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    In: JARDIM, D; LPEZ, L. C. Polticas da Diversidade: (In)visibilidades, diversidadecultural e cidadania em uma perspectiva antropolgica. Porto Alegre: Editora UFRGS,2013, p. 93-120.

    As aes afirmativas e a possibilidade de dilogo intercultural no Brasil 1

    Laura Cecilia Lpez

    No decorrer de processos polticos e debates em torno da questo racial no

    Brasil, antroplogas e antroplogos so chamados a atuar e a se pronunciar

    publicamente em pleitos que necessitam do dilogo intercultural, com o pressuposto deque somos especialistas em tal empreitada.Mas o que o olhar antropolgico permite

    como perspectiva crtica e como retrica de convencimento para que atores com

    poder de deciso assumam responsabilidades individuais e coletivas de dilogo que

    visem a mudanas institucionais? O presente texto foi elaborado tendo em mente esse

    questionamento. Nesse sentido, foi uma estratgia adotada manter o seu formato

    original de conferncia, na tentativa de expandir essa reflexo a outras plateias.

    Agradeo o convite para realizar esta conferncia no contexto das celebraes

    dos 75 anos da UFRGS, principalmente levando em considerao que as aes

    afirmativas constituem um tema to importante para esta universidade (que possui

    polticas com esse foco), como para o Brasil como um todo. Quando fui convidada

    considerei que era uma responsabilidade muito grande, como acadmica e militante

    envolvida nessa causa. Gostaria de advertir que minha fala no individual (embora

    assuma a autoria e responsabilidade pelo texto), mas que pretende ser polifnica, trazer

    outras vozes junto com a minha.

    Vou expressar o lugar de onde estou falando. Ao longo de minha pesquisa sobre

    identidades afro-diaspricas e questes vinculadas ao racismo na Amrica Latina e as

    responsabilidades tico-morais dos Estados em relao populao negra fui assumindo

    uma perspectiva no de quem vivencia de forma direta a opresso do racismo, mas de

    quem foi tomada pela perspectiva de quem a sofre.

    1 Conferncia proferida no Ciclo de Conferncias pelas Comemoraes dos 75 anos da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul, em 4 de novembro de 2009, Porto Alegre, Reitoria da UFRGS.

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    No Brasil, a participao no Grupo de Trabalho de Aes Afirmativas

    (conformado no ano de 2005 em torno da demanda destas polticas na UFRGS) me fez

    identificar subjetivamente com essa luta. Afetou-me ao ponto de assumir uma posio

    no campo como militante antirracista e um lugar de enunciao que trouxe a

    antropologia para dentro da ao poltica. Trago esse ponto porque existe a ideia de que

    a cincia neutra e no teria que se mesclar com uma ao poltica. Ao contrrio,

    considero que as duas dimenses podem estar imbricadas e ser constitutivas da

    perspectiva que assumimos para elaborar conhecimento. Essas dimenses vo se

    transformando relacionalmente.

    Os espaos de mobilizao poltica percorridos ressaltaram a importncia da

    polifonia, do dilogo entre sujeitos com posies e lugares de fala diversos,

    compartilhando vivncias e perspectivas de sujeitos racializados, assim como me

    permitiram uma compreenso mais aprofundada dos investimentos polticos e afetivos

    dos e das ativistas negros em relao s aes afirmativas. Minha posio poltica como

    mulher branca se dirime neste texto no sentido de ecoar (e no de ser uma voz

    autorizada em nome de) os discursos e perspectivas crticas de homens e mulheres

    negras em relao s polticas e aos projetos de nao.

    A modo de introduo ao tema da conferncia, referirei as enunciaes crticas

    sobre a academia que presenciei na 26 Reunio Brasileira de Antropologia realizada

    na cidade de Porto Seguro em 2008, e o que elas me provocaram para pensar sobre o

    dilogo intercultural. Houve uma mesa chamada Intelectuais e Lideranas tnicas no

    Campo da Antropologia, na qual dissertaram dois antroplogos indgenas e um

    antroplogo negro, com o objetivo de refletir sobre o impacto da participao intelectual

    de negros e indgenas no campo da Antropologia, particularmente num contexto de

    aes afirmativas.

    Florncio Vaz Filho chamou a ateno para pensar a antropologia como armapoltica: o nativo revestido com as armas da antropologia, em homologia com a frase

    atribuda a So Jorge. Ele situou sua trajetria como frade franciscano, que nasceu e

    cresceu na aldeia Pinhel s margens do Rio Tapajs (no Par). Entrou na universidade

    em 1990, com uma insero anterior na Teoria da Libertao, que vinha dos anos 1980,

    e que o levou a um pensamento marxista mais vinculado com a sociologia. Quando

    descobriu a antropologia se identificou: essa cincia chegou a ele no momento em que

    precisava ferramentas para pensar sobre sua identidade e como os outros o percebiam,na etapa em que foi ao Rio de Janeiro fazer ps-graduao, que, segundo refere, foi a

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    primeira vez que me chamaram de ndio. Essa reflexo sobre sua prpria identidade o

    levou a escolher como tema para sua dissertao a disputa por terras numa reserva

    extrativista no Baixo Tapajs. Ele tentou contribuir com a luta dessas comunidades.

    Agora professor na Universidade Federal do Par: eu sou o nativo e tambm o

    antroplogo. Ele ressalta que importante ter a noo dessa dupla condio.

    Gersem Baniwa, doutorando em antropologia pela UnB, bolsista da Fundao

    Ford, comeou sua fala se contrapondo posio de Florncio. Segundo Gersem, eu

    estou me metendo e interferindo na antropologia, diferente de Florncio, quando a

    antropologia chegou a ele e a usa como arma. Ele quer permear a antropologia com a

    ao poltica baniwa, estabelecendo uma relao poltica e no terica com a rea (para

    reverter a situao atual de teorias de mais para prticas de menos). Questionou a

    ausncia de antroplogos indgenas na Associao Brasileira de Antropologia, o que

    leva impossibilidade de um verdadeiro dilogo. Os estudantes indgenas geralmente

    no escolhem a antropologia como curso, isto tem que ser levado em conta para que o

    prprio campo se questione, faa uma reviso metodolgica e epistemolgica, mude os

    currculos. As teorias ocidentais so prepotentes com a ideia de querer falar pelos

    ndios. O que deve ser incorporado a racionalidade dos saberes indgenas. a

    antropologia que tem que mudar no processo de descolonizao.

    Finalmente, Osmundo Pinho, professor da Universidade Federal do Recncavo

    da Bahia, se posicionou a partir do que os intelectuais negros tm a reinterpretar do

    Brasil. A raa faz parte da experincia cotidiana. As categorias raciais tm a ver com a

    prpria constituio da antropologia, que objetivaram o negro, considerando-o, do ponto

    de vista dos racialistas, como o problema negro em termos da hierarquia racial das

    teorias raciais do sculo XIX; e entre os culturalistas, produzindo a culturalizao do

    negro. Segundo Osmundo, so os pesquisadores negros que devem provocar uma

    reformulao do campo. Ressaltou a construo do corpo negro como crtica. Porexemplo, o cabelo da mulher negra construdo como espao de luta. O negro no um

    portador de cultura, um sujeito social que se constri na desigualdade. Chamou para

    reelaborar a dicotomia entre o eu que escreve e o eu da vivncia, j que elas so

    duas dimenses que se interpenetram. Finalizou afirmando: queremos participar da

    antropologia brasileira com outra perspectiva.

    Embora as diferenas que permeiam a proposta de o nativo revestido com as

    armas da antropologia de Florncio Vaz Filho, que aponta formao de mediaesentre o poder pblico e as resistncias localizadas com as ferramentas acadmicas; a

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    argumentao sobre as transformaes epistemolgicas para produzir um verdadeiro

    dilogo intercultural, de Gersen Baniwa; e a proposta de transformar o corpo negro

    como espao de crtica e uma subjetividade construda na desigualdade como a

    possibilidade de um outro olhar na antropologia, de Osmundo Pinho; os trs intelectuais

    trazem perspectivas de mudana que tem a ver com a presena e interferncia de

    sujeitos coloniais nos regimes de saber/poder que os oprimiram. Refiro aqui a sujeitos

    coloniais, como os define Frantz Fanon,2 como aqueles que, ao elaborar uma crtica

    contra a colonialidade que os oprime, esto mostrando precisamente os limites dessas

    relaes de poder. Os sujeitos coloniais afirmam sua humanidade perante opresses que

    os desumanizam.

