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QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA
Maria Beatriz AlbernazInstituto Superior de Educação do Rio de Janeiro, Brasil
Resumo:Trata-se de um ensaio que parte de quatro conceitos fundamentais na educação (paideia, cultura,formação e metamorfose/iniciação) e de um meio ou de uma visão pedagógica do olhar, pelaleitura da poética de Clarice Lispector, em três dos seus romances (“Uma aprendizagem ou Olivro dos Prazeres”, “A maçã no escuro” e “A cidade sitiada”). As referências a proposições deHeidegger sobre a necessidade de superação da metafísica se dão no sentido de consolidar arelação do pensamento poético com a noção de physis na busca por um modo de ser na poliscom a possibilidade de reunir aprender e ser, sentir e pensar. Ao final, inclui-se uma série depoemas que retomam aqueles quatro conceitos e um meio na tentativa de concretizá-los porimagens e figuras colhidas nos romances de Lispector.
Palavras-chave:Paideia poética, cultura, formação, metamorfose e iniciação, experiência pedagógica, olhar,Clarice Lispector
Abstract:This is an essay that departs from four fundamental concepts in education (paideia, culture,formation and metamorphosis/initiation) and of a mode or of a pedagogical approach, by thepoetic reading of three Clarice Lispector novels ("An Apprenticeship: or, the book of delights","The apple in the dark" and "The situated city'). Reference to Heidegger's propositions on theneed to overcome metaphysics are given to consolidate the relationship of poetical thinking andthe notion of physis in the search of a way of being in the polis with the ability to join learningto being, feeling and thinking. At the end, a series of poems which take those four concepts inan attempt to achieve them through images and metaphors collected from Lispector novelsreferred to above.
Key words:Poetic paideia, culture, formation, metamorphosis and initiation, pedagogical experience, look,Clarice Lispector
QUATRO CAMINHOS E UM MEIO PARA A PAIDEIA POÉTICA
Na paideia poética, destacam-se cinco modos de conhecer, em que o ser humano
se coloca como destinação da qual não se pode fugir. Na realidade, são quatro modos e
um meio. O último talvez seja a síntese dos anteriores que, mesmo podendo ser
pensados em termos específicos com relação ao momento histórico e local em que
aconteceram, não correspondem a uma cronologia, nem se circunscrevem a períodos
datáveis. O último “meio modo” de conhecer é uma síntese, não a negação dos
anteriores ou a criação de algo do qual os quatro modos não participem.
Apreender, pensar, refletir, compreender, entender, formular, conjecturar... o rol
de palavras associadas à aprendizagem é imensa. Nem sempre em escolas, a
aprendizagem é parte de um projeto maior de inserção das pessoas no mundo, muitas
vezes confundido com a aquisição de atitudes e instrumentos conquistadores de poder.
A simples contraposição a esse equívoco reducionista incorre no erro de, polemizando,
esquadrinhar o pensamento na procura de argumentos invencíveis e, assim, perder de
vista a poesia como lugar a habitar.
Pela abertura, empenho e disposição, incorporam-se mudanças, necessidades e
alívios. Com simplicidade, reconhece-se a alegria e percebem-se sofrimentos,
independentes ambos de preceitos ordenadores. Perder, sem colocar tudo a perder: é
essa a proposta nesse ensaio de aproximação a quatro modos de aprender poeticamente
e um meio de se acercar do tudo que é possível ser.
1. Paideia
Paideia é a palavra grega para designar um percurso de formação educativa,
através do qual determinados habitantes tornavam-se cidadãos. Diferentemente do que
existe hoje, a palavra “Paideia” reúne as ideias de educação e de cultura num só projeto
em que participam todas as áreas de saber da pólis, sem hierarquia. Todas deveriam
convergir para a Paideia. Werner Jaeger1 disseminou essa concepção de Paideia pela sua
obra enciclopédica que analisa as diferentes contribuições da literatura (lírica, trágica e
épica), da política, da filosofia, da medicina e da legislação para a concretização de um
ideal de formação da civilização grega. Quando se fala em paideia, Jaegger é referência
obrigatória. Foi ele quem indicou uma trajetória da Paideia grega como acordo em torno
de normas; como projeto do homem político unido ao do homem heroico; como sentido
histórico enquanto realização de um destino vital; e como presença constante dessas
diretrizes em todas as ações formativas.
Fundamental nessa trajetória foi a capacidade dos gregos reunirem as duas
predestinações humanas em uma só: a um tempo, sendo-se distinto e destinado. Esse
princípio da Paideia pode ser traduzido pelo termo areté. Nesse atributo que o homem
esforçava-se para expressar de maneira cada vez mais inequívoca ao longo da sua vida
residiu um conjunto de qualidades morais, espirituais e físicas. O homem que possuía
areté era dotado de uma imagem difusa da virtude, e estava predestinado a ser regido
por deveres. Enquanto predestinado, esse homem não tinha de procurar adquirir
determinadas noções. Sua educação acontecia, portanto, no sentido de cultivar seu
1 JAEGER, W. Paideia - A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira, São Paulo, Martins Fontes, 1995.
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sentimento de dever para com areté. Educação seria então a conquista do que já existe;
envergadura das virtudes naturais. Os jogos de guerra, olímpicos, amorosos, florais ou
fúnebres constituíram a arena por excelência na qual se conquistava areté.
Quando a figura do herói aristocrático educado pela ideia de areté2 começou a
fazer parte do passado e da mitologia recontada aos cidadãos – que as ouviam com
respeito, mas também com distanciamento –, firmou-se a noção de Paideia difundida
pela ação dos sofistas na pólis. Essa Paideia, voltada para a educação com vistas à ação
individual no Estado, refletia a separação entre natureza e ética, público e privado; e
propunha ainda o “ensino” da sabedoria, isto é, a técnica para a transmissão de saberes
científicos, matemáticos, poéticos, musicais, gramaticais, retóricos e dialéticos.
Mas o que significa a retomada da ideia de Paideia neste ensaio? A necessidade
de – na invenção de uma Paideia poética – reconhecer o caráter multidimensional da
educação e a circularidade dos saberes (ausência de hierarquia); entender educação
como cultura; e, principalmente, possibilitar a dinamização tanto de Paideia quanto de
poética, considerando que, na contagem do tempo – aspecto cultural de um povo –,
atribui-se singularidade a momentos da existência, pela determinação de lugares
específicos onde passar tais momentos e pela prática ritualística que busca a sua
repetição.
Leo Frobenius3 descreveu o sentido paideumático da existência – quando se
reúne o destino existencial da pessoa em particular (distinção) com o da pessoa em
comunidade (destinação) – como possibilidade de ser humano no mundo. Nessa
convergência, também expressa pela reunião de sensibilidade e racionalidade, a
paideuma se dá nessa convergência.
A experiência da razão permite tanto a presença na vida tumultuosa da rua
quanto o distanciamento nos ambientes, com a sua identificação com épocas
2 Tal qual a epopeia de Aquiles contada por Homero na “Ilíada”.3 Leo Frobenius (1873-1938) foi um estudioso alemão dos mitos, um etnógrafo-filósofo que em fins do século XIX e princípio dos XX, buscou contribuições da cultura africana para pôr em cheque a hegemonia da racionalidade como via exclusiva do pensamento. A obra a que fazemos referência aqui é “Paideuma”, no qual ele visualiza a cultura como um ser vivo. À parte a questão própria da época, de adesão a uma visão orgânica da realidade, tomando o corpo humano como modelo, esse livro permanece instigante no que tange à aproximação da questão cultural aos modos de ser da humanidade. Dessa forma,ele eleva mitos e rituais, de manifestações representativas de diferentes níveis evolutivos de compreensão da realidade, a modos da linguagem humana poder dizer o eterno, em sua perplexidade. Sem paideuma, sem essa incorporação da cultura, que vai muito além de meios racionais de expressão e obviamente muito além da aquisição ou da repetição mecânica para a reprodução de manifestações, o homem “envelhece” e se torna mudo diante de questões essenciais para que ele possa permanecer um ser vivo, desperto pela sua pequenez diante da grandiosidade do inexplicável. Cf. FROBENIUS, L. La cultura como ser viviente. Trad. Máximo José Kahn. Madri, Espasa-Calpe, 1934.
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longínquas. Razão é experiência do pensamento no tempo, em que se vê e diz o futuro,
no reconhecimento de um passado no presente; implica deslocamento no tempo. Pela
sensibilidade figura-se, na rua ou em lugares distanciados, a aspiração selvagem, os
sentidos abertos para o sangue nos caminhos; possibilita que a vida passe a circular
quente por os espaços que parecem inertes. Sensibilidade é a experiência de
ressurgimento do espaço como lugar pulsante. Mas, enfim, uma e outra são formas
esquecidas dos nossos usos atuais da razão e do sentir.
A identificação de Razão como uso exclusivo da inteligência lógica certamente
reduz aquela concepção poética. Razão não é uma expressão da competência retórica.
Quem já passou por uma rua tumultuosa e pôde abraçar sua história com o pensamento,
solidarizando-se com a sua destinação, sem estagná-la, nem recusando o que ela é, sabe
que razão exige mobilidade do pensamento; sua fluidez para deslocar-se no tempo.
Quem sentiu, o sangue subir à cabeça, não apenas em momentos de raiva, mas em
momentos de desobstrução do velho e de geração de novos lugares de ser, sabe que
sensibilidade é mais do que simplesmente sentimento ou vivência natural dos sentidos,
mas experiência dos lugares em sua transformação constante. A visão de razão e de
sensibilidade, com essa abrangência, sempre esteve na raiz da paideia, poeticamente,
ultrapassando lógica, retórica e contemplação subjetiva.4
Em realidade, a visão abrangente e convergente desses termos também está
presente na tradição ocidental. Remonta à experiência de pensamento dos gregos, em
período pós-homérico (cerca de 850 a.C.) e pré-socrático (cerca de 450 a.C.). Heráclito
é um proeminente pensador dessa época intermediária entre a vigência da paideia
poética e da paideia platônica. Em alguns dos seus remanescentes fragmentos, ele trata
do logos, que vem a ser a raiz do que hoje chamamos “razão”. A apreensão pelo
pensamento ou simplesmente o logos então considerado extrapolava em muito o uso da
nossa capacidade racional tal como hoje a compreendemos. O caminho do pensador
enquanto alguém que fala aquilo que aparece, aquilo que se produz e se estende diante
de nós para que esse se mostre a partir de si mesmo, acabou se reduzindo à concepção
atual do pensador como alguém que dá a medida para o fazer e o não fazer. A cuidadosa
reflexão desses fragmentos feita por Heidegger nos mostra que a origem da palavra
4 Assim como reconhecemos, na tradição ocidental, a areté, a paideia sofística e a paideia filosóficaconsolidada pela escola platônica, nela também persiste a vertente educadora de Homero e outros poetas.
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légein em grego como “pousar” indica uma percepção mais rica da linguagem e do
pensamento humano. Um pensador “todo ouvidos” não pensa-sobre mas faz parte do
que lhe é inspirado; não “faz uso” do que seus sentidos lhe anunciam. Ele “pousa” ou
estende-diante uma coisa junto da outra – coisas que se afastam ou se opõem – e as
reúne, sustentando-as em sua singularidade.
Consideremos pois o que diz Heidegger sobre o logos enquanto o que escuta e
diz “a presença do presente”.5 Postado na “tempestade do ser”, o pensador deixa que as
coisas se produzam e durem no desvelamento, mas, com seu pensamento, não pretende
fazer presente o desvelado e sim deixar que se ilumine o velado. O pensador nomeia o
esquecido. E não vê o verdadeiro na multiplicidade do sempre novo, mas na
simplicidade dessa clarificação. O pensador pensa em direção da clarificação. No fogo
da sua meditação, ele traz o espaço livre onde todas as coisas, particularmente as
opostas, chegam a manifestar-se. Pensamento vem a ser presença do presente;
nomeação do esquecido; e condução para o espaço livre.
