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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Daniela Jorge Milani Relações entre Igreja e Estado: Secularização, laicidade e o lugar da religião no espaço público MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO SP 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Daniela Jorge Milani

Relações entre Igreja e Estado:

Secularização, laicidade e

o lugar da religião no espaço público

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO – SP 2014

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Daniela Jorge Milani

Relações entre Igreja e Estado:

Secularização, laicidade e

o lugar da religião no espaço público

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, na área de concentração Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Gabriel Benedito Issaac Chalita

SÃO PAULO – SP

2014

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Banca Examinadora:

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Ao meu marido, amigo e companheiro Romeu

Moisés e às nossas filhas Gabriela e Julia.

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a Deus que nunca me abandonou e cuja

presença pude sentir em toda a minha vida, especialmente neste momento tão

importante.

À querida professora Márcia Cristina Alvim sempre muito solícita e afetuosa.

Ao caríssimo professor Gabriel Chalita pelo incentivo e orientações.

Aos queridos professores de todas as matérias que cursei por terem

direcionado suas lições ao debate dos mais instigantes temas.

Ainda, aos meus caríssimos colegas dessas mesmas turmas por sua

excelente companhia e pela ótima troca de experiências.

Não poderia deixar de registrar também o meu agradecimento ao Rui, da

coordenação da pós-graduação strictu sensu em Direito, que com toda a paciência

me auxiliou na direção do cumprimento de meus compromissos do mestrado, tendo

me tranquilizado em momentos de desespero.

Agradeço também ao estimado amigo Claudio Langroiva Pereira por todo

apoio, auxílio e força, porque foi quem primeiro me encorajou para seguir esta

jornada, dando-me apoio até o final.

À minha querida mãe que me socorreu nas horas mais críticas, estando onde

eu não podia estar.

E, por fim, aos grandes amores de minha vida: meu marido e nossas filhas,

pela paciência, compreensão e estímulo.

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“O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se ouve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem fervilha o

entusiasmo de fazer o bem.” Papa Francisco

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RESUMO

O presente trabalho pretende elucidar as origens das relações entre o

poder temporal e o espiritual, assim entendidos como Estado e Igreja

genericamente. Deste modo, faz-se uma retrospectiva dessas relações, desde a

época primitiva em que as sociedades eram clãs familiares nas quais a posição de

chefe supremo se confundia com a de líder religioso, até os tempos modernos,

passando pelas correntes racionalistas naturalistas até a situação atual, buscando

esclarecer o real sentido do fenômeno da secularização e a consequente laicidade

do Estado, que não deve ser confundida com laicismo ou antirreligiosidade. Deve

ser entendida, na verdade, como pressuposto de uma relação de autonomia,

independência e cooperação entre as instâncias administrativa e religiosa. Nota-se

que, do ponto de vista da Igreja Católica, ao contrário do que se poderia pensar, o

Estado deve ser laico, visto que, invariavelmente, as relações de interdependência

acarretaram desmandos de parte a parte, desvirtuando o verdadeiro escopo de cada

esfera de atuação. E mais, demonstra-se que, não obstante a promessa de irrestrita

independência e autossuficiência da razão e a previsão de decadência e até de

aniquilamento da fé, das mais radicais correntes iluministas do século XVIII, a pós-

secularização se caracterizou pela persistência da religiosidade na sociedade, seja

nas formas mais tradicionais ou de modo mais individualista. Neste cenário de

laicidade e pós-secularização se questiona se haveria lugar para a religião no

espaço público ou lhes caberia somente a atuação em seu mundo interior, privado,

restrita aos seus templos e cultos? Haveria uma posição a assumir perante a

sociedade e especialmente no debate político necessário ao jogo da democracia?

Juntamente de Habermas, o filósofo alemão agnóstico, se conclui pela participação

das religiões e suas cosmovisões particulares, não apenas para a necessária

legitimidade do processo político democrático, que deve incluir a todos, mas pela

abertura ao diálogo entre fé e saber, que são complementares um à outra, levando a

sociedade a um progresso científico e tecnológico, sem abrir mão da ética e da

moral, onde o ser humano é compreendido como a razão de ser do mundo e não

como mero objeto de estudo e manipulação.

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Palavras-chave: Igreja, Estado, secularização, antropocentrismo,

laicidade, laicismo, debate político, religião, democracia, tolerância, símbolos

religiosos, ensino religioso.

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ABSTRACT

This study focuses on elucidating the origins of the relationship between

the temporal and spiritual power, understood as Church and State generically. So,

there is a retrospective of these relations from the earliest time when societies were

family clans in which the position of paramount chief mingled with the religious

leader, until modern times, passing through rationalistic conceptions, to the current

situation, seeking to clarify the real meaning of the phenomenon of secularization

and the consequent idea of secular state. It clarifies, in turn, that laity should not be

confused with laicism or anti-religiosity. It should be understood, in fact, as a

precondition to a relationship of autonomy, independence and cooperation between

administrative and religious bodies. Even from the point of view of the Catholic

Church, contrary to what one might think, the state should be laic since, invariably,

the relations of interdependence resulted excesses on both sides, distorting the true

scope of each sphere of activity. Furthermore, we demonstrate that, despite the

promise of independence and self-sufficiency of unrestricted ratio and prediction of

decadence and even annihilation of faith, as it was supposed by the enlightened

more radical currents of the eighteenth century; post-secularization was

characterized by the persistence of religion in society, or the more traditional forms or

more individualistic mode. In this scenario of laity and post-secularization one

questions which is the position of religion in the public space. It could be argued that

the churches only fits their action inside, in private, restricted to their temples and

cults world? Or was there a position to assume in society and especially in the

political debate necessary to the game of democracy? Along Habermas, the German

philosopher, agnostic, it is concluded by the participation of religions and their

particular worldviews, not only for the necessary legitimacy of the democratic political

process, which should include everyone, but by opening the dialogue between faith

and knowledge, which can be complementary to one another, leading society to a

scientific and technological progress, without sacrificing ethics and morals, where the

human being is understood as the reason for the world and not as your mere object

of study and manipulation.

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Key words: Church, State, theocentrism, secularization,

anthropocentrism, laicism, political debate, position of religion, democracy, tolerance,

religious symbols, religious teaching.

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SUMÀRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 14

1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO .............. 19

1.1 Considerações Preliminares ................................................................. 19

1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família ................................ 21

1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se ....................

Confundem .................................................................................................. 27

1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da .......

Filosofia ...................................................................................... 34

1.3.2 O Advento da Filosofia ............................................................... 40

1.4 O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da .............

Religião ................................................................................................... 48

1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo ........................................... 50

1.5 Igreja e Estado na Idade Média ............................................................. 53

1.5.1 A “Cristianização” dos Bárbaros ................................................. 57

1.5.2 Os Sacro-Impérios Romanos: Franco e Germânico ................... 60

1.5.3 O feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio ...... 62

2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA ........................ 72

2.1 Os Tempos Modernos e o Advento do Humanismo Antropocêntrico ..... 73

2.1.1 Reforma e Contrarreforma ......................................................... 75

2.1.2 A Era das Revoluções Francesa e Inglesa ................................. 78

2.1.3 O Liberalismo: a Razão Autônoma ............................................. 82

2.2 O Fenômeno da Secularização ............................................................. 84

2.2.1 A Secularização e o Desencantamento do Mundo ..................... 87

2.3 Secularização e Laicidade ..................................................................... 89

2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade.......................... 91

2.3.2 Laicidade e Laicismo .................................................................. 96

2.4 Dois Modelos de Estado Laico ............................................................ 100

2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado ..................................... 104

2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica ....

................................................................................................. 106

2.5.2 As Relações Constitucionais e Concordatárias entre Estado e .....

Igreja ................................................................................................. 110

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3 A PÓS-SECULARIZAÇÃO, DEMOCRACIA E O LUGAR DA RELIGIÃO NO

ESPAÇO PÚBLICO ............................................................................................... 113

3.1 Pós-Secularização .............................................................................. 113

3.2 Democracia e Pluralismo .................................................................... 116

3.2.1 O Estado e as Instituições Parciais ou Intermediárias da ..............

Sociedade ......................................................................................... 119

3.2.2 Finalidade do Estado: O Bem Comum ..................................... 123

3.3 Liberdade Religiosa ............................................................................. 125

3.3.1 A Importância da Religião ........................................................ 129

3.3.2 Tolerância Religiosa ................................................................. 133

3.4. Lugar da Religião no Espaço Público ................................................. 141

3.4.1 O Reconhecimento da Existência das Bases Pré-Políticas e o ......

Problema da Legitimação do Direito .................................................. 142

3.5 Habermas e a dialética da razão comunicativa .................................... 145

3.5.1 Habermas e a Indispensável Participação Política da Religião ......

para a Legitimação do Direito ............................................................ 148

3.6 O Contributo das Três Grandes Religiões Monoteístas para a Construção

de uma Sociedade mais Justa e Fraterna ................................................. 151

3.7 O Uso Público da Razão Segundo John Rawls e Jürgen Habermas ... 159

3.7.1 O Liberalismo Político de John Rawls ...................................... 160

3.7.2 Habermas e o Liberalismo Político de Rawls ............................ 164

3.7.3 Habermas e a Necessidade de Colaboração para a “Tradução” ...

de Argumentos Religiosos na Esfera Pública .................................... 168

3.7.3.1 O Diálogo entre Habermas e Ratzinger: razão e fé em ......

debate....................................................................................... 171

4 A LAICIDADE NO BRASIL: QUESTÕES POLEMICAS .................................... 175

4.1. Panorama Histórico Geral das Relações Estado-Igreja no Brasil ....... 175

4.2 O Brasil e o Espaço para Deus: Breve Estudo Comparativo das .............

Constituições Brasileiras Pretéritas e Atual ............................................... 183

4.2.1 A Polêmica em Relação ao Preâmbulo da Constituição Federal ..

de 1988 ............................................................................................. 186

4.3 No Brasil Há e Deve Haver Laicidade ou Laicismo? ............................ 188

4.3.1 Igualdade ou Igualitarismo Religioso no Brasil? ...................... 193

4.3.2 A abolição dos Símbolos Religiosos ......................................... 196

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4.4 O Decreto 7007/2010: A Concordata entre o Governo Brasileiro e a ........

Santa Sé ........................................................................................... 205

4.5 O Ensino Religioso no Estado Laico .................................................... 208

4.6 A Retirada da Menção a Deus na Nota da Moeda Nacional ................ 211

4.7 Concursos em Dia de Sábado ............................................................. 214

CONCLUSÃO ................................................................................................. 217

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 220

ANEXO A ................................................................................................. 228

ANEXO B ................................................................................................. 233

ANEXO C ................................................................................................. 235

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INTRODUÇÃO

No campo da filosofia há de se notar que todos enfrentam a questão

sobre Deus. Seja para se declarar ateu, agnóstico ou crente o pensador tem que

enfrentar essa problemática.

Significa dizer que a filosofia passa inexoravelmente pela transcendência

e religiosidade do homem. Seja para aceitar, seja para negar, seja até mesmo para

se declarar indiferente ou agnóstico, o filósofo ou estudioso da filosofia tem que

enfrentar questões sobre Deus, tais como: Deus existe? Quem ou o que deu origem

ao universo? De onde surgiu o homem? Para onde vai após a morte? Há sentido na

vida humana?

À filosofia do direito, portanto, interessa a questão das relações entre

Estado e Religião, entre o poder temporal e o espiritual. Nesse âmbito se enfrentam

questões sobre a legitimidade do poder estatal e do Direito além de que, a liberdade

religiosa, hoje internacionalmente reconhecida como um direito humano, tem

diversas abordagens e consequências.

Igualmente, sendo o direito uma ciência social aplicada e a religião um

fato social é necessário que a filosofia do direito se aventure a desvendar e até

auxiliar a construir as relações entre esses dois campos de interesse social. O

estudioso do tema não pode se furtar a enfrentar estas questões.

O interesse em elaborar a presente pesquisa surgiu pelo desejo de

descortinar o real sentido de laicidade do Estado, o que se justifica diante do

crescente polêmica em torno da questão: Seria o Estado laico um Estado sem Deus,

ateu, que isola as religiões, ou um Estado não confessional, independente, mas

inclusivo, que garante a existência das diversas crenças, sejam da maioria quanto

das minorias? Implicaria a laicidade em absoluta separação entre as esferas? Seria

isto possível? Ou ela existe para conferir neutralidade, independência e autonomia a

cada uma?

São enormes as discussões acerca do tema e sua repercussão na mídia

e na sociedade. Todas estas questões são instigantes e dependem da correta

compreensão sobre as esferas de atuação do Estado e das religiões, bem como

sobre o que é secularização, laicidade e laicismo, termos que são esmiuçados para

garantir seu total esclarecimento.

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Neste sentido, pergunta-se: Há lugar no espaço público para as religiões

e religiosos? É possível que um argumento religioso seja sustentado para defender

alguma posição perante o Estado laico? É justo que o cidadão religioso seja

obrigado a encontrar argumentos laicos, que não condizem com sua real motivação

interior, a fim de poder participar do debate político e do processo democrático? É

justo excluir posições defendidas por entidades religiosas apenas e tão somente

porque num Estado laico religião não tem voz? Ou o Estado, reconhecendo a

importância da religião na sociedade, deve estar aberto ao diálogo com diferentes

visões de mundo existentes na sociedade para em seguida chegar a um consenso

sobre as questões de interesse geral, legitimando, assim, o processo democrático,

como defende Jürgen Habermas?

Todas estas questões são enfrentadas neste trabalho.

Em relação ao Brasil se abordará, ao final, quais as consequências

práticas destas conclusões sobre a laicidade do Estado: Devem ser abolidos os

símbolos religiosos dos espaços públicos? É possível o ensino religioso em escolas

públicas? E a alteração de datas de concursos para que não ocorram em dias de

sábado? A concordata entre o Brasil e a Santa Sé firmada em 2010 fere a laicidade?

Com efeito, buscou-se a história das relações entre Estado e Igreja desde

os tempos mais remotos, notando que, primitivamente, não havia qualquer distinção

entre um e outro, já que autoridade pública e autoridade religiosa estavam fundidas

na mesma figura e não se vislumbrava uma sem a outra.

Interessante notar que foi o advento do cristianismo que trouxe uma nova

mentalidade sobre as relações entre o temporal e o espiritual, de outro, tendo em

vista o ensinamento bíblico de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o

que é de Deus, concluindo daí que a autoridade religiosa e a temporal não se

confundem e cada qual tem seu campo de atuação.

Tal novidade trazida pelo cristianismo, no entanto, se enfraqueceu alguns

séculos após a instituição do cristianismo como a religião do ocidente. É que a

Igreja, como legitimadora da autoridade dos reis acabou servindo de instrumento de

mandos e desmandos daqueles a quem interessava a submissão do povo.

As relações entre Estado e Igreja se tornaram doentias e foram

denominadas posteriormente de cesaropapismo, regalismo e hierocracia.

Em virtude disto, bem como da situação social de inferioridade em que se

encontrava a burguesia na sociedade medieval, fortes reações surgiram contra este

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sistema por meio da Reforma Protestante, do Renascimento, do Iluminismo e das

Revoluções Francesa e Inglesa contra os poderes absolutistas, fundamentados da

vontade divina.

Tudo isto se entrelaça e tem consequências para as relações entre a

Igreja e o Estado.

O humanismo antropocêntrico do Renascimento preparou o campo para a

ruptura formal com a Igreja, contribuindo com a Reforma Protestante, que se

mostrou apenas a “gota d´água” de um crescente movimento contrário à tradição

medieval católica.

As reações foram bastante violentas contra o domínio da Igreja Católica.

Defendia-se o direito à liberdade religiosa, bem como o direito natural do homem,

emancipando-se a razão. Inicia-se uma nova visão de mundo, desta feita não mais

teocêntrica, mas antropocêntrica, onde a razão humana é exaltada acima de todas

as outras potências.

O Iluminismo, movimento identificado em final do século XVII e início do

XVIII, reforça os ideais de separação entre o Estado e a Igreja, levando a uma nova

concepção da ideia de liberdade, que deve ser guiada não mais por um critério

objetivo de moralidade ou verdade e sim na própria vontade do indivíduo, que se

torna autossuficiente.

A Igreja Cristã se parte e perde o papel centralizador do poder e da

sociedade. A sociedade se torna plural e liberal, surgindo a democracia como

resposta à necessidade de lidar com as diferentes concepções de mundo.

Em decorrência, muitos Estados passaram a ser laicos, isto é,

independentes e autônomos perante a Igreja, defendendo a liberdade religiosa de

seus cidadãos, que não poderiam mais ser discriminados em virtude de seu credo.

Igualmente, no intuito de tratar de maneira mais concreta o assunto,

abordar-se-á de que forma a laicidade foi e ainda é empregada em dois diferentes

países, quais sejam, a França e os Estados Unidos, demonstrando como cada um

deles trata de forma diferente a separação entre Deus e o Estado.

A partir daí abordar-se-á outro ponto. A implicação do conceito de

liberdade religiosa não somente como liberdade de culto, mas como a necessária e

constitucional tolerância entre as diversas religiões e a não religiosidade.

Neste sentido, a laicidade é uma necessidade de um Estado Democrático

de Direito. Ela pressupõe um Estado que não privilegia nenhuma religião, não

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restringe direitos por motivos de opção religiosa, não discrimina o credo religioso de

qualquer cidadão. Ao contrário, reconhece e acolhe as manifestações religiosas de

seu povo.

Demonstrar-se-á que a religião não é mero sentimento íntimo, mas uma

realidade social, organizada em estruturas visíveis que necessita ser reconhecida

como presença comunitária pública, como um aspecto sociológico do próprio

Estado.

Consequentemente, se o poder do Estado vem do povo e o povo é

religioso como se poderá conceber um Estado sem traços religiosos?

Por este motivo, ser laico não significa para o Estado apenas “aturar” as

religiões como um “mal necessário”, mas reconhecê-las como um aspecto

extremamente importante do desenvolvimento integral da pessoa humana, que,

ademais, integra a cultura e identidade de seu povo.

Em razão disto, a laicidade interessa não somente ao Estado e ao povo,

mas também às igrejas que tem a garantia de não sofrer ingerências do poder

público em assuntos internos.

Aborda-se, em continuidade, o fenômeno da pós-secularização,

reconhecendo a persistência da religiosidade mesmo após séculos das promessas

racionalistas de que a ciência e a razão seriam os instrumentos de emancipação do

homem que, com o passar do tempo, deixaria de lado a visão supersticiosa da fé.

Por conseguinte, uma das grandes questões a que se dedica este

trabalho é saber se há espaço ainda hoje em tais sociedades a uma participação

pública da religião, seja por intermédio da argumentação levada ao debate político,

seja pela valorização dos princípios éticos e morais defendidos pelas religiões.

Neste ponto, buscou-se no filósofo e cientista político alemão Jürgen

Habermas, agnóstico confesso, a visão flexível em relação à participação

democrática da religião no processo de elaboração das normas.

Busca-se, por outro lado, ao ajustar a ideia de Estado Laico ao direito de

liberdade religiosa, demonstrar que laicidade do Estado não se presta a impedir a

participação das posições religiosas nos debates públicos e assuntos de interesse

de toda a população, por meio de uma ação hostil para encerrá-las unicamente em

sua esfera privada.

Refutar-se-á o entendimento laicista de que o cidadão religioso não pode

manifestar num debate político seus argumentos, revelando, ao contrário, que deve

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participar do processo democrático de maneira autêntica e isonômica, assim como

ostentar publicamente símbolos e sinais de sua religiosidade.

No capítulo final abordar-se-á a concepção de laicidade no Brasil,

enfrentando-se algumas questões controversas específicas como a menção a Deus

no preâmbulo da Constituição Federal, a retirada dos símbolos religiosos das

repartições públicas, o ensino religioso, concursos em dia de preceito e a retirada da

menção a Deus na nota da moeda nacional.

O estudo procurará responder a esta e outras questões bastante atuais e

de interesse de todos os cidadãos, comunidades, associações e demais instituições

parciais da sociedade.

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1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO

1.1 Considerações Preliminares

A religião é a mais antiga e importante instituição social do mundo. Só

posteriormente surge o Estado.1

Mas o que é religião?

Impossível determinar um conceito fechado e definitivo. Alguns sustentam

que a religião dá sentido à existência, outros que a religião é o entorpecimento moral

do homem. Entretanto, é possível afirmar que:

a palavra “religião” pode ser conceituada como o conjunto de crenças que a humanidade cultua ao sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de códigos ético-morais, de símbolos e de rituais derivados dessas crenças. 2

Definir religião, conforme já dito, é uma tarefa praticamente impossível,

tendo em vista não se encontrar uma característica que autorize uma definição

ampla do termo. Não obstante, Nicola Abbagnano, recolhendo diversas

interpretações, descreve a religião como a: “Crença na garantia sobrenatural de

salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia”.3

Mas ele ressalta que a “determinação da relação do homem com a

divindade, ou seja, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas

características e funções em relação ao homem e ao mundo, sempre foi atribuída

mais à filosofia que à R.” E que o cumprimento desta tarefa pode até ter cunho

antirreligioso. Para alguns teólogos, continua ele, a relação entre o homem e Deus é

artigo de fé e não de religião, porque independe do mito, mas é constitutiva da

existência humana no mundo.

Por técnicas, Abbagnano afirma que seriam os atos ou práticas de culto

como as orações, sacrifícios, rituais e serviços divinos ou sociais, e teriam, assim,

1 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?

Tese de doutorado em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34. 2 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?

Tese de doutorado em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34. 3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 997.

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caráter objetivo e institucional. Mas a crença é a atitude religiosa por excelência, e

tem caráter subjetivo.

Desde modo, uma religião natural seria constituída apenas desse

elemento subjetivo e uma religião positiva seria constituída pelas mencionadas

técnicas.

Importa dizer que, para este trabalho ambos os elementos, unidos ou

separadamente, são considerados religião, já que tem o potencial de comunicar-se,

dialogar, e, assim, ingressar no debate político, conforme mais a frente se afirmará.

Acrescente-se que, não houve a preocupação neste trabalho de

diferenciar o que seja religião, seita, fé, crença, pois seria um desvio desnecessário

ao que se pretende abordar. Igualmente, a palavra Igreja é utilizada quando se trata

da época medieval, para designar a Igreja Cristã, porém no restante do trabalho é

utilizada como sinônimo de religião e, assim, quando se pretender tratar de alguma

religião específica, indicar-se-á seu nome.

De outro lado, faz-se necessário tecer também algumas considerações

preliminares em relação ao termo Estado.

É consenso entre os autores que tratam do tema, que o termo “Estado” só

tomou corpo com O Príncipe, de Maquiavel, embora pesquisadores mostrassem que

a passagem do significado corrente do termo status, (de “situação”), para “Estado”,

no sentido moderno da palavra, teria ocorrido anteriormente a partir da expressão

clássica status rei publicae4.

Alguns autores (Karl Schimdt, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira no

Brasil) não admitem sua existência antes do século XVII, baseados no fato de que a

nomenclatura Estado indicando uma sociedade política só aparece no século XVI.

Contudo, a maioria admite que seja Estado toda a sociedade política que, com

autoridade superior, fixa as regras de convivência de seus membros. Sendo assim,

admitem a existência do Estado anteriormente ao século XVII, embora com outras

designações5.

Por esta razão, adotar-se-á neste primeiro momento tal concepção latu

sensu de Estado.

4 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

1989, p. 43.

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21

1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família

No Estado Antigo6 a família, a religião, o Estado e a organização

econômica eram fundidos. Não se concebia a divisão que hoje se consegue

vislumbrar. As marcas fundamentais desse período eram a natureza unitária e a

religiosidade.7

Segundo os estudos de Fustel de Coulanges8, que compilou inúmeros

escritores e filósofos gregos e romanos da antiguidade clássica, tais como

Xenofonte, Cícero, Tito Lívio, Plutarco, Platão e Aristóteles, a religião construída

pelos antigos determinou de modo absoluto sua organização, suas instituições e

leis.

As famílias da Grécia e Roma antigas foram constituídas a partir da

religião, donde emanavam as regras de casamento, parentesco, propriedade e

sucessão.

Posteriormente, estas instituições formaram a base da cidade antiga, que,

portanto, foi influenciada de forma determinante pela crença religiosa dos antigos.

É possível afirmar que as mais remotas gerações descendentes do povo

indo-europeu, dentre os quais: gregos, romanos e vedas, acreditavam que havia

vida após a morte. De acordo com Fustel de Coulanges, o homem acreditava na

transformação da vida e não em sua extinção com a morte.

E mais: a morte não era entendida como a separação entre corpo e alma,

indo o corpo para ser consumido na terra e a alma para outra dimensão, e sim que

corpo e alma passavam a viver sob a terra, encerrados no túmulo. Permaneciam os

mortos, portanto, bem junto aos seus.

O que testemunha esta consideração são os ritos fúnebres que

sobreviveram a esta época primitiva.

Os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se colocava um corpo na sepultura, se acreditava que, ao mesmo tempo, se metia lá alguma coisa com vida. Virgílio, que sempre

6 Sobre a divisão da evolução do Estado em Antigo, Grego, Romano e Medieval, v. DALLARI, Dalmo

de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 51 e segs.. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

1989, p. 53. 8 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as

instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975.

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descreveu com muita precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras: “Encerramos a alma na sepultura”. Idêntica expressão encontramos em Ovídio e em Plínio, o Moço [...] atestando deste modo crenças antigas e populares.9

Acreditavam esses homens, ainda, que o corpo necessitava de

sepultamento para que a alma não lhe abandonasse e se tornasse errante, vagando

sem descanso, atormentando os vivos, provocando-lhes doenças, infortúnios, e

assustando-lhes com aparições tenebrosas.

De outro lado, não bastava repousar o cadáver sob a terra. Era

necessário que fossem proferidas as fórmulas prescritas por ritos tradicionais,

realizando funeral corretamente segundo as regras da religião. Disso dependia a

felicidade eterna do morto.

Por sua vez, acreditava-se que o corpo debaixo da terra continuava

necessitando de alimento, o que era providenciado anualmente através de uma

cerimônia religiosa:

Ovídio e Virgílio apresentam-nos descrição desta cerimônia, cujo uso permanecera intacto até à sua época, embora as crenças já então se houvessem alterado. Descrevem-nos o costume de se rodear o túmulo com grandes grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se oferecerem doces, frutas, sal e ainda ali se verterem o leite, o vinho e algumas vezes o sangue de uma vítima.10

Os antepassados falecidos eram considerados sagrados, verdadeiros

deuses. Os gregos os denominavam de deuses subterrâneos e os romanos de

deuses manes. Os hindus, do mesmo modo, consideravam os mortos como deuses

que necessitavam das libações e sacrifícios para viver uma vida bem-aventurada.

Essas oferendas trariam a paz entre mortos e vivos.

Por outro lado, acreditavam os homens de então, que os mortos se

alegrariam com o culto e lhes seriam favoráveis, atendendo-lhes as súplicas e

pedidos de prosperidade.

9 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as

instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 12. 10

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 15.

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Percebe-se, portanto, o valor ímpar atribuído a este ritual fúnebre. Cultuar

os mortos era dever dos vivos. Esta era a religião primitiva, o enigma da morte

fundamentava esta crença:

[...] Foi talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão de seus olhos. A morte teria sido o primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível ao invisível, do passageiro ao eterno, do humano ao divino.11

Um fator importante a ser destacado em relação a este culto dos mortos é

que somente poderia se dar dentro da família. Era o parente mais próximo do morto

que deveria presidir o ritual. Nenhum homem de outra família, considerado

estrangeiro, poderia estar nem mesmo nas proximidades quando eram realizados os

cultos, pois isto perturbava o repouso dos deuses.

As ofertas somente poderiam ser feitas aos próprios antepassados, sendo

um dever primário e fundamental:

Por esta razão na Grécia e em Roma, assim como na Índia, o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes de seu pai e aos de todos os seus ancestrais. Faltar a este dever era a mais grave impiedade de quantas poderiam cometer-se, porque a interrupção do

culto provocava uma série de mortes e destruía a felicidade.12

Como se vê, aquele que não deixava filhos não recebia culto e estava

condenado à “fome perpétua”, daí a importância do casamento e a proibição ao

celibato.

A religião, assim, não existia em templos, mas na própria casa. Cada

família instituía suas regras sobre o culto, as cerimônias, festas religiosas, orações,

cânticos, tudo isto era próprio de cada uma delas.

O culto dos antepassados era de tal forma importante para o homem

primitivo, que foi o que determinou a constituição da família. Não era o sangue

precipuamente que determinava o aspecto fundamental do laço familiar e sim o

11

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 20. 12

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 29.

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24

poder da religião. Esta unia os homens em vida e assim os mantinha após a morte,

formando um corpo único.

A família antiga seria, então, uma associação religiosa muito mais que

uma associação natural.

Esta afirmação, de pronto, não parece plausível, contudo, analisando o

modo como a religião determinava as relações de parentesco, acaba-se por

concordar com ela. Vejamos:

A primeira instituição estabelecida pela religião foi o casamento.

O casamento era muito mais do que apenas a união afetiva ou conjugal,

era, na verdade, um ritual sagrado que permitia que a mulher deixasse a religião de

seu pai e criasse um novo vínculo religioso, adotando e sendo adotada pela religião

e família de seu marido.

Viu-se anteriormente que o celibato era proibido, pois da descendência

dependia o culto aos mortos. O homem não tinha o direito de fazer esta escolha, a

família era que assim o determinava: “[...] o homem não pertencia a si mesmo;

pertencia à família”.13

Já desde o nascimento a criança deveria ser apresentada para uma

espécie de iniciação religiosa, junto ao fogo doméstico, cultuado também como deus

daquela família. Somente após passar por esta cerimônia é que a criança era

admitida na família e estava apta a praticar ritos, recitar orações e honrar seus

antepassados.

O parentesco era compreendido como comunhão de culto, isto é, aqueles

que adoravam os mesmos deuses, o mesmo fogo sagrado e o mesmo banquete

fúnebre, eram parentes: “O vínculo de sangue não basta para estabelecer este

parentesco; é indispensável haver o vínculo do culto”.14

Em outras palavras, somente o filho gerado do casamento religioso

poderia prosseguir com o culto dos antepassados, pois ainda que do mesmo

sangue, não tendo sido aceito pelos ritos religiosos, não pertencia à religião

doméstica, e, consequentemente, não pertencia à família.

Perceba-se o enorme peso do vínculo religioso na formação das famílias.

13

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 41. 14

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 48.

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25

Para os casais estéreis a religião autorizava que a mulher fosse dada a

um parente próximo de seu marido e a criança gerada seria considerada filha do

casal.

Um último recurso à família que não era capaz de gerar filhos era a

adoção. O único intuito da adoção era a continuidade da religião doméstica, com a

conservação do fogo sagrado e culto dos ancestrais. Desta maneira, só era

autorizada a casais sem filhos.

Do mesmo modo como o casamento e o nascimento, o adotando era

introduzido na família através de rituais específicos da religião do lar.

Outro instituto determinado na antiguidade pela religião foi a propriedade:

“[...] as populações da Grécia e Itália, desde a mais longínqua antiguidade, sempre

reconheceram e praticaram a propriedade privada”.15

Como os deuses eram considerados propriedade exclusiva de cada

família, ou seja, somente aquela família poderia adorar aqueles deuses e estes, por

sua vez, só poderiam proteger àquela família; e, dado que se considerava que os

deuses eram sepultados na terra de sua família para dali não serem jamais

removidos, o solo se tornava também um lugar sagrado, era o altar onde se

realizava o banquete fúnebre.

Surge daí a ideia de domicílio. A família deveria permanecer reunida em

torno daquele altar para protegê-lo, pois o estrangeiro não pode se aproximar dali:

“Este limite, traçado pela religião e por ela protegido, afirma-se como o tributo mais

verdadeiro, o sinal irrecusável do direito de propriedade”16 (COULANGES, 1975).

A casa e o campo estavam como que vinculados à família, que deles não

poderia desfazer-se. Nestas sociedades primitivas foi a religião, portanto, que

estabeleceu o direito de propriedade.

Posteriormente, na época da Lei das Doze Tábuas na sociedade romana,

foi autorizada a divisão do campo entre os irmãos, porém deveria ser conservado o

local do túmulo. Por fim, permitiu-se a venda das terras, mas permanecia a

obrigatoriedade de realizar o culto mediante os rituais prescritos pela religião

daquela família.

15

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 49. 16

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 51.

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26

Antes de começarem a vigorar as leis da cidade, eram as famílias que

prescreviam suas próprias leis. A religião determinava que o pai era o primeiro

diante do deus fogo, aquele a quem cabe a função primordial no culto. Era sacerdote

e rei.

A mulher era considerada apenas como parte integrante de seu esposo,

de quem recebera o culto, que não é de seus próprios antepassados.

Tanto gregos, como romanos e hindus, consideravam a mulher como

inferior, ela jamais poderia ter um culto para si ou presidir um culto, portanto, não era

senhora de si própria.

A lei de manu diz: “A mulher, durante sua infância, depende de seu pai; durante a juventude, de seu marido; por morte do marido, de seus filhos; se não tem filhos, dos parentes próximos de seu marido; porque a mulher jamais deve governar-se à sua vontade”. As leis Greco-romanas dizem o mesmo.17

Melhor sorte não assiste aos filhos, que “enquanto o pai viver serão

considerados sempre menores”.18 O pai tinha total poder sobre o filhos, tinha até

mesmo o direito de dispor de sua vida e liberdade.

Mas o pai não é somente esta autoridade familiar, ele é o sinal vivo de

seus antepassados, o que tem conhecimento das fórmulas secretas da oração,

enfim, o sacerdote da religião do lar.

Daí se origina a palavra pater, que não significava apenas pai, mas sim

aquele que não dependia de outro, o que tinha autoridade para se autodeterminar e

determinar a vida dos demais.

Investido deste poder, o pai, na família antiga, tinha o direito de

reconhecer ou rejeitar o filho ao nascer, de repudiar a mulher em caso de

esterilidade, de casar a filha e o filho, de excluir um filho da família (o que se

denominava emancipação), de adotar.

A família antiga foi assim: era a crença nos antepassados mortos que

regulava aquela pequena sociedade, seu governo, sua justiça, sua moral, suas

17

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 69. 18

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 29.

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instituições, sem necessidade de se recorrer ao direito ou força de qualquer poder

social, para tanto.

No tempo em que o homem só acreditava em seus deuses domésticos

era o tempo em que nada mais existia do que as famílias, independentes, isoladas e

autossuficientes, que constituíram seu próprio direito privado.

1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se Confundem

Pode-se afirmar, de acordo com o que foi dito até agora, que a família da

antiguidade era, ao mesmo tempo, pequeno Estado e pequena Igreja.

Posteriormente, as famílias, já expandidas passaram a se unir, formando

frátrias (gregos) ou cúrias (romanos). Esta união, contudo, dependia de uma

divindade superior a que todas as famílias deveriam prestar culto sem abrir mão de

seus próprios cultos domésticos. Edificavam-lhe o altar, acendiam o fogo sagrado e

instituíam o novo culto.

As frátrias ou cúrias foram crescendo e acabaram realizando novas

reuniões formando tribos, cujas divindades eram denominadas de heróis e davam

nome à respectiva tribo. Tinha sua festa anual, para a qual deviam reunir-se todos

os seus membros.

Num outro momento, diferente religião se manifestava também na

antiguidade, era a religião da natureza “cujas principais figuras foram Zeus, Hera,

Atena, Juno, a do Olimpo helênico e a do Capitólio romano”.19

A natureza e seus fenômenos físicos provocavam no homem sentimentos

arrebatadores: “um misto de veneração, de amor, de terror” e o levaram a

personificar esses eventos, divinizando-os e cultuando-os.

Interessante que estes cultos surgiram de mentes diversas, provenientes

de diferentes lugares, em famílias isoladas, cada qual moldando seu deus a seu

modo. Contudo, nota-se a semelhança entre eles, pois todos dizem respeito aos

elementos da natureza. Dessa maneira, o Sol era adorado com vários nomes em

vários lugares.

19

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 96.

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Ambas as religiões conviviam: o culto doméstico dos antepassados e o

culto dos deuses da natureza. Contudo, esse novo culto mostrava a necessidade do

homem de buscar um culto genérico não encerrado entre as fronteiras do território

familiar.

Então, essas divindades saíram dos limites da família e para elas foram

construídos templos, onde se acendia o fogo sagrado à entrada, fogo este que, de

protagonista, passou a ser apenas um acessório.

O historiador francês está convencido de que a propagação desta nova

religião foi responsável pelo desenvolvimento da sociedade na época.

A tribo, como as fratrias ou cúrias, era um corpo independente, tinham

uma assembleia que baixava os decretos a que os membros estavam submetidos,

tinha, ainda, tribunal com jurisdição sobre todos e, ademais, um chefe ou tribuno.

Chegou o tempo em que a tribos começaram a se unir, fosse pela força

ou aliança. No início a união entre as tribos era um tabu, dado que cada qual tinha

seus próprios deuses, contudo, ficou mantida a condição de manterem intocados os

cultos particulares. E nesse momento nasceu a cidade.

No nascimento da cidade, uma vez mais, as tribos instituíram um culto

comum e acenderam o fogo sagrado: “A fundação da urbe foi sempre um ato

religioso”.20

Como se vê, os homens passaram a se reunir em sociedade a partir da

união de pequenos grupos, cada qual mantendo suas próprias tradições religiosas,

mas criando nova divindade para culto comum.

Percebe-se que estas reuniões de grupos eram verdadeiras federações,

pois havia uma unidade, porém cada grupo menor mantinha suas leis, religião,

jurisdição, governo e assim por diante.

Se não houvesse a instituição de um novo culto, não seria possível a

existência destas novas associações, era algo inimaginável para a época.

Isto porque, como dito, era a criação de uma nova religião, comum a

todos, que atribuía àquelas reuniões de famílias e tribos o elemento de conexão

entre si, o que veio a resultar, ao final, na existência da cidade.

20

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:

Hemus, 1975, p. 106.

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29

Assim, permaneciam os cultos tribais e familiares e, frise-se, não acima

destes, se estabelecia o culto comum, ou seja, adoravam-se os deuses da cidade.

Na lição de Claudio de De Cicco21:

[...] na Antiguidade a formação das cidades, polis na Grécia, civitas em Roma, não se fez com diminuição da esfera de poder dos chefes de família, mas através de uma verdadeira “confederação” de famílias com antepassado comum, de modo que a cidade não era, como em nossa época se pretende, uma reunião de indivíduos, mas sim uma reunião de famílias. Não se concebe com essa perspectiva, a possibilidade de entender o poder do soberano da cidade, o rei ou basileus, como absoluto, mas simplesmente como o de alguém que é o líder, o primus inter pares, na assembleia dos chefes de família (grifo do autor).

Na concepção dos antigos, a urbe era um território que se estendia do

altar até seus limites sagrados, era o domicílio religioso que agasalhava os deuses e

acolhia os homens.

O fundador da cidade era o homem que realizava o ato religioso sem o

qual a cidade não poderia estabelecer-se. Esta data (da fundação) era sagrada e,

assim, o aniversário da cidade era comemorado todos os anos com rituais e

banquetes sagrados.

E, na cidade, como nas famílias e tribos, a liderança política e religiosa se

confundia na mesma pessoa ou pelo menos, na mesma instituição:

O local da reunião do senado de Roma foi sempre um templo. [...] Tanto em Roma como em Atenas, só funcionava a justiça da cidade em dias determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal tinha lugar junto a um altar e começava pelo sacrifício [...].22

Entretanto, não se pode dizer que havia autoridade, assim como é

compreendida em nosso tempo, deste rei ou basileus sobre os assuntos de

interesse da família, pois esta era gerida de maneira ditatorial pelo pater, como já

mencionado.

21

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75. 22

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 131.

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Neste sentido, o Senado romano foi uma instituição criada para o fim de

verificar se o direito privado (jus privatum) estava sendo respeitado pelo direito

público (jus publicum): “Para impedir atitudes do rei que viessem a resultar em

menoscabo do jus privatum é que existia o Senado, assembleia composta pelos

grandes chefes de famílias romanas ou patrícios (de pater)”.23

Eram o sumos-sacerdotes da cidade também seus reis:

A principal função do rei consistia, pois, em realizar as cerimônias religiosas. Um antigo rei de Sícion foi deposto porque as suas mãos se mancharam com um assassino e daí jamais ficaram em estado de poder sacrificar. E, não podendo mais ser sacerdote, não podia continuar rei.24

Mas não foi somente na época dos reis que se fundiam a figura da

autoridade política e do sacerdote. O Magistrado, que substituiu o rei após a

revolução que implantou o regime republicano mantinha as duas funções.

A autoridade da cidade era extremamente auferida pela tradição, como foi

constatado por Hannah Arendt, especificamente no que tange aos romanos:

Ao contrário de nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do passado. Se se quiser relacionar essa atitude com a ordem hierárquica estabelecida pela autoridade, visualizando essa hierarquia na familiar imagem da pirâmide, é como se o cimo da pirâmide não se estendesse até as alturas de um céu acima (ou, como no Cristianismo, além) da terra, mas nas profundezas de um passado terreno.25

E, ainda:

Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos. Enquanto essa tradição fosse ininterrupta, a autoridade estaria intata; e agir sem autoridade e tradição, sem padrões e modelos aceitos e

23

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54. 24

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 140. 25

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 166.

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consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos fundadores era inconcebível.26

Ela nota que a noção de autoridade entre os gregos repousava na função

do pater familiae, e foi aí que Platão teria ido buscar a referência de autoridade para

aplicar em sua cidade ideal.

Já os romanos tinham essa referência de autoridade na tradição dos pais

fundadores da cidade e, segundo Hannah Arendt, teria sido essa a razão da força

que Roma adquiriu, tendo alargado seus domínios por todo o ocidente e mantido

seu poder por séculos.

Assim como o rei era o sacerdote da cidade, as leis derivavam da religião

para gregos, romanos e hindus.

Os códigos das cidades eram um misto de prescrições religiosas e

disposições legislativas: “As normas de direito de propriedade e do direito de

sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativas aos sacrifícios, à sepultura

e ao culto dos mortos”.27

Mesmo posteriormente, com o advento da lei escrita, o Código das Doze

Tábuas, no século 451 a.C., que igualou os direitos civis de nobres e ainda haviam

prescrições religiosas em meio às leis civis.

É fácil perceber o porquê da reunião dos homens nas cidades não ter sido

algo simples. O costume era cada qual seguir suas próprias regras, determinar seus

próprios cultos e instituições. Como fazer o instinto ceder à razão e a razão

particular à razão pública?

De fato, observou Hannah Arendt:

As grandiosas tentativas da Filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que obstasse a deterioração da polis e

salvaguardasse a vida do filósofo soçobraram devido ao fato de não existir, no âmbito da vida política grega, nenhuma consciência de autoridade que se baseasse em experiências políticas imediatas. 28

26

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 166. 27

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 150. 28

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 161.

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32

A força da crença no sobrenatural foi capaz de fazer o homem cultuar

seus antepassados, agrupar famílias, fazer a primeira religião. Desta antiga religião

surgem as primeiras concepções de moral, de dever. Surge também a ideia de

propriedade, de sucessão de bens, enfim diversas instituições de direito privado

surgem a partir da religião.

Como se não bastasse, os homens, à medida que sentem necessidade

de se unir, o fazem por meio da eleição de divindades comuns, para que essa

reunião se dê efetivamente através do culto religioso.

Assim se formam as primeiras cidades:

A concepção religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da sociedade. As tradições dos hindus, dos gregos e dos etruscos, recordavam aos homens terem sido os deuses quem lhes revelaram as leis sociais. Essa forma lendária oculta meia-verdade. As leis sociais foram obra dos deuses, mas esses deuses, tão poderosos e tão benfazejos, derivaram das crenças dos homens. Essa foi a forma de criação do Estado entre os antigos; seu estudo tornava-se indispensável para nos elucidar sobre a natureza e

instituições da cidade.29

É importante esclarecer que estas leis eram destinadas somente aos

cidadãos, isto é, àqueles aos quais pertencia o culto daquela cidade, que eram

admitidos a ele, estando excluídos todos os demais.

O culto religioso nas cidades gregas e em Roma tinha como cerimônia

principal um banquete, ao qual se dava o nome de sacrifício:

Comer a refeição preparada sobre o altar, tal foi, segundo todas as aparências, a primeira forma que o homem deu ao ato religioso. A necessidade de o homem se colocar em comunhão com a Divindade satisfazia-se com esse banquete, para o qual a convidavam e a quem faziam participar.30

O calendário das cidades era feito por sacerdotes, já que nada mais

registravam do que as festas religiosas e cada cidade tinha um calendário diferente

da outra, pois suas divindades também eram diferentes.

29

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 105. 30

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 124.

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33

As leis da cidade eram consideradas sagradas, isto é, provenientes dos

deuses, não eram consideradas como obra humana.

Platão nos faz ter noção da importância da lei para o cidadão quando

descreve o discurso de Sócrates. O filósofo, condenado à morte, se entrega e afirma

que tudo deve ocorrer segundo desejo do deus e que deve obedecer à lei e fazer

sua defesa.31

São essas as palavras que Platão coloca na boca de Sócrates:

Mas, onde de lado a reputação, ó homens, não me parece certo que alguém suplique aos juízes para tentar fugir à condenação, em vez de informá-los e persuadi-los. Porque os juízes não estão aqui para ceder diante de tais atitudes, mas para fazer valer a justiça. O juramento que fizeram não foi para beneficiar a quem bem lhes parece, mas para julgar segundo as leis [...] E é por isso que, se pela persuasão ou pela súplica eu os condenasse a quebrar seus juramentos, pela persuasão ou pela súplica, estaria ensinando o desrespeito aos deuses e, ao me defender, estaria acusando a mim mesmo de não crer nos deuses, algo que está muito longe de ser verdade. Pois eu creio, ó homens de Atenas, mais que qualquer um de meus acusadores crê. E agora me coloco diante de vocês, e também do deus, esperando que possam decidir pelo que for melhor, tanto para mim quanto para vocês.32

As cidades exerciam poder de origem religiosa sobre seus integrantes.

O homem era obrigado ao serviço militar até os 46 anos em Roma e em

Atenas e Esparta por toda a vida. Seu dinheiro devia ficar à disposição da cidade,

incluindo as joias das mulheres e os frutos da terra. Algumas cidades proibiam o

celibato ao homem, em Esparta se regulamentava até o penteado das mulheres, e,

em Atenas, elas eram proibidas de levar mais de três vestidos em viagem. Em

Rodes o homem era proibido de fazer a barba e em Bizâncio era punido com multa

quem ao menos possuísse uma navalha, já Esparta exigia que se raspasse o

bigode.

Lei terrível das cidades era a que exigia dos pais que aniquilassem o filho

que tivesse nascido com alguma deformidade.

Não era permitido que o cidadão escolhesse particularmente suas

crenças, mas sim devia se subjugar à religião da cidade:

31

PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p.

26. 32

PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p.

49.

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34

Podia-se odiar ou desprezar os deuses da cidade vizinha e, quanto às divindades de caráter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cibele ou Juno, havia a liberdade de neles ter ou não ter fé. Mas que ninguém ousasse duvidar de Atena Políada, de Erecteu ou de Cécrope. Seria grande impiedade contra a religião e o Estado, que este devia punir com toda a severidade. Sócrates foi condenado á morte por esse crime. A liberdade de pensamento, em matéria de

religião, era absolutamente desconhecida entre os antigos.33

A personalidade e atitudes dos aristocratas romanos e gregos eram

totalmente moldadas pela religião, que ocupava o lugar central em suas vidas, sua

casa era um templo, seus antepassados os seus deuses, os túmulos e os limites de

sua terra, sagrados.

Nascimento, casamento, iniciação eram sempre atos religiosos solenes.

Ofereciam sacrifícios todos os dias em sua casa, todos os meses em sua cúria,

anualmente em sua tribo.

Como se vê, no pensamento antigo não se concebia a separação de

poder terreno e religião, ou seja, a prática da cidadania era a prática da religião.

Neste sentido, constatou Hannah Arendt ao tratar especificamente do povo romano:

A religião e a atividade política podiam assim ser consideradas como praticamente idênticas [...] O poder coercivo da fundação [da cidade] era ele mesmo religioso, pois a cidade oferecia também aos deuses do povo um lar permanente.34

1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da Filosofia

Em que pese a força enorme exercida pela tradição sobre os antigos, a

partir do século VII a.C., aos poucos, este tipo de Estado primitivo poderoso foi

sendo transformado e desapareceu totalmente através de uma série de revoluções

que tiveram, segundo Coulanges, duas causas básicas: a reação da classe

oprimida e o desenvolvimento da racionalidade humana.

33

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p.184. 34

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed.; São Paulo,

Perspectiva, 2011, p. 163.

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35

Os plebeus, que teriam sido provenientes de antigas populações

conquistadas e subjugadas, eram a maioria da população em Roma, apesar de não

serem concebidos como parte dela.35

Compunham essa classe, igualmente, famílias que não conseguiam

instituir seus cultos domésticos, empregados expulsos das famílias, filhos bastardos

ou que tivessem renegado a religião da família.

Como se vê, a plebe era resultante do caráter excludente do culto

doméstico, ou seja, era a parcela da população que não estava abrigada em

nenhuma família. E, fisicamente, estavam separados da cidade por um marco.