    A ruptura proposta nesses discursos crticos citados parece se concretizar em

    novas formas de produo de conhecimento, assim como em propiciar a redistribuio

    tanto de recursos de pesquisa quanto de espaos legitimados de crtica social e de falas

    autorizadas sobre os projetos de cincia e de nao.

    Estas transformaes impulsionadas pelas aes afirmativas, que no s

    promovem acessos, mas geram repercussesainda difceis de mensurar nas formas

    de percepo e elaborao de conhecimento a partir da possibilidade de que sujeitos

    (construdos historicamente como objetos das cincias sociais e humanas) introduzam

    uma viso crtica do eurocentrismo constitutivo da academia no Brasil e de maneira

    mais ampla, na Amrica Latina.

    Esboarei a seguir os eixos que escolhi para refletir sobre o tema proposto para a

    conferncia. Primeiramente, argumentarei sobre a ideia de que as polticas de ao

    afirmativa so coerentes com as demandas pela desracializao das relaes sociais e

    com as crticas colonialidade do poder no Brasil e na Amrica Latina de modo geral.

    Aprofundarei a ideia de raa como tecnologia de poder.

    Vinculado com o primeiro eixo, trabalharei a questo das polticas de aoafirmativa como possibilitadoras de dilogo intercultural. As aes afirmativas criam

    arenas propcias para que projetos de interculturalidade possam emergir em contextos

    acadmicos a partir de um olhar das margens para o centro a partir do ingresso nas

    2Intelectual afro-caribenho cujas principais obras foram Pele Negra, Mscaras Brancas (2008 [1952]), naqual foca a imploso de um sujeito negro libertado do olhar e da fala de um outro, branco; e OsCondenados da Terra (1968 [1961]), que problematiza o fato de que o colonizadoquem, ao focalizaras estratgias e os modos atravs dos quais o colonizadoropera, desvenda a teia na qual a sua prpria

    subordinao produzida (Cunha, 2002).

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    universidades de sujeitos que foram historicamente excludos do espao acadmico.

    Nesse sentido, abordarei raa como espao identitrio, ressaltando dimenses que

    podem nos ajudar a pensar a diferena, diferena esta que tem base na colonialidade

    do poder.

    Quero ento aprofundar o que as aes afirmativas possibilitam como

    descolonizao do conhecimento precisamente ao trazer discusso poltica e

    epistemolgica, novos sujeitos e perspectivas. E para finalizar, questionarei se na arena

    atual existe a possibilidade dessa transformao, apontando algumas questes para

    pensar o contexto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que vem

    implementando um programa de aes afirmativas desde o ano 2008.3

    Raa como tecnologia de poder

    O primeiro eixo de discusso pretende contribuir com um entendimento da

    complexidade que envolve as aes afirmativas, ou de maneira mais ampla, as polticas

    pblicas com enfoque tnico-racial, no se restringindo reserva de vagas nas

    universidades. As polticas de ao afirmativa tm servido, em vrios pases, para

    minimizar os pesados custos sociais para populaes que foram colonizadas, externa e

    internamente, em Estados hoje considerados multirraciais e/ou multitnicos, que

    procuram pautar-se pela construo e aprofundamento dos ideais democrticos

    (Silvrio, 2002). Na Amrica Latina, estas polticas so transversais a todas as reas de

    elaborao de polticas pblicas (educao, sade, mercado de trabalho, direito a terra e

    territorialidade, etc.).

    Chamo a ateno tambm para pensar as aes afirmativas no como invenes

    externas e como importao dos conflitos raciais s realidades nacionais latino-

    americanas, mas como uma construo na confluncia de processos transnacionais,formaes histricas e reconfiguraes nacionais contemporneas em vista de projetos

    polticos multiculturais demandados pelos prprios grupos destitudos do centro de

    poder/saber branco e eurocntrico. Mais ainda, quero destacar a coerncia destas

    demandas com as experincias racializadas e as identificaes tnicas/diaspricas dos

    sujeitos que as constroem.

    3A Deciso n. 134/2007 do CONSUN-UFRGS estabelece uma reserva de vagas de 30% para candidatos

    egressos do sistema pblico de ensino fundamental e mdio, sendo que 50% delas destinado acandidatos autodeclarados negros. Somam-se ainda 10 vagas suplementares para candidatos indgenas.

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    Entendo as polticas pblicas de ao afirmativa como produto da trajetria

    contempornea da militncia negra, de resistncias e lutas disseminadas na esfera

    pblica por evidenciar o racismo na sociedade brasileira e demandar aes

    governamentais que provoquem um processo de desracializao. Perspectiva de direitos

    substancializada na Constituio Federal de 1988, assim como na Declarao Final e

    Plano de Ao da Conferncia de Durban de 2001, que o governo brasileiro signatrio.

    De modo geral, esta arena de discusses e embates pela implementao de

    polticas de ao afirmativa trazem uma problematizao do racismo enquanto sistema

    de poder socioeconmico, de explorao e excluso, como componente central tanto das

    polticas imperiais como dos Estados nacionais na organizao geopoltica do espao

    mundial (Hall, 2003).

    Um dos eixos fundamentais das relaes de poder global que emergiu com a

    inveno geopoltica da Amrica e o sistema mundo moderno (Wallerstein, 1979) a

    classificao social da populao mundial de acordo com a ideia de raa: uma

    construo que expressa a experincia bsica da dominao colonial e que desde ento

    permeia as dimenses mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade

    especfica, o eurocentrismo (Quijano, 2005).

    Proponho entender raa conforme a perspectiva nominalista do pensamento

    foucaultiano, que destaca os efeitos prticos dos dispositivos de poder que se articulam

    com discursos locais para constituir configuraes naturalizadas de poder/saber.

    Articulo esta perspectiva com o conceito de colonialidade de poder, desenvolvido por

    Anibal Quijano (2005) para pensar o contexto latino-americano, que refere

    continuidade, na era ps-colonial, das relaes sociais hierrquicas de explorao e

    dominao construdas durante a expanso colonial europeia. A colonialidade uma

    relao social no redutvel presena do colonialismo formal. A continuidade de poder

    colonial em pocas ps-coloniais permitiu que as elites masculinas brancas impusessemuma classificao das populaes e exclussem pessoas no brancas das categorias de

    cidadania plena na comunidade imaginria da nao (Grosfoguele Georas, 1998).

    Nas Amricas, a ideia de raa foi uma maneira de outorgar legitimidade s

    relaes de dominao impostas pela colonizao. A expanso do colonialismo europeu

    ao resto do mundo conduziu a elaborao da perspectiva eurocntrica do conhecimento

    e, com ela, a elaborao terica da ideia de raa como naturalizao dessas relaes

    coloniais de dominao entre europeus e no europeus. A formao de relaes sociaisfundadas na ideia de raa produziu identidades sociais historicamente novas: ndios,

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    negros e mestios e, mais tarde, europeus (que at ento indicava apenas procedncia

    geogrfica ou pas de origem, mas passou a adquirir tambm uma conotao racial).

    Identidades que foram associadas natureza dos papis e lugares na nova estrutura

    global de controle do trabalho. Na nova tecnologia de dominao/explorao, raa e

    trabalho articularam-se de maneira que aparecessem como naturalmente associados

    (Quijano, 2005).

    Nesse sentido, podemos ressaltar o que Michel Foucault (1996) define como

    uma relao de imanncia entre a biopoltica e o racismo moderno de Estado, produzida

    atravs da disseminao de tecnologias de governo para a administrao de populaes,

    visando a constituio do corpo saudvel e homogneo da nao, e a definio de um

    outro-exterior-racializado sobre o qual se podem exercer prticas de extermnio assim

    como as sutilezas da negligncia em nome do bem-estar e da segurana da populao e

    do adestramento e a maximizao das foras produtivas.

    No caso da formao dos Estados latino-americanos, na virada do sculo XIX

    para o XX, os intelectuais da regio estiveram fortemente influenciados pelas teorias

    raciais emanadas da Europa, chamadas por Appiah (1992 apudGuimares, 2005) de

    racialismo, que se supunham definir o potencial diferencial das raas para a civilizao,

    mantendo a inferioridade inata e permanente dos no brancos, na pressuposio da

    superioridade da civilizao ocidental moderna e como justificativa naturalizada da

    dominao.