Quanto ao pensamento da sensibilidade, procuramos também o amparo daquela
mesma reflexão heideggeriana sobre as sentenças de Heráclito. E acatamos a
advertência quanto à superficialidade de se pensar physis (ser-manifestando-se) apenas
como emergir. Physis é o nome que está na raiz do que aqui antes chamamos
“sensibilidade”. No entanto, essa emersão se dá desde o velamento. É possível que
justamente onde se nomeia algo como concreto, queira se pensar no que é considerado
abstrato. Pode ser justamente que, para não imergir no velamento, esse mesmo velar-se
esteja em constante emersão. Sensibilidade, portanto, vai bem além do que sentem os
sentidos, assim como falar é mais do que emitir sons. Tomemos também aqui o
acontecimento da clarificação (enquanto meditação e recolhimento que conduz para o
espaço livre) como o próprio “fogo do mundo”, que se nos dá à visão ao mesmo tempo
e num mesmo lugar a coisa que emerge e o seu mistério incognoscível.
A retórica seria assim uma fagulha desse fogo imenso, uma fagulha do
pensamento identificada com o uso sofístico da língua, e que se tornou a técnica de
persuasão por excelência. Até hoje, na relação de cunho educador, ela tem entrada
ambígua. Ao mesmo tempo que serve para “vestir” os ensinamentos com uma capa
5 Cf. HEIDEGGER, M. “Logos”. Introdução a Heráclito de Éfeso. In: Pré-Socráticos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os pensadores), pp. 123 e 133.
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mais agradável, em termos linguísticos, a retórica é rejeitada como “afetação”. Nessa
ambiguidade, resulta um ensino que confronta a “secura” e a “aridez” da verdade
científica com o agradável, mas falso ou acessório, do retórico. Nesse caso, o conteúdo
científico do ensino residiria na explicação racional dos fenômenos, e o resto seria
enfeite para trazer alguma emoção ao conteúdo de fato. Trata-se novamente da
dissociação entre o sensível e o inteligível; mais uma transfiguração da separação entre
o corpóreo (expresso pela beleza) e o espiritual (expresso pela sabedoria). Grassi,6 que
fez um livro cujo próprio subtítulo advoga em defesa da retórica, como uma atividade
de reunião entre ação, enquanto areté, e fala, enquanto aletheia.7 O desaparecimento
desses fundamentos tiveram implicações pedagógicas, apenas indicadas resumidamente
como predomínio da razão; da divisão forma e conteúdo; e da não-historicidade do
saber. Tais implicações descartam o pensamento em direção à clarificação,
privilegiando no conhecimento a sua adequação à metodologia científica.
Nesse ponto, volta-se enriquecido para pensar poeticamente a paideia, a fim de
barrar concepções reducionistas que alienam a poesia do processo do pensamento e da
sua necessidade de configurar o conhecimento. A poesia originária tem relação com o
arcaico, assim como a paideia não pode dispensar o valor educativo da areté – que,
inspirada no sagrado, potencializa virtudes, cuja realização acontece no fazer humano.
Diz Jaeger que Homero-educador foi o responsável pela narração dos laços entre o
humano e o divino, e – por sua interpretação e criação da tradição – mostrou aos gregos
a importância das divindades em suas vidas como interposição à banalidade do
cotidiano.8
Depois da perda do rigor da poiesis pelo predomínio da retórica, Platão buscou a
restauração espiritual do homem grego através de um novo critério de verdade. Em sua
paideia, estabelecida sobre patamares morais da verdade, em detrimento do prazer
sensível, considerado portador de ilusão, a cidade só poderia ser bem governada com o
afastamento dos poetas, vistos como retóricos esvaziados de sentido. Pela paideia
6 Cf. GRASSI, E. Poder da imagem, impotência da palavra racional: em defesa da retórica. Trad.Henriqueta Ehlers, Rubens Siqueira Bianchi. São Paulo, Duas Cidades, 1978.7 No texto citado anteriormente, Heidegger discorre sobre a aletheia, enquanto o próprio movimento develar e desvelar das coisas a ser recolhido pelo logos. Em latim, aletheia se tornou veritas e, com amodernidade, se reduziu a uma mera adequação dos fatos à subjetividade dos homens.8 Cf. JAEGER, 1995, cf. pp.68, 73 e 79.
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platônica, concebeu-se a cidade como um lugar de objetivação da natureza e
subjetivação do ser humano; a cultura como um conjunto de atividades; e a política
como um produto realizado na medida idealizada por governantes e governados. Com
isso, assim como os poetas, a solidão por exemplo também foi proscrita da cidade. Ser
só é ser marginal na cidade.
A religião, enquanto instituição de poder, alija o saber do espírito. Pela
necessidade de enobrecer coisas belas, as pessoas continuam a frequentá-la, mas com
esse gesto não se obtém nenhum poder especial na pólis. Funda-se, porém, uma nova
tradição que constituirá a areté de construtores da metrópole. Os símbolos da virtude
permanecem como armas para os novos escudos da modernidade, mas adquiriram um
valor de troca, são retóricos, úteis.
Pensemos pólis como mundo. O caminho que leva à compreensão da
uniformidade característica da época atual e de como ela se relaciona à hegemonia do
uso abusivo das coisas possibilita a visão esclarecedora das ações humanas voltadas
exclusivamente para assegurarem o ordenamento dessas coisas. A realidade precisa
assim se encaixar a um cálculo planificador, pois de acordo com Heidegger, “um
homem sem uni-forme dá hoje a impressão de irrealidade, de um corpo estranho ao
real”.9
Recordar, mesmo sem se reconhecer na revelação. Conhecer, mesmo que
indiretamente, do mesmo modo que uma planta “sente” se a ferem na raiz. O sentido se
cria. O destino é terrestre. Voltemo-nos à ilusão ou à imitação, ambas consideradas
indignas da pedagogia política mas talvez palpitantes de uma verdade que transcende os
desígnios potentosos da pólis. Pois a verdade é insistente e sub-reptícia, tal como é
mencionada em “A maçã no escuro”, de Clarice Lispector:
Todos sabiam a verdade. E mesmo que a ignorassem, o rosto daspessoas sabia. Aliás, todo mundo sabe tudo. E uma ou outra vez,alguém redescobre a pólvora, e o coração bate. A gente se atrapalha équando quer falar, mas todo mundo sabe tudo.10
Poeticamente, a paideia poética se debruça sobre a “obra atrapalhada da gente”
que quer falar a verdade, sobre a interpretação, mesmo que só a “redescobrir a pólvora”
9 HEIDEGGER, M. “A superação da metafísica”. In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá CavalcanteSchuback, Petrópolis, Vozes, 2002, p.84.10 LISPECTOR, C. A maçã no escuro, Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, 1970., p.234.
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mas que faz o coração bater. Pelo jogo entre o saber e a ignorância, cuja tensão não se
resolve pela força, a pedagogia poética se debruça sobre a ética que se estende à
estética. Talvez seja justamente no reconhecimento de um saber que se tem, mesmo
quando ignorado, que a poesia se desprenda da retórica.
Afinal, não é preciso convencer ninguém que se encontre em idêntica disposição
anímica. Tomemos de empréstimo o que diz Staiger sobre a indelicadeza da
fundamentação na poesia lírica: “tão indelicada quanto a atitude de um apaixonado que
declara seu amor à amada, expondo razões lógicas para isto”.11 Pela pedagogia poética
não se transmitem conteúdos, não se confrontam saberes, e ninguém fica mais
“instruído”; reúnem-se forças, experiências, temperamentos para além de nós mesmos.
Poética é pensamento convergente. Será então que na pedagogia poética estejam tanto
arte (enquanto criação) quanto técnica?
É interessante considerar o vir-a-ser na educação, relacionando-o ao vir-a-ser da
physis. Os movimentos fazem ressurgir espaços livres para o desconhecido, tudo se
desdobra em várias perspectivas, e pela poética se criam unidades, descobrem-se
vínculos. Em um chão único, encontram-se as coisas antes perdidas como os despojos
antigos, as coisas catadas e postas no lixo. Dispostos em um coral, pela arte e pela
técnica, ouvem-se as vozes da cidade. Mas essa realização é momentânea. Tão logo se
reerguem as antigas fortalezas, o trabalho recomeça.
2. Cultura-educação
“O homem pensa sob a forma de configurações poéticas e fantásticas”, diz
Grassi.12 Toda cultura expressa uma poética. Mas o que é cultura? O termo é tão
abrangente e discutido que, para não provocar uma discussão com a Antropologia,
disciplina na qual proliferam proposições esclarecedoras acerca do conceito, opta-se por
aludir a educação (ao lado da palavra “cultura”) a fim de se pontuar a especificidade de
sua menção nesse contexto. Dessa maneia, recorre-se a autores que buscam em suas
teorias uma relação imediata entre cultura e paideia, como Frobenius, ou cultura e
poética, como Grassi ou Souza que, aproximando-a da noção de “abertura para o
11 STAIGER, E. Conceitos fundamentais da poética. Trad. Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1975, p.50.12 GRASSI, E. Arte e mito. Tradução de ... Edições “Livros do Brasil”, Lisboa, s/d., p.220.
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mundo”, percebe a unidade de culto, a celebração de um mito dominante, a atividade
institucionalizante rigorosa que reprime o caos e projeta mundo, mas também o vigor de
uma fascinação vital, que é descontrole caótico,13 considerando que, em rituais, um só
corpo se faz e todo ele é perpassado por “uma contração inicial longínqua”, na
expressão de Lispector.14
“Não é a vontade humana que produz as culturas, mas a cultura que vive sobre o
homem (atravessa homem)”, diz Frobenius.15 Para compreendê-la, é preciso
acompanhar caminhos traçados, perseguir movimentos, modos de ser, acontecimentos,
disposição anímica, sem aprisioná-los em sistemas ou –ismos. Na cidade, a cultura
reside em congestionamentos, na vida tumultuosa da rua, em deslocamentos pela
persistência de um gosto de passado, na ironia sobre a lentidão, nos jornais, enfim, no
movimento de cada coisa a caminho de suas próprias formas, movimentos “em direção
a”. Será essa a resposta? Cursos formadores de cursos, produtos formadores de
produtos. A cultura tenta adiantar o passo.
A pista talvez esteja naquela contração inicial longínqua, na reivindicação da
terra, mesmo sem o entendimento dessa demanda subjacente a todo movimento, e
principalmente sem instrumentalizar qualquer tímido desejo de espiritualidade. Mas será
possível resistir a transformar esse desejo em produto, em enfeite ou em distração para o
tédio? Todo processo cultural necessariamente se reduzirá a manifestações folclóricas
ou a produtos da indústria cultural?
Desprovida de aura, a cultura esforça-se para preservar o humanismo, mas, para
se retornar àquela contração inicial longínqua, é preciso atravessar o deserto que se
tornou a civilização ocidental. Heidegger indica os processos essenciais dessa
desertificação ou, de modo mais abrangente, do obscurecimento do mundo: a fuga dos
deuses, o abandono do ser, a massificação do homem, o privilégio do medíocre e a
destruição da terra.16 Na cultura do progresso, os construtores se debruçam em cálculos
13 SOUZA, R. “A epigênese do pós-moderno.” Revista Tempo Brasileiro, 84: 32/60, jan-mar, 1986, p.32.14 Cf. LISPECTOR, C. A cidade sitiada. 4.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975, pp.11 e 13.15 FROBENIUS, 1934, p.15.16 Cf. HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. Apresent. e trad. Emmanuel Carneiro Leão. 2. ed. Rio de Janeiro; Brasília: Tempo Brasileiro, Universidade de Brasília, 1978, p.71.
