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MAMíFEROS NÃO MARINHOS DO MIOCÉNICO DE LISBOA: ECOLOGIA E ESTRATIGRAFIA (NOTA PRELIMINAR) POR M. Telles ANTUNES * Doze anos volvidos sobre o início das nossas pesquisas siste- máticas em jazidas de vertebrados do Miocénico de LiSlboa parece de apresentar, senão memória desenvolvida cuja elaboração não foi ainda possível, ao menos um sumário do que foi realizado neste sector. Além de hreves referências históricas serão focados, nomeadamente, os aspectos seguintes: - composição das faunas; - :endemismo vs. europeísmo; - ecologia; - importância estratigráfica; correlações. Composição das faunas São conhecidos na região de Lisboa sete mvelS miocemcos com mamíferos não marinhos. Daqueles, os mais modernos- Helveciano V-c, VI-b e VI-c, segundo o critério de BERKELEY COTTER - mais não deram que pouquíssimas peças dentárias de mastodontes, penúria que quase os coloca a par dos depósitos tor- tonianos, onde não consta terem sido encontrados outros mamí- feros além de cetáceos. * Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. Bolseiro do Instituto de Alta Cultura.

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MAMíFEROS NÃO MARINHOS DO MIOCÉNICO DE LISBOA: ECOLOGIA E ESTRATIGRAFIA

(NOTA PRELIMINAR)

POR

M. Telles ANTUNES *

Doze anos volvidos sobre o início das nossas pesquisas siste­máticas em jazidas de vertebrados do Miocénico de LiSlboa parece de apresentar, senão memória desenvolvida cuja elaboração não foi ainda possível, ao menos um sumário do que foi realizado neste sector. Além de hreves referências históricas serão focados, nomeadamente, os aspectos seguintes:

- composição das faunas; - :endemismo vs. europeísmo; - ecologia; - importância estratigráfica; correlações.

Composição das faunas

São conhecidos na região de Lisboa sete mvelS miocemcos com mamíferos não marinhos. Daqueles, os mais modernos­Helveciano V-c, VI-b e VI-c, segundo o critério de BERKELEY

COTTER - mais não deram que pouquíssimas peças dentárias de mastodontes, penúria que quase os coloca a par dos depósitos tor­tonianos, onde não consta terem sido encontrados outros mamí­feros além de cetáceos.

* Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa. Bolseiro do Instituto de Alta Cultura.

SGP
Referência bibliográfica
Boletim da Sociedade Geológica de Portugal, Vol. XVII, Fasc. I, 1969-70.
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Quatro níveis contêm faunas significativas: a parte superior do -Burdigaliano I (conjuntamente com o seu seguimento imediato, que tem sido considerado como a porção inferior do Burdig. II), o Burdigal,iano IV-b, o Helveciano V-a2 e V-b.

O mais antigo foi o primeiro onde foram encontrados restos de mamíferos não marinhos, exumados em barreiros explorados outrora nas imediações do antigo matadouro e do Liceu de Camões (Horta das Tripas, etc.). Foram descritos por ROMAN (1907). Porém, com as jazidas ocultas por edificações, mais nenhum mate­.rial pôde ser aí obtido desde então. Melhor conhecimento dos mam~feros dos alvor,es do Miocénico apenas foi possível graças à exploração de depósitos sincrónicos (quiçá pouco mais modernos) fugazmente expostos por ocasião da abertura dos alicerces da Universidade Católica; dentes isolados permitiram caracterizar mais uma denena de espécies, na maioria de pequenos mamíferos, colmatando assim uma lacuna importante, a ausência de micro­faunas.

O Burdigaliano IV-b (areias da Quinta do Bacalhau) corres­ponde, como os demais, a uma oscilação regressiva. A fauna terio­lógica é'razoàvelmente conhecida quanto a espécies de porte médio a gr*nde.1 Cont*do, tesulfaram) infr~tífetas t~das ~s teqtati~as visando a colheita de microfauna. O Burdigaliano IV-b foi estu­dado, sobretudo, por ZBYSZEWSKI, autor de uma memória (1949) dedicada à estratigrafia e às faunas de vertebrados. Conquanto de importância fundamental, elementos novos impõem algumas recti­ficações e acrescentos.