De outro lado, havia as famílias, cada uma com seu rei ou pater. Abaixo

das famílias, se formaram as cúrias ou fratrias, depois as tribos, cada qual com seu

chefe próprio. Era uma hierarquia de chefes. Posteriormente, estes chefes

escolhiam o rei da cidade, mas este não exercia poder total sobre a população.

Cada família escapava a sua ação e continuava submetida ao seu pater.

Por conseguinte, estes reis locais, os aristocratas, mantinham seu poder e

reunidos formavam uma força tão poderosa quanto à do rei da cidade. Quando

percebiam que o rei da cidade queria se tornar mais poderoso uniam-se contra ele.

Por toda a parte se travaram guerras entre a aristocracia e a realeza, que no final,

acabava sempre derrotada.

Isto até que o rei percebeu (e usou) a força da plebe e das leis da cidade.

Os reis, então, se uniram ao povo numeroso (e excluído) das cidades

para lutar contra os aristocratas das famílias sagradas, e os patres viram erguerem-

se contra si as classes que anteriormente desprezara. Essas lutas passaram a ter

um caráter social.

Paulatinamente foi-se operando uma transformação das cidades. Os

plebeus acabaram por derrubar as barreiras que lhes eram impostas e adentraram a

cidade onde se apoderaram do governo.

Em Atenas, Sólon, aristocrata que se tornou rei no Sec. VI a.C. libertou os

escravos, perdoou dívidas, mudou completamente a constituição política da cidade,

mas deixou intacta a organização religiosa, que somente com Clístenes foi

modificada para incluir todos os homens livres de Atenas:

35

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 192.

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36

Sólon, ao mudar a constituição política, deixara subsistir toda a antiga organização religiosa da sociedade ateniense. [... ] havia duas espécies de homens: de um lado, os eupátridas, possuindo hereditariamente o sacerdócio e a autoridade; do outro, os homens de condição inferior que não eram mais nem servos nem clientes, mas que ainda se achavam ligados pela religião, à autoridade do eupátrida. Em vão a lei de Sólon declarava livres todos os atenienses. A antiga religião apoderava-se do homem à saída da assembleia onde livremente votara [...].36

Com a lei de Clístenes, veio a reforma religiosa e as quatro tradicionais

tribos foram substituídas por dez novas tribos divididas em certo número de demos,

cada qual com suas divindades, cultos, sacerdotes, juiz e assembleia para deliberar

sobre os interesses comuns.

Este culto, todavia, já não era o da religião hereditária, os heróis eram

escolhidos entre personagens antigos admirados. Os demos adoraram de maneira

geral a Zeus, protetor do domicílio e a Apolo paternal.37

E foi essa reforma de âmbito religioso que consolidou a queda da

aristocracia, dos eupátridas, que não sustentavam mais privilégios de casta ou

nascimento nem em âmbito político, nem em âmbito religioso.

Essas transformações ocorreram em todas as cidades gregas e também

em Roma, que começou a caminhar neste sentido sob o reinado de Sérvio, com

quem o plebeu conseguiu uma religião, e a quem os aristocratas tributaram profundo

ódio.

Sérvio introduziu um princípio novo na sociedade romana, qual seja: a

riqueza. As classes estratificadas o eram a partir de então em razão de suas posses

e não mais pela religião. Esta mesma divisão se deu igualmente em termos militares.

A cidade romana foi, destarte, totalmente alterada. Os patrícios

mantiveram seus cultos e organizações em cúrias, além do Senado, mas perderam

privilégios e os plebeus foram ganhando força e espaço na cidade.

Ao final, plebe e patriciado acabaram concluindo que um era necessário

ao outro e firmaram aliança de um modo ou de outro, conforme cada povo, e que

36

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.228. 37

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 229.

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37

acarretou a possibilidade da plebe se organizar, podendo escolher entre os seus um

chefe. Essa é a origem do tribunado da plebe.38

O tribuno era inviolável e se apoderou do poder de julgar. Contudo, seu

poder era exercido somente perante a plebe, continuando a coexistir duas

sociedades: a cidade e a plebe, esta ainda sem direitos e sem lei, apesar de já

contar com seu protetor e juiz.39

A plebe passou a reunir-se em assembleia para deliberar acerca de seus

interesses, nomear chefes e formular plebiscitos. Contudo, ao contrário do que

ocorria nas assembleias patrícias, essas reuniões não eram precedidas de

sacrifícios e nem se consultavam oráculos para a tomada de decisões.

Em Roma por muito tempo se conheceram duas espécies de decretos: o senatus-consulto para os patrícios, e os plebiscitos para a plebe. Nem a plebe obedecia aos senatus-consulto, nem os patrícios aos plebiscitos. Havia dois povos em Roma.

Eram unidos apenas por necessidade de guerra, pois a nenhum

interessava a queda de Roma.

Ocorre que alguns plebeus conquistaram riquezas ou já provinham de

alguma família rica originária de outra cidade, mas que em Roma não tinham

qualquer valor.

Na divisão de castas pela riqueza, operada por Sérvio, alguns desses

plebeus acabaram ocupando a primeira delas, juntamente com muitos patrícios com

quem passaram a conviver e desejar a união dos dois povos.

Para isto, a plebe passou a pleitear uma lei para si, pois as leis existentes

eram sagradas, secretas e aplicadas somente aos patrícios. Esse caráter religioso

era, como já mencionado, excludente também em relação à lei. Por esta razão, a

plebe desejava colocar fim a esta característica da lei: “A plebe pediu não somente

38

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 236. 39

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 238.

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38

que as leis fossem escritas e tornadas públicas, mas ainda que fossem igualmente

aplicáveis a patrícios e a plebeus.”40

Como já se viu, isso era sacrilégio para os patrícios e somente após muita

negociação se decidiram mudanças: os legisladores permaneceriam todos patrícios,

mas seu código, antes de ser promulgado e posto em vigor, devia ser exposto ao

público e submetido à aprovação prévia de todas as classes41, a quem passaria a

ser aplicado. Assim, nasce a Lei das Doze Tábuas, que Sólon promulgou.

Por conseguinte, a lei já não era mais resultado dos oráculos e sim da

vontade do povo, que, se preferir, posteriormente, poderá também modificá-la.

Neste momento, é alterada a natureza do Direito.

Esta foi uma extraordinária inovação, pois a partir daí os plebeus passam

a agir do mesmo modo que os patrícios, a conviver no mesmo tribunal, a estar

submetidos sob as mesmas leis, que agora deixaram de ser privadas e se tornaram

públicas e conhecidas de todos.

Os costumes e valores foram se mesclando e adaptando através da união

entre plebe e aristocracia pelo casamento. Aqueles conquistaram também o direito

de ser legisladores. E como tal, não se importavam com aspectos cultuais e

sagrados observados pelos aristocratas, que lhes soava como “sutilezas sem

valor”.42

Conquistada a igualdade civil desejava a plebe a igualdade política, isto é,

ter direito ao consulado43

.

Contudo, o caráter sacro era inerente à função, o que levou os patrícios a

se oporem fortemente ao apelo, pois os deuses só aceitavam os sacrifícios dos

patrícios, que tinham nas mãos a tradição familiar do culto.

40

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p.241. 41

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 241. 42

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 242. 43

O cônsul ou magistrado era o chefe da cidade, a quem era atribuído não somente o poder político e militar, como o religioso. Era, assim, igualmente sacerdote encarregado dos sacrifícios públicos e, portanto, para ser eleito, não bastava dar provas de coragem e probidade, mas de conhecimento e capacidade para celebrar as cerimônias do culto público. Dos sacrifícios ofertados dependiam o bom andamento da cidade, seus negócios e suas batalhas. Em cada cidade podia tomar ainda nomes diferentes: rei, prítane ou arconte.

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39

A saída encontrada foi a separação entre a função religiosa, de muito

maior importância, da função administrativa. Esta permanecia com o magistrado ou

cônsul, mas para aquela foram instituídos os censores.

Aí a origem da separação entre Estado e religião primitivos. Houve a

separação entre o poder terreno e o poder sagrado, mas o intuito era não macular a

religião, não ofender os deuses. Até então, não se imaginava excluir a religião da

política. Isso era inconcebível.

Enfim: “O plebeu passou a usar o vestido púrpura [...]: administrou a

justiça, foi senador, governou a cidade e comandou as legiões44”.45

Nesta época, a única função da qual o plebeu ainda estava excluído era o

sacerdócio, pois conhecer o ritual, ter a posse dos deuses era um patrimônio

hereditário que nenhum estranho poderia usurpar. O culto da cidade pertencia

exclusivamente às famílias que a haviam fundado.

Por esta razão, ainda que os plebeus tivessem fundado sua própria

religião, ela não tinha valor nenhum aos olhos dos patrícios. Ocorre que, a plebe foi

se dando conta de que sem a igualdade religiosa não havia efetiva igualdade civil e

política, que eram ainda entrelaçadas.

E passou a exigir participação também no sacerdócio.

Foi essa a última conquista da classe inferior [...]. Os velhos princípios sobre os quais a cidade romana, como todas as cidades antigas se fundara, tinha desaparecido. Da antiga religião hereditária, que durante muito tempo governara os homens e estabelecera classes entre estes, nada mais restava do que meras formas externas. O homem do povo lutara contra a religião durante quatro séculos, na República e no tempo dos reis, mas saíra, finalmente, vitorioso.46

1.3.2 O Advento da Filosofia

Deve-se reconhecer que, conforme mostra a história, o homem foi se

desenvolvendo em vários aspectos, e, de modo especial, no que diz respeito a sua

razão.

44

As legiões eram o modo de divisão do exército romano. 45

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 244. 46

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 245.

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40

A partir do ano 600 a.C. surgiram alguns pensadores que, não se

conformando com a explicação do mundo baseada nos mitos religiosos, ousaram

investigar a natureza e chegaram a conclusões nunca dantes imaginadas, mas que

hoje, milênios depois, se mostraram muito razoáveis, o que é bastante

surpreendente, considerando o conhecimento do mundo na época.

Pois bem, o marco do surgimento da filosofia é a passagem da explicação

mítica da origem do mundo, para uma tentativa de explicação racional, onde os

deuses do Capitólio ou do Olimpo cediam lugar à investigação da natureza.

Como seria de se esperar, a religião aos poucos vai sendo atingida por

este novo modo de pensar que já não admitia a existência de deuses particulares,

mas passava à concepção de um Deus único e universal.

Até o advento da filosofia na era antiga, os homens não concebiam a

divindade como poder supremo, mas como um protetor particular:

Cada família teve a sua religião doméstica, e cada cidade a sua religião nacional. Uma cidade era como que uma perfeita pequena Igreja, com seus deuses, seus dogmas e seu culto. Estas crenças parecem-nos muito grosseiras, mas foram crenças do povo mais espiritualista daqueles tempos, exercendo sobre esse povo e sobre o povo romano ação tão forte que desta religião teve origem a maior parte de suas leis, de suas instituições e de sua história.47

O refinamento da crença veio com o tempo, inicialmente pela revolução

feita pela plebe que acabou por dessacralizar o caráter hereditário e excludente do

culto religioso primitivo e, em seguida, pela reflexão filosófica que iniciou a ideia da

alma imaterial e de um Deus único do gênero humano e não mais deuses privados:

“[...] lenta e obscuramente foi operando uma revolução intelectual.”48

Os filósofos da antiguidade eram aristocratas, cidadãos, participavam

ativamente da vida política e jurídica de seu tempo. O esforço intelectual a que se

dedicavam visava o conhecimento de modo global: matemática, astronomia,

medicina e filosofia. Buscavam explicar a natureza de modo racional.

47

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.123. 48

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 281.

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41

Nos seus estudos sobre a Metafísica Aristóteles faz uma introdução com

uma breve história da filosofia, iniciando com os pensadores pré-socráticos até

Platão.49

Em Mileto, na Ásia Menor (Grécia) nascem os primeiros filósofos: Tales

(624 a.C a 545 a.C.), Anaximandro (610 a.C. a 547 a.C.) e Anaxímenes (585 a.C.

525 a.C.). 50

O primeiro, segundo Aristóteles seria o fundador da filosofia da natureza e

acreditava ser a água o elemento primordial, o princípio de tudo. Anaximandro

introduziu o conceito de necessidade na natureza, onde o elemento fundamental

seria apeiron, o ilimitado, o indeterminado, aquele que seria imutável. Anaxímenes

acreditava que a origem de todas as coisas seria o ar. E seria também apeiron,

ilimitado, indeterminado.

Em seguida vêm outros.

Pitágoras é da ilha de Samos, nascido em 570 a.C. e fundou a escola

filosófica que reunia a atividade matemático-investigativa e a místico-religiosa.

Acreditava na reencarnação da alma e pregava preceitos de purificação, influenciou

o pensamento platônico. Para os pitagóricos os números eram o princípio da

natureza através do qual seria possível explicar todos os fenômenos naturais.

Paralelamente à investigação da natureza começam a surgir na cultura

grega as primeiras tentativas de se pensar a origem do próprio pensamento sobre o

cosmos. Partiram dos filósofos chamados “eleatas”: Xenofontes, Heráclito e

Parmênides. A partir deles, o interesse se volta para a origem do próprio

pensamento, desloca-se o eixo da investigação, da natureza para o pensamento ou

logos.

Cassires constata isto. Ele nota que, nos seus primórdios, a filosofia

grega se ocupou apenas do universo físico, entretanto, com a evolução do

pensamento grego, vão além e iniciam o caminho da introspecção:

Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora fale ainda como filósofo natural e faça parte dos “antigos fisiologistas”, está convencido de que é impossível

49

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Marcelo Perine, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 17-

41. 50

CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana

de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 11-31.

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42

penetrar o segredo da natureza sem ter estudado o segredo do homem.51

Xenofontes (570 a.C. a 480 a.C) teria sido professor de Parmênides

quando após muitas viagens chegou a Eleia. Era poeta e seus versos tratavam de

cosmologia e teologia, criticava os valores tradicionais como o elogio exagerado da

força física feito pelos gregos, pois a sabedoria valia mais do que a força. Acreditava

que na verdadeira religião não havia múltiplos deuses, mas apenas um único Deus.

Aristóteles dirá que ele foi o primeiro mestre da unidade entre os eleatas.

Heráclito de Éfeso provinha da aristocracia e seu pensamento era tido

como enigmático e obscuro, porém pode-se afirmar que seguiu a mesma

perspectiva de Xenofontes sobre a unidade e totalidade para o princípio de todas as

coisas, tanto do pensamento quanto da natureza, a este princípio deu o nome de

logos52.

Parmênides de Eléia (515 a.C. a 440 a.C.) elaborou o princípio básico da

ontologia: “só o ser é, o não ser não é”, que posteriormente foi chamado por

Aristóteles de princípio da não contradição.

A afirmação parece uma redundância, porém, simplificando, se pode dizer

que ele entendia que o logos, ou o pensamento, só pode pensar a verdade, ou o ser,

mas quando se exprime uma opinião, isto já não é o logos, é somente a aparência

do ser ou o não ser. E, assim, este ser é uno, imutável, imóvel e eterno, pois, do

contrário, teria em si o não ser, o que para ele era impossível.53

Em seguida, vem o sistema pós-parmenidiano com Empédocles,

Anaxágoras e Demócrito.

Empédocles (490 a.C. a 430 a.C.) reuniu os três elementos primordiais da

natureza quais sejam o ar, o fogo e a água54 e os uniu a outro elemento, a terra,

para afirmar que os seres nasceriam e pereceriam em função da composição e

separação desses quatro elementos. Para ele nenhum ser acaba completamente,

51

CASSIRES, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.

Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 14. 52

CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana

de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.16. 53

CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga In Castro, Suzana

de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 17. 54

Para Tales de Mileto o elemento primordial da natureza era a água; para Heráclito era o fogo e para Anaxímenes, o ar.

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43

mas se transforma na união com outros elementos ou corpos. Ele chamava de amor

ao princípio da composição dos corpos e de ódio ao de separação dos elementos.

Anaxágoras (500 a.C. a 428 a.C.) foi quem levou a filosofia para Atenas

quando ali foi morar em 465 a.C.. Ele acreditava também, como os anteriores, que

não há geração a partir do nada e nem corrupção completa até o nada, mas afirmará

que essas transformações não decorrem dos quatro elementos, mas de infinitas

sementes que, divisíveis ao infinito, estariam presentes em todas as coisas desde o

começo. Estas partes seriam idênticas umas às outras. Acreditava, ainda que,

haveria um princípio espiritual do universo que movimentaria este princípio material

das partículas infinitas:

Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência que reina sobre todos os homens e sobre todas as criaturas. Afastando-se das antigas crenças, distanciou-se também da antiga política. Como não acreditasse nos deuses do pritaneu, Anaxágoras não cumpria tampouco os seus deveres de cidadão; desse modo fugia das assembleias e não desejou ser magistrado. Sua doutrina representava um perigo para a cidade; os atenienses condenaram-no à morte.55

Por fim, surge Demócrito (460 a.C. a 370 a.C), conhecido por ser um dos

fundadores do atomismo56. Os atomistas, ao contrário dos eleatas admitiam a

existência do não ser, isto é, do Nada. Assim, o espaço vazio para Demócrito tem

existência, pois, graças a ele, os átomos podiam se movimentar e entrar em

composição ao se chocarem.

A partir do Século IV a.C., assistimos a um novo período da filosofia

antiga, onde ocorreram dois deslocamentos espaciais: primeiro, o deslocamento do

centro da cultura filosófica grega de suas colônias da Ásia Menor para as cidades-

estado (polis) da península, e, segundo, o êxodo da filosofia, partindo do silêncio das

escolas para o burburinho as cidades.57

55

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 281. 56

Teoria segundo a qual existe um elemento material mínimo e indivisível, o átomo, a partir do qual todas as coisas são compostas. Ainda, o átomo seria invisível, devido ao seu tamanho, eterno e imutável. 57

CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana

de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.19.

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Os novos filósofos são chamados de sofistas e são responsáveis por uma

guinada na investigação filosófica, ou seja, deixam de lado a investigação da

natureza para investigar o próprio homem.

Dentre os sofistas mais destacados estavam Protágoras (480 a.C. a ?) e

Górgias (480 a.C. a 380 a.C.).

Eram eles que preparavam o jovem para sua atuação na vida pública,

ensinando-lhes não apenas a literatura, mas oratória, educação moral e civil, entre

outros. Viajavam de cidade em cidade oferecendo seus préstimos em troca de

remuneração equivalente. Também aconselhavam os jovens em questões de ética,

enfim, pretendiam educar a pensar, agir e falar corretamente, fosse na vida privada,

fosse na pública.

Eram homens ardentes no combate aos velhos erros [...] não poupavam nem as instituições da cidade, nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda regiam o Estado e a família [...] ensinando não precisamente a indiferença entre o justo e o injusto, mas uma nova justiça, menos acanhada e menos exclusiva que a antiga, mais humana, mais racional e livre das fórmulas das idades anteriores. [...] Ensinavam os gregos que, para governar o Estado, não bastava mais invocar antigos costumes e leis sagradas, mas era necessário persuadir os homens e agir sobre vontades livres. Substituíam o conhecimento dos antigos costumes pela arte de raciocinar e de falar, a dialética e a retórica [...] ligavam-se à eloquência e ao espírito.58

Os sofistas não acreditavam numa verdade absoluta, pois o que

encontravam em suas inúmeras viagens era uma variedade enorme de cultura.

Assim, seus ensinamentos sobre a teoria do conhecimento, política, ontologia e ética

tinham sempre uma perspectiva relativista e convencionalista.59

Quase concomitantemente Sócrates (470 a.C.) aparece, ensinando em

sua cidade natal, Atenas. Ele, ao contrário dos sofistas, ensinava sem cobrar e tecia

ácidas críticas àqueles que, além de cobrar pelo que ensinavam, se achavam muito

sábios.

58

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 281. 59

Para Protágoras o conhecimento jamais poderá ser único para todos os homens, pois a percepção que cada um tem da mesma coisa varia de acordo com o estado físico e emocional do indivíduo. Por esta razão, o conhecimento deve ser voltado para a prática e não para a abstração. Os sofistas eram, portanto, conselheiros dos jovens para que conduzissem sua vida da melhor forma.

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45

Sócrates, por sua vez, afirmava nada saber e se ocupava com o

ensinamento da ética aos jovens, para que conduzissem sua vida da melhor

maneira, pela prática das virtudes. E o faz por meio de diálogos aporéticos, isto é,

que terminavam sem uma solução60.

Com efeito, sua investigação filosófica era voltada para o ser humano

concreto, anseios e perspectivas, teoria e vida não se separam para Sócrates61.

O filósofo não escreveu uma linha sequer, sendo que o principal

responsável por tornar conhecidas suas ideias foi Platão, seu jovem discípulo.

De acordo com o que nos fez conhecer Platão, Sócrates foi condenado à

morte por supostamente não reconhecer os deuses da cidade e corromper a

juventude, mas ele somente pretendia levar os jovens atenienses à descoberta do

pensamento autônomo e da reflexão62:

Deste modo, Sócrates:

Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima da lei. Distinguia a moral da religião [...] mostrou estar a origem do dever na própria consciência do homem. Em tudo isso, quer o quisesse ou não, ele fazia guerra aos cultos da cidade. [...] Condenaram-no à morte por haver atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como então se dizia, por corromper a geração presente.63

A morte de Sócrates não deteve a revolução que foi iniciada pelos

sofistas e a sociedade grega ia se libertando do domínio das antigas crenças e

velhas instituições:

60

Sócrates inaugura um modo próprio de questionamento filosófico. Pelos diálogos platônicos vê-se que fundamental para Sócrates era a atitude de interrogador. Enquanto seus interlocutores acreditavam possuir a verdade sobre as coisas, afirmava sua ignorância de tudo. A despeito do oráculo de Delfos ter dito que seria o homem mais sábio da Grécia, afirmava nada saber. O ponto de partida do método socrático é a interrogação que algum jovem lhe faz sobre determinado tema (por exemplo, o significado da virtude, da justiça, do amor, etc.) Seu objetivo é levar seu interlocutor a reconhecer sua própria ignorância acerca de um assunto que supunha saber. Destrinchando as afirmações do seu interlocutor, vai conduzindo a perceber o quão pouco justificado era o conhecimento que acreditava possuir. Para Sócrates e Platão só uma crença justificada poderia ser considerada verdadeira (CASTRO, op. cit., p. 23). 61

Segundo Coulanges, em que pese Sócrates ter reprovado o abuso que os sofistas fizeram do direito de duvidar, pertencia à mesma escola. Não admitia a autoridade da tradição e acreditava que as regras de conduta estavam gravadas na consciência humana 62

CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.24. 63

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 282.

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46

Depois de Sócrates, os filósofos discutiram com toda a liberdade os princípios e as regras da sociedade humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto e muitos outros escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e dos direitos, apresentaram-se para todos os espíritos.64

Em que pese Platão ter sofrido a influência dos antigos costumes ao

imaginar sua cidade ideal ainda prenhe da cultura antiga e suas instituições,

proclama que as regras de moral e política estão na consciência humana e não na

tradição pura e simplesmente.

Por esta razão, afirmava ele que as leis somente são justas enquanto

conformes à natureza humana e por isto se deveria atentar ao ditames da razão.

Posteriormente, com Aristóteles (384-322 a.C.), novas ideias surgem. Ele

ensinava que os antigos eram gente ignorante e seria absurdo permanecer fiel a

suas crenças.

Aristóteles deu uma base sólida à noção de justiça65 que seria a

equidade, a proporcionalidade, conforme se verifica:

[..] o que todos visam com “justiça” é aquela disposição do caráter a partir da qual os homens agem justamente, ou seja, é o fundamento da ações justas e o que os faz ansiar pelo que é justo. [...]66

E assim: É necessário, pois, que a justiça implique pelo menos quatro termos, a saber, duas pessoas, no mínimo, para quem é justo que algo aconteça e duas coisas enquanto partes partilhadas. E haverá uma e a mesma igualdade entre as pessoas e as partes nela implicadas, pois a relação que se estabelece entre as pessoas é proporcional à relação que se estabelece entre as duas coisas partilhadas. Porque se as pessoas não forem iguais não terão partes iguais, e é daqui que resultam muitos conflitos e queixas, como quando pessoas iguais têm e partilham partes desiguais ou pessoas desiguais têm e partilham partes iguais.67

64

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p.282. 65

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 49. 66

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de Antonio Castro Caeiro. São Paulo:

Atlas, 2009, p. 103. 67

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de Antonio Castro Caeiro. São Paulo:

Atlas, 2009, p. 109.

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47

Após Sócrates, que ainda procurava cumprir com seus deveres de

cidadão, houve um afastamento dos filósofos dos negócios públicos: Platão

pretendia reformar o governo da cidade (o único que admitia), Aristóteles limitou-se

a observar e analisar. Os epicuristas68 deixaram totalmente de lado a participação na

vida política e os cínicos69 nem sequer queriam ser cidadãos.70

Os estoicos retornaram à política, porém, assim como concebem um

Deus do universo, ensinam que na Terra também há um só governo para todos, que

todos os homens são concidadãos do mundo, por conseguinte não aceitavam que o

indivíduo fosse refreado pela cidade e libertaram a consciência humana desse jugo.

Ensinavam que o principal trabalho do homem devia ser o

aperfeiçoamento interior, a procura da virtude em si mesmo. Por este motivo, só se

deve obedecer à lei da própria consciência que deve manter-se independente,

qualquer que seja o governo da cidade. Essa teria sido uma enorme inovação na

época e acabou se tornando uma das regras mais sagradas da política.

Todos esses novos conceitos foram transformando o homem antigo que

adquiriu a importância de si próprio, deixando para trás a crença de que a cidade era

a razão de seu viver e a ela deveria se subjugar. O homem se volta para si e cai a

importância da cidade, morre o patriotismo municipal:

Como o coração do homem não se prendia mais ao pritaneu, aos deuses protetores, ao solo sagrado, mas somente às instituições e às leis, e como estas, no estado de instabilidade em que todas as cidades então se encontravam, mudassem frequentemente, o patriotismo tornou-se sentimento variável e inconsciente dependendo das circunstancias e sujeito às mesmas flutuações do governo. Só se ama a pátria pelo regime político que momentaneamente ali prevalece; quem não gostasse de suas leis não tinha mais razão para defendê-la.71

68

Doutrina de Epicuro de Samos dos séculos IV e III a.C., que identifica felicidade com prazer (hedoné), pois, psicologicamente, tudo o que se faz é para obter prazer, que é bom, já que a dor é ruim. Deste modo, para ser feliz é necessário agir para aumentar o prazer e diminuir a dor (CASTRO, 2011). 69

Filosofia fundada por volta de 400 a.C. por Antístenes, discípulo de Sócrates, que teve como maior representante Diógenes de Sínope e que pregava essencialmente o desapego aos bens materiais e externos. Era mais um modo de vida do que escola filosófica. Mais tarde o termo passou a ser empregado num sentido bastante diferente. 70

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 283. 71

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 290.

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1.4 O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da Religião

Recorde-se, a essa altura, que na antiguidade era a religião que

determinava o governo dos homens, suas instituições e suas leis. Religião, direito,

governo, confundiam-se, eram uma só coisa vista sob três diferentes feições. E,

assim:

[...] a religião imperou como soberana absoluta na vida privada e na vida pública; onde o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula sagrada; onde o patriotismo era a piedade e o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida e o homem estava sujeito ao Estado por alma, corpo e bens materiais; onde o ódio contra o estrangeiro se tornava obrigatório, e as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da cidade; onde a sociedade humana se achava necessariamente encerrada dentro de uma circunferência ao redor de um pritaneu não se vendo possibilidade de fundar sociedades maiores. Tais os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história.72

O surgimento do Cristianismo completou um ciclo de transformações que

já havia sido iniciado pelas conquistas plebeias e pela influência da filosofia.

A independência que o indivíduo da cidade antiga foi conquistando se

deveu ao seu desligamento da religião primitiva. O direito e a política foram se

desvinculando das crenças, pois os homens já não lhes davam mais a mesma

importância e havia perdido muito de sua força.

Contudo, observa Fustel de Coulanges que, na Idade Antiga a religião

não era utilizada com propósitos políticos. Porém: “Foi nos tempos de Cícero73 que

se começou a julgar a religião útil ao governo, mas a religião já se sumira dos

corações dos homens”.74

Pois bem, também na visão do historiador inglês Edward Gibbon,

iluminista do século XVIII, havia uma conveniência política na manutenção da

tolerância religiosa dos diversos cultos pagãos:

72

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 304. 73

Marco Túlio Cícero (109 – 43 a.C.), filósofo, orador e estadista romano que apresentou aos romanos a filosofia grega. 74

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, op. cit., p.177.

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A política dos imperadores e do Senado, no que respeitava à religião, era felizmente secundada pela opinião do setor esclarecido e pelos hábitos do setor supersticioso de seus súditos. As várias formas de culto que vigoravam no mundo romano eram todas consideradas pelo povo como igualmente verdadeiras, pelo filósofo como igualmente falsas e pelo magistrado como igualmente úteis. E assim a tolerância promovia não só a mútua indulgência como a concórdia religiosa. 75

O único povo que representava uma exceção a essa harmonia era o povo

judeu, que procurou sempre manter sua religião afastada da contaminação dos

pagãos.76

Surge, então, na história humana, em pleno Império Romano, uma nova

religião, onde Deus não era uma figura humana, com ela em nada se equiparava,

era o totalmente Outro. Era o Deus universal, mas não se confundia com a natureza

visível, estava acima e fora dela. Era o único Ser capaz de preencher a necessidade

de adoração inata que há no homem. O temor dos deuses transformou-se em amor

a Deus. A religião não era mais um culto particular e excludente, mas dirigido a

todos77.

Tal conceito de Deus era tão inovador que mesmo entre os discípulos

(judeus), no início da Igreja, houve muita discussão para que se concluísse que,

mesmo sendo o Cristo judeu, ele veio propor uma religião universal, aberta também

aos pagãos78

. Eram todos filhos de um único Pai, o Criador do Universo.

Até então, na concepção dos antigos, a divindade estava sempre ligada a

uma raça79, o Cristianismo, revelado após todos esses progressos do pensamento e

75

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição

abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53. 76

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição

abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53. 77

Jesus Cristo mandou aos seus discípulos: “Ide e pregai o evangelho a toda a criatura” (Marcos 16,15) 78

São Paulo na Epístola aos Romanos 3, 29: “É porventura Deus somente dos judeus? Não é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. 79

Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino. O direito de praticar um culto fora um privilégio. O estrangeiro fora expulso dos templos; o não-judeu não pudera entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tinha usufruído do direito de invocar a Palas ateniense. É justo dizer-se que, nos cinco séculos que precederam o Cristianismo, todo homem que raciocinava se insurgia contra essas mesquinhas regras. A filosofia ensinara tantas vezes, depois de Anaxágoras, que o deus do universo recebia indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis admitia iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis e de alguns outros deuses haviam recebido, indiferentemente os adoradores de todas as nações. Os judeus começaram por admitir o estrangeiro à sua religião, e os

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das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um

Deus universal, um Deus para todos, que não tinha povo eleito e não distinguia nem

raças, nem famílias, nem Estados.80

Para esse Deus não havia mais estrangeiros [...] O templo passou a ficar

aberto a qualquer um que cresse em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário,

porque a religião já não era um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo

(a não ser para fugir da perseguição), ao contrário, passou-se a ensinar a religião

até os confins do mundo. O espírito de propaganda substituiu a lei da exclusão.

Esta nova religião surge em pleno Império Romano instaurado por Otávio

que havia pouco (ano 30 a.C.) conquistara a Grécia pela submissão das tropas de

Cleópatra (egípcia de sangue macedônico) e Marco Antonio na batalha naval de

Actium.81

Jesus nasceu no reinado de Otávio, o Augusto e foi morto no de Tibério.

Foi no reinado do terrível Claudio Nero (54 d.C. a 68 d.C.), assassino de

sua esposa e mãe, que o Cristianismo passou a ser perseguido, tendo sido mortos

Pedro e Paulo, dentre inúmeros outros chamados de mártires.

1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo

A grande novidade do Cristianismo era sua proposta de distanciamento

do poder e da autoridade dos governantes, que se tornou conhecida pela célebre

exortação bíblica: “Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”82.

Jesus Cristo ensina que seu reino não é deste mundo, portanto, separa a religião,

que se ocupa das coisas do espírito; do Estado, que se ocupa do poder terreno.

Observa Jean Gaudemet que:

A aparição da Igreja Cristã introduz na vida política romana um dado novo e que o problema que ela criará ficará sendo, daí por diante, o de todos os Estados ocidentais. Nos Estados antigos, a religião era sempre associada ao poder público. As coisas mudam totalmente com o Cristianismo. A amplitude que tomou a nova religião, graças

gregos e os romanos haviam-no recebido em suas cidades (COULANGES, op. cit., p. 306). Assim, passaram a admitir estrangeiros em suas religiões particulares, mas não havia uma religião universal. 80

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, op. cit., p.306.. 81

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 61. 82

Mateus 22, 21.

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ao proselitismo de seus primeiros adeptos, a organização da Igreja como sociedade, tendo suas regras e suas instituições próprias, a vontade de seus pastores e de seus doutores de fazer repeitar certos princípios de Moral, e, portanto de vida social, colocaram muito depressa o problema fundamental e difícil das relações entre sociedade religiosa e sociedade civil.83

Ora, César, na ocasião era a representação única do poder terreno e do

divino:

César, naquela época, era ainda o sumo pontífice, o chefe e o principal órgão da religião romana, o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Em César, sua própria pessoa era sagrada e divina, porque um dos aspectos da política dos imperadores era precisamente o de, ao quererem reaver os atributos da realeza antiga, não terem esquecido o caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império procuravam reatar, e proclama que a religião não é mais o Estado e obedecer a César já não é o mesmo que obedecer a Deus.84

Assim, o Cristianismo, nos primeiros séculos, como se sabe, foi

perseguido pelo Estado e pela religião então constituída, já que, mesmo sem esse

intuito, acabou por retirar do Estado e da Lei Sagrada, uma parcela de seu poder,

instituindo o que se denominou de “dualismo cristão”.

Do importante estudo de Roberto de Almeida Gallego85 se verifica a

seguinte constatação:

O “dualismo cristão” ensejou, desde então, atritos com o Império Romano, que era monista. Neste diapasão, parece possível afirmar que o início das relações entre o Cristianismo e o Estado se dá em 311 d.C., através do Edito de Galério, por meio do qual a religião cristã passou a ser tolerada em todo o Império Romano. Antes de tal ato político, o Cristianismo era uma religião perseguida e sem voz, inexistindo, até então, entre ela e o Império Romano, qualquer tipo de diálogo capaz de ensejar

83

GAUDEMET, Jean. Instituitions de Làntique, Paris, Recuell Sirey, 1967 apud DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva,

2012, p. 83. 84

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 307. 85

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

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tratativas ou acordos. Com o Edito de Galério, o Cristianismo deixa a clandestinidade e arrefecem as perseguições contra os cristãos.

O Imperador Constantino era simpatizante da nova seita, já que sua mãe

Helena era cristã. Ele teria implorado o auxílio divino para vencer Maxêncio, seu

concorrente e unificar o Império, durante a batalha da Ponte Mílvio, quando lhe teria

aparecido no céu uma cruz luminosa com as palavras “In hoc signo vinces” – “Com

este sinal vencerás”. 86

Em 313 a.C. Constantino publica o Edito de Milão, pelo qual a religião

cristã passava a ser reconhecida e, portanto, lícita, isto é, cuja prática era aceita em

condições de igualdade com outras religiões do império.

Nesse período o Império deixara de ser um estado confessional,

passando à neutralidade em relação à religião, deixando de adotar como oficial o

que foi chamado posteriormente de paganismo: “Após derrotar seu concorrente

Maxêncio, Constantino se tornou o único imperador romano e, pelo Edito de Milão

(313), considerou o Cristianismo religião permitida no Império [...]”.87

A sociedade, a partir do Edito de Milão, iniciou um processo de

“cristianização”, no período que ficou conhecido por “era constantina”, dado que não

apenas o povo se convertia, mas os governantes igualmente:

De fato, o Imperador Constantino, assim como seus sucessores, fez editar uma série de leis que culminaram por favorecer a disseminação do Cristianismo por todo o Império Romano, tais como aquelas que apoiaram a afirmação da autoridade episcopal, a liberação, dos clérigos, do serviço militar e a faculdade concedida aos fiéis cristãos de realizarem doações causa mortis à Igreja, bem como – e principalmente - o combate às heresias.88

Constantino não se converteu logo no início de seu governo, mas

somente no ano 337, quando recebeu o batismo, porém como simpatizante da Igreja

e tendo coibido a perseguição aos cristãos, foi o responsável pela expansão da nova

religião, permitido que os cristãos propagassem sua fé por todo o Império.

86

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64. 87

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64 88

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 45.

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Algumas décadas após, o Imperador Teodósio, pelo Édito de Tessalônica,

faz da religião cristã a religião oficial do império, tornando-o, portanto, um estado

confessional.

1.5 Igreja e Estado na Idade Média

Denomina-se Idade Média, com boa dose de consenso, o período

compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e a tomada

de Constantinopla pelos turcos em 1453. 89

Houve uma época em que o período medieval foi considerado como a

“Grande Noite de Dez Séculos”, isto é, um vácuo entre a Antiguidade Clássica e o

Renascimento, onde a humanidade não teria produzido nada de positivo:

A Idade Média carrega até mesmo em seu nome os estigmas de sua desvalorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes nas línguas europeias significam a idade do meio, um intervalo que não poderia ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre uma Antiguidade prestigiada e uma época nova, enfim, moderna. [...] Quer se trate dos humanistas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do século XVIII, a Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção historiográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com o passado próximo (grifo do autor).90

Foi com o Iluminismo que tomou corpo a visão “emocional” da Idade

Média que perdura até os dias de hoje. Foi nessa época, coincidente com a

ascensão da burguesia ao poder, que não apenas se “conduz a uma radical

renúncia das trevas anteriores, mas também leva a tornar incompreensível a época

medieval, o que só faz acentuar sua desvalorização”.91

Seja como for, esse preconceito já vem sendo desfeito, tendo em vista

que autores contemporâneos92 tem reconhecido esse período histórico como um

período de grandes criações artísticas, desenvolvimento da filosofia, bem como de

realizações jurídico-políticas que são de profundo significado para história da

civilização.

89

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 33-34. 90

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 25. 91

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 25. 92

Dos quais Jacques Le Goff e Jérôme Baschet são exemplos.

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Pois bem, como se viu, os romanos, assim como os gregos, eram um

povo muito refinado e culto. Além disso, Roma se tornou uma grande fortaleza sobre

a qual nenhum povo foi capaz de se sobrepujar.

Vale dizer que Hannah Arendt atribuiu essa força romana à autoridade

derivada da tradição que se ligava à fundação da cidade. Afirma a filósofa que Roma

foi incapaz de, apesar das inúmeras conquistas, fundar novas cidades, mas estendia

sua crença, seus rituais às colônias, alargando o Império sob a mesma tradição.

Eis a razão porque os romanos foram incapazes de repetir a fundação de sua primeira polis na instalação de colônias, mas

conseguiram ampliar a fundação original até que toda a Itália e, por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o mundo inteiro não passasse de um quintal romano93.

Na lição do historiador inglês Adrian Goldsworth:

Os romanos tinham um talento único para absorver os outros e conseguiram convencer as províncias de que serem leais a Roma era mais vantajoso do que a alternativa da resistência. Este elemento de consentimento foi no fundo o que tornou possível o funcionamento do império. Em 180, ninguém conseguiria realmente imaginar, muito menos lembrar, um mundo sem Roma.94

Entretanto, no século V, o povo já tinha perdido o elã que fez de Roma

esta potência. O Império não apenas estava sendo militarmente dominado pelos

bárbaros95, mas já havia se implodido internamente, segundo alguns autores:

Todavia, o declínio de Roma foi a natural e inevitável consequência da grandeza imoderada. A prosperidade fez com que amadurecesse o princípio de decadência; as causas de destruição se multiplicaram com a extensão das conquistas; e, tão logo o tempo ou os acidentes removeram os sustentáculos artificiais, a estupenda estrutura desabou sob seu próprio peso.96

93

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed., São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 162. 94

GOLDSWORTHY, Adrian. O fim do império romano: o lento declínio da superpotência.

Tradução de João Bernardo Paiva Boléo. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 54. 95

Bárbaros era o nome dado pelos romanos para designar os povos germânicos, que eram nômades e não partilhavam seus costumes, cultura, nem a sua organização política. 96

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição

abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 538.

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55

Há inúmeras teorias sobre o declínio do império. Alguns autores o

atribuem à decadência moral, como Edward Gibbon, historiador inglês do século

XVIII citado logo acima, outros a algo interno do próprio império ou em virtude das

invasões dos bárbaros germânicos. Há, ainda, quem sustente terem sido as tensões

entre as classes sociais, dado que o povo estava oprimido e tinha que pagar altos

impostos. Outros apontam para falhas militares, decréscimo da população e até

mesmo para as alterações ambientais provenientes do impacto da agricultura e

indústria romanas, e para o colapso econômico97.

Em relação às invasões dos povos germânicos, é importante destacar

que essas foram, na verdade, infiltrações lentas, e nem sempre precedidas de

guerras sanguinárias, já que os talentos artesanais e militares destes homens foram

postos a serviço do Império, que por sua vez, lhes concedia o estatuto de “povo

federado”98.

Para uma visão global destas incursões, o comentário de Felipe Rinaldo

Queiroz de Aquino:

As invasões bárbaras foram uma longa série de migrações desses povos que ocorreu entre os anos 300 a 1000 a partir da Europa Central e que se estendeu sobre todo o Continente. É um fenômeno muito diversificado que transformou a Europa em um mosaico de povos após a queda do Império Romano do ocidente em 476 [...] os motivos dessas migrações dos povos bárbaros em todo o Continente europeu são incertos: talvez como reação aos ataques dos Hunos vindos da China sobre eles, as pressões populacionais ou até mesmo as alterações climáticas. [...] Os historiadores modernos dividem este movimento de migração em duas fases. Na primeira, dos anos 300 a 500, houve uma movimentação de povos germânicos por toda a Europa, chocando-se com as várias regiões ocupadas pelo Império Romano. Foram os Visigodos os primeiros a se enfrentar com o Império. Inicialmente eles foram contratados para ajudar na defesa das fronteiras do Império Romano; mas, mais tarde invadiram a Península Itálica; seguidos pelos Ostrogodos, liderados por Teodorico. Na segunda fase, anos 500 em diante, houve o estabelecimento progressivo dos Eslavos na Europa do leste, começando pela ocupação da região da antiga Checoslováquia. Os diversos grupos bárbaros já conheciam o Império Romano desde o século II e, inclusive alguns transitavam livremente para dentro e fora das fronteiras romanas. Várias tribos germânicas bárbaras se instalaram pacificamente no interior do Império, chegando mesmo a

97

GOLDSWORTHY, Adrian. O fim do império romano: o lento declínio da superpotência.

Tradução de João Bernardo Paiva Boléo. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 25. 98

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 50.

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56

integrar o exército romano, quer como soldados, quer como mercenários, contribuindo na defesa das fronteiras [...].99

Uma curiosidade sobre a tomada do poder e consequente queda do

Império em 476 é o fato de que tenha se dado com a deposição do imperador

Rômulo Augusto, que foi assim chamado para honrar tanto o fundador de Roma,

como seu primeiro imperador: Augusto; e acabou sendo o que representou a derrota

definitiva da supremacia romana.

Vale dizer que, Odoacro, o primeiro rei bárbaro, restituiu as insígnias

imperiais à Constantinopla, permitindo a manutenção do Império Romano do

Oriente, que experimentou, aliás, grande fortalecimento a partir de então.

O declínio do Império Romano do Ocidente é uma história fascinante em

si, porém muito extensa para ser completamente abordada neste estudo.

Importa saber que foi por ocasião desta decadência dos romanos, que o

ideal cristão foi triunfando na tentativa de subordinar a Cidade dos Homens à Cidade

de Deus, conforme a concepção do Bispo Agostinho de Hipona100.

Hannah Arendt observou que:

O vigor e continuidade extraordinários desse espírito romano – ou a extraordinária solidez do princípio fundador para a criação de organismos políticos – submeteram-se a um teste decisivo, reafirmando-se indiscutivelmente após o declínio do Império romano, quando a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Cristã. Confrontada com essa tarefa mundana bem real, a Igreja tornou-se tão “romana” e adaptou-se tão completamente ao pensamento romano em matéria de política que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra angular de uma nova fundação, erigindo sobre ela uma nova instituição humana de tremenda durabilidade [...] A vitória do espírito romano é com efeito praticamente um milagre; de qualquer modo, ela por si só capacitava a Igreja a “oferecer aos homens, na situação de membros da Igreja, o sentido de cidadania que nem Roma, nem a municipalidade podiam mais proporcionar a eles”.101

99

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,

2012, p. 37-38. 100

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 89. 101

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed.; São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 168.

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1.5.1 A “Cristianização” dos Bárbaros

Conforme reconheceu Hannah Arendt, a queda do Império Romano do

Ocidente acabou legando à Igreja, o trato da sociedade romana, invadida pelos

bárbaros.

Romanos e germânicos não tinham muito em comum. Os primeiros eram

refinados e cultos e os outros brutos, violentos e contavam com a frieza da vingança

contra os que, por tantos anos, os subjugaram.

De todo modo:

Seria um engano crer que o fim do Império signifique a substituição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo importado, próprio dos povos germânicos. Mais do que isso constata-se um processo de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são, sem nenhuma dúvida, os atores principais. [...[ É claro, custa-lhes negociar com esses “bárbaros”, vestidos de peles de animais e de cabelos longos102, que tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana. [...] Pouco a pouco [...] as diferenças entre aristocratas romanos e chefes germânicos atenuam-se [...]. Assim, opera-se a unificação das elites [...]. Essa fusão cultural romano-germânica é um dos traços fundamentais da Alta

Idade Média.103

Em que pese o Império ter sido destruído, a Igreja se manteve em pé, e

se entregou à pacificação dos bárbaros germânicos:

Os visigodos partilhavam entre si as províncias da Península Itálica, enquanto os francos se estabeleciam ao sul do Reno, e os borguinhões ao norte desse grande rio. Alanos e suevos devastavam a Península Ibérica e anglo-saxões, do outro lado do Canal da

Mancha, ocupavam a Grã-Bretanha (Inglaterra).104

Não obstante os interesses socioeconômicos terem dado início a essa

inculturação dos povos, foi a atuação da Igreja na conversão desses homens

chamados bárbaros, cristianizando-os, que os fez abandonar costumes cruéis e ir

adquirindo noções de bem, justiça e direito.

102

Símbolo de poder e força. 103

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 53. 104

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 90.

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A Igreja, então, intervém para canalizar energia guerreira desses povos

para uma causa nobre, isto é, construir uma nova Civilização, longe dos costumes já

decaídos dos romanos do século V e das atrocidades que faziam parte da cultura

desses povos.

São Bento, no reino de Nápoles, São Bonifácio na Germânia, Santo

Agostinho e São Patrício na Inglaterra e na Irlanda encabeçaram a conversão de

inúmeros indivíduos destes povos brutos e violentos a quem foram levados muitos

benefícios como educação das crianças, construção de casas de pedra ao invés de

choupanas e especialmente a deixar a prática das “ordálias”, insistentemente

condenada pelos Papas, onde as contendas jurídicas eram decididas por

combate105.

Os bispos adquiriram, por tal atuação, grande respeito desses povos e,

por conseguinte, se tornaram autoridade diante deles.

Importante lembrar que, outra instituição surgida nos primeiros séculos

entre os cristãos mais piedosos, com intuito de estabelecer um estilo de vida mais

austero e liberto dos pecados da sociedade, teve forte influência na cristianização

dos campesinos, qual seja o monaquismo, pois até então a religião era

essencialmente urbana106.

O vocábulo “monaquismo” é originado do grego “moncos”, que significa o

que está só. A vida cristã monástica tinha a intenção de ser um vida retirada, de

silêncio e oração. Esses primeiros cristãos retirados eram conhecidos como

eremitas. Contudo, antes dos cristãos houve monges em outros lugares, de outras

filosofias e religiões, como os essênios na Palestina.

Na Igreja primitiva, os cristãos tinham como modelo deste tipo de vida,

Santo Antão (251-365), que é tido como o patriarca do monaquismo. Ele era

proveniente de família aristocrática, mas deixou tudo e retirou-se para o deserto,

quando conheceu o evangelho de Cristo.

Na vida eremítica os monges viviam em silêncio trabalhando na

confecção de cordas, cestas, esteiras e dedicando muito tempo à oração; os jovens

iam consultar os anciãos a respeito de seu tipo de ascese. Com o decorrer do

105

Ordália ou ordálio eram meio de obter prova em juízo, por meio de testes de resistência (combate, fogueira, água fervente), a fim de provar-se a inocência ou a culpa do acusado; também se chamava juízo de Deus. 106

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 65-67.

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tempo, a vida eremítica foi sendo substituída pela vida retirada em comunidade, ou

cenobítica, que era normalmente regida por uma regra para controlar os “exageros”.

Assim, “o primeiro mosteiro data de 320; fundou-o São Pacônio de

Tabenisi, a 575 km ao sul da atual cidade do Cairo”.