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planificadores, em regras constantes para o asseguramento das posições conquistadas e
em estratégias institucionalizadoras.
A educação e a própria arte vivem essa realidade: sem desejo, sem importância,
muito ocupadas para perceberem o estado de abandono e a necessidade de suas próprias
construções, saturadas pelo excesso de controle, participam ativamente daqueles
processos de autoafirmação da subjetividade.
O pensamento metafísico se espalha no elemento criativo e procura compensar a
sua perda pela preponderância da técnica. A habilidade técnica e o domínio do discurso
tecnológico passaram a ser finalidades; a escolarização e a empresa cultural realizam
educação e arte sem espírito. Técnica não é mais – como no sentido original de techné –
saber lidar com a coisa, movido e orientado por ela; um modo nem idealista, nem
realista, mas compreensivo da coisa. Trata-se agora de uma técnica orientada por um
logos cartesiano a fim de satisfazer desejos de expansão. Nessa cultura, espírito se
transforma em inteligência e linguagem restringe-se a exercer função mediadora dos
meios de troca, não mais sendo ‘a casa do ser’, mas um instrumento a mais de sua
dominação. Objetivadas em produtos, identificam-se as coisas com o real por força de
cálculos e de ações calculadas; por meio de explicações e de motivações científicas e
filosóficas.
Ao lado da cultura tecnológica, o “espírito” culturalista extrai os pensamentos,
os monumentos ou os acontecimentos do seu comprometimento político de participarem
da história e os reduz a eruditismo ou distração. No culturalismo, a cultura objetivada
acumula coisas e representações. Diante disso, como fazer aparecer os lugares de
cultura, deixando-se atingir pelo que sucede na rua, despertar a atenção e a memória de
seres brutalizados pelos processos de edificação da cultura? Em organizações sociais?
No desprezo religioso à matéria? No ideal da erudição e do cultivo às belas-artes?
Certamente não seria pelo apego a uma interpretação fixa de natureza, de história e de
mundo. Para acessar o real, a realização, como a mais radical liberdade, dando-se o
tempo de experienciar a presença em seu modo ausente e presente.
Podemos nos sentir engrandecidos com pensamentos elevados ou indignados
contra a baixeza de nossa época, mas não é no acionamento de mecanismos que reside a
glória da realização. Isso não quer dizer que tudo que declaramos como “valores”
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(cultura, ciência, arte, cidadania, etc.) deva ser afastado. No entanto, é preciso perceber
que, ao transformar algo em valor, o aproximamos de uma quantificação,
desconsiderando que as coisas não se esgotam em sua objetividade ou valoração,
enquanto medida. Pensar contra os valores não significa proclamar a ausência de
valores e a nulidade do ser, mas antes se contrapor a subjetivação que faz do ser um
puro objeto.17
A existência não se resume a uma afirmação da realidade do sujeito humano,
ainda que tampouco exista uma realidade auto-suficiente, não humana, projetada num
plano cósmico. Natureza e cultura não se excluem. Percebamos, no entanto, que
natureza é anterior à Natureza, e homem é anterior à Homem.18 O mito helênico do
homem, como medida de todas as coisas, provocou uma desastrosa divisão na
existência, ao desprender da natureza e da humanidade (ou da cultura), o seu acontecer.
E o acontecimento se dá pela ação libertadora de um trabalho que não se resume à
eficiência do fazer. A natureza trabalha, a cultura vai além da feitura de objetos, da
produção de atividades. O trabalho do homem, que costumamos identificar como
“cultura”, em uma concepção mais convergente ou poética do termo, só liberta enquanto
nele vigora a verdade do ser. A natureza seria o ser da cultura? Metafisicamente, pode-
se dizer que sim, cultura só existe unificada ao meio ambiente, mas esse elo se rompeu e
hoje a cultura alcança a autenticidade aos saltos, “em erupções de estado de ânimo
profundamente íntimos”. Nesses momentos, de rememoração do ser esquecido, quando
a história não mais interessa a ninguém, transformada pela cultura em uma sucessão de
monumentos sem vida, a ação pode irromper como libertação, fazendo jus à destinação
do homem como aquele que abriga o ser na linguagem.19
3. Formação
Quando o sino enche de emoção a festa religiosa, o movimento damultidão torna-se mais ansiado e mais livre.20
17 Cf. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Introd., trad. e notas Emmanuel Carneiro Leão, Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1967, p.78.18 Cf. SOUZA, 1986, p.34.19 Segundo Frobenius, nas primeiras experiências das crianças, principalmente com fogo e com água, mastambém com desenhos na areia ou modelagem de peças em barro, percebe-se a presença dos sentimentos primitivos (e libertadores) que fundariam cultura (cf. 1934, p.136-140).20 Cf. LISPECTOR, 1975, p.11.
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Formação, forma, tornar visível. Multidão, ensino pelo sino, movimento em
ânsia e liberdade. A diferença entre forma e formação equivale à existente entre ânsia e
ansiedade e entre livre e liberdade. Embutidas na noção de formação, encontram-se
também as de formado e formante. Ou seja: a forma acabada permanece em processo
enquanto trouxer em si as formas formantes. Toda forma é formação. Toda forma é
semente, dinâmica e núcleo de movimentos imperceptíveis. Todo núcleo – gerado na
concentração dos movimentos – é a concretização de um processo de gestação. Em
movimentos imperceptíveis da gestação, acontece a formação, a forma em ação, da
forma se fazendo forma.
Como assumir a revolução da mudança permanente? A ânsia de ver o processo
terminado e a promessa de liberdade ao final fazem parte do processo de formação.
Sempre subjacente, a estagnação manifesta-se em cada passagem, acenando com o
desejo de instituir e de se apoderar do que insiste em se mover. Procura-se dominar o
processo e assim definir a ordem para o progresso. Não seria essa uma definição de
método? A definição do “como”, do “para onde”, envolucrados no discurso do
“porque”? Na perspectiva do método, como predomínio da técnica na formação (o
processo), ainda que dentro de uma lógica de fazer surgir o belo ou o bem, importa
sobretudo o produto da nossa subjetividade. Indiferente à experiência, que
necessariamente acolhe o inesperado como incontrolável, a formação não deixa a
realidade “saltar” , aberta ao aion, ao saber imprevisível contido num instante.
Mas tampouco essa escolha – entre a formação metafísica ou a formação como
experiência – nos cabe. O enredamento entre ambas é o ponto de partida. Quem se
encontra nesse processo, encontra-se em situação delicada; só quando se abre para o que
as coisas oferecem, “resolve”, i.é, a formação sublinha a subjetividade implicada no
processo de aprendizagem.
Tanto mais se delega a formação à “alta cultura”, como diz Frobenius,21 à vida
estatal (o poder na República), ao tráfico intenso e ao desenvolvimento de ofícios, ao
canto dos bardos (a opção por formatos), às ricas vestimentas e aos palácios reais (o
cortejamento dos poderosos), isto é, à vida medida pelo acúmulo e posse de produtos
estagnados em seu processo, tanto mais a palavra se imbui de idealizações, discursos
justificadores para a tomada de decisão da aprendizagem em uma só direção pré-
21 Cf. FROBENIUS, 1934, p.261.
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definida. Desse modo, o império subjetivo do Eu torna-se também o domínio de um
Outro objetivado em formatos e produtos acabados a serem adquiridos.
No entanto, poetas, andarilhos, aventureiros, mesmo cientistas e artistas, às
vezes estão tão imersos em seus processos que se esquecem de lhes imprimir uma
direção pré-definida, deixando que a força criativa e própria das coisas (objetos,
pessoas, elementos da natureza) com as quais lidam possa exercer a sua “baixa cultura”.
E assim a aprendizagem não rechaça o obscuro, mas sim parte dele, em contraposição
ao projeto iluminista cuja hegemonia tem sua defesa preparada e amparada no desejo de
independência do homem frente ao incontrolável. Em nome da modernidade e
amparado nas conquistas da ciência, o homem procura afirmar o seu domínio total dos
processos em formação. Nessa ardorosa defesa da verdade instituída como valor
humano, nesse esbanjamento de liberdade espiritual que faz da razão um bem
transcendental, a educação passou a ser medida em graus – básico, médio ou superior –,
indicativos do domínio último das coisas. A educação se tornou a condutora desse
processo de obediência às leis da razão, para o coroamento do ser humano como sujeito
universal e absoluto na condução da vida.
Formação, portanto, viria a ser o processo do ser humano se fazendo: Bildung,
diriam os alemães, desde o marcante livro de Goethe, “Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister”.22 Para além da aprendizagem de um ofício, esse processo denota a
necessidade de auto-aperfeiçoamento, demarcado pela superação pessoal de desafios, da
qual decorre a invenção de uma história individual. Fora das limitações prescritas pela
divisão da sociedade em classes, a burguesia proclama sua ânsia em ocupar um lugar no
mundo em que suas pequenas questões se articulassem a uma vida espiritual fora das
instituições religiosas. Surgida no contexto da Aufklärung alemã, século XVIII, a
expressão Bildung indica o encontro do Iluminismo com a vida prática, no qual a
educação passa a ser entendida, de acordo com Mass, como “otimização e cultivo por
mecanismos de estímulo do aparelho perceptivo e do raciocínio lógico”,23 em benefício
da individualização. Interessante notar que tal processo, no “romance de formação”
22 Cf. GOETHE, J.W. von. Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister. Trad. Nicolino Simone Neto. São Paulo: editora 34, 2006.
23 Cf. MASS, W. P. O cânone mínimo: o Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: UNESP, 2000, p.27.
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(Bildungsroman) de Goethe, inicia-se com um movimento individual de negação do
destino ordinário, da predestinação social, em favor de uma formação universal, não
acadêmica e não livresca. Liberdade é o pressuposto básico da formação humana no
ideário romântico do sujeito em formação, Desse modo, todos aspirantes a pensadores e
poetas lançam-se em uma missão pedagógica, idealizando meios para alcançarem a
liberdade. E assim, da pouco usável vida íntima, escrevem o romance de suas vidas.
Por um instante imobilizados, tomados de um mal-estar difuso, refletem
profundamente. Em “estado estético”, os sujeitos em formação, ainda que imersos na
separação entre forma e conteúdo, entre mundanidade e espiritualidade, adquirem o
direito de serem indeterminados, livres para serem si-próprios: existiria aí um campo
propício para a experiência convergente de pedagogia poética? O romance de formação,
para além da descrição do processo de surgimento de um homem em sua humanidade,
da representação de ideais da educação estética24 e da internalização de uma perspectiva
coletiva em uma epopeia particular, abre-se à poesia na medida que enfrenta
pressupostas finalidades didáticas. Sem aprovar, nem condenar; no encadeamento
próprio de ações e sentimentos, quebra-se a expectativa da descrição canônica do
processo de desenvolvimento pedagógico do protagonista.