O Helveciano V-a sucede aos depósitos do IV-b. Inclui, na base, depósitos relacionados com importante transgressão (V-a1),

os calcários do Casal Vistoso, ricos de algas melobesiáceas, de Chlanzys praescabriuscula, etc. Pertenceriam ao Helveciano inferior, segundo COTTER . .Acumulações de Helix no topo destes calcários anunciam nova regressão, em relação com a qual se verificou o depósito de areias fluviais. Exploradas em poucos areeiros, foram tidas por pouco importantes, s:endo de lembrar apenas algumas referências de ROMAN, ZBYSZEWSKI e poucos mais. Não obstante, persfverá~os nfs pepquisrs, cotp ,assfnaláfel êfito, I a po~to d~ o

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QUADRO I

Mamíferos não marinhos do Miocénico de Lisboa

o rd e m

Fan~i1ia

Espécie .-------------1 BURDIGALlANOI HELVECIANO

Divisões, segundo COTTER 111 III IV-a IV-bl V-a V-b V~, VI-a VI-b VI-,

CARNIVORA URSIDAE

Amphicyon Sp. _ • • . . • • Amphicyon giganteus (SCHINZ) Amphicyon major BLAINVILLE Hemicyon sansaniensis LARTET Hemicyon cf. sansaniensis LARTET

MUSTELIDAE Ischyrictis zibethoides (BLAINVILLE) (?) Laphyctis sp. ••• _ • • Manes cf. munki ROGER .. • Martes cE. samsaniensis (LARTET) Mionictis dubia (BLAINVILLE). •

VIVERRI'DAE Herpeste! aurelianensis (SCHLOSSER).

FFTIDAF l'ertdyromys cr. bamaat-yas \lVIAJUK} ••

Pseudodryomys simplicidens DE BRUIJN. Pseudodl-yomys cf. simplicidens DE BRUIJN . Pseudodryomys sp.. . . P"aeal'mantom)'s novo sp. . • . •

CRICETIIDAE EUC/'icetodon intralactoremis (VIRET) Megacricetodon minol' (LARTET) Democricetodon sp. • • • • • • • •

INSECTIVORA ERINACEIIDAE

Amphechinus sp. . . . • • Galerix exili! (BLAINVILLE).

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I· .. · .. i * - presença (formas primeiramente identificadas por nós, ou por nossa iniciativa)

- presença carecendo confirmação o - presença assinalada anteriormente

O) - forma distinta das outras citadas, identificada com reserva

NOTA: embora os Sirenídeos habitem frequentemente os rios, não foram incluídos neste Quadro (duas sp. citadas na bibliografia: Halianassa cuvieri (CHRISTOL) e Thalatto­sil'en petel'si (ABEL». Restos .de Sirenídeos são comuns desde Q Burdigaliano ao Helveciano V-c, tendo sido geralmente atribuídos a Cetáceos. Estes estão bastante bem representados no Helveciano superior e no Tortoniano (VI-a a VII.b), de onde provêm igualmente peças dentárias de Pinípedes.

BoI. da Soc. GeaI. de Po~tugal, VaI. XVII, 1969

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nível em causa (V-a2) ser, na actualidade, aquele onde é conhe­cida a fauna mais rica, da qual referimos já algumas par:ticula­ridades.

Suposto 3Jntes o principal nível ossífero, o Helveciano V-b (areias do vale de Cheias) assenta directamente no calcário da Musgueira (V-aa), considerado por CoTTER como o derradeiro do Helveciano V-a. Intensamente exploradas, as areias do V-b for­neceram numerosos fósseis de vertebradO's; contudo, sobejam os restos de mastodonte relativamente aos de animais de menor porte, sendo desconhecidos os micromamíferos. Salvo neste sector, a representação da fauna pode ser considerada assaz satisfatória.

O quadro I dá uma panorâmica dos resultados obtidO's; assi­nahm-se com asterisco as formas que primeiramente identifi· cámos ou que outros determinaram por 1niciativa nossa. Não intentamos dar ideia da abundância relativa, pois O'S fósseis foram geralmente adquiridos aos operários dos areeiros, e estes, em regra, apenas aproveitavam os exemplares maiores, desprezando outros. Limitar-nos-emos, portanto, a dar conta de observações concernentes às espécies melhor representadas, bem como de alguns aspectos relativos à microfauna (visto as colheitas terem, neste caso, significado quantitativo).

