constitutivo da cultura nacional foi o transplante da cultura portuguesa, feito pelo povo dominador, deliberadamente preocupado em imp-la ao indgena e ao

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    negro...das trs culturas aqui presentes, em nossos primeiros tempos, a portuguesa era, exatamente, a menos equipada para facilitar a vida das circunstncias coloniais, donde a larga margem de implantao de padres das duas outras." (p. 60).

    Ao explicar a formao dos nossos padres culturais os autores definem:

    ...de origem portuguesa: a lngua; o catolicismo; a forma de organizao familiar e social; a forma de organizao municipal; o gosto do tradicional; o tipo de cultura intelectual, marcado pelo valor atribudo ao bacharel; os ofcios e as tcnicas, sobretudo as do setor agrcola; a utilizao de plantas e animais aliengenas, e as bases do folclore, da arte, da culinria, da indumentria, do mobilirio, da tradio arquitetnica e da urbanstica" (p. 61).

    ...de origem negra: Influncias na Lngua Portuguesa do Brasil; rituais religiosos, entre os quais o candombl, a umbanda, a quimbanda e a macumba; o costume de praticar os ditos rituais de permeio com os do catolicismo e do espiritismo; elementos do folclore (as estrias de bichos, os congados, o maracatu, e o batuque, de que procede o samba); uso de certos utenslios (bateia, figa, patu, moringa, colher de pau), instrumentos musicais (atabaque, agog, cuca e berimbau), aspectos da indumentria (traje de baiana e roupas vistosas), hbitos culinrios (consumo de verduras, legumes e azeite de dend; excessos de gorduras, condimentos e acar; pratos tpicos, como o vatap, o acaraj e o abar, etc.); influncias no surgimento do mocambo e de formas associativas, como as rodas de capoeira e o mutiro. (p. 61).

    Sobre as classes e vida social:

    ...J se tornou tradio dizer-se que, no Brasil Colonial, existiam unicamente duas classes, a dos senhores e a dos escravos, ao lado de grupos menores, de importncia diminuta. Estudos recentes, no entanto, permitindo aquilatar melhor o significado scio-econmico de tais grupos, justificam a afirmao de que eram as seguintes classes brasileiras coloniais... rural... intermediria... trabalhadora livre... trabalhadora escrava rural e urbana..." (p. 61, 62).

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    "...a sociedade se apresentava rigidamente estratificada, sendo o senho-de-engenho a figura preeminente e o padro de comportamento por excelncia. Rico em dinheiro e em bens de toda ordem, vivendo na vastido de seus domnios , a salvo da concorrncia, da lei e da autoridade, ele era um autntico patriarca, dispondo, em termos inquestionveis, da vida e da vontade de seus familiares, empregados e escravos. Esse poder, transcendendo os limites do engenho, atingia, ainda, a parentela e os vizinhos de menores posses. To grandes arregimentaes de pessoal deram origem aos cls eleitorais, que, ento como nos sculos posteriores, garantiam o domnio do senhor sobre a vida poltica da regio. Sua famlia vivia na ociosidade e na abastana das casas-grandes, cabendo s mulheres pequenos afazeres domsticos e a superviso dos servios da casa." (p. 62).

    O escravo, nessa sociedade, estava presente no eito, no engenho, na casa-grande e na senzala. No eito e no engenho, executava trabalhos necessrios produo do acar; na casa-grande, prestava servios gerais, exercendo, entre outras, as funes de mucamas, mes pretas, cozinheiras, costureiras, lavadeiras, carregadores, moleques de recados, etc. Essa onipresena do escravo, morador da senzala, habitao coletiva, promscua e insalubre, foi responsvel pela intensa mestiagem e interpenetrao cultural havidas nas reas do Nordeste aucareiro (p. 62, 63).

    Nestas citaes podemos notar que os autores descrevem a cultura do portugus com certa admirao e excelncia. Ao explicitar a cultura negra no consideram o sincretismo religioso, e expem alguns "excessos" da cultura africana. A mestiagem explicada a partir de anlise vaga e mais uma vez preconceituosa.