No romance de formação “A cidade sitiada”, de Clarice Lispector, Lucrécia é
uma mulher em formação a procura de verossimilhanças e de harmonizações com o
mundo. Totalmente dominada pela inconsciência, ela não é alguém que, no
entendimento habitual, encontra-se em busca de auto-aperfeiçoamento, mas sem dúvida
nota-se nela uma disposição anímica para compreender a cidade em fenômenos que
demonstram sua liberdade simplesmente por existirem e serem perceptíveis. Lucrécia é
ao mesmo tempo uma mulher desnecessária e insubstituível, mais uma habitante em
decadência pela absorção da fragmentação da modernidade. Transitando pela
espiritualidade e a mundanidade, absorve-se pelo desejo da perfeição e perde-se na
angústia, por não alcança-la. Sua única salvação está no fato de que ela estaca como
24 Na educação estética para a liberdade, pensada por Schiller, a experiência da beleza vem a ser o focoformativo. Como cidadã de dois mundos, ela recebe sua existência na natureza sensível e obtém seudireito de cidadania no mundo da razão. Uma coisa ou um objeto, do momento em que aparece comolivre, nos faz experimentar a liberdade ou a autonomia no fenômeno. Trata-se de uma busca em direçãoao objetivo da coisa, à sua qualidade de “não-ser-determinada-do-exterior”. Nessa acepção, a liberdade sópode ser sensivelmente apresentada com o auxílio da arte, que vem a ser a regra seguida e dada pela coisamesma (cf. SCHILLER, 2002).
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quatro caminhos e um meio para a paideia poética
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uma mula no asfalto. O pensamento a faz hesitar e também a aplicar-se, apesar de sua
intolerância moral, na busca da unidade visível. Ela é a própria tarefa sempre inacabada.
Ao realizar um retrato ideal e sem alegria de si mesma, no auge do seu empenho em
permanecer na superfície das coisas, ela parte, deixa a cidade, para assim poder
continuar a espelhar o mundo em movimento. Só assim novamente poderá estacar e
olhar em esforço delicado apenas a superfície das coisas, do mesmo modo que não
percebia o futuro das ruas duras e realizadas.
Em seu processo de formação, movido por suas atitudes ambivalentes, Lucrécia
assume a essência paradoxal do mundo. Distanciada e objetiva, não julga, vive na fenda
que o mundo lhe permite. E, como não há formas pré-definidas as quais queira chegar,
esvazia a oposição entre a forma e o formado. Há abandono ao que as coisas inspiram;
aceitação de seus convites para a percepção; aprendizagem do que não é uniforme, do que
não pode ser conceito, reconquistando-se a graça da linguagem, e não a conquista de um
discurso que antecipa a forma do acontecer.
Dessa maneira, Clarice Lispector descreve em seu romance a possibilidade da
formação realizar-se como pedagogia poética. Em termos gerais, a visão romântica do
reconhecimento do papel formativo da chamada “escola da vida” apresenta à educação
um paralelo entre a necessidade de empreender uma viagem de autodescoberta e o
reconhecimento da força pedagógica do devir. Significa dizer que o processo de auto-
realização não desemboca necessariamente na expansão do domínio da subjetividade,
mas sim na aquisição de imagens próprias a respeito do próprio das coisas. Nessa
reunião do estético ao ético, estabelecem-se ligações que superam as conexões
adversativas e retóricas com a realidade. Nesse itinerário de aprendizagem da arte de
viver, é possível abandonar a segurança material e encontrar um modo incomum de
encarar as coisas comuns.
Em devir, aberto às inúmeras possibilidades do porvir, o processo de formação
possibilita mudanças sutis na forma de ver, sentir, pensar e agir. O tempo na “escola da
vida” passa fora e dentro, modificando destinos. Desse modo, endossando a questão
feita por Bakthin: Entre dois momentos da história individual, seria o sujeito em
quatro caminhos e um meio para a paideia poética
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formação o chamado “homem novo”, que se forma frente à força organizadora do
futuro, para além da sua biografia e da sua idade?25
No caso da epopeia descrita por Clarice Lispector, a personagem sente-se
abandonada por sua cidade e ao mesmo tempo envergonhada por ter se escondido dessa
circunstância. O “homem novo” seria aquele deixado para trás pela sua cidade? São os
acontecimentos quase imperceptíveis, os que modificam de maneira visceral o olhar da
heroína. Lucrécia é apenas uma espécie de Alice, inalterável em sua insistente
curiosidade e em seu olhar espantado, mas também alterável em seu tamanho para poder
caber e viver os acontecimentos que, aliás, sempre a pegam de surpresa e exigem novas
modificações.
Talvez se possa diferenciar três planos na história das manifestações humanas: o
da razão, compreendendo ideias e intuição; o da essência, relacionada com a presença e
o vigor; e o da existência, que define “como” se está presente. Na modernidade, os
planos se fundiram, passando a essência humana a se identificar com o cogito e o
mundo a existir por um processo de positivação do homem.
No romance de formação pressupõe-se que, ao longo da narração, uma “segunda
voz” reflita o itinerário vivido pelo protagonista. A sua ação, portanto, estaria
desdobrada em dois níveis: o dos acontecimentos propriamente ditos e o da reflexão. Ao
final do percurso, o protagonista possuiria plena autocompreeensão e autopossessão do
seu processo que, no entanto, estaria irremediavelmente dualizado. Além disso, a sua
experiência do tempo teria de ser linear, progressiva; excluídas tanto a visão de tempo
cíclico da natureza, quanto o “sem tempo”, isto é, o instante a partir do qual não se sabe
para onde se vai, fora do esquema da causalidade.
No entanto, a crença atual de que é possível corrigir o real, positivá-lo seguindo
o fio da racionalidade, impossibilita o caminho da Bildung. Na era da técnica,
desconsidera-se a experiência fundamental para a formação, paralisando-se aquele
interesse primordial pela liberdade a fim de se manter a segurança material.
Então, cabe perguntar, parafraseando Larrosa em sua interpretação da educação
em Nietzsche: De que forma ficaria a existência, fora da construção moderna da
essência humana? De que forma, as relações com a natureza, com os demais e com nós
mesmos, fora da construção moderna da racionalidade? De que forma, o habitar o
25 Cf. BAKTHIN, M. “O romance de educação na história do realismo” em Estética da criação verbal.Trad. M. Ermantina Pereira. Martins Fontes, SP, 1992.
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tempo, fora da construção moderna da história como expressão de causalidades? E a
nossa vontade de viver, de que forma fica, fora da construção moderna da liberdade
como defesa da manutenção da segurança?26 O processo de formação subsiste
justamente na tensão entre o convencionalismo grupal e a singularidade individual, em
que o herói fica só, mas em atitude de combate. Para se chegar a ser o que é, para se
saber o que é compulsório em si próprio, é preciso combater o eu constituído, o presente
indigente. Desse modo, é possível voltar a viajar e aceitar o devir, aberto e indefinido.
No aberto, sem hegemonia da racionalidade, o homem se espanta, se transforma,
se transporta para além do aparente, transcende o cotidiano, e se expressa na oscilação,
na vertigem. Sem espanto, não adianta viagem, nem mestre. E é, de acordo com
Larossa, ao “reconhecermos no mover-se lento (dos entes) o nosso próprio formar-se”,
que nos espantamos, “assim como se reconhece um lugar onde pelo menos uma vez se
esteve”,27 i.é, o futuro anunciado no devir da formação liga-se ao passado, ao arcaico.
Encontra-se o porvir não necessariamente no novo mas na dinâmica instauradora
do acontecer abrupto. No entrelaçamento entre escritura, história e necessidade do
futuro, “a humanidade que vem” afirma-se, no presente, pela liberdade de renascer na
ressurgência de comunidades, assim como crianças se colocam frente ao jogo. Nas
“crianças ainda agrestes”, expressão de Lispector em “A cidade sitiada”,28 a formação
torna-se acontecimento. Da interligação entre passado-redescoberto, presente-em-
acontecimento e futuro-necessário surge o paralelo entre o arcaico coletivo e a auto-
realização humana. Aberto ao mundo, sem padrões, o ser humano volta-se tanto para a
investigação dos devires quanto pela sua decisão sobre eles. Segundo Grassi, a
formação seria “o processo pelo qual saímos da nossa própria situação histórica
concreta a fim de entrarmos numa relação com ela”.29 Nessa concepção, consciência
diferencia-se de subjetivação pois incorpora, para além da inteligibilidade do real, os
instintos, as inclinações, as experiências e as inexperiências. Consciência vem a ser gaia
ciência e formação, e passa a indicar um processo de tornar-se o que se é,
diferentemente de “chegar a ser” alguém melhor.
26 Cf. LARROSA, J. “A libertação da liberdade. Para além do sujeito.” In Nietzsche & a educação, trad. Semíramis Gorini da Veiga, Belo Horizonte: Autêntica, 2002., p.100-101.27 Idem, p.107.28 Cf.1975, p.17.29 GRASSI, 1978, p.64.
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Chegar a ser alguém na vida, velha expressão que sustenta o orgulho de ver o
tempo passar, como se este fosse desenvolvimento seu. “Alguém melhor”, tomando de
empréstimo palavras de Clarice Lispector em “A cidade sitiada”, será esse quem “ergue
a cidade mercantil pelo orgulho desmesurado”?30
O relato do processo de formação, o bildungsroman, adquire dimensão poética
na medida que descreve a autocriação de uma personagem, a afirmação de alguém igual
a si mesmo, singular, não melhor do que outros, nem mais perfeita do que era antes.
Assim, torna-se unidade na multiplicidade. No romance de formação, ser humano é ser
obra de arte, não uma ideia a se realizar; é invenção (linguagem. A formação como
desprendimento de si é um chamado à transfiguração, à alegria e à inocência de devir.
4. Iniciação, metamorfose
Insatisfações podem iniciar formações? Seria o desprendimento de si o início de
uma transfiguração? A transformação radical da forma de sentir e de pensar, a
convergência inquieta entre o mundo sensível e o mundo inteligível se reverterão em
alegria e inocência a quem se dispõe a mudanças? Por fim, a disposição significa
consciência?
Ser consciência, consciente, é estar desperto, para além do racional. Mudança
também pode ser dita de modo simples, por exemplo, na transmissão da “voz sem
palavras”, como diz Clarice Lispector, pela tosse. Parece ridículo, mas é alegre e
inocente o que é criativo e provoca movimento. Perceber na tosse a transmissão da voz
sem palavras é um exemplo quase simplório da nossa proximidade do processo de
transformação que se dá na reunião sentir-pensar.
Frios como mármore. Transfiguração é procurar ser o “mesmo” e parecer ser um
“quase”. O desprendimento de si é um desejo de se superar mesmo para uma nova
formação e, fria e serenamente, reconhecer que quase se chegou lá. Em meio a esse
movimento de negação dos limites impostos pela individualização, pelo desejo de
reunião e reconhecimento das limitações de nossa capacidade inteira e acabada de
transformação, ocorre a “aparição”.
Parece história de assombração e é só a tentativa de descrição do que seja um
processo de iniciação e metamorfose, na pedagogia poética. Passa cada coisa quando
ofusca uma aparição! Parafraseando Lispector, a cidade toma forma revelada, toca na
30 Cf. LISPECTOR, 1975, p.200.quatro caminhos e um meio para a paideia poética
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realidade, sente um estremecimento divertido / é dentes amarelos aparecendo com
inocência e não precisar da inteligência. / voltar sujo, rasgado, com alguma coisa na
mão ao galope de um cavalo imaginário.31
Iniciação é prática exercida de modo ritual, em que, ao mesmo tempo, representa
e esvazia sentidos. Iniciados comungam com a crença de que aí, aqui, em lugares e em
estados acontecem revelações. Ritualizam para fazer acontecer. Repetem-se e produzem
duplicidades, outridades. Experimentam sobretudo o quase do que possa ser uma
aparição mesmo. É pela precariedade da condição existencial que a iniciação igualmente
desconstrói padrões de percepção da realidade.
Metamoforse é – no esvaziamento de um padrão – a experimentação da
convergência inquieta entre ser, parecer e aparecer, de modo descontínuo. Despida de
exoterismo, é Poética essa experiência: ouro a se espalhar pelas nuvens e pelas pedras,
rostos dourados como armaduras e ascensão de uma espada desembainhada.
