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P R I N C ÍP lO S Norma Musco Me nd es Prof essora de História da Universidade Fed era l do Ri o de Janeir o ROMA. REPUBLICANA  editora át ica

Mendes, Norma Musco - Roma Republicana

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  • PR INCPlOS

    Norma Musco Mendes

    Professora de Histria da Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ROMA. REPUBLICANA

    editora tica

  • DireoBenjamin Abdala Junior

    Samira Youssef Campedelli Preparao de texto

    Ceclia Bittencourt ThesbitaCoordenao de composio

    Neide Hiromi ToyotaCapa

    Ary Normanha Antnio Ubirajara Domiencio

    im presso e acabam ento por W . R oth & C ia. Ltda.

    ISBN 85 08 03041 x

    1988Todos os direitos reservados

    Editora tica S.A. Rua Baro de Iguape, 110 Tel.: (PABX) 278-9322 Caixa Postal 8656 End. Telegrfico Bomlivro So Paulo

  • Sumrio1- I n tr o d u o ____________________________________ 5

    2 . O s p r im eiro s s c u lo s d a R ep b lic aR o m a n a (509-367) ___________________________ 8

    A formao de Roma e a influncia etrusca ______ 8A passagem da Realeza para Repblica __________ 11Patrcios e plebeus _____________________________ 13A posio romana no Lcio _____________________ 14A situao econmica e o aumento da escravidopor dvidas______________________________________ 15A articulao entre as tenses internas e externas ea formao das instituies republicanas__________ 17Princpios bsicos da religiosidade romana ______ _ 22

    3 . A R e p b lic a s e n a to r ia l _____________________ 30

    Princpios norteadores das prticas institucionais __30Os entraves participao poltica do povo romano 34

    4. O d o m n io d o m ar M ed iterr n eo __________ 39

    Natureza do imprio do povo romano____________ 41Formas de organizao das regies conquistadas __42

    Os municpios _______________________________ 43As colnias __________________________________44As provncias _______________________________ 44

    5 . A d e s a r t ic u la o d o s i s t e m a r e p u b l ic a n o _ 51

    Transformaes scio-econmicas_________________ 52Ordem senatorial e ordem eqestre____________ 53

    A questo agrria e a ampliao do uso damo-de-obra escrava _________________________ 56

    A falncia das prticas polticas tradicionais e o fortalecimento do poder p e s s o a l_________________63

  • A reforma militar de Caio Mrio______________ 65O choque entre os crculos de liderana________ 66

    Repercusses culturais__________________________ 70

    6. C onc lu so _________________________________ 74

    7. Vocabulrio crtico _______________________ 77

    8 B ib liogra fia co m e n ta d a ___________________ 83Obras gerais __________________________________ 83Obras especficas ______________________________ 84

    Ao meu filho

  • 1Introduo

    A que se deve a atrao e importncia do estudo da Histria de Roma na Antiguidade? Roma tornou-se e permanece at ns como um mito, cuja construo articula-se sua ao poltico-militar; sistematizao e teorizao do Direito; ao urbanismo; aos seus preceitos morais e cvicos; ao latim, lngua me nutriz das lnguas modernas ditas neolatinas e sua imortalidade dupla: Roma pag, sntese e smbolo da cultura clssica helenstico-romana e Roma crist, smbolo religioso da universalidade do Cristianismo. Desta forma, seu estudo fundamental para a compreenso das referncias existenciais e cientficas da civilizao ocidental, da qual somos herdeiros.

    Dentro dos limites e objetivos deste livro, tratarei de elaborar uma sntese dos elementos scio-econmicos e polticos formadores da estrutura republicana romana. Principalmente aqueles que viabilizaram a conquista, a unificao do mundo antigo e deram condies para a passagem do governo republicano para o monrquico. Ressaltamos ao leitor que toda manifestao econmica nas sociedades antigas repercute na ao poltica.

  • 6Cabe lembrar que a reconstruo explicativa de qualquer sociedade antiga envolve dificuldades em relao natureza, escassez e valor histrico do material a ser investigado. As fontes escritas so repletas de detalhes imaginativos, adaptaes do repertrio mtico e histria dos gregos realidade romana. So, ainda, lacunosas, desiguais e permeadas de anacronismos. Neste sentido, a investigao histrica das sociedades antigas, alm de exigir o exame de documentao de natureza diversa, necessita do auxlio das cincias afins, principalmente da Arqueologia, para a confirmao das concluses alcanadas.

    Para a histria da Repblica Romana, ao lado da sobrevivncia de documentos oficiais escritos (Lei das Doze Tbuas, Anais Mximos, tratados, decretos senatoriais, leis), devemos destacar o trabalho de vrios historiadores que, j na Repblica, ou mesmo durante a fase imperial, despertaram para a necessidade de apreender a essncia daquela cidade-estado

    que chegou a dominar o mundo. Entre eles alternam-se romanos, como Tito Lvio e Salstio, e estrangeiros tais como Dionsio de Halicarnasso, Polbio, Diodoro da Siclia, Apiano e Plutarco.

    De grande importncia, tambm, so as obras de Ccero, que inauguraram a reflexo poltica em Roma e desvelam a concepo de histria que norteou o discurso histrico entre os romanos. Seus escritos constituem-se em importante testemunho contemporneo.

    At o final do III1 sculo a histria no se manifestou em Roma como gnero literrio especfico. A prtica de elaborao de um discurso histrico foi marcada por forte influncia grega e resultado da conscientizao de que Roma tinha como misso a dilatao do esprito da cidade civilizada perante os brbaros , demonstrada atravs da vitria mili

    1 Todas as datas do presente livro correspondem ao perodo antes de Cristo.

  • 7tar. A Histria foi escrita pelos crculos aristocrticos e para divulgar a grandeza romana. Assim, a crtica histrica deve se preocupar com a mentalidade daqueles que elaboraram os escritos histricos. A historiografia romana constituda de obras apologticas, pragmticas, patriticas, onde constante a preocupao moral de preservao dos mos mai orum , enfatizando seu carter cvico. A concepo romana de Histria pode ser plenamente resumida pelo ideal ciceroniano, diante do qual representava o testemunho das idades, a luz da verdade, a escola da vida e a mensagem da Antiguidade. esta a historiografia a respeito da Repblica Romana que chegou at ns. Discursos elaborados a partir de uma mentalidade que no se preocupou com o rigor cientfico da Histria dos dias de hoje, devendo ser colocados junto aos demais gneros literrios desenvolvidos em Roma, assim como, junto ao restante da documentao textual e material que nos possibilita desvelar a ordem social e poltica e os esquemas mentais desta civilizao.

  • 2Os primeiros sculos da

    Repblica Romana (509-367)

    A formao de Roma e a influncia etrusca

    Tanto a tradio como a investigao moderna esto de acordo em que, no processo de urbanizao do stio arqueolgico de Roma foi fundamental o elemento econmico, que significou a transformao da regio dos montes tiberinos em um grande local de trfico e a conseqente abertura do seu horizonte cultural. Referimo-nos influncia da civilizao etrusca, cuja origem pode ser explicada pela fuso de grupos heterogneos, assimilando formas culturais itlicas, gregas e orientais. A prosperidade desta civilizao estava relacionada com o desenvolvimento da agricultura, pecuria, comrcio, artesanato e explorao dos recursos do subsolo da costa da Etrria e da ilha de Elba: estanho, cobre e ferro. Sua expanso territorial, iniciada em fins do VIII sculo, provocou a etruscanizao da Itlia Central, desde as baixas plancies do rio P at a Campnia (vide mapa 2, p. 28). Nesta poca nos montes tiberinos existiam comunidades aldes cuja populao era caracterizada pela superposio de elementos pr-indo-europeus e indoeuropeus (latinos e sabinos) (vide mapa 1, p. 27). Utilizamos como modelo explicativo para a

  • 9organizao poltico-social destas comunidades a estrutura gentilcia. Surgida pelo processo de aglutinao de grupos por laos de sangue, por motivos econmicos ou por contigidade. Aos poucos foram surgindo a gens (pl. gentes), unidade scio-econmica e poltica bsica da sociedade alde, entendida como um conjunto de famlias unidas em torno de um culto e de uma suposta descendncia comum. Podemos compreend-la como um cl. Constitua-se num grupo tnico, submetido autoridade do Pater (chefe de famlia) que administrava os bens do cl e empreendia o culto. A base econmica era a pecuria secundada pela explorao agrcola das terras cuja propriedade era coletiva. A fora de trabalho era constituda pelos membros do cl e pelos clientes. O domnio etrusco significou a passagem destas comunidades aldes de pastores para o agrupamento social caracterstico da Antiguidade greco-romana: a cidade-estado. Esta transio deve ser entendida como um processo que, segundo os estudos do arquelogo E. Gjerstad, comeou em 575 ou, de acordo com outros especialistas, teve incio entre 700 e 575, quando j se percebem a expanso territorial pelas colinas e vales do stio de Roma e progressos no artesanato. As idias e formas de organizao poltica e scio-econmica trazidas por um grupo de aristocratas etruscos se difundiram, transformando uma aglomerao de choas em uma cidade com ruas, edifcios pblicos, mercados, tendas, templos e casas.

    Portanto, a crtica histrica nega inteiramente a lenda que atribui a fundao da cidade de Roma a Rmulo em 21 de abril de 753.

    A dominao etrusca no se restringiu apenas transformao material. Foi acompanhada de uma surpreendente fuso cultural. A mutao da organizao poltica das aldeias tiberinas para uma cidade-estado paralela fuso de elementos nativos, etruscos e tambm gregos, devido ao relacionamento etrusco com a Magna Grcia. A ocupao etrusca esteve intimamente ligada ao desenvolvimento do artesa

  • 10

    nato e do comrcio e conseqente complexidade da sociedade romana, originada pelas diferentes atividades econmicas, diviso do trabalho e desigualdade social. Neste processo, a autonomia das aldeias foi restringida pelos rgos pblicos da realeza etrusca: Rei, Conselho de Ancios (Senado) e Assemblia das Crias.

    A tradio historiogrfica romana data do reinado de Srvio Tlio uma srie de reformas que so refutadas pela crtica histrica por serem caracterizadas como anacronismos, a saber: organizao censitria englobando cento e noventa e oito centrias (conforme veremos mais adiante) e a construo das muralhas da cidade. No entanto, aceita-se como obra de Srvio Tlio (550-530) a reforma militar e poltica baseada na necessidade de consolidar as instituies da cidade-estado, de integrar em seus quadros os estrangeiros de condio livre domiciliados no territrio romano e o empreendimento de uma poltica externa ativa que possibilitou Roma etrusca certa preeminncia no Lcio (vide mapa 2, p. 28). Assim, a fora militar romana deveria se tornar um exrcito nacional, o que explica a introduo por Srvio Tlio das tcnicas hoplticas e do recrutamento militar baseado no sistema censitrio (classis e infraclassem), vinculado criao de circunscries territoriais novas formadas pelas tribos topogrficas. O desenvolvimento econmico e a expanso territorial registrados durante a dominao etrusca levaram ao fortalecimento da aristocracia, seja ela latina ou etrusca, ao enriquecimento de alguns grupos voltados para as atividades urbanas, e possibilitou a formao da propriedade privada da terra ao lado da propriedade coletiva. Alm disto, as reformas polticas e militares que reforavam a organizao da Urbs tambm contriburam para a desagregao do sistema gentilcio.