Esses primeiros monges ficaram conhecidos como os “Padres dos

Deserto”, que deixaram escritos até hoje estudados.107

São Bento de Núrsia († 547), de nobre família rural, é considerado o

“patricarca dos monges ocidentais”. Escreveu sua regra inspirado pelo senso de

equilíbrio e discrição dos romanos:

A regra de São Bento se tornou um marco na salvaguarda e organização que a Igreja assumiu nos tempos bárbaros; e por isso, atraiu a muitos, até hoje. [...] ensina em sua Regra que o verdadeiro monge devia ser: “Não soberbo, não violento, não comilão, não dorminhoco, não preguiçoso, não murmurador, não detrator...mas casto, manso, zeloso, humilde, obediente” (2º Cap. da Regra). O “logotipo” monástico continha a cruz e o arado, e tornou-se a uma nova maneira (sic) de viver a vida cristã – oração e trabalho – para edificar espiritual e materialmente a nova sociedade, sobre as ruínas do mundo romano108 .

Os mosteiros eram oásis de paz e ordem durante as turbulentas invasões

bárbaras. Vários grupos de origem bárbara se interessaram pela vida monástica,

pois eram sempre recebidos como se fossem o próprio Cristo e assim foram sendo

evangelizados e civilizados, sendo este fato, em grande parte, responsável pela

reconstrução do Ocidente.109

Outra maneira de “cristianizar” os bárbaros foi a instituição da Cavalaria:

Num momento em que realmente havia situações de opressão, a Cavalaria surgiu como força de fiscalização social e, ao mesmo tempo, como tentativa de restabelecer o equilíbrio perdido a partir da queda do Império Romano, quando passou a não haver praticamente nenhuma autoridade centralizadora. Esse foi o momento histórico em

que veio à luz a Cavalaria.110

107

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,

2012, p. 66-67. 108

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,

2012, p. 70-71. 109

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,

2012, p. 72. 110

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.

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Apesar de os germânicos já se reunirem em cavalaria, após a influência

cristã o costume ganhou novo sentido. Por meio desta corporação a Igreja ensinou

aos povos bárbaros a respeitar o direito ao invés de decidir as questões por meio da

força.

Com efeito, na Cavalaria filhos de nobres e plebeus se tornavam iguais,

ao menos no ideal que o grupo queria alcançar. Lá dentro já não importava mais

quem era proveniente da aristocracia e quem era plebeu: todos se consideravam

irmãos. Surgia aí o sentido de fraternidade111.

No século IV, em sua obra “A Cidade de Deus” Santo Agostinho112

procurou dar uma resposta ao caos instalado na sociedade ocidental da época

difundindo a fé no Poder e Onisciência de Deus, além da necessidade de submeter

a Cidade dos Homens (mundo terreno) à Cidade de Deus (cuja autoridade fora dada

no mundo à Igreja).

Destarte, a mensagem de uma vida futura, post mortem, bem como de

uma moral fundada nas virtudes e no bem comum, foram responsáveis por mudar a

concepção de vida do povo à época.

1.5.2 Os Sacro-Impérios Romanos: Franco e Germânico

Com o passar do tempo a Igreja vai tomando, então, como meta,

estabelecer o Reino de Deus sobre a terra, o que significava associar-se ao poder

terreno e submetê-lo ao poder de Deus, a fim de colocá-lo a serviço desta “missão”.

É o que se denominou de hierocracia, ou seja, onde o poder religioso se

impõe ao poder temporal, controlando-o, pois concebe a ideia de que o poder

espiritual na terra é superior ao poder exclusivamente terreno.113

Os francos foram os que primeiro abraçaram o Cristianismo, por meio de

seu rei Clóvis, no final do século V:

111

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. p. 93. 112

AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A Cidade de Deus: (contra os pagãos). Parte II; Tradução de Oscar Paes Leme, 2ª. Ed., Petrópolis: Vozes e São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990, p. 171-179. 113 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado

Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 290.

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[...] o monge São Remígio de há muito procurava converter o rei dos francos, Clóvis, cuja esposa, Clotilde, era cristã. Na batalha de Tolbiac, contra os borguinhões, que disputavam o Reno, Clóvis prometeu tornar-se cristão se vencesse os inimigos. Vitorioso, cumpriu sua palavra, fazendo-se instruir e batizar por São Remígio, que então lhe disse: “Adora o que queimaste e queima o que adoraste”. Com ele se fizeram batizar todos os seus súditos e, por isso, a nação dos francos ou França recebeu o título de “filha primogênita da Igreja”. No local do batismo se ergueu a célebre catedral de Notre Dame de Reims, onde foram sagrados todos os reis da França.114

Surgia, assim, o Sacro Império Romano Franco, ao qual o rei visigodo da

Espanha, Recaredo, se une em 587. A tentativa da Igreja era de manter sua

autoridade, sagrando os reis, que somente assim se tornariam legitimamente

governantes do Império.

A legitimidade do governo temporal era conferida pela submissão ao

governo de Deus, representado pela Igreja.

No ano de 751, Childerico III, o último rei da descendência de Clóvis, é

deposto por Pepino, o Breve, que mantém relações com a Igreja, e é coroado pelo

Papa em 754. Dois anos antes, os dois haviam firmado uma aliança pela qual

Pepino havia sido reconhecido como rei dos francos e em contrapartida estabelecia

o Estado Pontifício, cuja autonomia de governo era do bispo.

Isto ocorreu em virtude das péssimas consequências provenientes do

domínio exercido até então pelos imperadores sobre a Igreja especialmente na

questão das chamadas “investiduras leigas”, por meio das quais o imperador era

quem nomeava bispos e papas. Houve época em que os imperadores chegaram a

nomear doze papas e destituir cinco.

Eram condutas, posteriormente denominadas de regalismo115 e

cesaropapismo,116 que visavam a utilização da religião com fins políticos o que

114

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 90. 115

Atitude de ingerência do chefe de Estado em questões internas da Igreja. 116

O cesaropapismo representa uma tentativa de restauração do sistema pré-cristão que unificava os dois poderes na pessoa do imperador. A tendência iniciou-se com Constantino, que chegou a dizer “tudo o que eu quero deve considerar-se um cânon” (ou lei eclesiástica); [...] o nobre ou o rei que construía uma igreja ou mosteiro no seu território, julgava-se possuidor de certos direitos sobre a direção da Igreja e a nomeação ou destituição do sacerdote, ou do bispo que nela exercia as funções eclesiásticas. Portanto, a consagração episcopal converteu-se, por vezes, num instrumento político ou administrativo em benefício do rei ou do nobre, deturpando-se, assim, a essência dos ofícios eclesiásticos (LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado – 2ª. Ed. atualizada,

Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 65-66)

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resultou em práticas detestáveis como a simonia (venda de cargos eclesiásticos) e o

nicolaísmo (clérigos casados ou que viviam em concubinato).

Com Pepino, então, se reconheceu que o Estado não poderia determinar

questões internas da Igreja, que passou a ser reconhecida como um Estado

independente, o Estado Pontifício.

Poder e autoridade passaram a caminhar lado a lado na construção do

Sacro Império, inaugurando-se com Carlos Magno, herdeiro do trono do pai, Pepino,

um reinado longo (768-814), de conquistas militares e conversões, até culminar com

a conquista da Germânia e sua integração ao Império, posteriormente denominado

Sacro Império Romano Germânico.

Carlos Magno, no ano 800, recebe a coroa imperial do Papa Leão III que

intencionava fortalecer o imperador cristão, já que o oriente se enfraquecia diante da

questão iconoclasta117 e o avanço dos muçulmanos. Ele foi responsável por

defender a cristandade das invasões de eslavos e avaros, avançando, com isto para

a Península Ibérica.

Com efeito, Carlos Magno consegue reunificar o Império Romano do

Ocidente e obter tal poder somente comparável ao ápice da Roma Imperial Antiga.

Esse período foi reconhecido como o “renascimento carolíngio”, pois ali

se desenvolveu a escrita: “é aos clérigos copistas da Alta Idade Média e a seu

trabalho obstinado, em um meio, não obstante, pouco favorável, que devemos a

conservação do essencial da literatura latina antiga”.118

A gramática e a retórica se tornaram disciplinas mestras do saber

carolíngio, que teve sua base na propagação do ensino do latim.Houve o

desenvolvimento de técnicas que permitira a expansão da liturgia, bem como o

renascimento artístico com a inovação da arquitetura e a construção de grandes

catedrais.

1.5.3 O Feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio

Como se viu, segundo o pensamento medieval, Papa e Imperador

117

Movimento de caráter político-religioso que pregava a destruição de imagens e que destruiu inúmeras obras de arte da época. 118

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 75.

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deveriam colaborar entre si para a plena instauração da cidade de Deus na cidade

dos homens.

Entretanto, os interesses de poder e mando se sobrepujaram a quaisquer

outros interesses, resultando não uma relação de simbiose, mas de parasitismo

entre o poder do Estado e a autoridade da Igreja, que acabou sendo usada com

intuito de domínio e manipulação do povo, seja pelos que nela ingressavam, seja

pelos reis que lhe prometiam obediência.

Houve por esta razão muitos desvios de conduta de clérigos imorais,

venda de indulgências e práticas que em nada lembravam a Cidade de Deus de

Agostinho.

A classe dominante no Ocidente medieval, a aristocracia, vai ganhando

poder. Esta classe social é caracterizada pela conjunção de três atividades, quais

seja, o comando dos homens, o poder sobre a terra e a atividade guerreira.

Tornaram-se os senhores feudais:

[..] o insucesso da tentativa carolíngea livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império, que, ao contrário, perdurará em Bizâncio. No século X, a disseminação do poder de comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e à “paz de Deus”. Ao mesmo tempo, o processo de encelulamento e o estabelecimento dos senhorios obrigam-na a uma viva reação para evitar tornar-se prisioneira da malha senhorial e a fim de, ao contrário, ser sua principal ordenadora.119

Com isto, desde final do século IX o poder imperial começa a se

enfraquecer, e a desenvolver-se o sistema de feudos:

O século X é, assim, o tempo dos “principados”, grandes regiões constituídas em condados ou ducados, cujo senhor confunde aquilo que concerne a seu próprio poder, militar e fundiário, com a autoridade pública, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei.[...] Esses senhores feudais encampavam o exercício da justiça e o direito de construir castelos, antes prerrogativa da autoridade real.120

A Cavalaria torna-se porta de entrada da aristocracia mesmo aos que não

detinham nenhum título de nobreza, apenas pela assunção dos ideais do grupo, os

119

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184. 120

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 126.

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quais são fortemente influenciados pela Igreja. Os castelos são os pontos de fixação

em torno dos quais se define o poder aristocrático. Seu fundamento é o código de

honra, que impõe o dever de vingança, donde resultou grande violência entre os

feudos.

Note-se que, bem ao contrário do que é propagado “aos quatro ventos”,

os reis, nesse período, detém um poder simbolicamente prestigiado pela sagração

da Igreja, mas que, de modo algum significava poder dado por Deus:

Entretanto, diferentemente do basileus bizantino, que tem o estatuto de um sacerdote, os clérigos ocidentais apressam-se em ressaltar que o rei permanece um laico e recusam com veemência toda evocação explícita dos reis-sacerdotes bíblicos [...] e os clérigos não se privam de insistir sobre as obrigações que incumbem ao rei em virtude da consagração. [...] o rito põe a realeza em uma forte dependência simbólica em relação ao clero e seus representantes eclesiásticos (grifo do autor).121

Os feudos se tornaram pequenos Estados, nos quais a Igreja se fez

presente especialmente por meio da Cavalaria, onde, através dos rituais e ética

cavalheiresca, introduziam-se valores cristãos.

Esta época se caracterizou pela descentralização do poder entre os

senhores feudais e a presença da autoridade da Igreja por meio dos bispos locais,

onde o domínio sobre os “bens terrenos” era representado pelos reis aos quais os

senhores feudais deveriam se submeter: “Quem resolvia as questões judiciais dentro

de um feudo era o senhor feudal, mas de sua decisão cabia recurso à autoridade

real, em segunda instância”122.

Vale dizer com José Pedro Galvão de Souza:

A Igreja salvara o depósito de cultura dos tempos clássicos, recolhidos nos conventos e, assim, preservado da destruição pelos bárbaros, e por outro lado, domava o furor bélico dos germanos com instituições adequadas a este fim, como a cavalaria e a trégua de Deus. Passava-se a considerar todos os homens como filhos do mesmo Deus, remidos pelo sangue de Cristo, e assim a escravidão desaparecia aos poucos, substituída pela servidão da gleba, e a todos eram reconhecidos os direitos naturais da pessoa humana.123

121

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184. 122

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª Ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 131. 123

SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p.

142.

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O regime feudal se configurava como uma hierarquia de pessoas e de

terras sob o aspecto do direito privado, mas no campo do direito público o que o

distinguia era a divisão da soberania, que deixa de pertencer ao imperador e passa

a pertencer a cada senhor.124

Nesse cenário, havia uma classe excluída do sistema que introduzia o

clero, como classe superior e responsável pelo aspecto religioso, em seguida a

aristocracia guerreira e, por fim, o povo camponês, trabalhador.

Tal classe excluída da sociedade da época era a burguesia, sedenta de

liberdade, caracterizada por mercadores e mestres de ofício. Começam a formar-se

as comunas urbanas numa associação entre burguesia e aristocracia, que ora é

governado por uma, ora por outra.125

A partir do ano 1050 se inicia um novo tempo para o cristianismo

culminando com a ascensão ao papado de Inocêncio III (1198-1216), que conseguiu

orientar a Igreja segundo a fé cristã e restabelecer a paz.

Todavia, “Durante a Alta Idade Média o mundo cristão em seu conjunto

está na defensiva, amputado e sob ataque. O Império Islâmico dispõe de uma força

esmagadora comparada à de Bizâncio126”.

A ideia de uma reconquista dos territórios dominados pelo Islã ganha

corpo: “os meados do século XI aparecem como o momento decisivo em que se

engaja a contraofensiva ocidental para fazer recuar o Islã”.

Dois séculos antes se inicia o movimento em direção à reconquista do

Oriente especialmente Jerusalém e os lugares santos, por meio das Cruzadas. Em

1098 Antioquia é tomada, no ano seguinte, Jerusalém:

O sucesso da cristandade latina é brilhante. Mas a defesa dos territórios conquistados, em um contexto hostil, é difícil, apesar da criação de ordens específicas – Templários, Hospitalários e Cavaleiros Teutônicos – que, encarregados no início de acolher e proteger os peregrinos, logo adquirem papel propriamente militar. A implantação latina mantém-se sólida somente por um século. [...] Em 1187, Saladino do Egito retoma Jerusalém. O imperador Frederico

124

SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p.

143. 125

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 147-148. 126

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 90

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66

Barba-Ruiva se lança na cruzada, obtém a vitória de Iconium, mas morre afogado em 1190. Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto ganham São João de Acre e assinam um armistício com Saladino. Durante o século XIII, os ocidentais não controlam mais do que algumas cidades costeiras. 127

As cruzadas se mostraram um malogro com o decorrer do tempo e

reafirmaram o cisma entre a ortodoxia do oriente e a cristandade romana ocorrido

em 1054, em virtude de questões doutrinárias.

Luta acirrada ocorreu entre o Imperador Henrique IV e o Papa Gregório

VII, monge da abadia de Cluny, eleito em 974 pelo Colégio dos Cardeais128 para

administrar a Igreja. O referido Papa iniciou uma série de mudanças para alcançar a

independência da Igreja que na época sofria ingerência do Imperador na nomeação

dos clérigos. Houve longo período de discórdia que incluiu a excomunhão do

Imperador e o exílio do Papa.

Passadas algumas décadas, em 1122, Henrique V entrou em acordo com

o Papa Calisto II e foi firmada a “Concordata de Worms” pela qual há uma

separação dos poderes do bispo entre aqueles temporais, que passam ao imperador

e aqueles espirituais, cuja investidura só poderia ser realizada pelo próprio bispo. É

novamente a tentativa da Igreja de retomar o poder de nomeação dos próprios

bispos. Sobre a Concordata de Worms atesta Baschet 129que:

Distinguir-se-ão os poderes temporais do bispo (temporalia) e seus poderes espirituais (spiritualia), de modo que o imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro, enquanto os últimos são objetos de uma investidura pelo anel e pelo cajado, que só pode ser realizada por outros clérigos. Sobretudo o princípio da libertas ecclesiae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger seu bispo, o tem como efeito retirar dos laicos (imperador, rei ou conde) o controle do recrutamento episcopal. [...] Essa modificação no recrutamento dos bispos revela-se, então, propícia à defesa dos interesses da Igreja e a uma separação (e uma concorrência) mais marcadas entre o alto clero e a aristocracia laica, o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormente. (grifo do autor)

127

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 93. 128

Os clérigos da Abadia de Cluny, na França começaram uma manifestação para exigir autonomia à Igreja, que queria tomar o poder de escolha de seus membros para si. Em 1058 foi criado o Colégio dos Cardeais. O papa Nicolau II, seu criador, tinha como prioridade dar aos clérigos o direito soberano de escolha dos líderes religiosos. E então foi eleito Gregório VII como papa. 129

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 191.

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67

A partir de 1190 impõe-se na Igreja uma estabilidade com a

reorganização da cúria e a afirmação do poder do Papa em detrimento do poder

local dos bispos. Esse período se caracterizou por uma marcada separação entre

clero e leigos, consolidando-se o termo Igreja para o clero e cristandade para o

povo.130

Nessa mesma época nasce Francisco (1181 ou 1182), vindo de família

burguesa que após uma experiência mística renuncia à herança de seus pais,

inclusive à roupa que vestia, e abraça as exigências de uma vida na pobreza radical.

Sua mensagem é inovadora, pois anuncia a simplicidade e a penitência.

Continuando sempre leigo provoca uma mudança de comportamento que atraiu

inúmeros seguidores. Jamais atacou diretamente a autoridade e o modus vivendi

dos clérigos. Foi considerado um reformista dentro da própria Igreja.

Nisto lhe seguiu Catarina de Sena e, em seguida, Domingos de Gusmão.

Este, ao contrário de Francisco, optou pela carreira eclesiástica tradicional, ainda

que sua ordem fosse mendicante, como a do poverello. Dedicou-se à pregação e ao

combate das heresias, daí seus sucessores terem assumido as tarefas inquisitoriais:

A despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as aproxima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práticas bastante semelhantes [...] Os frades pregadores, caracterizados pela sua vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade), vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido) e reconhecidos, como Francisco pela simples corda com um nó atada à sua cintura, são talvez 2.500, por volta de 1250.131

A partir do século XII a cidade é sem dúvida um mundo novo. De início é

hostilizada pela Igreja por ser lugar de pecados e tentações, porém alguns

importantes setores abrem-se ao fenômeno urbano e colaboram para o

estabelecimento de uma religião cívica.

130

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196. 131

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 214.

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É o que ocorreu com tais ordens mendicantes. Estes se diferenciam dos

monges, pois desejam manter-se em meio aos fiéis pregando e dando exemplo,

instalando-se no coração das cidades.

Desenvolvem-se nessa mesma época, no seio da Igreja, as

universidades, que, posteriormente, assumem a independência por meio de seus

estatutos. Destacam-se dentre elas Bologna, Oxford, Cambridge, Montpellier,

Salamanca, Nápoles e Pádua.132 A escolástica é seu método por excelência para

buscar associar a fé e o intelecto, ampliando os métodos de raciocínio e

argumentação.

Nesse contexto surge Tomás de Aquino, dentre outros, que tinham como

objetivo “sintetizar e esclarecer, pela força do raciocínio, o conjunto dos problemas

relativos a Deus, ao homem, ao universo e à organização da sociedade”.133

Por fim, é necessário concluir que a Igreja é, na Idade Média, a própria

organização social e sua dirigente. Estão absolutamente unidas nessa mesma

instituição a questão social e a religiosa:

A estruturação da cristandade, pensada como uma comunidade homogênea sob direção de uma instituição eclesial reforçada, produz, com efeito, um duplo movimento, de integração para os fiéis ajustados e de exclusão para os não cristãos. 134

Assim, a Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na

sociedade tornando-a teocêntrica, com a concepção do papa como a representação

do poder divino na terra.

Ao longo da primeira metade do século XIV a Idade Média se encontra

num momento de muitas dificuldades: fome geral, peste, guerra, cisma.

Estima-se que um terço da população do Ocidente morreu em razão da

peste bubônica.135

A Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França eclodiu quando o rei

inglês Eduardo III quis o trono francês após a morte de todos os filhos de Filipe, o

132

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 215. 133

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 216. 134

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 243. 135

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 250.

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Belo, sem deixar descendentes. A destruição foi muito mais devastadora do que

guerras anteriores, pois haviam sido desenvolvidas novas técnicas da arte militar

como arcos e bestas.

Acresça-se a isto o advento do grande Cisma que dividiu a Igreja Romana

entre 1378 e 1417 em virtude da eleição de dois papas ao mesmo tempo estando

um em Roma (Urbano VI) e outro em Avignon onde o papa Clemente V, em 1309,

se instalou com a cúria numa espécie de cativeiro. A situação se resolve somente

mediante o Concílio de Constança (1414-1418) com a eleição de novo papa,

Martinho V: “O pessimismo invade os espíritos e o sentimento de viver em um

mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais presente do que nunca”.136

Segundo a análise de Baschet atribui-se ao cristianismo a capacidade de

separar o humano do divino, onde Deus não se confunde com a natureza ou o

homem, mas ao qual se pode chegar pela transcendência e

Enquanto as religiões anteriores se propunham a reger o aqui embaixo, o investimento no além, que caracteriza a cristandade tende, a despeito dos efeitos contrários induzidos pela institucionalização da Igreja, a liberar parcialmente o mundo do peso da religião e a preparar a aceitação e o amor às realidades terrestres. Assim, à medida que ele assume a dinâmica da transcendência – à medida que, se quisermos, Deus se retira do mundo – o cristianismo amplia a possibilidade de uma ampliação do real e de um conhecimento racional dele. Com o tempo, a dinâmica da transcendência produz uma ruptura entre o ser e o dever ser, que torna capaz de se por ao mundo, para afrontá-lo e transformá-lo [...] e a modernidade resultaria não de seu enfraquecimento, mas da radicalização de suas potencialidades.137

Essa forma de adotar o cristianismo no Ocidente não ocorreu em

Bizâncio, onde Igreja, separada de Roma desde 1054, e Império mantiveram uma

relação de sobreposição e de submissão à tradição que acaba por intimidar a

dinâmica teológica.

Neste sentido, Jérôme Baschet afirma que, no geral, “a Cristandade

medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma

teocracia, na qual a Igreja deteria efetivamente a soberania dos negócios

temporais”, mas no seu sentido mais combativo pretendia mais manter a “monarquia

136

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 251-252. 137

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 533.

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pontifícia” sobre todos os outros poderes do Ocidente, fazendo-se reconhecer o seu

líder como guia da cristandade.138

Em sua visão a Igreja era a própria forma da sociedade medieval feudal,

sua principal força motriz:

De fato, o Ocidente é um corpo social unificado principalmente pela Igreja. É devido a ela, em primeiro lugar, que o feudalismo não é caracterizado unicamente pela força da inscrição local e do vínculo ao solo, mas pela articulação desse poderoso localismo com uma ampla unidade tendendo ao universalismo. Immanuel Wallerstein nomeava “civilização” este tipo de coesão, mas é possível lhe dar também seu nome próprio: cristandade.139

E disto resulta

a um só tempo, uma notável coesão interna, uma acumulação de forças materiais, um elã criativo e uma força de expansão para o exterior [...] o feudalismo cria uma poderosa dinâmica que conduz ao desenvolvimento interno e à expansão externa, mas sem os custos e os fardos que seriam impostos por uma unificação imperial.140

Infelizmente, essa ideologia universalista acabou por desembocar num

acesso de intolerância e exclusão de outras religiões, no intuito de implantação dos

valores cristãos, certamente em razão do ânimo bélico da sociedade da época.

No século XV há uma recuperação da Europa contra a peste e as guerras

e ocorre um grande aumento demográfico, quase igualado ao período anterior à

peste. Há transformações na economia com o surgimento de uma elite camponesa e

o crescimento do comércio, e a invenção da imprensa e de muitos outros

instrumentos, inovações tecnológicas, sem mencionar as Caravelas que permitiram

as aventuras pelo Atlântico.

Porém, a baixa da guerra e da peste deixou acéfalos os principais feudos

da Europa, fazendo com que os reis, se aproveitando da fragilidade momentânea e,

com o apoio da burguesia, se apoderassem de todos os reinos particulares para

realizar a unificação do Estado, sob seu poder absoluto: “No século XVI, a

138

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196. 139

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539. 140

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539.

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centralização já se havia realizado quase que inteiramente em países como

Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Alemanha”.141

Pois bem, o desenvolvimento ocorrido nesse ínterim se deu na Idade

Média e não no Renascimento como muitos passaram a crer. 142

Por tudo isto, se pode afirmar que a “ruptura que leva à concepção

moderna da história não se produz antes da segunda metade do século XVIII”. 143

141

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 139. 142

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 262. 143

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 547.

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2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA

As cidades antigas da Grécia e Roma foram fundadas sobre a religião e

exerciam enorme força sobre seus membros, que se sentiam moralmente obrigados

a seguir tais leis:

[...] o cidadão estava em tudo submetido à cidade, sem reserva alguma: pertencia-lhe inteiramente. [...] A religião que dera origem ao Estado, e o Estado que sustentava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; esses dois poderes associados e vinculados constituíam um poder quase sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente

submetidos.144

Não fazia sentido falar em escolhas individuais, a pessoa humana não

tinha grande valor diante desta autoridade suprema da cidade, isto é, a pátria ou

Estado, daí adveio a máxima de que a salvação do Estado é a lei suprema.

Pensava-se que o direito, a justiça e a moral, tudo devia ceder perante o interesse

da pátria.

Na era seguinte verifica-se que, a ideia inicial do Cristianismo referente ao

dualismo do poder acabou se dissolvendo na prática desde que a Igreja passou a

servir de degrau político a quem almejava o poder.

Assim, Igreja e Estado se mesclavam e, como se viu, isto foi desfavorável

tanto para um quanto para o outro, pois não apenas resultava na autoridade da

Igreja sobre o poder do Estado, como na ingerência dos reis sobre questões

próprias da Igreja, que acabava servindo a fins políticos, desvirtuando-se do

caminho originário.

E, visto isto, percebe-se que a antiga concepção cristã de que há poderes

distintos para o comando do mundo sensível e o do mundo espiritual, acabou se

dissolvendo, acabando por gerar um “Estado-Igreja” ou “Igreja-Estado”, o que,

repita-se, não teve consequências positivas nem para um nem para outro e muito

menos para o povo.

De todo modo, ficou demonstrado que a confusão entre sacerdócio e

poder nada tem de surpreendente. Não foi encetada pela Igreja Cristã, encontramo-

144

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 182.

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la na origem de quase todas as sociedades, seja porque na infância dos povos só a

religião pode obter a obediência, seja porque a nossa natureza sente a necessidade

de não se submeter a outra autoridade que não seja a concepção moral 145. Os

homens temeram antes os seus deuses do que a lei que se lhes impôs.

2.1 Os Tempos Modernos e o Advento do Humanismo Antropocêntrico

Chama-se Idade Moderna a era decorrida entre a tomada de

Constantinopla pelos turcos em 1453 e a Revolução Francesa de 1789. E foi iniciada

pelo movimento do Renascimento que estreou a ruptura do Estado com a Igreja e o

retorno à cultura greco-romana.

Neste sentido, o Renascimento foi um movimento que representou a

rejeição do espírito teocêntrico da Idade Média, totalmente imbricado pela Igreja,

pregando um retorno ao ideal de vida da Grécia e Roma antigas: “[...] os

renascentistas concebiam a arte como os gregos e romanos da Era Clássica,

portanto, de um modo naturalista, muito diferente dos medievais, que tudo

sobrenaturalizavam.”146

Nesse período surge na literatura a Divina Comédia de Dante Alighieri,

que busca uma fusão do espírito religioso medieval com o greco-romano. Ainda,

Francesco Petrarca que se afasta mais do espírito medieval para glorificar o amor

ideal, aproximando-se, assim, da filosofia platônica. Mais próximo ao espírito

renascentista e sem quase traços de medievalismo está Giovanni Boccacio em seu

Decameron.147

Nos corredores dos palácios reais e papais as esculturas de Michelangelo

faziam reviver a Roma antiga. É a época das obras de Leonardo e Rafael na Itália,

de Camões e Miguel de Cervantes na Península Ibérica, de Shakespeare no norte

da Europa.148

145

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 141. 146

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 133. 147

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 134. 148

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 134.

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Entretanto, o historiador Jacques Le Goff afirma que a ruptura pretendida

pelos renascentistas não é tão verdadeira assim. O que de fato ocorreu foi uma

continuidade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e o Renascimento:

“Ao contrário, o Renascimento é a marca de uma Idade Média prolongada e a

modernidade dos Tempos Modernos dever ser 'guardada entre as velharias'”.149

No mesmo sentido a observação de De Cicco sobre a suposta ruptura do

Renascimento com o pensamento medieval:

Um exame mais profundo nos mostra que não houve mudança fundamental na concepção do homem e do universo, ao menos no que se refere aos padrões de pensamento do século XV. O que houve – e isto não se pode negar – foi uma nova voga de antropocentrismo; mas o peso da civilização e cultura medievais ainda continuava a se fazer sentir, mesmo em países poderosamente influenciados pela Reforma Protestante. Foi o caso da Inglaterra, que, com Henrique VIII, adotou a forma de “Igreja Nacional”[...]150

A era moderna pode ser considerada como uma época de revolução

social, onde a principal articulação foi no sentido da substituição do modo de

produção feudal pelo modo de produção capitalista, dado o fortalecimento do

comércio e a decadência da produção agrícola.

Por outro lado, o Estado absolutista, concentrador de todo o poder, fosse

civil ou religioso, foi a primeira modalidade do Estado Moderno, que posteriormente

sofreu as revoluções francesa e inglesa, derrubando os respectivos reis.

A Era Moderna se caracteriza sobretudo pela transformação na

mentalidade dos homens e o surgimento de uma nova visão de mundo: O

humanismo antropocêntrico, em que o homem ocupa a posição central de todas as

coisas, o que conduziu a um novo modo de vida e novas instituições.

No entanto, no início o Renascimento não representou a ruptura com o

cristianismo e a Igreja e sim uma composição entre os valores da antiguidade

clássica e aqueles do cristianismo do medievo:

Este renascimento teocêntrico (que poderia ter como grandes representantes Tomás Morus e Luís Vives) constituiu uma culminação do pensamento tomista e ao mesmo tempo uma

149

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução

Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 531. 150

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 137.

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superação dos aspectos primitivos e arcaicos da cultura e ordem social medievais: ampliam-se os campos visuais da ciência e da liberdade humana, aos quais se deve, em grande medida, a riqueza cultural dos tempos modernos.151

Não obstante, outra corrente mais “ruidosa”, que tem em Maquiavel e

Boccacio sua cabal expressão, efetivamente trasladou o centro da cultura e da

sociedade de Deus para o homem. O homem se converte na medida de todas as

coisas e valores. Daí o humanismo se tornar antropocêntrico.

O Humanismo do Renascimento preparou o campo para a ruptura formal

com a Igreja, contribuindo com a Reforma Protestante, que se mostrou apenas a

“gota d´água” de um crescente movimento contrário à tradição medieval católica

iniciado com a heresia dos cátaros152 no sul da França.

2.1.1 Reforma e Contrarreforma

Martinho Lutero teria ingressado para o seminário, em 1505, por medo de

morrer, pois viu um amigo a seu lado cair fulminado por um raio no meio de uma

tempestade. Tinha um temperamento enervado e ao mesmo tempo assolavam-no

terríveis crises de escrúpulos, isto é, sentimento de indignidade. 153

O padre Martinho Lutero tornou-se vigário do distrito de Wittenberg na

Alemanha.

Sobre Marinho Lutero atualmente estão superadas as teorias de

perversão moral e deformação psicológica ou mesmo de que seria um mero

professor assoberbado de trabalho que não encontrava mais tempo para rezar a

missa e recitar o breviário.154

Reconhece-se que:

Lutero teve uma experiência pessoal de Deus, um autêntico sentido do pecado e da própria nulidade, da qual se reergueria pelo apego a

151

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 80. 152

O termo deriva do grego “puro” As primeiras menções a essa heresia datam dos anos 1140 e sua crença se balizava pela impureza do mundo material e do corpo, razão de negarem totalmente o casamento e o ato carnal para procriação (cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 224). 153

Cf. DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 142. 154

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares

Moreira. V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 121-123.

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Jesus Cristo e pela confiança cega nEle e em sua redenção. Sua familiaridade com os místicos alemães não teria explicação sem um verdadeiro e veemente desejo de Cristo. A isto se unia uma grande caridade para com os pobres. De outra parte o agostiniano possuía um caráter forte, unilateral, descomedido, exuberante, impulsivo, mais disposto a se apossar da realidade que a aceitá-la humildemente.155

E, ainda:

Isso explica sua forte tendência ao subjetivismo, que o levava a uma interpretação unilateral da Escritura e o tornava pouco disposto a aceitar as diretrizes de quem se apresentasse como mediador entre Deus e o homem. Essa mesma riqueza de vida interior explica o fascínio que ele exercia sobre todos os que dele se aproximavam [...] Mas de seu espírito explodia com frequência uma repentina fúria que o levava a expressões cruas e vulgares e a descaradas mentiras (como no caso da bigamia concedida a Filipe de hessen e negada em público), bem como a críticas exacerbadas a seus adversários, arrasados por uma avalanche de invectivas e impropérios: chamavam-no de doctor hyperbolicus.156

Segundo Giacomo Martina, os historiadores modernos se dividem

bastante em relação às razões da revolução protestante.157

A tese tradicional, que se tornou clássica, é a dos abusos e desordens

morais, sobretudo na cúria romana contra as quais Lutero teria se revoltado.

Contudo, posteriormente, estas concepções foram severamente criticadas, dado que

em outras épocas na Igreja também houve abusos graves, sem que isto levasse a

uma separação com Roma:

Em 1916, o historiador protestante Georg von Below negava incisivamente que Lutero fosse filho de um convento corrupto e se perguntava porque razão a reforma não tivera origem na Itália, onde as condições religiosas e morais não eram melhores que as da Alemanha.158

155

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.

V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 123. 156

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.

V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 123. 157

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.

V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 51-56. 158

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.

V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 52.

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Atualmente católicos e protestantes, analisando melhor as palavras dos

reformadores, estão de acordo que a tese clássica deve ser rejeitada.

O que Lutero realmente questionava eram os dogmas da Igreja que

entendia como superstição quais sejam: a presença real de Cristo na eucaristia, o

sacrifício da missa, o primado do papa, seu magistério supremo e seu direito de

convocar concílios.

Foram sustentados, igualmente, como razões da Reforma, fatores

psicológicos. Uma nova religiosidade era desejada, que se distanciasse tanto da

superstição do povo como da aridez dos doutores eclesiásticos, que eliminasse

intermediários da Palavra de Deus possibilitando seu conhecimento direto, bem

como a certeza do perdão sem necessidade de confissão auricular. A certeza teria

vindo com a doutrina reformada da salvação somente pela fé.159

Há inúmeras outras teses religiosas e políticas sobre a Reforma, que não

cabem neste pequeno estudo, sob pena de um desvio desnecessário.160

Em suma, Lutero em 1510 fez uma viagem a Roma e escandalizou-se

com a venda de indulgências e alegando este motivo passou a atacar a autoridade

papal e negar os sacramentos. Passou a concitar nobres alemães a se apoderarem

das terras eclesiásticas. Declarou-se em rebeldia contra Roma que o havia incitado

a arrepender-se. Traduziu a Bíblia para o alemão e elaborou uma nova doutrina

onde somente a fé era necessária à salvação e seria possível o livre exame e

interpretação da Bíblia, única mediação entre o Cristo e os homens.

A partir da Reforma encabeçada por Lutero outros ramos do

protestantismo foram surgindo, dentre eles o de Calvino, presbiterianismo, que

dominou a Suíça e os Países Baixos chegando a instaurar um Estado Teocrático.161

Na Inglaterra não se adotou integralmente o protestantismo, mas em

virtude de questões pessoais Henrique XVIII encorajou-se a romper com a Igreja de

Roma, em que pese a oposição de Thomas Morus162, Chanceler do Reino. A partir

daí torna-se, ao mesmo tempo, o líder temporal e espiritual do Estado inglês. O líder

maior da Igreja da Inglaterra ou Anglicana é, portanto, até hoje, o rei ou rainha.

159

MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.

V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 55. 160

Sobre essas teorias cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad.

Orlando Soares Moreira. V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 57-115. 161

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 143. 162

Morus foi o célebre autor de Utopia, em que demonstra sua visão coletivista da sociedade, colocou-se dentre os grandes adeptos da tolerância (DE CICCO, op. cit., p. 143).

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78

Como resposta surgiu na Igreja Romana o movimento denominado

Contrarreforma, obra conduzida por jesuítas e dominicanos, e que se configurou

como uma nova escolástica ou “Escolástica Tardia”, que restauraria a teoria do

direito natural não na concepção da cidade de Aristóteles, mas numa concepção de

“cidadãos do mundo” dos estoicos.163

A contrarreforma culminou com o Concílio de Trento em 1545-1563, que

além de definir dogmas católicos condenou o protestantismo, reafirmando o primado

do Papa.

Católicos e protestantes formariam dois partidos políticos que se

envolveriam em lances dramáticos na Idade Moderna e decidiriam a sorte da

Europa.

Houve, então, um período de guerras entre católicos e protestantes, onde

os Estados, por fim, se configuraram com base numa ou outra religião. Assim,

Portugal, Espanha, França, Itália e Bélgica eram redutos católicos. De outro lado,

assumindo a religião protestante, separada do Bispo de Roma, ficaram Inglaterra,

Alemanha, Holanda e Suíça.

A França, entretanto, ficou muito abalada com os grandes conflitos entre

protestantes (huguenotes), então favorecidos pelo rei Francisco I e seu filho

Henrique II, e católicos e iniciou-se uma era de revoluções.

2.1.2 A Era das Revoluções Francesa e Inglesa

As revoluções inglesa e francesa são importantes para se compreender a

caracterização dessa época como de muitas guerras religiosas que influenciaram na

secularização do poder.

Na França, quando em 1560 Carlos IX assumiu o trono, na verdade era

sua mãe Catarina de Médicis, mulher de Henrique II (morto subitamente em

decorrência de um torneio), quem governava. Ela tentou implantar uma política de

tolerância e conciliação entre católicos e protestantes, dando sua filha Margarida de

163

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 146.

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79

Valois, católica, em casamento a Henrique de Bourbon, huguenote (protestante),

que se tornou o segundo na sucessão da França.164

Com a morte de Carlos IX subiu ao trono seu irmão Henrique III, tido

como um devasso e governante incapaz. 165

O povo, entretanto, era simpático da Santa Liga Católica, movimento de

oposição aos huguenotes, chefiado por Henrique de Guise, cujo pai havia sido

assassinado pelos huguenotes, e que era extremamente estimado em toda a

França.

Configurava-se assim a disputa pelo trono entre três Henriques: Henrique

III, irmão de Catarina e rei à época, tido como um devasso e incapaz; Henrique de

Bourbon, o huguenote, e Henrique de Guise, católico.166

O desfecho do embate se deu com o assassinato de Henrique de Guise e

de Henrique III por Henrique de Bourbon que se tornou o herdeiro do trono. Mas sua

condição de huguenote não permitia a assunção do trono do Reino católico:

Foi então que o bearnês “abjurou de seu credo protestante” e se tornou o Rei Henrique, quarto desse nome. Atribui-se a ele, nessa ocasião, a célebre frase: “Paris vaut bien une messe” – que significa o oportunismo de sua conversão. (“Paris vale bem uma missa”). Em 13 de abril de 1598, Henrique IV promulgou o Édito de Nantes, ou “da tolerância”, igualando católicos e protestantes e concedendo a estes cargos e cidades fortificadas, como La Rochelle, por exemplo.167

La Rochelle, uma cidade fortificada, apoiada pela Inglaterra e Holanda,

tornou-se um Estado huguenote dentro de outro Estado, contra o qual se ergueu o

então bispo Richelieu, que, por meio de suas posições e discurso conseguiu a

confiança do rei Luís XIII e combateu navios ingleses para tomar a cidade,

mantendo entretanto, a norma de tolerância, o Édito de Nantes.

Entremeios, a nobreza francesa armou um complô contra o rei para depô-

lo e levar ao trono seu irmão Gastão de Orléans que os atenderia, mas Richelieu foi

informado do golpe e agiu rapidamente para prendê-los e condená-los à morte.

164

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 165

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 166

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 167

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 151.

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80

Assim se fortalecia a monarquia. Richelieu queria levar a França a ser o “fiel da

balança” na Europa, motivo pelo qual lutou na Guerra dos Trinta Anos168 a favor das

nações protestantes.169

O cardeal Richelieu construiu o caminho para o reinado do monarca

absoluto Luís XIV, que acabou merecendo o título de “Rei Sol”. O rei se aliou à

nobreza feudal já bastante reduzida. Revogou o Édito de Nantes, o que provocou

novas guerras religiosas colocando de um lado nações protestantes e, de outro,

católicas. Vencendo os protestantes ganhou as Antilhas e São Domingos na

América e triunfou na Guerra de Sucessão na Espanha, colocando ali seu neto

Felipe D´Anjou. Assim o século XVII ficou conhecido como o Século de Luis XIV.

Entretanto, havia uma tensão crescente entre as estruturas políticas

conservadoras e os pensadores iluministas. O conflito entre uma sociedade feudal e

católica e as novas forças de vertente protestante e mercantil irá culminar

na Revolução Francesa.

O ressentimento do povo francês contra a política fiscal, a indiferença e

decadência da aristocracia se uniu aos ideais iluministas que, juntos, alimentaram

sentimentos radicais, fazendo eclodir a revolução em 1789.

Em consequência, a monarquia absolutista que tinha governado a nação

durante séculos entrou em colapso em apenas três anos. Por sua vez, a sociedade

francesa passou por uma tremenda transformação quando privilégios feudais,

aristocráticos e religiosos ruíram sob um ataque sustentado de grupos políticos

radicais de esquerda.

Antigos ideais da tradição e da hierarquia de monarcas, aristocratas e

da Igreja Católica foram subitamente derrubados pelos novos princípios de Liberté,

Égalité e Fraternité.

Aproximadamente um século antes, na Inglaterra, o trono foi tomado pelo

líder dos puritanos, seita protestante radical, Oliver Cromwell, que acabou com o

Parlamento e se tornou ditador, repelindo investidas de monarcas irlandeses e

escoceses com mão de ferro. A família real inglesa se refugiou na corte francesa.

168

A Guerra dos Trinta Anos decorreu entre 1618-1648 e assim foi denominada por conta de uma série de guerras travadas entre nações europeias por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. 169

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São

Paulo: Saraiva, 2012, p. 153.

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81

Nesse cenário surge a concepção de Estado forte de Thomas Hobbes

(1588-1679), o Leviatã, para aplacar a ferocidade humana, pois em sua concepção

“o homem é o lobo do homem” em total oposição ao pensamento aristotélico de

bondade natural em sociedade.

A grande novidade de Hobbes é que o Estado Leviatã seria formado por

um consenso entre os governados, que renunciariam a sua liberdade natural

aceitando o governo totalitário, governo este que abarcaria tanto a totalidade do

poder civil, como do religioso.

Após a morte de Cromwell em 1658 a monarquia foi reinstaurada com

Carlos II.

Em 1688, pela Declaração dos Direitos (Bill of Rights), punha-se fim à

ditadura e determinava-se a tolerância religiosa. Entretanto, para evitar sobressaltos

puritanos, o Parlamento determinara que nunca pudesse ser rei da Inglaterra um

católico. Com isso garantia-se a sobrevivência da Igreja Anglicana, sem ceder aos

radicalismos.

Insatisfeitos, muitos puritanos passaram a emigrar para as colônias

inglesas da América do Norte.

Nesse período começou a ser colocada em prática a concepção de

divisão dos poderes do Estado com John Locke (1632-1704), passando o

Parlamento a exercer a função legislativa e o Primeiro-Ministro, escolhido pelo

Legislativo, a executiva.

Mais tarde Montesquieu conceberia a divisão do Estado em Três Poderes

Autônomos, acrescendo aos outros dois, o Judiciário.

Era a época do Iluminismo iniciada entre o final do século XVII e começo

do século XVIII, decorrida até a época das guerras napoleônicas (1804-1815).

Como se vê, a era das revoluções francesa e inglesa provocou a

separação entre a autoridade da Igreja e o poder dos reis absolutistas, que

outorgaram a si próprios a soberania, independente de Deus: “O Estado sou eu”,

disse Luis XIV.

E, posteriormente, ocasionou a concepção do poder de governo originado

no povo e não mais no próprio soberano.

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2.1.3 O Liberalismo: a Razão Autônoma

Como se demonstrou, o humanismo antropocêntrico pretendia tornar o

homem o centro da cultura e da sociedade, a medida de todas as coisas, lugar que

antes era concedido a Deus.

Posteriormente, o Iluminismo procurou mobilizar o poder da razão, a fim

de aperfeiçoar a sociedade e o conhecimento herdado da tradição medieval e

acabou promovendo o intercâmbio intelectual. Além disso, foi contra a intolerância e

os abusos da Igreja e do Estado.

Surge daí uma nova concepção de liberdade, o liberalismo170.

A liberdade não se guia mais por um critério objetivo de moralidade ou

verdade e sim na própria vontade do indivíduo, que se torna autossuficiente,

independente de qualquer princípio transcendente, rejeitando qualquer lei

preexistente à própria consciência. Cria-se, assim, no campo filosófico um

individualismo radicado no cogito de Descartes, que passa pelo absolutismo da ideia

em Hegel e chega ao materialismo histórico de Marx e Engels.171

Jacques Maritain172 resume o humanismo clássico desde seu advento no

Renascimento em três momentos nos quais, sucessivamente, a ideia de Deus vai

perdendo o sentido que lhe havia sido dado na cristandade até que no século XX há

sua completa negação.

Assim, no primeiro momento Deus se torna o fiador do domínio do homem

sobre a matéria, é o Deus cartesiano, a transcendência divina é compreendida

racionalmente, a partir da razão humana. No segundo momento Deus se torna uma

ideia, é rejeitada a transcendência divina e uma filosofia da imanência (Deus no

mundo), lhe toma o lugar (Hegel). No terceiro momento é a morte de Deus (Nitsche

e Marx), o qual corresponderia na idade contemporânea ao ateísmo comunista173.

Na verdade, a visão excessivamente unitária do temporal e do religioso

na Idade Média, que não refletia a liberdade cristã em seus fundamentos, acabou

170

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.80. 171

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.83. 172

MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de

Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. 173

MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de

Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional,1942, passim.

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83

por gerar a crítica do Humanismo Renascentista que desejou abdicar da “tutela da

Igreja para permitir uma evolução duma humanidade mais consciente e livre”.174

Nesse sentido, o individualismo encerrava um desejo legítimo de

libertação que acabou por preparar o advento dos direitos e garantias fundamentais

de liberdade perante o Estado, por um lado, mas, por outro, colocou a humanidade

no limiar de uma nova crise de liberdade reconhecida no capitalismo histórico e no

comunismo.

Com isto, a concepção objetiva da verdade e de Deus deixou de existir,

relativiza-se a verdade à medida de cada um. Ora, a negação de uma ideia objetiva

de Deus, tem como consequência lógica a negação de uma ordem querida por

Deus, seja ela social ou jurídica.

Do mesmo modo, a ideia de uma natureza humana se dissipa, ou seja, a

concepção de um Direito Natural anterior, e, portanto, superior ao Direito Positivo,

que pressupõe regras pré-ordenadas provenientes de uma ordem objetiva que

transcende a vontade individual, é superada: “em definitivo, o liberalismo é a

rebelião em face de uma lei natural instituída por Deus para todos os homens”.175

A religião passa a ser assunto privado: “A religião tem um caráter

introspectivo carente de direitos na vida pública”.176

Daí provém a moderna concepção de “liberdade de consciência”, isto é,

cada homem e mulher tem o direito de seguir o que acredita ser a verdade.

É a debandada de setores inteiros da sociedade do domínio da religião.

As instituições ganham autonomia. Não deveria mais ser como no período medieval,

onde escolas, universidades, corporações, associações de artesãos e outros

estavam sob a autoridade da Igreja.

Pois bem, esse embasamento filosófico iluminista moldou uma nova

concepção social e econômica, pois sendo o homem senhor de si, carrega todos os

recursos necessários ao seu desenvolvimento: “não seria originariamente um ser

social” e encarnaria a concepção de que a liberdade individual realiza em si mesma

a “ordem social natural. O que vem a converter-se na suma lei do liberalismo

174

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.87. 175

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.94. 176

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.85.

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econômico, a livre concorrência, o laissez-faire, donde nasce o capitalismo como

uma teoria econômica cientificamente elaborada”.177

2.2 O Fenômeno da Secularização

O liberalismo atingiu radicalmente a questão religiosa. Deste modo, uma

religião não seria objetivamente verdadeira ou falsa, mas sim subjetivamente

reconhecida como verdadeira, isto é, é verdadeira “para mim”. Deus só existe na

medida em que o próprio caráter diz a cada um que existe:

Pela mesma razão que no terreno social desconhece o liberalismo toda responsabilidade comunitária, ignora no plano religioso toda possível solidariedade jurídica e mística, isto é, eclesiástica. E, se o homem no social deverá desvincular-se de toda lei supra-individual, no religioso deverá também libertar-se de toda lei dogmática. Junto do individualismo social surge, deste modo, o individualismo religioso que, no plano pessoal, apresenta a face da liberdade de consciência e, no plano social, a doutrina da separação absoluta entre a Igreja e o Estado.178

Em consequência os Estados Modernos tem de lidar com o fato do

pluralismo religioso, sendo necessário promover a abertura de todos sejam

religiosos, ateus, agnósticos, racionalistas, naturalistas, cientistas, ao diálogo onde

se busquem os limites da fé e da razão na própria dignidade do ser humano.