Metamorfose é materialização da metáfora, atravessamento de uma forma por
outra, processo de enfraquecimento da identidade, da posse de si. Talvez se possa dizer
que na metamorfose ocorra uma cisão entre o habitante do seu corpo. Disjunção ou
junção com um corpo estranho? Autonomia ou heteronomia? Pode o lugar da questão
ser também o do despertar da consciência?
As hipóteses pensam corpo e mente desconectadamente. Ora um, ora outro. Mas
talvez ainda na própria noção de metamorfose ressoe um elo da longa sequência
metafísica. Talvez a linguagem metafísica atravesse corpos e mentes em um movimento
de despertar um outro dentro de nós mesmos, se da liberação da normalidade depender
o alcance real do que se apresente. A forma reunida, em convergência poética, parece
estar na base do sonho e do pesadelo. A literatura é pródiga em relatos de processo de
transformação inesperada e incontrolável. Afinal, quem não se sentiria aterrorizado com
outra presença se materializando em corpo e mente reunidos?
Desprender-se de si, em permanente transformação de si, exige a convivência
com reações negativas, que redundam em isolamento e sentimento de exclusão.
Zaratustra, na obra de Nietzsche,32 convencido de ser o “mestre do super-homem”, teve
31 Parafraseando passagens distintas de “A cidade sitiada”, em saída de Lucrécia às ruas do centro de São Geraldo. 32 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
quatro caminhos e um meio para a paideia poética
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de passar por inúmeras experiências e metamorfoses para finalmente poder chegar a ser
o “profeta do eterno retorno”, integrador e integrante do negativo e positivo. Em seu
percurso, ele vai da iniciação à metamorfose.
Seria possível afirmar que o ponto de metamorfose é uma experiência
privilegiada de “retorno”? Um mergulho no abismal do pensamento? Essa é a proposta
de uma pedagogia da iniciação: descontruir-se e assim voltar-se para a realização
corpórea e criativa de si. Decerto, existe aí um risco de cair na voluptuosidade do
profundo e em um mergulho tal na crença que a compreensão inteligível passe a ser
considerada um obstáculo à experiência. A racionalidade subsiste em nome da paixão.
Quem parte para o início, em busca de uma experiência arcaica de reunião
navega pela obscura inveja do desejo, pela vontade da vontade de imergir no caos
criativo da perda das normas de conduta. Ao encarar as gárgulas, os seres monstruosos
com “gengivas à mostra e freios a cortar a boca”, o iniciado rende-se ao disfarce para
momentaneamente gozar, criativo. É um impulso duro que não se quebra em lágrimas,
nem em lamentações do paraíso perdido. O ridículo de se fazer um retrato ideal de si
mesmo como um monstro dá início à experiência da poética de modo burlesco. Sente-se
a deformidade, a falta de forma, a língua que não acompanha a voz. O medo empurra
para a busca da segurança de um padrão, em um movimento de repetição do mesmo, no
qual não há ato instaurador, não há criação de horizontes.
Normalmente, impede-se a chegada do leão pelo congelamento do camelo (e
passamos a vida como em um deserto), assim como se quer manter o leão a todo custo,
evitando que a criança se revele. “A aparição epifânica de algo novo, [...] só se dá ao
preço do sacrifício do que já se é”, diz Larrosa.33
Lucrécia, habitante deslocada e em deslocamento no romance de Clarice
Lispector, percebe que parece um objeto doméstico em trabalho feroz e calmo. Ela até
reforça essa sensação, faz-se de boba, imita o bibelô tocando flauta, sente-se galinha
fugida de quintal. No ponto de metamorfose, o nó entre as diferentes ações, paixões,
palavras e objetos ganha tensão máxima (daí sua dramaticidade), até que o momento se
desfaz sob o surgimento de um acontecimento desconhecido, livre de padrões. A virada
relaciona-se à correspondência de um apelo de vigor. Trata-se de uma invenção
33 LAROSSA, 2002, p.115-7.
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reveladora que passa a existir não em função de um objetivo, mas como testemunho de
ser continuamente a se perfazer.
Daí se percebe que, assim como a formação parecia ser um processo de
aquisição de “alta cultura”, a metamorfose parece ser um processo de apropriação da
baixa cultura, nos termos de Frobenius. É interessante notar também que a palavra
“demoníaco” por esse autor se afasta da tradição judaico-cristã, pela qual se entende o
demoníaco como o desmedido querer-o-que-não-se-pode-ser. Num fluxo demoníaco
(em outra acepção da palavra), deixa-se-que-o-ser-seja, na experiência do encontro com
a medida misteriosa de uma coisa em sua singularidade.
Na cidade, por exemplo, como acontece essa experiência concreta de afeto em
lugar desconhecido? No dia-a-dia, o encontro acontece com compromissos, nada
criativos, até que percebemos nossa participação na realidade ou nossa exclusão da
realidade. Carros no calor, navios longínquos em suas viagens, entes distantes do
pensamento reinventam a noção do ser impessoal.
Como o riso, que surge após a transformação de uma tensa espera e que desmancha
todo o esforço desnecessário, a pessoa subitamente se transforma. Alegria é desfazer a
ansiedade por saber pela constatação inevitável do não-saber.
A transição possibilitada pela saturação e exaustão da ânsia é tanto um modo de
aprendizagem passo-a-passo quanto um súbito salto qualitativo. Mesmo atravessados
pela linguagem metafísica, há exposição, ex-posição, nos termos de Heidegger.
Concretizam-se as possibilidades cristalizadas da tecnologia quando as invenções
parecem perfeitas, e a perfeição parece cada vez mais inventada.
Só não parece mais possível acreditar na tecnologia ou na subjetividade como
medidas do real. É preciso desconstruir crenças para compreender plenamente a
incompreensão da vida. Cínico ou mítico, a desconstrução abre-se com perguntas ao
não-evidente, anunciadas por um dado interesse. Controla-se o racional, com
intencionalidade em direção a uma superlativação do pensamento que se espanta e
transporta (assim como uma metáfora) para além da relação objetiva-subjetiva com o
mundo e as coisas. A metamorfose faz oscilarem sentimentos habituais, na vertigem.
Para pensar a noção de formação, indicou-se o bildungsroman que muito se
valeu da passagem do tempo para mostrar um processo de aprendizagem nas pessoas e
através delas. Em que medida o romance de formação – atravessado de poética, i.é, indo
21
além do relato de uma subjetividade e da experiência não racional de um processo de
educação seria também iniciático? Quando se reporta ao êxtase como mestre e relata
uma travessia de transformação, num movimento que perfaz e forma existência. E que
nessa travessia, alguém meditou em uma situação de solidão extrema, figurativamente,
como no deserto com um fardo nas costas. Atravessar não é refletir, nem dialogar. É se
deixar ficar no entrelugar, um lugar arcaico, em estado de inocência e ao mesmo tempo
de angústia pela nostalgia da unidade, da chegada. Todas as metamorfoses se dão no
deserto. Na aridez. Na esterilidade. É aí que tudo pode acontecer, no atravessamento do
deserto. De acordo com Lispector em “Uma aprendizagem...”, “Muitas coisas você só
tem se for autodidata, se tiver a coragem de ser.”34
Essa viagem, de um encantamento levemente abafado, mistura alegria e
coragem. Discerne-se o iniciado pela dúvida, a oscilação, pela expectativa de que sua
metamorfose se dê entre o desejo de seguir o apelo do mundo abismal e inumano onde
vai se perder e a vontade de conservar a sua individualidade humana. A ordem délfica,
que indica a tarefa de conhecer-se a si mesmo como a primordial, tem um aspecto
formador (na perspectiva redutora de conhecer-se como sujeito), mas também pode
implicar um aspecto metamorfoseador, enquanto possibilidade de abrir-se à ordem do
sagrado na experiência da individualidade, pela sua maculação ou perpetração pelo
outro. Ou como diz Clarice Lispector em “A maça no escuro”, “iniciado no silêncio de
outros homens – quando alguém se metamorfoseia em si mesmo”.35
A metamorfose abre as portas de si para o outro, e é assim que se pode
comungar em silêncio e em forma: “tossiu transmitindo-lhes sucessivamente a voz sem
palavras. Janelas estremeceram ao relincho”.36 Aqui, a autora relata a transformação
súbita de Lucrécia em cavalo, um estado para além de si mesmo. No desprendimento de
si, surge o novo como origem intemporal, como presença e aceitação incondicional do
presente como instante, não atual.37
Martim, em “A maçã no escuro” passa disciplinadamente pelo processo de
metamorfose, pelo despojamento e pela destruição de barreiras que o separavam do
natural. Os trechos abaixo descrevem seu percurso:
34 LISPECTOR, 1973, p.122.35 LISPECTOR, 1970, p.235.36 LISPECTOR, 1975, p.13.37 Cf. LARROSA, 2002, p.118-123.
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quatro caminhos e um meio para a paideia poética
Num suspiro resignado pareceu ao homem lento que ‘não olhar’também seria o seu único modo de entrar em contato com os bichos.[...] Deixou-se ficar submisso e atento. [...] Por um altruísmo deidentificação foi que ele quase tomou a forma de um dos bichos. E foiassim fazendo que, com certa surpresa inesperadamente pareceuentender como é uma vaca.
Uma pesada astúcia fez com que ele, agora bem imóvel, se deixasseser conhecido por elas. [...] Só que as vacas escolhiam nele algo queele próprio não conhecia – e que foi pouco a pouco se criando.
Foi um grande esforço do homem. Nunca, até então, ele se tornariatanto uma presença. Materializar-se para as vacas foi um grandetrabalho íntimo de concretização.38
Nessa espécie de experiência xamanística, o processo de metamorfose é
conduzido por vacas. No caso de Lucrécia, em “A cidade sitiada”, ele se dá através dos
cavalos. Essa condução implica em êxtase e observação para alcançar o
(des)conhecimento que une corpo e espírito, como diz Lóri, personagem de “Uma
aprendizagem...”, em uma “fina mistura”. Quando alguém se inicia nesse processo de
reunião, entra em alquimia39 como restabelecimento e cura. Tal processo, porém, se dá
num intervalo com relação à vida ativa ou doméstica. A passagem de Lucrécia em sua
temporada na ilha assume esse caráter de instância em um local de cura (e não por acaso
é lá, fora dos seus padrões cotidianos de vida, que ela pode experimentar o amor). Em
um lugar fora do circuito doméstico, ela experimentou a escuridão (letargia e ócio da
vida na ilha) na qual pôde se abandonar. A escuridão tranquilizadora aparece então, em
conexão com a iluminação – noção correlata a da metamorfose – que, por sua vez, se
irmana com a comunhão com o mundo, ideia presente quando se incorpora a “contração
inicial longínqua”. Na percepção acurada da negatividade, põe-se em dúvida o processo
de formação.
Por um pensamento mitológico-espontâneo, o cavalo pode ser um deus, um guia,
como se pode também ter o oceano como guia em um deserto ou um coelho na planície.
Talvez a figura dos cachorros com seus donos seja bem mais do que a representação da
38 LISPECTOR, 1970, pp. 74 e 75.39Os alquimistas previam as seguintes passagens de estado: aquecimento, dissolução,solidificação/ressurreição, transubstanciação. A medicina chinesa parte da presença concomitante dospólos nagativo e positivo em tudo o que existe; e que a cura não está em eliminar um deles, mas decolocá-los em suave tensão.
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carência afetiva para os pobres cidadãos que esquecidos de si atravessam as ruas,
podendo ser um caminho para o devaneio. Quem sabe? Diz Bachelard que as imagens
materiais fundamentais, as imagens que estão na base de qualquer imaginação são
realidades fortes e estáveis.40 Os cavalos, os bibelôs, a estátua, Lucrécia os tem como
entes contemplativos, como ponte para um âmbito para além do humano e fundamental,
para o habitar poético. A cidade de Lucrécia ocupa uma fronteira.