    Portanto, a realeza etrusca contribuiu profundamente para a formao do sistema cultural e religioso dos romanos e forneceu os alicerces sobre os quais Roma ergueu suas instituies polticas e militares republicanas.

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    A passagem da Realeza para Repblica

    Tito Lvio (I, 60) data o incio da Repblica romana, em 509, em decorrncia da reao do patriciado ao poder tirnico do ltimo rei etrusco, Tarqunio, o Soberbo. No entanto, o debilitamento da realeza etrusca a partir de fins do VI sculo foi resultado de um processo comum s outras cidades etruscas, no qual se articularam a presso das coligaes militares rivais, a depresso econmica do V sculo, e a hostilidade entre o rei e a aristocracia, levando substituio gradual da realeza por um regime baseado em magistrados.

    A Res publica romana surgiu sob a influncia de famlias etruscas que no lugar de monarcas vitalcios elegeram um Colgio de Magistrados Anuais, presididos por um zilax (pretor mximo). A substituio do nome de pretor para cnsul aliou-se conscientizao dos princpios de colegialidade e de intercesso.

    Alm dos cnsules (herdeiros dos poderes reais) e dos questores (acompanhantes dos cnsules nas campanhas militares que aos poucos foram se tornando magistrados encarregados da administrao do tesouro), a forma inicial do regime republicano repousava na sobrevivncia dos institutos polticos da realeza etrusca: Senado, Assemblia Curiata. Por outro lado em virtude da importncia do exrcito desenvolveu-se o Comitatus Maximus.

    O estabelecimento da Repblica constituiu para o romano a garantia da liberdade do cidado, ou melhor, de uma cidade livre (Tito Lvio, I, 2). A relao entre o rei eo povo era considerada anloga relao entre senhor e escravo. Conseqentemente, a monarquia era considerada como dominatio (domnio). Portanto, os romanos dataram o incio de sua liberdade no findar da monarquia e a relacionaram com a forma republicana de governo. O ideal de li-

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    bertas1 (liberdade) estava estritamente ligado ao conceito de civitas (cidade, comunidade), sendo que em essncia a idia de liberdade significava o estatuto do indivduo livre, enquanto a noo de cidade denotava sua posio em relao comunidade. Somente o cidado romano gozava de todos os direitos civis e polticos entendidos com o liberdade republicana. Da ter sido uma difcil questo a adaptao institucional da delegao do imperium (imprio). Poder ao mesm o tempo jurdico, civil, militar e coercitivo, que implicava no direito de consultar os auspcios, comandar o exrcito, ordenar o recrutamento militar, estabelecer os im postos, em itir editos. O imprio era conferido aos cnsules eleitos por uma lei especfica votada na Assemblia Curiata (Lei Curiata de Imprio) e anteriormente concentrado nas mos dos reis. Com o conciliar este amplo poder nas mos dos cnsules sem ferir a liberdade republicana, a estabilidade do Estado e, por conseguinte, afastando qualquer ameaa de tirania? Esta preocupao desvelada pela criao, tradicionalmente em 501, da ditadura, magistratura extraordinria e absoluta, mas limitada a seis meses e vinculada preveno de graves crises e guerras; assim com o pela adoo dos princpios de controle do poder consular atravs da anualidade, da colegialidade e da elegibilidade.

    As circunstncias histricas resultantes da ao poltica e militar da comunidade romana para manter sua coeso interna, abalada pela luta entre patrcios e plebeus, e a autonom ia do Estado frente s ameaas externas, levou ao esvaziamento do imprio consular e criao de magistraturas investidas apenas do direito de agir com o povo e de recorrer ao Senado (potestas).

    1 Todos os termos latinos que representam um conjunto de idias, de prticas polticas e formas de comportamento tm o seu sentido minimizado ao serem traduzidos para o portugus.

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    Patrcios e plebeus

    Estes dois estamentos que compunham a sociedade romana nos primeiros sculos da Repblica no existiram ao longo da realeza etrusca poca em que a sociedade romana j conhecia as diferenas sociais, porm em sua globalidade encontrava-se submetida ao poder monrquico.

    A questo patrcio-plebia fruto de um processo difcil de ser seguido. Teve incio com a evoluo gradual da Repblica, pois apresenta credibilidade a presena de plebeus no consulado entre 509 e 486.

    Qual era a base desta diviso e quem integrava os dois grupos? Patricii significava filhos e descendentes dos Patres (senadores) e o nome P lebs apareceu no vocabulrio para designar uma realidade coletiva indiferenciada: se englobasse a totalidade das famlias estrangeiras, a linhagem patrcia seria, possivelmente, mais objeto de quantificao do que de qualificao. O carter patrcio estava restrito aos descendentes de senadores (gentes maiores) que herdaram certos privilgios religiosos especiais.

    Com o recuo do domnio etrusco, um grupo cerrado de cls patrcios, apoiado em seu exrcito de clientes, absorveu os poderes religiosos do Estado, o controle secreto da Lei, a interpretao dos auspcios e as funes pblicas mais importantes. Desta forma, os patrcios podiam sustentar um governo exclusivo e autoritrio, barrando o acesso dos plebeus ao Senado e ao consulado, mesmo sem que houvesse uma lei especfica que o proibisse.

    A formao da plebe est intimamente relacionada com a ocupao etrusca e a prosperidade econmica que a acompanhou. A vida econmica, que conhecemos graas Arqueologia, criou novas fontes de riqueza e ampliou as tradicionais. Os estrangeiros chegados com os conquistadores etruscos ou atrados pela prosperidade fomentada por estes ltimos agilizaram e participaram intensamente da vida econ

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    mica do mundo tirreno. Ao substituir as tribos com carter tnico por tribos topogrficas que serviam como marco para o estado civil, Srvio Tlio integrou todos os habitantes da cidade na condio de cidados. Apesar de no termos dados suficientes para precisar sua origem, destaca-se sua superioridade numrica e heterogeneidade: artesos, mercadores, ex-clientes, camponeses livres. Enfim, aqueles que se encontravam fora das famlias que monopolizaram o poder nos primeiros anos da Repblica.

    Para conter a presso deste grupo social convertido em plebe, os cls patrcios empregaram todos os recursos que podiam extrair de sua organizao gentilcia: a coeso prpria desta estrutura, seus cultos particulares, o poder econmico conferido por suas terras e clientes, o conhecimento das frmulas jurdicas aliadas aos procedimentos de carter ritual e o controle do Senado. Este rgo por sua preeminncia fundamentada no prestgio scio-econmico e poltico e na competncia moral dos seus membros era a expresso da sociedade patrcia em que dominavam os chefes das famlias mais poderosas. Assim, a soberania patrcia mantinha os plebeus num estado de inferioridade e inquietao permanentes, ainda mais aguda diante dos problemas que conturbavam Roma ao longo do V e incios do IV sculo.

    A posio romana no Lcio

    O Lcio oferecia um atrativo permanente para os povos que viviam nas montanhas e sentiam necessidade de expanso territorial em direo s plancies e ao mar. o caso dos sabinos, que aos poucos foram assimilados por Roma, dos volscos, quos e hrnicos. Vimos que os tarqunios empreenderam uma poltica expansionista, visando criar uma unidade no Lcio em torno da primazia de Roma. Era do interesse romano no somente conter a ameaa destes povos, como

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    tambm obter terra. Fator que na Antiguidade Clssica representou um dos motores da ao poltica e militar.

    Registra-se em 496 a Batalha do lago Regilo, quando o exrcito romano enfrentou uma coligao militar de cidades latinas. A conseqncia imediata foi o estabelecimento de um tratado entre Roma, que neste momento procurava se afirmar como Repblica, e as cidades latinas (Tratado Cassiano, em 493), pelo qual ficava estabelecida uma aliana defensiva comum, baseada na igualdade em relao diviso da pilhagem e ao comando do exrcito da Liga. Nota-se, portanto, que a posio romana j no era mais de destaque dentro do Lcio, algo que evidencia o retrocesso da influncia etrusca em Roma. A Liga Latina foi muito importante para enfrentar a ameaa na fronteira oriental e sudeste do Lcio (volscos, quos e hrnicos).

    Roma envolvia-se ao norte numa outra frente de luta com a cidade etrusca de Veios, em virtude da disputa pela explorao de salinas ao norte da desembocadura do rio Tibre e pelo territrio de Fidena que controlava o trfico do sal e do trigo rio abaixo (vide mapa 3, p. 29). A longa durao deste conflito, impedindo que os homens voltassem para seus trabalhos regulares, tornou necessria a instituio do imposto (tributum) e a criao de uma cavalaria suplementar, de cavalos de propriedade particular (Tito Lvio, I, 5, 7-8).

    A situao econmica e o aumento da escravido por dvidas

    Paralelamente a esta conturbada situao militar, Roma enfrentava um momento de depresso econmica: as rotas comerciais com a Campnia estavam interrompidas, o comrcio do sal foi prejudicado com as investidas dos sabinos e a ao de Veios; a Arqueologia registra diminuio das importaes de cermica grega a partir do sculo V; ms co

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    lheitas foravam s importaes de trigo, que o Lcio sempre produzira em escala deficiente. Os Anais Mximos conservaram informaes sobre enfermidades e graves epidemias e dificuldades de abastecimento. O desespero e a angstia repercutiram na construo de templos: em 497 em honra Lua Saturai, buscando a purificao da cidade: e a Mercrio, para estimular o comrcio, em 495.

    Os efeitos desta retrao econmica aliada conturbada situao externa so visveis no aumento do nmero dos nexi (escravos por dvida) recrutados, principalmente, entre os pequenos camponeses e criadores. Quando um homem contraa uma dvida tinha 30 dias para pag-la, caso contrrio seria publicamente reconhecido como devedor e obrigado a prestar seus servios como escravo em troca do emprstimo. Recebia o nome de nexus (homem atado), at que tivesse saldado a dvida. Trata-se, portanto, da prtica da escravido por dvida. As condies scio-econmicas da sociedade romana dificilmente dariam oportunidade a este homem para obter riqueza e pagar sua dvida, deixando, desta forma, de ser um homem atado. difcil, diante da escassez de fontes, ter uma idia concreta da economia romana nesta poca. Os dados arqueolgicos e a crtica da escassa documentao histrica nos levam a crer que o territrio romano encontrava-se distribudo em pequenas propriedades das quais as mais frteis tanto para a agricultura como para o pastoreio concentravam-se nas mos das famlias mais poderosas. A explorao destas terras processava-se atravs do trabalho do campons livre, dos clientes, daqueles que foram escravizados por dvida e do escravo-mercadoria que j existia em pequena escala no IV sculo.