    Os autores deste livro ao relatarem sobre a vida intelectual no perodo colonial brasileiro citam brevemente algumas contribuies que certos mulatos deram nossa arquitetura e esculturas: ...o mulato Antnio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) destacou-se entre os maiores arquitetos do perodo colonial, sendo responsvel por alguns dos aspectos originais do barroco brasileiro...podemos citar seu pai, Manoel Francisco Lisboa, ambos de Minas Gerais ... (p. 66).

    O autor Paulo Miranda no livro Histria do Brasil, destinado aos alunos da 5 srie e editado em 1979 informa com algumas inovaes no que diz respeito aos africanos:

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    os negros trazidos para o Brasil se originavam de diferentes povos africanos. Muitos desses povos j tinham governos organizados, com reis, ministros, governantes territoriais, pagamentos de impostos, etc. As classes sociais eram diferenciadas, e a populao, em grande parte, habitava cidades e aldeias. Conheciam a lavoura, a criao de gado e o comrcio...dominavam as tcnicas de fiao, tecelagem, minerao e trabalho com vrios metais, inclusive o ferro e o ouro. Alguns conheciam a escrita." (p.75).

    O autor considera aspectos importantes dos ofcios e da vida poltica exercida pelos africanos em sua sociedade:

    ...So conhecidos os horrores das viagens nos navios negreiros...mais grave do que isso era a desorientao em que viviam estes escravos...eles eram bruscamente afastados de sua cultura; no eram aceitos na sociedade na qual eram obrigados a viver; os negreiros e colonos separavam pais e filhos, mulheres e maridos, e misturavam negros de naes diferentes. Essa desorientao foi causa do desinteresse do negro pela vida e pelas coisas em geral. Tal atitude lhe dava aparncia de incapaz e indolente, sendo, por isso, considerado inferior. (p. 75)

    Neste livro, o autor j descreve o sincretismo religioso as variaes das religies africanas:

    ...apesar de sua situao, o negro contribuiu grandemente para a formao tnica de nosso povo; constitui a maior parte da fora de trabalho brasileira at 1888 e ofereceu elementos para a formao da cultura brasileira...grande nmero de palavras....crenas religiosas, como o candombl e a macumba; o costume de praticar essas crenas juntamente com o catolicismo e o espiritismo (sincretismo religioso)... (p. 75).

    Para descrever a sociedade colonial faz algumas inovaes nas interpretaes, alocando o negro em uma posio mais justa, descrevendo sua possibilidade de mobilidade social:

    os escravos eram a maioria da populao...levavam a vida dura e praticamente sem direitos...existiam, no entanto, outros grupos

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    sociais que no chegavam a constituir classes: altos funcionrios civis e militares; funcionrios pblicos e oficiais militares em geral; comerciantes; trabalhadores livres (empregados dos engenhos e fazendas, vaqueiros, artesos, mineradores e soldados)." (p. 76).

    Ricardo de Moura, Adhemar Marques e Flvio Berutti fazem uma srie de inovaes metodolgicas no livro Construindo a Histria, editado em 1988, iniciando o captulo que trabalha o continente africano com alguns documentos e tratando a questo da desigualdade na frica. Fazem algumas adaptaes de livros sobre a temtica africana, por exemplo: Formao da frica Contempornea, escrito por Jos Flavio Sombra; Moambique: de Licnio de Azevedo; Apartheid, poder e falsificao histrica: de Marianne Cornevin; revista Cadernos do Terceiro Mundo, e ainda, uma poesia de Agostinho Neto: Do povo buscamos a fora.

    Traz neste captulo uma entrevista do presidente do Senegal Leopoldo Senghor, feita em 31/01/1968, para o jornal francs Le Monde, em que este presidente critica a situao em que se encontram os pases subdesenvolvidos: ... na hora atual, 700 milhes de homens, habitantes dos pases ricos, dispem de 80% da produo mundial, enquanto 2.300 milhes, ou seja, dois teros da populao do globo, vivendo nos pases subdesenvolvidos, devem partilhar (somente) 15% dessa produo." (p. 166).