Não parece nada razoável, deste modo, simplesmente extirpar a religião

deste debate, sob o argumento de que o Estado moderno independe de

fundamentos de fé.

Na ausência do termo secularização, localiza-se o termo secularismo na

lição de Nicola Abbagnano, que, segundo o autor, deriva do latim saeculum:

Originado da reflexão presente no Novo Testamento sobre a diferença entre este mundo (v.,e) ou éon e o mundo celeste - , que

qualifica a ocupação mundana (v. MUNDANO), dada a afazeres terrenos, e não exclusivamente espirituais, por parte de pessoas ou instituições (ainda que eclesiásticas. Surgiu nos séculos XVI-XVII no campo jurídico para indicar a passagem de um religioso ao estado secular ou da transição de propriedades e prerrogativas eclesiásticas a instituições seculares ou laicas; assumiu relevância sociológica,

177

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.83-84. 178

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 84.

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teológica e filosófica entre os séculos XIX e XX, exprimindo mais em geral a relação entre civilização moderna e cristianismo como derivação que comporta a perda de sacralidade. 179

Portanto, o termo deriva originalmente do dualismo cristão introduzido na

sociedade romana do Baixo Império, como já mencionado.

Tratava também da mudança de estado de um religioso para a vida leiga.

Entretanto, o termo secularismo vem sendo empregado erroneamente

como sinônimo de secularização, razão pela qual se faz necessário um breve

esclarecimento, na lição de Roberto de Almeida Gallego:

Com efeito, “secularismo” é uma expressão datada, porquanto diga respeito ao programa da “Londoner Secular Society”, fundada por “G.J. Holyoake, em Londres, em 1846. A expressão “secularismo”, forjada naquele contexto específico, resumia o ideário daquela sociedade, qual fosse o de interpretar e regular a vida prescindindo tanto de Deus como da religião. [...] assume ares de dogmatismo laico, ou verdadeira profissão de fé [...] a secularização, ao revés e em verdade não elimina o Mistério – a dimensão espiritual ou intangível da existência -, já que, na bela expressão de Catroga180, “a finitude não é secularizável”. Assevera, ademais, tal autor, que “secularização não é sinônimo de antirreligião, mas afirmação da autonomia do século”. [...] Por trás desta postura está o sonho de autonomia do homem moderno.181

Pois bem, a secularização é o fenômeno iniciado com o liberalismo que

confere autonomia ao poder temporal ante o espiritual. Em contrapartido ocorre

também o inverso.

Então, significaria a secularização, a morte de Deus?

Muito já se disse e escreveu acerca da “morte de Deus” e do desaparecimento das religiões. O super-homem de Nietsche, em sua virilidade heroica, desaba, dançando, no abismo trágico da existência, olhando superiormente os ressentidos, quais sejam, aqueles que em sua fraqueza não conseguem mirar, sem o filtro de uma crença, o abismo do sem-sentido. Freud, por sua vez, tenta explicar a crença através do mecanismo de projeção desencadeado

179

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi: Martins Fontes, São Paulo: 2007, p. 1027. 180

Fernando José de Almeida Catroga. Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Instituto de História e Teoria das Ideias. 181

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de

Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 281.

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a partir da dolorosa percepção do pai castrado. Marx, ampliando as intuições iniciais de Feuerbach, entende Deus como o produto do processo de alienação através do qual a classe proletária entrega, passivamente, as rédeas do seu destino a um Deus imaginário, com o beneplácito e o interesse da classe dominante, que assim continua a oprimi-la.182

E mais:

O darwinismo, por seu lado, investe contra a ideia de telos na natureza, substituindo a ideia de um Deus criador e ordenador do universo pelo binômio design cego/ vastidão temporal, os quais, por si mesmos, seriam capazes de explicar a vida na terra.183

Mas a religião obstinadamente não desaparece, ao contrário, tem se

afigurado relevante para extensas camadas populacionais ao redor do mundo.

Segundo Roberto de Almeida Gallego estudos tem demonstrado que a

conturbada contemporaneidade, denominada de “pós-modernidade”, tem algumas

características próprias, dentre as quais o niilismo (não haveria qualquer sentido

maior na existência) e o individualismo na relação com o sagrado, bem como o

fundamentalismo como resposta à vulgarização da vida.

Isto porque, o ser humano não suporta a falta de sentido para a vida.

Por esta razão, desde os primórdios: “o sagrado tem sido, nas variadas

civilizações, o verdadeiro organizador do mundo e da vida”.184

Atualmente, porém, a “secularização abriga, em seus contornos, a ideia

de que o mundo imanente é absolutamente autônomo da religião, compreendendo-

se, não mais a partir desta, mas, unicamente, a partir de sua própria imanência”185.

182

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de

Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 281. 183

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de

Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 282. Telos equivale a finalidade e determinação em oposição ao acaso. 184

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de

Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 283. 185

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 87.

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2.2.1 A Secularização e o Desencantamento do Mundo

O direito é fato social e, portanto, objeto da sociologia jurídica, que se

ocupa do relacionamento entre direito e sociedade explorando, cientificamente, esta

relação, com um conhecimento rigorosamente comprovável por métodos e técnicas

de pesquisa: “A tarefa fundamental da sociologia jurídica é definir a (sic) direito como

fato social”.186

Muito bem. O fenômeno da secularização está relacionado a um outro a

que o sociólogo Max Weber187 designou de “desencantamento do mundo”. Em sua

análise com o final da Idade Média e início dos tempos modernos, ocorre a

eliminação da magia188 como meio de salvação ou a racionalização da religião.

Com efeito, o mundo religioso se opõe ao mundo mágico, por ser dualista

no sentido de propiciar distinção entre ação e norma (ser e dever-ser), esta

coincidente sempre com a vontade divina. Aqui os rituais mágicos dão lugar a um

esforço racional para absorver os mandamentos divinos e aplicá-los na vida prática,

sendo este, somente, o caminho para a salvação.

Deste modo, o catolicismo é entendido por Weber como uma religião de

rituais mágicos, pois se acredita que o sacerdote é capaz de oferecer sacrifícios em

expiação dos pecados e absolver o penitente, fazendo uma ligação entre humano e

o divino através dos sacramentos.

No protestantismo se nega os sacramentos e a intercessão de santos,

pois o Deus transcendente não poderia ser conjurado pela prática de rituais

mágicos. Evidentemente que para esta visão de mundo

somente a relação especificamente religiosa com o eterno traz a salvação e esta se dá através da observância diuturna dos mandamentos éticos de estrita regulamentação da conduta humana. A prática religiosa se funde com a atividade cotidiana.189

186 CARNIO, Henrique Garbellini; GONZAGA, Álvaro. Curso de Sociologia Jurídica. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2011, p. 145. 187

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução.José Marcos Mariani

de Macedo, revisão. Antonio Flávio Pierucci, 7ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.106-107. 188

Entenda-se a visão mágica da sociedade em Weber como aquela para qual no mundo existem duas instâncias, uma sendo habitada por seres temporais e outra, não visível, habitada por espíritos do bem e do mal. Nessa sociedade não há um abismo intransponível entre homens e espíritos, posto que estes podem ser evocados pelo fiel, por meio de rituais específicos. 189

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 91.

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Interessante o diagnóstico de Max Weber que entrelaça o protestantismo

(especialmente o calvinismo) e o capitalismo, em virtude da convicção que somente

o chamado de Deus para a atuação no mundo, segundo sua vocação profissional,

lhe daria a certeza da salvação. Não que, de certa forma, se “adquiria” a salvação

pelo trabalho, já que esta competia somente à Graça de Deus, mas a dedicação

diária ao trabalho conferia ao crente a certeza de estar realizando a vontade divina.

Pois bem,

O acúmulo de capital, de modo ascético, no âmbito do trabalho vocacionado, era a única maneira de alguém se certificar de sua salvação. A incerteza da salvação é que obriga o puritano a se dedicar, diariamente, ao trabalho como um dever. Tal trabalho deve ser prestado à conformação racional do cosmos que nos circunda, tendo ele, pois, um objetivo impessoal. [...] o amor ao próximo se expressa, em primeiro plano, no cumprimento da missão vocacional-profissional, o que lhe empresa contornos de objetividade, impessoalidade e racionalidade.190

Desse racionalismo religioso teria brotado o capitalismo, que,

posteriormente, “emancipou-se da religião; entretanto, já se mostrava irreversível no

Ocidente, a racionalização da vida”.191

Ainda na perspectiva weberiana não há falar-se em fim da religião, diante

do processo secular, mas de um realocar de posição, enquanto antes era quem

direcionava a sociedade, agora ficou na esfera do privado, gerando a possibilidade

do pluralismo.

Mas teriam sentido equivalente para Weber o desencantamento e a

secularização? Segundo Roberto de Almeida Gallego, não, pois:

Em uma relação continente-contido, poder-se-ia afirmar que, em

Weber o processo de racionalização é mais amplo e abrangente do que o desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca. O desencantamento, por seu turno, tem duração histórica mais extensa que a secularização e, sob este prisma, contem-na. Certo é que Weber distingue os dois processos, reservando o sintagma “desencantamento do mundo” para a antiga luta da religião

190

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 93-94. 191

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 94.

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contra a magia, e o termo “secularização” para o embate da modernidade cultural contra a religião. E a secularização implica, também, em um desencantamento do direito, que passa a não mais admitir formas outras de dirimir conflitos que não persuasão racional do juiz.192

Significa dizer que, o desencantamento do mundo gera a perda de

sentido, ou seja, a ciência, em última análise, ao transformar o mundo em um

mecanismo causal, desprovido de mistérios insondáveis, retira o sentido místico e

não é capaz de lhe emprestar outro em substituição. Esse desencanto, esta perda

de sentido não seria motivo para que alguém não se sentisse capaz de construir

uma comunidade política terrena, dotada de leis racionais, discutíveis e revisáveis.

Esta é a secularização do Estado.193

2.3 Secularização e Laicidade

Em seu trabalho de doutoramento CASAMASSO (2006, p. 124-215) faz

uma extensa explanação para aclarar a distinção entre secularização e laicidade,

cujas considerações interessam a este estudo e serão descritas de modo

sumarizado a seguir.

Ambos os fenômenos surgem da ascendência do político sobre o

religioso, fator ocorrido no Ocidente moderno que implicou o recuo da religião no

interior da sociedade política e a redefinição de seu papel voltado à esfera privada,

ficando o poder político na mão exclusiva do Estado.

Contudo a secularização foi uma primeira lógica de operacionalização da

supremacia da política sobre a religião e a laicização uma segunda lógica desse

processo.

Foram três os pontos característicos desse processo de emancipação do

poder terreno em relação ao poder espiritual: a Igreja passa a ser uma instituição

como outra qualquer da sociedade, deixando de deter a influência de outrora no

poder; o poder político deixa de estar legitimado por Deus e a cidadania torna-se

independente da religião.

192

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 95. 193

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 96.

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90

A base desta distinção está na dicotomia catolicismo/ protestantismo,

estando a laicização vinculada a países de tradição católica.

Isto porque desde a Idade Média a Igreja Católica se tornou uma potência

que media forças em pé de igualdade com o Estado, pois nascida de uma força

transnacional atrelada ao Império Romano. Assim, a laicidade do Estado significaria

a retirada das pessoas e as diferentes esferas da vida social, da influência da Igreja

Católica.

Já no protestantismo não se vislumbra uma estrutura eclesiástica

hierarquicamente organizada capaz de medir forças com o Estado. De outro lado,

assumem uma identidade profundamente enraizada à nação de onde se originou,

criando entre si uma identidade nacional, caso típico do Estado inglês e a Igreja

Anglicana. O que faria os conflitos entre Igreja e Estado desaparecerem.

Esse fato se confirma na análise entre línguas latinas e línguas anglo-

saxônicas, donde a palavra laicidade do latim não encontraria equivalente nas

línguas de origem anglo-saxônicas.

Por sua vez, a secularização é um fenômeno social e corresponde a um

recuo da religião na humanidade como um todo, numa modificação de costumes e

instituições, com o avanço da ciência e a diminuição da prática tradicional religiosa,

restando a fé como uma escolha e vivência interior.

Outra característica da secularização seria sua influência sobre a própria

religião, que se abriria para o profano. É o caso especificamente das religiões

nacionais, onde o chefe de Estado é também o chefe da igreja, caso da Igreja

Anglicana e da Luterana na Dinamarca.

Neste sentido a laicização é diversa, pois diz respeito estritamente a uma

emancipação do Estado em relação à tutela religiosa ou de razões religiosas da

ação política.

Em suma, secularização se refere à sociedade e laicidade ao Estado: “Ou

seja, na síntese de Émile Poulat, a secularização é um ‘processo social’ e a

laicização ‘um processo legal’”194.

194

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 129.

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91

Significa dizer que o fenômeno da secularização levou o Estado a se

tornar laico, a fim de evitar a ingerência da Igreja nas suas decisões, relacionando-

se de forma neutra com as religiões e o ateísmo.

Pois bem, isto significa que nas sociedades em que a secularização não

tenha sido um processo intenso, o Estado laico certamente irá coexistir com o forte

sentimento religioso de seu povo.

2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade

A tese de Marco Aurélio Lagreca Casamasso refere um problema de

passionalidade no trato da questão da laicidade.195 Esse caráter passional se

evidenciou no final do século XIX, na França, em virtude da polêmica sobre o ensino

religioso nas escolas públicas. O episódio ficou marcado por um forte conflito entre a

França dos católicos e a França dos laicistas, cujos argumentos e atitudes os

identificaram a uma ideologia anticlerical e antirreligiosa.

Portanto, o laicismo institui um princípio filosófico, uma ideologia de matriz

humanista que entende o homem na sua individualidade mais plural, excluindo

qualquer tipo de ligação do caráter individual com o caráter público, social do

homem. A laicidade, ao contrário, situa a individualidade dentro do espaço público,

na sociedade, devendo, assim, o Estado garantir os meios de concretizar este direito

onde nenhum grupo deve ser perseguido, nem, de outro lado, autorizado a se impor

de forma autoritária e totalitária, criando uma sociedade onde o espaço público seja

de todos, sem constrangimentos.

Logo, o desafio é tratar a laicidade não como uma bandeira ideológica,

mas como um instrumento organizador da sociedade política compatibilizando-a

com a ampla liberdade religiosa.

Nesse mesmo trabalho Marco Aurélio Lagreca Casamasso identificou

expressões como “laicidade de combate”, “laicidade aberta”, “laicidade-separação”,

“laicidade-neutralidade”, “laicidade-liberdade”, cada qual com um sentido como:

“ideologia”, “moral”, “cultura”, “pacto”, “método”, “princípio de organização política” e

“princípio constitucional”.

195

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 130.

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92

Dada a multiplicidade de entendimentos é importante encontrar um núcleo

conceitual comum, partindo de seu sentido original, para construir o fundamento do

que aqui se designará por laicidade.

Primeiramente é necessário referir que a ideia geral de laicidade é a de

uma rígida separação entre religião e Estado, porém este significado não é

satisfatório, pois não leva em conta as diversas variáveis embutidas nessa relação,

como as implicações do direito à liberdade religiosa.

É necessário, assim, considerar as principais questões que dizem

respeito a esta relação para se compreender qual o papel da religião no Estado

Laico. E para compreender de modo isento a laicidade é necessário ter em mente

dois critérios: o de separação e o de neutralidade.

A ideia de separação contempla “a concepção política que estabelece a

separação entre o Estado e as religiões, por intermédio da qual o poder estatal deixa

de exercer o poder religioso e as confissões religiosas deixam de exercer o poder

político”.196

Significa dizer que há uma autonomia de parte a parte, ou seja, uma não-

interferência entre o Estado e as confissões religiosas, respeitando-se a

reciprocamente o próprio âmbito de atuação.

Ora, tal autonomia foi, como já mencionado, uma novidade do

cristianismo, que pregava a separação entre o poder de César e o poder de Deus.

Essa concepção cristã de laicidade não se coadunava com a crença pagã

do César-Deus, nem com a ideia judaica do César-Inimigo, pois Jesus legitima a

autoridade terrena, dizendo que vem de Deus197.

De todo modo, laicidade como separação implica a primazia do Estado

nas questões públicas, mas implica, de outro lado, a primazia das igrejas nas

questões religiosas.

Destarte, a laicidade é uma “rua de mão dupla”, para utilizar uma

expressão bem popular. Do mesmo modo que o Estado não quer e está livre da

interferência da religião em suas decisões políticas, do mesmo modo as religiões

estão livres da mão pesada do Estado no que tange às questões religiosas.

196

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional

apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 136. 197

João 19,11.

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93

Tomás de Aquino estruturou este princípio cristão tradicional que mais

tarde foi reelaborado por Belarmino e Suarez, até configurar-se num corpo de

doutrina jurídica, fundamental para o Direito Público Eclesiástico. 198

Desde Leão XIII (1978-1903), a Igreja vem reforçando este dualismo

explicitamente, mostrando a necessidade de separação entre poder terreno e

espiritual, como organização cristã correta da sociedade, pois sendo ambos

derivados de Deus, cada qual deve prosseguir em seu ministério:

Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure proprio”[...] porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.199

Dentre outros documentos, na Constituição Apostólica Gaudium et Spes

(Alegria e Esperança), proferida em 1965 e emanada do Vaticano II, a Igreja,

reforçou a necessária autonomia entre a esfera política e a religiosa:

A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana. No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo[...].200

198

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 161. 199

LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em

<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso em 01/03/2014 200

FRANCISCO, Papa. Constituição Apostólica Gaudium et Spes – item 76. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html Acesso em 02-03-2014.

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94

Tal autonomia da esfera pública tem como consequência lógica a

completa neutralidade do Estado em relação à religião, ou seja, a impossibilidade de

o Estado professar uma religião oficial.

O que não significa de modo algum dizer que a autonomia das realidades

temporais deva excluir da sociedade e do âmbito público a referência a Deus e ao

destino último do homem, daí a necessidade de cooperação entre ambas as esferas:

temporal e espiritual para que o homem atinja sua plenitude.

Neste sentido, a propalada separação entre Igreja e Estado Moderno não

deve pretender a separação, também no indivíduo, do aspecto espiritual e do

aspecto material, “como se o homem fosse capaz de existir bipartido no temporal

(que corresponderia exclusivamente ao Estado) e no espiritual (que unicamente

competiria à Igreja)”. 201

Bastante interessante a posição de José Pedro Galvão de Souza. O

cofundador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entende que a

sociedade civil tem um fim temporal, isto é, os homens reunidos em pequenos

grupos fazem esforço comum para obter o que necessitam. Contudo, esses mesmos

homens tem um fim outro, qual seja, o fim sobrenatural, a vida eterna. Esta

finalidade leva o homem a Deus e, portanto, é superior à ordem temporal. No

entanto, ele reflete:

O naturalismo dos nossos dias quer reduzir a vida humana a estas ordens inferiores. Daí provém, na organização das sociedades políticas, a concepção do Estado leigo ou secularizado, que fecha os olhos ao fim sobrenatural do homem. O Estado tem um fim precipuamente temporal, que, por isso mesmo, se subordina ao fim superior e último do homem. Cabe-lhe, pois, proporcionar a todos condições de ordem temporal que não prejudiquem, mas, antes, favoreçam o bem espiritual.202

Ainda em conformidade com a posição de José Pedro Galvão de Souza,

os pontos principais da doutrina católica sobre as relações entre a Igreja e o Estado,

tal como se encontram na encíclica Immortale Dei, citada logo acima, são

resumidamente:

201

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p.96. 202

SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 28-

29.

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a) Distinção entre o Estado e a Igreja, já que a segunda tem caráter

sobrenatural. Há dualidade de poderes.

b) Autonomia. Cada um desses poderes é soberano dentro de sua esfera

de ação, cada qual com seus fins e interesses diversos.

c) Relações harmoniosas, já que a dualidade de poderes não significa

separação e oposição, até porque, há fatos que estão na esfera de ambas as

autoridades.

d) Primazia do espiritual. Aqui o autor afirma que o Estado deve observar

os princípios superiores de ordem moral, dos quais a Igreja é a intérprete autorizada.

Neste sentido, outro autor católico escreveu, em 1941:

A Igreja não reivindica para os seus ministros uma acção (sic) preponderante nos negócios do Estado, vê, até com mágua (sic), os

que se entregam mais à política do que às funções do seu sagrado ministério; e muito menos reivindica a posse da autoridade pública que decide os negócios temporais e governa os povos. [...] Quando se diz ou escreve que a Igreja pretende a conquista do poder civil, que ambiciona que os padres governem, trata-se de uma calúnia. O que a Igreja ambiciona, não tanto por si, como pelo bem dos indivíduos e das sociedades, é que os homens sejam verdadeiros cristãos [...].203

Foi necessário abordar tal posição mais conservadora primeiramente para

desmistificá-la. Sim, pois não se trata de defender poder absoluto à Igreja Católica,

mas lembrar que os valores morais por ela defendidos tem muito a oferecer ao

poder civil e à sociedade, o que não implica em impor sua visão de mundo e

dogmas.

De outro lado, foi importante suscitar a doutrina da Igreja a este respeito,

a fim de esclarecer que até mesmo seu Magistério defende a laicidade do Estado. O

que é refutado é o laicismo.

Laicidade não implica confundir a Igreja com um oratório doméstico, já

que a Igreja não pode ficar relegada a um ostracismo sem qualquer participação

política e social.204

203

BEJA, Monsenhor Fino. A Igreja e o Estado. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1941,

p. 48.

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Daí a necessidade de separar o sentido de laicidade e o de laicismo.

2.3.2 Laicidade e Laicismo

Até aqui foi possível estabelecer a concepção de secularização como o

fenômeno que atinge a sociedade e a laicidade como o que atinge o Estado.

Como se verificou acima, a laicidade tem dois pilares básicos: a

independência e a autonomia, de tal modo que, qualquer doutrina religiosa,

filosófica, científica ou política que vise diminuir a autonomia das duas esferas é

contrária à laicidade.

A laicidade invoca esta autonomia não apenas entre religião e Estado,

mas também entre filosofia e religião:

Na primeira metade do século XIV, Ockham reivindicava com energia a autonomia da atividade filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de Tomás de Aquino feitas pelo Bispo de Paris, em 1277, ele dizia: “As asserções, principalmente filosóficas, que não concernem à teologia não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer uma ser livre para dizer livremente o que lhe apraz” (Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum et pontificum potestate, I, II, 22). Essa foi a primeia e certamente uma das mais

enérgicas afirmações do princípio do L. [Laicismo] em filosofia e deve-se a um frade franciscano do século XVII.205

A laicidade pressupõe a separação e a neutralidade, mas permite as

relações de cooperação com a Igreja e religiões, sem recair no laicismo:

Existe, portanto, entre Igreja e Estado entre religião e política, uma separação lícita e necessária – a laicidade – e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo. Porque a laicidade é prerrogativa consubstancial à “ordem autônoma” do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade com a “ordem teonômica”.206

204

SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 29-31. 205

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 691-692. 206

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 153-156. Ordem transcendente ou teonômica - Segundo o autor a autonomia do Estado é plena na esfera terrena, o que ele denomina ordem autonômica, porém há também uma ordem teonômica no Estado, à medida em que é formado por homens que são seres transcendentes, razão pela qual é plenamente autônomo na sua ordem, mas deve manter uma relação de harmonia com a ordem transcendente, ou seja, com a religião.

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Na verdade, a separação saudável entre Estado e religião é entendida

como condição à plena liberdade religiosa, já que Estados confessionais tendem a

restringir a prática de outras religiões.

Há uma dimensão positiva da liberdade de religião, pois o Estado deve assegurar a permanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de todas confissões religiosas. Cumpre ao Estado empreender esforços e zelar para que haja essa condição estrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoas sobre religião e fé.207

Consequentemente, surgem para o Estado proibições como:

i) guerras santas; ii) discriminação estatal (lato sensu) arbitrária e danosa entre as diversas igrejas; iii) obrigar que o indivíduo apresente e divulgue suas convicções religiosas; estabelecer critérios axiológicos para selecionar as melhores religiões; v) estabelecer pena restritiva de direitos junto a templo religioso.208

Contudo, há um “aspecto forte” da laicidade que não se limita a buscar a

separação das esferas e suas respectivas autonomias, mas confunde-a com o

anticlericalismo e o ateísmo, ou seja, à exclusão da religião e da fé da esfera

pública. Este aspecto é reconhecido neste estudo como laicismo.

O laicismo se opõe à laicidade, pois pretende não a independência das

esferas, e sim a completa eliminação da religião do âmbito público, aprisionando-a

ao interior dos templos, ou seja, os laicistas entendem que a religião é estritamente

privada, devendo ser excluída do espaço público, não devendo exercer qualquer

influência na sociedade.

Tal posição radical, originada do Iluminismo, é portadora de um

extremismo antirreligioso e anticlerical “que aproveitou a justa reivindicação da

laicidade para introduzir sub-repticiamente, confundindo-o com ela, o laicismo

indiferentista e ateu”209.

Da lição de Ingo Sarlet:

207

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

605. 208

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

605. 209

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 159.

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[...] há que se distinguir entre laicidade e separação (no sentido de independência) entre Estado e Igreja (e comunidades religiosas em geral) de laicismo e de uma postura de menosprezo e desconsideração do fenômeno religioso (das religiões e entidades religiosas) por parte do Estado, pois uma coisa é o Estado não professar nenhuma religião e não assumir fins religiosos, mantendo uma posição equidistante e neutra, outra coisa é assumir uma posição hostil em relação à religião e mesmo proibitiva de religiosidade.210

O problema do paradoxo laicidade/ laicismo é originado no combate aos

regimes de regalismo, cesaropapismo e hierocracia, provenientes da relação

existente entre Estado e Igreja, especialmente nos séculos XVII e XVIII, em que as

autoridades temporal e espiritual se confundiam na mesma liderança, ora o espiritual

submetendo o poder temporal, ora o inverso, conforme já foi mencionado.

Com efeito, a batalha da laicidade foi promovida pela Revolução Francesa

e pelo liberalismo, que lhe deram o caráter radical laicista. E a Igreja Católica se

ressentiu disto:

33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja. [...] 35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos.211

Em suma:

210

SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição

atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 478. 211

LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em

<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso em 01/03/2014

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O Estado laico comprometido com a laicidade, ao invés de rejeitar ou tentar suprimir o religioso, considera-o um fato público e, embora não perca de vista a distinção entre o campo religioso e a esfera secular, não desconhece as necessidades espirituais de seus cidadãos. O Estado laico movido pelos ideais de laicidade, embora não privilegie nenhuma religião específica, não se mostra hostil a nenhum credo, almejando com os mesmo, manter relação de colaboração de acordo com as especificidades de cada qual. O Estado laico de orientação laicista, por sua vez, ostenta nítida parecença com o Estado ateu: sua preocupação é com a administração das necessidades materiais do homem; a religião, para ele, é assunto exclusivamente privado, um anacronismo que a ciência e o progresso humano se incumbirão de exterminar; ademais caracteriza-se pela confusão entre o público e o estatal, porquanto não respeite a autonomia do social em sua

dimensão religiosa.212

Ninguém que busca conhecer honestamente a história do mundo pode

negar que valores cristãos foram responsáveis pela humanização do mundo, haja

vista a concepção do homem como imagem e semelhança de Deus, que lhe dá

dignidade ímpar na natureza.

Os equívocos surgem quando se pretende reduzir a complexidade da

Igreja Católica e das religiões a meros mecanismos de “freio à liberdade”. Sim, a

Igreja Católica, assim como outras religiões querem transmitir sua mensagem ao

mundo. São valores favoráveis à vida humana. Os dogmas são para os católicos,

mas os valores são para todos.

Há decisões jurídico-políticas que envolvem questões morais e que, por

esta razão, interessam a toda sociedade. Exigem, assim, diálogo, esclarecimentos e

ponderações. Não podem ser tomadas com base em teorias elitistas excluindo

valores que tem como base a religião.

Assim, a religião, de modo geral, além de ter direito à autonomia em seu

âmbito de atuação, é um fato social e deve encontrar guarida pelo Estado em

respeito à sociedade. O Estado laico e democrático é assim, não excludente.

Todavia, a compreensão laicista do Estado não permite qualquer tipo de

relação com as diversas instituições religiosas formadas por seus cidadãos. Ao

contrário, tudo o que diz respeito à religião deve ser excluído do ambiente público,

212

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

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qualquer que seja ele. Especialmente se esta religião for a preponderante, como o é

a católica em diversas nações.

Enfim, a atitude estatal de hostilidade à religião é caracterizada como

laicismo:

O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às posturas de fé. Baseado, historicamente, no racionalismo e cientificismo, é hostil à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus recentes episódios de intolerância religiosa, pode ser aqui lembrada como exemplo mais evidente de um Estado que, longe de permitir e consagrar amplamente a liberdade de religião e o não-comprometimento religioso do Estado, compromete-se, ao contrário, com um postura de desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da religião, seja ela qual for.213

2.4 Dois Modelos de Estado Laico

Para tornar mais clara essa realidade, confronta-se dois modelos atuais

de estados laicos, quais sejam os Estados Unidos e a França.

Sabe-se que a colonização dos Estados Unidos se intensificou a partir da

Declaração dos Direittos (Bill of Rights) de 1688, em virtude da grande imigração de

religiosos extremistas (puritanos) insatisfeitos com o fim da ditadura e

restabelecimento da monarquia com o rei Carlos II.

Assim, a religiosidade está na raiz da formação do povo estadunidense.

Ali a separação entre Igreja e Estado significa independência da política e vida

pública em relação à religião, com duas vertentes básicas: O free excercise e o

nonestablishment, isto é, o livre exercício da religião escolhida e a proibição do

estabelecimento de vantagens a qualquer crença.214

Na nação estadunidense, todavia, a instituição do chamado wall of

separation, em que pese ter representado a autonomia e supremacia da política em

face da religião, não representou de modo algum a diminuição da prosperidade

religiosa, que influenciou inclusive a Declaração de Independência e a Declaração

213

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

606-607. 214

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 104-105.

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de Direitos do Bom Povo da Virgínia de 1776, de nítido caráter iluminista, como se

vê:

Que a religião ou os deveres que temos para com o nosso Criador, e a maneira de cumpri-los, somente podem reger-se pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; conseqüentemente, todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com o que dita sua consciência, e que é dever recíproco de todos praticar a paciência, o amor e a caridade cristã para com o próximo.215

O fato é que:

No caso norte-americano procurou-se conciliar a pujança do poder do Estado com os valores cristãos, tão cara à comunidade dos colonos. Com efeito, a instituição do wall of separation não significou um ato de opressão para a religião, mas a confirmação e a garantia do seu livre exercício, embora tenha significado, para o Estado, a legitimação da sua possibilidade de atuar soberanamente, sem submeter-se às limitações religiosas. Trata-se, por essa razão, segundo Paulo Adragão, de uma “consideração positiva da religião”. Ou, de acordo com Maurice Barbier, de um relacionamento com a religião sem caráter combativo.216

Já a França, por sua vez, influenciada pela ideologia radical jacobina

desde a Revolução Francesa, encampou de modo inédito, no sentido de avançar no

processo de emancipação do homem, o regime de separação entre religião e estado

que incluía o enfraquecimento da instituição da Igreja no seio da sociedade civil,

dado o forte apego ao racionalismo e à grande influência da Igreja Católica no

cenário político e econômico do Ancien Regime217, e assim, a sociedade

emancipada era duplamente avessa à religião.218

Com o Regime do Terror, os jacobinos (dentre os quais Robespierre)

instauram uma verdadeira guerra contra a burguesia: “Em 1793, Pache e Chaumette

215

Item XVI. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-a-criacao-da-Sociedade-das-Nacoes-ate-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-1776.html> Acesso em 01-03-2014. 216

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito

Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p.110. 217

Época das monarquias absolutistas que precedeu a era revolucionária. 218

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 107.

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pediram o confisco dos gêneros de primeira necessidade e o extermínio da

burguesia”,219 tendo ainda sido decretada a “proscrição oficial do cristianismo no

território francês220”

Em que pese Inglaterra e França terem passados por períodos de

revoluções antiabsolutistas,

Na França, nação herdeira de uma hostilidade jacobina com relação à religião, prevalece o modelo excludente, no qual se almeja “limpar” o espaço público de qualquer traço religioso. Já na Inglaterra adota-se o modelo inclusivo, por meio do qual todas as crenças – e sua exteriorização – são toleradas no espaço público, desde que, obviamente, não malfiram a ordem pública.221

O caso da França é surpreendente. Ali, em que pese a Constituição

garantir a liberdade religiosa, os laicistas consideram a religião apenas de modo

negativo, algo que deve ser eliminado: “Não é sem razão, portanto, que se pode

observar na França do final do século XVIII a contraditória convivência de uma

teórica liberdade religiosa com a perseguição à Igreja Católica”.222

É verdade, pois

Em 1905, a lei de separação da Igreja e do Estado, que denunciava a Concordata de 1804, foi um acontecimento doloroso e traumatizante para a Igreja na França. Ela regulava o modo de viver em França o princípio do laicismo e, neste âmbito, ela mantinha unicamente a liberdade de culto, relegando ao mesmo tempo a fé religiosa para a esfera privada e não reconhecendo à vida religiosa e à Instituição eclesial um lugar no seio da sociedade. Desta forma, a vida religiosa do homem era considerada unicamente como um simples sentimento pessoal, não reconhecendo assim a natureza profunda do homem, ser ao mesmo tempo pessoal e social em todas as suas dimensões, incluindo a dimensão espiritual. Contudo, a partir de 1920, estamos gratos ao Governo francês por ter reconhecido de

219

DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 98. 220

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito

Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 108. 221

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 97. 222

CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 110.

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certa forma um lugar à fé religiosa na vida social, à vida religiosa pessoal e social, e a constituição hierárquica da Igreja, que é constitutiva da sua unidade.223

A grande diferença na compreensão de laicidade entre Estados Unidos e

França foi suscitada por Jürgen Habermas, quando trata do papel da religião no

Estado laico:

Nos Estados Unidos, ao contrário do que sucedeu na França, a introdução da liberdade de religião não significou uma vitória do laicismo sobre uma autoridade que garantira para as minorias religiosas, no melhor dos casos, uma tolerância interpretada de acordo com seus próprios critérios, os quais eram impostos à população. O poder do Estado, cuja postura quanto a visões de mundo era neutra, não tinha, em primeira linha, o sentido negativo de proteger os cidadãos contra imposições oriundas da consciência ou da fé.224

Destarte, no país norte-americano a liberdade religiosa é protegida

constitucionalmente como um direito fundamental que os cidadãos de uma

comunidade democrática se concedem mutuamente independentemente dos limites

estabelecidos pelas diferentes comunidades de fé. Significa dizer que defender

posições fundamentadas em convicções religiosas não é inconstitucional naquele

país.

Ainda hoje, o socialismo francês, influenciado pelo radicalismo jacobino,

emprega todos os meios para extirpar do cenário público qualquer traço de

religiosidade, chegando a restringir a liberdade religiosa, direito já consolidado em

Tratados Internacionais.

Veja-se a proibição feita em 2011 às mulheres muçulmanas de usar o véu

que recobre a cabeça em espaço público, bem como a reforma da educação, com a

elaboração da polêmica Carta do Laicismo, que faz referência à lei do laicismo de

1905, bem como à lei de 2004, que proíbe crianças de utilizar qualquer símbolo

223

Carta do Papa João Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa, dada no vaticano aos 11 de fevereiro de 2005 (Disponível em www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005. Acesso em 23-03-2014) 224

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 9.

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religioso ao frequentar a escola pública, e foi afixada em todas as escolas públicas

do país.225

Entre as disposições deste documento consta expressamente a proibição

de uso de qualquer sinal de religiosidade, como seriam o véu islâmico, a estrela de

Davi ou a cruz católica.

2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado

Como visto, laicidade e laicismo não se confundem e, deste modo:

Pretender que o Estado adote um total distanciamento da religião pode significar algo não apenas não desejável como também impossível (e fraudulento, neste sentido, por estar a encobrir uma realidade não-declarada e, possivelmente, não-consentida e não-compartilhada socialmente), além de ser um caminho propício para a diminuição da liberdade religiosa plena.226

O Estado, desse modo, não tem como função eliminar a esfera religiosa

do âmbito público, ao contrário, tem o dever de, representante que é de sua nação,

não obstar a prática das religiões do povo, nem evadir do debate político os valores

morais pelos quais se pautam estas religiões.

Ora, um regime de exclusão de opiniões, seja por serem religiosas ou

não, é absolutamente incompatível com o pluralismo e a democracia.

Tal concepção laicista do Estado tem origem, como visto, no Iluminismo

que exaltou a ciência e a razão como o caminho exclusivo de emancipação e

libertação do ser humano. Contudo, o tempo provou que ambas acabaram se

transformando em instrumentos do poder político e econômico, demonstrando a

fragilidade deste ponto de vista.

O fato é que há o perigo da “ditadura do racionalismo” ateu e materialista,

isto é, da tentativa de eliminar a verdade sobre direito e moral, que, no final, tem

como consequência colocar o homem nas mãos do mais forte, do útil, da

imoralidade. Isto é, a razão se torna instrumento de poder.

225

Sobre o assunto v. notícia Disponível em <http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/franca-adota-carta-da-laicidade?page=2> 226

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 605.

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Interessante a posição de um grupo de filósofos marxistas que elaborou a

tese da Dialética do Esclarecimento. Era a Escola de Frankfurt que reunia os

trabalhos de um grupo de intelectuais marxistas, não ortodoxos, que, na década dos anos 20 permaneceram à margem de um marxismo-leninismo “clássico”, seja em sua versão teórico-ideológica, seja em sua linha militante e partidária. [...] todas as verdades anteriormente consideradas válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as normas e valores vigentes têm de ser justificados; todas as relações sociais são consideradas resultado de uma negociação na qual se busca o consenso e se respeita a reciprocidade, fundados no melhor argumento.227

O grupo era ligado à Universidade de Frankfurt, mas muitos dos escritos

foram produzidos fora da cidade, especialmente no pós-guerra. Nomes como

Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin e Habermas fizeram parte dessa

“confraria”.

Embora não haja absolutamente nenhuma identidade entre o que ora se

propõe e as teorias desenvolvidas por estes autores, há um ponto que merece ser

abordado.

Convergem os autores da Escola de Frankfurt no tema da Dialética do

Esclarecimento, ou seja, no fato de que a razão exaltada pelo Iluminismo como

processo de emancipação do homem e que o conduziria à autonomia e

autodeterminação, acaba se transformando, paradoxalmente, em seu contrário, ou

seja, num crescente processo de instrumentalização para a dominação e repressão

do homem.228

Desta maneira: “A essência da dialética do esclarecimento consiste em

mostrar como a razão abrangente e humanística, posta a serviços da liberdade e

emancipação dos homens, se atrofiou, resultando na razão instrumental”.229

Destarte:

“O programa do iluminismo consistia no desencantamento do mundo”, inicia Horkheimer em seu conhecido ensaio sobre o conceito de iluminismo. “Eles queriam dissolver os mitos e fortalecer as impressões através do saber” (Horkheimer e Adorno, 1947). Mas o

227

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 84. 228

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 34. 229

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 35.

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saber produzido pelo Iluminismo não conduzia à emancipação e sim à técnica e ciência moderna que mantêm com seu objeto uma relação ditatorial. Se Kant ainda podia acreditar que a razão humana permitiria emancipar os homens dos seus entraves, auxiliando-os a dominar e controlar a natureza externa e interna temos de reconhecer hoje que essa razão iluminista foi abortada. A razão que hoje se manifesta na ciência e na técnica é uma razão instrumental, repressiva.230

Assim sendo, a razão se transforma, na leitura de Horkheimer e Adorno,

em uma razão alienada que se desviou do seu objetivo emancipatório original

tornando-se instrumento de dominação.

A essência da dialética do esclarecimento consiste em mostrar como a

razão proveniente do humanismo clássico e posta a serviço da liberdade e

emancipação dos homens esvaziou-se, resultando posteriormente na razão

instrumental.

Jürgen Habermas faz parte de outra geração de frankfurtianos que

liderou o grupo num terceiro momento, após a liderança de Horkheimer, no primeiro,

e Adorno, no segundo. Afastando-se da abordagem pessimista da razão, do tipo “o

feitiço virou contra o feiticeiro”, acredita que a verdadeira razão se pode alcançar

através do diálogo ou da comunicação, daí sua teoria da razão como teoria da ação

comunicativa, que se abordará mais detidamente adiante.

2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica

Como já se mencionou, a necessária relação de neutralidade não significa

que o Estado deva ignorar a existência da religião ou viver ao arrepio desta.

No caso da Igreja Católica, por seu turno, há um ordenamento próprio: o

direito canônico. Então, pergunta-se: Como deve o Estado se colocar diante desta

situação?

Na concepção pluralista do ordenamento jurídico, diz-se que o

ordenamento estatal tem que conviver com outros muitos e variados ordenamentos

provenientes de instituições231 abrigadas nesse mesmo Estado.

Essa teoria se contrapõe a de monismo jurídico, em que haveria um único

ordenamento, o estatal, e tem como consequência o aumento da complexidade da

230

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª. edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasileiense, 2010, p. 35. 231

Assim entendidas como grupo social organizado.

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relação entre o ordenamento do Estado e esses ordenamentos institucionais ou

menores.

Norberto Bobbio232 acata esta tese e distingue entre quatro tipos de

ordenamentos institucionais quais sejam:

a) Os que estão acima do Estado, como o ordenamento

internacional e segundo alguns, o da Igreja Católica;

b) Os que estão abaixo do Estado, como os ordenamentos

propriamente sociais, que o Estado reconhece, limitando-os ou

absorvendo-os;

c) Os ordenamentos ao lado do Estado, como o da Igreja

Católica, segundo outras concepções, ou ainda, o internacional,

conforme a concepção chamada dualística.

d) Os ordenamentos contra o Estado, como associações

para o crime e seitas secretas.

Vale dizer que, não obstante o reconhecimento destes ordenamentos

institucionais, a teoria da universalidade do ordenamento, como construção de um

direito positivo único, segundo Norberto Bobbio, está latente, especialmente após a

criação da Organização das Nações Unidas.

De todo modo, são múltiplas as relações que o Estado pode desenvolver

com essas instituições.

Em relação à Igreja, entretanto, a relação é sui generis.

Sabe-se que ambos, ordenamento estatal e da Igreja, são concomitantes

no tempo e no espaço, além de se dirigirem às mesmas pessoas. A diferença básica

é quanto à matéria de que se ocupam, quais sejam, jurídica ou moral.

São diversas as concepções sobre como os ordenamentos nesse caso

devem se relacionar:

a) Exclusão total, onde se concebe dois ordenamentos que

são completamente distintos quanto à matéria, pois um regula a moral

e o outro o direito;

232

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 158.

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b) Inclusão total, onde se concebe que o ordenamento do

Estado tem a competência de gerir tanto toda a matéria de cunho

jurídico, quanto a de cunho moral;

c) Exclusão ou inclusão parcial, onde se concebem que dois

ordenamentos tem uma parte em comum e outra não comum. Assim,

o Estado absorve parte do ordenamento da Igreja, mas a parte não

absorvida estaria fora da jurisdição do Estado, competindo somente à

Igreja. Essa parte não compreendida pelo Estado é entendida como

mera licitude e não juridicidade.

Nesta terceira concepção de relação entre os ordenamentos compreende-

se que há pontos de intersecção, pois também o Direito manifesta a moral, e assim:

Nas relações entre direito e moral, a solução que apresenta esses relacionamentos como relacionamentos de inclusão parcial e exclusão parcial é talvez a mais comum: direito e moral, segundo esse modo de ver, em parte coincidem e em parte não, o que significa que há comportamentos obrigatórios tanto para um quanto para outro, mas, além disso, existem comportamentos moralmente obrigatórios e juridicamente lícitos, e, inversamente comportamentos juridicamente obrigatórios e moralmente lícitos. Que não se deva roubar vale tanto em moral como em direito; que se devem pagar as dívidas de jogo vale somente em moral; que se deve cumprir um ato com certas formalidades para que seja válido somente vale em direito.233

Igualmente, Bobbio234 faz uma rememoração das modalidades de relação

entre Estado e Igreja na história, após o advento do cristianismo, resumindo-as em

quatro modelos.

No primeiro deles, denominado de reductio ad unum, há uma unificação

entre eles, onde ou há uma redução do Estado à Igreja (teocracia) ou da Igreja ao

Estado (cesaropapismo na época imperial, erastianismo nos modernos Estados

nacionais protestantes).

A segunda espécie de relação é a subordinação, também dividida em dois

modos. Deste modo, sendo o Estado subordinado à Igreja, como se pretendia nos

233

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 161. 234

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 171-175.

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Sacro-Impérios Romanos Franco e Germânico, trata-se da teoria da potestas

indirecta ou directiva. Já a Igreja subordinada ao Estado por meio do

jurisdicionalismo e territorialismo, ocorreu durante o período das monarquias

absolutas.

O sistema fundado sobre relacionamentos concordatários é a terceira

espécie citada por Bobbio e pressupõe o reconhecimento recíproco dos dois

poderes como independentes e soberanos cada qual em sua órbita de autoridade. É

o que vigora entre o Estado italiano e a Igreja Católica.

Por último há o sistema de separação ou separatismo, como ocorre nos

Estados Unidos, onde “as Igrejas são consideradas em nível de associações

privadas, às quais o Estado reconhece a liberdade de desenvolver a sua missão

dentro dos limites das leis”.235

Ao analisar a relação entre o Estado italiano e a Igreja Católica, Bobbio

nota que há pontos de entrelaçamento entre os ordenamentos, pois “Não se trata de

dois ordenamentos fechados um ao outro: em particular o ordenamento estatal se

refere, de várias maneiras, a instituições reguladas pelo direito canônico”236.

Com efeito, ele identifica duas figuras características dessa situação: o

pressuposto e o reconhecimento dos efeitos civis.

No primeiro, uma condição atribuída a alguém pela Igreja é recebida no

Estado como uma condição que cria consequências diferentes daquela. Assim, o

batismo na Igreja tem um sentido, e

com as leis raciais de 1938 o batismo foi considerado como o “pressuposto” para a atribuição de consequências jurídicas próprias do Estado italiano. Assim, o sacramento da ordem está regulado por normas do direito canônico, e certamente o Estado italiano não atribui à qualidade de clérigo as mesmas consequências atribuídas a ela pela Igreja, mas o ordenamento italiano pode fazer, em certas circunstâncias, da qualidade de clérigo um “pressuposto” para consequências jurídicas relevantes no próprio ordenamento (por exemplo a isenção do serviço militar).237

235

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 172-173. 236

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 173. 237

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 174.

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O reconhecimento de efeitos civis ocorre quando o Estado “renuncia à

própria regulamentação, limitando-se a atribuir à regulamentação dada pelo

ordenamento da Igreja, efeitos civis”.238

2.5.2 As Relações Constitucionais e Concordatárias entre Estado e Igreja

Em que pese haver muita discussão em torno da natureza jurídica das

concordatas entre Estado e Igreja, pode-se dizer que se trata de

um contrato de natureza especial entre a Igreja e o Estado, que reveste a forma de um quase-contrato internacional, e que vem a regulamentar suas relações mútuas a respeito de matérias que interessam, de algum modo, a uma e a outra sociedade. Estas matérias abrangem capítulo como os seguintes: personalidade internacional da Santa Sé, personalidade jurídico-econômica da Igreja, Direito fiscal e tributário, propriedade eclesiástica, direitos dos tribunais eclesiásticos, autonomia interna da Igreja, matrimônio, educação, etc..239

O objetivo dessas concordatas não é relativizar a separação entre Estado

e Igreja e sim, reconhecendo-a, estabelecer relações formais de cooperação e

concórdia. As concordatas são em geral “verdadeiros tratados de paz e amizade,

onde se regulam duma maneira correta os assuntos referentes às chamadas

‘matérias mistas’”.240

Essas concordatas normalmente existem em países que não adotam o

regime laicista de separação, mas reconhecendo as religiões, as assume e lhes

garantem a liberdade. Nos países onde impera a atitude antireligiosa há grandes

perigos de perseguição aos cidadãos religiosos.

Vejamos alguns exemplos de países que adotaram em algum momento

de sua história atitudes hostis em relação à religião241:

238

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 174. 239

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 234-235. 240

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 234. 241

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 233.

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a) Constituição de 1937 da URSS: artigo 124 – “A liberdade

de propaganda anti-religiosa é reconhecida a todos os cidadãos.”

b) Constituição de 1917 do México: artigo 130, parágrafo 5º -

“A lei não reconhece personalidade alguma às agrupações religiosas

denominadas Igrejas”

A França, como se viu, continua caminhando numa atitude hostil para

com as religiões, adotando a postura laicista e não neutra em relação às Igrejas.