    Apesar das grandes fortunas estarem ligadas pecuria, os cereais representavam a principal produo agrcola, seguidos pelo cultivo da vinha e da oliveira.

    Devemos ressaltar a diferena entre o nexum (escravido por dvida) e a clientela. O cliente estava ligado ao cl

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    na condio de submetido, tendo uma srie de direitos e obrigaes frente ao seu patrono, sendo protegido por este atravs de um vnculo recproco de fidelidade (fides Boa F). A subordinao econmica constitua a base desta relao e a clientela foi importante fora de trabalho para as famlias patrcias, sem ser uma forma de dependncia escravista.

    A articulao entre as tenses internasa

    e externas e a formao das instituies republicanas

    As tenses provocadas pela problemtica das crises econmica e militar deram lugar ao srio conflito conhecido como a Primeira Secesso da Plebe, em 494. Chegou-se a um momento de stasis (revoltas e conflitos internos). Os plebeus retiraram-se para fora da muralha das Sete Colinas, para o monte Aventino, ameaando separar-se, quer dizer, recusando-se a prestar o servio militar. Era preciso buscar solues de compromisso. Os patrcios concederam aos plebeus magistrados especiais: os tribunos da plebe. Eram inviolveis, suas residncias funcionavam como asilo (ius auxilium) e tinham o poder de veto sobre toda deciso de um magistrado referente pessoa ou aos bens dos plebeus. Assim, criou-se um instrumento de luta. Praticamente, passou a existir um Estado dentro do Estado, ou melhor, um Estado plebeu paralelo ao Estado patrcio, com seus prprios chefes (ou tribunos) e uma Assemblia prpria (Concilium Plebis), que votava os desejos da plebe (plebiscita), agora usados como meio de presso. Em seguida, foi fundado o templo de Ceres, Liber e Libera, trade plebia ao lado da trade capitolina, Jpiter, Juno e Minerva, reservado aos patrcios.

    Ao longo do V e IV sculos a evoluo se produziu no sentido de dar maior coeso ao Estado, diante da integrao conflituosa patrcio-plebia, provocada pelo endurecimento

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    das posturas antagnicas e pelo crescimento numrico e fortalecimento material dos plebeus.

    A heterogeneidade das reivindicaes dos plebeus demonstra a desigualdade social entre eles. Esquematizando, suas principais reivindicaes eram: acesso ao consulado, criao de um cdigo escrito de leis, abolio da proibio de casamentos mistos, participao no colgio dos pontfices, abolio das dvidas e da escravido por endividamento. Roma vivia, ento, uma etapa comum na evoluo das cidades- Estado: a luta entre os cidados pela igualdade de direitos civis e polticos e o momento da redao de um cdigo de leis.

    Um colgio de dez magistrados (decnviros) foi encarregado, em 451, de formular as regras fundamentais do Direito. Promulgou-se o cdigo conhecido como a Lei das Doze Tbuas, que se constituiu na fonte do Direito pblico e privado. Documento importantssimo para o estudo da sociedade romana dos primeiros anos da Repblica, pois expressa a vontade dos patrcios para consolidar sua oligarquia, tendendo a transformar-se em casta , reservando a seus membros o privilgio de matrimnio por confarreatio (nica unio reconhecida pelo Estado), o qual, no entanto, foi ampliado aos plebeus pela Lei Canulia, 445, dando origem aos casamentos mistos.

    Representaram as Doze Tbuas a substituio do direito consuetudinrio, guardado e conhecido pelos pontfices e magistrados, pelo Direito escrito. Foi um conjunto de respostas a problemas jurdicos cotidianos. Encontramos artigos sobre o Direito de Propriedade, a consolidao da autoridade do chefe da famlia, e disposies sobre dvidas. Reflete, portanto, uma sociedade basicamente agrria. A existncia deste cdigo no foi muito significativa para os plebeus, pois sua aplicao continuou vinculada e dependente da interpretao dos magistrados e tribunais. Entretanto, a codificao, secularizao e publicao do Direito foram decisivas para a unificao da comunidade.

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    A impossibilidade dos cnsules de fazer frente a todos os problemas polticos e militares exigiu a multiplicao das magistraturas, a diluio do imprio. Isto pode ser uma explicao para a criao dos decnviros e dos questores (administradores do tesouro) em 477 medidas estas que no foram suficientes para conter a presso dos plebeus e satisfazer as necessidades militares e administrativas. Como vimos, Roma combatia em vrias frentes, e dois cnsules eram insuficientes. Por esta razo, em 444 e depois em 438 foram nomeados tribunos militares com poder consular, em substituio do consulado. O nmero destes tribunos passou de trs para quatro e depois para seis, medida que os conflitos externos exigiam o aumento dos efetivos militares. Tudo indica que no possuam o imprio e que marcaram o incio do processo de esvaziamento do consulado. Paralelamente sua criao, apareceu a censura (443), reservada unicamente aos patrcios. Magistratura responsvel pelo censo da populao, elaborao do lbum senatorial, recrutamento militar e jurisdio moral (cura morum) que deu aos censores temvel autoridade. Eram eleitos de cinco em cinco anos, mas permaneciam no cargo apenas dezoito meses.

    A invaso dos gauleses em 390 agravou os problemas scio-econmicos e polticos de Roma, possibilitando o triunfo dos tribunos Licnio Stolo e L. Sexto Laterano, que conseguiram a aprovao do plebiscito conhecido como as Leis Licnia-Sxtia em 367.

    A tradio atribui s Leis Licnias disposies sobre dvidas, sobre questes constitucionais e sobre limitao do ager publicus (territrio anexado ao Estado aps a conquista e pertencente ao povo romano, ou seja, terras de domnio pblico). Magistrados e senadores eram os responsveis pela administrao e explorao destes domnios. A alienao destas terras podia ser feita atravs de venda, distribuio a ttulo gratuito (territrio das colnias) e arrendamento. Neste ltimo caso, o Estado conservava o direito de propriedade

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    e o arrendatrio obtinha apenas a posse sobre as terras mediante o pagamento de uma taxa (vectigal). No V e IV sculos os patrcios tentaram conservar o monoplio sobre as terras pblicas, provocando as reivindicaes agrrias da plebe aliadas ao problema das dvidas. As propores atribudas pela tradio s Leis Licnias, no tocante posse destes domnios interdio a todo cidado de possuir mais de 500 jeiras (125 hectares) de terras pblicas e de criar mais de 100 cabeas de gado de grande porte e mais de 150 cabeas de gado de pequeno porte , so anacrnicas e incompatveis com o tamanho do territrio romano naquela poca, O verdadeiro das disposies agrrias das Leis Licnias, certamente, foi possibilitar aos plebeus o acesso real s terras pblicas.

    As disposies constitucionais desta legislao restabeleceram o consulado e possibilitaram o acesso plebeu ao mesmo. O consulado de 367 no concentrava mais a totalidade do imprio, como antes de 450. Os cnsules ainda eram os chefes do poder executivo e do exrcito, mas surgiram duas magistraturas que absorveram poderes anteriormente exercidos por eles: a pretura, encarregada de dizer o Direito e emitir editos tendo, ainda, o poder militar e o direito de agir com o povo e apelar ao Senado, como o consulado; e o edilato curul, que, juntamente com a questura, possua apenas o direito de agir com o povo e recorrer ao Senado, tornando-se responsvel pelo abastecimento, policiamento, conservao das obras pblicas e higiene da cidade. No foi difcil o acesso plebeu a estas novas magistraturas, depois da abertura do consulado.

    Os progressos da plebe esto articulados, tambm, ao alargamento do horizonte romano diante de sua efetiva ao militar no Lcio, no sul e norte da Etrria. Ao lado dos eventos militares registra-se uma expanso demogrfica, traduzida no aumento dos efetivos militares. Um certo enriquecimento da populao ao longo de meados do IV sculo foi conseqncia das pilhagens e da apropriao dos recursos dos

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    territrios anexados. A vitria sobre Veios beneficiou o trfico terrestre e, conseqentemente, os comerciantes da plebe urbana. No incio do IV sculo, embarcaes romanas percorriam o rio Tibre transportando gado em troca de trigo e metais. Os aes rude (lingotes de bronze) retidos pelas famlias deu origem fortuna mobiliria, pois ainda no havia moeda romana, apenas circulao de peas estrangeiras. A riqueza patrcia por excelncia, o gado (pecus), continuava sendo o meio de troca principal e o padro de valor. No entanto, o pagamento das multas j podia ser feito em bronze. Em fins do IV sculo comearam a ser usados os lingotes marcados (aes adsignatum). Isto significa que um padro novo de riqueza, associado ao desenvolvimento das atividades econmicas urbanas, ganhava fora, favorecendo as ricas famlias da plebe urbana.

    As reivindicaes scio-econmicas dos grupos plebeus menos favorecidos no tiveram, no entanto, a mesma sorte. Apesar da concesso de acesso plebeu s terras pblicas, em 367, e da escravido por dvida ter sido abolida, em 326, pela aprovao da Lei Poetelia Papiria, os conflitos sobre a terra, aliados ao problema das dvidas, continuaram a existir, sendo apenas contornados por medidas paliativas: distribuies espordicas dos domnios territoriais pblicos, limitao das taxas de juros e fundao de colnias na Itlia.

    A partir de 367 a Repblica Romana possua todas as magistraturas, reguladas pelos princpios de elegibilidade, anualidade, colegialidade, especializao e hierarquizao.

    Observamos, tambm, esforo de laicizao, diante da ntida demarcao entre poder civil e atribuies religiosas.

    Portanto, as dificuldades polticas encontraram soluo gradativa medida que foram necessrios o aumento do efetivo militar e a conteno das desavenas internas para manter a autonomia do Estado frente s ameaas externas. A verdadeira conquista da plebe no IV sculo consistiu em ganhos polticos e jurdicos. Vinculou-se ascenso de uma elite ple

  • 22

    bia que ao unir-se a um grupo do patriciado, deu origem nobreza patrcio-plebia (nobilitas).

    A preeminncia do antigo patriciado passou para esta nova nobreza, cuja supremacia poltico-social era similar quela do patriciado, sobretudo porque sua estrutura social e formas de conduta e pensamento permaneceram essencialmente as mesmas. Consagrou-se o carter aristocrtico da Repblica Romana.

    Princpios bsicos da religiosidade romana

    Apesar da laicizao do poder poltico, a religio encontrava-se incorporada ao funcionamento da mquina governamental, pois todo ato pblico era precedido de tentativas de obteno do apoio dos deuses. Na sociedade romana, desde o incio, um pacto poltico vem acompanhado de um pacto religioso. Destes pactos estruturavam-se regras poltico- jurdicas e regras religiosas, ambas visando nortear e controlar a ao social. Assim, nos parece imprescindvel, mesmo que de forma esquemtica, traar algumas consideraes sobre a religiosidade romana.