Notaremos, essencialmente: - a fauna mais antiga (I), com Brachyoduse rinocerontes,

ainda não inclui proboscídeos e). - na fauna do IV-b estão bem representados os mastodon·

tes, mas falta pràticamente Deinotheriunz; última aparição de Brachyodus, presença de Anzphinzoschus.

- na do V-a2 são assinaláveis a relativa frequência de Dei­lz.otheriu11l, a abundância de Brach.ypotheriunz aurelianense e de Aceratheriu11l platyodon em contraste com a presença discreta de Hispanotheriu11l e de Dicerorhinus, a falta de Anchitheriunz (repre­sentado no IV-b e no V-b), a desaparição de Brachyodus e a presença de um carnívoro enorme, Anzphicyon giganteus. Ê esta a fauna melhor conhecida e, aparentemente, a mais rica.

(1) Sendo. animais de grande porte, a ausência do.s seus vestígio.s é tanto mais significativa, po.is não. passam fàcilmente de<spercebido.s.

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- na do V-b abundam mastodontes, mas quase não há dino­térios; é importante a renovação .evidenciada pela pujança de Hispanothel'ium, pela presença de Acel'athel'ium tetradactylum e de Dicroceros elegans, pela frequência de bovídeos (Eotl'agus), etc.; raramente, verificou~se sobrevivência de formas arcaicas para a época, tais como Bl'ach,ypotherium aUl'elianense e Cainothel'ium (ambas encontradas no Burdigaliano inferior de Lisboa), além de Bunolistriodon lockharti, que não fôra substituído por Lisft'iodon splendens.

- dentre os lagomorfos, há predomínio absoluto de Lagopsis penai.

- quanto aos roedores, é particularmenteassinaláv.el a ele­vada proporção de glirídeos, mas os sciurídeos não são raros; por outro lado, é digna de registo a fraca representação de um grupo tão numeroso e importante, o dos cricetodontídeos.

Endemismo vs. europeísmo

A situação excêntrica da região de Lisboa no extremo oci­dental de uma península separada do r,esto do continente europeu pelas montanhas pirenaicas, faz entrar em jogo barreirassusceptí­veis de wndicianar as migrações dos mamíferos terrestres. Aquém­-Pirenéus, os vastos planaltos do interior da Península .Ibérica, mais ou menos áridos - pelo menos em certas épocas -, dificulta­vam a progressão dos animais de habitat florestal e, mais ainda, dos que vivem enfeudados a regiões muito húmidas (pântanos, bordadura de cursos de água ou de lagos); por outro lado, de modo algum impediram a circulação das faunas de savana ou de estepe. A migração dos primeiros apenas foi possível em épocas particularmente propícias, o que, aliás, favoreceu a sobrevivência de certas espécies na ausência de competidores directos mais pro­gressivos. Por exemplo, Bl'achypotherium aurelianense atinge o Helveciano médio, enquanto que, em França, já no Burdigaliano superior tinha sido substituído por B. bl'achypus.

Devido às circunstâncias invocadas, bem como à maior dis­tância relativamente ao resto da Europa - que poderia facilitar

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o isolamento e, por acr,esClmo, a génese de endemismos -, é muito significativo o facto de, num total de mais de 50 espécies identificadas, bem poucas poderem :eventualmente ser endémicas (Hispanothel'ium matl'itense, Pl'aeal'mantomys sp.), e mesmo assim sob reserva por poderem ter igualmente existido além~Pirenéus

(tal como sucedeu com Cainothel'ium miocaenicum, Lagopsis penai e Hetel'oxel'Us l'ubricati).

Tal teor de endemismos, baixíssimo, parecerá estranho quando comparado à proporção muito elevada que neozoólogos admitem existir na fauna teriológica moderna da Península. Porém, na imensa maioria, não é ultrapassado o nível da subespécie, minúcia que a paleontologia não pode as mais das vezes alcançar.