Por outro lado, houve países que até criminalizaram as pessoas não

crentes, como ocorreu na Baviera, Constituição de 1946: “Artigo 150: O desprezo da

religião, das suas instituições, ministros e membros de congregações religiosas

considera-se como delito” e na Constituição da Síria de 1950 que inseriu no

preâmbulo o seguinte: “Um dos fins do texto constitucional consiste em lutar contra o

ateísmo e a dissolução dos costumes”.242

Não soa razoável, assim, de parte a parte, uma relação conflituosa,

marcada por desmandos e disputas internas, ferindo a autonomia seja do Estado,

seja de cada religião. As religiões são uma realidade com a qual os estados têm de

lidar. O ideal, portanto, é que se estabeleçam as condições desta relação nos limites

constitucionais, regulamentando-as por meio das concordatas, como ocorre no

Brasil.

A lógica das relações entre Igreja e Estado deve ser a da colaboração.

De nada adianta o Estado tentar eliminar a religião do espaço público, dado que a

religião é um fato social, ainda constatado, mesmo após séculos da propalada

ideologia racionalista naturalista e dos enormes avanços técnico-científicos.

Por outro lado, de nada adianta uma religião pretender impor sua visão de

mundo, uma vez que a fé é questão de consciência, foro íntimo, história e

experiência pessoal de vida.

Qual o benefício trazido à sociedade de uma relação pautada pela

desconfiança recíproca e ofensas de parte a parte?

Estado e Religião tem ambos uma importante função na sociedade: A

realização do homem como indivíduo e como ser social, promovendo o bem comum.

242

LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 234.

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Os valores conquistados pela Fé e que contribuem com a valorização do

ser humano não podem ser desprezados pela Razão.

Do mesmo modo a valorização da racionalidade humana e as conquistas

técnico-científicas não podem ser desprezadas pela Fé. Há de haver o respeito nas

divergências e a colaboração nos pontos fortes de cada qual.

Diante disto, pondo-se abaixo “bandeiras ideológicas” a melhor

concepção de relações entre Fé e Razão é a da cooperação, reconhecendo cada

qual a função a ser desempenhada pelo outro.

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113

3 A PÓS-SECULARIZAÇÃO, DEMOCRACIA E O LUGAR DA RELIGIÃO NO ESPAÇO PÚBLICO 3.1 Pós-Secularização

Cada tribo indígena tem o seu pagé e seus deuses, cada família da

antiguidade os seus deuses antepassados, os judeus Iahweh (o Senhor), os gregos

e romanos seus mitos, a Idade Média o cristianismo, a Idade Contemporânea o

esoterismo e o sincretismo; mas jamais a humanidade de modo geral deixou de crer

no sobrenatural.

É verdade que o agnosticismo e o ateísmo vem crescendo; mas fosse a

religiosidade só uma face decadente da história humana, o mundo, após mais de

meio milênio de liberalismo e secularização, teria dela apenas uma lembrança.

John Rawls reconheceu este fato e afirma que

“a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis encontrada em sociedades democráticas é uma característica permanente da cultura pública, e não uma simples condição histórica que logo desaparecerá”.243

Foi e continua sendo frequente a indagação da filosofia acerca do

Absoluto. Inúmeros filósofos de todos os tempos tentaram provar a lógica seja da

existência ou da inexistência de algo além do mundo sensível. Efetivamente,

permanece ainda em grande parte da humanidade a fé no mistério da

transcendência e, por conseguinte, em toda a moralidade que daí deriva.

É incrível que, séculos após os protestos do Iluminismo, o Estado

Moderno se depare não apenas com a persistência de tradições religiosas como

com novas formas de expressão de religiosidade incluindo-se seitas pentecostais e

sociedades esotéricas e ainda formas individuais e comunitárias de sincretismo

religioso. Definitivamente, a religião está longe de dizer adeus à sociedade.

Nota Habermas que nos Estados Unidos não apenas crescem os

religiosos, como o movimento em prol dos direitos religiosos, que, de seu turno, vem

243

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 265.

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sendo capaz de promover um despertar de consciências “o que provoca irritações

paralisadoras em seus opositores seculares”244.

O fato mais surpreendente consiste propriamente na revitalização política da religião no âmago dos Estados Unidos da América, portanto, no centro da sociedade ocidental, onde a dinâmica da modernização se expande com maior sucesso.245

Na Europa, de fato, a religiosidade está em declínio, contudo isso não

parece ocorrer no resto do mundo. A eterna busca de sentido para a vida, da alma

humana em direção ao que lhe transcende, está evidentemente presente no mundo

contemporâneo.

Deveria essa realidade ser simplesmente ignorada pelo Estado ou, sendo

ela parte substancial de seus cidadãos, deveria ser protegida, assegurando-se não

somente a prática da religiosidade de acordo com a fé de cada um, mas a

consideração de seus valores na construção da sociedade, por meio do Direito?

A versão clássica da narrativa histórica do processo de secularização de

acordo com o qual o isolamento da religião avança com o avanço da modernização,

vem sendo abandonada e dando lugar a uma nova concepção da modernidade,

consciente do fenômeno da persistência da religiosidade e de sua potencialidade

para contribuir com a vida política. A esta nova sociedade Habermas chama de pós-

secular.

Em consonância com a pós-secularização, faz o filósofo a crítica do

pensamento pós-metafísico, que não pode se resumir a um “jogo de soma zero”

entre as forças da ciência, de um lado, e a dos poderes tradicionais religiosos, de

outro, onde a vitória de um pressupõe o aniquilamento do adversário. Deve-se,

portanto, levar em conta o “papel civilizador de um senso comum”, funcionando

como uma terceira via, no caminho entre ciência sem religião e religião sem ciência.

É necessário o diálogo.246

244

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 131. 245

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 130. 246

HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:

Editora Unesp, 2013, p. 6.

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Faz parte dessa nova postura a compreensão por parte das religiões que

é necessário dialogar com as outras confissões, bem como com a ciência, detentora

do monopólio do saber.

Tão logo uma questão existencialmente relevante vá para a agenda política, os cidadãos – tanto crentes como não crentes – entram em colisão com suas convicções impregnadas de visões de mundo e, à medida que trabalham as agudas dissonâncias desse conflito público de opiniões, têm a experiência do fato chocante do pluralismo das visões de mundo.[...] 247

O fato é que

O mundo moderno e contemporâneo, marcado pelo avanço tecnológico e científico, atestou que não necessitava mais da experiência do sagrado para explicar a realidade, nem tampouco para dar sentido à vida dos homens. Vozes da Modernidade (ou Pós-modernidade) ecoaram de muitos lugares atestando a “morte de Deus”. A Sociologia falou em “desencantamento do mundo”, uma vez que o progresso científico e a racionalidade moderna haviam provocado um despojamento da magia do mundo libertando o homem das interferências dos deuses. 248

Ocorre que:

curiosamente, o que se presencia no final do século XX e início do século XXI e terceiro milênio cristão, é o revigoramento e a ascensão do fenômeno religioso. Lévi Strauss, na primeira metade do século XX - enquanto os “teólogos da morte de Deus” proclamavam seus oráculos - recomendava que não voltássemos à tese vulgar de que a magia seria uma modalidade tímida e balbuciante da Ciência, “pois nos privaríamos de compreender todo o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evolução técnica e científica (...). Em lugar de opor magia e ciência, melhor seria colocá-las em paralelo, como duas formas de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos, mas não pelo gênero de operações mentais, que ambas supõem, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de fenômenos a que se aplicam”.249

247

HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:

Editora Unesp, 2013, p. 7. 248

KUNRATH, Pedro Alberto. Crer depois da “morte de Deus” / Teologia da criação (Fé) e Ciência (Razão): caminhos para o diálogo in 21º. Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – Soter. Edição Digital: Paulinas, 2008, p. 130. (O autor é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS) Disponível em: <http://www.soter.org.br/documentos/documento-LNxF3ACMRE52Y5j.pdf> Acesso em 04-03-2014. 249

KUNRATH, Pedro Alberto. Crer depois da “morte de Deus” / Teologia da criação (Fé) e Ciência (Razão): caminhos para o diálogo in 21º. Congresso Anual da Sociedade de Teologia e

Ciências da Religião – Soter. Edição Digital: Paulinas, 2008, p. 131.

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3.2 Democracia e Pluralismo

Constatado que a religião e a religiosidade continuam bastante presentes

nas sociedades modernas, e que se manifestam das mais diversas formas, como

deve o Estado se colocar diante deste fato social?

Para se chegar a uma conclusão sobre o assunto é necessário abordar

alguns conceitos de democracia, tendo em vita ser esse o regime político no qual as

liberdades são garantidas.

Na lição de José Afonso da Silva:

O regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos humanos fundamentais. Vale dizer, portanto, que é na democracia que a liberdade encontra campo de expansão. É nela que o homem dispõe da mais ampla possibilidade de coordenar os meios necessários à realização de sua felicidade pessoal. 250

A Democracia Liberal no conceito de Nicholas Wolterstorff:

Liberal democracy is that mode of governance that grants to all people within the territory of its governance equal protection under law, that grants to its citizens equal freedom in law to live out their lives as they see fit, and that requires of the state that it be neutral as among all the religions and comprehensive perspectives represented in society. Equal protection under law for all people, equal freedom in law for all citizens, and neutrality on the part of the state with respect to the diversity of religions and comprehensive perpectives – those are the core ideas (grifo do autor).251

Norberto Bobbio se ocupou com o estudo da democracia na teoria das

formas de governo e aduz interessantes conceitos, partindo de seus usos descritivo,

prescritivo e histórico252.

250

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 234. 251

AUDI, Robert; WOLTERSTORFF, Nicholas. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland, United States of America: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 70: A democracia liberal é o modo de governo que concede a todas as pessoas no território de seu governo igual proteção da lei, que concede aos seus cidadãos igual liberdade no direito de viver suas vidas como bem entenderem, e isso exige do Estado ser neutro entre todas as religiões e perspectivas abrangentes representadas na sociedade. Proteção igual sob a lei para todas as pessoas, igualdade de liberdade na lei para todos os cidadãos e neutralidade por parte do Estado no que diz respeito à diversidade de religiões e perspectivas abrangentes - essas são as ideias centrais. (tradução livre) 252

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 135-149.

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117

Em seu sentido descritivo democracia indica o governo de muitos, em

contraposição ao de um só (monarquia) ou ao de poucos (aristocracia). É o governo

da multidão, como diriam Platão e Aristóteles, sendo que para estes a democracia

não seria a forma ideal de governo253. O critério, portanto, é o número, quantidade

de governantes.

O uso descritivo sugere a qualidade da forma de governo, isto é, se seria

uma boa ou má forma de. Nesta acepção:

os traços pelos quais a democracia é considerada forma boa de governo são essencialmente os seguintes: é um governo não a favor dos poucos, mas dos muitos; a lei é igual para todos, tanto para os ricos quanto para os pobres e portanto é um governo de leis, escritas ou não escritas, e não de homens; a liberdade é respeitada seja na vida privada seja na vida pública, onde vale não o fato de se pertencer a este ou àquele partido, mas o mérito.254

Mais do que isso, implica saber se a democracia seria melhor ou pior do

que outras formas de governo.

Os primeiros teóricos do pensamento político moderno como Hobbes,

Locke, Montesquieu preferem a monarquia. Também Spinoza era a favor da

democracia, pois partia de uma visão ex parte populi, em que os governados tem o

direito de não ser oprimidos pelos governantes que devem obedecer à lei tanto

quanto qualquer outro. Ou seja, sua principal preocupação era a liberdade do povo

em contraposição à unidade necessária para o estabelecimento da paz e da ordem,

que justificaria a restrição de liberdade.255

Assim, o defensor da democracia entende que governante e governados

não são entidades separadas, mas se identificam à medida em que o primeiro

provém da sociedade por indicação dela. Essa ideia remete àquele que é

considerado o pai da democracia: Rousseau que expressou a ideia de democracia

253 No oitavo livro da República de Platão, a democracia é considerada uma das formas degeneradas

de governo, pois representaria o governo dos pobres contra os ricos, bem como a liberdade na democracia se converte em licensiosidade pela ausência de freios morais e políticos, pela condescendência geral para com a subversão de toda autoridade e outros. Em Aristóteles também é considerada o governo de uns contra outros, de pobres contra ricos e não visa, portanto, o bem comum (cf. PLATÃO. A República. Tradução Pietro Nassetti, 8ª reimpressão, São Paulo: Martin Claret, 2000). 254 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 141. 255 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 143.

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como associação mediante a qual cada um, livremente, unindo-se aos demais,

obedece apenas a si mesmo, permanecendo assim, livre. 256

Tal ideia rousseauniana de liberdade como obediência da lei prescrita por

si próprio se torna talvez o principal argumento a favor da democracia no período

após as revoluções francesa e americana, bem como com o nascimento das

primeiras doutrinas socialistas e anarquistas:

O progresso da democracia caminha passo a passo com o fortalecimento da convicção de que após a idade das luzes, como observou Kant, o homem saiu da menoridade, e como um maior de idade não mais sob tutela deve decidir livremente sobre a própria vida individual e coletiva. Na medida em que um número sempre maior de indivíduos conquista o direito de participar da vida política, a autocracia retrocede e a democracia avança. 257

Na época em que se foram formando os grandes Estados europeus por

meio da unificação exercida pelos príncipes, utilizava-se como argumento contrário à

democracia o fato de que ela somente seria factível em pequenos Estados. Até

mesmo Rousseau fez afirmações neste sentido.258

Entretanto, nova modalidade de democracia surge concomitantemente no

outro lado do mundo: a democracia representativa nos Estados federados da

América. Segundo Bobbio, deve-se a Alexis de Tocqueville o reconhecimento de

que a democracia representativa na América era a mais autêntica democracia dos

modernos, em contraposição à democracia dos antigos, pois ali a sociedade é

efetivamente soberana, ela é o fundamento do poder.259

Deste modo, as duas características fundamentais deste novo Estado

democrático, assim como elencados por Tocqueville são o princípio da soberania do

povo e o fenômeno da associação. E, assim, essa nova modalidade de governo se

estende à Europa por meio do movimento constitucional dos primeiros decênios do

256 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 145. 257

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 145. 258

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 150. 259

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 151.

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século XIX, que acabou resultando no alargamento do direito de sufrágio e na

formação de partidos políticos.260

Com efeito:

Desejou-se dar uma legitimação às organizações que através da agregação de interesses homogêneos facilitam a formação de uma vontade coletiva numa sociedade caracterizada pela pluralidade de grupos e por fortes tensões sociais.261

Portanto, na modernidade há uma mudança de mentalidade em relação ao

Estado. Passa-se não mais a olhar o Estado a partir do ponto de vista dos

governantes (ex parte principis), isto é, de sua potência e do dever de obediência,

bem como da centralidade do poder; mas do ponto de vista da sociedade, que pode

lhe exigir a garantia da democracia e dos direitos individuais:

A mais alta expressão praticamente relevante desta inversão são as Declarações dos direitos americanas e francesas, nas quais é solenemente enunciado o princípio de que o governo é para o indivíduo e não o indivíduo para o governo, um princípio que exerceu grande influência não apenas sobre todas as constituições que vieram depois, mas também sobre a reflexão a respeito do Estado, tornando-se, assim, ao menos em termos ideais, irreversível.262

3.2.1 O Estado e as Instituições Parciais ou Intermediárias da Sociedade

A evolução da democracia contempla não apenas a integração da

democracia direta, mas, sobretudo, diz respeito a sua expansão até atingir esses

corpos intermédios, que não se equiparam às associações políticas propriamente

ditas.

Desta maneira, o indivíduo passa a ser visto não somente como um

cidadão com deveres e direitos de participação política, porém em toda sua

potencialidade, “na multiplicidade de seus status”263, ou seja, como pai de família,

260

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 153. 261

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 154. 262

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 65. 263

cf. BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad.

Marco Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 156.

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como profissional, como consumidor, como produtor, gestor de serviços públicos ou

seu usuário e uma infinidade de outros.

Portanto o pluralismo é decorrência da mais legítima democracia: O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses

contraditórios e antinômicos.264

Norberto Bobbio, lembrando Tocqueville, ensina:

Contrariamente à democracia dos antigos – que, fundada sobre o governo de assembleia, não reconhece nenhum ente intermediário entre o indivíduo e o Estado, o que faz com que Rousseau (seu moderno advogado de defesa) condene as sociedades parciais, capazes de dividir o que deve permanecer unido -, a democracia dos modernos é pluralista, vive sobre a existência, a multiplicidade e a vivacidade das sociedades intermediárias. Mais que pela igualdade das condições, a sociedade americana impressionou Tocqueville pela tendência que têm os seus membros de se associarem entre si com o objetivo de promover o bem público.265

Tais entes intermediários são associações livres de cidadãos que

sozinhos nada poderiam. Somente por meio da cooperação entre si, da ajuda mútua

para o bem de todos é que tal democracia sobrevive, reconhece Bobbio, como já

notara Tocqueville.

De fato, ao contrário da concepção de Rousseau, Locke e Kant, para

quem somente o acordo de vontades particulares era que formava o Estado, a

sociedade não é constituída somente de indivíduos justapostos. Mas vivendo em

sociedade, as pessoas se organizam em grupos nos quais há uma identidade de

valores e normas, a fim de concretizar o que desejam fazer para alcançar a

felicidade.

É como afirma a teoria organicista de Maurice Hauriou, para quem o

Estado deve ser reformulado para ser um Estado de Solidariedade, do bem comum,

e não do bem-estar individual, onde:

264

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 143. 265

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 152.

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a subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico se baseia não mais na lógica subjetivista, mas na lógica do direito de solidariedade, o qual prepondera sobre o direito individual em matéria de organização do poder.266

O Estado moderno deve se tornar a instituição das instituições, segundo

Maurice Hauriou, ou seja, ele resulta da pluralidade de grupos sociais e de divisão

de funções entre cada um deles, o que reporta a um equilíbrio de forças: “é preciso

procurar na ‘instituição’ os equilíbrios das forças ativas das quais é feita a

estabilidade social”.267

Pois bem, segundo Maurice Hauriou o Estado é composto destes grupos

sociais, que ele denominou “instituições”, das quais as igrejas fazem parte.

Deste modo, se também as igrejas constituem o Estado, não é pelo fato

de que a religião não mais é o fundamento da soberania e poder do governante, que

numa concepção extremista, se deve extirpá-las da sociedade ou, pelo menos, do

âmbito público.

O relato sobre a Cidade Antiga feito anteriormente mostra tal integração

de modo bastante evidente, pois as cidades gregas e romanas foram sendo

fundadas por meio de ritos religiosos que uniam tribos. Estas, por sua vez foram

fundadas da união de frátrias (ou cúrias) que, por sua vez, foram formadas pelas

famílias. Ou seja, a cidade era uma confederação.

Neste sentido, os cultos das famílias eram preservados, assim como o da

frátria e da tribo, cada qual cultuando seus deuses, além dos deuses da cidade, com

suas normas e prescrições. Ou seja, os grupos menores não foram dissolvidos pela

fusão com outros grupos e formação de uma grupo maior. Ao contrário, as tradições

de cada família eram preservadas.

Na época dos iluministas a concepção era do poder soberano do povo

que num pacto social o outorgava ao governante e poderia modificá-lo a qualquer

tempo. Mas Montesquieu, diferentemente, notou que:

Essa forma de governo [República Federativa] é uma convenção, pela qual diversos corpos políticos concordam em se tornar cidadãos

266

FARIAS, José Fernando de Castro. A teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 63. 267

FARIAS, José Fernando de Castro. A teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

1999, p. 100.

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de um Estado maior, que querem formar. É uma sociedade das sociedades, as quais constituem uma nova, que pode aumentar com novos associados, até que seu poder baste para a segurança dos que se uniram.268

Há uma integração na coexistência das instituições ou estados menores,

que Montesquieu chamou de “corpos intermediários”, cujas relações privadas devem

ser respeitadas pelo Estado, que jamais poderá substituí-las. Por esta razão, a

atuação do Estado é subsidiária, tendo como finalidade o bem comum dos

indivíduos e instituições, que tem finalidades específicas.269

Pelo que consta, a concepção de Maurice Hauriou se coaduna com o

entendimento da Igreja Católica a esse respeito, senão vejamos o que diz a

Constituição Apostólica Gaudium et spes:

Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem quer que seja. Juntamente com os deveres a que todos os cidadãos estão obrigados, sejam reconhecidos, assegurados e fomentados os direitos das pessoas, famílias e grupos sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre aqueles, é preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os governantes tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua actividade legítima e eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado promovê-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual quer associativamente, conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais.270

Tais entes intermediários entre o indivíduo e o Estado se revelam

inicialmente na família, célula mater da sociedade. Depois vem a escola, a

universidade, a empresa, a associação de classes de profissionais, os sindicatos,

268

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis : as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. Tradução de

Pedro Vieira Mota, 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p.154. 269

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

1989, p. 91. 270

Disponível em http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html Acesso em 02-03-2014.

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partidos políticos e tantos outros. Dentre estes grupos estão também os grupos

religiosos ou as igrejas. Isso é um fato social.

Logo, num Estado Democrático às pessoas é permitido associar-se para

manifestar suas crenças e agir na sociedade em conformidade com sua consciência.

E são inúmeras as formas como elas despontam, o que resulta numa sociedade

plural.

Pois bem, não privar os cidadãos e suas instituições de atuar na vida

social e política é dever do Estado, sendo este o verdadeiro sentido de liberdade,

conforme o entendeu Hannah Arendt e se abordará mais adiante.

3.2.2 Finalidade do Estado: O Bem Comum

Enfrentar a questão da finalidade do Estado é necessário para examinar

se as funções que ele desempenha são com ela coerentes:

A falta de consciência das finalidades é que faz com que, não raro, algumas funções importantes, mas que representam apenas uma parte do que o Estado deve objetivar, sejam tomadas como finalidade única ou primordial, em prejuízo de tudo o mais. Dois exemplos atuais, ilustrativos dessa deformação, são representados pela superexaltação da funções econômico-financeiras do estado e pela obsessão de ordem, uma e outra exigindo uma disciplina férrea, que elimina, inevitavelmente, a liberdade.271

Há, por um lado, algumas concepções que defendem que a finalidade

seria elemento essencial do Estado e outras, que nem seria interessante estudá-la,

já que é por demais genérica272, e, ainda outras, que o Estado seria um fim em si

mesmo.

Seja como for é impossível negar importância ao seu estudo, tanto que há

inúmeras teorias em torno dela, classificando-as ou entre as que distinguem os fins

em subjetivos e objetivos, ou fins expansivos, limitados e relativos.

Dallari procede a uma síntese de todas essas ideias verificando que

o Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam

271

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

1989, p. 87. 272

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,

1989, p. 87.

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atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pois pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana.273

A referência ao pontífice católico trata da Encíclica Pacem in Terris, que

afirma textualmente o seguinte:

A atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos 53. Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isso dizer que os respectivos atos da autoridade civil não só devem ser formalmente corretos, mas também de conteúdo tal que de fato representem o bem comum, ou a ele possam encaminhar. 54. Essa realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos, os quais devem promovê-lo de tal modo que, ao mesmo tempo, respeitem os seus elementos essenciais e adaptem as suas exigências às atuais condições históricas.(grifo do autor)274

Bastante interessante este reconhecimento da Igreja sobre o propósito do

Estado, com base na lei e no bem comum.

A diferença entre a sociedade e o Estado é fundamental, já que este

busca o bem comum de seu povo, aquele que se situa em seu território. Deste

modo, é às pessoas componentes deste povo que se destina a ação do Estado,

mais especificamente para promover seu desenvolvimento humano integral.

Tem-se em vista aqui que, o que determina as peculiaridades de ação de

cada Estado são as peculiaridades de seu povo.275

Segundo o entendimento de José Pedro Galvão de Souza o homem

busca na vida terrena o que necessita para realizar sua felicidade, que, no entanto,

não se alcança plenamente na vida temporal, mas somente na eternidade, para

273

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 91. 274

JOÃO XXIII, Beato Papa.Carta Encíclica Pacem in terris. Vaticano, 1963. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html>. Acesso em 25-03-2014. 275

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo; Saraiva,

1989, p. 91-92.

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onde o homem é guiado pela Igreja276. Por esta razão é necessário que haja união e

harmonia entre o Estado e a Igreja que devem fazê-lo em cooperação.

Neste sentido o Estado deve assegurar a liberdade de crença e

consciência, pois isto faz parte do desenvolvimento integral de cada pessoa que tem

o direito de buscar o sentido de sua existência e viver de acordo com ele.

E não apenas isto. Deve dar todo tipo de apoio, inclusive financeiro, a

instituições que comprovadamente praticam obras de caridade e auxiliam na

construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

E, assim, Estado e sociedade buscando a cooperação para o bem

comum, poderão construir uma verdadeira família dos povos:

A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus, que é a meta pra onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a

cidade de Deus sem barreiras.277

3.3 Liberdade Religiosa

A liberdade religiosa foi uma das primeiras liberdades asseguradas nas

declarações de direitos, alcançando a condição de direito humano fundamental

consagrado na esfera do direito internacional e na grande maioria dos Estados

Democráticos, permanecendo no cerne da problemática dos direitos fundamentais,

dado ser uma aquisição recente:

Não existiu nas teocracias orientais e nas Cidades-Estado da antiguidade clássica, nem pode existir em certos Estados Islâmicos da actualidade; assim como não poderia coadunar-se com o cesaropapismo bizantino (com afloramentos no Ocidente medieval e que se prolongaria na Rússia czarista), ou, em menor grau embora, com o regalismo das monarquias absolutas dos séculos XVI a XVIII. Muito menos garantem a liberdade religiosa os regimes totalitários e a maior parte dos regimes autoritários contemporâneos, sejam quais

276

SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 15. 277

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo, Paulinas, 2009, p. 11.

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forem as suas inspirações; toleram-na, quando a não podem destruir.278

Segundo o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, nos estudos de Georg

Jellinek sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a

liberdade religiosa teria sido a primeira expressão da ideia de um direito universal e

fundamental da pessoa humana. Mas:

Independentemente da posição de Jellinek estar, ou não, correta em toda a sua extensão, o fato é que a proteção das opiniões e cultos de expressão religiosa, que guarda direta relação com a espiritualidade e o modo de conduzir a vida dos indivíduos e mesmo de comunidades inteiras, sempre esteve na pauta preferencial das agendas nacionais e supranacionais em matéria de direitos humanos e fundamentais.279

De acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948,

artigo XVIII:

Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. 280

Outro importante documento internacional de direitos humanos que trata

deste direito é o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966,

promulgado no Brasil pelo Decreto 592/92281, artigo 18, afirma:

1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de

278

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 407. 279

SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luís Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional, 2ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 471. 280

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Disponível em http://www.dudh.org.br/declaracao/ Acesso em 02-03-2014. 281

BRASIL. Decreto 592 de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm> Acesso em 02-03-2014.

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professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.

No âmbito dos países americanos foi assinado o Pacto de San José da

Costa Rica282que praticamente reproduziu a norma acima. O direito também está

previsto (não de forma tão detalhada) nas Convenções da Europa e África, mas de

modo específico a ONU o proclamou pela Assembleia Geral de 1981 por meio da

Resolução 36/55.

De acordo com a doutrina brasileira de José Afonso da Silva283 a

liberdade religiosa compreende três vertentes, quais sejam a liberdade de crença, a

liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa.

Na liberdade de crença, que não se confunde com a liberdade de

consciência, está incluída a liberdade de optar pela religião que se quer, de aderir a

seitas religiosas, mudar de religião, e, ainda, o direito de não aderir a nenhuma

religião. “Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de

qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai

até onde não prejudique a liberdade dos outros” 284

A prática de rituais próprios da religião escolhida é garantida pela

liberdade de culto seja em casa, seja em público, o que inclui o direito de receber

contribuições para tanto. Abrange, além disso, o direito de proteção pelo Estado aos

locais de culto. No Brasil a Constituição Federal dá inclusive imunidade tributária aos

templos de qualquer profissão religiosa.

282

BRASIL. Decreto 678 de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm> Acesso em 02-03-2014. 283

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 248. 284

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 249.

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Reunir-se em locais públicos para a prática religiosa é também um direito,

porém aproxima-se mais da liberdade de reunião do que da liberdade religiosa

propriamente.

Por fim, a liberdade de organização religiosa é o direito de ser

reconhecido como entidade organizada e instituída no território daquele país e de

estabelecer relações com o Estado.

No Estado laico como já se viu, essas relações são de absoluta

neutralidade, pois não podem privilegiar ou obstaculizar qualquer religião.

É fato incontroverso que, para a garantia de igual liberdade a todas as

religiões, a laicidade, entendida como independência e neutralidade entre Estado e

Igreja, é condição sine qua non, além da transferência do exercício do poder político

para uma base não mais religiosa.285

Tal neutralidade não impede, entretanto, um regime de cooperação entre

o Estado e as instituições religiosas que a isto se propuserem, sempre com

finalidade de interesse público e do bem comum.

É notório que as entidades religiosas promovem o acolhimento dos

necessitados em abrigos, hospitais, casas de apoio e tantas outras, assumindo

funções que, a princípio caberiam ao Estado. Por esta razão, é importante

regulamentar essas relações evitando a invasão da esfera de um pelo outro,

relações de dependência e confusão de papéis, como outrora ocorrera.

Os ateístas, de seu turno, enfrentam um estigma por seus

posicionamentos contrários à religião. Por serem discriminados encontram nos

ideais da liberdade religiosa, também a liberdade de não ter religião.

Há ateístas, entretanto, que não aceitam ser denominados deste modo,

preferindo ser identificados como agnósticos. Significa que não aceitam e nem

defendem a tese da existência de Deus, mas não negam a possibilidade de que

exista uma divindade. Afirmam eles que essa questão não pode ser resolvida devido

à limitação da razão humana.286

De todo modo, a liberdade religiosa atinge a todos: os que professam

uma religião pela qual optaram e os que nada professam neste sentido.

285 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 286 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e estado no Brasil: Utopia

Constitucional? Tese de doutoramento em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 54-55.

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O fato é que a liberdade religiosa está estreitamente ligada com a

liberdade cultural e a liberdade política:

Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões – compatível com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado – não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política. Assim como, em contrapartida, aí onde falta a liberdade política, a normal expansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada.287

3.3.1 A Importância da Religião

Nesse novo contexto ocidental de secularização, a grande questão que se

impõe é: a religião integra o patrimônio de uma nação, assim como sua filosofia,

ciências e artes plásticas, a ponto de demandar igual solicitude do Estado? Ou será

que as exigências da alma e do espírito humano, assim como sua consciência moral

e tradições, reveladas na religião professada deveriam ser excluídas de sua

proteção e generosidade? Seria isto liberalismo, democracia e pluralismo ou

verdadeiro ateísmo?

Para Karl Marx, um dos maiores expoentes do ateísmo na humanidade é

necessária não apenas a completa separação entre religião e Estado, mas uma

verdadeira extinção da ideia de que a religião tem importância social. Seu

pensamento se resume na concepção de que a religião é o “ópio do povo”. Está

presente em muitos segmentos políticos, mas de maneira especial no comunismo,

cujo evidente objetivo era enfraquecer a oposição das pessoas e operar sobre elas o

controle total.288

No liberalismo de John Rawls, há uma pressuposição de que na

autonomia política racional dos cidadãos se integra a preocupação não somente

com os desejos materiais e físicos, mas com a realização dos interesses de ordem

superior relacionados à sua capacidade moral e concepções do bem, a fim de

possibilitar que as pessoas desenvolvam-se integralmente:

287

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 408. 288 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e estado no Brasil: Utopia

Constitucional? Tese de doutoramento em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 53.

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Numa cultura democrática, esperamos e, mais do que isso, desejamos que os cidadãos se preocupem com suas liberdades e oportunidades básicas, a fim de desenvolver e exercer suas capacidades morais, e de procurar realizar suas concepções do bem. Julgamos que mostram falta de auto-respeito e fraqueza de caráter quando não o fazem.289

Como se demonstrou, desde as sociedades primitivas a religiosidade é

típica do espírito humano, provém do desejo de transcendência e, ainda que Freud

atribua esse “sentimento oceânico” ao inconsciente290, é inegável que o homem

desde os primórdios até a pós-modernidade teve necessidade de busca de algo

além do mundo material, de dar sentido a sua existência.

O sagrado designa o que é separado do mundo material, algo que

transcende, ultrapassa o homem. O fato é que

ao ser humano parece sempre ter repugnado a falta de sentido, a ausência de ordem, daí porque seja recorrente, na mitologia dos povos, uma cosmologia ou cosmogonia. [...] as diversas culturas expressaram com nomes diferentes, a mesma ânsia por organização e sentido [...] O sagrado enquanto elemento estruturador de todas as coisas remanesce sempre preservado da desordem, da desagregação, da entropia, ensejando o aparecimento, no seio das sociedades, de desdobramentos morais e jurídicos [...].291

Em contraposição ao sagrado está o profano que é o “reino do devir, da

inconstância, da relatividade, da dispersão e, como tal, não conta com um centro,

um ponto fixo capaz de conferir estabilidade ao mundo”.292

A morte é uma realidade do reino profano que deixa atônito o homem e o

desafia na busca de sentido.

Para alguns, essa predisposição faz do homem um animal naturalmente

voltado para a transcendência, denominado homo religiosus.. 293

289

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 121-123. 290

FREUD, Sigmund. O Mal estar na Civilização. Tradução Paulo César de Souza – 1ª edição: Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2011, passim. 291 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 20-21. 292 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 22.

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Não se quer dizer com isso que a fé é resultado de uma necessidade

humana de ordem, pois isso implicaria dizer que é o cérebro que cria o fenômeno

religioso. O sagrado é da ordem do mistério que ultrapassa as fronteiras do querer

humano.294

É bastante esclarecedora sobre a importância da religião, a posição do

Papa Emérito Bento XVI ao afirmar que:

Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no desenvolvimento humano integral e impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa ao amor divino.295

A justiça como equidade defendida por Rawls vê a sociedade como

avalista do reconhecimento público das pessoas como cidadãos livres e iguais: “Ao

garantir essas coisas, a sociedade política satisfaz as necessidades fundamentais

dos cidadãos”. E que

[...] em circunstâncias normais, podemos supor que essas capacidades morais se desenvolverão e se exercerão sob as instituições da liberdade política e da liberdade de consciência, e que seu exercício deve ser promovido e apoiado pelas bases sociais do auto-respeito e do respeito mútuo.296

Ora, o fato de que há grande parte da sociedade composta por pessoas

crentes não pode, simplesmente, ser ignorado pelo Estado, como se não se tratasse

de assunto seu, até porque uma posição assim não contribui com a construção da

solidariedade entre os cidadãos e os povos, tão cara ao estabelecimento da paz.

Vale trazer a tona o teor da palestra do ex-premier britânico Tony Blair

proferida na Universidade de Yale em dezembro de 2008, auge da crise econômica

que ainda reflete suas implicações, no sentido de que a fé e os credos podem ser

293 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 25. 294 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 26. 295

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo, Paulinas, 2009, p. 49. 296 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 251.

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determinantes no futuro que se pretende construir, pois tanto poderá ser elemento

de destruição, quanto de congregação, o que importa é buscar os valores comuns a

todos e estabelecer a cooperação para uma nova globalização.

Percebeu o político que acolher a fé e as religiões, garantindo a tolerância

e respeito mútuos não apenas é exigência de Justiça, como resulta na convivência

pacífica e solidária. Ainda que por razões práticas, de eficiência, o fato é que houve

a percepção da necessidade de incluir a fé na política e não simplesmente renegá-

la, isolando-a ao respectivo templo:

Deste meu empreendimento tirei dez lições: 1) A fé religiosa é muito importante. Gostemos ou não, bilhões são motivados por ela. 2) A fé não está em declínio. Poderá estar em declínio em alguns lugares, mas não no mundo todo. Em algumas partes está em ascensão. 3) A fé religiosa pode atuar de modo positivo, apoiando, por exemplo, as Metas de Desenvolvimento do Milênio estabelecidas pela ONU para reduzir a pobreza e permitir o avanço do desenvolvimento. Ou pode atuar de modo negativo, com o extremismo. 4) A globalização está criando sociedades multiconfessionais. A Londres onde meu filho está crescendo é totalmente diferente da Londres em que teria crescido há 30 anos. O mesmo se aplica a toda a Europa e aos EUA. 5) Para funcionar com eficiência, a globalização precisa de valores como confiança, fé, abertura e justiça. 6) A fé não é o único meio, mas é importante para proporcionar estes valores, quando a própria fé se abre e não se fecha; quando se baseia na compaixão e na ajuda aos outros e não numa identidade única. 7) Para que a globalização possa prosperar, precisamos de capital social - a confiança recíproca para que possamos confiar no futuro. O capital espiritual é uma parte importante do capital social. 8) Mas, em uma era de globalização e de sociedades multiconfessionais, a criação do capital exige não apenas tolerância, mas também o respeito pelas pessoas de outras confissões. 9) O elemento fundamental do respeito é a compreensão e, portanto, a necessidade de aprender e educar-se a respeito da fé e das tradições do outro. 10) A religião organizada deveria apoiar este processo e permitir por meio dele a evolução da fé de modo que ela seja uma força positiva, construtiva e progressista. A fé e seus valores são muito importantes. Sua integração definirá de modo crucial as perspectivas de sucesso, de prosperidade e de coexistência pacífica da sociedade global em que vivemos. A alternativa é a tensão, o conflito e a violência. O que isso significa em termos práticos? Antigamente eu acreditava que a globalização era um processo que não contemplava valores. Eu pensava que numa era de globalização era preciso buscar a justiça por seu valor

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intrínseco, e não por motivos de eficiência. Agora mudei minha posição. A crise econômica mostra o por quê.297

Mais do que um direito de participar da vida pública, todos os cidadãos,

sejam religiosos e motivados por sua crença ou não, tem nela o “locus privilegiado

da vida digna de ser vivida” 298.

É lá que as funções são colocadas a bem da sociedade.

3.3.2 Tolerância Religiosa

Pois bem, após as análises precedentes a respeito da secularização,

laicidade e laicismo, já se concluiu ser não religioso não significa para o Estado que

ele deva ser antirreligioso.299

Então qual deve ser a postura de um Estado Laico em relação à religião

de modo geral?

O Estado laico, não confessional, além de não poder associar-se com

quaisquer igrejas ou associações religiosas, deve também garantir a tolerância e

respeito entre religiões e entre cidadãos de diferentes crenças, inclusive a crença na

inexistência de Deus, zelando pela cooperação entre todos para a construção de

uma sociedade verdadeiramente democrática e solidária.

Na verdade, em sua origem, a palavra tolerância estava estritamente

relacionada com a transigência em relação a outras confissões religiosas, passando

a ser termo jurídico quando alguns governos, no decorrer dos séculos XVI e XVII,

começam a redigir documentos neste sentido, exigindo da população ortodoxa, o

trato respeitoso com as minorias religiosas. Foi o que ocorreu na França, quando

Henrique IV publicou o Edito de Nantes300.

297

BLAIR, Tony. O papel da fé para o êxito da globalização. adaptação de uma palestra feita por ele, na Universidade de Yale. Artigo extraído do periódico Estado de São Paulo de 20 de dezembro de 2008. (Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-papel-da-fe-para-o-exito-da-globalizacao,297203,0.htm – Acesso em 27-02-2014). 298

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 255. 299 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi: Martins Fontes, São Paulo:

2007, p. 692-693. 300

O Edito de Nantes foi promulgado em 13 de abril de 1598 e concedeu, ainda que de maneira limitada, aos protestantes da França, os huguenotes, direitos religiosos, civis e políticos, pois vinham sendo duramente reprimidos pelas autoridades seculares e eclesiásticas daquele país.

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Posteriormente, o instituto foi sendo englobado em outras normas de

outras nações. Essas normas determinavam um comportamento indulgente com

membros de uma comunidade religiosa até então acuada.301

Entretanto, quando hoje se fala em tolerância, o que vem à mente é um

conceito mais generalizado para a questão da convivência com as minorias ou os

que são chamados de “diferentes” como negros, homossexuais e deficientes.302

Vale trazer a diferenciação aduzida por Norberto Bobbio entre a ideia de

tolerância geral e a específica em relação às religiões, pois as razões de defesa de

um tipo e de outro são diferentes.

No primeiro caso, trata-se de verdadeiro preconceito por motivos físicos

ou sociais, que deságuam na inevitável discriminação dessas minorias. Já o

segundo deriva da convicção de que se está com a verdade. E, nesse caso, como

seria possível compatibilizar duas verdades opostas?

Bobbio se ocupa das razões da tolerância religiosa, da convivência de

confissões religiosas diversas, problema que nasceu com a reforma e a

consequente divisão da cristandade. Bastante perspicaz a observação do jurista

italiano:

Da acusação que o tolerante faz ao intolerante, isto é, de ser um fanático, o intolerante se defende acusando-o de, por sua vez, ser um cético ou, pelo menos, um indiferente, alguém que não tem convicções fortes e que considera não existir nenhuma verdade pela

qual valha a pena lutar.303

Recorda ele a posição de Benedetto Croce segundo quem a tolerância

seria mera fórmula prática e contingente e não um princípio universal. Portanto, não

poderia ser um critério de julgamento da história, que teria critérios a ela própria

inerentes. Ainda, segundo Benedetto Croce, os tolerantes nem sempre foram os

espíritos mais combativos e vigorosos e sim os indiferentes e retóricos (termo

utilizado de modo pejorativo). Significa dizer que os tolerantes não eram assim

devido a boas razões, mas por não dar a menor importância à verdade.

301 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 279. 302

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 187. 303

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 187.

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Contudo, Bobbio analisa as razões práticas e teóricas da tolerância, por

não estar convencido disso.304

O que é mais interessante na análise de Bobbio é que ele reconhece que

a tolerância pode ter um sentido negativo ou indulgência com o mal, seja por

comodismo, cegueira ou falta de princípios. Infelizmente, alguns usariam este

sentido negativo para denegrir a tolerância como um todo.

De todo modo, a primeira razão prática para ser tolerante é a de que isto

seria um mal menor. Desse modo, a tolerância não implicaria renunciar à própria

verdade, mas apenas suportar erro alheio:

Mesmo nesse nível elementar, capta-se a diferença entre o tolerante e o cético: o cético é aquele para quem não importa que a fé triunfe; o tolerante por razões práticas dá muita importância ao triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da tolerância, o seu fim, que é combater o erro ou impedir que ele cause danos, é melhor alcançado do que mediante a intolerância.305

Uma segunda razão seria a escolha da persuasão como método de

convivência e a recusa consciente da violência como método de triunfo das ideias.

Este seria um traço dos regimes democráticos a diferenciá-los do despotismo.

A terceira razão aduzida por Bobbio tem cunho moral e não meramente

utilitarista: é o respeito ao outro. Não significa, portanto, renunciar à própria verdade

ou ser indiferente. É atitude que está intimamente ligada ao reconhecimento do

direito de liberdade.

Ao lado dessas três razões práticas da tolerância há razões teóricas,

segundo as quais “ a verdade tem muitas faces”. Segundo Bobbio são três posições

filosóficas neste sentido: o sincretismo, o ecletismo e o historicismo relativista:

O sincretismo de que foi expressão, numa época de grandes controvérsias teológicas o humanismo cristão, e hoje, numa época de grandes conflitos ideológicos, as várias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; o ecletismo, ou filosofia do “justo meio”, que teve o seu breve momento de celebridade como filosofia da restauração, e, portanto, também numa perspectiva irênica, após período de choque violento entre revolução e reação, revivendo hoje nas várias propostas de “terceira via”, entre liberalismo e socialismo,

304

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 188. 305

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 189.

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entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo e coletivismo; e o historicismo relativista, segundo o qual, para retomar a famosa afirmação de Max Weber, numa era de politeísmo de valores, o único templo aberto deveria ser o panteão, um templo no qual cada um pode adorar seu próprio deus.306

Seja como for:

O núcleo da ideia de tolerância é o reconhecimento do igual direito a conviver, que é reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considera depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos do direito ao erro de boa fé. A exigência da tolerância nasce no momento em que se toma consciência da irredutibilidade das opiniões e da necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma

regra do jogo), que permita que todas as opiniões se expressem. Ou a tolerância, ou a perseguição: tertium non datur.307

De qualquer modo, a tolerância tem alcance dúplice, designando tanto a

conduta condescendente entre cidadãos de confissões diversas, quanto a postura

transigente do Estado em relação a todas as religiões:

É possível uma distinção mais nítida entre “tolerance” enquanto virtude ou disposição para o comportamento e “toleration”, que constitui um ato jurídico. Nós empregamos a mesma expressão “tolerância” (Toleranz) para designar ambas as coisas: tanto uma ordem jurídica que garante tolerância, como a virtude política do trato tolerante.308

Tolerância no sentido de não intervenção do Estado no âmbito privado de

seus cidadãos, forçando-os a uma determinada crença religiosa foi bastante

difundida pelo iluminista e burguês protestante John Locke. Ele afirmou

categoricamente que não deve haver confusão entre a esfera religiosa e secular. Na

ocasião, a religião católica ainda era imposta em alguns Estados.

Para o filósofo inglês, o Estado deve se preocupar com a proteção dos

interesses materiais de seus cidadãos, mas não tem nenhum poder sobre o recesso

íntimo das consciências individuais e, por conseguinte, sobre a fé que escolhem.

306

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 192. 307

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 194 (tertium non datur: expressão em latim que significa que há impossibilidade de uma terceira via). 308

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 280

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137

Além disso, John Locke afirmava que o poder do soberano não era

fundamentado na vontade divina, mas originado no pacto social, isto é, um acordo

entre os indivíduos livres com intuito de utilizar sua força coletiva na execução das

leis naturais, renunciando à executá-las pela força individual.

Em suas próprias palavras:

Denomino de bens civis a vida, a liberdade, a saúde física e a libertação da dor, e a posse de coisas externas, tais como terra, dinheiro, móveis, etc. É dever do magistrado civil [...] assegurar para o povo em geral e para cada súdito em particular a posse justa dessas coisas que pertencem a esta vida [...] o magistrado reveste-se de força, ou seja, com toda a força de seus súditos, a fim de punir os que infringiram quaisquer direitos de outros homens.[...] Não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas [...] Isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre o outro para induzir outros homens a aceitar sua religião [...] Mesmo se alguém quisesse, não poderia jamais crer por imposição de outrem. É a fé que dá força e eficácia à verdadeira religião que a gente professa [...] Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito.309

Para ele a religião é escolha individual, segundo a consciência de cada

um, sendo impossível sua imposição por meio da força coercitiva, que caberia ao

poder civil. No entanto, para Locke aos ateus não caberia nenhum tipo de tolerância.

A causa disto, segundo Norberto Bobbio era a certeza de que um ateu

não teria razão para cumprir uma promessa ou observar um juramento, e, portanto,

não seriam pessoas confiáveis. 310

Da mesma maneira, mesmo que um príncipe seja cristão não pode

favorecer sua igreja em detrimento de outras ou de um ateu. Às igrejas, por seu

turno, seria razoável excomungar os que transgridem seus preceitos, desde que de

modo não ofensivo.

Continua Locke afirmando que faz parte da missão do que professa

determinada fé, a manifestação pública, o ensino de sua doutrina, o testemunho de

sua vida, não cabendo à religião um lugar apenas privado:

309

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São

Paulo: Abril Cultural, 1983, p.5. 310

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 193.

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Libertamos, assim, todos os homens de se dominarem mutuamente em assuntos religiosos. Portanto, o que é que devem fazer? Todos nós sabemos e reconhecemos que temos que cultuar Deus publicamente; por que devemos nos reunir em assembleias públicas? Porque os homens dotados dessa liberdade devem fazer parte de certa sociedade religiosa para manter serviços públicos, não apenas para mútua edificação, como também para testemunhar ao mundo que são cultores de Deus [...] e, finalmente, pela pureza de sua doutrina, santidade de sua vida, e forma decente de culto, estimam encorajar outros a amar a religião e a verdade, e a executarem esses serviços religiosos que não podem ser realizados pelos homens isoladamente.311

Resulta daí que, ao Estado não caberia proibir os cultos religiosos, mas

garantir sua segurança e proteção.

Nem pessoas, nem igrejas, segundo Locke devem se atacar ou prejudicar

mutuamente em seus bens civis por professarem religiões diversas.

Locke assim ensinou por ter concluído que a intolerância religiosa teria

sido a razão da maioria das disputas e guerras que se tem manifestado no mundo

cristão, pois os líderes religiosos estavam imbuídos de avareza e desejo de

domínio.312

Essa concepção subjetiva de tolerância também é reconhecida em

autores contemporâneos como Jürgen Habermas e Norberto Bobbio.

Para o primeiro:

Devemos continuar respeitando no outro o co-cidadão, mesmo quando avaliamos sua fé ou seu pensamento como falsos ou rejeitamos a correspondente conduta de vida como ruim. A tolerância preserva uma comunidade política pluralista de se dilacerar em meio a conflitos oriundos de visões de mundo diferentes.313

Assim, a tolerância em seu aspecto social exige o igual respeito e o

reconhecimento recíproco da liberdade religiosa como regras da atitude

condescendente, que requer a ausência de qualquer tipo de coação, seja política,

seja moral, a fim de fazer prevalecer verdades de fé:

311

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São

Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 14. 312

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São

Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 27. 313

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 286.

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A tolerância religiosa pode ser garantida de modo transigente pelas condições sob as quais os cidadãos de uma comunidade democrática se concedem mutuamente liberdade de religião. Desta maneira, é possível solucionar o aparente paradoxo [...] pelo direito ao livre exercício da própria religião e pela correspondente liberdade negativa de não ser molestado pela religião dos outros.314

Observe-se que tolerar não significa ser indiferente, mas ter respeito à

liberdade de escolha do outro, admitindo-se a presença de outras cosmovisões lado

a lado com a que foi por si escolhida. Não pode estar presente, portanto, o

preconceito, nem, por outro lado, a ideia de que todas as concepções de mundo

devem ser aceitas por todos como igualmente verdadeiras.