    A religio romana resultado de uma complexidade de influncias oriundas das populaes neolticas autctones, dos povos indoeuropeus que povoaram a Itlia e dos etruscos, cujo comportamento religioso j apresentava caractersticas orientais e gregas. Efetivamente, o processo de assimilao e de integrao tnica, cultural e religiosa acompanhou as etapas de expanso territorial romana.

    Desde as origens os romanos apresentaram uma religiosidade marcada pela preocupao de determinar as distintas relaes entre os homens e o mundo dos deuses. Para os romanos, como tambm para as sociedades agrrias em geral, a normalidade estava vinculada seqncia ordenada das estaes. Qualquer mudana representava a possibilidade de ca

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    tstrofes, denunciando uma crise nas relaes entre os deuses e os homens. Era preciso estabelecer formas de dilogos entre os deuses e os homens, que correspondessem valorizao religiosa das realidades naturais, das atividades humanas e dos acontecimentos. Toda ao humana deveria estar encadeada para evitar a hostilidade dos deuses assegurando a pax deorum. Por isso, o homem devia estar atento para os prodgios ou pressgios que proclamavam o descontentamento ou a clera dos deuses. O significado destes signos divinos tinha de ser decifrado pelos profissionais do culto, o que explica a importncia das tcnicas de adivinhao, a prtica da aruspicina e a interpretao dos Livros Sibilinos. Podemos agrupar os pressgios em duas categorias: os auspicia e os omina.

    Naturalmente, estruturaram-se formas para atenuar a posio hostil dos deuses. Buscava-se manter a lealdade dos deuses e a confiana nesta lealdade, atravs da regularidade dos cultos, entendidos como uma espcie de contratos recprocos entre os homens e as divindades. Tanto que o termo religio designa o conjunto de vnculos (ritos, cerimnias etc.) reconhecidos, que uniam a atividade humana dos deuses.

    O comportamento psicolgico e religioso dos romanos em relao aos pressgios original. Inicialmente, demonstra o alto nvel de ritualizao e a atitude do romano perante o futuro. Enquanto os gregos tentavam desvelar o drama do futuro os romanos mostravam-se mais ansiosos em busca de garantias para o xito numa ao prxima.

    Outro aspecto peculiar que os romanos mantinham- se livres para acolher ou no os pressgios. Portanto, cria- se, desde cedo, um tratamento pragmtico em relao aos pressgios, que estavam sempre vinculados exigncia de uma resposta decidida pela vontade e expressada pela palavra humana.

    A sacralizao das coletividades orgnicas como a famlia, o cl e a ptria marcante na mentalidade religiosa romana. Da a existncia do culto privado e do culto pblico.

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    O culto privado dirigido pelo pater familias baseava-se na conservao do fogo domstico colocado no altar da casa ao lado de pequenas divindades: Penates e Lares, personificaes mtico-rituais dos antepassados que protegiam os membros da famlia e a propriedade domstica. Tambm, o culto privado era endereado ao Genius, ou seja, fora vital, s virtudes e genialidade do chefe. Os rituais, as oferendas e libaes empreendidas pela famlia consolidavam a unidade dos seus membros em torno do chefe da famlia. Acontecimentos como casamentos, nascimentos e mortes eram acompanhados de rituais especficos.

    O mundo subterrneo dos mortos era separado dos vivos, porm os mortos continuavam a ter necessidades que s poderiam ser satisfeitas pelos seus parentes atravs de cultos regulares. Tais cultos tinham o objetivo de torn-los benevolentes. Havia na mentalidade romana a convico da estreita solidariedade entre os vivos e os mortos. Vincula-se a esta idia a importncia do ius imaginum na vida pblica.

    Os mortos benevolentes ou benfeitores eram tomados em conjunto e eram designados de Manes, enquanto que os que no tinham a proteo dos seus parentes eram temidos pelos homens.

    Diante da escassez de informaes o estudo sobre a natureza e multiplicao dos deuses em Roma incompleto. A noo de numen (fora interior) de grande valor para esclarecer alguns aspectos. Numina designam foras carentes de independncia e isentas de evocao fsica. Associam-se aos deuses e representam os diferentes aspectos da vontade particular de um deus personalizado. Indicam os diferentes poderes de uma divindade plurivalente. Assim, o Universo conhecido como uma rede de foras invisveis sobre as quais somente podem agir os sacra (sagrados) que participam de tais foras: as magias, as imolaes rituais, as cerimnias.

    No VI sculo a dominao etrusca colocou os latinos em contato com representaes figuradas mais elaboradas,

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    significando a passagem para o antropomorfismo, sem que a noo das foras inerentes s coisas e aos deuses fosse abandonada.

    O processo de unificao da populao nos quadros de uma cidade-estado empreendido pela monarquia etrusca explica a criao do culto oficial em torno da trade latino- etrusca: Jpiter, Juno e Minerva. Aps a queda da monarquia o templo desta trade passou a ser o centro da atividade religiosa dos patrcios. Jpiter adquiriu a imagem etruscanizada de Zeus, o deus supremo, a fonte da sabedoria. Juno era uma deusa j conhecida no Lcio. Penetrou em Roma como a divindade da natureza feminina e do crescimento. Minerva, divindade itlica, assumiu as caractersticas da deusa grega Atena protetora das artes e das tcnicas.

    No incio da Repblica associado ao fortalecimento dos plebeus, institua-se a trade Ceres-Liber-Libera que correspondia trade agrria siciliana Demeter-Dioniso-Kore. Ceres era a deusa da fecundidade da terra. Liber e Libera eram os deuses que protegiam e garantiam as colheitas.

    O panteo romano cresceu de forma contnua diante do pragmatismo e realismo que norteavam a religiosidade romana. No se tratava de uma questo de benevolncia e sim de precauo e de utilidade poltica a assimilao de deuses estrangeiros. Para os romanos no se devia fazer guerra contra os deuses do adversrio, era melhor convid-los a fazer de Roma sua segunda moradia, ou aceitar sua emigrao definitiva. Trata-se da prtica da evocatio. Tambm, reconheciam a existncia dos deuses dos povos vizinhos que tinham funes semelhantes quelas de deuses j existentes em Roma. Assim, pela interpretatio tais deuses eram assimilados e seus nomes latinizados.

    Portanto, os contatos amistosos ou militares com a diversificada populao da Itlia engrandeceu o panteo romano. o caso da adoo das divindades itlicas (Fortuna e Diana) e das divindades gregas (Hrcules, Apolo, Mercrio).

  • 26

    Em torno destes deuses empreendia-se o culto pblico, sob o controle do Estado. Era efetuado por certo nmero de oficiantes e confrarias religiosas, tendendo para o fracionamento e para a especializao. Havia uma hierarquia sacerdotal constituda pelos flmines, autnomos e ligados cada um a uma divindade da qual tiravam o seu nome. Alm dos flmines existia o Colgio dos Pontfices que cuidava dos cultos sem titulares e fiscalizava a realizao das festas. A ele estavam vinculadas as seis vestais. Protetoras do povo romano, alimentavam o fogo sagrado da cidade que nunca poderia extinguir-se. Acrescentam-se, ainda, as confrarias especializadas numa tcnica religiosa particular, como, por exemplo, os 20 Festiales que sacralizavam as declaraes de guerra e os tratados de paz.

    Apesar de a religio romana ter sofrido ao longo dos sculos grande influncia estrangeira, apresentou originalidade compatvel com a mentalidade dos romanos. uma religio que vinculava uma comunidade de homens com um crculo de deuses, na qual a piedade, as crenas pessoais e as relaes do indivduo com a divindade no estavam em primeiro plano e sim, o culto, cuja principal manifestao era o cumprimento dos ritos, oferendas, sacrifcios que os homens faziam aos deuses para receber o que necessitavam.

    Portanto, paralelamente formao social estruturou- se um pensamento religioso carente de mitos, pragmtico, marcado por alto nvel de ritualizao e por uma ausncia de reflexo filosfica sobre o cosmo em si.

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    Mapa 1 Aldeias Tiberinas

    s

    V

    Aldeia do \

    Quirinal| Aldeiado Cspio

    oo Aldeia

    do FagutalAldeia

    de pos

    Aldeia do Aventino

    y vV

    S

    1000 2000

    Escala

    Lim ites da Liga do Septim onium

    Fonte: H o m o , L. La ttalia primitiva y los comienzos dei imperialismo romano. Mxico, UTEHA, 1960. p. 72.

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    Mapa 2 Itlia no VI sculo a.C.

    Esferas de in flunc ia

    ETRUSCA

    Melpum Acerrae dria Ateste

    Rimini

    CARTAGINESA

    HELNICA

    V o lte rra

    P o p u l n ia

    Vetulnia VolsiniELBA

    T a r q u n i aCaere Roma

    Cpua

    CumaeNpoles

    Elea

    Nola

    PosidniaTarento

    Metaponte

    sbaris

    LPARIS Palermo

    Selinunte Agrigento

    Crotona

    Rggio Catnia

    Siracusa

    Locri

    Fonte: B lo c h , R. Os Etruscos. Lisboa, Verbo, 1970. p. 93.

  • 29

    Mapa 3 Roma e o Lcio no V sculo a.C.

    0 10 20 30 40 50 Escala em milhas

    Fonte: M a c D o n a ld , A. H. Roma Republicana. Lisboa, Verbo, 1971. p. 137.

  • 3A Repblica senatorial

    Princpios norteadores das prticas institucionais

    A histria da Repblica Romana concentrou-se em dois aspectos essenciais: internos (sociedade camponesa) e externos (sociedade em constante guerra). Tais elementos foram fundamentais para o desenvolvimento das prticas institucionais que se articulavam mentalidade scio-poltica dos romanos, baseada no respeito tradio e costumes dos ancestrais e na ao. Desta forma, Roma constituiu-se aos poucos num Estado conquistador.

    O exerccio da soberania na Repblica era entendido como o resultado da ao conjunta do Senado (Conselho Consultivo), das Assemblias e dos Magistrados. Idia claramente visualizada pela sigla SPQR (Senatus Populusque Romanus Senado e o Povo Romano), sempre presente nas insgnias militares e nas construes pblicas, que demonstrava a posio de preeminncia do Senado.

    A separao de poderes (executivo, judicirio, legislativo) era desconhecida em Roma. No entanto, procurou-se a estruturao de regras institucionais para controlar, limitar

  • 31

    e impedir o abuso de autoridade por qualquer um dos trs institutos polticos: (Senado, Povo e Magistrados). Contudo, a competncia de cada um nunca foi bem delimitada, pois nunca existiu uma constituio republicana instituda por ato legislativo, e sim prticas constitucionais calcadas nos costumes e na tradio, havendo sempre a possibilidade de concentrao de poderes facilitada pelas conjunturas histricas, quer internas quer externas.