    O modelo liberal disseminado pelas Amricas envolvia ento a suposio de que

    para formar uma nao segundo o modelo europeu, precisava de populao tambm

    europeia: se esses pases eram os mais desenvolvidos econmica e socialmente, era

    graas a sua populao (Helg, 1992). A aceitao da tese do branqueamento na

    construo das naes latino-americanas implicou o apoio a uma poltica imigratria

    que visava introduzir nos pases da regio apenas imigrantes brancos. O efeito prticoesperado era a assimilao cultural e fsica desses elementos, sendo frequentes nos

    discursos os termos caldeamento, mistura, fuso, e sua incorporao total a uma

    nao ideal configurada como ocidental, de populao de aparncia branca.

    Com a entrada do sculo XX, o discurso do racismo cientfico sofre um

    deslocamento e, por influncia da antropologia cultural boasiana, a dissociao entre

    raa e cultura comea a ser gestada na escrita e nas artes da Amrica Latina. Com ela

    emerge uma srie de paradigmas que tm como meta a regenerao e reivindicao daidentidade mestia do homem latino-americano no contexto ocidental. Nos discursos

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    elaborados com base no ideologema da mestiagem emergentes na dcada de 1920, j

    no se fala, em geral, de raas ou culturas inferiores para efeito de excluso, ainda que

    esteja implcito; pelo contrrio, enfatiza-se uma inevitvel e natural sntese de culturas

    baseada no contato e na cooperao entre as diversas civilizaes (Martinez-Etchazabal,

    1996).

    Porm, o pensamento antropolgico de meados do sculo XX no mudou

    radicalmente os pressupostos racistas da ideia de embranquecimento, este passou a

    significar a capacidade da nao brasileira (definida como uma extenso da civilizao

    europeia) de absorver e integrar os no brancos. Tal capacidade requer que negros e

    indgenas renunciem a sua ancestralidade. O ncleo racista desse corpo de ideias reside

    que foram trs as raas fundadoras da nacionalidade, que aportaram diferentes

    contribuies de acordo com suas qualidades e seu potencial civilizatrio (Guimares,

    2005).

    Conforme nos mostra Valter Silvrio (2002), se a ambiguidade tem sido um

    trao caracterstico da classificao racial das sociedades latino-americanas, ela no tem

    impedido que uma parcela significativa da populao seja permanentemente racializada

    no cotidiano e que, por isso mesmo, tenha assumido sua identidade negra de forma no

    ambgua e contrastante em relao ao seu outro, o branco, como modo de reafirmar sua

    condio de humanidade e de direitos.

    As classificaes, embora importantes, no do conta da dimenso objetiva que

    representou a presena do Estado na configurao sociorracial da fora de trabalho no

    momento da transio do trabalho escravo para o trabalho livre, nem da ausncia de

    qualquer poltica pblica voltada populao ex-escrava para integr-la ao novo

    sistema produtivo. Da poder afirmar que a presena do Estado foi decisiva na

    configurao de uma sociedade livre que se funda com profunda excluso de alguns de

    seus segmentos, em especial da populao negra e indgena. Nesse sentido, Silvrioafirma o racismo teve uma configurao institucional, tendo o Estado legitimado

    historicamente o racismo institucional (Silvrio, 2002, p. 222). Este fato d

    legitimidade s polticas de ao afirmativa na atualidade como obrigao do Estado.

    Vale a pena evidenciar que a construo de polticas raciais em termos de

    projetos nacionais e geopolticas dos Estados na Amrica Latina que disseminaram

    mecanismos que racializam o acesso ao poder e naturalizam as desigualdades entre

    grupos, aos quais so assinados atributos que so tratados como fixos ou dados comonaturais sob certas condies econmicas, polticas e culturais, teve seu correlato nas

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    resistncias negras em diferentes perodos. Essas polticas emanam da resistncia dos

    sujeitos para alcanar a desracializao das relaes sociais, como expressaremos a

    seguir.

    O objetivo at aqui foi mostrar raa como tecnologia de poder nos pases latino-

    americanos, para desconstruir a ideia contempornea de que as sociedades latino-

    americanas no apresentam conflitos raciais, e que, portanto, no seriam aplicveis

    polticas de ao afirmativa, ou com enfoque tnico-racial, devido a no existncia de

    racismo.

    Raa como espao identitrio

    Conforme mencionei, o segundo eixo de discusso contemplar raa como

    espao identitrio, particularmente como interpretada pelos movimentos afro-latino-

    americanos.

    Chamo a ateno para os discursos crticos de sujeitos tidos e vistos como

    minoritrios, que no foram contemplados no projeto de igualdade preconizado pelos

    ideais eurocntricos de nao moderna institudo nos pases da regio e que passaram a

    ocupar um lugar desigual nos processos polticos, no acesso mobilidade social, e em

    face s instituies. Podemos observar os modos como estes sujeitos vm a interferir na

    esfera pblica na contemporaneidade, ao passo que evidenciam noes e projetos de

    nao em disputa. Percorrem, ento, um espao identitrio que converte a excluso num

    poder afirmativo, generativo.

    A crtica que emana desta perspectiva desconstri as manobras do colonialismo

    dos olhos do imprio, nas palavras de Mary Louise Pratt (1999) no prprio fato de

    torn-las visveis, de mostrar seus limites a partir do olhar de sujeitos com posies e

    lugares de fala construdos em zonas de contato e atravs de uma experincia afetiva

    da marginalidade social, nos termos de Homy Bhabha (2005).

    Conforme prope Catherine Walsh (2007), o conceito de interculturalidade pode

    ser pensado na Amrica Latina, ligado s geopolticas de lugar e espao, desde a

    histrica e atual resistncia dos indgenas e dos negros at suas construes

    contemporneas de um projeto social, poltico, tico e epistmico orientado

    descolonizao e transformao. Mais do que a ideia simples de inter-relao, a

    interculturalidade representa uma configurao conceitual, uma ruptura epistemolgicaque tem como base o passado e o presente vividos como realidade de dominao,

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    explorao e marginalizao. Chama a ateno para um poder social (e estatal) outro e

    uma sociedade outra, uma forma de pensamento relacionada com e contra a

    modernidade/colonialidade. A significao da interculturalidade como uma

    perspectiva e prtica outra encontra seu sustento e sua razo de existncia na

    colonialidade do poder da que falvamos anteriormente.

    Mais do que um carter descritivo de identidade poltica ou particularismo

    minoritrio, a interculturalidade indicativa de uma realidade estrutural histrica e

    sociopoltica que necessita de descolonizao e transformao. Denota e requer uma

    ao que no se limite esfera do poltico, mas que infiltre um verdadeiro sistema de

    pensamento. Nesse sentido, podemos falar sobre uma interculturalidade epistmica. A

    autora chama a ateno para dar conta desta definio a partir da elaborao dos

    prprios movimentos tnico-raciais e no de uma instituio acadmica, na medida em

    que responde a projetos polticos pensados a partir da experincia vivida da diferena

    colonial e no da ideologia do Estado.

    Essa configurao conceitual constri uma resposta social, poltica, tica e

    epistmica para as realidades da colonialidade de um lugar de enunciao indgena ou

    negro. Esse lugar de enunciao um lugar poltico que compreende, tanto ao sujeito

    da enunciao quanto um projeto poltico, cultural e epistmico. Por isso, Walsh fala de

    uma lgica (e no s de um discurso) construda desde a particularidade da diferena.

    Diferena que colonial, consequncia da passada e presente subalternizao de

    povos, lnguas e conhecimentos. Pretende-se, ento, criar um novo espao

    epistemolgico que incorpore e negocie formas mltiplas de conhecimento.

    Trago esta ideia de interculturalidade como uma construo poltico-

    epistemolgica a ser desvendada e (re)construda no dilogo e no como um

    pressuposto da relao entre uma instituio e os novos sujeitos que transitam nela

    (como pode ser o caso de negros e indgenas entrando nas universidades no Brasil), paraprecisamente podermos pensar a situao atual da Universidade Federal do Rio Grande

    do Sul. Retomarei este tema mais adiante. Antes, ressaltarei o projeto intercultural

    expresso na conformao dos movimentos negros contemporneos, se pensando

    transnacionalmente e de maneira diasprica.