Seria sobremaneira útil a comparação com as faunas espa­nholas. Mau grado nosso, deixamos o assunto em. suspenso por motivos ponderosos. Efectivamente, muitas das jazidas de idade comparável apenas forneceram material menos rico, ou ainda por estudar a fundo; quando se passa o contrário - é o caso frisante do Burdigaliano do Vallés-Penédés, valorizado pelo labor ,exce­lente do Prof. M. CRUSAFONT et ai. - as associações aí reconhe­cidas diferem das nossas, posto que sejam numerosos os elemen­tos comuns. Factores ecológicos parecem ter ditado a sua lei: mesmo que algumas das formas identificadas pela primeira vez no Miocénico catalão não sejam realmente endémicas, há dife­renças qualitativas e quantitativas cuja interpretação exige análise mais pormenorizada.

Pelo que foi dito, as faunas miocénicas olisiponenses asseme­Lham-se estreitamente às da Europa transpirenaica; as comparações que ora intentamos são, portanto, legítimas e procedentes. Insis­tiremos, em particular, no concernente às faunas de algumas das jazidas francesas mais representativas.

ECologia

Atendendo à importância dos estudos paleoecológicos pelo que contribuem para melhor compreensão das condiçõesambien­tais de outrora, parte da nossa actividade foi~lhes dedicada. Sem

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repetir o que já expusemos (ANTUNES, 1965; GINSBURG & ANTU­NES, 1966, 1968), convém destacar-alguns tópicos principais.

BURDlGALIANO I: predominam formas tidas por próprias de biótopos florestais - Dicerol'hinus e a maior parte dos Glirídeos, por ex. -, ou de regiões mais ou menos pa:ntanosas ou vizinhas de rios, como Brachypotherium e sobretudo Brachyodus (provável equivalente ecológico dos hipopótamos).

BURDIGALIANO IV-b: devia existir um estuário onde passou a predominar s'edimentação de areias fluviais, mas também houve depósito de argilas, por vezes ricas de vegetais. Continuam a ser frequentes Bl'achyodus e Brachypotherium; regista-se, todavia, o eclipse de Dicerorhinus, juntamente com a presença de Aceratherium platyodon, espécie que, pela anatomia dos membros (e por outras razões) bem poderia ser essencialmente habita:nte de savana. Mau grado o aparecimento, vulgar, de animais próprios de regiões encharcadas, parece notar-se rarefacção das formas silvícolas. Não é de pôr de remissa a possibilidade de o clima se ter tornado menos húmido em relação ao clima da região nos primeiros tempos do Burdigaliano.

HELVECIANO V-a2: breve episódio r,egresslVo, caracterizado pela deposição de sedimentos fluviais (areias, frequentemente grosseiras) nas regiões mais para o interior da bacia, passando lateralmente a sedimentos estua:rinos p. d. e, mesmo, a sedimentos marinhos .. Assinalável a relativa frequência de Deinotheriu1Jl, embora, entre os proboscídeos, se mantenha a primazia dos mas­todontes. Os autores são concordes em admitir - com fundadas razões - sérias diferenças ecológicas entre uns e outros, estando os dinotérios mais estreitamente vinculados a haibitat ,florestal. A pre­ponderância de Brachypotheriu1n, a presença de lontra (Mionictis) e de Amphicyon giganteus (cuja subsistência exigia caça abundante e não rápida, o que geralmente não é o caso dosheribívoros de savana ou de estepe), bem como as características da microfauna,

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próxima da do Burdigaliano inferior, militam a favor da hipótese de a região ser bastante húmida e densamente florestada. Por outro lado, sabemos através das faunas ictiológicas marinhas que a temperatura das águas era elevada, o que certamente tinha reper­cussão no clima.

HELVECIANO V-b: reinavam condições paleogeográficas apa­rentemente semelhantes às de Helveciano V-a2, continuando a existir um estuário cujos limites variaram no espaço e no tempo. A evolução deste foi seguida em pormenor na região da Char­neca do Lumiar (ANTUNES & TORQUATO, 1969).