    Teoricamente, o Estado republicano reconhecia que o Povo Romano era a suprema fonte de poder legislativo, eletivo e militar. Significava, ainda, a participao da comunidade romana na riqueza comum e nos negcios do Estado e a existncia do governo para o bem do povo romano, fornecendo garantia de liberdade pessoal e proteo dos direitos de cidado. No implicava isto, entretanto, um governo pelo povo romano, pois para o exerccio do poder era preciso ter dignitas (dignidade) e auctoritas (autoridade), qualificaes que norteavam a vida pblica e privada do cidado romano. Dignidade significava o prestgio poltico daqueles que tinham condies scio-econmicas para ocupar cargos pblicos. Aos poucos foi revestida de carter hereditrio, tornando-se monoplio da aristocracia. A essncia da autoridade na vida poltica consistiu na noo de que alguns indivduos, por sua conduta moral e ao pblica e militar, demonstraram possuir autoridade superior aos demais para o exerccio do poder. Esta noo engendrou um comportamento em geral amplamente aceito de obedincia queles que publicamente possuam autoridade. Da a importncia poltica da auctoritas patrum (autoridade dos senadores).

    O Senado, desde o incio da Repblica, exerceu uma posio de destaque no controle do Estado e na sociedade de Roma. S tinham acesso a este rgo os membros das grandes famlias detentoras do direito de possuir imagens dos ancestrais e indivduos que, por algum nobre motivo, tivessem se destacado socialmente, recebendo a qualificao de novi

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    homines (homens novos). Grupo social voltado basicamente para a explorao da terra, seja a atividade agrcola ou a pecuria. Recrutados estes, sobretudo, entre a aristocracia italiana inscrita na ordem eqestre, rica classe censitria. A competncia do Senado era total: administrao interna, poltica externa, finanas, manuteno e preservao dos costumes e da tradio ancestral, rgo conselheiro dos magistrados, ratificao da eleio dos magistrados superiores (cnsules, censor e pretor) atravs da investidura da autoridade dos senadores. No havia praticamente domnio no Estado em que os senadores no fizessem sentir a sua influncia, fundamentada no prestgio poltico-militar, moral e na condio financeira dos senadores. Composto por at trezentos membros, o Senado era o reduto quase fechado das mais influentes famlias aristocrticas autoperpetuadas no poder.

    Diante da vitaliciedade dos membros do Senado era interessante para a nobilitas (nobreza patrcio-plebia) reforar a posio poltica e moral deste rgo, tornando-o a estrutura bsica do governo republicano e, por conseguinte, consolidando o carter conservador da sociedade romana.

    O povo romano constitua-se do conjunto de cidados divididos em grupos em funo das necessidades do Estado. Perante a lei, completada a pacificao de direitos em funo da luta entre patrcios e plebeus, todos os cidados romanos eram iguais. Entretanto, a organizao censitria criou um relacionamento desigual entre os indivduos e os grupos, pois a finalidade do censo da populao, feito de cinco em cinco anos, era de carter militar, fiscal e poltico.

    Os cidados eram divididos em recrutveis (adsidui), aqueles que tinham recursos suficientes e qualificao moral e cvica para participar das legies, em oposio aos no-re- crutveis, isto , que no dispunham de recursos prprios compatveis com o ltimo nvel censitrio, sendo por isto s convocados em momentos de desespero. Estes ltimos, ainda, eram divididos em capite censi (cujo bem maior era sua

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    prpria pessoa) e proletarii (os que alm de sua pessoa podiam oferecer ao Estado sua prole). Tambm entre os recrutveis havia a diviso em unidades militares hierarquizadas e definidas de acordo com a fortuna, tipo de armamento e, por conseguinte, participao militar, a saber: os cavaleiros e os infantes (infantaria dividida de acordo com o armamento que o cidado pudesse adquirir).

    Chegou-se em meados do IV sculo seguinte organizao censitria atribuda, por Tito Lvio e D ionsio de Halicarnasso, ao reinado de Srvio Tlio, conforme j mencionamos: formavam a primeira classe aqueles que possuam um censo de cem mil ases ou mais: dividia-se em oitenta centrias, quarenta de jovens e quarenta de homens maduros, estes ficavam encarregados da custdia da cidade e aqueles de fazer a guerra no exterior. Deu-se-lhes com o armas defensivas o capacete, escudo, botas e couraa, tudo de cobre, e por armas ofensivas lana e espada. A esta primeira classe acrescentaram-se duas centrias de operrios, que serviam sem levar armas e cujo trabalho consistia em preparar as mquinas de guerra. segunda classe pertenciam aqueles cujo censo era inferior a cem mil ases at setenta e cinco mil, compunham-se de vinte centrias de cidados jovens e velhos. As armas eram iguais s da primeira classe, porm o escudo era mais largo, e no tinham couraa. Para a terceira classe se exigia um censo de cinqenta mil ases: o nmero de centrias, a diviso de idades, o equipamento de guerra, com exceo das botas, eram iguais aos da segunda. O censo da quarta classe era de vinte e cinco mil ases, e o nmero de centrias igual ao da anterior; mas as armas eram diferentes consistindo de lana e dardo. A quinta classe era mais numerosa, compunha-se de trinta centrias: estava armada com dardos e pedras e compreendia os accensi, os que tocavam os berrantes e cornetas, divididos em trs centrias. O censo desta classe era de onze mil ases, e o resto das pessoas pobres, cujo censo no alcanava a tanto, ficou reunido em uma nica

  • 34

    centria isenta de servio militar. Depois de organizar e equipar a infantaria, formou (Srvio Tlio) doze centrias de cavalaria entre os principais da cidade: das trs organizadas por Rmulo formou seis... (Tito Lvio, I, 43), perfazendo um total de dezoito centrias de equites equo publico (o Estado fornecia os cavalos e sua alimentao).

    Naturalmente, esta organizao seria impossvel na poca de Srvio Tlio. Foi fruto de uma evoluo compatvel com o crescimento demogrfico e o amadurecimento poltico e militar da sociedade romana.

    O exrcito republicano, em sntese, responsvel pela conquista, apresentava, em sua composio e sentimento, o carter cvico. Era comandado por magistrados eleitos que, apesar da anualidade, poderiam ter sua gesto prorrogada. Outrossim, era marcante a solidariedade existente entre o estatuto poltico-jurdico do homem, sua renda e participao na guerra. A ampliao das atividades militares atuou como fora de diluio deste esprito cvico do exrcito republicano, conforme veremos mais adiante.

    Os entraves participao poltica do povo romano

    Alm da exigncia de dignidade e autoridade, para o efetivo exerccio do poder e da posio preeminente do Senado, a participao poltica do povo romano foi restringida pelas prticas que norteavam o funcionamento das Assemblias romanas: Assemblia Curiata, Assemblia Centuriata e Assemblia Tributa.

    A Assemblia Curiata formada por trinta crias gradualmente teve suas atribuies reduzidas aos assuntos religiosos, testamentos e adoo. Conservou a votao da Lei Curiata de Imprio que outorgava o poder militar em Roma e nas regies conquistadas aos cnsules e pretores.

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    A Assemblia Centuriata desenvolveu-se medida que o exrcito cresceu de importncia na vida pblica em Roma. Por outro lado, tornou-se necessrio aperfeioar a organizao do corpo cvico romano. Da o relacionamento existente entre a criao da censura (443) e o desenvolvimento desta Assemblia. Era composta pelo povo armado de acordo com a organizao censitria descrita anteriormente e, por esta razo, se reunia no Campo de Marte, fora do pomoerium. Suas atribuies eram: eleio dos cnsules, pretores e censores, deciso acerca das declaraes de guerra e concluso de tratados, processos de carter poltico e aqueles que implicassem em pena capital, pois nenhum cidado poderia ser condenado pena mxima sem o direito de apelao ao povo romano.

    A Assemblia Tributa era formada por todos os cidados agrupados nas tribos territoriais (total de trinta e cinco a partir de 241), quer dizer, segundo o local de residncia. Tambm chamada de Conselho dos Plebeus, quando era presidida pelo tribuno da plebe, transformou-se na fonte essencial da legislao romana depois da aprovao da Lei Hortensia (287), que reconhecia legalmente os plebiscitos, abolindo a ratificao senatorial. Era de sua competncia, ainda, a eleio dos magistrados inferiores (edis curuis e questores), alm de julgar os crimes que implicassem em multas.

    Para a compreenso das limitaes da participao poltica do povo fundamental o exame do funcionamento dessas Assemblias, assim como do sistema de votao. Obviamente, no reuniam a totalidade dos cidados. Muitos viviam longe da cidade e no dispunham de recursos, ou mesmo, no podiam abandonar suas tarefas para dirigir-se cidade. O cidado no possua a iniciativa de propor candidatos para os cargos pblicos, nem de introduzir projetos de lei ou levantar sugestes. No havia debate. O cidado apenas votava para eleger o candidato previamente indicado pelo magistrado responsvel pela convocao da Assemblia ou para aprovar um projeto de lei. Todavia, isto tambm ocor

  • 36

    ria em parte em Atenas. A grande limitao para a participao popular em Roma deve ser atribuda a outras prticas: inexistncia de data fixa para as reunies estas podiam ser invalidadas ou suspensas diante de auspcios desfavorveis. A contagem final dos votos baseava-se em grupos e no no voto individual. Na Assemblia Centuriata a votao era por centria. Comeava pelo voto das centrias mais ricas (cavalaria e primeira classe), onde se obtinha a maioria absoluta por congregarem o maior nmero de centrias. Freqentemente no se fazia necessrio convocar as outras centrias para continuar o escrutnio. Os cidados mais ricos impunham, desta forma, sua vontade ao resto da populao. Algo, tambm, constatvel nas decises da Assemblia Tributa, pois apesar de democrtica em sua composio apresentava os mesmos problemas quanto ao seu funcionamento. Na prtica, a inscrio em uma tribo dependia da vontade dos censores. Alm disto, havia desproporo em relao ao nmero de tribos: trinta e uma tribos rurais ou rsticas e quatro tribos urbanas. Sem dvida, a maioria permanecia com as tribos rsticas, onde os grandes proprietrios de terras estavam inscritos. Pelo sistema de clientela, a Assemblia cada vez mais se prestava a manipulaes eleitorais.

    A instituio do tribunato da plebe teve como principal objetivo proteger o povo contra as aes dos senadores e magistrados. Porm, diante do controle da mquina governamental pela aristocracia, os tribunos e demais magistrados passaram a ser agentes executores da vontade do Senado e, conseqentemente, da aristocracia, da qual estes magistrados eram recrutados.

    O primeiro estudo das instituies romanas foi feito pelo historiador grego Polbio de Queronia. Relacionou o sucesso de Roma e a continuidade do seu crescimento com a sua constituio poltica, elaborada atravs de lutas e dificuldades. Considerou o sistema de governo romano ideal porque conseguiu ser a combinao dos trs regimes polticos,

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    formando uma constituio mista . Polbio afirmou ter a constituio romana trs institutos polticos soberanos: consulado revestido de carter monrquico, Senado representando um governo aristocrtico e o poder do povo evidenciando uma democracia. Analisou as atribuies de cada um destes institutos, concluindo que cada fonte de poder agindo de forma equilibrada, exercia controle efetivo sobre a outra. Assim, os aspectos aristocrticos, monrquicos e democrticos

    APARELHO GOVERNAMENTAL REPUBLICANO

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    da constituio romana ficavam contrabalanados (Polbio, IV, 11-18).