    Raa, ento, entra no dilogo intercultural ao ser trazida para a discusso e

    interveno na esfera pblica pela militncia negra, visibilizando subjetividades

    construdas em processos de racializao e levando em considerao que produzimo-noscomo sujeitos em intrincadas relaes de poder.

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    Em um cenrio mundial, os movimentos etno-polticos, nas dcadas de 1960 e

    1970, conformaram circuitos de identificaes atravs de diferentes realidades coloniais

    e ps-coloniais que marcaram as novas polticas de transnacionalidade e formas de

    solidariedade e ativismo, sendo representadas as noes de centro e periferia (Brah,

    1996). A ideia de dispora surge com um sentido historizado e politizado, tendo

    importantes implicaes na construo de novas e variadas comunidades imaginadas

    num circuito transnacional de polticas e culturas por sobre a nao e alm dos oceanos,

    que conformara uma arena de contestao e de identificao baseados em pleitos e

    negociaes da diferena (Lao-Montes, 2005).

    A ocorrncia, no mesmo momento histrico, das mobilizaes contra as

    ditaduras militares na Amrica Latina, das lutas dos afro-norte-americanos pelos

    direitos civis, as lutas pela libertao nacional no continente africano, particularmente

    na frica do Sul e nas colnias portuguesas e, tambm, pela descolonizao dos pases

    do Caribe e do Pacfico Sul, propiciou, pela primeira vez, um contexto transnacional

    favorvel para um olhar tnico-racialda realidade latino-americana. Atravs dos debates

    travados em um processo de redemocratizao e fortalecimento de entidades da

    sociedade civil que se organizaram as lutas contemporneas de afrodescendentes e de

    indgenas na Amrica Latina (Moore, 2005). Lutas que tem seus reflexos nas novas

    constituies dos diferentes pases da regio ao longo das dcadas de 1980 e 1990, e nos

    eventos e debates internacionais auspiciados por atores globais que exigem dos Estados

    aes de desconstruo do racismo e reparaes.

    No contexto regional, como apontamos em outro captulo, as mobilizaes

    polticas negras contemporneas agregaro o racismo ao horizonte das lutas sociais,

    trazendo assim para a cena poltica os debates sobre discriminao e identidade racial

    como marcas distintivas em relao aos demais movimentos. O novo sujeito produzido

    pela poltica negra interferia na esfera pblica ao interrogar discursos polticos queafirmavam a primazia da classe.

    Do ponto de vista dos movimentos negros, valorizada raa como a percepo

    racializada de si mesmo e do outro, significando a base de um antirracismo. Trata-se de

    uma reconstruo da negritude a partir do duplo vnculo com a rica herana africanaa

    cultura afro-brasileira das religies de matriz africana, dos blocos de carnavale com a

    apropriao do legado cultural e poltico do Atlntico Negro (Guimares, 2005).

    Como destaca Zil Bernd (1987), em sua anlise dos discursos poticos afro-latino-americanos e caribenhos precedidos todos eles, segundo a autora, por

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    movimentos sociais de afirmao de ser negro , o que define a poesia negra no o

    fato do autor/enunciador ser negro, mas o fato de situar-se como negro para que a

    poesia possa exprimir-se com uma dico prpria, como uma inteno negra.

    Podemos citar tambm a filosofia afro-caribenha contempornea que busca na

    figura de Calib e Prspero (inspirada na obra de Shakespeare, A Tempestade) o modo

    de compreender a destituio de humanidade, do poder de fala e de pensamento dos

    africanos que a relao de dominao amo-escravo provocou nas Amricas, e como

    recuperado esse poder (Henry, 2000).

    Como projeto de uma antropologia simtrica, Jos Carlos dos Anjos (2006)

    analisa a filosofia poltica das religies afro-brasileiras como realizao do

    multiculturalismo no modo de equacionar as diferenas, ao contrrio da filosofia

    poltica que constituiu os projetos de nao latino-americanos. Esta ltima, que exprime

    a ideia de nao como uma unidade, uma sntese de culturas e raas na mestiagem;

    enquanto que o modelo das religies afro-brasileiras, de carter rizomtico, toma a

    encruzilhada como ponto de encontro de diferentes caminhos que no se fundem numa

    unidade, mas seguem como pluralidade.

    Todas estas dimenses do sentido luta por aes afirmativas, entre elas, as

    que promovem direitos educao superior precisamente por possibilitar a formao de

    profissionais com papis e lugares de fala autorizados para coconstruir um projeto de

    nao plural, para elaborao de polticas pblicas de equidade, para questionar e

    reconstruir os espaos e as perspectivas de produo de conhecimento. Particularmente

    porque a pluralidade tnico-racial foi reconhecida no Brasil na Constituio de 1988,

    como produto das lutas disseminadas dos movimentos sociais.

    Observamos, no Brasil, um itinerrio de longa data da militncia negra para

    relacionar raa e educao como demandas ao poder pblico, que se refora em sua

    permeabilidade em esferas do Estado e na ampliao de instituies envolvidas em suadisseminao a partir do processo em torno Conferncia de Durban. Os dados de

    desigualdade racial na educao, potencializados pela denncia de militantes negros que

    chama a ateno para as barreiras raciais existentes para cursar as universidades

    pblicas, e a demanda para a legitimao de um ponto de vista negro nas instituies

    letradas, encontram uma arena positiva para a elaborao de polticas pblicas na

    atualidade.

    A ideia de diferena cultural permeia todas as demandas da militncia negra emeducao, como pode ser percebido, por exemplo, na substancializao da lei n.

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    10.639/03 (que traz para o mbito escolar a discusso das relaes tnico-raciais)

    atravs da inscrio da cultura afro-brasileira vinculada ao corpo, esttica, a valores

    civilizatrios, a partir de visibilizar experincias racializadas que so negadas no espao

    institucional escolar. Estas prticas abrem lugar para a constituio de representaes

    alternativas no processo de identificao e diferena cultural, propiciando uma arena

    positiva para os processos de identificao de sujeitos negros nas relaes tnico-raciais

    no espao escolar.

    Na viso da militncia negra, se, por um lado, a academia promove uma

    possibilidade de ascenso social valorizada entre a populao negra (nas palavras

    referidas por um jovem militante negro, a gerao de seus pais e avs afirmavam ns

    limpamos o cho, mas no queremos que nossos netos continuem fazendo o mesmo ), o

    espao acadmico aparece tambm como hostil e discriminador. Nesse sentido, ganham

    importncia as propostas que contribuam a desconstruir esse mbito, no s para

    desracializar seu acesso, mas para torn-lo um mbito positivo para o dilogo

    intercultural.

    Nilma Gomes (2003) afirma em relao experincia com o corpo negro e o

    cabelo crespo, que no se reduz ao espao da famlia, das amizades, da militncia ou

    dos relacionamentos amorosos. A escola apareceu em vrios depoimentos de homens e

    mulheres negras que ela entrevistou como um importante espao no qual tambm se

    desenvolve o tenso processo de construo da identidade negra, sendo que a experincia

    escolar nem sempre lembrada como um espao institucional em que os negros e seu

    padro esttico so vistos de maneira positiva.4

    A atuao da militncia em educao pode ser interpretada como envolvendo

    prticas pedaggico-culturais que produzem e pem a funcionar uma identidade e

    diferenas especficas que modelam e empoderam sujeitos negros. Ao ressaltar

    experincias racializadas que so negadas no espao institucional escolar que constituiuuma prtica corporal de disciplinamento baseada num olhar branco, estas prticas abrem

    espao para a constituio de representaes alternativas no processo de identificao e

    diferena cultural.

    4A autora retoma as reflexes realizadas na sua tese de doutorado, que discutem as representaes e asconcepes sobre o corpo negro e o cabelo crespo, construdas dentro e fora do ambiente escolar, a partirde lembranas e depoimentos de homens e mulheres negras entrevistados durante a realizao de uma

    pesquisa etnogrfica em sales tnicos de Belo Horizonte. No artigo de 2003 citado aqui, ela discutecomo estas representaes e concepes podem ser trazidas para pensar a formao de professores.

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    Pensando na noo de interculturalidade proposta por Walsh, estas

    consideraes entram na reflexo de como viabilizar institucionalmente o dilogo

    intercultural que sustente processos de transformao das aes afirmativas.