Demorar junto às coisas é escutar da cama os cavalos, onde se reúne a dupla
encruzilhada (céu-terra; mortal-imortal). E escutar já é preservar, demorar, construir.
Quem escuta de sua cama uma realidade longínqua, assim como os cavalos, não pode
habitar sem ela. Impossível seria para Lucrécia então continuar na cidade sem os seus
guias. Mas esse sentimento nada geométrico ou geográfico da cidade que se habita não
se deixa descrever facilmente. Penosamente, Lucrécia pede que os bibelôs o façam, que
a estátua o faça. Mas desses, diferentemente dos cavalos, ela pode se desfazer. A cidade
os desfaz, tornando-os poeira, tomados de poeira, opacos, quase invisíveis. Não são
guias tão disponíveis à habitação como os cavalos. Quando desaparecem os cavalos
(pois a cidade também os transformará em poeira), esvazia-se completamente a “cidade-
de-Lucrécia”. O cavalo é a fronteira da sua cidade, lugar metamórfico essencial.
4½ Experiência pedagógica da percepção: o olhar
A cara tinha uma atenção doce, sem malícia / Os olhos espiando asmutações do fogo / Ambos seguiam uma direção desconhecida /Através do povo41
Já se mencionou neste texto a expressão “iluminação” mas também as palavras
se metamorfoseiam e nesse ponto o termo assume um nome similar: “experiência de
luz”. Nos fragmento expostos como epígrafe a esta parte, descreve-se a personagem
Lucrécia que espia as mutações do fogo, atenta, doce e sem malícia, e que segue,
acompanhada em caminho incerto, através da multidão. Pedagogicamente, sugere-se
que nessa travessia também ela seja povo. O exercício da visão, pelo olhar espião
constitui-se em uma paideia pobre, mas assim mesmo em uma poética da cidade. Nessa
40 Cf. BACHELARD, G. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Donesi, São Paulo: MartinsFontes, 1993. (Coleção Tópicos), pp.225 e 211.41 Fragmentos recolhidos em “A cidade sitiada” (LISPECTOR, 1975).
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redução, o-que-há-pra-ver são estátuas e Lucrécia as vê, magnetizada por essa cultura
lascada. Ela quer sair da rua, chegar em algum lugar, mas acompanha o movimento das
ruas, como Wilhelm Meister seguiu uma companhia de teatro em busca de uma
formação melhor que aquela que o seu destino medíocre lhe previa. Lucrécia também
aspira um outro destino, mas fica parada o bastante para se encantar e se deixar
transformar por aquelas estátuas mesmo, e pelos cavalos que remanescem apesar da
crescente urbanização do lugar onde vive (os claros cavalos nos quais se metamorfoseia
em diversas ocasiões). Esse foi o caminho que a sua percepção traçou. Um caminho em
direção desconhecida, trilhado e participado pela visão. Porque toda visão é inclusiva.
Não há excluídos na pedagogia poética do olhar, ainda que se reconheça a
invisibilização nesse processo, como um exercício de poder sobretudo da parte do
sujeito que vê.
A concepção dessa paideia poética parece estranha pois traz noções com as quais
normalmente não se aprende a lidar ao tratar de aprendizagem. A perspectiva dualista
pouco reflete sobre a experiência como um processo de inclusão e questiona
criticamente o que se vê. Ao se centrar na perspectiva de uma cidadã que exerce sua
cidadania pelo olhar inclusivo, assim participando da saga de sua cidade rumo ao
progresso, o romance “A cidade sitiada” ensina um modo de ler a cidade sitiada. O
olhar inclusivo, fácil e sem resistência de Lucrécia, despreocupadamente ordena a
desordem.
Deixando-se mimetizar, a personagem parece tão precária quanto o que vê.
Pontieri a chama de grotesca e, em sua fortuna crítica, levanta as várias interpretações
negativas que ela suscitou pela sua escassez de recursos elaborativos.42 No entanto,
através dessa precariedade, vislumbra-se algo ínfimo e fundamental na cidade a ponto
de se perder: a possibilidade de reunir. A precariedade, entendida como insuficiência de
conceitos e de discurso político, poderia ser interpretada nesse caso como uma riqueza.
Sem muito vocabulário, sem agudez, nem inteligência, Lucrécia trilha no entanto um
caminho traçado por um olha inquisidor, que procura saber se na vida ordinária algo de
significativo está em curso. Sem dominar categorias historiográficas, psicológicas ou
científicas, ela raciocina. Quem disse que ser racional é o mesmo que manejar
conceitos? Lucrécia atenta para tudo que não tem categoria e mistura, com seus gestos,
42 Cf. PONTIERI, R Clarice Lispector - uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
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uma ancestralidade que carrega sem se dar conta e uma prontidão para descobertas de
última hora. Com essa sua percepção simples, enxerga mais do que positivistas e
empiristas, sustentados por um imenso cabedal de conhecimentos que às vezes também
mal suspeitam, mas que se traduz em uma carga tão pesada, que seus olhares acabam
por pesar em demasia, fazendo com que as coisas se imobilizem, desvitalizadas.
Apesar disso, a busca por um novo olhar seria inútil, caso os pesquisadores
empíricos não se disponham a perder suas imensas possibilidades de crítica, análise e
argumentação. A cultura ocidental, de consumo, está voltada para o ganho, o mais, o
muito, e o arcabouço teórico realiza-se graças a essa volúpia de acumulação, como se
aquela carga-pesada de conhecimento pudesse defender o pesquisador de incertezas
provenientes da falta. Mas, se a falta sempre foi identificada com um sinal negativo,
com o pouco, como um sinal de carência e de penúria, também se pode afirmar que não
se mede a presença pelo muito. “Muito” pode ser no máximo “muitos presentes”.
Presença se tornou presentes – o que se pode ganhar – mas o encontro com o real ou as
percepções da realidade possibilitadas pela presença se tornaram invisíveis, quase
inexistentes. Olhar então seria aspirar a esse parco real, ainda que seja preciso muita
paciência para que a reflexão se converta em olhar.
Eudoro de Sousa fala em “grau ínfimo de gnose”43 e na possibilidade de
aceitação de que, com o particular, concorre algo universal; com o temporário, concorre
o permanente. A percepção simples pode dar conta desse conhecimento, em geral
ausente naquele cabedal de conhecimento, feito sobretudo para a dia-gnose.
Decerto não se pode simplesmente parar de investigar por conta da cisão da
razão na história ocidental. Mas, é importante considerar, ao investigar empiricamente
uma dada realidade, que não se pode contentar com uma descrição morfológica do que é
visto, pois essa irremediavelmente toma o caminho da categorização. É preciso
investigar o que se vê na riqueza do seu acontecer por mais que se tenha dificuldade em
descrever as inúmeras relações que surgem no horizonte da experiência. Embora não
seja impossível acessar plenamente o centro desse regozijo, o pensamento pode
desenvolver-se como o de Lucrécia na festa do padroeiro que ora estala no silêncio, ora
43 Cf. SOUSA, E. “Texto introdutório” em ARISTÓTELES. Poética. Trad. e notas de Eudoro de Sousa.Guimarães Editores, Lisboa, 1964, p.39-40.
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esfuzia-se nos giros dos cavalinhos.44 Com o pensamento em festa, as pessoas param,
olham. Cabeça quente, Lucrécia se mete na frescura da sombra. É assim que ela ensina a
ver homens que parecem vir do horizonte e não do trabalho.
Para a compreensão da trajetória civilizatória, citadina e cidadã da humanidade,
gregos são fonte obrigatória, dado a sua descoberta do pensamento fruto do espanto e da
correlação da capacidade de pensar com a possibilidade de ser, considerando em ambos
o seu poder de permanente brotação. Exemplo dessa concepção reside na criação das
tragédias que, em termos amplos, apresentam a presença da physis também na polis e,
no homem, o entrelaçamento do desejo e do destino. Nessa fonte grega, sorve-se o traço
de união entre logos e physis. Na revisão dos caminhos que levam ao conhecimento
científico, na admissão da tensão entre os limites humanos e o ilimitado do
sobrehumano, o mundo se manifesta. Através da enunciação de seus nomes, coisas e
acontecimentos manifestam-se intimamente a sua vaga história. Na tragédia, encena-se
a história que então pode ser vista. E assim também podem ser vistos os pensamentos
que poucos se dão conta.
Uma questão oportuna nesse momento diz respeito às possibilidades de
desconstrução do tédio como incapacidade de perceber / ver. Em seu tédio, a cidade
revela sua pobreza, seus limites, sua condição trágica. A abertura aos limites da cidade
deixa a experiência acontecer, a questão passível de investigação. Suspende-se o
sentimento heroico da existência, vive-se o que Baudelaire chamou de choc e passa-se a
ser o lugar onde o choc acontece.45
Ver a temporalidade nos espaços quando falta a força iluminadora para perceber
acontecimentos, na intolerável falta de sinais, em um cosmos humano indiferenciado,
ainda assim, pode se dar a experiência. Baudelaire a chama de tédio (ennui).46 A casa, o
abrigo, os refúgios e os aposentos (“sótão dos meus tédios”) diz Bachelard.47 Os centros
de tédio, centros de solidão, centros de devaneio são a casa onírica. Uma visão que se
descobre ao ler Clarice Lispector relaciona o tédio e o não-querer remédio, assim
44 Cf. 1975, p.11-12.45 De acordo com BENJAMIN, W. “Sobre alguns temas em Baudelaire” In: BENJAMIN, W.,HORKHEIMER, ADORNO, T., HABERMAS, J. Textos escolhidos, trad. de José Lino Grünnnewald etalli, 2a. ed., São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores), p.44.46 De acordo com GRASSI, 1978, p.28.47 Cf. BACHELARD, 1993, p.73.
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como a cegueira não impede ir na escuridão total e a descoberta de se deixar ficar no
vazio que se inaugura. O pulo cego de cometer um crime e a prática controlada da culpa
sem incômodo são próprias de um herói cínico mas também de um homem
incapacitado. O óbvio é entediante? O mundo, transformado em fonte de paz, perde o
seu caráter de surpresa? O cumprimento do dever em um momento em que tudo
funciona mecanicamente traz felicidade. Corresponderia esse cumprimento do trabalho
à pequena vitória de semiviver?48 Quando convalescente o Zaratustra de Nietzsche
berrou que o “grande ‘tedio” lhe afogava. Dizia ele que trazia atravessada na garganta a
predição de um adivinho sobre o quanto tudo é igual e a asfixia provocada pelo saber.