Como leciona John Rawls, cada religião é uma doutrina compreensiva, ou

seja, é uma imagem de mundo que envolve integralmente e conduz a vida de seus

membros. Deste modo, a tolerância é necessária para evitar a ânsia de impor-se

sobre os demais e consequentemente evitar conflitos intermináveis para fazer

prevalecer apenas uma visão de mundo. As religiões, neste sentido, tem que

compreender que a vida política se diferencia da vida religiosa.

De outro lado, os cidadãos seculares devem compreender que essa

diferenciação não implica na exclusão da religião da vida política, mas na aceitação

de que as motivações de religiosos na esfera pública são invariavelmente religiosas:

“A necessária diferenciação dos papéis de membro de uma comunidade e de

cidadão da sociedade precisa ser fundamentada, convincentemente, na visão da

própria religião. Caso contrário, os conflitos de lealdade aprofundar-se-ão”. 315

Isso quer dizer que, a tolerância é uma exigência pacificadora a ser posta

em prática pelos cidadãos religiosos entre si, sem que nenhum deles seja obrigado a

reconhecer como verdadeira uma concepção diversa, mas é, de outra maneira, uma

imputação também aos não crentes:

Porquanto, em sociedades pluralistas constituídas de modo liberal, a compreensão da tolerância não exige apenas dos crentes, no seu trato com crentes de crenças diferentes, que levem na conta, de modo razoável, a devida permanência de um dissenso. Já que a mesma compreensão é exigida dos não-crentes no seu trato com crentes em geral. Para a consciência secular isso implica, contudo, a

314

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 282. 315

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 291.

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exigência de determinar, de modo autocrítico, a relação entre fé e saber.316

Habermas afirma isto porque entende que o saber deve conceder à fé um

“status epistêmico”, deixando de olhá-la como se fosse uma simples irracionalidade.

Ele perfilha que a verdadeira tolerância a ser garantida pelo Estado secular deve

assegurar que as cosmovisões se desenvolvam sobre a base do respeito mútuo,

“sem regulamentações preconceituosas” de parte a parte.

É imperativo reconhecer que, em assuntos polêmicos, que envolvam

questões éticas, como aborto e manipulação genética; as opiniões políticas

baseadas em visões de mundo religiosas podem “abrir os olhos de outros cidadãos

para um aspecto até então negligenciado, de tal sorte que eles podem influenciar a

formação da maioria”.317

O direito de livre escolha religiosa e sua manifestação exige do Estado a

pacificação do pluralismo das visões de mundo:

Somente o exercício de um poder secular estruturado num Estado de direito, neutro do ponto de vista das imagens de mundo, está preparado para garantir a convivência tolerante, e com igualdade de direitos de comunidades de fé diferentes que, na substância de suas doutrinas e visões de mundo continuam irreconciliáveis. A secularização do poder do Estado e as liberdades positivas e negativas do exercício da religião constituem que dois lados de uma mesma medalha. No passado, elas protegeram comunidades religiosas, não somente das consequências destrutivas resultantes de conflitos sangrentos que irromperam entre elas, mas também de um modo de pensar, inimigo da religião, difundido numa sociedade secular.318

Por outro lado,

O direito fundamental da liberdade de consciência e de religião constitui a resposta política adequada aos desafios do pluralismo religioso. Isso permite desarmar, no contexto do trato social dos cidadãos, o potencial conflituoso que continua permeando, no nível

316

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 293. 317

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 294. 318

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 9.

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141

cognitivo, as convicções existenciais de crentes, de não-crentes e de crentes de outras denominações.319

Significa dizer que num Estado constitucional que garante a liberdade de

culto e consciência, tolerância e laicidade se entrelaçam:

Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico, por outro, entendido este como a formação daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais às razões da razão que une todos os homens do que

aos impulsos da fé. 320

E, enfim:

Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados não confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo liberais, ou neutros em matéria política; e por outro, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrataste de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da áurea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que não invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, “a liberdade do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal” (que é a lei da razão).321

3.4 Lugar da Religião no Espaço Público

Enfim, chega-se ao ponto nevrálgico deste estudo, a tentativa de reflexão

acerca de uma questão crucial para a filosofia, a religião e o Estado moderno:

Até que ponto a separação entre Igreja e Estado, a qual é requerida pela constituição, pode influenciar o papel a ser desempenhado pelas tradições e comunidades religiosas na esfera pública política e na sociedade civil, portanto, na formação política da opinião e da vontade dos cidadãos?322

Ou seja, a neutralidade inerente à racionalidade que supera as

intolerâncias recíprocas implica em que as religiões devam ficar completamente

319

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 320 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 198. 321

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,

Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 198. 322

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136.

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apartadas do espaço público? Ou seja, motivações e argumentos de fundo religioso,

com repercussão em questões de interesse da sociedade, por obediência à regra de

tolerância, devem ser coibidos de participação política, de se expressar?

A resposta é negativa porque não se pode ignorar a existência das bases

pré-políticas, anteriores ao nascimento daquele Estado. Ou seja, havia uma nação

com valores e regras de convivência, antes da instituição do Estado e do

ordenamento jurídico, que, por questões de legitimação do poder, devem ser

recepcionadas.

3.4.1 O Reconhecimento da Existência das Bases Pré-Políticas e o Problema da Legitimação do Direito

Sobre a existência dessas bases pré-políticas do ordenamento jurídico,

identificando-as como seu poder originário, ou a fonte das fontes, leciona Norberto

Bobbio que:

Nenhum ordenamento nasce num deserto; metáforas a parte, a sociedade civil na qual se vem formando um ordenamento jurídico, como é, por exemplo, o do Estado, não é uma sociedade natural, destituída por completo de leis, senão uma sociedade na qual vigem normas de variados gêneros, morais, sociais, religiosas, costumeiras, consuetudinárias, convencionais e outras mais. O novo ordenamento que surge não elimina jamais por completo as estratificações normativas que o precederam.323

Este novo ordenamento, segundo o autor, já surge limitado pelos

ordenamentos precedentes, isto é, pelas fontes culturais, morais, éticas, religiosas

que formaram aquele povo e lhe deram a identidade324. São essas as bases pré-

políticas de uma sociedade.

Sobre o problema da legitimidade ou justificação do poder afirma Norberto

Bobbio:

Admitido que o poder político é o poder que dispõe do uso exclusivo da força num determinado grupo social, basta a força para fazê-lo

323

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 55. 324

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:

Edipro, 2011, p. 56.

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aceito por aqueles sobre os quais se exerce, para induzir os seus destinatários a obedecê-lo?325

O filósofo alemão Jürgen Habermas reflete sobre o mesmo assunto

partindo da pergunta formulada por Ernst-Wolfgang Böckenförde em meados dos

anos 60, qual seja: “Será que o Estado secularizado continua alimentando-se de

pressuposições normativas que ele não consegue garantir por si mesmo?”.326

A pergunta revela a preocupação em saber se o Estado por si só

consegue manter e renovar suas pressuposições normativas ou depende de

tradições éticas, religiosas ou metafísicas, para obrigar a coletividade.

Certamente era esta também a proposição de Fustel de Coulanges

quando, conforme páginas atrás, afirmou: “a nossa natureza sente a necessidade de

não se submeter a outra autoridade que não seja a concepção moral”327.

Na antiguidade, como na Idade Média, essa legitimação da autoridade era

obtida por fundamentação religiosa, onde o detentor do poder estava abalizado pela

autoridade religiosa, isso quando ambos não se confundiam na mesma pessoa.

Já na Modernidade o Estado secular não conta mais com esta base,

então donde virá tal autoridade? O que poderá dar a quem detém o poder, uma

razão de comandar, e a quem suporta o poder, uma razão de obedecer?

A autoridade estabelecida sobre a tradição, ou em outras palavras, sobre

tais bases pré-políticas, segundo Hannah Arendt, é que faz com que os homens

obedeçam, pois “a autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua

liberdade”.328

Gaetano Mosca respondeu à pergunta afirmando que

em todas as sociedades discretamente numerosas e que apenas chegaram a um certo grau de cultura, aconteceu que a classe política não justifica exclusivamente seu poder somente com a posse de fato, mas procura dar a ele uma base moral e também legal, fazendo-o

325

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 86. 326

BÖCKENFÖRDE, E. W..Die Entstehung des Staates als Vorgnag der Säkularisation. (1967), in id. Recht, Staat, Freiheit. Frankfurte; M. 1991, 92 ss, apud HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 115. 327 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as

instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:

Hemus, 1975, p. 141. 328

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:

Perspectiva, 2011, p. 144.

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derivar como consequência necessária de doutrinas e crenças geralmente reconhecidas e aceitas na sociedade que ela dirige.329

Desta concepção diverge o positivismo jurídico, doutrina para a qual só é

direito o que é posto pelas autoridades delegadas para este fim pelo próprio

ordenamento e tornado eficaz por outras autoridades também previstas no

ordenamento, independente de bases pré-políticas.

Seja como for, na descrição das formas históricas de legitimidade do

poder, Weber, desejando mostrar quais foram até agora os fundamentos reais do

poder político, identificou três modalidades de motivação do poder legítimo, isto é, o

poder tradicional (derivada da tradição e sacralidade), o poder racional-legal (deriva

da crença na racionalidade do comportamento conforme a lei) e o poder carismático

(que deriva dos dotes extraordinários do chefe do poder).330

Niklas Luhmann, por sua vez, entende que a legitimidade está no

procedimento e não nas partes que o compõem. Ele analisa três procedimentos

jurídicos: o judiciário, o legislativo e o administrativo, e refere que “a função

legitimadora do procedimento não está em substituir uma decepção por um

reconhecimento, mas em imunizar a decisão final contra as decepções

inevitáveis”.331

O direito, então, tido como sistema autopoiético, mas que admite

“irritações” externas legitima-se quando os sujeitos participam dos procedimentos

por meio da comunicação. Assim, geram uma necessária ilusão, a fim de que a

possibilidade de decepção rebelde não se concretize, obtendo com isso a

obediência.

Essa concepção de sociedade foi contraposta por Habermas.

O filósofo procurou elaborar uma nova teoria que questiona a validade da

proposta positivista de postular a objetividade e verdade do conhecimento apenas

em função do método, ou melhor, do procedimento lógico-formal.

Com efeito, a teoria da ação comunicativa de Habermas pressupõe que a

racionalidade é um procedimento argumentativo pelo qual dois sujeitos ou mais se

329

MOSCA, Gaetano. Elementi di scienza politica. Bocca, Roma: Ed. Laterza, Bari, 1923 , p. 108 apud BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco

Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 88. 330

BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco Aurélio

Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 42. 331

LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. De Maria da Conceição Corte-Real.

Brasilia: Editora Universidade de Brasília, 1980, passim.

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põem de acordo sobre questões relacionadas com a verdade, a justiça e a

autenticidade:

Na ação comunicativa cada interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (begründet),

isto é, com argumentos.332

Possivelmente esta seja a resposta adequada para orientar a relação entre

Estado e Religião no mundo pós-secular.

3.5 Habermas e a dialética da razão comunicativa

A história da humanidade mostrou o quanto a religião sempre esteve

entrelaçada com o Estado, muitas vezes numa relação patológica. Reações radicais

contra essas patologias, todavia, acabaram por enveredar numa concepção negativa

da religião, que, portanto, no Estado Moderno, deveria se restringir à esfera privada,

até que a ciência e o progresso a eliminassem de vez.

Contudo, a religiosidade persiste e as religiões desejam sair da esfera

estritamente privada e atuar no espaço público, como parte de sua identidade

religiosa. Isto seria algo a temer? Um retrocesso? Ou existe um lugar para a Religião

no Espaço Público? É possível pensar a religião e a política em termos de

cooperação?

Esses questionamentos vêm sendo feitos por inúmeros autores333 que já

perceberam este movimento de liberação das religiões em direção à esfera pública

Segundo os estudos do filósofo alemão Jürgen Habermas é necessário

para a legitimação do Estado e do Direito que todos participem do debate público na

tomada de decisões políticas.

Ele refutou a razão instrumental, isto é, o uso da razão e da ciência como

instrumento de poder, e desenvolveu a teoria política da razão comunicativa, que

332

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo: Brasiliense, 2010, p. 59. 333 Sobre tais autores cf. CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, São Paulo, 2006, p. 112-118.

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supõe a razão como o resultado do diálogo entre diferentes posições e não a

imposição de cosmovisões seja de um lado seja de outro334.

Habermas é um dos remanescentes da Escola de Frankfurt, cuja

descrição foi feita anteriormente.

Em que pese tenha ele elaborado trabalhos que fizeram renascer o

pensamento de seus mestres, suas reflexões acerca dos problemas sobre a

legitimação do Estado moderno e a elaboração de uma teoria da ação comunicativa

exemplificam seus esforços no sentido de reformulação e inovação teórica dos

intelectuais de Frankfurt, que os supera e transcende.335

Acredita o autor que, a linguagem e a capacidade de compreensão do ser

humano leva a uma transparência das relações sociais, pois a sociedade é um

sistema apenas para quem a observa de fora. Mas para o que a vê de dentro, como

participante das relações sociais, a visão não é por assim dizer “fria”, mas permeada

das vivências e experiências e da subjetividade dos afetos.

Essa visão interna que compõe a memória e história do povo não pode

ser desprezada, como tenta fazer a modernidade, que quer criar um hiato entre o

mundo vivido e o mundo sistêmico, isto é, a visão estanque e instrumentalizada do

mundo:

O mundo vivido, regido pela razão comunicativa, está ameaçado em sua sobrevivência pela interferência da razão instrumental, Ocorre uma anexação do mundo vivido por parte do sistema, desativando as esferas regidas pela razão comunicativa e impondo-lhes a razão instrumental, tecnocrática. A interferência do subsistema estatal na esfera do mundo vivido é a burocratização, e a do subsistema econômico, a monetarização. Essas duas usurpações são responsáveis pelas patologias do mundo vivido.336

Por este motivo entende Habermas que é necessário resgatar a

comunicação e os argumentos inseridos no mundo vivido, no mundo histórico-

cultural, para

334

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo: Brasiliense,

2010, passim. 335

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense,

2010, p.29. 336

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense,

2010, p. 62.

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147

Reorientar a razão instrumental, reconduzindo-a aos limites dentro dos quais é imprescindível e pode fornecer uma contribuição inestimável para assegurar a organização e sobrevivência das modernas sociedades de massa. Segundo Habermas, é na esfera social e da cultura [...] que devem ser conjuntamente fixados os destinos da sociedade, através do questionamento e da revalidação dos valores e das normas vigentes no mundo vivido. Somente quando este reconquistar o terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se tornou urgente: a “descolonização” do mundo vivido pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa, estaria recolocando em seu devido lugar a razão instrumental.337

Evidente que ele resgata a importância das bases pré-políticas para

identificá-las e revalidá-las através do diálogo.

Assim, tem ele a sua frente o desafio da legitimação, já que: “A

constituição democrática precisa preencher a lacuna de legitimação aberta pela

neutralização – em termos cosmológicos – do poder do Estado”338

Ele se ocupou com o “embate” sobre a correta interpretação das

consequências da secularização entre uma “racionalização social e cultural”

originada no Iluminismo e as “ortodoxias religiosas”, já que isto tem implicações

políticas339.

Para o autor é necessário que ambas as esferas se disponham à

autorreflexão, tendo em vista que disso depende a coesão da comunidade política:

“[...] o etos340 do cidadão liberal exige, de ambos os lados, a certificação reflexiva de

que existem limites, tanto para a fé como para o saber”.

De nada adianta o Estado ser neutro e proteger a pluralidade se as

partes, sejam ou não religiosas, não se convencerem de que vivem numa sociedade

democrática, que pressupõe uma solidariedade respeitosa. Solidariedade esta que

não brota do Direito Posto e sim da predisposição de ouvir-se em debates públicos,

aprendendo uns com os outros341.

337

FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense, 2010, p. 62-63. 338

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 339

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 8. 340

conjunto das características distintivas de um povo, grupo ou comunidade, nomeadamente no que diz respeito a atitudes, hábitos e crenças 341

HABERMAS, op. cit., p. 9

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148

3.5.1 Habermas e a Indispensável Participação Política da Religião para a Legitimação do Direito

Conseguiria o Estado Moderno, não mais legitimado pela vontade de

Deus ou pela lei natural, fazer com que os homens obedeçam somente por seus

próprios meios ou ainda necessitaria do embasamento moral e cultural do qual a

sociedade está permeada?

Esse era o teor do questionamento de Böckenförd, citado por Habermas.

Ele encontrou a resposta no processo democrático, do qual devem

participar todos os cidadãos e grupos. No fruto deste diálogo, precisamente, é que

se encontra a legitimidade342 e, portanto, a autoridade, do direito.

A interpretação de Böckenförde de que o direito positivo depende de uma

fundação nas convicções éticas pré-políticas da comunidade, pois a ordem jurídica

por si só não é capaz de legitimar-se, não é aceita totalmente por Habermas.

A princípio, reconhece o autor que a teologia cristã medieval sobre o

direito natural está na genealogia dos direitos humanos, legitimando-os, no entanto

os fundamentos de legitimação do Poder do Estado provêm de fontes profanas da

filosofia do século XVII e XVIII.

É forçoso reconhecer a necessidade do diálogo entre todas as posições

da sociedade, incluindo-se a religiosa. No Estado laico, portanto, é necessário haver

uma dialética entre as posições religiosa e secular.

Portanto, os cidadãos devem assumir seus direitos de comunicação e

participação ativamente, não apenas visando o interesse próprio, mas o bem

comum, para promover um modelo kantiano do processo democrático, onde cada

qual se sente colegislador.

Contudo, reconhece Habermas que isso exige uma “taxa elevada de

motivação” que não pode ser imposta legalmente, mas emana numa sociedade que

vive de fontes espontâneas ou pré-políticas: “Os motivos para uma participação dos

cidadãos (Bürger) na formação política da opinião e da vontade alimentam-se,

certamente, de projetos de vida éticos e de formas de vida culturais”343.

342

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 116. 343

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 119.

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149

O ponto em que Habermas se opõe a Böckenförde é que, para o primeiro,

o processo democrático em que há a participação dos cidadãos desenvolve um

mecanismo próprio e se desliga das ancoragens pré-políticas, ele próprio torna-se o

“laço unificador” da compreensão correta da constituição, especialmente sobre

assuntos que mobilizam mais fortemente a sociedade.

Mas a solidariedade, ainda que abstrata, da qual depende a participação

nesse processo democrático, permanece ancorada nas bases pré-políticas daquela

sociedade que fornecem seus valores éticos e culturais: “O status de cidadão do

Estado está, de certa forma, embutido numa sociedade civil que vive de fontes

espontâneas ou, se preferirmos, 'pré-políticas'”.344

Diante disso, é necessário compreender que o processo democrático

deve envolver todas as pessoas e seus modos de visão do mundo, fazendo com que

as exigências morais e culturais surgidas no debate político sejam compreendidas

como limites a uma modernização imposta por forças externas, já que pode destruir

o laço de solidariedade necessário a um Estado Democrático de Direito:

Uma modernização “descarrilhadora” da sociedade poderia muito bem esgarçar, em sua totalidade, o laço democrático e consumir o tipo de solidariedade da qual o Estado democrático depende e a qual ele não pode obter pela força. Pois, neste caso, entraria em cena a constelação que Böckenforde tem na mira, ou seja: a transformação dos cidadãos de sociedades liberais abastadas e pacíficas em mônadas individualizadas que agem guiadas pelos próprios interesses e que utilizam seus próprios direitos subjetivos como se fossem armas apontadas para os outros.345

O rompimento desta solidariedade certamente acarretaria uma sociedade

de indivíduos fechados em suas visões de mundo, que agem somente em vista de

seus próprios interesses, utilizando seus direitos como um poder contra os demais.

O exemplo típico é o caso do fundamentalismo religioso crescente não

apenas em países do Oriente Médio, como da África, Sudeste da Ásia e Índia, cuja

origem pode ser entendida por uma colonização violenta e uma descolonização

através da imposição de um capitalismo não correspondente à cultura local. Melhor

344

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 119. 345

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 121

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dizendo, as mudanças impostas a estes povos foram radicais, provenientes de

cultura diversa e não correspondente com a tradição local:

Nesta linha de interpretação, os movimentos religiosos tendem a processar as mudanças sociais radicais e a não-simultaneidade cultural, que são experimentadas sob as condições de uma modernização acelerada ou fracassada, interpretando-as como desenraizamento.346

Por este motivo, segundo Habermas novamente:

Entre os cidadãos do Estado surge uma solidariedade – mesmo que abstrata e mediada pelo direito – apenas quando os princípios da justiça conseguem ter acesso à rede das orientações axiológicas culturais, que são muito mais densas.347

Um processo verdadeiramente democrático, legitimador do direito e do

Estado, deve incluir as cosmovisões dos diversos setores da sociedade, os

argumentos de parte a parte, cada qual reconhecendo seu lugar no jogo político,

qual seja, delimitando reciprocamente o espaço de ação do outro. A razão elimina o

fundamentalismo religioso e a religião fornece as bases éticas para a ciência.

A Igreja Católica demanda este lugar na esfera pública, pois crê que

“negar espaço para as verdades de fé acarretam consequências negativas para o

verdadeiro desenvolvimento”.348

Tanto é assim que:

A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este “estatuto de cidadania” da religião cristã. [...] A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal.349

346

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 130. 347

HABERMAS. HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 121. 348

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 105. 349

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 106.

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Com efeito, Habermas reconhece que a filosofia tem a aprender com a

religião não por simples razões funcionais, mas em relação a conteúdo, recordando

que a helenização do cristianismo acabou por promover uma “apropriação, por parte

da filosofia, de conteúdos genuinamente cristãos” que se solidificou, dentre outros,

em “responsabilidade, autonomia e justificação; história, recordação e recomeço;

inovação e retorno; emancipação e completude; renúncia, incorporação,

internalização, individualidade e comunidade”350.

Portanto, participação pública da religião, seja por intermédio da

argumentação levada ao debate político, seja pela valorização dos princípios éticos

e morais defendidos é necessária à legitimação do Direito e do poder político.

3.6 O Contributo das Três Grandes Religiões Monoteístas para a Construção

de uma Sociedade mais Justa e Fraterna

Os valores defendidos pela tradição judaico-cristã foram e ainda o são de

grande auxílio para que os homens alcancem maior consciência moral de sua

conduta. Eles agem no sentido de um “despertar de consciências” que capacita o

homem a abandonar ideologias e culturas de crueldade e de “coisificação” do ser

humano.

O passado é testemunha da crueldade com que o homem pode tratar seu

semelhante, basta lembrarmos dos campos de concentração e câmaras de gás do

nazismo ou mesmo a escravidão que arrancou milhões de negros de sua terra natal

para uma situação de absoluta indignidade.

É Fábio Konder Comparato quem expressa o contributo das duas grandes

religiões monoteístas cristãs para o mundo:

[...] as prescrições dadas por Deus a Moisés não eram apenas cultuais, mas também morais: o povo de Israel assumiu o dever não apenas de prestar um culto a Iahweh, de acordo com o ritual prescrito, mas também de viver de modo justo e digno351.

350 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 125. 351 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006.

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Neste ponto, toma-se a liberdade de citar alguns textos bíblicos, a fim de

fundamentar a colocação acima.

No judaísmo, Isaías indicava que Deus quer a prática do bem antes de

uma religião meramente de rituais e sacrifícios afirma:

Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios? [...] Basta de trazer-me oferendas vãs: Elas são para mim um incenso abominável.[...] Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!352

Jesus Cristo veio acentuar que de nada adianta uma vida de perfeição

ritual na obediência aos preceitos, se se pratica a injustiça e a opressão. Recorde-se

o quanto o farisaísmo irritava o Rabi Nazareno:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo! [...] [...] Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e toda a podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidades.353”

A respeito do apego excessivo ao dinheiro foi enfático ao dizer: “Ninguém

pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se

apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao

Dinheiro”354

O Cristo veio revelar que o mandamento mais importante é o Amor, pois

Deus é Amor e nos amou primeiro e porque Ele nos ama somos também capazes

de amar a Deus e ao próximo, ainda que se trate de um inimigo.

O modelo da ética cristã, segundo Fábio Konder Comparato é renunciar

ao egoísmo e dar a vida pelo outro. É um modelo católico, isto é, universal e,

portanto:

352

Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, p. 1359. 353

Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, Mateus 23, 23-27. 354

Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, Mateus 6, 24.

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Sob o aspecto ético, em suma, a pessoa histórica de Jesus Cristo, independentemente da fé em sua divindade, representou, pela sua vida e o seu ensinamento, um modelo excepcional de perfeição humana, que serviu de exemplo a um número incontável de homens e mulheres de todas as culturas, através dos séculos355.

Muito mais significativa do que a ideia de igualdade é a ideia de

fraternidade, em que se deseja fazer o bem ao outro, reconhecido como irmão:

A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amor primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna. 356

Mesmo no islamismo Deus é Bom e Misericordioso, é Ele o modelo da

perfeição a ser seguido357.

Pois bem, as três grandes religiões monoteístas tem como base o Deus

único que é Amor e que fez os homens à sua imagem e semelhança, bem como

destinatário de sua Graça Divina. Não é mero acidente da natureza:

O homem não é um átomo perdido num universo casual, mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento.358

Este é o fundamento universal da dignidade humana, pois Deus é o

Criador do homem, a quem concedeu uma alma imortal, capaz de conhecê-Lo. A

dignidade humana está indissoluvelmente ligada à origem do homem em Deus.

Neste sentido:

[...] nas três grandes religiões monoteístas, a pessoa do Deus Único é apresentada como modelo de vida para o ser humano, cuja

355 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p 453. 356

BENTO XVI, Papa Emérito Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 29. 357

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 452. 358

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 48-49.

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dignidade situa-se em sua dupla condição de criatura moldada segundo a imagem e semelhança do Criador, e de criatura benficiária do especial favor divino. Essa concepção foi decisiva para a elaboração histórica do conceito de pessoa humana e para o seu reconhecimento como padrão ético, mesmo fora da relação religiosa359.

Propõe Jacques Maritain uma obra comum: uma comunidade fraternal a

realizar, como uma obra humana a realizar na terra pela passagem de algo divino,

que é o amor, nos meios humanos e no próprio trabalho humano. Ele propõe sair de

uma religiosidade meramente cultual para a prática da Justiça e do Amor.360

Neste sentido se desenvolveu na Igreja Católica sua Doutrina Social, com

objetivo de anunciar a verdade que liberta, a favor de uma sociedade à medida do

homem, da sua dignidade, da sua vocação.361

A preocupação da Igreja Católica com a miséria e a injustiça social se

expressa nessa mensagem em que preceitua o desenvolvimento humano integral,

que não se realizará prescindindo de Deus:

[...] tal desenvolvimento requer uma visão transcendente da pessoa, tem necessidade de Deus: sem Ele, o desenvolvimento ou é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da autossalvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado.362

E, portanto, por entender que o homem tem uma vocação ao

desenvolvimento, cuja referência é o desígnio de Deus para ele, a Igreja Católica se

vê como legitimada a intervir nas questões sociais, iluminando-as com a luz do

Evangelho:

È precisamente este fato que legitima a intervenção da Igreja nas problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria título para falar. [...] Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que

359

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006, p 452. 360

MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de

Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, passim. 361 BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 14. 362

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 18.

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o mesmo nasce de um apelo transcendente e por outro, que é incapaz, por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último.363

Segundo o entendimento dos papas, qualquer proposta de

desenvolvimento que se funde em si mesmo, acaba por tornar o ser humano um

meio para obtenção desse desenvolvimento, enquanto “quem acolhe uma vocação

se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre”.364

Isto porque o desenvolvimento deve ser integral, isto é, “de todos os

homens e do homem todo”.365

Vale trazer, a citação do Papa Emérito Bento XVI que recorda outro

pontífice Paulo VI, autor da Encíclica Populorum Progressio, sobre as causas do

subdesenvolvimento:

[...] as causas do subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre saber orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento servem “pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo”. E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa anda mais importante do que a carência de pensamento: é “a falta de fraternidade entre os homens e entre os povos”.366

Pois bem, a fraternidade que exige o saudável desenvolvimento integral

não é possível de se alcançar somente por meio de forças humanas, mas “tem

origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro,

ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna”.

Para alguns este discurso poderia ser contestado como sendo apenas

argumento de cunho religioso, não devendo ser utilizado para fundamentar qualquer

tipo de norma ou decisão judicial ou administrativa. Não deveria nem mesmo ser

citado num trabalho acadêmico.

Mas o fato é que essa proposta cristã é universal, isto é, cabe a todos,

admite o pluralismo e não exige a profissão de fé nos dogmas religiosos.

363

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 24. 364

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 26. 365

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 27. 366

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 29.

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A Igreja Católica, assim como outras religiões, podem trazer à tona

valores esquecidos ou preteridos pela sociedade moderna e que acabam gerando

tantas injustiças e enganos.

Tais valores interessam não apenas à religião, mas à filosofia, à política e

à sociedade como um todo, que deseja construir um mundo melhor.

Outra grande preocupação demonstrada pelos papas é o plano cultural,

que, se de um lado padece de um relativismo que não ajuda num verdadeiro diálogo

intercultural, onde cada qual deve assumir sua própria identidade; de outro corre o

risco do nivelamento cultural com a homogeneização dos comportamentos e estilos

de vida:

Ecletismo e nivelamento cultural convergem no fato de separar a cultura da natureza humana. Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que as transcende, acabando por reduzir o homem a simples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação. 367

Habermas nos socorre na defesa desses argumentos. Não porque seja

um filósofo religioso como Maritain, mas por ter já compreendido a necessidade de

que os racionalistas se abram a um diálogo pluralista procurando “decifrar” a

racionalidade existente nos argumentos provenientes das tradições religiosas.

O filósofo afirma:

[...] defendo a tese hegeliana, segundo a qual, as grandes religiões constituem parte integrante da própria história da razão. Já que o pensamento pós-metafísico não poderia chegar a uma compreensão adequada de si mesmo caso não incluísse na própria genealogia as

tradições metafísicas e religiosas [...]368.

Ele considera um “desleixo” entender as grandes tradições religiosas

apenas um resíduo arcaico da história:

[...] as tradições religiosas conseguiram articular a consciência daquilo que falta. Elas mantém viva a sensibilidade para o que falhou. Elas preservam na memória dimensões de nosso convívio

367

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 41. 368

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 13.

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pessoal e social, nas quais os progressos da racionalização social e

cultural provocaram danos irreparáveis.369

O mesmo autor reconhece que, pelo menos da parte da Igreja Católica,

não há oposição ao fundamento do direito e da moral na razão.370

A razão não pode se arrogar a coroa da superioridade, pois sozinha pode

ser muito perigosa, é capaz de destruir e construir, colocando o ser humano sob sua

égide, submetendo alguns em prol de outros, de acordo com a conveniência do

momento e de quem está no poder. De outro lado, uma religião não pode exigir que

o mundo se submeta a suas crenças, modo de ver o mundo, utilizando-se de

extremismos e terrorismo.

Neste sentido, de um lado, os cidadãos religiosos devem aprender a

compatibilizar sua fé com o fato de viverem num Estado laico e pluralista, e de outro,

os cidadãos não religiosos devem aprender a avaliar os argumentos religiosos na

perspectiva de descobrir neles um conteúdo racional.371

Significa dizer, em suma, que, nem o religioso pode refutar um argumento

não religioso, desde que racional, nem é possível aos cidadãos não crentes

afastarem, a priori, um argumento somente por ter sido apresentado por uma visão

religiosa, que, por si só já implicaria sua irracionalidade.

Isto é, o fato de o Estado ser laico e a sociedade secularizada não

pressupõe o descarte imediato de motivações religiosas, por serem o que são, ou

seja:

Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de discriminação e autoritarismo.372

369

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 14. 370

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 117. 371

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 12. 372

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013, p. 142.

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Pelo contrário, a neutralidade necessária a um Estado laico não permite

qualquer tipo de preferência, seja por uma determinada religião, seja pela não

religião.

É necessário que as partes interessdas falem e se ouçam, sem que uma

descarte a outra simplesmente por ser ou não religiosa:

Cidadãos secularizados não podem, à proporção que se apresentam no seu papel de cidadãos do estado, negar que haja, em princípio, um potencial de racionalidade embutido nas cosmovisões religiosas, nem contestar o direito dos concidadãos religiosos a dar, em uma linguagem religiosa, contribuições para discussões públicas. Uma cultura política liberal pode, inclusive, manter a expectativa de que os cidadãos secularizados participarão dos esforços destinados à tradução – para uma linguagem publicamente acessível – das contribuições relevantes contidas na linguagem religiosa.373

Isto porque “a formação da opinião e da vontade não pode ser canalizada

por meio de censuras à linguagem nem isolada das possíveis fontes geradoras de

sentido” 374.

Repita-se, que Habermas compreende isto do ponto de vista filosófico de

uma crítica fundamental à autocompreensão pós-metafísica da modernidade

ocidental, que não se alinha nem com a cosmovisão secular científica, nem com a

religiosa. Parte, por esta razão, de uma posição neutra em relação aos dois lados:

“pois desconfia tanto das sínteses das ciências naturais como das verdades

reveladas”375, e pretende a substituição de concepções religiosas do mundo por

sistemas de normas e valores consensualmente elaborados pelos atores do sistema

em situações dialógicas livres de repressão.

Mas não nega que religião e crenças de um lado, e, de outro, razão e

ciência, devem reconhecer a importância uma da outra, bem como seus próprios

limites, pautando-se pelo bem comum e pelo respeito à pessoa humana e seu modo

de vida.

Portanto, só é possível a legitimação do direito por meio de um processo

democrático que se alimente de dois fatores, quais sejam:

373

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 128. 374

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 12. 375

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 13.

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159

a participação política simétrica dos cidadãos, a qual garante aos destinatários das leis a possibilidade de se entenderem, ao mesmo tempo, como seus autores; e da dimensão epistemológica de certas formas de uma disputa guiada discursivamente, as quais fundamentam a suposição de que os resultados são aceitáveis em termos racionais.376

Implica afirmar que os cidadãos devem respeito uns aos outros,

independentemente de suas cosmovisões ou crenças, como membros de uma

comunidade política, dotados de direitos iguais. Devem procurar o consenso

motivado racionalmente, o que os obriga a apresentar argumentos convincentes.

É somente com a apresentação de argumentos de parte a parte, com

ampla participação de todos os setores da sociedade que o Estado perde seu

caráter eminentemente repressivo, fato que ocorre quando apenas uma visão de

mundo domina o cenário político.377

Ressalte-se, para evitar compreensões equivocadas, que, Habermas não

abre mão da justificativa secular para as decisões no âmbito político.

Com efeito, ele apenas não concorda com a posição laicista, de acordo

com a qual deve haver a completa exclusão da religião do debate político,

relegando-as às suas esferas privadas. Ele aceita, inclusive, que deve haver uma

abertura dos cidadãos não crentes para reconhecer que a fé pode dar reais

contribuições para a construção de uma sociedade pautada por valores éticos.

O que importa é não excluir qual opinião seja (desde que razoável) do

processo democrático, sob pena de deslegitimá-lo. O diálogo é o melhor caminho

para manter a solidariedade necessária ao Estado liberal e neutro, sem desmotivar

cidadãos crentes à participação política.

3.7 O Uso Público da Razão Segundo John Rawls e Jürgen Habermas

Na verdade, quem iniciou o debate sobre o uso público da razão foi John

Rawls378 ao afirmar que todo cidadão e todas as doutrinas abrangentes379 devem

376

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 137. 377

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 138. 378

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000. 379

Rawls denomina de doutrinas abrangentes as doutrinas filosóficas, religiosas ou morais, adotadas por cidadãos razoáveis professam sendo que nenhuma delas é (e nunca se espera que sejam)

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160

participar do debate público.

Com efeito, sua investigação é no sentido de compreender como, uma

sociedade plural, dividida por doutrinas religiosas, filosóficas e morais muitas vezes

incompatíveis entre si, pode ser estável e justa. Como é possível a convivência

dessas doutrinas abrangentes e a aceitação de um só tipo de concepção política de

um regime constitucional. Como conquistar esse apoio?

Essa é a finalidade do liberalismo político de Rawls.

3.7.1 O liberalismo Político de John Rawls

Parte o autor da ideia de sociedade como um sistema equitativo de

cooperação, entendido este como “regras e procedimentos publicamente

reconhecidos, aceitos pelos indivíduos que cooperam e por eles considerados

reguladores adequados de sua conduta”380. Nesta ideia, todos os envolvidos tem

sua própria concepção de bem a ser alcançado.

Esses termos equitativos devem ser estabelecidos por um

comprometimento entre as pessoas envolvidas de forma equitativa, isto é, onde

nenhuma pessoa ou grupo tenha mais vantagens que outros, excluindo-se, portanto,

“a ameaça, uso da força, a coerção, o engodo e a fraude”.

Somente será possível atingir este comprometimento quando as balizas a

serem escolhidas tiverem origem no artifício da chamada “posição original” ou “véu

de ignorância”, onde não é permitido que as partes conheçam posição social, etnia,

gênero e talentos naturais daqueles que representam.

Em primeiro lugar, essa concepção política pressupõe que uma

comunidade política não é o mesmo do que uma comunidade de membros com o

mesmo ideal e a mesma visão de mundo, já que isto inexoravelmente levaria ao uso

da força do Estado para impor uma só concepção, seja ela religiosa, seja secular. A

proposta é a do consenso sobreposto resultante da negociação política, que supõe a

defesa de pontos de vista de cada doutrina abrangente:

professada por todos os cidadãos. Daí resulta que o pluralismo é inevitável, consequência do exercício da razão humana dentro da estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional. Essas doutrinas devem ser acolhidas no âmbito da política quando forem razoáveis, isto é, quando não rejeitarem os princípios da democracia, não forem absurdas nem irracionais (op. cit., p. 24). 380

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000., p. 64.

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161

Por conseguinte um consenso sobreposto não é apenas um consenso sobre a aceitação de certas autoridades, ou a adesão a certos arranjos institucionais, fundamentados numa convergência de interesses pessoais ou de grupos. Todos os que concordam com a concepção política partem de sua própria visão abrangente e se baseiam nas razões religiosas, filosóficas e morais que essa visão oferece.[...] Os dois aspectos anteriores de um consenso sobreposto – objeto moral e razões morais – estão ligados a um terceiro aspecto: a estabilidade. Isso significa que aqueles que concordam com as várias cisões que dão sustentação à concepção política não deixarão de apoiá-la se a força relativa de sua própria visão na sociedade aumentar e acabar tornando-se dominante. [...] Cada visão apóia a concepção política em seu (da visão) próprio benefício ou por suas próprias razões.381

Em suma, o filósofo pretende que mesmo que alguma dessas doutrinas

se torne dominante no cenário sócio-político, não poderá se prevalecer disso, a fim

de impor aos demais sua visão de mundo, mas manter a estabilidade para não

deslegitimar o consenso.

O consenso sobreposto, assim, seria uma espécie de acordo de tal modo

profundo que alcance ideias como “a de sociedade enquanto um sistema equitativo

de cooperação e a de cidadãos considerados como indivíduos razoáveis e racionais,

livres e iguais”382.

Para tornar possível esse ideal proposto por Rawls, uma concepção

política de justiça deve ser endossada ao menos por uma maioria substancial dos

cidadãos politicamente ativos. E para se atingir essa maioria, não é possível excluir

as doutrinas abrangentes e razoáveis, mesmo que opostas.

Sejam religiosas ou não, as pessoas desejam realizar plenamente o ideal

de cidadania, de participação política na construção da sociedade em que vivem,

permeando-a de valores em que acreditam.

Certo é, como insiste Rawls, que tais valores emanados de doutrinas

abrangentes devem ser razoáveis, isto é, concordes com os princípios democráticos

e garantias constitucionais, mas desde que o sejam, é necessário incluí-los no

debate político.

Não quer Rawls dizer com isto que as visões de mundo próprias das

doutrinas abrangentes possam oferecer o conteúdo da razão pública sobre questões

381

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 194. 382

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 195.

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162

políticas fundamentais, ou seja, os argumentos religiosos ou ideológicos ou

seculares específicos, não aceitos por todos, não servem como fundamento das

decisões sobre o direito e a justiça. Podem e devem, sim, colocar-se na origem, na

motivação das pessoas que partem para sua participação ativa de cidadãos na

política.

Assim, o argumento de que não há salvação fora daquela Igreja não é

apto a se impor publicamente, já que muitos não compartilham da mesma visão. De

outro lado, isto não significa que no meio público caberia qualquer consideração

acerca da verdade ou inverdade deste dogma. Isso toca aos que participam desta

Igreja.

Deste modo:

Para encontrar uma ideia compartilhada do bem dos cidadãos que seja apropriada a propósitos políticos, o liberalismo político procura uma ideia de benefício racional no interior de uma concepção política que seja independente de qualquer doutrina abrangente específica e que, por isso, pode ser objeto de um consenso sobreposto.383

A concepção de razão pública de Rawls pressupõe que, mesmo num

Estado moderno e laico não é possível ignorar a motivação de cidadãos religiosos à

participação democrática para elaboração do direito e dos valores sobre os quais

devem ser construídos.

Segundo ele, todos os agentes de uma sociedade, seja indivíduo, seja

grupo, tem uma forma de articular seus planos, uma ordem de prioridades dos fins a

atingir; agindo de acordo com o caminho que traçou. Uma sociedade política

também faz isto e o modo como o faz é sua razão.

Há razões públicas e não públicas, ou que não interessam senão dentro

do contexto daquele indivíduo ou grupo, como igrejas, universidades e vários outros

tipos de associação.

De seu lado, a razão pública é característica de um povo democrático,

dos que compartilham a mesma condição de cidadãos e tem como objetivo o bem

comum: “[...] numa sociedade democrática, a razão pública é a razão de cidadãos

383

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 227.

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iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns

sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição”384.

Consequentemente a razão pública não se aplica às

deliberações e reflexões pessoais sobre questões políticas, nem à discussão sobre elas por parte dos membros de associações como as igrejas e universidades, constituindo tudo isso uma parte vital da cultura de fundo.385

Contudo, para Rawls, o cidadão religioso é obrigado a “traduzir” o seu

argumento, que é baseado em concepções religiosas, para uma linguagem laica,

que pode ser aceita por todos. Ele entende que no debate político somente podem

ser aceitos argumentos da razão pública:

Enquanto razoáveis e racionais, sabendo-se que endossam uma grande diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espere que outros possam aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos. Procurar satisfazer esta condição é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós. Entender como se comportar enquanto cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.386

Este trabalho de adaptação das motivações reais para a razão pública

deve ser feito pelo cidadão que as defende, pois as políticas públicas devem ser

justificáveis perante todos os cidadãos e:

Ao fazermos essas justificações, devemos apelar unicamente para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos.387

Então, para Rawls, cada qual deve estar preparado para esclarecer o

critério no qual se baseia para esperar dos outros que razoavelmente o apoiem.

384

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 264. 385

Ibidem, p. 264. 386

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000p. 267. 387

RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:

Ática, 2000, p. 274.

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164

Pois bem, nota-se que Habermas sustenta praticamente todo o raciocínio

feito por Rawls para esclarecer seu liberalismo político, especialmente no que tange

à necessidade de um processo democrático aberto às diversas cosmovisões,

incluindo as religiosas, de maneira igualitária, pois somente esta dialética

democrática é capaz de legitimar o direito.

O principal ponto de divergência é a crítica de Habermas de que a

linguagem secular deve ser exigida dos religiosos para esse diálogo democrático.

Neste sentido ele é mais ousado do que John Rawls.

3.7.2 Habermas e o Liberalismo Político de Rawls

Habermas entende que a exigência do liberalismo político de que os

crentes devam traduzir sua linguagem religiosa para a secular, a fim de poderem

participar do debate político é por demais pesada e parte de uma visão estreita do

papel político da religião no processo democrático:

A procura por argumentos voltados à aceitabilidade universal só não levará a religião a ser injustamente excluída da esfera pública, e a sociedade secular só não será privada de importantes recursos para a criação de sentido, caso o lado secular se mantenha sensível para a força de articulação das linguagens religiosas. Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitar

também a perspectiva do outro (grifo do autor).388

Porquanto: “A autoridade dos mandamentos divinos tem um eco na

validade incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar”389.

A filosofia, assim, guarda distância da religião, mas sem fechar-se para

suas perspectivas.

Um tipo de secularização que exige do religioso a “tradução” para

linguagem secular pode simplesmente aniquilá-la, já que parte de uma visão laicista.

Para o liberalismo de Rawls só valem como legítimas as decisões

políticas que puderem ser abonadas por argumentos compreensíveis em geral, isto

388

HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:

Editora Unesp, 2013, p. 15-16. 389

HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:

Editora Unesp, 2013, p. 17.

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165

é, que são imparciais tanto para cidadãos religiosos como para não-religiosos, ou

para cidadãos de orientações de fé distintas.

Contudo, para Habermas, como se viu, é necessário reconhecer o

contributo da religião para a sociedade, a fim de perceber que neutralidade do

Estado não pode corresponder a laicismo.

Ele defende que a separação entre Estado e Igreja significa neutralidade

e não “abster-se de toda política que apoia ou coloca limites à religião enquanto tal”.

Exemplo bem sucedido desta participação política religiosa é, entre

outros, o movimento americano liderado por Martin Luther King em prol da defesa da

igualdade de todos os cidadãos, independentemente de etnia.390

E mais, admite o filósofo que o papel desempenhado pelas igrejas e

religiões é de grande importância para a estabilização e desenvolvimento de uma

cultura política liberal, dado que não apenas contribuem no debate político

apresentando argumentos como motivam seus membros à participação política.

Contudo, essa participação política ficaria por demais comprometida, no

caso de se exigir dos cidadãos religiosos, como faz Rawls, uma espécie de

“tradução” de seus argumentos antes de serem expostos publicamente, isto é,

devem explicá-los numa linguagem secular.

Parece claro para Habermas que “um Estado não pode impor aos

cidadãos, aos quais garante liberdade de religião, obrigações que não combinam

com uma forma de existência religiosa – porquanto ele não pode exigir deles algo

impossível” 391

Sobre esta questão também debateram os dois filósofos estadunidenses

Robert Audi e Nicholas Wolterstorff.392

De seu turno, Audi defende o “principle of secular rationale”393, em que:

“one has a prima facie obligation not to advocate or support any law or public policy

390

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 141. 391

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 142. 392

AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 25. 393

Princípio de justificação secular.

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166

that restricts human conduct, unless one has, and is willing to offer, adequate secular

reason for this advocacy or support”.394

Portanto, Audi se aproxima da visão de Rawls, já que exige que quaisquer

que sejam as motivações para uma proposição política que restrinjam alguma

conduta humana, os argumentos seculares devem ser suficientemente fortes para

tanto.

Habermas se rende à corrente que se opõe a esta exigência, tendo em

vista estar convencido de que o Estado liberal estaria sendo incoerente ao garantir

liberdade religiosa a seus cidadãos, permitindo-lhes conduzir sua vida conforme

convicções de fé, e, ao mesmo tempo exigindo que deixem de lado estas mesmas

convicções para fundamentar suas posições políticas. Isso equivaleria a colocar em

risco o modo de vida de tais cidadãos.395

Esta exigência caberia então apenas aos políticos que assumem cargos

públicos, que neste caso estariam obrigados à neutralidade esperada no Estado

laico.

Mas exigir isto de cidadãos e organizações seria uma “generalização

excessiva”, visto que:

O caráter secular do poder do Estado não implica, para o cidadão em particular, uma obrigação pessoal e imediata de complementar suas convicções religiosas, publicamente exteriorizadas, e de traduzi-las por meio de equivalentes em uma linguagem acessível em geral. [...] o Estado liberal que protege de igual modo todas as formas religiosas de vida, não pode obrigar os cidadãos religiosos a levarem a cabo na esfera pública política, uma separação estrita entre argumentos religiosos e não-religiosos quando, aos olhos deles, esta tarefa pode constituir um ataque à sua identidade pessoal.

E, ainda:

O Estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos [...] Por

isso, eles deveriam poder expressar, e fundamentar suas convicções

394

A pessoa tem uma obrigação prima facie de não defender ou apoiar qualquer lei ou política pública que restringe a conduta humana, a menos que tenha, e esteja disposta a oferecer, a razão secular adequada para esta defesa ou apoio. 395 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 2007, p. 145-148.

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167

em uma linguagem religiosa mesmo quando não encontram para tal

uma “tradução” secular.396

(grifo do autor).

Neste ponto Habermas concorda com Nicholas Wolterstorff quando este

afirma que, para o cidadão religioso, a religião não é algo diferente de sua existência

social e política. Deste modo, exigir deles que não baseiem suas decisões e

discussões acerca de questões políticas em sua crença é infringir o seu direito de

liberdade religiosa.397

Esta realidade se pode averiguar em relação à religião católica quando o

então Papa João Paulo II escreve aos bispos franceses398:

Reconhecer a dimensão religiosa das pessoas e dos componentes da sociedade francesa, significa querer associar esta dimensão às outras dimensões da vida nacional, para que contribua com o seu dinamismo para a edificação social e para que as religiões não se refugiem num sectarismo que poderia representar um perigo para o próprio Estado. A sociedade deve poder admitir que as pessoas, no respeito do próximo e das leis da República, possam manifestar a sua pertença religiosa. Em caso contrário, corre-se sempre o risco de um fechamento de identidade e sectário, e do incremento da intolerância, que impede a convivência e a concórdia no seio da Nação.