    As aes afirmativas e a possibilidade de dilogo intercultural

    No caso da UFRGS, podemos pensar como o prprio processo poltico que

    levou aprovao de um programa de aes afirmativas abriu brechas para o debate

    sobre interculturalidade numa instituio que se apresentara como monocultural e

    racializada, trazendo para a arena institucional sujeitos polticos antes no

    contemplados.

    Uma rede de militncia conformada em torno da demanda por aes afirmativas

    na instituio agregou pessoas diversas em termos tnico-raciais, e atores sociais com

    lugares de fala e posies sociais diferentes: militantes do movimento negro, lideranas

    indgenas, religiosos de matriz africana, artistas de hip-hop, estudantes, tcnicos e

    professores da universidade, movimento estudantil, etc., disputando os lugares de fala

    autorizados na instituio e interferindo nas instncias de deciso, como o Conselho

    Universitrio.5 Estes sujeitos entraram num campo de foras e jogos polticos que

    traspassaram a localizao das disputas, inserindo o caso das cotas na universidade em

    embates mais amplos protagonizados pelo movimento negro.

    No processo de disputa pela implementao de aes afirmativas na UFRGS

    foram acionadas polticas e poticas. Junto ao jogo argumentativo que se delineou no

    debate, nas interlocues disseminadas no espao institucional, e que se apresentaram

    como um processo de negociao, dissensos e polarizaes em torno da legitimidade e

    pertinncia das aes afirmativas na sociedade brasileira, expressou-se outro modo do

    fazer polticaque aponta para o impacto da dimenso performtica da mobilizao emtorno da aprovao.

    O prprio dia da votao da proposta de aes afirmativas no Conselho

    Universitrio (29 de junho de 2007) foi uma expresso disso. Naquela data, a

    diversidade na universidade entrou em cena amplamente. Um coletivo significativo

    de pessoas e foras ancestrais diferentes do que as que circulam cotidianamente pelo

    espao da UFRGS se fizeram presentes nas imediaes do prdio da Reitoria, ocupando

    5Ressalto aqui como aglutinador dessa rede, o Grupo de Trabalho de Aes Afirmativas mencionado nosprimeiros momentos dessa fala.

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    o ptio e o trreo do prdio em que est localizada a sala do conselho. Foi impactante

    aquela cena.

    Oferendas em diferentes lugares do prdio, cantos aos orixs e danas ao som

    dos tambores tornaram o espao numa encruzilhada, ponto ambguo na religiosidade

    afro-brasileira j que ali tanto pode ser o comeo, a abertura de um fluxo, quanto o fim

    de um territrio existencial (Anjos, 2006, p. 19).

    Ora as intensidades ocupavam os corpos de jovens negros artistas de hip-hop,

    que harmonizaram ritmo, dana e canes referentes s cotas; ora ancestralidades se

    tornavam crianas guarani, que brincavam, corriam, faziam trenzinho em zig-zag entre

    os adultos, que sorriam prazerosamente e acompanhavam a brincadeira com o olhar e o

    corpo.

    No ptio, tinha uma barraca dos estudantes que oferecia refeies (po e caf)

    para os manifestantes. Era uma manh fria de inverno, nada melhor que um cafezinho

    para bater um papo distendido com pessoas que talvez nem se conhecessem entre si ou

    que no tinham um convvio cotidiano, mas que a luta, que naquele momento era nossa

    luta, as unia, entrelaava seus caminhos. Naquele presente, as diferenas no eram

    dissolvidas, eram conectadas deixando-as subsistirem como tais. Num clima de

    confraternizao, aguardvamos a deciso do conselho conversando em grupos,

    danando, cantando, segundo os fluxos das atividades.

    A reunio do Consun terminou depois das cinco da tarde, quando comearam a

    descer os conselheiros. O reitor e os membros da comisso que apresentaram a proposta

    ao Conselho Universitrio foram os ltimos a descer. O reitor falou no microfone do

    pequeno palco no meio da mobilizao da importncia dessa aprovao para a

    construo de uma universidade mais democrtica. Nesse momento foi tirada a foto que

    circulou pela mdia e que cristalizou esse momento: o reitor falando e sorrindo junto a

    mes e pais de santo festejando a vitria. E ainda levados pela euforia coletiva ao somdo grito de ordem quem no pula racista!, os corpos de homens brancos que

    desciam pelas escadas representando o poder da universidade pularam junto com os

    manifestantes, todo mundo foi tomado pelas intensidades negras que circulavam

    naquele espao. Corpos, tambores e vozes em sintonia.

    A UFRGS se transformou naquele momento em um espao ocupado pelo desejo

    de ser conquistado pelas populaes negra e indgena. Projetos polticos se

    corporificaram naquele dia da votao atravs da potica, da performance, da ocupao

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    do espao cantada, danada e encenada, pois as palavras do intenso debate discursivo

    no eram suficientes para comunicar os direitos minoritrios a esse espao.

    Se referirmos disputa discursiva, ela dirimiu-se em torno de uma polarizao

    entre posies favorveis e contrrias. Os efeitos deste debate pblico foram diversos,

    pensando no quadro complexo conformado em torno discusso sobre as aes

    afirmativas em nvel nacional, que remete a interpretaes contraditrias da sociedade

    brasileira e sua histria, e a discusses que desafiam como so inscritas as divises do

    mundo social, as posies de poder e prestgio no espao da nao.

    Podemos mencionar um contexto em que a reao perante as polticas pblicas

    com enfoque tnico-racial destinadas populao negra, de modo geral, levou

    conformao de um bloco de intelectuais contrrios que manifestaram sua opinio

    publicamente. Com a hiptese de que qualquer poltica com perspectiva racial no Brasil

    produziria uma racializao da sociedade e com a acusao de que o movimento

    negro estaria importando um tipo de leitura da realidade social do pas contaminada

    pela ideologia racialista norte-americana, estes intelectuais assumem uma posio de

    privilgio como modo enunciativo para encaminhar a forma como a nao brasileira

    deve ser pensada, tentando anular qualquer possibilidade para que outros atores sociais

    (no caso, militantes do movimento negro), sem o privilgio enunciativo daqueles

    primeiros, possam expressar projetos alternativos de nao (Anjos, 2005).

    No plano local, os discursos que permearam a oposio s cotas foram

    fundamentalmente os que privilegiavam a classe como fator preponderante de produo

    de desigualdade no Brasil. Posio legitimada no mbito acadmico pelas cincias

    sociais brasileiras que, como examina Guimares (2005), no esforo ideolgico de

    invisibilizar o racismo nacional, buscaram o conhecimento de essncias e a formulao

    de explicaes causais atravs de um realismo ontolgico, que negligenciara a tecedura

    discursiva e metafrica que escondia o racismo sob a linguagem de status e classe.Desse modo, a simetria entre o discurso classista e racial no Brasil, quando percebida,

    foi tomada como prova de insignificncia das raas.

    Essa discusso de classe versus raa perpassou todos os planos da disputa na

    UFRGS, desde discusses entre os movimentos favorveis s cotas, que geraram

    tenses e divises por afinidades de nfases dados nas reivindicaes (ponto de

    discusso que levou ao consenso das cotas sociais e raciais separadas);6nos debates

    6Esta posio foi expressa na proposta encaminhada pelo movimento favorvel s cotas Comisso quetinha como objetivo elaborar a resoluo para votao no Consun.

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    dentro da universidade com estudantes e professores; nas conversas que os militantes

    favorveis tiveram com os conselheiros individualmente nas semanas antes da votao

    com a finalidade de dar alguns elementos a mais para a sua deciso. O recorte de classe

    foi expresso das seguintes maneiras: desde a desconfiana sobre o racismo (ser que

    existe?) ou seu reconhecimento, mas de modo marginal; at dizer que seria contra o

    ingresso universidade pelo sistema de cotas de negros com dinheiro (como

    mencionou uma estudante num dos debates propiciados na universidade: eu no quero

    que entre pelas cotas um negro com um MP3).

    Podemos notar que na negociao final da aprovao do programa de aes

    afirmativas classe englobou raa, ou seja, o recorte racial se d aps o critrio social

    (que, nesse caso, representado na categoria oriundo de escola pblica). Tais critrios

    surgiram na correlao de foras que se expressou nos momentos da negociao e que

    refletiam as divises do mundo social legitimadas pelos tomadores de decises na

    universidade e pelo curso do jogo poltico e da distribuio desigual dos poderes e

    lugares autorizados de deciso.