Tudo isso diante de “um longo crepúsculo, uma mortal tristeza ébria e fatigada que
falava bocejando”. Para concluir que o homem enfastiado “torna eternamente o homem
pequeno.”49 Sim, até o perigo, quando se repete, vira costume. O homem pequeno e
enfastiado, o homem padrão, o mártir, entre restos de trabalho e de uma vontade: eles se
dão ao luxo de serem poderosos, de se divertirem e se verem livres de forças doentias,
até mesmo da necessidade de libertação? “Ter de cantar de novo: é este o consolo que
inventei para mim; eis a minha cura”, disse Ulisses em “Uma aprendizagem…”, para
quem fazer poemas era o exercício mais profundo de ser homem.50
No diálogo com o homem pequeno, subvertendo-se o tédio pelo choque,
aproxima-se a noção do não-querer, tomada a investigação sobre a questão feita por
Heidegger em texto sobre a “Serenidade”. O perigo do tédio reside na incompreensão
desse ato maior (o não-querer). O não querer conquista-se em primeiro lugar pelo querer
dominado por um não. Em alguns casos assume-se a partir daí a persona do mártir, que
voluntariamente recusa quereres. Mas, ainda que um mártir não se importe de morrer e
às vezes até pareça buscar a morte, anseia a integração sem palavras com o mundo. Um
mártir também pode não compreender o não-querer. Mas ainda assim, tal como o uso de
uma máscara necessária para ser si-próprio, o mártir pode cair em “estado de graça”,
como qualquer outro que vê a “profunda beleza, antes inatingível de outra pessoa”. De
uma “espécie de nimbo”, que não é o imaginário, recebe-se o esplendor quase
matemático das coisas e das pessoas e sente-se a respiração de fínissima energia, a
48 Cf. LISPECTOR, 1973, Pp.66 e 70.49 CF. NIETZSCHE, 2011.50 Cf. LISPECTOR, 1973, p.120.
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impalpável verdade do mundo.51
O tédio cria assim um cosmos humano indiferenciado. Mas o vidente citadino
não é um entediado pois vê o mundo repleto de tensões a serem investigadas. No
acolhimento dessa tensão fundamental entre pólis e physis, reapodera-se da visão do
mundo, tal como aparece em “A maçã no escuro”, “parece fazer uma enorme
pergunta”.52 Significa dizer que também poderia ser esse um remédio contra o tédio,
que, como sugere Staiger, “o mundo discretamente se inflame em nós”.53 Essa
“inflamação” é o pensamento, pois o mundo se pensa enquanto inflama. Sérios,
obedientes, sem desilusão, é preciso se deixar tocar pelo que pede atenção. Enfim sós,
percebe-se a presença constante de alguma coisa a trabalhar sem barulho. Percebe-se o
mundo a se fazer presente. Essa escuta atenciosa é linguagem, é realização de mundo.
Realiza-se a inflamação, o mundo, ao aparecer, ao ser linguagem. Delimitando-se, o
mundo se configura, mantém relações, torna presente, determina valores e poder.
Trata-se de linguagem figurada? Ou será uma articulação da dobra existente
entre poesia e pensamento? Essa linguagem, essa articulação, é mais familiar do que se
poderia supor. Precisa-se retornar a ela para habitar o mundo sem estar propriamente
presente. Habita-se o traço de união entre poesia e pensamento, demora-se na conexão
entre esses dois modos de ser que se atraem. A proximidade está em uma região de
sombra, revelada em assombro, espanto.
Enfim, no encontro com as coisas, na escritura e na história, no ver e no não querer,
permanece a pergunta sobre o que possibilita a experiência. Quando se aprende na rua, a
experiência surge como raiz da vida, como princípio. A tensão torna possível a atenção
pela vida em sua sensorialidade, sensualidade e na diversidade de suas perspectivas.
Dessa maneira, a visão desdobra-se: vê-se a sensualidade nos detalhes e sente-se na pele
a tomada de uma perspectiva. Trata-se da experiência que ensina, com a qual se
aprende.
Não é isso mesmo o que queria dizer Píndaro com “no céu, aprender é ver; na
terra, é lembrar-se”? Aprende-se pela visão, quando se está fora dos sistemas de
referências, no céu. Lembra-se do que foi visto, do acontecimento aprendido no céu,
51 Idem, p.147.52 Cf. LISPECTOR, 1970, p.88.53 STAIGER,1975, p.29.
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com os pés no chão. A cidade, como obra de arte, só pode ser vista na perspectiva
celestial, não pela negação da sua mundanidade ou da sua territorialidade, nem pela
refutação do seu caráter dual, dividido. Não se trata de adquirir uma nova maneira de
ver, nem de se deixar invadir por uma cobiça do olhar. Parece que automaticamente se
contrapõe o ativismo à apatia e a curiosidade à indiferença. Pela sintonia e sincronia
com a “obra citadina”, deixando que sobressaia a serenidade como resultado da tensão,
busca-se a retomada da relação ternária terra-homem-mundo, em que o homem, em sua
mundanidade, obedece e salvaguarda a lei inaparente da terra, no “círculo comedido do
possível”. A visão traz à tona uma luta. O que se vê então não é o conhecimento normal
e cotidiano, não por ser “anormal” (em termos muito simples, estar no mundo é
compartilhar as ruas), mas porque olhar é “ser-atingido”. Clarice Lispector identifica
esse envolvimento com um estado patético gerador de perguntas e de encontro com o
estranho das coisas. Na cidade sitiada, é assim que Lucrécia vê: “sobre as cabeças as
lanternas se embaciavam tremulando a visão; os bazares se entortavam a gotejar”.54
O real ganha contornos diferenciados. Sob a sua visão trêmula, sem
objetividade, surgem estranhezas e os bazares são vistos na sua vacuidade. Podendo ser
vertidos como uma jarra, os estabelecimentos passam a ser percebidos antes como
buracos do que como lugares onde se vendem utilidades. São desideologizados.
Mas será que essa “visão” acrescenta algo em termos de informação, de
aprendizagem, de noções, de conhecimento? Por que nomeá-la como experiência
pedagógica? Em “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, Ulisses chama atenção
para um pardal, que “não pára de ciscar o chão que aparentemente está vazio mas com
certeza seus olhos veem a comida”.55 A “visão espantada” também nutre com uma
comida invisível, mas ainda assim existente. De um modo que escapa à razão, o que
parece desértico é campo fértil. Aprender a lição do invisível possibilita fertilizar
desertos.
Assim talvez seja possível atravessar a majestade de uma vida desértica, a porta para
o vazio, percebendo uma claridade no ar que não tem nome. No mundo empírico,
quando goteja a visão espantada, desembarcam obras de arte. A visão empírica seria
então própria à ciência e a “espantada” à arte? O costume de dividir o conhecimento em
54 Cf. LISPECTOR, 1975, p.11.55 CF. LISPECTOR, 1973, p.63.
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útil, científico e artístico de cada um esvazia o que ao outro caberia. Mas se aquela
“visão espantada” desemboca em obra de arte, instaura também mundo. A visão do
bazar descrito por Clarice Lispector se aproxima da de Grassi, de um “mundo
estilhaçado em cujos fragmentos vemos espelhado o cosmos em milhares de partículas
cintilantes”.56 O acesso ao cosmos espelhado em partículas acontece pelo espanto de
ver, no deslocamento da habitual impressão e relação com os bazares da vida.
Simplificadamente talvez se possa dizer que é preciso se despir de preconceitos, mas
isso talvez só leve a uma ingênua visão das coisas. Não se trata de uma verificação
sensorial. Uma visão é uma “aparição”, um jorro que se oferece à memória,
configurando em um desafio para os apetrechos lógicos que se dispõe. A “visão” do
bazar compartilhada por Clarice Lispector com o leitor é um convite ao pensamento
como possibilidade de configuração. O bazar visto por Lucrécia pode ser associado à
jarra descrita por Heidegger em “A coisa”, na qual o vazio é compreendido como
fundamental para que o pleno se expresse.57 Dessa maneira, racionaliza-se o real,
subordinando-o à instância do observador? Como evitar o olhar de medusa-que-
petrifica ou o olhar derramado-que-nunca-vê-o-que-é, que sempre procura adivinhar um
“algo por trás”? O mundo seria assim uma enorme metáfora?
Em atitude aliviada, deixar se conduzir por formas que aparecem por si mesmas
e que SÃO, independentes da nossa razão, da nossa imaginação e mesmo da nossa
sensibilidade, isso é possível? Tricotemos e, do movimento contínuo das mãos, nasce
um espírito e uma facilidade: tudo intransponível, até mesmo pela imaginação.58
O desregramento dos sentidos ou a visão “espantada” não se faz pelo comando
de um “eu penso”, mas por um “eu sou pensado”. A visão impõe uma linguagem básica
indicativa formada pelos archai, palavras “transparentes” que invocam a relação
originária entre as palavras e as coisas. O que distancia essa “visão” do olhar-de-medusa
e do olhar-derramado é a necessidade de encontrar caminho no mundo sem o auxílio de
conexões lógico-explicativas. No exercício da capacidade “visionária”, figuras que
parecem contraditórias ou sem relação plausível ficam lado a lado, como
56 GRASSI, s/d, p.50.57 Cf. HEIDEGGER, M. “ A coisa”. In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis, Vozes, 2002.58 Parafraseando Clarice Lispector, em “A cidade sitiada”.
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temporalidades e territorialidades diferentes, e mesmo o visível e o invisível se
aproximam.
Martim, em “A maçã no escuro”, em seu processo de cidadanização, ao
despertar para o mundo, quando justamente procura isolar-se, chega ao ápice da seu
aprendizagem quando compreende que não é mais um “homem claro”, ao redor de
quem “tudo costumava ser visível”.59 Também Lucrécia experimenta um tipo de
escuridão tranquilizadora provocada à luz da dúvida. O momento da dúvida é uma
experiência “passiva”, abole a realidade cotidiana e impele à visão. Passividade aqui
quer dizer “um modo simples de estar no escuro”.60 No escuro, o pátio da igreja pode
resplandecer. Da sombra, se ri para alguém perdido na cidade sitiada.61 Trata-se da
paideia das profundezas, do período caótico da criação. Na obscuridade, ilumina-se o
fazer-se da physis, que não se pretende reproduzir, mas apenas fazer visível.
Martim já não pedia mais o nome das coisas. Bastava-lhe reconhecê-las no escuro. E rejubilar-se, desajeitado. [...] Depois quando saíssepara a claridade, veria as coisas pressentidas com a mão, e veria essascoisas com seus falsos nomes. Sim, mas já as teria conhecido noescuro como um homem que dormiu com uma mulher.62
A “visão” permite uma intimidade com as coisas que faz com que elas mostrem
seu lado “estranho”, seu lado invisível. A “visão” é o próprio dizer poético que “reúne
integrando claridade (e ressonância de muitos aparecimentos celestes) numa unidade
com a obscuridade e a silenciosidade do estranho”.63 Na sombra, se “vê” até mesmo o
som. Através dela, a música é trazida pelo ar. Na escuridão, na sombra e na estranheza
– atentos à tensão que se anuncia – vê-se o que não é treva. É verdade que também na
luz, às vezes a cegueira é completa. É preciso exercício e disposição para enxergar a
dura verdade do sol e do vento, e a de um homem andando, e a das coisas postas.
As belas palavras são também as sábias? Pela imagem de uma dobradiça,
procura-se compreender como elas estão entrelaçadas, assim como o claro e o escuro,
assim como as coisas dependem de algo que as invista de vida. Um lado da dobra não
59 Cf. LISPECTOR, 1970, p.82.60 Idem, p.201.61 Cf. LISPECTOR, 1973, p.11.62 LISPECTOR, 1970, p.228.63 HEIDEGGER, M. “Poeticamente o homem habita...“ In: Ensaios e conferências. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis, Vozes, 2002, p.177.
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existe sem o outro e só existem na articulação em movimento, em tensão. Insiste-se na
dis-junção, na tensão de suas articulações, e ela se manterá desdobrável. Mas a tensão
desagrada, dá um certo trabalho ser-com. Talvez a gente tenha a ilusão ermitã de um
sossego cristalizado, em que a cisão se perenize. É o conforto do esquecimento. É a
aquietação na dualidade e na divisão. Mergulha-se com tanta vontade nessa situação
que ela se naturaliza, as dobras se alisam ou se enferrujam, às vezes rangem com ventos
inesperados, mas a paisagem permanece desolada. Por isso, quando bate um vento
inesperado, é bom sustentar o olhar. Ou fechar os olhos com pudor.