E mais, afirmara o pontífice que a missão dos cristãos abrange a

manifestação pública nas grandes questões da sociedade:

Devido à vossa missão, estais chamados a intervir regularmente nos debates públicos sobre as grandes questões da sociedade. De igual modo, em nome da sua fé, os cristãos, pessoalmente ou em associações, devem poder tomar a palavra publicamente para expressarem as suas opiniões e manifestar as suas convicções, contribuindo assim para os debates democráticos, interpelando o Estado e os seus concidadãos sobre as responsabilidades de homens e mulheres, principalmente no campo dos direitos fundamentais da pessoa humana e do respeito da sua dignidade, do progresso da humanidade que não pode ser obtido a qualquer preço, da justiça e da igualdade, assim como da protecção do planeta, são âmbitos que dizem respeito ao futuro do homem e da humanidade, e

396

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 147. 397

AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 105. 398

Carta do Papa João Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa, dada no vaticano aos 11 de fevereiro de 2005 (Disponível em www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005. Acesso em 23-03-2014).

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à responsabilidade de cada geração. Eis por que a laicidade, longe de ser o lugar de um confronto, é verdadeiramente o espaço para um diálogo construtivo, no espírito dos valores de liberdade, igualdade e fraternidade, que são justamente muito queridos ao povo da França.

Incrível como a tese do agnóstico Jürgen Habermas e a tese católica são

congruentes.

3.7.3 Habermas e a Necessidade de Colaboração para a “Tradução” de Argumentos Religiosos na Esfera Pública

Resta clara a posição de Habermas no sentido de que no âmbito do

debate político, inclusive no Parlamento, é necessária participação de todos os

cidadãos com suas visões de mundo..

Pois bem, argumentos religiosos podem ser apresentados na esfera

pública política, mas necessitam de uma tradução que não pode ser imposta a seus

autores, até porque nem sempre tem essa habilidade.

Portanto, a “tradução” para uma linguagem que possa ser aceita por

todos viria por meio de uma cooperação entre os concidadãos seculares e

religiosos, a fim de se alcançar, ao final, uma justificação institucional.

Com efeito, os cidadãos religiosos que só trazem argumentos religiosos à

esfera do debate político, tem que contar com a tradução colaborativa de seus

concidadãos seculares. Isso tudo para ser rigidamente liberal e neutro:

O Estado liberal possui, evidentemente, um interesse na liberação de vozes religiosas no âmbito da esfera pública política, bem como na participação política de organizações religiosas. Ele não pode desencorajar os crentes, nem as comunidades religiosas de se manifestarem também, enquanto tal, de forma política, porque ele não pode saber de antemão se a proibição de tais manifestações não estaria privando ao mesmo tempo a sociedade de recursos importantes para a criação de sentidos.399

Por conseguinte, não há como afirmar-se que a religião deve ser

simplesmente excluída do debate, pois a laicidade do Estado o impõe.

Suponha-se um argumento dito religioso como aquele que repudia a

destruição de embriões humanos para uso de células-tronco embrionárias em

399

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 148.

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pesquisas científicas com objetivo de cura de doenças humanas. O principal

fundamento religioso que justifica a posição é a proteção da vida humana desde a

concepção e que o embrião, mesmo tendo sido fecundado em laboratório seria

portador de vida humana e, portanto de alma.

É possível que outras entidades ou cidadãos dêem o contributo para

“tradução” deste argumento em termos neutros ou não religiosos, caso os que o

sustentam não possam fazê-lo.

Assim, um dos fundamentos laicos deste argumento, que conta com

respaldo de diversos cientistas, é o de que há outros tipos de células-tronco no

corpo humano que servem ao mesmo propósito. Além disso, a ciência concorda em

que há vida no embrião e destruí-lo seria destruir uma vida humana, cuja proteção é

normalmente garantida pelas constituições.

Como se vê, o argumento religioso é favorável à vida humana, não é a

imposição de um dogma, sendo assim, não deveria ser refutado somente pelo fato

de provir de alguma entidade religiosa ou de cidadãos crentes, algo como: “isto é

argumento religioso e não serve para o debate público, porque o Estado é laico”.

A exclusão de argumentos religiosos no Estado laico não é aceita por

Habermas, para quem ninguém pode ser excluído do debate político, sob pena de

falta de legitimidade do processo democrático.

Ora, a democracia é a garantia da liberdade de expressão e do

pluralismo, princípios que pressupõem o Estado Democrático de Direito:

Afinal é mediante a fruição de direitos de participação política (ativos e passivos) que o indivíduo não será reduzido à condição de mero objeto da vontade estatal (mero súdito), mas terá assegurada a sua condição de sujeito do processo de decisão sobre a sua própria vida e a da comunidade que integra. 400

Reconhece Habermas que as tradições religiosas tem a intuição moral,

principalmente em relação “a formas sensíveis de uma convivência humana”, o que

as tornam sérias candidatas a “possíveis conteúdos de verdade, os quais podem

400

SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição

atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 658.

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ser, então, tomados do vocabulário de uma determinada comunidade religiosa e

traduzidos para uma linguagem acessível em geral”401.

Vale dizer, excluir as vozes fundamentadas na fé, porque são

fundamentadas na fé, deslegitima o processo democrático, que passaria a ser

somente instrumento de manipulação para obtenção de interesses de alguns.

Assim sendo, para Habermas a neutralidade do Estado liberal pressupõe

a necessidade dessa colaboração na compreensão e tradução do argumento

religioso para o laico e não que isto deve ser um pressuposto para a participação

política do cidadão que deseja oferecer um argumento religioso ao debate.

De todo modo, o filósofo que sabidamente não é um religioso entende ser

necessário incluir as religiões com suas linguagens próprias no debate político,

sendo que

Enquanto os cidadãos seculares estiverem convencidos de que as tradições religiosas e as comunidades religiosas constituem apenas uma relíquia arcaica de sociedades pré-modernas, mantidas na sociedade atual, eles considerarão a liberdade de religião apenas como uma proteção cultural para espécies naturais em extinção. [...] Nesta linha de raciocínio, o próprio princípio da separação entre Igreja e Estado só pode ter o sentido laicista de um indiferentismo preservador.402

Nicholas Wolterstorff vai mais longe e entende que essa tradução não

seria necessária, pois importa muito mais o propósito do que a razão justificadora da

aspiração política. Ele cita como exemplo um grupo de cristãos defensores do meio-

ambiente que foram a Washington protestar contra ações que pudessem de algum

modo enfraquecer, prejudicar, reduzir ou acabar com a proteção das criaturas de

Deus. O grupo fundamentou suas reivindicações na Bíblia.

Wolterstorff entende que, de modo algum, esses cristãos estariam

violando a ética dos cidadãos de uma democracia liberal, pois “Whether or not a

reason for a position is appropriate depends not only on the position but on one´s

purpose”403.

401

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 148-149. 402

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 157. 403

AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 112. Tradução livre: se uma razão é ou não apropriada para defender uma posição depende não somente da posição, mas do propósito.

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Seja como for, mesmo tecendo elogios a Rawls pela reflexão adiantada

sobre o papel político da religião, Habermas faz um outro questionamento:

Será que os cidadãos podem aceitar o liberalismo como sendo a única resposta correta para o pluralismo religioso? Para chegar a uma conclusão sobre esse ponto, os cidadãos religiosos, como também os seculares, devem saber interpretar, cada um na sua respectiva visão, a relação entre fé e saber, porquanto tal interpretação prévia lhes abre a possibilidade de uma atitude auto-reflexiva e esclarecida na esfera pública política.404

3.7.3.1 O Diálogo entre Habermas e Ratzinger: razão e fé em debate

Colocando em prática sua própria teoria, Habermas aceitou o convite para

um interessante encontro promovido pela Academia Cattolica di Monaco di Baviera,

no ano de 2004, entre si e o teólogo, então cardeal, depois tornado papa, Joseph

Ratzinger, com intuito de abordar as relações entre a razão e a fé.

Em outras palavras, foi o encontro do filósofo laico que concede “espaço

para Deus” com o teólogo que acredita na necessidade de uma troca recíproca entre

razão e fé para uma ética comum.

As palestras foram publicadas no ano seguinte, dando maior publicidade

ao debate.405

O tema do encontro foi precisamente a secularização e o lugar da religião

no mundo ocidental moderno. Ambos procuraram responder ao questionamento

sobre o que mantém o mundo unido.

Para Habermas, que reproduziu sua teoria exposta acima, o poder político

deve ser baseado numa justificação pós-metafísica ou não-religiosa. Porém, a

solidariedade entre os cidadãos, necessária ao Estado liberal, se exauriria caso se

impusesse uma secularização aberrante. É necessário ter em conta, então, que

muitos cidadãos são motivados à participação política em virtude de sua religião.406

De fato, Habermas entende que o processo democrático, em si, com o

debate político, sem a exclusão de qualquer voz, é o que legitima o poder e o direito,

404

HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno

Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 167. 405

Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005. 406

Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005, p. 41-63.

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fazendo com que seja mantida a solidariedade entre os cidadãos e, portanto, a

submissão à lei.

Da parte de Raztinger407 há uma preocupação em encontrar os

fundamentos éticos para a atuação das culturas num mundo globalizado e para a

construção de uma forma comum de delimitação do poder, que seja fornecida

através da legitimação jurídica.

Ele afirma que a ciência não é capaz de prover a consciência ética

através de debates, mas não nega sua importância na erradicação de antigas

crenças. Existe para a ciência, segundo Ratzinger, uma responsabilidade de não

determinar o ser humano enquanto tal, pois só conseguirá mostrar aspectos parciais

dessa realidade. De seu turno, a filosofia deve acompanhar os progressos científicos

e auxiliar a separar o elemento científico do não científico, até mesmo para que não

permita o uso da razão e da ciência a finalidades de poder e dominação.

Em relação à legitimidade do poder afirma Ratzinger que a lei é o

instrumento por excelência para contê-lo, sendo que não deve prevalecer a lei do

mais forte, mas a força da lei, que controla o poder.

Todavia, isto remete à questão sobre como nasce o direito e como ele se

torna e se mantém, não como o instrumento do interesse de alguns, mas como o

instrumento do processo decisório democrático produzido no interesse comum.

Neste ponto é evidente a convergência entre ambos, pois Ratzinger

também crê que a participação política inclusiva e colaborativa na formação do

direito é o grande benefício da democracia.

O problema que resta para ser solucionado é o consenso, já que nem

sempre as decisões baseadas na preferência da maioria se coadunam com a

justiça. Deste modo, o princípio da maioria deixa sempre aberta a questão dos

fundamentos éticos da lei, qual seja, se existem coisas que não podem nunca ser

tidas por legitimas, sob pena de, por si próprias, se tornarem injustiça ou porque, por

sua natureza, seja uma lei imutável.

Aqui está a grande divergência entre as posições de um lado, pós-

metafísica e, de outro, teológica, já que Habermas não acredita na legitimação do

direito positivo na lei natural ou imutável. Mas para Joseph Ratzinger é muito

407

Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005, p. 65-81.

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perigoso depender somente da decisão da maioria, que pode reduzir o homem a

mero instrumento, como o mundo já teve oportunidade de experimentar.

Numa outra ocasião Joseph Ratzinger apontou que:

O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser “temperado” com o “sal” da caridade. [...] As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem.408

E continua afirmando que: “As ponderações morais e a pesquisa científica

devem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todo interdisciplinar

harmônico, feito de unidade e distinção”.409

Portanto, ao contrário do que alguns possam imaginar, a Igreja, o clero

não é contrário à ciência e ao desenvolvimento tecnológico, apenas que sozinhas

não podem indicar o caminho do desenvolvimento do homem..

Há outro ponto de convergência: Quanto ao perigo do fundamentalismo

religioso, que, tanto quanto o laicismo impedem o diálogo e a colaboração entre

razão e fé e: “A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o

desenvolvimento da humanidade”.410

Para Ratzinger isso significa que a fé necessita dos limites da razão.

Entretanto, afirma o teólogo que a razão também já causou muito aniquilamento,

com as guerras, o nazismo, a manipulação da vida humana, eugenia e outros.

Com efeito, o então cardeal deixa em aberto se a resposta não estaria na

limitação da razão pela fé e vice-versa:

Ora, non dovrebbe dunque a sua volta essere messa sotto osservazione la ragione? Ma da chi o da cosa? O forse religione e ragione dovrebbero limitarsi a vicenda, e ciascuna mettere l´altra al suo posto e condurla sulla via positiva? A questo punto di nuovo si pone la questione di come, in una società globale con i suoi meccanismi di potere e con le sue forze senza freni, con le sue differenti visioni di ciò che è giusto e di ciò che è morale, si possa trovare una evidenza etica operativa, con suficiente potere di

408

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 50. 409

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 50. 410

BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 106.

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motivarsi e di imporsi, per rispondere alle sfide delineate in procedenza e aiutare a superarle.411

411

Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005. p.72-73.

Tradução Livre: Agora, portanto, não deve por sua vez ser colocada sob observação a razão? Mas a quem ou o quê? Ou talvez a religião e razão devessem limitar-se um ao outro, e cada um colocar o outro no lugar dele e conduzi-lo em um caminho positivo? Neste ponto, mais uma vez se põe a questão de como, em uma sociedade global com seus mecanismos de poder e com suas forças sem freios, com suas diferentes visões do que é certo e do que é moral, se possa encontrar uma evidência ética operativa, com poder suficiente para motivar e estabelecer-se, para responder aos desafios descritos acima e ajudar a superá-los.

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4 A LAICIDADE NO BRASIL: QUESTÕES POLEMICAS

4.1. Panorama Histórico Geral das Relações Estado-Igreja no Brasil

O embate entre modernidade e religião existe, mas é diferente, de acordo

com a história e cultura do país. O tema em tela leva a interessantes reflexões. A

questão das relações entre Estado e Igreja está estreitamente conectada com a

história de cada nação.

No caso do Brasil, a religião católica está na raiz da fundação de suas

cidades e desenvolvimento de seu povo.

Como se sabe, a colonização do Brasil se deu por Portugal, um país

eminentemente católico.

Duas correntes disputavam a razão que inspirou as conquistas marítimas

portuguesas. A primeira sustenta que teria sido por razões espirituais precipuamente

e somente em segundo plano ficariam as razões comerciais. A segunda afirma

exatamente o oposto.412

Neste sentido, segundo a primeira corrente, D. Manuel I, rei de Portugal à

época do descobrimento do Brasil, teria o objetivo de disseminar o cristianismo entre

todos os povos, tomado do “espírito de cruzada”.

A corrente que afirma a prevalência de motivação espiritual sobre a

comercial parece bastante razoável no que tange à colonização do Brasil, pois

segundo estudiosos, Portugal, durante anos, não auferiu lucros. Além da vastidão do

território, havia populações nativas bastante hostis, cujos hábitos horrorizavam os

colonizadores, tais como a antropofagia413.

Assim, os jesuítas que vieram ao Brasil com a frota de Tomé de Souza

estavam investidos, pelo rei Dom João III, dos poderes necessários para a heroica

tarefa de evangelizar os nativos gentios.

412 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 58. 413

Pederastas, incestuosos, sodomitas, bestiais, compraziam-se em banquetes de carne humana. Devoravam não só os europeus, mas os próprios compatriotas, costumando engordá-los antes do festim, para o que davam à vítima tratamento requintado, que incluía o prazer de uma moça à escolha dele. Às vezes, estas fêmeas engravidavam do sentenciado, e, se, quando ele era comido, ficava filho dos seus últimos contatos, era a própria mulher que, depois de o parir e cozinhar, dele comia em primeiro lugar. Neste caminho iam tão longe que chegavam a rasgar o ventre das mulheres prenhas para lhes devorarem os filhos, depois de assados (BROCHADO, Costa. A lição do Brasil, Lisboa: Portugália Editora, 1949 apud GALLEGO, op. cit., p. 58)

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Mas a Igreja nesta empreitada estava sob a ascensão do Estado que se

aperfeiçoava de três maneiras: o padroado, o beneplácito e o recurso à coroa.414

Os privilégios do padroado (direito de conferir benefícios eclesiásticos) e

do beneplácito ( necessidade de licença imperial para se publicarem atos na Cúria)

são empregados amplamente como consequências do regalismo.

O padroado era o recurso oferecido aos que proviam materialmente a

fundação de alguma igreja de poder indicar os bispos e arcebispos à Igreja Católica.

O beneplácito ou exequatur era a “chancela” necessária do Estado para a entrada

em vigor de qualquer ato eclesiástico. E, por fim, o recurso à coroa, instituído pela

Lei 231 de 1841, que autorizava o recurso à Coroa portuguesa aos que não

aceitassem as decisões proferidas pelos tribunais eclesiásticos:

Como afirma Caio Prado Junior:

Aqui como alhures, no passado como no presente, a organização clerical é em substância a mesma. Lembremos unicamente o padroado, concedido ao rei de Portugal e nas suas possessões ultramarinas, o que lhe permitia larga ingerência nos negócios eclesiásticos, inclusive e sobretudo a criação e provimento dos bispados; ereção de igrejas, e delimitação de jurisdições territoriais ; autorização para estabelecimento de Ordens religiosas, conventos ou mosteiros. Cabia ainda ao monarca, por concessão, como vimos à Ordem de Cristo, a percepção dos dízimos, que é um tributo eclesiástico destinado originalmente à manutenção do clero. Em compensação, competia à coroa prover a esta manutenção e tal é o objeto das côngruas, isto é, subvenções pecuniárias aos membros do clero.415

As relações entre Estado e Igreja no Brasil colônia foram norteados em

grande medida pelos preceitos das Ordenações Filipinas (que sucedeu as

Ordenações Afonsinas de 1446-1447 e as ordenações manuelinas de 1521, já que

Portugal estava sob domínio da Espanha de 1580 a 1640), cujo segundo livro dos

cinco existentes era totalmente dedicado ao tema.

Com efeito, o Estado intervinha em assuntos religiosos tais como a

fiscalização do culto visando sua “decência”, mas a Igreja ficava responsável por

414 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 59. 415

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:

Brasiliense, 2008, p. 332.

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assuntos como educação, saúde pública, obras assistenciais e registro de

nascimentos, batismo, casamento e óbito.

O primeiro bispo do Brasil foi escolhido pessoalmente pelo rei, já

denotando o fenômeno do regalismo, abordado anteriormente, isto é, a influência do

poder dos governantes sobre a Igreja:

Decorre daí que as necessidades espirituais se colocam no mesmo plano que as exigências da vida civil. A participação nas atividades religiosas não é menos importante que nas daquela última. Poder frequentar os sacramentos, o culto, as cerimônias da Igreja, constitui urgência que nada fica a dever ao que se pede noutro setor: a justiça, a segurança, ou as demais providências da administração pública. O Estado não se podia furtar a ela. E nem jamais cogitou disto. Pelo contrário, disputou sempre à Igreja de Roma o direito de ministrar ele próprio, a seus súditos, o alimento espiritual que reclamavam. Nunca lhe escapou a importância política disto.416

Depois da expulsão dos jesuítas em 1759 os negócios eclesiásticos

ficaram inteiramente entregues ao poder do soberano da coroa:

Aliás, o Papado, já muito enfraquecido e com as atenções ocupadas em outros setores mais importantes, não assume, relativamente ao Brasil e à sua metrópole, nenhuma atitude reivindicatória de seus direitos: abandona inteiramente nas mãos do Rei Fidelíssimo os assuntos religiosos da colônia. 417

Acrescenta, ainda, Prado Júnior: “A Igreja no Brasil se tornara em simples

departamento da administração portuguesa e o clero secular e regular, seu

funcionalismo”.418

A relação era de uma proteção imobilizadora, mesmo na época do

Império em que a Constituição em 1824 declarou o Estado católico.

Segundo Rafael Llano Cifuentes, alguns constitucionalistas da época

sustentavam que o Estado tinha o direito de polícia sobre o culto religioso, bem

como direito de inspeção quanto à disciplina e atividade espiritual do clero, mas

sobretudo que a nomeação dos bispos e os provimentos dos benefícios

416

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:

Brasiliense, 2008, p. 329. 417

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:

Brasiliense, 2008, p. 333. 418

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:

Brasiliense, 2008, p. 333.

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eclesiásticos eram privativos da soberania nacional, cabendo à Cúria somente a

faculdade de confirmação.419

De qualquer maneira, a participação da Igreja Católica era notável nas

questões sociais, como assistência social aos pobres, doentes, idosos e crianças

desamparadas; o ensino, catequização dos índios e mesmo no setor da diversão

pública, sendo responsável pelas festividades e comemorações populares.

Tendo em vista os estreitos laços existentes entre Portugal e a religião

católica havia verdadeira prevalência desta religião em detrimento de outras. Já na

tripulação das naus de Cabral chamava a atenção o predomínio da religião e até a

existência de uma imagem de Nossa Senhora da Esperança entronizada num altar

erguido no convés da capitania.420

Assim, os benefícios da coroa portuguesa eram somente concedidos aos

católicos, somente estes eram contemplados com terras.

O sistema colonial consistiu inicialmente na divisão do território em

capitanias hereditárias, totalmente independentes umas das outras, que,

posteriormente, foram ligadas por meio do sistema de governadores-gerais, tendo

Tomé de Souza como o primeiro deles, estabelecidos por meio dos Regimentos do

Governador-Geral.421

Um desses regimentos, editado em 1677, que vigorou até 1806,

estabelecia regras exaustivas para o trato das questões atinentes à Igreja, tais como

o modo de remuneração dos quadros eclesiásticos, o controle eficaz do culto por

meio de funcionário público, que se reportava ao rei, fornecimento das regras de

comportamento necessárias à administração daquele local específico.422

O sistema dos governos-gerais se rompe em 1672 e vai aos poucos se

descentralizando até chegar em centros autônomos subordinados a poderes

político-administrativos regionais, subdivisões estas feitas a partir de interesses

econômicos. Assim:

419 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:

José Olympio, 1989, p. 239. 420 CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São

Paulo: Almedina, 2012, p. 69. 421 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 70. 422 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.

Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 61.

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o governo-geral divide-se em governos regionais (estado do Maranhão e estado do Brasil), e estes, em várias capitanias gerais, subordinando capitanias secundárias, que, por sua vez, pouco a pouco, também se libertam das suas metrópoles, erigindo-se em capitanias autônomas. Cada capitania divide-se em comarcas, em distritos e em termos. 423

Então, formam-se pequenos governos locais, cuja autoridade máxima era

representada pelo capitão-mor das aldeias, que acabavam sendo os próprios

senhores de terra daquele local, cujas enormes fazendas acabavam se equiparando

aos antigos feudos europeus, com seus castelos, cortes e súditos:

Nas zonas de exploração agrícola, floresceu uma organização municipal, que teve profunda influência no sistema de poderes da colônia. O Senado da Câmara ou Câmara Municipal constituiu-se no órgão do poder local. Era composto de vários “oficiais”, à imitação do sistema de Portugal. Seus membros eram eleitos dentre os “homens bons da terra”, que, na realidade, representavam os grandes proprietários rurais.424

Daí a origem da estrutura política do Estado Brasileiro que iria se

constituir com a Independência. Ela se estendeu não só na fase imperial, mas

também na republicana: a oligarquia dos coronéis.

A partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil vai

se alterando a condição política do país.

Sobre a liberdade religiosa na época:

Um dos primeiros documentos sobre liberdade religiosa no Brasil é o tratado do Comércio e Navegação, de 19 de fevereiro de 1810, celebrado entre Portugal e Inglaterra logo após a chegada da Coroa portuguesa na colônia em 1808. O artigo XIII desse tratado dispunha que os vassalos da Majestade Britânica residentes em territórios de domínio português não poderiam ser perturbados ou molestados por causa de sua religião, e teriam plena liberdade de consciência e licença para celebrarem seu culto. Porém, essa liberdade havia limites bem precisos, como, por exemplo, a proibição de que tais Igrejas ostentassem a religião britânica, pois deveriam se assemelhar às casas de habitação, sendo vedada inclusive a utilização dos

sinos.425

423 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 71. 424 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 72. 425

CHEHOUD, Heloisa Sanches Querno. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São Paulo:

Almedina, 2012, p. 69.

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Em 1815, o Brasil se torna Reino Unido a Portugal, pondo fim ao sistema

colonial. Mais um passo à frente e se dá a Independência em 1822, da qual surge o

Estado Brasileiro sob forma de Império, que perdurou até 1889.426

A sede do governo foi transferida para o Rio de Janeiro, mas essa

organização de poder não teve influência no interior do país, onde ainda prevalecia a

autoridade dos coronéis.

De outro lado, a esta altura, já se havia constituído uma elite burguesa e

intelectual brasileira, que, formada nas grandes universidades europeias, começava

a revolucionar os grandes centros intelectuais do país, como o Rio de Janeiro e

Pernambuco, com novas teorias políticas que “agitavam o mundo europeu: o

Liberalismo, o Parlamentarismo, o Constitucionalismo, o Federalismo, a Democracia,

a República”427.

A grande preocupação dos defensores da Independência era a unidade

do país, à época todo fragmentado em poderes locais. O constitucionalismo era,

então, o princípio fundamental desta teoria, a fim de assegurar o liberalismo e a

proteção dos direitos do homem, bem como a divisão de poderes.

Após inúmeras revoltas (Balaiadas, Cabanadas, Sabinadas, Inconfidência

Mineira, República de Piratini), cujos estandartes surgem já na Assembleia

Constituinte de 1823, chega-se finalmente à 1889, com a vitória das forças

republicanas que afirmavam como princípios: “o federalismo, como princípio

constitucional de estruturação do Estado, a democracia, como regime político que

melhor assegura os direitos humanos fundamentais”.428

A vitória foi obtida, dentro dos limites havidos na época, com a

Constituição de 1824, ainda na época imperial, que estabelece um poder

centralizado, que, em poucas palavras se resumia no Poder Moderador do

Imperador. Era na verdade um poder absoluto.

Segundo Caio Prado Júnior, a maçonaria esteve por trás de toda a luta

pela Independência do Brasil, não porque lhe interessasse a República tupiniquim,

426

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 72. 427

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 73. 428

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 77.

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mas porque precisavam enfraquecer um grande centro de poder europeu, qual seja

a monarquia portuguesa.429

Em Portugal, vale suscitar a questão, proclamou-se a República em meio

a terrível conflito religioso, proveniente da reação do positivismo e do jacobinismo do

partido republicano contra o sistema de união entre Igreja e Estado, tendo se

difundido em alguns setores da população urbana o anticlericalismo:

A legislação dos primeiros meses de novo regime assumiu uma intenção vincadamente laicista e anticatólica e chegou a haver perseguições. A Constituição de 1911 foi marcada por este espírito (embora dela não conste expressamente o princípio da separação decretada em 22 de abril desse ano pelo Governo Provisório). Por um lado, garantiu formalmente a liberdade de consciência e de crença e a igualdade política e civil de todos os cultos (art. 3º., ns. 4 e 5); por outro lado adoptou medidas restritivas da actividade das confissões religiosas, dirigidas especialmente contra a Igreja Católica.430

De qualquer maneira, de volta ao Brasil, a Constituição de 1824 declarava

que o Império Brasileiro professava a religião católica, permitindo outros cultos,

desde que não fossem ostensivos. Vale transcrever seu artigo 5º:

A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo.431

Outro dispositivo legal que tratava da liberdade era o parágrafo 5º do

artigo 179, que determinava a proibição da perseguição religiosa, desde que não se

ofendesse o culto oficial e a moral pública.432

Enfim, a religião católica permeava a vida civil, pois o Estado era religioso

e os clérigos ficavam encarregados de atos de importância para ambas as esferas

como registros de batismo, casamento e óbito. Este cenário perdurou até 15 de

novembro de 1889 quando, por um golpe de Estado foi proclamada a República no

429 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed.. São Paulo.

Brasiliense, 2008, p.370-377. 430 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 12. 431

CHEHOUD, Heloisa Sanches Querno. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São Paulo:

Almedina, 2012, p. 72-73. 432

CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São

Paulo: Almedina, 2012, p. 73.

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Brasil por meio do Decreto n. 1 de 15 de novembro de 1889, redigido por Rui

Barbosa.

Em seguida sobreveio a Constituição da República em 1891 pela qual a

religião estava livre da ingerência do Estado e assim dispunha:

Art. 72 - A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes [...] Parágrafo 3 – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. Parágrafo 4 – A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. Parágrafo 5 – Os cemitérios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. Parágrafo 6 – Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. Parágrafo 7 – Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados.433

Nesta ocasião, portanto, o Estado Brasileiro se torna laico e a Igreja

Católica não tem mais nenhum privilégio. Entretanto, o Império interferia tanto nas

questões próprias da Igreja que a laicidade da nova Constituição também por ela foi

comemorada, pois promovendo a separação entre Estado e Igreja permitiu sua

liberdade de atuação no país, não obstante a atmosfera antirreligiosa e maçônica

que prevalecia na elite intelectual na ocasião.

Ocorre que o povo continuava religioso, e muito. Daí ter-se seguido uma

incongruência entre a realidade social e a jurídica, isto é, entre os sentimentos do

povo brasileiro e a constituição que se tentava implantar. Pois bem, essa

dissonância acabou levando a novas interpretações sobre a laicidade no Brasil, que

repercutiram nas Constituições seguintes, como se exporá a seguir.

433

CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São

Paulo: Almedina, 2012, p. 77.

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183

4.2 O Brasil e o Espaço para Deus: Breve Estudo Comparativo das

Constituições Brasileiras pretéritas e atual

O Brasil imperial de 1824 era confessional, mas na prática era a Igreja

que estava submetida ao Estado, como mencionado.

Posteriormente, a Constituição da República de 1891 trouxe o ideal

iluminista do liberalismo e do laicismo ateísta, equiparando todas as religiões, sem

associar o Estado a nenhuma.

Em virtude disto, indiretamente, facilitou a liberação da Igreja face ao

Estado.

Tentou-se impor a total separação entre o Estado e a Igreja Católica.

Todavia, a discrepância entre tais ideais antirreligiosos e o sentimento do povo

acabou refletindo nas Constituições seguintes, que, aos poucos, voltam a fazer

menção a Deus e à necessária colaboração entre Estado e religiões, mantendo a

tolerância e o respeito à liberdade de crença e de consciência.

O preâmbulo da Constituição de 1934 dizia:

Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (grifo nosso).434

Por sua vez o preâmbulo da Constituição de 1946 pronunciava:

Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (grifo nosso).435

434

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm> Acesso em 03-04-2014. 435

Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm> Acesso em 03-04-2014.

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184

Em continuidade, os preâmbulos das Constituições de 1967 e 1969: “O

Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte

Constituição do Brasil (grifo nosso).”436

E, finalmente, o preâmbulo da atual Constituição aduz:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a

seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifo nosso).437

Colacionam-se abaixo os dispositivos introduzidos a cada nova Carta

Constitucional que vão introduzindo paulatinamente expressões que indicavam a

necessidade de reconhecimento da religiosidade do povo, dos quais seguem as

partes mais relevantes, com destaque para os trechos referidos:

CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1891: Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926). [...] § 7º Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem terá relações de dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica violação deste principio. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)

. CONSTITUIÇÃO DE 1946: Art 31 - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: I - criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uns contra outros Estados ou Municípios; II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo;

436

Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm> Acesso em 03-04-2014. 437

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 03-04-2014.

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CONSTITUIÇÕES DE 1967 E 1969: Art 9º - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: [...] II - estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de Interesse público, notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.

CONSTITUIÇÃO DE 1988: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

A Constituição Federal de 1988 desde seu preâmbulo deixa bastante

evidente que o Estado Brasileiro não acolhe a laicidade como ateísmo. Ao contrário,

acolhe o pluralismo de concepções de vida sejam religiosas, sejam ideológicas ou

filosóficas. Neste sentido, protege a liberdade de consciência e de crença:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Mas não se resume a isto, pois ao longo de toda a Constituição Federal

há dispositivos que manifestam o respeito ao sentimento religioso do cidadão, bem

como às funções religiosas e seu ensino:

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de

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crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - [...] § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

Como se vê, com exceção da Constituição da República de 1891, laicista,

que pregava a total separação entre o Estado e a religião, as Cartas seguintes foram

reincorporando o sentimento popular admitindo diversas formas de relações de

cooperação entre ambas as instâncias, em prol do bem comum.

4.2.1 A Polêmica em Relação ao Preâmbulo da Constituição Federal de 1988

Inicialmente, é importante lembrar que, o preâmbulo da atual Constituição

Federal acima citado foi votado e aprovado pelos constituintes à época, juntamente

com todo o texto da Constituição de 1988.

Ele exprime valores que o Estado Brasileiro adota. É reflete a

religiosidade do povo brasileiro.

O espírito em que foi promulgada a Constituição tinha este forte apelo ao

auxílio divino, pois os desafios seriam muitos na implantação da Lei Maior do país.

“Declaro promulgada! O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil! Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!” Com esta frase, proferida em 5 de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil, concluindo o trabalho de 20 meses que demandou 9 mil horas

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de discussão em 320 sessões plenárias e colocou o ponto final na transição democrática (grifo nosso).438

No ano de 1999 foi interposta Ação Direta de Inconstitucionalidade

perante o Supremo Tribunal Federal levando a Corte a se manifestar sobre a

natureza jurídica do preâmbulo.439

A medida foi promovida pelo Partido Social Liberal do estado do Acre no

sentido de ver declarada a inconstitucionalidade da constituição daquele estado por

ter omitido a expressão “sob a proteção de Deus”, contida no preâmbulo da

Constituição da República.

O pedido se fundamentou em diversos argumentos, porém o mais

importante deles dizia que a reprodução da expressão teria caráter compulsório e

que sua exclusão significaria também a exclusão do povo do Acre da proteção de

Deus, o que não ocorria nas demais unidades federativas.

A ação foi julgada improcedente, conforme ementa abaixo:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 2076, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218)

A Corte Suprema, no voto do relator e então Ministro Carlos Velloso,

decidiu que, em que pese o preâmbulo conter princípios que serão consagrados ao

longo do texto constitucional e, por esta razão, terem caráter obrigatório, no que

tange à expressão “sob a proteção de Deus”, não se trata de norma de reprodução

obrigatória, mas meramente de caráter político, refletindo a posição ideológica do

constituinte.

438

Jornal do Senado, edição de 12 de outubro de 2008. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/arquivos_jornal/arquivosPdf/Encarte_constitui%C3%A7%C3%A3o_20_anos.pdf. Acesso em 16/06/2014. 439

ADI 2076-AC

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Portanto, segundo interpretação dada pela Corte Suprema a expressão

“sob a proteção de Deus” tem caráter político-ideológico e, por esta razão, não tem

caráter imperativo. Contudo, o restante do preâmbulo contém princípios

consagrados no texto constitucional e, portanto, sim, teria tal caráter.

O preâmbulo exprime a condição em que se colocaram os constituintes

naquela ocasião em que se viram na responsabilidade de organizar um regime

democrático para o Brasil, por meio da norma superior.

No entanto, parece óbvio que daí não resulta a conclusão de que não há

espaço para Deus no Estado Brasileiro.

A menção a Deus numa Constituição de um Estado Laico reforça a

concepção de que laicidade não significa antirreligião ou ateísmo. Significa apenas

que não se pode privilegiar ou prejudicar cidadãos em virtude de sua crença. O

caráter da relação do Estado Brasileiro com a Religião é, por conseguinte, de

inclusão e não de exclusão.

Basta um pequeno esforço mental para reconhecer que são inúmeras as

obras de caridade motivadas pela fé, existentes no Brasil em favor da sociedade.

Ora, não deve o Estado apoiar tais obras, por ser laico? Dinheiro público não pode ir

a uma obra social religiosa em virtude disto?

O bem comum requer respostas negativas a estas perguntas, como prevê

a própria Constituição, que admite alianças com igrejas em prol do interesse público.

É inegável que a menção a Deus determinou a possibilidade de existência

de relações amistosas entre o Estado Brasileiro e as religiões, eliminando por

completo a concepção de um Estado ateu ou laicista, antirreligoso.

Até porque o texto constitucional contém outras disposições que refletem

o status de tais relações não apenas em respeito ao sentimento religioso de seu

povo, mas como reflexo da necessidade de cooperação para o bem comum entre

Estado e sociedade.

Assim, é evidente o progressivo restabelecimento destas relações.

4.3 No Brasil Há e Deve Haver Laicidade ou Laicismo?

A disposição constitucional brasileira que evidencia a laicidade do Estado

é:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

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I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Portanto, o Brasil é um Estado laico, ou seja, é não confessional. Quanto

a isto não há nenhuma dúvida. No entanto, a polêmica acontece na interpretação

desta laicidade.

Significaria total separação e até mesmo repúdio às igrejas e religiões?

Certamente não. A laicidade no Brasil significa, como bastante bem

elucidado por José Afonso da Silva440, o tratamento igualitário a todos os cidadãos,

independente do credo ou não crença que professem.

Afirma também o autor que houve pequenos ajustes nas relações entre

Estado e Igreja no Brasil, que passou de uma separação mais rígida para um

sistema que admite certa aproximação.

Com efeito, no Brasil a história das disposições constitucionais demonstra

a reaproximação entre Estado e Religião sempre num sentido de cooperação e

respeito e não de privilégios ou discriminações.

A atual Constituição Federal, como se viu, admite aliança do Estado com

entidades religiosas em prol do interesse público.

Segundo Celso Ribeiro Bastos o Brasil se enquadra inequivocamente no

modelo de separação entre Estado e Igreja desde o advento da República, com a

edição do Decreto n. 119-A de 17 de janeiro de 1890441, quando então se tornou

laico ou não-confessional.442

De todo modo, observa o jurista que:

o princípio fundamental é o da não-colocação de dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é evidenciado pela imunidade tributária de que gozam.443

440 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.

São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 226. 441

Cf. Anexo B. 442

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:

Saraiva, 2001, p. 199. 443

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:

Saraiva, 2001, p. 199.

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A expressão “Estado Laico”, como se demonstrou anteriormente, se

relaciona com a neutralidade em relação às religiões, o que significa não privilegiar

ou desprestigiar cidadãos em virtude de seu credo ou não crença.

Isto não significa ignorar que há uma religião predominante no país.

O censo demográfico promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística em 2010444 evidenciou que:

Quadro 1: Grupos de religião entre brasileiros445

RELIGIÃO PORCENTAGEM

católicos romanos 64,62%

católicos ortodoxos 0,30%

protestantes de tradição 4,03%

protestantes pentecostais 13,30%

outras religiões e religião indefinida

9,71%

TOTAL 91,96%

sem religião 7,65%

ateus 0,32%

agnósticos 0,07%

TOTAL 8,04%

FONTE: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Censo Demográfico do ano de 2010, p. 143-144.

Deste modo, pouco mais de 8% da população brasileira se declara sem

religião, ateu ou agnóstico. Dentre estes, 7,65% se declara sem religião, mas não

descrente em Deus.

Significa dizer que ateus e agnósticos correspondem a menos de 0,4% da

população brasileira. O restante da população, ou seja, praticamente 99,6% da

população brasileira se declara de algum modo crente no sobrenatural, ainda que

alguns professem uma fé particular, individualista.

Não se pretende com isto que estas minorias mereçam respeito menor ou

tratamento diferenciado. Ao contrário, igual respeito e tratamento é devido a todos.

444

Cf. publicação completa disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf > Acesso em 08-03-2014 (tabela p. 143-144). 445

Quadro elaborado especificamente para este trabalho com percentagens aproximadas baseadas nas informações numéricas da pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizada em 2010.

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Apenas se quer demonstrar que o povo brasileiro é um povo que cultiva a fé! E

dentre estes, a maioria absoluta se declara pertencente a alguma religião, ou seja,

são religiosos.

Outra evidente constatação é: dentre os religiosos, o cristianismo

prepondera absoluto e dentro do cristianismo, a maioria pertence à religião católica

romana.

Equivoca-se, portanto, quem defende a laicidade do Estado Brasileiro

como uma condição de isolamento e desprezo em relação às religiões e mesmo em

relação à religião predominante, qual seja, a católica.

É evidente que o Brasil não admite o laicismo e sim a salutar separação

entre Estado e Igreja, bem como a neutralidade em relação a todas as religiões,

garantindo o pluralismo religioso:

Importa destacar que o laicismo e toda e qualquer postura oficial (estatal) hostil em relação à religião revelam-se incompatíveis tanto com o pluralismo afirmado no Preâmbulo da Constituição Federal, quanto com uma noção inclusive de dignidade da pessoa humana e liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, de modo que a necessária neutralidade se assegura por outros meios, tal como bem o demonstra o disposto no art. 19, I.446

No mesmo sentido, Gilmar Mendes, quando Ministro do Supremo Tribunal

Federal, teve oportunidade de se manifestar em relação a este assunto:

Nesse sentido, não se revelaria aplicável à realidade brasileira as conclusões a que chegou o Justice Black da Suprema Corte norte-americana, no famoso caso Everson v. Board of Education, segundo as quais a cláusula do estabelecimento de religião (“establishment of religion” clause) prevista na Primeira Emenda à Constituição norte-

americana não estabeleceria apenas que “nenhum Estado, nem o Governo Federal, podem fundar uma Igreja”, mas também que “nenhum dos dois podem aprovar leis que favoreçam uma religião, que auxiliem todas as religiões”. Segundo Thomas Jefferson, a referida cláusula deveria ser compreendida como a construção de um “muro” entre Igreja e Estado (“erect a wall of separation between Church and State”).447

Ele continua:

446

SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 478. 447

Cf. Mandado de Segurança 28960. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.

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Tal entendimento não se afigura, a priori, compatível com a nossa Constituição, pois se revela contrária, até mesmo, à concessão de imunidade tributária aos templos de qualquer culto (art. 150, IV, “b”), à prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII), ou quaisquer outras que favoreçam ou incentivem todas as religiões. [...] Não se revela inconstitucional, portanto, que o Estado se relacione com as confissões religiosas, tendo em vista, inclusive, os benefícios sociais que elas são capazes de gerar.448

É como se demonstrou anteriormente: o Estado não pode impor um

ordenamento jurídico sem levar em conta as bases pré-políticas de sua nação, isto

é, sua cultura e seus costumes.

A imposição de normas “de fora para dentro”, que não correspondam a

tais bases preexistentes, acabam descaracterizando e destruindo aquilo que Jürgen

Habermas denominou de “solidariedade” entre os cidadãos na participação política

no jogo da democracia. Isto porque, na prática há uma sensação de desconexão

entre a esfera particular da vida e a pública, gerando o desinteresse nesta último e

formação de comunidades e indivíduos voltados apenas para si mesmos, na defesa

de seus próprios interesses.

Contudo, os princípios da laicidade e da liberdade religiosa, na visão de

Celso Ribeiro Bastos implicam tratamento absolutamente igualitário entre as

religiões o que poderia dificultar até mesmo a desejada colaboração entre o Estado

e alguma religião em especial:

O referido preceito impede relações de dependência ou de aliança entre o Estado e as igrejas, o que não exclui vínculos diplomáticos com a Santa Sé, que no caso comparece como Estado e não como Igreja. Mas uma certa colaboração é possível, como reza o mesmo o dispositivo. Remete contudo à lei o definir as modalidades desta cooperação. O próprio Texto Constitucional não faz referência ao conteúdo que ela possa assumir, ao contrário do Texto anterior, em que ela se daria notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar. No entanto, esta colaboração será sempre difícil, uma vez que deverá estar adstrita ao princípio de uma absoluta igualdade entre todas as igrejas.449

448

Cf. Mandado de Segurança 28960. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.

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Mas estaria correto afirmar de maneira genérica que o tratamento

desigual entre religiões é inconstitucional?

4.3.1 Igualdade ou Igualitarismo Religioso no Brasil?

Sobre este questionamento André Ramos Tavares afirma:

Uma resposta adequada não pode ser oferecida, no âmbito constitucional, com atenção exclusiva ao princípio da neutralidade do Estado. Essa seria uma leitura distorcida (do ponto de vista da teoria constitucional) e ideológica (o resultado é conhecido previamente). Outros elementos normativos devem ser considerados. Assim, por exemplo, a categoria do interesse público, que em muitas ocasiões pode coincidir com as atividades religiosas, embora possa haver aí, também nova área de disputa conceitual, ou a proteção da cultura e do patrimônio histórico nacional, também presente na maior parte das constituições contemporâneas.450

Como se viu anteriormente, a igualdade é um dos pilares do Estado

democrático, uma vez que a ninguém pode ser dado privilégios em detrimento de

outros. O mesmo se aplica à liberdade religiosa.

Contudo, há que se fazer a diferenciação entre situações de privilégios e

situações de tratamento especial, pois estas últimas são admitidas. É necessário

explicar.

Segundo o jurista português Jorge Miranda, tratando a respeito das

Concordatas com a Santa Sé e o Estado português:

O entendimento dominante e acolhido pelos órgãos de fiscalização da constitucionalidade é que os princípios constitucionais se compadecem com um tratamento diferenciado das várias confissões, em razão do modo como elas se encontram difundidas entre as pessoas ou do peso real que têm na sociedade. O que não admitem, em caso algum, é o tratamento privilegiado ou, ao invés, discriminatório desta ou daquela confissão.451

E continua:

449

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:

Saraiva, 2001, p. 200. 450

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

606. 451

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 420.

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Um tratamento privilegiado para uns e discriminatório para outros conduziria ao arbítrio; um tratamento diferenciado, pelo contrário, repele o arbítrio, desde que assente numa cuidadosa ponderação de situações e valores. [...] O princípio não impede a subsistência de regras específicas e imediatamente dirigidas à Igreja Católica – por força de sua realidade histórica e sociológica – desde que estas regras correspondam a critérios de objectividade, necessidade e adequação.452

Em relação à Igreja Católica Portugal e Brasil se assemelham e “mesmo a

liberdade de religião não está a impedir toda e qualquer relação entre Estado e

Igreja ou, no caso brasileiro, especificamente com a Igreja Católica”.453

Tal tratamento diferenciado se justifica na distinção entre igualdade e

igualitarismo.

Este último se caracteriza por uma uniformização forçada, artificial, de

diferenças. A igualdade, por sua vez, corresponde ao conceito aristotélico de

isonomia, isto é:

A relação que se estabelece entre as pessoas é proporcional à relação que se estabelece entre as duas coisas partilhadas. Porque se as pessoas não forem iguais não terão partes iguais, e é daqui que resultam muitos conflitos e queixas, como quando pessoas iguais têm e partilham partes desiguais ou pessoas desiguais têm e partilham partes iguais [...] Assim, tal como a proporção é o meio; também o justo é o proporcional. [...] “Justo” neste sentido é então a proporção. “Injusto”, enquanto a acepção oposta é o que viola o princípio da proporção.454

Igualdade é proporção, isto é, isonomia. Igualdade como proporção é

justiça, igualitarismo é injustiça, pois implica tratar de forma igual os desiguais.

452

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 421. 453

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

608. 454

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. do grego de Antonio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas,

2009, p. 109-110

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Segundo José Afonso da Silva o corolário do tratamento sem distinção de

credo é “que todos hão de ter igual tratamento nas condições de igualdade de

direitos e obrigações sem que sua religião possa ser levada em conta”455.

O próprio autor em seguida emenda a constatação de que não se verifica

no Brasil, de modo geral, discriminação contra as religiões, não parecendo que este

fator seja causa de tratamento desigual de quaisquer cidadãos seja pela iniciativa

privada, seja pela pública.

Destarte, o que a constituição proíbe é a discriminação de alguém em

virtude de sua crença, o que não é o mesmo de considerar igualitariamente cada

credo.

Resulta daí que, sem discriminar cidadãos, os credos podem e devem ter

trato diferenciado, desde que em conformidade com a Constituição:

E se se insiste em que não somente é possível como necessário este trato diferenciado, porque o Estado, ante a regulação do fenômeno religioso, não pode adotar uma postura igualitária ou uniformizadora quanto às confissões religiosas. A igualdade não impede – mas ao contrário exige – o reconhecimento jurídico das peculiaridades reais dos sujeitos, sempre que o acolhimento das mesmas não implique em desprestígio de categoria igual na condição de sujeitos de

liberdade de religião.456

No mesmo sentido a assertiva de André Ramos Tavares:

Diversa, contudo, é a situação na qual há elementos culturais fortes que justifiquem um tratamento não–uniforme e não totalmente idêntico. Nesse caso, eventual tratamento particularizado estará respeitando, ainda, a igualdade, pois o Estado não pode conferir tratamento meramente uniforme se outros elementos aconselham ou impõem a distinção pontual. Não se pode traduzir a igualdade religiosa (decorrente da neutralidade do Estado e da aplicação do princípio da igualdade no âmbito religioso) como a exigência de tratamento matematicamente idêntico entre confissões religiosas, por parte do Estado.457

455

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 226. 456

MURGOITIO, José Manuel. Igualdad religiosa y diversidad de trato de La Iglesia Católica apud GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 292. 457

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

608.

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196

Neste sentido, é evidente que a religiosidade católica tem traços

distintivos no país, seja por sua história e cultura, seja em virtude de, até os dias

atuais, a população se declarar predominantemente desta religião.

Resta claro, portanto, que a correta concepção de laicidade no Brasil é

inclusiva e não excludente. De um lado não exclui as minorias e de outro não

significa anticlericalismo ou revanchismo ideológico contra o catolicismo, religião da

maioria do povo brasileiro.

4.3.2 A abolição dos Símbolos Religiosos

Os sinais da religião fundadora do país estão espalhados por toda a parte

no país seja no nome de Estados, cidades, ruas, empresas; seja nos feriados, festas

populares; ou, ainda, na existência pública de sinais que representam tal religião.