    Quando o debate parecia no poder ser dirimido no plano social, na dicotomia

    classe versus raa, o recurso foi trazer o plano biolgico para a arena de discusso.

    Particularmente entre alguns antroplogos, o argumento de que raa no existe no

    sentido biolgico tentou deslocar um debate intrinsecamente social.

    Uma dimenso deste debate aponta mecanismos de saber/poder. O

    conhecimento produzido pela gentica entra no plano da doxa, impondo divises que

    no podem ser discutidas por leigos. Nos debates pblicos ganharam destaque

    antroplogos bilogos e geneticistas, o que me permite abrir a questo: quais seriam os

    aportes destes profissionais no debate sobre identidades, identificaes,

    reconhecimentos, e ainda redistribuio, processos eminentemente sociais e culturais?7

    Ainda nesse contexto de discusses em nvel nacional foi publicada na revistaVeja, de divulgao massiva, uma matria que questionava o componente africano no

    mapa gentico de personagens pblicos considerados socialmente negros (a atleta

    Daiane dos Santos, o cantor Djavan, etc.) a partir da divulgao de uma pesquisa em

    que o geneticista Srgio Pena, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais,

    7Exemplo disso foi a Mesa Redonda da Reunio de Antropologia do Mercosul de 2007 apoiada peloCurso de Ps-Graduao em Gentica e Biologia Molecular da UFRGS, chamada Identidade

    cultural/nacional: aspectos biolgicos, culturais e polticos, no contexto da qual surgiram debates sobreas cotas, j que a maioria dos conferencistas participantes tinha uma posio pblica contrria sobre otema.

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    mapeava o DNA de nove personagens pblicos negros.8Porm, no era questionado o

    mapa gentico de nenhum personagem pblico considerado branco. O que refora a

    ideia de um olhar branco que pressiona o sujeito negro a definir e redefinir sua

    identidade racial a partir do parmetro da branquitude, neste caso, uma branquitude no

    visvel no corpo, mas inscrita na gentica.

    Dirimindo-se como textos e discusses cientficos por fora dos debates

    poltico-ideolgicos e das identidades raciais de quem os enunciaram, estes discursos

    geraram um contexto de polarizao extrema, particularmente as posies mais

    acirradas que foram expressas em artigos de jornais nos dias em torno votao do

    Consun, que equiparavam, num dos casos, o terror do holocausto judeu a uma poltica

    de cotas raciais que cria e institui a racializao na sociedade brasileira.9 O efeito

    desses textos acaba negando possibilidades de conhecer e reconhecer o racismo como

    desigualdade estrutural que modela experincias e a construo cotidiana de sujeitos

    racializados no Brasil.

    Outro aspecto foi o debate de que a universidade pblica no conseguia se

    reconhecer como parte executora de uma poltica de Estado. Paradoxalmente, o debate

    evocava uma liberdade de autogestionamento, como parte do estatuto da autonomia

    universitria e apostava nas decises de seus conselhos, mas deliberava com a

    possibilidade de acatar ou no a poltica de Estado. Uma das posies expressa foi a de

    que o conhecimento tinha uma esfera prpria e que no deveria ser pautado por

    exigncias estatais, tais como o projeto de lei de cotas tramitando no Congresso

    Nacional. Ou seja, o lugar privilegiado de crtica social que a universidade detm deve

    se auto-regular e reproduzir, assim, o olhar branco (no marcado) da elite que o ocupa.

    Desse modo, um contexto poltico favorvel ao debate das aes afirmativas

    implicou em formas de evidenciar a branquitude e de polarizao dos argumentos que

    exigem um olhar crtico, abrindo um questionamento tico. Sendo a universidadedetentora de uma posio legtima de crtica social, quem so os sujeitos que elaboram

    essa crtica? Qual o acordo de valores que est em jogo nessa disputa?

    8A matria publicada em 6/6/2007 intitulada O perigo de classificar os brasileiros por raa, e outrasmatrias divulgadas pela Rede BBC Brasil em 2007, tornaram pblica a pesquisa de Srgio Pena(UFMG) e Maria Ctira Bortolini (UFRGS) sobre ancestralidade gentica africana no DNA de

    brasileiros. A lista de matrias pode ser consultada no site (acesso em 10 de maro de 2009).9

    Matria publicada no Correio do Povo em 22/6/2007, de autoria do professor de antropologia BernardoLewoy, intitulada Um tribunal racial para a UFRGS?.

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    Em tal sentido, Roberto Cardoso de Oliveira (1996) aponta que a dimenso tica

    perpassa a luta poltica pela cidadania dos povos indgenas (e podemos pensar tambm

    das mobilizaes negras), j que o que est em jogo nessa luta o alcance de um acordo

    de valores entre comunidades de comunicao diferentes e assimtricas, que expressam,

    na maioria dos casos, um incontornvel abismo semntico/cultural.

    Levando em considerao a arena em torno disputa pelas aes afirmativas,

    hora de nos perguntarmos sobre as condies e possibilidades de surgimento de um

    dilogo intercultural, com o intuito de alcanar uma simetria (e no uma diluio) de

    discursos e perspectivas que a prpria noo de dilogo implica. Se pensarmos no

    contexto insipiente de implementao do Programa de Aes Afirmativas na UFRGS,10

    podemos questionar a existncia ou no de um mbito propcio para a

    interculturalidade. Como esto sendo entendidas institucionalmente a diferena indgena

    e a diferena negra?

    Para refletir sobre o caso dos indgenas, apontarei uma srie de questes em

    torno de um evento que marcou o ingresso de uma estudante kaingang no curso de

    Medicina no primeiro vestibular com aes afirmativas.11 Ela filha de uma mulher

    kaingang professora bilngue e de um homem branco aposentado da Funai. Vrios

    membros de sua famlia so ativistas polticos. Formada em enfermagem pela Uniju

    com uma bolsa de uma fundao alem, trabalhou em vrias comunidades indgenas.

    Ela pode ser identificada socialmente como branca se levarmos em conta seu fentipo,

    porm, ela assume uma identidade kaingang (ressaltando que a lgica de construo de

    identidade diferente entre os povos indgenas e a populao negra), autopercepo

    ratificada pela certido da Funai que a considera pertencente nao kaingang.

    Menciono este fato porque tanto ela quanto outros estudantes indgenas foram

    questionados sobre suas identidades por seus colegas, tanto no site de relacionamento

    Orkut (numa comunidade de estudantes da UFRGS que foi um dos veculos principaisde debate entre os alunos da universidade durante o processo de deciso da

    implementao de aes afirmativas), quanto presencialmente nos espaos da

    universidade.

    10Cabe mencionar que minha pesquisa de doutorado foi circunscrita ao processo anterior aprovao eao primeiro ano de implementao do Programa de Aes Afirmativas.11Usarei nomes fantasia para identificar as pessoas partcipes dessa situao, no tanto para manter o

    anonimato delas, j que so bastante identificveis, mas para deslocar o foco de ateno dos sujeitos em simesmos para a situao, que nos permite refletir sobre as possibilidades de dilogo intercultural.

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    Num evento pblico em defesa das aes afirmativas, Luna falou sobre sua

    experincia na infncia que a marcou para o resto da vida, quando ia para a escola de

    nibus junto s outras crianas da aldeia e desciam e entravam todas juntas na sala de

    aula. Na escola podiam at pensar que ela era branca, mas o fato de estar com as outras

    crianas indgenas e particularmente por ter cheiro de fumaa (que os brancos

    atribuam aos indgenas), fazia com que os colegas no indgenas no se relacionassem

    com ela. Segundo expressou Luna, foi em relao a essa vivncia que levou uma

    surpresa grande com o fato que seus colegas da UFRGS alegassem que era branca,

    duvidando de sua identidade kaingang.

    Os estudantes indgenas que entraram em 2008 tiveram indicados um professor

    tutor e um estudante avanado do curso como monitor para orient-los, seja em

    questes burocrticas ou de contedos, quais disciplinas cursar, ou outras necessidades.

    No caso de Luna, o tutor indicado foi o professor Omar, do Departamento de Medicina

    Social. Ele organizou uma pequena celebrao de boas vindas para ela no ceio da

    reunio ordinria da Comgrad, aproveitando que um estudante em vias de se formar

    (Mrcio) ofereceu passar seu jaleco para a estudante kaingang. O jaleco tem uma

    importncia simblica para os mdicos, que os identifica em seu papel social, e seu

    traspasso significa uma forma de iniciao para quem o recebe. A ideia do professor era

    marcar sua entrada no curso e reunir pessoas afins e solidrias com ela, formando uma

    rede de apoio.