    Todavia, conforme j demonstramos, tratava-se de um sistema de governo onde o esprito de eqidade estava comprometido pelo controle do Senado sobre a poltica e a vida pblica.

    A possibilidade de evoluo de um modelo democrtico em Roma foi anulada pelos seguintes fatores: o funcionamento poltico-institucional da comunidade romana, as formas de relacionamento social baseadas na clientela, os mecanismos ideolgicos e jurdicos que justificavam a obedincia e desigualdade social, as exigncias oriundas da conquista e expanso territorial (vide grfico, p. 37).

    Durante o III sculo a Repblica Senatorial forneceu os instrumentos poltico e militar propcios para a conquista e a construo do imprio do povo romano, que no entanto acabou por comprometer a sua prpria existncia.

  • 4O domnio do mar

    Mediterrneo

    Inicialmente, Roma preocupou-se em afastar a ameaa de seus vizinhos prximos ao lado da Liga Latina: sabinos, quos, volscos e hrnicos. Paralelamente, envolveu-se na luta com as cidades de Veios e Fidena. A vitria sobre estas cidades e o sucesso sobre as investidas dos gauleses foram etapas importantes para a consolidao da posio romana no Lcio, desequilibrando suas relaes com as demais cidades da Liga Latina, principalmente, Preneste e Tibur. Ambas disputavam, juntamente com Roma, a hegemonia na Liga. Este momento, cerca de 351, foi fundamental na histria da expanso romana. poca caracterizada pela ampliao das perspectivas polticas da cidade que buscou sair do estreito marco formado pelo Lcio e Etrria meridional. Em 348, Roma firmou um tratado com Cartago cujo objetivo foi a delimitao de reas de influncia para ambas. Pretendeu- se manter a costa tirrena livre da ao cartaginesa (vide mapa 2, p. 28).

    Penosos e confusos conflitos e batalhas levaram Roma a afirmar seu domnio sobre o Lcio e a Campnia. A Liga Latina, em 338, transformou-se em uma federao de cidades sob hegemonia romana.

  • 40

    A interveno de Roma na Campnia foi essencial para o cerco do Lcio, porm desencadeou o conflito com os samnitas. A vitria sobre os samnitas, aps rduo e longo conflito (343 a 290), fortaleceu o domnio romano em toda a Itlia Central, alargou sua rea de influncia na costa adritica e abriu caminho para a Magna Grcia (vide mapa 2, p. 28).

    A interveno militar romana nesta ltima regio foi facilitada pelas dissenses existentes entre as cidades gregas, sobretudo Tarento. Esta cidade tinha no sul da Itlia e no comrcio do mar Adritico condies de manter uma posio hegemnica. Sentiu-se ameaada pelo crescimento das reas de influncia romana na Itlia Central. O conflito entre Roma e Tarento era iminente. Provocou o envolvimento de Pirro, rei do piro, no contexto itlico, projetando a imagem de Roma em escala internacional. Os romanos receberam embaixadores do Oriente e despertaram o interesse do grego Timeu, que escreveu sobre sua civilizao. Este perodo denotou progressos decisivos na expanso da economia monetria. Data-se de 287 a instituio dos triunviri monetales e, da poca de Pirro, a primeira emisso de didracmas de prata provenientes das oficinas de Npoles e Cpua. Os problemas financeiros causados pelas guerras levaram ao incio da cunhagem do denrio. Estejamos de acordo com a tradio, que a data na poca do Cnsul Q. Oglnio (269) ou com a crtica histrica que registra seu uso a partir de 214.

    Por outro lado, a despeito da expanso pelo sul da Itlia, as exigncias da plebe eram no sentido de uma poltica orientada para a aquisio de terras ao norte. O ager gallicus e o ager picenus sobre o tribunato de C. Flamnio (232) foram distribudos em lotes para os cidados pobres a ttulo individual e sem perda de cidadania. A ocupao dessas terras provocou o retorno do perigo gauls e a ao romana estendeu-se Glia Cisalpina, com a fundao no vale do P das colnias de Cremona e Placncia em 219.

  • 41

    A poltica romana no mar Adritico para exterminar a ao dos piratas ilrios (229) revela a preocupao de proteger os comerciantes italianos, trazendo, como conseqncia, o envolvimento de Roma com a Pennsula Balcnica (vide mapa 4, p. 48).

    Em sntese, podemos dizer que na Itlia e na costa tirrena Roma converteu-se em herdeira dos etruscos. Ao dominar a Magna Grcia assumia os interesses e problemas das colnias gregas. Conseqentemente, seria a herdeira dos gregos contra Cartago na luta pela posse da Siclia (Primeira Guerra Pnica 264-241).

    As Guerras Pnicas marcaram a orientao poltica romana escala mediterrnica. Aps o primeiro conflito com Cartago, a Siclia foi transformada na primeira provncia romana, e as ilhas de Crsega e Sardenha tambm entraram na rea de domnio romano. Depois da Segunda Guerra Pnica (218-202) as tropas romanas permaneceram no territrio da atual Espanha. Diante de suas riquezas e excelente posio estratgica, Roma expandiu sua rea de influncia e criou, em 197, duas provncias; Hispania Ulterior (sul) e Hispania Citerior (nordeste).

    Inicia-se, portanto, um perodo de mudana radical. A jovem Repblica, at ento unicamente continental e agrcola, tornou-se senhora do Mediterrneo Ocidental, engajou- se na economia helenstica e, por conseguinte, no pde evitar envolver-se na conjuntura oriental.

    O declnio econmico, as tenses sociais e a discrdia que se propagavam pelo Oriente entre os reinos helensticos (Macednia, Egito e Sria) e a ameaa que estes exerciam sobre os pequenos Estados, facilitaram o xito romano no Oriente.

    Natureza do imprio do povo romano

    Uma explicao para a formao do imprio do povo

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    romano, ou hegemonia romana sobre reas conquistadas e anexadas, fenmeno to longo no tempo e de grande abrangncia territorial, envolvendo tantos e mutveis interesses dos mais variados grupos sociais e respondendo a circunstncias diversas, conforme a evoluo da conjuntura, no pode ser unilateral. Cabe lembrar que Roma foi levada, inicialmente, conquista por necessidades vitais (defesa nacional, obteno de terras, manuteno de pontos comerciais e estratgicos importantes, interesses da aristocracia pelos recursos provinciais) e, tambm, por mecanismos ideolgicos, tais como o patriotismo e a necessidade de glria militar, indispensvel para a obteno da dignidade e da autoridade. Ainda, devemos examinar a ao diplomtica, militar, fiscal, a interrelao existente entre a conquista e unificao do mundo mediterrneo, e as instituies e prticas polticas republicanas responsveis por sua execuo e orientao.

    O relacionamento de Roma com as reas dominadas e reinos vizinhos delineou, desde o incio, as etapas de sua ao militar e criou, pouco a pouco, um Direito comum a todos aqueles que no eram cidados romanos, originando o ius gentium (origem do Direito Internacional).

    Formas de organizao das regies conquistadas

    Roma, diante das circunstncias histricas de determinados momentos e das especificidades apresentadas pelos territrios e cidades vencidos, estruturou dois sistemas distintos para organizar as reas conquistadas na Itlia: anexao e federao.

    Parte do territrio anexado converteu-se no ager romanus, ou melhor, formava as trinta e cinco tribos. Todos os seus habitantes, com exceo dos escravos, eram cidados romanos com plenos direitos, ou seja, possuam os direitos po-

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    lticos (jura publica): direito de participar das Assemblias romanas e de eleger os magistrados (ius suffragii) e de ser eleito (ius honorum). E, tambm, os direitos civis (iura privata): direito de matrimnio romano (ius conubii) e direito de propriedade (ius commercii).

    Os municpios

    Todas as cidades preservadas por Roma e localizadas no territrio anexado foram transformadas em municpios. A criao do sistema municipal correspondeu conscientizao da poltica unificadora de Roma. Os municpios tornaram- se parte de um Estado unificado, cujo nico elo de ligao era Roma. E esta a idia de municpio, que em sua essncia sobrevive at hoje. O municpio era uma cidade autnoma com suas prprias leis, costumes, magistrados e Assemblias. Seus habitantes possuam a civitas sine suffragio (cidadania incompleta, quer dizer, sem os direitos polticos). Outros municpios chamados de prefeituras eram administrados por prefeitos enviados de Roma. Estatuto aplicado, principalmente, como castigo depois das deseres.

    Todos os cidados, inclusive aqueles que possuam a cidadania incompleta, deviam pagar impostos e ser recrutados para as legies.

    A relao de dependncia entre Roma e as aristocracias que administravam os municpios fortaleceu os laos de fidelidade a Roma, consolidando seu domnio na Itlia. A partir do II sculo aqueles que exerciam magistraturas locais tornavam-se automaticamente cidados romanos. Acelerava-se, assim, o processo de expanso da cidadania um dos fatores que, entrementes, contribuiu para descaracterizar a estrutura republicana romana.

    As cidades federadas teoricamente eram independentes de Roma, mas ligadas a ela por tratados de aliana, revogveis de acordo com o arbtrio romano. Os habitantes destas

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    cidades eram designados de socii (aliados) e deviam abastecer Roma de contingentes para as tropas auxiliares.

    A s colnias

    A fundao de colnias revelou-se importante mecanismo de romanizao da Itlia. As colnias foram cidades fundadas por Roma, povoadas por cidados romanos que conservavam a cidadania (colnia romana com objetivos militares), ou por latinos e romanos que perdiam a cidadania (colnias latinas com objetivos agrcolas). Assim, nasceu o conceito jurdico de direito latino. Tinham autonomia interna total, com seus prprios magistrados, beneficiavam-se com o direito de propriedade e matrimnio com Roma, mas deviam fornecer homens para os corpos auxiliares. J no III

    sculo Roma manifestou o interesse de enviar grupos de cidados romanos, ou latinos para fundar colnias fora da Itlia. Foi, entretanto, no II sculo que estas colnias martimas ou de povoamento revelaram-se numa forma de enviar para longe os proletrios, objetivando descongestionar Roma.

    A s provncias

    A expanso fora da Itlia implicou na criao de um sistema que assegurasse e reforasse a autoridade romana nestes territrios anexados, chamados de provncias. A vitria significou a perda da independncia local e este estado de submisso era traduzido pela presena do governador (procnsul ou propretor designado para uma determinada provncia pelo Senado), representante da majestade do povo romano e pelo pagamento do imposto, cuja cobrana dependia do estatuto da cidade provincial perante Roma. As atribuies dos governadores eram amplas: controle administrativo geral da provncia, comando da guarnio militar permanente e administrao da Justia.