A fauna, paupérrima de Deinotherium, inclui Anchitherium, bovídeos (Eotragus) e rinocerontes corredores (Aceratherium tetra­dactylum e, sobretudo, Hispanotherium matritense) largamente predominante sobre rinocerontes essencialmente silvícolas (Dice­rorhinus) ou de habitat pantanoso (Brachypotherium). Estes factos, e outros, denota:m clima muito menos húmido que o do Helveciano V-a2, com provável incremento de savanas ou de estepes. Esta tendência para certa aridez deve ter-se acentuado no fim do Helv. V-b e durante o Helv. V-c, como o comprovam a maior proporção de feldspatos conservados nas areias e a impor­tância depois adquirida pelos fenómenos de precipitação química (calcários de precipitação, gesso).

Importância estratigráfica; correlações

Não é demais acentuar que a importância estratigráfica do Miocénico de Lisboa transcende o âmbito meramente local, quer pela posição geográfica - por estar sito no extremo ocidental de uma região, a Península Ibérica, de características fisiográficas peculiares -, quer pela singularidade de, ,embora essencialmente marinho (e muito compldo), incluir intercalações f.luviais fossi­líferas, permitindo correlações com depósitos do interior.

Sendo pouco pronunciado o carácter endémico das . faunas, é fora de dúvida que, mau grado as serranias pirenaicas actua­rem como barreira, foi possível o intercâmbio de populações da

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mor parte das espéóes. Também, o grau de evolução é semelhante aquém, e para lá dos Pirenéus. Tanto monta para 'que as faunas teriológicas possam servir de base para comparações cronostra­tigrMicas.

Assim, notemos que a fauna:

a) do Burdigaliano inferior I é muito semelhante às do Bur­digaliano inferior clássico do Orléanais, designadamente às dos importantes jazigos de Ghitenay e ChiUeurs aux Bois, bem como à de Estrepouy, Armagnac (GINSBURG, 1961). Nenhuma fauna deste tipo é bem conhecida em Espanha;

b) do Burdigaliano IV-b é atribuída comummente ao Bur­digaliano superior por critérios de posição (ocorre entr,e os depó­sitos do Burdigaliano IV-a, considerados já camo do Burdig. superior, e os do V-a1 , supostos helvecianos). A ausência, ou pelo menos a raridade, de Bunolistriodon lockharti (nunca encontrado no IV-b, embora apareça com fr:equência no V-a2 e V-b) , assim como a quase ausência de Deinotherium 'São arcaísmos. Os ele­mentos actualmente disponíveis não permitem decidir com segu­rança; contudo, podemos admitir, apesar de algumas diferenças, que a fauna do IV-b seria aproximadamente equivalente das do Burdigaliano superior francês (La Romieu, Baigneaux), e pouco mais moderna do que a fauna do Burdigaliano médio de Artenay;

c) do Helveciano V-a2, aígo modernizada em relação à pre­cedente, se assemelha (talvez não exactamente) à fauna rica e abundante dos «faluns» de Anjou, Touraine, etc. Uma e outras parecem sincrónicas e de igual modo relacionadas com a mesma grande transgressão que assinala, nas regiões consideradas, o iní­cio do Helveciano. Diferença notória, a falta de Brachyodus em Lisboa,. está certamente associada à des,truição dos habitats pró­prios no decurso da mesma transgressão. Por outro lado, é com­parável o papel desempenhado em ambos os casos pelo maior dos carnívoros então existentes, Amphicyon giganteus, extinto logo depois.

d) do V-b difere bastante da do V-a2. :E muito próxima (e sensIvelmente contemporânea) da de Sansan, atribuída ao Hel-

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veciano médio. Ambas correspondem à fase regressiva subsequente à transgressão do Helveciano inferior. Tal como a fauna de Sansan comparativamente à dos «faluns», também a do V-b é indubità­vdmente mais pobre do que a do V-a2; em ambos os casos houve extinção ou rarebcção dos frequentadores de pântanos ou das regiões húmidas da bordadura dos rios, mal compensada por alguns imigrantes. De modo geral, as formas de savana ou estepe são comuns à fauna do V-b e à de Sansan, se bem que haja alguma diferença no porte dos animais (algo menores em Lisboa, onde as condições ambientais parecem ter sido menos favoráveis, com aumento de aridez). Também em Lisboa, nota-se a sobre~ vivência de algumas formas arcaicas - Brachypotherium aurelia­nense, Bunolistriodon lockharti - não substituídas até então por B. brachypus e por Listriodon splendens, respectivamente; pelo menos qrianto aos Brachypotherium, este facto está relacionado sem dúvida com a adversidade do clima,que dificultaria a pro­gressão.