    Citarei em extenso meu dirio de campo que denominei a entrega do jaleco,

    para mostrar as sutilezas e os detalhes de aes e significados mobilizados no que

    interpreto como dilogo cultural.

    No dia da cerimnia eu fui junto com outras pessoas que

    formvamos parte do Grupo de Trabalho de Aes Afirmativas e do

    processo de disputa pela implementao do Programa. No grupo de

    convidados tambm estavam presentes representantes do movimento

    estudantil e representantes da comisso institucional que cuida do

    Programa de Aes Afirmativas na universidade. Chegamos um pouco

    antes das onze da manh, como combinado. A reunio era s 11h no

    prdio da Faculdade de Medicina, na sala de reunio da Comgrad. Na

    sala j estava o professor Omar que nos recebeu simpaticamente, e saiu

    para ver os ltimos detalhes da cerimnia. Chegaram depois a monitorade Luna e o padrinho dela no curso. Comearam a chegar os

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    representantes da Comgrad (professores e estudantes) para participar da

    reunio. Estas pessoas pareciam no perceber que tinha um grande grupo

    desconhecido para eles ocupando a metade das cadeiras da sala...

    A reunio comeou aproximadamente s 11h10 e uns cinco

    minutos depois j tinha acabado, sendo que a reunio acostuma ir at as

    12h, tal como foi anunciado no email do convite cerimnia. A pauta foi

    muito pequena. O coordenador falou que estava programada a entrega do

    jaleco para a estudante indgena como parte da pauta, mas como nem ela

    nem o estudante que ia entregar estavam presentes podia dar por

    terminada a reunio. Rapidamente, as pessoas da Comgrad comearam a

    sair da sala. Nosso olhar foi de estranhamento, no entendamos o que

    estava acontecendo. Comeamos a reagir, ser que acabou a reunio?

    Ser que saram definitivamente da sala? Ou eles voltaro? Eram as

    perguntas no ar. Mas tinha acabado verdadeiramente, ningum voltou

    alm do coordenador, que foi chamado pelo professor Omar, que ao

    voltar sala expressou surpresa pela desistncia dos seus colegas. A

    imprensa estava esperando no saguo a que comeara a celebrao. Em

    torno das 11h20 chegaram Luna e Mrcio, que haviam avisado ao

    professor que chegariam um pouco atrasados devido a compromissos na

    prpria universidade. A imprensa os deteve antes de entrar na sala para

    dar um depoimento. Eles entraram, a imprensa junto, eram umas quatro

    pessoas de diferentes jornais.

    Sentamo-nos em crculo, tal como estavam dispostas as cadeiras.

    Comeou a falar o professor Omar. Ele contou que foi procurado pelo

    estudante Mrcio, que se formaria no prximo ano, para fazer o gesto de

    entrega do jaleco para Luna, em sinal de acolhida. Frente a essa atitude

    ele ficou emocionado e decidiu fazer esta celebrao. Ele fez questo de

    ser o tutor de Luna, porque considera que tem que ter muito respeito pela

    diversidade cultural, inclusive levar em conta as dificuldades do dilogo

    entre culturas. Omar trabalhou como mdico em comunidades indgenas,

    inclusive na comunidade que Luna cresceu. Ele levou umas fotos que tirou

    naquela comunidade durante seu trabalho. Eram fotos de crianas, de

    famlias kaingang, que mostrou no final com muito orgulho. Esse gestocontribuiu a dar profundidade ao que para ele significa ser o tutor de

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    Luna. Segundo expressou, isso o emociona muito, porque as coisas

    parecem no ser por casualidade. O professor deu a palavra para

    Mrcio. Logo que comeou a falar, foi interrompido por um dos

    jornalistasque j tinham comeado a tirar fotos uma atrs da outra ,

    dizendo j vai comear a cerimnia?, se for assim, queria que

    arrumssemos as cadeiras para que seja mais fcil para ele tirar fotos...

    Mrcio se incomodou: olha, o que menos tem importncia neste

    momento a imprensa, o importante a cerimnia, se querem

    permanecer, vocs tem que se adaptar a ns. O jornalista ficou quieto

    [depois ele recebeu uma ligao pelo celular e atendeu no meio da

    cerimnia, falando alto e interferindo num momento emotivo]. Mrcio

    falou que a ideia do jaleco surgiu por seu compromisso com a educao

    em sade, que tem que mudar o conceito de universidade pblica e ao

    servio de quem ela est. Quando soube que um estudante indgena tinha

    entrado no seu curso (sem saber quem era), ele decidiu entregar o jaleco,

    que uma prtica comum na medicina, por simbolizar o traspasso de todo

    o que significava para ele esse jaleco quanto ao trabalho, aos ideais que

    ele tem em relao medicina social. Passava para a estudante indgena

    como reconhecimento de sua diversidade, como acolhida, e ainda como

    sinal de luta para mudar a universidade.

    Nessa altura as lgrimas, a emoo contida, invadiram a todos os

    presentes. Era o turno de fala de Luna. Ela expressou que estava muito

    emocionada, que esse momento era importantssimo para ela, e que

    significava muito para sua me [pena que no estava presente], por

    expressar uma acolhida, ao contrrio das manifestaes de rejeio de

    alguns estudantes nos primeiros dias de aula. Ingressar no curso de

    medicina da UFRGS significava muito para sua famlia, para sua

    comunidade, como reconhecimento.

    Mrcio entregou o jaleco a Luna, se abraaram, todo mundo

    aplaudindo. As falas seguintes dos presentes foram de acolhida,

    ressaltando a importncia da presena dos estudantes indgenas para a

    universidade, e ainda da iniciativa dessa cerimnia, como sinal de

    reconhecimento.

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    Omar retomou sua fala: este ato muito importante para mim

    por minha histria pessoal. Um parente meu, alemo, em 1865 formou

    parte dos colonos alemes que pediram para o governo canhes para

    defender as terras que estavam ocupando dos ataques dos kaingang, que

    resistiam espoliao do seu territrio. Ele interpreta este ato no

    presente como uma reparao aos kaingang espoliados de suas terras, e

    sofrendo a violncia dos colonos alemes apoiados pelo Estado com os

    canhes. Todos aplaudiram. O sentido da ao afirmativa estava

    compreendido.

    Um dia depois houve uma referncia sobre a cerimnia na

    comunidade de estudantes da UFRGS no Orkut. A representante discente

    que estava presente na reunio e foi embora, escreveu sobre a entrega do

    jaleco: estava na pauta da Comgrad, mas como na hora da reunio nem

    ele nem ela estavam l, todos fomos embora. Ficou o professor e o

    pessoal da barba e dreads, ahm, digo, diversidade cultural.

    Este episdio condensa as dificuldades e as sensibilidades que um dilogo

    intercultural implica. Por um lado, pessoas negando a possibilidade de se envolver

    numa situao de comunicao intercultural, a partir da reproduo de seu universo de

    valores pretendido universal e questionando qualquer ideia de diversidade cultural (tal

    como expressou de maneira pejorativa a estudante no Orkut e os outros membros da

    Comgrad que saram da sala, ou a atitude dos jornalistas, querendo impor uma

    organizao do espao e das emoes para mostrar melhor o espetculo de uma

    estudante indgena na UFRGS). Uma atitude tica perante a diferena que constitui

    sujeitos de um acordo de valores intercultural foi demonstrada no gesto de Mrcio e de

    Omar, por exemplo, a partir de compartilhar objetos com um alto valor simblico: asfotos da aldeia em que se criou Luna que levou Omar e que mostrou para todo mundo

    com tanto carinho; e o prprio jaleco, expressando um pacto entre universos de

    significados e valores.

    Se pensarmos como a instituio lidou num primeiro momento com as

    diferenas, vemos que a presena dos estudantes indgenas provocou em pouco tempo

    reflexes institucionais. Desde como resolver o tema da moradia das pessoas que

    moravam em aldeias, a alimentao, at questes pedaggicas. Essa diferenaindgena apresentou-se em alguns casos como dada de antemo, porm, revela que a

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    presena indgena, diferente da negra, no pde ser invizibilizada no ambiente

    institucional.