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    No existiu um sistema provincial unificado, nem uma homogeneidade de estatutos das cidades provinciais perante Roma. A definio do estatuto de uma provncia e das suas respectivas cidades dependeu das circunstncias histricas do processo de conquista. Geralmente a organizao da provncia dependia do promagistrado que a conquistou, auxiliado ou no por uma comisso senatorial e passvel de ratificao pelo Senado de Roma.

    Em linhas gerais, as cidades provinciais foram divididas em: federadas, imunes e estipendirias. Somente estas ltimas encontravam-se submetidas, sem limites, autoridade do governador e pagavam a totalidade dos impostos diretos e permanentes (sobre as pessoas tributum per capita e sobre a produo da terra decumana ou vicesima e sobre a explorao das minas metalla) e os impostos indiretos (principalmente os direitos alfandegrios portoria). A organizao fiscal das provncias deu incio explorao sistemtica, por Roma, do mundo mediterrnico, possibilitando um equilbrio financeiro do Estado.

    As finanas pblicas ficavam sob a responsabilidade dos magistrados (censores e questores), mas o Senado tinha o controle absoluto do Tesouro de Saturno. A organizao financeira do Estado era regulada por dois princpios fundamentais. As despesas ordinrias (despesas religiosas, construes, festas pblicas) deveriam ser cobertas tanto quanto possvel pelas rendas provenientes do arrendamento das terras pblicas, excluindo todo o imposto direto e regular, que era visto como uma forma de submisso, conforme frisamos acima. No entanto, os impostos indiretos e taxas aceitveis eram entendidos como uma forma de emprstimo ao Estado, para fazer frente s despesas extraordinrias, sobretudo aquelas decorrentes das guerras. Desta forma, o imposto direto proporcional renda do cidado no feria o esprito cvico, sendo revestido de carter temporrio e extraordinrio. No significava, como no caso das provncias,

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    uma apropriao do Estado sobre os bens particulares, tanto que poderia ser reembolsado ou suspenso, como aconteceu de 167 a 43. Tal suspenso foi possvel diante dos ingressos provenientes da conquista e explorao das provncias, pois os encargos fiscais passaram a recair sobre os aliados e vencidos.

    At meados do II sculo o direito internacional e a diplomacia romana fundamentavam-se em um princpio de fundo religioso e moral, que norteou as relaes com os aliados e seu rei. A Boa F era uma relao recproca, que implicava, por parte do vencedor, obrigaes de clemncia, proteo, moderao, e selava os compromissos diplomticos. Podemos compar-la aos laos de clientela, bases da vida social, econmica e poltica da aristocracia romana. Ao ser aplicada em poltica externa criou, como nos mostra E. Badian, uma clientela estrangeira. Reforou-se, ento, a noo de guerra justa e a justificativa jurdica e religiosa da ao militar romana em defesa dos seus scios e reinos aliados.

    Entretanto, ao passo que se consolidava na mentalidade dos dirigentes romanos a idia da misso de Roma, predestinada a formar o imprio universal, e que se desenvolvia uma economia dependente dos recursos provenientes das provncias, notamos uma mudana nos argumentos que defendiam a guerra. Nos discursos aparecem ento a noo de guerra preventiva, pois Roma no poderia ter como vizinho um rei ou uma cidade militarmente forte, que pudesse vir a contestar sua hegemonia ou ocupar locais estratgicos, tanto do ponto de vista militar como econmico. Transformao perfeitamente visualizada nas etapas da ao romana no Oriente. Inicialmente, Roma procurou defender-se dos desejos expansionistas dos reinos da Macednia e da Sria, convertendo- se em protetora das cidades gregas e pequenos Estados helensticos. O protetorado configurou-se numa relao de vassalagem e ao suscitar revoltas consagrou a dominao absoluta de Roma. Neste contexto inscrevem-se a formao da

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    provncia da Macednia em 149, a destruio de Corinto e Cartago e a criao da provncia do Norte da frica em 146. Roma passou a ser guiada pela doutrina segundo a qual os reis ou os povos livres, independentes e amigos de Roma, deviam esta situao vontade do povo romano. Tal postura explica a configurao do Estado romano como explorador e orientou, juntamente com as ambies dos imperatores (generais), as conquistas e anexaes do I sculo.

    Ao proceder desta forma, Roma adquiriu territrios na sia e os converteu em provncias: primeiro o Reino de Prgamo, que ao ser doado pelo rei talo III aos romanos em 133 converteu-se na provncia da sia; a Cilcia em 100; Cirene em 74 e Chipre em 58. A vitria sobre Mitrdates, rei do Ponto, aps um conflito que prolongou-se de 87 a 63, teve como resultado a organizao, por Pompeu, das provncias da Bitnia-Ponto e Sria.

    Durante estes mesmos anos, Roma teve de combater os gauleses na regio da Glia Cisalpina e Transpadana. A grande preocupao era manter livre a comunicao entre a Itlia e as provncias da Espanha, cuja resistncia s terminou com a destruio de Numncia em 133 por Cipio Emiliano.

    Contudo, o domnio romano na Glia meridional foi estendido at o rio Reno graas s vitrias de Jlio Csar entre 58 e 51. Sob a ditadura de Jlio Csar a nica anexao foi a provncia da frica Nova (46). O Egito, possivelmente desde 168 sob protetorado informal de Roma, continuou como reino vassalo . Talvez, Csar tivesse resguardado a independncia do Egito para transform-lo em rea de sua influncia pessoal, conforme faria mais tarde Otvio Augusto.

    A Roma republicana conseguiu realizar a unificao da oikom n , extrapolando os limites da plis (cidade-estado) clssica e transformando-se em cosmoplis (cidade universal).

    1 Roma passou a gerir as riquezas das comunidades organizadas do Oriente e das regies tribais do Ocidente.

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    Mapa 4 Roma e a Itlia no III sculo a.C.

    Cartago

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    Tauromenio

    Siracusa

    Mar Mediterrneo

    Fonte: C rawford, M. La Repblica Romana. Madrid, Taurus, 1981. p. 202.

  • Mapa

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    No conseguiu apoderar-se de todo o antigo Oriente Prximo, limitando suas aquisies s terras a oeste do rio Eufrates. Dos imprios que a precederam, Roma conservou apenas as regies gregas e helenizadas. Porm, a perda das regies alm daquele rio foi compensada pela expanso no Ocidente, proporcionando Roma edificar de forma original e determinar, por muitos sculos, o destino de um imprio mediterrnico.

  • 5A desarticulao do sistema republicano

    O mundo mediterrnico unificado por Roma, desde o II e I sculos (vide mapa 5, p. 49), no se constituiu numa sociedade global. Podemos falar de unificao poltica e administrativa de um conjunto de cidades e monarquias de etnias diversas repartidas em vrias formas lingsticas ou culturais, com estruturas scio-econmicas prprias. Roma permitiu a existncia de diversas formas econmicas e sociais adaptadas a realidades regionais, sem transformar a estrutura de produo, como por exemplo no Egito. No entanto, a unidade poltica levou formao de um sistema de mercados interlocais e interdependentes generalizando as formas de trabalho e agilizando as atividades mercantis e financeiras. O Imprio constituiu-se num importante mercado para o escoamento da produo agrcola e inverso da riqueza da aristocracia italiana. A criao dos mecanismos de explorao sistemtica atravs do sistema fiscal canalizou para a Itlia os recursos provinciais.

    Gradualmente, a economia romana passara a depender em escala crescente das provncias. neste sentido que podemos falar em imperialismo romano, qualificando-o como elemento mantenedor do Estado e da aristocracia.

  • 52

    Os frutos da vitria, apesar da diviso de pilhagem entre os soldados e da iseno do pagamento pelos cidados romanos do imposto, a partir de 167, foram distribudos de forma desigual entre o Estado e os cidados. Os ingressos provenientes da explorao permanente dos recursos provinciais foram retidos pelo Estado e sua aristocracia, contribuindo para acentuar a diviso entre ricos e pobres.

    As tentativas de adaptao da administrao e conservao do Imprio aos quadros institucionais tradicionais deu incio a um processo de mudanas que desarticulou as bases scio-econmicas, polticas, administrativas, militares e culturais da estrutura republicana. A vida simples ou mesmo rude que levava nos campos o proprietrio/cidado/soldado, atendendo s necessidades de seu rebanho e manejando com suas prprias mos a charrua, permaneceu como uma espcie de ideal. Ideal que simbolizou o tradicional Estado campons republicano romano.

    Transformaes scio-econmicas

    Ao analisarmos as fontes, principalmente Cato, Salstio, Ccero, Apiano e Plutarco, nos deparamos, a partir de meados do II sculo, com uma realidade scio-econmica de crise gerada por um processo de mudana, na qual atuaram de forma articulada os seguintes fatores: ciso de interesses polticos no interior da classe dirigente romana, crescente demanda militar que afastava o campons de suas terras, afluxo de riquezas para a Itlia e sua inverso na compra de terras, formao de vastas propriedades agrcolas, cuja produo em grande escala voltava-se para uma economia de mercado, crescimento da escravido, xodo rural em direo aos grandes centros urbanos, empobrecimento do campesinato e aumento do proletariado urbano que congestionava as grandes cidades, principalmente Roma.

  • 53

    Ordem senatorial e ordem eqestre

    Tem-se comumente a idia de que a nobilitas (aristocracia) sofreu como conseqncia do imperialismo romano uma ciso que comprometeu o equilbrio poltico: senadores detentores do controle da poltica romana e eqestres encarados como uma nova classe social emergente. Alguns historiadores acreditam que a aprovao da Lei Cludia, em 218, pela qual os senadores e seus filhos estavam proibidos de possuir navios com capacidade superior a 80 hectolitros (Tito Lvio, 63, 3), foi uma demonstrao do poder dos eqestres. Assim, os cavaleiros (eqestres), elementos mais ricos depois dos senadores, desfrutariam, para compensar a perda do poder poltico, do monoplio e benefcios das atividades financeiras nas reas conquistadas.

    evidente que tais concluses carecem de crticas. A Lei Cludia no funcionou na prtica, pois os senadores, atravs de agentes, no deixaram de participar das lucrativas atividades comerciais, financeiras (emprstimo a juros), do arrendamento de impostos provinciais e outros servios pblicos. Alm disto, esta explicao nos parece muito sistemtica e insuficiente para a compreenso de um fenmeno social de grande importncia poltica para a desagregao do sistema republicano.