Não olhar pode ser olhar. Presenciar a “aparição”, nada mais é do que deixar que
as estruturas construídas balancem. Se a dobradiça entra em movimento é sinal de que a
desolação naturalizada está sendo balançada. Parece muito figurada essa história de
entrar em estado de graça, diante das questões prementes da utilidade e da determinação
da razão. Em “Uma aprendizagem...”, Clarice Lispector descreve a passagem de Lóri
(ou seria melhor dizer, “em” Lóri) de um estado como aquele, que sem esforço, permite
lucidez à existência.
O corpo se transformava num dom. E ela sentia que era um domporque estava experimentando, de uma fonte direta, a dádivaindubitável de existir materialmente. [...] Tudo ganhava uma espéciede nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiaçãoquase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir quetudo o que existe – pessoa ou coisa – respirava e exalava uma espéciede fíníssimo resplendor de energia. Esta energia é a maior verdade domundo e é impalpável.64
Quem disse que a lucidez é fácil? Ela é muito muito difícil pois é simples,
simples tão simples que dá enjoo desse excesso. Por isso, diante da dádiva da
existência, não há nada melhor a fazer do que respirar, ser o que se é, e atravessar a
condição existencial, respirando-a. A terra há de aproveitar o gás carbônico.
Anteriormente já se comentou sobre esse lugar – espécie de nimbo – no qual é preciso
estar para poder ver. Tal atitude parece poder se desdobrar em atenção e renúncia, um
caminho através do qual abandono significa pré-disposição, uma imensa receptividade.
Nesse movimento, não há necessidade de ações impositivas. Ver é ser tocado pelo
privilégio de testemunhar esse movimento, do qual quem vê também participa. Ver não
quer dizer dominar, melhorar ou piorar, nem mesmo abrir-se a novas manifestações
64 LISPECTOR, 1973, p.147.
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culturais. Quem vê, não promete esperanças, nem anuncia catástrofes. Quem vê, o faz
sem ruídos, sem adeptos, sem necessidade de consequências.
O senso didático, a vontade de transmitir limita-se ao que a visão permite falar.
Evita-se o falatório e a polêmica. Encaminha-se e espera-se que a pergunta se desloque
tanto do sujeito quanto do objeto para o próprio aparecer das coisas. Retomar esse
acontecimento possibilita um ponto de virada posto que ele é afeto. A partir dele, o
homem pode ser tocado. E na linguagem “tocada”, mesmo o não-entender dá sinal da
largueza e da liberdade. Pode haver falta de entendimento e ainda assim se saber da
condição humana. Martim também goza do vasto vazio de si mesmo e acrescenta que
“este modo de não entender era o primeiro mistério de que ele fazia parte
inextricável”.65
Consuma-se a dúvida, experimenta-se a fé arcaica, mítica. Perceber a aparição como
acontecimento, é rememorar a aura das coisas. Essa é a leitura do “livro dos prazeres”,
uma aprendizagem orientada pelo amor. No eros do saber, há desejo e amor. Há
“contextura de ódio, de ciúme e de tantos outros contraditórios”, mesmo quando se
aprende a estar entre laranjeiras, sol, e flores com abelhas.66 Que venha o desejo, com
todos os seus perigos, pois sua falta faz calar o coração. Só assim se abre o indizível e o
afeto para com o desconhecido. A educação que faz calar o desejo, mata a respiração
em sua inspiração. Pelo desejo, paradoxalmente, alcança-se a involuntariedade.
Aconchegar-se “ao precioso fora de nós”, traz um certo ponto de glória. A glória da
auto-pobreza revelada, da condição humana implorante.
Para fundar uma cidade é preciso a coragem de reunir-se ao retrato desejado. Na
dobradiça que move a cidade para sua constante e radical renovação, encontra-se
também o gesto de abandoná-la em seu mercantilismo. É preciso coragem para
desconstruir o que se ergueu com orgulho desmesurado.
Para adquirir o sentido do comunitário, a misericórdia se transforma em ação,
por amor ao futuro e se transforma em metafísica, por terror ao futuro (o outro que nos
ronda). Colhendo em paráfrasea de “A maçã no escuro”: Nós que nos fomos dados
como amostra do que o mundo é capaz. Chegados plenamente a nós mesmos, chegamos
aos homens. Nos guiamos até ‘transformar os homens’. Falhamos mas não totalmente
65 Idem, p.65.66 Cf. LISPECTOR, 1973, pp.48 e 51.
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porque fizemos outros. No fundo do inferno, sobe o amor: as pessoas exigentes comem
o pão mas têm nojo dos que pegam em massa crua; e devoram a carne, mas não
convidam o açougueiro; as pessoas pedem que se lhes esconda o processo.67
Mas ao mesmo tempo que se levanta o sítio de uma cidade, arruma-se a trouxa e
se escapa. Ao mesmo tempo que a graça se desvanece, vibra a dobradiça e com espanto
vê-se (presencia-se) a transformação. Na experiência pedagógica da percepção: o olhar,
a lição fundamental é: o abrir, no fechar; o fechar, no abrir.
Poemas pedagógicos
Depois de ler Lispector
A fim de ensaiar a linguagem poética mais plenamente, faz-se a seguir um
exercício de traduzir os conceitos trabalhados neste artigo na forma de poema, com
o auxílio das imagens de Clarice Lispector nos três romances estudados (“A cidade
sitiada”, “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres” e “A maçã no escuro”).
PAIDEIA
Quando a badalada soa solene,ouve-se num momento o espaço e aspira-se com narinas selvagensa vida onde reina o gosto do passado.Ah, forma esquecida pelo uso –cavalos, terra negra e tanque seco na praça –transpira arrogância, audácia e a cólera sem ira.Não afirma, não nega. Não participa de si própria.Sê calada e dura – não precisa pensar.Enobrece coisas belas, acende o fogo ao vazio.Inicia a tradição da futura metrópole.Chama a raça de construtores.Servirão eles de armas para o seu escudo.
Forma com esforço o espírito de uma cidadefeita de trabalhos e histórias curtas.
***
67 Cf. LISPECTOR, 1970, pp.227 e 241.
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Recordo,mas não me reconheço na revelação.
Conheço indiretamentecomo uma planta ferida na raiz.
Pequeno destino,decaio na idade de ouro e escuridão.
Destino terrestre, rezo a única frase que ficou.Mostro minha cara de pedra,bondade sem súplica, relógio atrasado da igreja.
Sou do grupo dos cavaleiros anônimos.Danço em nova composição de trote.
Tão fácil achar coisas perdidas no chão,nos despojos virginais desta cidade.
O que era mortal foi atingido.Tudo que resta é eterno, sem perigo.
CULTURA
Quando o fogo de artifício espoucaa multidão é tocada do sono rápidoe rebenta em gritos no carrossel.Movimentos congestionados,vida tumultuosa da ruaonde não falta ironia sobre a lentidão popular,onde cada coisa se move a caminho das próprias formasmas sem saber pra onde iradiantando-se, apenas,em tímido desejo de espírito.
Grande inquietação dos comerciantesque gritam: “a cidade precisa de diretivas”.Em nome de uma esperança assustadora,pelo medo e por um sentido confuso e empoeiradofazem projetos de pureza, amor à almae excitam-se com o caminho do bem.Mas também eles se movem sem saber o que fazer.Iniciam a tradição da futura metrópole,raças de construtores que decaídos, “progridem”.Dizem eles que este é o momento propícioenquanto a realidade: sem desejo, sem importância,está muito ocupada.Alguma coisa se constrói e só o futuro verá.Algo que se fala e não se transmite.
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Por um instante, apenas, imobilizada, ela reflete profundamente.
Estacase espalha em nova composiçãose alicerça na inconsciênciase submerge de espaços.A cidade nunca se atinge, porém.Mantém-se animada,acontece, e não desencadeia.Assiste o incêndiode ruas que não cheiram mais a estábulomas a armas deflagradas.De um ou de outro modo,ninguém tem tempo de vê-las. É preciso ler o folheto “Câncer espiritual”,dignificar-se com pensamentos elevadosindignar-se contra a baixeza de nossa época.Fazer a história que não interessa a ninguémE, na glória dos mecanismos e monumentos,sonhar com as novas linhas de trem.
FORMAÇÃO
Quando o sino enche de emoção a festa religiosao movimento da multidão torna-se mais ansiadoe mais livre.
Ser delicada com todosNão deixar de olharVer de baixo pra cimaArder na verdade sem causao nome último das coisas.
Pouco usável vida íntima,escreve o seu romance.Mal-estar feliz,desconfia do que pode vir de um homem.
Por um instante imobilizada,reflete profundamenteprocura semelhançasestacaem harmonia evidente, insondávelde estar na luzno domínio da inconsciência.Faz anedotasabsorve a perfeiçãoperde a angústiadesnecessária, insubstituívelbusca a unidade visível
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aplica o pensamento,faz hesitar.
Retrato ideal de si mesmasem alegria: trabalha.Não penetra demais:olha em esforço delicado apenas a superfície.
O dia não era o futuro,eram ruas duras, realizadaseram cada vez mais ligações,diversos “porém” e “aí”,modos impessoais de encarar –ar de estrangeira.
A cidade a deixou pra trás.Ela se poupara – essa, a vergonha.Dias de vigilância sem explicação,pequenos começos interrompidos entre pigarros, pressas inúteis.Orgulhara-se de ver o tempo passarcomo se ele fosse desenvolvimento seu.
Era uma pessoa olímpica e vaziaentregue à liberdade e à solidão
INICIAÇÃO, METAMORFOSE
O tenente tossiu transmitindo a voz sem palavras –o mesmo frio reconhecimentonas lajes quase reveladas.
Cara negra de olhos brancos –cada coisa que se vêquando passa e nos ofuscaa aparição.
Quando o sol se põe,o ouro se espalha e acendeum rosto – armadura –de espada desembainhada.
No cheirar leite, suor, roupas do corpo,esgueira força sutil: cavalos,vidas secretas.o conhecer indiretoda cidade de outras formas revelada.
Toca a realidade,estremece e se divertedentes tintos de inocência
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sem verniz de inteligênciavolta sujo, rasgado,com alguma coisa na mão.
Cara de pedragengivas à mostra, freios a cortar a boca –o disfarce.Impulso duro que não quebra em lágrimas,retrato burlesco –um objeto: trabalha feroz e calma,faz-se de boba.
Imitao bibelô tocando flautaa galinha fugida do quintalencontra o “compromisso”não mais criarser um carro andando no quenteum navio em alto mar,viúva,pensa apenas a invençãoimpessoal e voadora.
EXPERIÊNCIA: OLHAR
Inquirir se na vida vivida alguma coisa se tem cumprido:mistura de longa experiência e descoberta de última hora.
Tanta paciência,olhar continuando a olhar –essa, a reflexão máxima.
A cara com atenção doce, sem malícia.Os olhos espiando mutações do fogo.A seguirem, ambos, direção desconhecida –o através do povo.
Mesmo sem conseguir cair plenamenteno centro do regozijoque ora estala em silêncio,ora em giros de cavalinhos,mete a cabeça na frescura,vê homens na luz virem do horizonte,não do trabalho.Vê vagas histórias,e o pensamentoque elas não podem pensar.
Séria, obediente, sem desilusãotocada pela atençãosozinha
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e com alguma coisacontinua a trabalhar sem barulhoe ver do modo mais beloa bondade de tudo o que morre.
Novamente a vida se abre em majestade.Portas batem, claridade de ar que não tem nome,casa cheia de segurança materialtricô, movimento contínuo das mãosfaz nascer um espírito e uma facilidadetudo intransponível –não adianta imaginar.
Abandona a cidade mercantil,levanta o sítio,arruma a trouxa e escapa.
Dura é a verdade do sol e do ventoe de um homem andandoe das coisas postas.Aconchega-se no precioso fora dela,no certo ponto de glória,tem coragem,e se reúna ao retrato desejado.
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