    Entretanto, os estudantes negros entraram na lgica da desigualdade

    socioeconmica, e no da diferena. Para comear, a diferena negra teve um lugar

    subordinado de expresso ao ser englobada dentro das cotas sociais. A resoluo cria

    uma categoria inexistente socialmente, que o negro de escola pblica, no

    permitindo se privilegiar a experincia racializada como definidora da poltica.12

    Isto gerou uma srie de problemas no ingresso de estudantes negros que no

    cumpriam com os requisitos de escola pblica que a resoluo institui. Esses estudantes

    entraram numa arena de dvidas sobre merecer ou no a vaga na UFRGS que

    fragilizava mais ainda sua situao perante o olhar branco da instituio.

    A ideia da no diferena apareceu em conversas informais com professores

    apoiadores das aes afirmativas, referindo que o multiculturalismo se aplicaria aos

    indgenas, mas no aos negros, j que esto inseridos na cultura letrada, nas instituies

    ocidentais. Mas qual essa definio de multiculturalismo? O que constitui a diferena

    cultural do ponto de vista branco? Ser que mais do que pressupor uma diferena

    cultural pensada por sujeitos por fora que se pretendem universais, no temos que

    entrar na prpria lgica da interculturalidade proposta e enunciada por indgenas e por

    negros, como prope Catherine Walsh? Parece que, quanto maior a distintividade

    imaginada, mais eu reconheo que ali h algo a escutar? Do contrrio, quando o sujeito

    tido e visto como algum previamente reconhecido em critrios manejados do ponto

    de vista branco, no surte surpresa, no exigiria ento uma escuta especfica.

    Caberia criar institucionalmente uma arena em que possa emergir a ideia de

    interculturalidade para sustentar um verdadeiro dilogo. Inclusive porque a prpria

    diferena constitui o horizonte da reivindicao. Segundo os estudantes indgenas e os

    representantes das aldeias, prevista sua volta comunidade dando uma retribuio daexperincia na universidade, sendo profissionais que mediaro mundos que continuaro

    sendo diferenciados. Todavia, no caso dos negros, o prprio sujeito do dilogo

    destitudo de antemo de diferena cultural. A reivindicao da diferena tnico-racial

    da militncia negra no parece ser usufruda e alcanar a mesma legitimidade que as

    reivindicaes indgenas.

    12

    Retomo nessa frase a reflexo apresentada pelo professor Jos Carlos Gomes dos Anjos numa palestrasobre aes afirmativas durante a Semana da Conscincia Negra da UFRGS em novembro de 2008.

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    Podemos apontar ento que o racismo que orienta as polticas e destitui o valor

    das poticas que compem uma perspectiva negra, que permearam toda a mobilizao

    pelas aes afirmativas na UFRGS, assim como o no reconhecimento de raa como

    produtora da desigualdade e de uma experincia subjetiva diferenciada, continua a

    destituir os sujeitos negros no prprio ato de pretender uma medida de incluso. O

    mundo acadmico parece destituir a possibilidade de reivindicar uma diferena por

    parte dos negros, impondo s demandas da militncia negra uma linguagem da

    desigualdade socioeconmica.

    Porm, esses olhares esto presentes dentro da universidade, s que no

    conseguem se expressar e ganhar visibilidade. Em vrias oportunidades ouvi estudantes

    negros falar sobre sua origem na periferia, o que seria essa periferia? Est expressando

    s uma posio socioeconmica? Parece-me que essa referncia periferia metfora

    de um olhar perifrico, de um local de produo de sentidos que desconstroem o centro

    de poder/saber. Traz consigo tambm uma esttica. Na semana anterior a esta

    conferncia, um estudante negro falava num evento organizado pelo Programa

    Conexes de Saberes na UFRGS que ele se sentia excludo na interao com seus

    colegas de curso, porque no compartilhava gostos musicais: de modo geral, seus

    colegas gostavam de rock, Chico Buarque, e ele gosta de samba e pagode, que os outros

    consideram degradante. Ressalto essa frase j que denota questes alm de uma

    discusso de gostos, uma esttica que expressa identidades, modos de ser, pensar e se

    posicionar no mundo.

    Podemos levantar uma srie de perguntas. Qual seria o impacto das aes

    afirmativas para outros olhares sobre a histria do Brasil, por exemplo? Seria to fcil

    afirmar que o Brasil uma democracia racial perante alunos que vivenciam o racismo

    brasileiro? Contar uma histria de um ponto de vista eurocntrico e excluir os povos

    que foram massacrados em nome da misso civilizatria ocidental? Podemos citar

    estes questionamentos entre outros.

    O que possibilitaria esta interculturalidade vivenciada na universidade, para

    alm do espao acadmico? Formar profissionais para dar conta de demandas que

    perpassam outros mbitos, j que os processos de desracializao devem ser amplos.

    Um exemplo o campo da sade, profissionais negros e indgenas, e inclusive brancos

    com outra perspectiva poderiam realizar prticas de desracializao do sistema, que

    apresenta dispositivos institucionais que atuam como polticas de exceo entre

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    cidados conforme raa/etnia, classe e gnero, e interpelam indivduos como sujeitos-

    objetos de tecnologias que os elegem ou excluem de cuidados com o corpo.

    O alto nmero de mortes maternas por eclampsia, o aumento de casos de

    contgio pelo HIV entre mulheres negras so questes que devem ser repensadas

    atravs de consideraes sobre vulnerabilidade social (no intrnseca pessoa ou grupo,

    mas gerada a partir de determinadas condies de colonialidade vivenciadas por essas

    mulheres). Citamos tambm o desrespeito s religies de matriz africana por no serem

    conhecidas sua filosofia e concepes de corpo e sade, o mesmo podemos falar com a

    sade indgena e seus modos diferenciados de sade, adoecimento e cura. Para reverter

    esse quadro precisamos no s sensibilizar e capacitar os atuais profissionais, mas

    tambm formar nas universidades pessoas com essa sensibilidade e conhecimento.

    O que uma perspectiva racial traria para os debates de sade pblica,

    considerando que o biopoder constitudo por mecanismos que elegem quais os

    segmentos da populao merecem de cuidados para viver, e quem dispensado de

    cuidados e morre? Num contexto em que esto sendo discutidas e implementadas

    polticas pblicas de sade indgena e de sade da populao negra, precisamente

    ressaltando uma diferena que tem a ver com uma vivncia da colonialidade do poder,

    como falamos anteriormente, as universidades deveriam ser vanguarda na formao de

    profissionais para essa mudana institucional.

    Como, ento, pensar a realizao de um novo pacto de valores a partir das

    reparaes e o reconhecimento aos povos que foram privados de direitos de igualdade e

    diferena, inclusive de sua prpria humanidade? Como imaginar a nao brasileira a

    partir do dilogo intercultural que fundamente uma sociedade plural, se os prprios

    sujeitos do dilogo so destitudos da possibilidade de se constituir e se mostrar na

    esfera pblica atravs da diferena?

    Vou finalizar com uma frase de Neuza Santos, que refere ao processo de tornar-se negro:

    a descoberta de ser negro mais que a constatao do bvio (alis, o

    bvio aquela categoria que s parece enquanto tal, depois do trabalho

    se descortinar muitos vus). Saber-se negra viver a experincia de ter

    sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas,

    submetida a exigncias, compelida a expectativas alienadas. Mas

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    tambm, e sobretudo, a experincia de comprometer-se a resgatar sua

    histria e recriar-se em suas potencialidades (Souza, 1983, p. 18).

    Com isto, quero motivar a plateia a pensar sobre como a universidade pode criar

    uma arena de dilogo intercultural, precisamente para que outros modos de se conceber

    como sujeito possam emergir e se expressar para provocar uma transformao

    institucional. A proposta seria a de levar a srio discursos, filosofias polticas que

    negros e indgenas trazem como desafio para repensar o espao acadmico. Porm, sem

    fixar o que entendemos por diferenas como mais uma normalizao do Estado, ou

    por parte de uma entidade ou lugar que se imagina por fora dos particularismos e se

    erige como universal.

    Nosso desafio parece ser o de encontrar possibilidades (assim como de assumir

    responsabilidades pessoais e institucionais), que propiciem uma desracializao das

    relaes sociais atravs de polticas pblicas e uma mudana institucional para criar

    uma arena intercultural de expresso e dilogo de mltiplos modos de ser, vivenciar e

    pensar o mundo.

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