    A distino entre senadores e eqestres fruto de um processo global de mudana da sociedade romana, no qual bvio que a conquista tem uma importncia capital ao lado da formao de mecanismos de explorao e de grupos que cada vez mais lucravam e buscavam controlar e monopolizar a explorao do Imprio. Cabe lembrar que a organizao censitria inclua 18 centrias de cavalaria mantidas pelo Estado. Tradicionalmente, aceita-se que em 400 esta fora foi suplementada por homens que podiam manter seus prprios cavalos. O censo exigido era igual, tinham os mesmos privilgios e prestgio, mas no faziam parte das 18 centrias

  • 54

    eqestres. A partir de fins do III sculo os cavaleiros romanos tornaram-se essencialmente uma classe da qual Roma extraa seus oficiais para o exrcito, comandantes militares e governadores de provncia. As 18 centrias de cavalaria mantidas pelo Estado permaneceram com seu importante papel de voto na Assemblia Centuriata. Eram recrutados pelos censores entre aqueles cuja elevada posio scio-econmica e poltica era o pr-requisito. Os senadores podiam ser recrutados nesta classe. Nos ltimos 150 anos da Repblica a fonte de bens materiais individuais destes eqestres variava muito: uns tinham suas riquezas baseadas nas atividades ligadas explorao da terra, outros lucravam com o desenvolvimento das atividades financeiras e mercantis. Dentre estes ltimos, devemos considerar um nmero bastante significativo de homens provenientes dos municpios italianos. Sem dvida, seus lucros tambm eram investidos na compra e explorao da terra, que continuava sendo o padro de riqueza. Portanto, o Senado era formado em parte por famlias de origem eqestre, muitas das quais derivadas dos homens novos. preciso, por outro lado, levar em conta que certos indivduos, procedentes de famlia senatorial, ou mesmo, simplesmente, da aristocracia no se interessavam, por uma razo ou por outra, pela carreira das honras, preferindo ser apenas cavaleiros. Alm disto, no podemos desconsiderar a existncia entre eqestres e senadores de laos estreitos diante das relaes de parentesco e alianas. Portanto, no existia uma oposio formal entre senadores e eqestres, que desfrutavam do mesmo gnero de vida, tinham os mesmos gostos e idias polticas. Inicialmente, o que distinguia o cavaleiro do senador, no era sua origem, fortuna, parentesco, mas a ausncia de honras pblicas. No entanto, a divergncia entre senadores e eqestres comeou a ficar mais clara e concreta em meados do II sculo: em 129, um plebiscito ordenou aos senadores entregarem os cavalos pertencentes ao Estado, consolidando a excluso convencional dos senadores dos contratos pblicos.

  • 55

    A ausncia de funcionalismo obrigou o Estado Romano a lanar mo da iniciativa privada para realizar a administrao fiscal e demais servios pblicos nas reas conquistadas. Assim, no final do III sculo comearam a surgir as chamadas sociedades de publicanos, cuja atividade principal era a adjudicao de servios pblicos ligados ao suprimento de vveres e equipamentos para o exrcito em campanha. O arrendamento de negcios pblicos implicava garantias, tanto em terras como em dinheiro. No era necessrio ser eqestre para efetuar os contratos pblicos.

    As novas conquistas da primeira metade do II sculo favoreceram as atividades dos mercadores e publicanos, ampliando suas reas de atuao pelo mar Mediterrneo.

    As grandes fortunas deixando de lado a agricultura e os lucros gerados pelos encargos pblicos, principalmente o governo de uma provncia apareceram com a adjudicao pelos publicados dos contratos pblicos para construo de edifcios, estradas, explorao das minas, pedreiras e florestas e, sobretudo, da arrecadao dos impostos das provncias. Aos poucos, diante do seu enriquecimento e de sua crescente importncia econmica dentro do Estado, os publicanos foram se transformando num poderoso grupo dentro da ordem eqestre. O termo ordem (ordo) aplicado a senatoriais e eqestres comeava a ganhar maior fora. Implicava na noo de um grupo juridicamente determinado e recrutado pelo Estado em funo das suas necessidades pblicas e militares, a partir de critrios: censitrios (censo mnimo de 1 000 000 de sestrcios para ingressar na ordem senatorial e 400 000 sestrcios para a ordem eqestre, a partir de meados do II sculo), morais e cvicos. A vida do cidado articulada e definida pela sua participao no Estado.

    Diante da ao dos publicanos no difcil concluir que o Estado romano dependia deles para a explorao dos recursos provinciais. Por outro lado, os publicanos encontraram-se dependentes dos senadores, responsveis pela conces

  • 56

    so dos contratos pblicos. O fortalecimento econmico e social deste grupo comeou a provocar medidas restritivas, por parte do Senado, para a concesso da fiscalizao dos contratos pblicos: em 167 recusou-se a arrendar aos publicanos a explorao das minas de ouro e prata da Macednia; em 149, foram criados os tribunais permanentes compostos de senadores, encarregados de julgar os casos de extorso nas provncias.

    Portanto, a ciso no seio da elite romana fundamentada na funo exercida na vida pblica, afianando-se medida que a ordem senatorial se transformou numa oligarquia que monopolizava o controle da poltica interna e externa de Roma. As divergncias entre o Senado e a ordem eqestre se manifestaram na luta pelo exerccio do poder, sendo caracterizadas no como rivalidades sociais e sim polticas e circunstanciais.

    Marco Tlio Ccero (106-43), apesar da sua posio de homem novo pertencente ordem eqestre, conseguiu penetrar nas fileiras da aristocracia romana, alcanando os mais elevados cargos pblicos. Colocou sua inteligncia, sabedoria e eloqncia em defesa da Repblica Senatorial. Desta forma, durante o seu consulado em 63, defendeu inutilmente uma poltica moderada, cuja essncia era a unio da ordem senatorial e da ordem eqestre (concordia ordinum), objetivando buscar uma soluo para pacificar a Repblica.

    A questo agrria e a ampliao do uso da mo-de-obra escrava

    A tendncia para a formao dos latifndios comeou no II sculo, estendendo-se ao longo da fase imperial. Foi uma evoluo lenta e varivel de acordo com as regies da Itlia. Os mecanismos de concentrao de terras utilizados pela aristocracia romana e italiana variaram: ocupao de terras abandonadas pelos camponeses que no voltaram da guer

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    ra ou que no tiveram condies para recuperar suas terras; compra de terras como forma de inverso de riquezas obtidas pelas atividades financeiras ou cargos pblicos e usurpao de terras do domnio pblico. O crescimento do latifndio foi acompanhado por mudanas na forma de utilizao mais lucrativa do solo, atravs do cultivo da vinha e da oliveira e da incrementao da pecuria extensiva, sobretudo, no sul da Itlia. Produo que encontrou melhor colocao nos mercados urbanos, principalmente Roma, diante da concorrncia dos cereais provenientes das provncias. No podemos dizer, porm, que o cultivo de cereais tenha desaparecido, assim como tambm no desapareceu da Itlia a explorao em pequenas propriedades.

    Concomitantemente, desenvolvia-se a utilizao da mo- de-obra escrava. No aceitamos a idia de que a introduo em larga escala do escravo-mercadoria teve como conseqncia a expulso do campons de suas terras. Preferimos aceitar as explicaes de M. Finley, que demonstram a necessidade de utilizao de mo-de-obra extrafamiliar desde o V sculo, como foi o caso da escravido por dvidas e da clientela. Naturalmente, diante das transformaes da economia agrria italiana no II sculo, houve necessidade crescente de utilizao de uma fora de trabalho regular e permanente que pudesse atender a uma produo em grande escala. O aprisionamento do vencido e a perda de sua liberdade aliada s condies resultantes da conquista propiciaram a formao de uma estrutura de produo cuja fora de trabalho predominantemente constituiu-se de escravos, ou seja, em termos marxistas, criaram as condies necessrias para o desenvolvimento do modo de produo escravista.

    Tomou-se necessrio buscar fora da sociedade romana uma fonte de mo-de-obra, algo que no poderia ser constitudo pelo mercado de trabalho livre, mesmo diante da existncia de grande nmero de cidados sem terra ou subempregados que viviam s custas da clientela e das liberdades

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    do Estado, num ambiente de mendicidade e ociosidade. A noo, de cidado, j tornava impossvel utiliz-los como fora de trabalho regular; estavam expostos ao recrutamento militar e o homem livre era o que no vivia sob o domnio de outrem em benefcio deste; que vivia preferivelmente da herana de seus ancestrais, com seus templos e tumbas familiares (M. Finley).

    Na condio de mercadoria, o escravo era uma propriedade, assim como sua fora de trabalho que poderia ser utilizada sem restries. Alm de empregado no campo, encontramos tambm o trabalho escravo monopolizando a produo em grande escala dos setores urbanos (atividades mercantis e financeiras). Desta forma, achamos a fora de trabalho escravo distribuda em todos os setores da economia romana, em condies de vida e trabalho extremamente variveis.

    Havia uma considervel minoria de escravos que tinham prestgio, poder e influncia social muito significativa. A escravido levou para Roma indivduos de grande cultura (filsofos, professores, mdicos). Da mesma forma que um homem livre poderia tornar-se escravo, tambm a escravido no era necessariamente eterna. Foi uma originalidade da civilizao romana permitir que o liberto chegasse a ser cidado, diferentemente da Grcia, onde o ex-escravo passava condio de meteco. Eram vrias as formas de manumisso, sendo a por testamento mais comum.

    A instituio do peculium desenvolveu-se mais em Roma do que na Grcia. Aquele que o possua tinha total liberdade no seu uso. Tratando-se de um escravo, poderia comprar sua liberdade com os lucros obtidos e continuar administrando os lucros oriundos do peclio, na condio de liberto. Desta forma, a utilizao pelo escravo ou liberto de um peclio lhe dava uma vantagem decisiva sobre os homens livres e constituiu-se num fator bsico para o predomnio no comrcio e no artesanato de tais escravos e libertos. Uma explicao para a significativa quantidade de manumisses no

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    final da Repblica baseia-se no fato do liberto continuar ligado ao seu antigo amo e sua famlia por um conjunto de obrigaes, que inclusive passavam para seus herdeiros.

    Torna-se importante mencionar que as revoltas de escravos do final do perodo republicano, principalmente a rebelio de escravos na Siclia (135) e o movimento liderado por Esprtaco (73), no podem ser encaradas como lutas de classes. Veremos adiante que os conflitos entre os crculos de liderana formados pela elite romana que disputavam direitos e privilgios foram os responsveis pelas crises do final da Repblica. As revoltas de escravos representaram tentativas de busca de liberdade individual e no de abolio da escravatura como instituio.

    Cabe ressaltar a coexistncia do trabalho livre assalariado e do trabalho escravo, tanto no campo como na cidade. Enquanto a mo-de-obra escrava se relacionava em parte com a produo em grande escala e era caracterizada como a nica forma de trabalho obrigatrio e constante, podemos qualificar a mo-de-obra livre assalariada como espordica e irregular, mas fundamental tanto para a agricultura como para servios especializados.

    Por que a questo agrria, problema crnico da cidade romana, adquiriu diante desta conjuntura de mutao scio- econmica um aspecto de violenta crise poltica? Sua explicao envolve a anlise do movimento recproco de camponeses sem terra, terras sem camponeses e concentrao das terras pblicas.

    Os acontecimentos em torno das tentativas de reforma agrria empreendidas pelos Gracos entre 133 e 122 foram determinados pelas seguintes caractersticas estruturais: onipotncia da oligarquia senatorial, que transformava o poder das Assemblias em puramente formal, para a aprovao das leis; os tribunos da plebe, transformados em agentes da nobreza, distanciavam-se, cada vez mais, da sua real competncia de proteo dos in