    No livro escrito por Rejane Figueiredo, Ailton Moreira e Gleuso Damasceno, Descobrindo & Construindo o Brasil, os autores afirmam que existiram duas classes no perodo colonial: senhores e escravos. Escrevem os autores:

    ...a grande maioria da populao era composta de escravos. Em todas as atividades da produo de acar e nos trabalhos das roas e atividades domsticas, eram utilizados os negros...at as famlias mais pobres tinham em casa algum escravo negro...os escravos eram necessrios para tudo. Nada se fazia sem eles. At para ir s ruas, muitos senhores exigiam a companhia dos escravos. Muitas pessoas (os senhores e seus familiares) eram carregadas por escravos...os senhores agiam como se fossem donos at da vida de seus escravos...faziam os escravos trabalharem at no poder mais..." (p.80).

    "... Durante o perodo colonial e o Imprio, foram freqentes as revoltas dos negros. Muitos preferiam morrer lutando, a continuar naquela vida de sofrimentos. Outros fugiam e se escondiam no mato

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    ou em aldeamentos distantes chamados quilombos. O mais famoso deles foi o Quilombo dos Palmares, no atual estado do Alagoas.Este quilombo foi massacrado pelos brancos, apesar da resistncia dos negros, comandados pelo seu chefe Zumbi." (p. 81)

    Os autores deixam aparecer que naquele perodo o escravo era imprescindvel, "nada se fazia sem eles", at as famlias mais pobres possuam um escravo. Em todas as atividades, da produo de acar aos trabalhos das roas e at nas atividades domsticas. Um livro mais recente, Nas trilhas da histria, escrito por Ktia Corra Alves e Regina Gomide Belisrio (2001) e editado em Minas Gerais pela editora Dimenso para os alunos do ensino fundamental traz algumas novidades no que diz respeito s fontes iconogrficas. As imagens demonstram outro aspecto da cotidianidade dos negros, como as negras quitandeiras, ofcios exercidos pelos negros e a coroao de uma rainha negra na festa de reis. Possui documentos que descrevem sobre outros aspectos do cotidiano do negro no Brasil. A linguagem utilizada segue a mesma vertente, pois complementa as informaes contidas nestas documentaes. Desta forma, os autores criaram um manual didtico preocupado com a igualdade tnica e racial na sociedade:

    "...Por mais de 300 anos, o Brasil foi um pas de torturadores e torturados. Castigar o escravo era direito reconhecido pelas leis dos homens e da Igreja. Esse "direito" trouxe consigo a cultura do desrespeito sistemtico ao trabalho manual e braal, e por tabela, o desrespeito aos trabalhadores que a ele se dedicam". (Vol. 2, p. 189).

    Finalmente, abordaremos os 4 volumes do livro escrito por Carla Anastasia e Eduardo Frana Paiva, Histrias, Imagens & Textos (2005), destinado aos alunos do ensino fundamental, editora Dimenso, coleo editada posteriormente lei 10639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de Histria da frica e da Cultura Afro-brasileira. Em todos os volumes percebemos a preocupao de ilustrar de forma positiva a integrao dos negros na sociedade. Esta caracterstica est presente no somente nas temticas referentes histria e cultura africana, assim como os autores tiveram o cuidado de tornar positiva a imagem do negro constantemente nas vrias temticas abordadas. Como o ttulo sugere, a coleo trabalha amplamente as fontes iconogrficas. Estas, so muito variadas, mesclando imagens mais antigas e outras produzidas especialmente para o manual. Os captulos que trabalham a temtica

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    africana possuem uma excelente e atualizada interpretao para a formao da sociedade brasileira. O ttulo j define bem esta colocao: "Brasil, um pas mestio". Nos dizeres dos autores:

    "Na histria da humanidade, em todos os tempos, nunca existiu um povo ou uma cultura que no tenha se misturado. No existem, historicamente, nada puro, nem existem culturas acabadas ou paradas no tempo...a grande riqueza da humanidade a sua diversidade, seja na formao biolgica dos homens, seja nas culturas que eles criaram e transformaram." (p. 47)

    O captulo que trata sobre a temtica africana sugere que o pas possui "muitas caras", e a partir deste ttulo os autores explicam a atual desigualdade social existente no pas. Explicam o processo de industrializao e modernizao do pas. A partir de temas atuais os alunos so aos poucos transportados para contextos histricos mais distantes, permitindo assim uma ligao mais real entre passado e presente. Deste modo entendem mais claramente quais as causas das desigualdades sociais existentes no pas. Ao tratar o tema ligado frica os autores explicam:

    " A escravido existe desde a pr-histria (...) Na verdade, existiu ao longo de toda a histria...em todas as colnias hispnicas do Novo Mundo e mesmo nos pases da Pennsula Ibrica existiu escravido...quase 400 anos de escravido marcaram profundamente a histria de nosso pas e para compreender seu passado preciso conhecer melhor essa forma de trabalho que escravizou milhes de africanos e seus descendentes". (p. 40-41).

    Percebemos que Anastasia e Paiva preocuparam-se em focar a temtica africana sobre outra perspectiva. Este tipo de anlise leva promoo da igualdade racial, pois valoriza a diversidade cultural e, no que diz respeito s questes africanas, amplia este conhecimento que d visibilidade cultura negro-africana, a qual foi mal interpretada durante muitas dcadas nos manuais didticos de histria editados em Minas Gerais.

    CONCLUSO

    Os materiais didticos variam de acordo com as mudanas ocorridas na sociedade. As reformas curriculares do sistema educacional brasileiro, as mudanas

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    sociais, econmicas e polticas, e o prprio desenvolvimento nas pesquisas histricas so fatores que trazem variaes e atualizao nos contedos das temticas destes livros.

    A linguagem utilizada nos livros didticos tambm mudou substancialmente ao longo deste perodo, acompanhando concepes de poca e superando diversos entendimentos preconceituosos, transformando e delineando outras interpretaes e concepes no que diz respeito cultura e histria da frica.

    "No que tange ao livro didtico, denunciaram-se a sedimentao de papis sociais subalternos e a reificao de esteretipos racistas, protagonizados pelas personagens negras. Apontou-se a medida em que essas prticas afetavam crianas e adolescentes negros/as e brancos/as em sua formao, destruindo a auto-estima do primeiro grupo e cristalizando, no segundo, imagens negativas e inferiorizadas da pessoa negra, empobrecendo em ambos o relacionamento humano e limitando as possibilidades exploratrias da diversidade tnico-racial e cultural" (SILVA: 2001, p. 65, 66).

    Os professores atuam como filtros destes manuais de apoio didtico em sala de aula, ele deve estar atento a estas interpretaes. Um profissional capacitado deve reverter de maneira positiva as informaes contidas em um material didtico mal elaborado. Muitos profissionais apesar de identificar aspectos estereotipados dos negros continuam dando prosseguimento com o contedo, sem que se faa uma nica leitura crtica em conjunto com seus alunos. Para Maria Aparecida da Silva (2001, 66): "Todo esse esforo terico e prtico tem como objetivo que o professorado compreenda a particularidade da condio racial dos/as alunos/as e assim d um passo para promover a igualdade. preciso compreender que a excluso escolar o incio da excluso social das crianas negras".

    Percebemos que as interpretaes histricas dadas s temticas africanas variam de acordo com a poca em que estes manuais foram impressos. Como vimos, estas interpretaes estiveram presentes durante anos em vrias edies nos livros didticos de histria, desta forma, podemos pensar que os africanos foram entendidos e analisados atravs de discursos preconceituosos e racistas. Mas no podemos ignorar o tempo em que foram produzidas estas afirmaes, pois tambm esto imbudas de uma atmosfera cultural, alm de seu prprio contexto histrico.

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