Muito aproximadamente, a idade do V-b de Lisboa é a da jazida de Quintanelas: perderam validade, entretanto, todos os argumentos invocados em prol de idade mais recente com base em certas formas representadas em Quintanelas (Dorcatherium, Hispanotherium), pois todas ocorrem no Helveciano lisbonense. Esta conclusão é concorde com os elementos fornecidos pela estra­tigrafia.

Não é ainda possível estabelecer correlações satisfatórias com outras jazidas portuguesas. As de Amor (Leiria) forneceram restos mal conservados de uma fauna que, cronolôgicamente, poderia corresponder a quaLquer desde o IV-b ao V-b; os conhecimentos actuais não permitem ir mais longe.

Observaremos a finalizar que, apesar do sensível acréscimo de material proveniente do Miocénico do Ribatejo, todas as asso­ciações de mamíferos aí conhecidas são mais modernas do que a do Helveciano V-b, isto mesmo no caso de algumas - níveis inferior,es da Azambujeira, perto de Santarém - situadas abaixo (estratigràficamente) das mais antigas citadas antes. As correla­ções com o· Miocénico de Lisboa não podem, por enquanto, ser estahelecidas· nesta base.

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o quadro II apresenta uma sÚffiula do que foi exposto neste domínio.

QUADRO II

Correlações entre algumas das principais jazidas de Portugal e de França com base nas faunas de mamíferos (estado actual dos conhecimentós)

Região de Lisboa Outras localidades

Jazidas francesas Estratigrafia portuguesas

V·b: Charneca do Lumiar • Quintanelas .Sansan (Gers) . · HeI veciano (Olival da Susana, Quinta (Sabugo) t médio da Silvéria, etc); região de I CheIas (Quinta da Fari- ?

nheira, etc.)

V-a2 : Quinta das:Pedreiras · . . . Amor . Faluns de Anjou, • . Helveciano (Lumiar); Quinta do Pom- (Leiria) Touraine, Nérac inferior beiro (CheIas), Quinta da I Conceição, etc.

~ IV-b: Charneca do Lumiar . . . .Baigneaux, La • .Burdiga-(Vale Pequeno); níveis in- Romieu liano supe-feriores da Quinta das Pe- rior dreiras; Quinta da Carra-pata, Quinta do Narigão, Quinta da Noiva, etc.

(sem equivalente conhe- . . Artenay • Burdiga-cido) lianomédio

I (parte superior) e talvez II · . . . . .Chitenay, Neuvi-. • Burdiga-(base): Horta das Tripas; lle-aux-Bois, Chi- liano infe-Universid(lde Católica lleurs, Estrepouy rior

BIBLIOGRAFIA

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-- 1961 - Notes... III - Cainotherium. Id., XIV (1). -- 1964 - Notes... N - Prés'ence de Tr;ceromeryx pacheco; ViU.,

Crus. & Lavocat (Giraffoidea, TriGeromerycidae). Id., xv (2).

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-- 1965 - Notes ... V - Vn Schi~otheriiné du genre PhyUotillon ~Chalicotherioidea, Perissodactyla) dans l'Helvétien V-b de Char­neca do Lumiar. Remarques écologiques sur Ia faune de mammi­feres. Id., XVI (1-2).

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BERGOUNIOUX, F. M., ZBYSZEWSKI, G. & CROUZEL, F., 1953 - Les Mastodontes miocenes du Portugal. Mem. Servo Geol. Portugal, N. S., 1.

GINSBURG, L. & ANTUNES, M. TELLES, 1966 - Considerations sur les mastodontes du Burdigalien de Lisbonne et des sables . de l'Orléa­nais (France). Rev. Fac. Ciênc. Lisboa, 2.a sér. C, XIV (2).

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