Portanto, a “catolicidade” identifica a formação nacional brasileira, isso é

certo.

Sendo assim:

A cultura, como elemento normativo a ser preservado e promovido, constitui uma categoria extremamente ampla. No caso brasileiro, o chamado patrimônio cultural é formado, dentre outros, pelos bens (inclusive imateriais) portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Em seu art. 215 a Constituição brasileira impõe ao Estado a proteção das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-descendentes e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. 458

E mais:

A ideia de identidade é chave para compreensão aqui. Há uma nítida

imbricação entre determinadas manifestações religiosas no Brasil (e não apenas o catolicismo) com a formação nacional de uma identidade e de uma cultura própria. Nesses casos, o Estado encontra-se obrigado a agir, protegendo essas manifestações em suas diversas dimensões. Mais do que isso, o Direito não se pode furtar a uma leitura cultural de suas normas (grifo do autor).459

458

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

612. 459

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

613.

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197

No Brasil o contexto histórico cultural é predominantemente católico, com

seus feriados e festas religiosos, e tantos sinais espalhados por toda a sociedade,

seja no espaço privado, como no público.

Ora:

As normas constitucionais refletem a e são refletidas pela sociedade, pelo concreto, pela identidade nacional e pelos padrões gerais de comportamento construídos e sedimentados ao longo dos tempos. Com o princípio do Estado laico não será diferente. Nada há que imponha uma leitura específica apartada da teoria geral do Direito Constitucional, como exceção conceitual.460

O desembargador José Renato Nalini reconhecendo que para remover os

sinais católicos do país teríamos que reescrever sua história diz:

A tentativa de eliminar símbolos do Cristianismo das repartições públicas é utopia. O Brasil se chamou Terra de Santa Cruz, a religião católica foi a oficial desde 1500 até 1890. [...] A se levar a sério a eliminação de qualquer sinal da cristandade, cultura entranhada em nossas tradições, teríamos de reescrever a história. E isso é impossível. Veja-se o ridículo da revisão do passado, de maneira a excluir o que é “inexcluível”, tema que George Orwell já enfrentou no seu célebre “1984″. Ao proceder a leitura de “O Tempo das Ruas”, da antropóloga Fraya Frehse, mais me certifiquei disso. Ela fala de São Paulo, cidade fundada sob a invocação do Apóstolo dos Gentios, por padres jesuítas que aqui estavam a catequizar os indígenas. A reescrita obrigaria São Paulo a não se chamar assim. Seria apenas “Paulo”? Não estaria implícito e subjacente a santidade do patronímico? Onde se chegaria se tivéssemos de dizer que a população recenseada pelo poder público paulistano em 1872 e 1890 obedecia a uma divisão administrativa que se chamava, simplesmente, Nossa Senhora da Assunção da Sé, Nossa Senhora da Conceição de Santa Ifigênia, Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, Senhor Bom Jesus do Mattosinhos do Braz, Nossa Senhora da Expectação do Ó, Nossa Senhora da Penha de França, Nossa Senhora da Conceição de São Bernardo, Nossa Senhora do Desterro do Juqueri e Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos? As cidades todas têm padroeiro, os Estados membros também, a Nação idem. Que cidade não tem a sua “rua do Rosário”, invocação mariana entranhada na consciência das pessoas e que nenhum decreto humano conseguirá apagar. Vide a URSS, que ao ser dissolvida, viu voltar, em plenitude e exuberância, a fé e a crença na transcendência, vocação natural dos míseros humanos. Conformem-se, ateus, e tentem ganhar a adesão dos descrentes, sem modificar

460

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.

613.

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198

o passado. Este já foi e é a única dimensão do tempo com que se pode efetivamente contar.461

Portanto, uma salutar concepção de laicidade não impõe a destruição da

tradição cultural do país em nome de um igualitarismo de inspiração laicista. Tal

soaria mais como perseguição do Estado contra a religião predominante, em nome

de um suposto respeito às minorias:

O respeito devido às minorias de agnósticos ou de não crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.462

Um exemplo de inclusão é a homenagem do país à umbanda quando os

Correios lançaram um carimbo alusivo ao Dia Nacional da Umbanda em sessão

solene que ocorreu no plenário da Câmara dos Deputados, no dia 12 de novembro

de 2012463.

Ora, caso a laicidade fosse excludente, tal jamais poderia ser permitido.

Por qual razão se poderia homenagear uma religião e não outra? Não poderiam

sentir-se ofendidos os que professam o espiritismo ou a religião judaica?

Evidente que o reconhecimento pela atuação de uma religião no país,

especialmente se está ligada à prática da caridade e do amor ao próximo, não pode

ser repudiada em nome da laicidade do Estado.

De outro lado, isto significa reconhecer que há uma religião tradicional no

país, cujos sinais são evidentes e, se não é desejável a tirania da maioria, do

mesmo modo não se pode admitir a tirania da minoria.

O sentimento religioso do povo brasileiro, cuja esperança reside de modo

decisivo em sua fé no Deus cristão e nos seus santos protetores e que proclamou

como padroeira a Virgem Aparecida, merece o respeito de todos, seja dos que

professam outros credos, seja dos que nenhum credo professam.

461

NALINI, José Renato. A cruz é inextinguível. Artigo eletrônico publicado em 28 de março de

2014. Disponível em: <https://renatonalini.wordpress.com> Acesso em 05-05-2014. 462

FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013, p. 142. 463

Cf. notícia no blog dos Correios. Disponível em: < http://blog.correios.com.br/correios/?p=4687> Acesso em 06-04-2014.

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Todo o país está impregnado de traços da religião católica, sobre a qual

foi construído e na qual a maior parte do povo foi formada, sendo até hoje a religião

mais professada no território.

Além disso, houve grande crescimento de outras confissões religiosas

cristãs. Portanto, o país é eminentemente cristão.

Isto não significa que as denominações não cristãs que representam a

minoria sejam ou devam ser desprezadas ou desrespeitadas. Esse respeito e igual

tratamento é imposição da laicidade.

Porém, num país de colonização católica a tradição é católica.

Reconhecer isto seria ser intolerante com as demais denominações? Reconhecer

que a sociedade brasileira está prenhe de manifestações religiosas católicas e

respira catolicidade por todos os poros, é dizer que o estado não é laico? Por certo

que não. É necessário reconhecer o valor cultural desta religião no país.

São diversos feriados, inúmeros nomes de estados e cidades, dezenas de

monumentos e festas populares como a junina, de reis, do divino e tantas outras em

cada Estado que caracterizam o Brasil e são provenientes da religião católica.

O grande símbolo do Brasil no exterior é a cidade do Rio de Janeiro com

o Corcovado e o Cristo Redentor.

Alguns defensores da retirada dos símbolos religiosos católicos das

repartições públicas alegam que os crentes de outras religiões se sentem ofendidos

pela presença de tais sinais externos de uma crença específica. Ou ainda, que

algumas questões levadas ao Judiciário têm viés religioso e a existência de um

crucifixo nas salas de julgamento seria causa de decisões parciais.464

Em sua dissertação de mestrado Roberto de Almeida Gallego mostra que:

Há algum tempo, uma organização não governamental intitulada “Brasil Para Todos” apresentou requerimento ao conselho Nacional de Justiça, no sentido da retirada de crucifixos dos Fóruns e

464

Segundo o Jornalista Leonardo Sakamoto: “[...] É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. E, o mais relevante: as denominações cristãs são parte interessada em polêmicas judiciais, como pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão presentes nos locais onde são tomadas as decisões, como garantir que as decisões serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, para promover nenhuma delas. [...]” (Disponível em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2011/10/09/tirem-o-crucifixo-do-stf-o-cristo-redentor-pode-ficar/ Acesso em 12-06-2014)

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Tribunais de todo o país, sob o argumento de que a prática de manter tais símbolos religiosos nas dependências de órgãos do Poder judiciário vulnera o princípio constitucional da laicidade do Estado. O Conselho Nacional de Justiça em decisão proferida na data de 06.06.2007 houve por bem não acolher tal pleito, sob os seguintes argumentos: a) o caráter tradicional e costumeiro da prática impugnada; b) a inexistência de qualquer vedação a ela; c) o caráter positivo da mensagem que porta o crucifixo, como “símbolo que homenageia princípios éticos e representa especialmente a paz”; d) a ausência de qualquer violação de direitos ou de discriminação na exibição de crucifixo nos tribunais; e) a autonomia administrativa dos tribunais para decidirem livremente sobre o assunto, tendo em vista a ausência de balizas legais.465

O constitucionalista Daniel Sarmento escreveu artigo sobre o assunto

onde argumenta que a decisão do Conselho Nacional de Justiça de manter os

crucifixos foi equivocada466.

Para isto aduz em síntese que: a) o crucifixo é à evidência um símbolo

religioso associado ao cristianismo; b) não é ele um mero adorno; c) o protesto

contra a presença de crucifixos não é intolerância religiosa; d) a retirada dos

símbolos religiosos não é antidemocrática; e) que democracia não é mero governo

das maiorias; f) a justificativa do CNJ de que tais símbolos são tradição é

equivocada e expressa visão conservadora do direito; g) quaisquer considerações

acerca da mensagem que o crucifixo transmite fere a neutralidade do Estado laico;

h) a inexistência de lei proibindo a existência de tais símbolos não a torna

automaticamente lícita; i) a retirada de símbolos não implica necessariamente a

concepção de inconstitucionalidade dos feriados religiosos, nem que o Estado não

possa empregar recursos na conservação do patrimônio histórico-religioso.

Em sua dissertação de mestrado Roberto de Almeida Gallego traz tais

argumentos para refutá-los. Segundo ele, de fato o crucifixo não é mero adorno e

está associado à mensagem cristã. Mas para o autor, isto não vulnera a laicidade

do Estado.

465

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 294-295. 466

SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica do

Ministério Público Federal de Pernambuco. Ano 5. 2007. Disponível em: < http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/Legislacao-e-Revista-Eletronica/Revista-Eletronica/2007-ano-5/O-Crucifixo-nos-Tribunais-e-a-Laicidade-do-Estado> Acesso em 06-04-2014.

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O primeiro contra-argumento é o que constata não haver qualquer tipo de

influência sobre o julgador para exercer sua função:

Assim, o Estado-juiz atua julgando as controvérsias que lhe são levadas à apreciação pelos jurisdicionados. Neste contexto, pergunta-se: em que medida matéria confessional – especificamente cristã ou católica – é levada em conta pelo julgador quando da prolação de uma sentença? [... ] Em atenção ao princípio da persuasão racional o magistrado deve explicitar, logicamente, os argumentos dos quais se utilizou para embasar sua decisão.[...] Não há aqui nenhum endosso estatal de mensagens religiosas.467

O autor refuta a ideia de que o símbolo religioso possa ser ofensivo aos

que não professam a fé cristã:

Por conseguinte, para um cristão o crucifixo ostenta um valor religioso, enquanto que, para o seguidor de outra fé, represente um valor cultural, ou uma síntese de valores – hoje com roupagem secular – que são caros às sociedades livres. Dizer-se, por exemplo, que a cruz pode ser afrontosa a alguém pertencente a uma religião de matriz africana é ignorar o intenso sincretismo existente, em nosso país, entre o catolicismo e tais religiões; afirmar-se que a cruz agride os muçulmanos é ignorar o respeito que o Corão tem pela figura de Jesus. [...] Com relação aos denominados “sem religião”, isto é, ateus e agnósticos, a presença do crucifixo em tribunais lhes deveria ser indiferente, muito embora certo “ateísmo militante”, movido por verdadeiro ódio à religião esteja, atualmente, a tentar ocupar espaço na sociedade.468

Outro argumento é o questionamento sobre em que medida a presença

da cruz em salas de audiência ou outras dependências de Cortes de Justiça daria

ensejo a alguém ser discriminado por não professar a mesma religião? Este motivo

não é levado em conta pelo Magistrado no momento de julgar, pois se o for, aí sim,

seria motivo de discriminação. Mas não é o que parece ocorrer.

Por fim, em relação à democracia não ser a tirania da maioria e que o

direito não pode avalizar acriticamente posições tradicionais existentes na

sociedade, afirma Gallego que se deve recorrer “no trato de questões sensíveis,

467 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado

Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 296. 468

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 296-297.

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como aquelas ligadas à religião, não somente à razão organizadora do mundo, mas

também ao sentimento do povo”.469

O sentimento do povo está manifestado no preâmbulo da Constituição

Federal, pois ali foi aprovada a menção a Deus, quer queiram ou não:

O preâmbulo está, assim, a registrar um sentimento construído e alimentado no curso de longa história e, embora o direito não deva acatar, passivamente, as tradições estabelecidas, cabe-lhe resistir à tentação jacobina de reformar o mundo a partir de um ponto zero, ignorando ou subvalorando a ancestralidade. Afinal, como bem intuiu Edmund Burke, a sociedade é uma comunidade de almas, formada por aqueles que já se foram, os que aqui estão no momento atual e aqueles que ainda virão a nascer, sem solução de continuidade.470

A simples existência desses símbolos católicos no ambiente público,

portanto, não fere a laicidade, é um sinal cultural. Ofenderia se fosse exigido do

cidadão, que, ao adentrar o recinto público, fizesse uma reverência ao crucifixo ali

afixado.

Bastante interessante a manifestação do juiz federal e escritor protestante

William Douglas a este respeito. Ele, que por sua crença repudia as imagens, é

absolutamente contra a arbitrária atitude laicista de retirada de símbolos religiosos

dos tribunais e repartições públicas.

Segundo o Magistrado a alegação de que a laicidade impõe a retirada de

símbolos católicos do espaço público é oportunismo. De seu texto, cujo inteiro teor

colaciona-se no anexo “A”, pedimos vênia para extrair citação um tanto longa:

Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela imagem é natural. O crucifixo nas Cortes, independentemente de haver uma religião que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem aos poderosos mais do que à Justiça.Vale dizer que se a medida for ser levada a sério, deveríamos também extinguir todos os feriados

469

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298. 470

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298.

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religiosos, mudar o nome de milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir símbolos e imagens, a exemplo, que

identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim, dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que é intolerância. Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e, portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico para retirar os Santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de oportunismo. 471

Deste modo, a presença dos crucifixos nas repartições públicas é de fato

uma tradição, já que o cristianismo historicamente, desde a colonização, é a religião

da maior parte da população. Porém não é uma tradição maléfica, como o foi a

escravidão.

Em comparação, pode-se lembrar de outro símbolo proveniente de uma

religião como é a escultura feita em pedra inspirada na deusa grega Têmis ou

romana Iustitia, como símbolo da Justiça colocada bem em frente ao prédio do

Supremo Tribunal Federal.472

Assim: “As tradições não precisam ser mudadas, a menos que se prove o

efetivo e injusto dano que estejam elas a causar a pessoas de carne e osso”.473

E neste ponto relembra-se o quanto afirma Habermas em relação a uma

“modernização descarrilhadora” imposta a sociedade por meio de uma mudança

cultural radical.

Por outro lado, é evidente que a cultura brasileira está permeada de

traços da religiosidade católica seja nos sinais existentes em diversos locais públicos

471

DOUGLAS, William. A laicidade do Estado laico: todos os credos ao invés de nenhum. Texto

publicado no blog do Magistrado Federal. Disponível em: <http://www.williamdouglas.com.br/conteudo04.php?id=681> Acesso em 06/04/2014. 472

Cf. informações no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal (Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=124639&caixaBusca=N – Acesso em 12-06-2014) 473

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298.

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e privados, seja no nome dado às mais diversas cidades e Estados do país, os

feriados católicos, as festas de origem católica como festas de São João, Folia de

Reis, Festa do Divino; além dos feriados provenientes de datas comemorativas

católicas, dos quais todos podem de algum modo ter proveito, seja para praticar o

culto, seja para mero descanso.

Isto não pode ser simplesmente descartado sob pena de grande falta de

respeito com o sentimento do povo.

Em outras palavras, o povo brasileiro é religioso, a religiosidade (de modo

geral e a católica em especial) faz parte da cultura brasileira, é parte de sua

identidade. A maior prova disto está no preâmbulo da Carta Política, já

anteriormente analisado.

A igualdade no trato de todos os cidadãos se impõe, mas não está

condicionada à redução de visibilidade da religião mais tradicional do país, desde

que nenhuma discriminação se faça em nome dela. O que equivale a dizer que sua

importância histórica e os sinais daí provenientes, por si só, não representam

qualquer tipo de privilégio em face de outros credos ou do ateísmo.

O fato é que a cultura do povo deve sempre ser preservada e respeitada

como sua parte integrante. Até porque, os valores que perpassam cada cultura

auxiliam na construção de sua ética, cujos fundamentos primeiros são universais:

Ressalte-se, desde logo, que não pode servir de critério para o juízo do bem e do mal a opinião deste ou daquele indivíduo. Aqui, tal como no campo das ciências da natureza, a famosa fórmula de Protágoras, “o homem”, isto é, cada indivíduo humano, “é a medida de todas as coisas”, conduz logicamente, como bem ressaltou Sócrates, à negação de todo saber racional. Em matéria ética, o critério ou modelo de vida deve valer, no essencial, para todos os homens e todas as civilizações. Frise-se: no essencial, pois há valores secundários que variam enormemente, entre as diferentes culturas e civilizações. 474

Portanto, há um mínimo ético que deve ser universalmente preservado, a

fim de se evitar desigualdades, já que estas indicam a negação da dignidade

inerente a qualquer ser humano sem exceção. De outro lado, há as diferenças

474

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo,

Companhia das Letras, 2006, p. 439.

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culturais, sejam elas fundadas no aspecto biológico ou cultural e constituem valores

a serem sempre respeitados, sob pena, aí, de negação da dignidade humana.475

Quem defende o contrário parece defender uma posição radical de

revanchismo contra a Igreja Católica, tomado por motivações de vingança, que

evidentemente não se coaduna com a visão neutra exigida pela laicidade do Estado.

4.4 O Decreto 7.007/2010: a concordata entre o governo brasileiro e a Santa Sé

Concordata é o nome dado aos acordos internacionais firmados pela

Santa Sé, na qualidade de Estado independente, com outros Estados

independentes.

Outrossim, a Igreja Católica é universal e está presente em inúmeros

países não apenas como sociedade civil organizada, como na pessoa de seus fiéis.

Para estes é quase como ter uma “dupla cidadania”. Portanto, nada melhor do que

colocar às claras qual tipo de relação há entre a Igreja Católica e o país que a

abriga.

Portugal é um país que tradicionalmente firma acordos com a Santa Sé,

tendo em vista a reconhecida trajetória da Igreja no país, que conta com mais de

90% de católicos e tem notórias obras de caridade em benefício da população por

ela promovidas.476

Muito semelhante ao Brasil.

São inúmeros os países que firmaram com a Santa Sé acordo de

cooperação e garantia de respeito à liberdade religiosa de parte à parte. Veja-se as

concordatas firmadas com Croácia, Saxônia, Áustria, Espanha, Venezuela, Polônia,

Malta e até Israel.477

Tais acordos garantem a ambas as partes segurança jurídica para evitar

tanto ofensas à liberdade religiosa quanto enganos sobre a atuação da Igreja no

respectivo país.

Neste sentido, no Brasil, o Decreto n. 7007/2010 aprova o Acordo feito

entre o Governo Brasileiro e a Santa Sé, no que tange à situação da religião católica

475 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 439. 476

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 419. 477

Cf. informações no sítio eletrônico do Vatincano (www.vatican.va).

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no país, sem que haja nenhuma inconstitucionalidade ao contrário do que algumas

vozes propagaram publicamente.478

A principal insurgência é quanto ao ensino religioso, pois assim está

disposto no artigo 11:

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Neste sentido, a utilização da expressão “católico e de outras confissões

religiosas” trouxe alguns ataques acalorados em favor da laicidade do Estado.

Contudo, a questão do ensino religioso no Estado laico será abordada mais

detidamente à frente.

A referida concordata, desde que lida atentamente, mostra mais a

necessidade da Igreja de autonomia em suas funções no território brasileiro do que

qualquer outra coisa. Que é o que preceitua a sã laicidade: a autonomia das esferas.

Como já anteriormente demonstrado foram muitas as interferências do

Estado na Igreja, o que gerou prejuízos de toda a sorte. É este mal que parece

preocupar a Santa Sé, bem como, com a perseguição aos católicos em países em

que não se respeita a liberdade religiosa. Outro tema abordado é a do patrimônio da

Igreja em solo brasileiro, a fim de que haja cooperação no cuidado e acesso, pois é

reconhecidamente patrimônio cultural brasileiro também.

A integralidade do Decreto e do Acordo seguem no Anexo “C”, porém

destaca-se algumas disposições específicas, a fim de se verificar o “tom” desta

composição amigável.

Vejamos:

478

Cf. Ação Educativa e laboratório da laicidade. Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=1843&Itemid=2> e: < http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/concordata_educ_publ_mira_vaticano.htm>. Acesso em 26-05-2014.

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207

Artigo 2º A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro. [...] Artigo 7º A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo. § 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico, observada a função social da propriedade e a legislação, pode ser demolido, ocupado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, nos termos da Constituição brasileira. [...] Artigo 10 A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o Estado, continuará a colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro. § 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de constituir e administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e cultura. § 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos obtidos nos Seminários e Institutos antes mencionados é regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em condição de paridade com estudos de idêntica natureza.

Em todo o documento se nota a necessária obediência aos princípios

constitucionais e respeito à lei brasileira. Deste modo, nada há em tal acordo que fira

a laicidade do Estado brasileiro.

Não é antagônico à laicidade, ademais, o fato de somente a Igreja

católica ter firmado este acordo, posto que a laicidade é inclusiva e não excludente.

Quem sabe não foram abertas as portas para que outras religiões se organizem e

firmem também acordos que assegurem a proteção de seus cultos, patrimônio e sua

liberdade de atuação no país?

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208

4.5 O Ensino Religioso no Estado Laico

A pesquisadora Marília De Franceschi Neto Domingos479 em artigo publicado em

2009 na Revista de Estudos da Religião480 afirma que a laicidade no meio

educacional está distante de ideias anticlericais.

Segundo a autora, a espiritualidade é uma tendência natural do ser

humano, na busca de uma transcendência, enquanto “o fato religioso é a resposta

das religiões a esta tendência fundamental que aflora quando o homem toma

consciência da fragilidade da sua própria existência”.

Diante disso:

Mesmo tendo consciência de que não cabe à escola a tarefa de resolver todos os problemas não resolvidos pela sociedade em geral e pelas famílias em especial, negar a necessidade de abertura de diálogo sobre o ensino religioso na escola laica é contribuir para o obscurantismo, o sectarismo e a intolerância. Toda experiência pedagógica acumulada pelos especialistas na área nos leva a concluir que a tolerância religiosa, característica essencial da cidadania, não se constrói sobre um fundo de ignorância religiosa.481

Ela corrobora a posição já afirmada anteriormente em relação à diferença

entre laicidade e laicismo, já que este acabou se tornando um princípio filosófico-

político:

O laicismo levado ao exagero tem aparecido como uma militância que se opõe tanto às procissões quanto aos toques de sinos das igrejas, conclamando os fiéis para as festas religiosas ou missas; tanto aos elementos religiosos em prédios públicos quanto às datas festivas do calendário referentes a datas religiosas. Pode mesmo ser considerado, de forma mais agressiva, um proselitismo laico, agressivo, que ofende à liberdade de consciência e à própria proibição do proselitismo em espaço público.482

479

Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris I – Pantheon Sorbonne (2003). Professora da Universidade Federal da Paraíba – Centro de Educação e Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. Líder do Baobah – Grupo de Pesquisa em Educação e Ensino Religioso – CNPq. 480

DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:

<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014. 481

DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 68. 482

DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:

<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 64.

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209

Segundo a autora é a laicidade que permite a convivência pacífica entre

as religiões e o respeito aos indivíduos que optam por não professar nenhuma

religião, sendo a escola o espaço onde esses universos culturais se encontram,

onde os conflitos podem se acirrar ou ser desarmados.

Assim sendo:

A grande questão, então, é de saber conciliar diversidade na unidade, articulando-as de tal forma que uma não comprometa nem oprima a outra. A laicidade, então, não é um produto cultural espontaneamente surgido de uma tradição particular, mas uma conquista de uma sociedade que buscou separar-se do poder teológico e político tradicional, estabelecendo a necessária distância entre um poder e outro. O ensino dos fatos religiosos propõe fornecer ao estudante os meios de poder escolher uma orientação religiosa, caso ele assim o deseje; mas uma escolha consciente, motivada por um desejo consciente e não uma opção forçada ou induzida por influências externas e muitas vezes extremistas. Nesse aspecto, o Relatório Debray já afirmava que “ninguém pode confundir catecismo e informação, proposição de fé e oferta de saber, 'testemunhos' e relatos”. (DEBRAY 2000). O Ensino Religioso

em um Estado laico tem toda a sua força baseada em uma aproximação descritiva, analítica, das religiões dentro da sua pluralidade.483

De opinião de que o ensino religioso deve ser generalista, a autora

ressalta que é necessário investir na formação deste professor:

A atenção dada à melhoria da formação dos docentes do Ensino Religioso, a constante adequação dos programas de ensino, materiais didáticos e recursos, a revisão dos materiais didático-pedagógicos, são essenciais para a educação para a tolerância, a não-violência, o aprender a ser e o aprender a viver juntos. Somente uma formação sólida fornecerá a esse docente conhecimento, recursos e metodologia próprios ao ensino das religiões. É a esta formação inicial e continuada, às discussões dela decorrentes, que o meio acadêmico, em especial as universidades públicas, não pode se furtar.484

De outro ponto de vista, o constitucionalista português Jorge Miranda

afirma que: “Não há contradição entre o ensino de religião e moral católica nas

483

DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 61-62. 484

DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:

<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 61-62.

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escolas públicas [...] e a regra da não confessionalidade do ensino público, contanto

que os dois termos sejam correctamente apreendidos e enquadrados.”485

Afirma o autor que a neutralidade do ensino público significa que não há

identidade com uma religião específica, mas “não significa que as religiões, as

convicções, as filosofias ou as ideologias não devam ter expressão no ensino

público.” 486

Isto porque o direito dos pais de assegurar a educação de seus filhos de

modo coerente com suas convicções religiosas e filosóficas, aliás, consagrado no

Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é

signatário, inclui a escola pública, sobretudo quando o fator que impede a escolha

de uma escola confessional é a condição financeira.487

O Estado deve garantir, portanto, este direito aos pais.

E àqueles que não querem seja ministrado ensino religioso a seus filhos,

deve ser dado o direito não apenas da ausência à aula de ensino religioso, como

assegurar a alternativa de atividade correlata, como ensino dos direitos humanos,

desenvolvimento pessoal, filosofia e cultura brasileira.

Mas para que isto funcione corretamente são requisitos:

a) a livre opção dos pais;

b) igual oportunidade de ensino a todas as religiões e

c) ensino ministrado por docentes indicados por cada confissão, sob a

responsabilidade e com programas por ela definidos.488

Pois bem, em relação ao Brasil e ao Acordo com a Santa Sé, que prevê a

possibilidade de ensino religioso, católico e outros, pode-se afirmar que isto fere a

laicidade?

Para responder é necessário ler atentamente o texto e perguntar se há ali

algum privilégio especial dado à religião católica e negado a outras religiões ou

mesmo se há disposição discriminatória em relação a outras religiões.

A resposta parece ser negativa, salvo melhor juízo, pois a questão do

ensino faz parte do direito à liberdade religiosa, conforme anteriormente colocado.

485

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 438. 486

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 438. 487

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 439. 488

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,

2000, p. 440.

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Está expresso no texto o respeito ao caráter plural e diverso da

religiosidade e cultura no Brasil, e por esta razão o ensino deve ser obrigatoriamente

oferecido, mas é facultativo, proibida a discriminação. A imposição do ensino

confessional, sim, seria ofensivo não apenas à Constituição Brasileira, mas à

consciência de cada brasileiro.

No entanto, sendo ainda maioria, muitas famílias católicas, especialmente

as mais carentes financeiramente, devem ter o direito de poder dar aos seus filhos

uma formação ampla, humanista, que inclui a formação no âmbito de sua religião e

também conhecimento sobre as demais religiões.

Exigir do Estado que não financie o ensino religioso é privar o cidadão de

uma formação integral. Por que as crianças não podem conhecer as religiões e os

valores que pregam?

Infelizmente, o que se nota nos opositores do ensino religioso público é

novamente a ideologia ateísta, para os quais se deve ensinar às crianças o

desprezo à religião na cartilha do laicismo, como a França tem feito.

Isso, todavia, não parece neutralidade, nem liberdade de consciência,

mas doutrinação.

Então, famílias religiosas ou não devem ter o direito, se assim desejarem

(daí a facultatividade e liberdade), de dar a conhecer a seus filhos sobre as religiões

e seus valores. Talvez seja no ensino fundamental a única oportunidade que alguma

criança brasileira terá de conhecer a pluralidade de culturas e religiões, bem como

valores de justiça, amor, perdão e paz.

Diante disto, a expressão “ensino religioso, católico e de outras

confissões religiosas, de matrícula facultativa”, que consta da concordata do Brasil

com a Santa Sé, se conforma com a necessidade de ensino plural das religiões e

está adequada à exigência de laicidade do Estado, entendida esta não como

antirreligiosidade.

4.6 A Retirada da Menção a Deus na Nota da Moeda Nacional

Em novembro de 2012, o Ministério Público Federal, por seu procurador

Jefferson Aparecido Dias ingressou com Ação Civil Pública em face da União

Federal e do Banco Central, com objetivo de que fosse determinada a retirada da

inscrição “Deus seja louvado” da nota da moeda nacional no prazo de cento e vinte

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dias. Trata-se do feito número 0019890-16.2012.4.03.6100, que tramitou perante a

7ª. Vara da Seção Judiciária de São Paulo e atualmente aguarda julgamento do

recurso no Tribunal Regional Federal da 3ª. Região.

Um dos argumentos do procurador era de que a manutenção da referida

expressão não se coaduna com a condição de coexistência entre convicções

religiosas, características da laicidade estatal, uma vez que “configura uma

predileção pelas religiões adoradoras de Deus, constrangendo a liberdade de

religião dos cidadãos que não cultuam”.

A medida resultou do Inquérito Civil instaurado por representação de

procurador perante o Ministério Público Federal.

No processo em questão, a tutela antecipada foi negada pela juíza sob a

seguinte alegação:

[...] De fato, não foi consultada nenhuma instituição laica ou religiosa não cristã que manifestasse indignação perante as inscrições da cédula e não há notícia de nenhuma outra representação perante o Ministério Público neste sentido. Entendo este fato relevante na medida em que a alegação de afronta à liberdade religiosa não veio acompanhada de dados concretos, colhidos junto à sociedade, que denotassem um incômodo com a expressão "Deus" no papel-moeda. Ademais, em uma análise preliminar, a menção a expressão Deus nas cédulas monetárias não parece ser um direcionamento estatal na vida do indivíduo que o obrigue a adotar ou não determinada crença, assim como também não são os feriados religiosos e outras tantas manifestações aceitas neste sentido, como o nome de cidades, exemplificativamente. Saliento, por fim, que os dizeres encontram-se há quase três décadas impressos no papel moeda, o que afasta qualquer risco de dano irreparável como a não concessão do pleito antecipatório.[...] 489

A ação foi julgada improcedente, sendo importante citar alguns trechos da

sentença490:

[...] Como dito na decisão que indeferiu a antecipação da tutela a própria Portaria que institui o Inquérito Civil Público e ensejou a propositura da presente ação não se baseou em qualquer sorte de clamor popular.Ao contrário, tudo surgiu no seio interno do Ministério Público Federal, como se lê no documento de fls, 16 em que a

489

V. decisão integral no sítio eletrônico da Justiça Federal de São Paulo. Disponível em: <http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais > Acesso em 25-06-2014. 490

V. decisão integral no sítio eletrônico da Justiça Federal de São Paulo. Disponível em: <http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais > Acesso em 25-06-2014.

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representação inicial foi oferecida por um Procurador da República perante outro. [...]

Nota-se aqui que o interesse verdadeiramente defendido pelo Ministério

Público não é o do cidadão e sim o de uma ideologia laicista e antirreligiosa.

Em seguida, restou decidido que:

[...] não compete ao Judiciário definir se esta inscrição pode ou não estar cunhada no papel moeda. Ela, em si, não fere nenhum direito individual ou coletivo, ou impõe determinada conduta.O próprio Constituinte optou por inserir menção a "Deus" no preâmbulo da Constituição. Acolher esta pretensão seria admitir que o Poder Judiciário também pudesse abolir feriados nacionais religiosos já comemorados de longa data, determinar a modificação do nome de cidades, proibir a decoração de natal em espaços públicos e impedir a manutenção de reconhecidos símbolos nacionais de cunho religioso com dinheiro público. Essas decisões devem ser tomadas pela coletividade através de seus representantes [...].

Por fim, a sentença menciona caso semelhante ocorrido nos Estados

Unidos e define que a menção a Deus não deve ser retirada da nota monetária:

[...] Como salientado pela União, trazendo em sua contestação o julgado Lynch v. Donnelly, a Suprema Corte americana afirmou a constitucionalidade da colocação de um presépio em um parque municipal, assentando à impossibilidade de total separação entre Estado e religiosidade.Importante frisar que apesar de o Estado americano ser secular, sua moeda também vem grafada com expressão "in god we trust" sendo que até o momento o Poder Judiciário local não acolheu a pretensão de grupos ateus de excluir a expressão das cédulas.Isto posto, com base na fundamentação traçada, entendo, que a expressão cunhada na moeda não é ilegal e sua menção não ofende direito fundamental ou bem jurídico que justifique sua retirada pelo Poder Judiciário.[...]

A inserção da expressão “Deus seja louvado” na cédula monetária há

mais de trinta anos não causou qualquer tipo de reação da população brasileira, seja

de grupos religiosos ou ateus, demonstrando o que foi dito páginas atrás a respeito

da religiosidade do povo brasileiro e da tolerância, pois seja cristão, muçulmano ou

judeu, é o Deus único que essas religiões temem e cultuam. Mesmo religiões

politeístas respeitam a divindade.

Importa recordar que a laicidade no Brasil significa a independência e

autonomia entre as esferas, mas não significa a total separação ou repúdio entre

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Estado e religião, o que seria impossível, especialmente tratando-se de um povo

quase que integralmente se define de alguma crença ou fé.

Repita-se: apenas 0,39% da população, segundo o último censo

demográfico, é de ateus e agnósticos. A esmagadora maioria da população

certamente acredita que o Poder Público tem mais o que fazer do que se preocupar

com este tipo de querela.

Como bem denotou o Magistrado que julgou o feito, esta expressão

inserida na cédula não fere qualquer direito, não privilegia nenhuma religião, não

associa o Estado a uma religião específica ou fere a liberdade de crença e

consciência, pois um ateu convicto não se tornará crente por conta disto.

Deste modo, novamente é a ideologia do laicismo, do anticlericalismo, do

revanchismo contra a maioria cristã que fundamentam essas medidas e não uma

verdadeira preocupação com a laicidade e a liberdade de crença e consciência.

Salvo melhor juízo os defensores de tal concepção ideológica de laicidade

parecem confundir o sentimento de irritação de que são tomados quando se

deparam com a presença de Deus no âmbito público, com a ofensa real e o

constrangimento de não poder professar e viver livremente sua crença ou

concepção de vida, o que, de fato ocorre em muitos países.

Num país plural, que garante a liberdade de crença e consciência como o

Brasil, não há espaço para medidas como esta, que demonstram apenas e tão

somente intolerância.

4.7 Concursos em Dia de Sábado

Os adeptos de algumas religiões cristãs e não cristãs devem guardar o

sábado como preceito obrigatório. Neste sentido não devem se dedicar a nenhuma

atividade que não diga respeito ao culto de seu Deus.

Isto tem gerado uma controvérsia acerca dos concursos públicos que são

realizados em dia de sábado, dado que essa parcela da população ficaria excluída

de participar da seleção para cargo público.

A Constituição Federal prevê no artigo 5º, que:

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VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

Estariam esses religiosos sendo privados do direito de prestar concursos,

cujas provas se realizem aos sábados? Seria de fato uma privação de direito? Teria

o Estado que se reorganizar para que essas provas se dessem aos domingos? Mas

e as religiões que devem guardar o domingo? Ou será que admitir a alteração de

datas seria dar privilégios a certas convicções religiosas?

Assim, munidos de argumentos como a tolerância religiosa, o caráter laico

do Estado, a pluralidade de crenças, a dignidade da pessoa humana, os

compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil em tratados e

declarações internacionais, alguns adventistas do sétimo dia ingressaram no ano de

2010 com mandado de segurança perante o STF. Os autos tomaram o número

28960.

Pretendiam os impetrantes que fosse alterada a data do concurso ou,

subsidiariamente, lhes fosse dada a oportunidade de realizar a prova após o pôr-do-

sol do referido dia, ficando os mesmos, incomunicáveis e na presença de fiscais, ,

resguardando no período de isolamento o direito à leitura da bíblia, previamente

conferida por fiscais, e recolhidas quando do início da prova. 491

O relator, então Ministro Gilmar Mendes, expressou-se no sentido de que

alterar a data da prova seria dar privilégio a um grupo religioso específico em

detrimento dos demais. A seu ver a melhor alternativa seria a manutenção dos

impetrantes em local isolado, conforme pedido subsidiário.

No entanto, após a impetração do writ, o Centro de Seleção e de

Promoção de Eventos da Universidade de Brasília - ente que organizava o certame

publicou novo edital deixando consignado que candidatos que solicitassem

atendimento especial por motivos religiosos deveriam comparecer ao local

designado para a realização das provas com antecedência mínima de uma hora do

491

V. integralidade do processo no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.

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horário fixado para o seu início e permanecer em recinto exclusivo até o pôr do sol,

para, então, poderem realizar as provas.

Com isto o mandado de segurança perdeu o objeto e não houve acórdão.

Em caso semelhante, mas promovido por autores da religião judaica em

relação à aplicação das provas do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, o

Ministro Gilmar Mendes reiterou entendimento de que a neutralidade do Estado laico

não significa indiferentismo em relação à religião.

Afirmou que:

Em alguns casos, imperativos fundados na própria liberdade religiosa impõem ao ente público um comportamento positivo, que tem a finalidade de afastar barreiras ou sobrecargas que possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé.492

No entanto, em relação ao pedido de que fossem feitas provas diferentes

em outras datas para esses candidatos afirma novamente:

Ademais, cumpre ressaltar a existência de outras confissões religiosas, as quais possuem “dias de guarda” diversos do dos autores. Assim, a fixação de data alternativa apenas para um determinado grupo religioso configuraria, em mero juízo de delibação, violação ao princípio da isonomia e ao dever de neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso. Tal fato atesta, ainda, o “efeito multiplicador” da decisão impugnada, haja vista que, se os demais grupos religiosos existentes em nosso país também fizessem valer as suas pretensões, tornar-se-ia inviável a realização de qualquer concurso, prova ou avaliação de âmbito nacional, ante a variedade de pretensões, que conduziriam à formulação de um sem-número de tipos de prova.

Pois bem, a neutralidade do Estado impõe uma alternativa que não

imponha ao Poder Público oneração excessiva, nem se configure como um privilégio

a determinado grupo. Neste sentido, a permissão para realização da mesma prova

no mesmo dia, porém em outro horário, após o alvorecer, parece se coadunar com a

melhor interpretação de laicidade do Estado.

492

Autos de Suspensão de Tutela Antecipada – STA n. 389/MG. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3796954> Acesso em 25-06-2014.

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CONCLUSÃO

Por tudo quanto se expôs nota-se o caminho percorrido pelas relações

entre Estado e Igreja na história da humanidade.

No início, a religião era determinante da vida, da pertença a uma família,

à cidade, da participação política. Havia um só ente que representava a autoridade

perante os homens, desconhecia-se a separação entre o terreno aspecto e o

espiritual. A religião representava a autoridade total, o domínio sobre todos os

aspectos da vida humana. Não ter religião era fator de exclusão da sociedade

familiar ou civil. Ainda, não se concebia falar em separação de poder entre a

administração dos bens civis e celebração do culto religioso, pois o primeiro decorria

do segundo.

Contudo, a ascensão da plebe e o advento da filosofia contribuíram para

enfraquecer este esquema primitivo.

Com o advento do cristianismo vai se idealizando e concretizando uma

nova maneira de pensar a relação entre a religião e o poder terreno, desvinculando-

se uma da outra. Posteriormente, com a decadência do Império Romano e a

cristianização dos povos que formaram a Europa, houve novas formas de ingerência

da Igreja no Estado e do Estado na Igreja.

Veio, então, o Renascimento, a Reforma Protestante e o Iluminismo o

liberalismo e a secularização.

Em decorrência, desenvolveu-se aos poucos a concepção do Estado

liberal, plural e democrático; onde o poder da Igreja emanava de Deus, mas o poder

do Estado emanava do povo, combatendo-se o absolutismo fosse da religião, fosse

dos monarcas. O Estado separado da Igreja Católica tornou-se laico.

Entretanto, concluiu-se que a laicidade não significa a completa exclusão

da Igreja e das religiões em geral do âmbito público. Significa, sim, a saudável

independência entre as esferas, que são completamente autônomas na gerência de

si próprias.

De outro lado, sendo a espiritualidade manifestamente parte do

desenvolvimento integral do ser humano, no Estado laico é não apenas possível,

como necessário que a religião do povo não seja relegada somente aos templos,

reconhecendo-se seus sinais exteriores e o que defendem.

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A religiosidade faz parte da cultura e história de um povo que não pode ir

sendo apagada pela intolerância de alguns. Além disso, a fé faz o contrapeso com a

ciência e a técnica, cada qual servindo de limite um ao outro.

Não bastasse isto, percebe-se que excluir qualquer tipo de argumentação

razoável da esfera política, deslegitima todo o processo e seu resultado. Defendeu-

se que é necessária a colaboração de todos, crentes e não crentes, para fazer uma

espécie de “tradução” da linguagem religiosa, caso ela já não venha traduzida, para

uma linguagem laica que possa ser aceita por todos.

Até porque a motivação para a efetiva participação política de inúmeros

cidadãos é religiosa e moral. Por esta razão, a tentativa de uma “modernização

descarrilhadora”, para usar a expressão de Jürgen Habermas, do Estado, impondo

padrões não popularmente aceitos, pode desestruturar a sociedade.

É o que, segundo ele, ocorreu na colonização feita pelos países

europeus. Com efeito, a tentativa de imposição de valores externos aos povos de

suas colônias pode ter sido a causa do extremismo religioso e fundamentalista que

ameaça o mundo hoje.

Por esta razão é essencial, no Estado liberal e laico, o respeito às

diferentes cosmovisões, ainda que religiosas (ou especialmente estas), desde que

razoáveis e concordes com os princípios constitucionais de direito.

É certo que caberá a interpretação destas disposições constitucionais

pelo órgão jurisdicional competente, que, no entanto, não poderá recusar a

plausibilidade da argumentação laica dos religiosos, também em virtude da laicidade

do Estado, nem aplicar automaticamente a ideologia laicista em seus julgados.

Portanto, conclui-se que o Estado laico é autônomo e independente em

relação à Igreja Católica e às visões de mundo religiosas como um todo, não

podendo privilegiar nenhuma delas. Ao Estado não cabe declarar-se nem religioso,

nem ateu. Não se podem permitir regalias para uma confissão em detrimento de

outras ou do ateísmo. De outro lado, não lhe cabe alinhar-se a ideologias laicistas

demonstrando animosidade contra religiões e religiosos na tentativa de excluir os

sinais de religiosidade, ainda que sejam os da religião predominante.

A adaptação de uma sociedade às mudanças trazidas pela modernidade

ocorre lentamente, de dentro para fora e não imposta, nem mesmo pelo

entendimento, de certo modo elitista, do órgão supremo de Justiça do país.

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Outrossim, modernização não significa a lenta exclusão da religião da

esfera pública e sim o profícuo diálogo entre fé e razão em que uma coloca limite à

outra, permitindo o progresso e desenvolvimento da humanidade sempre tendo o

homem como seu fim e não mero instrumento.

Enfim, laicidade não é laicismo, ateísmo, intolerância ou aversão contra

qualquer religião ou igreja, bem ao contrário, já que deve garantir aos seus cidadãos

o direito de ser, demonstrar e ensinar tanto sua religiosidade quanto sua não

religiosidade.

Afirmar o contrário significaria dizer que o Estado é confessional e não

laico, isto é, confessa o ateísmo radical que promove violenta perseguição e o

preconceito contra os cidadãos religiosos.

A ideia central, portanto, é a defesa da laicidade no sentido de que não

cabe ao Estado impor nenhuma verdade especificamente religiosa ou filosófica,

deixando tal questão à consciência de cada indivíduo, competindo-lhe defender a

tolerância entre religiões e também entre religiosos e ateus, bem como valorizar e

respeitar não apenas as crenças, mas observar e absorver os valores morais delas

provenientes.

Soa utópico, é verdade, conseguir que os homens cheguem a colocar em

prática tal respeito e consideração pela visão de mundo do outro, sem tentar

sobrepor-se por seus próprios argumentos, mas tentando chegar a um consenso,

através do diálogo racional.

Contudo, é perda de tempo tentar destruir o modo de ser e pensar do

outro enquanto bilhões de seres humanos em situação de absoluta miséria

necessitam da união de esforços de crentes e não crentes para erradicar a miséria,

a fome e a injustiça.

E enquanto é feito o esforço para trilhar este caminho, Fé e Razão,

Religião e Ciência, vão se respeitando e acolhendo mutuamente, e quando se

voltarem para trás poderão ver o longo caminho já percorrido e os frutos colhidos

deste novo modo de abordagem recíproca.

Afinal, valores como dignidade humana, liberdade, proteção da vida,

respeito ao meio-ambiente, fraternidade, justiça e paz são indispensáveis para a

construção de um mundo melhor.

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ANEXO A

A laicidade do Estado laico: todos os credos ao invés de nenhum

Por William Douglas, juiz federal, professor e escritor.

Segundo notícia publicada no Portal IG, “em atenção à queixa de um cidadão, que

se sentiu discriminado pela presença de um crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral e

São Paulo, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão entrou com uma ação

civil pública para obrigar a União a retirar todos os símbolos religiosos ostentados

em locais de atendimento ao público no Estado. A ação, com pedido de liminar, visa

garantir a total separação entre religião e poder público, característica de um Estado

laico, ainda que de maioria cristã, como o Brasil. ‘Minha ação restringe-se aos

ambientes de atendimento ao público. Nada contra o funcionário público ter uma

imagem de santo, por exemplo, sobre a sua mesa de trabalho’. Católico praticante

(‘comungo e confesso’, diz Dias, 38 anos, o Procurador responsável pela ação. Uma

decisão favorável no TRF-SP certamente levará o assunto a outras instâncias. O

único precedente que existe é negativo. Em junho de 2007, o Conselho Nacional de

Justiça indeferiu o pedido de retirada de símbolos religiosos de todas as

dependências do Judiciário. Na ação pública, Dias lembra que, além de estarmos

em um Estado laico, a administração pública deve zelar pelo atendimento aos

princípios da impessoalidade, da moralidade e da imparcialidade, ou seja, garantir

que todos sejam tratados de forma igualitária. O procurador entende, nesse sentido,

que um símbolo religioso no local de atendimento público é mais que um objeto de

decoração, mas pode ser sinal de predisposição a uma determinada fé. “Quando o

Estado ostenta um símbolo religioso de uma determinada religião em uma repartição

pública, está discriminando todas as demais ou mesmo quem não tem religião,

afrontando o que diz a Constituição’.” (04/08 - 16:29 - Mauricio Stycer, repórter

especial do IG). O tema vem sendo cada vez mais discutido e, ao meu ver, está

sendo objeto de uma interpretação equivocada por aqueles que desejam a retirada

dos símbolos religiosos. O Estado é laico, isso é o óbvio, mas a laicidade não se

expressa na eliminação dos símbolos religiosos, e sim na tolerância aos mesmos.

A resposta estatal ao cidadão queixoso, mencionado acima, não deveria ser uma

ação civil pública, mas uma simples orientação, no sentido de que o país ter uma

formação histórico-cultural cristã explica que haja na parede um crucifixo e que tal

presença não importa em discriminação alguma. Ao contrário, o pensamento

deletério e a ser combatido é a intolerância religiosa, que se expressa quando

alguém desrespeita ou se incomoda com a opção e o sentimento religioso alheio, o

que inclui querer eliminar os símbolos religiosos. Ao contrário do que entende o

ilustre Procurador mencionado, a medida não se limitará aos ambientes de

atendimento ao público. O próximo passo será proibir também os símbolos na mesa

de trabalho, seja porque o ambiente pertence ao serviço público, seja porque em

tese poderia ofender algum colega que visualizasse o símbolo. No final, como se

prenuncia no poema “No caminho, com Maiakóvski”, o culto e devoção terão que ser

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feitos em sigilo, sempre sob a ameaça de que alguém poderá se ofender com a

religião do próximo. Nesse passo, eu, protestante e avesso às imagens (é notório o

debate entre protestantes e católicos a respeito das imagens esculpidas de Santos),

tive a ocasião de ver uma funcionária da Vara Federal onde sou Titular colocar sobre

sua mesa uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. A minha formação religiosa

e jurídica, onde ressalto a predileção, magistério e cotidiano afeito ao Direito

Constitucional, me levou a ver tal ato com respeito, vez que cada um escolhe sua

linha religiosa. A imagem não me ofendeu, mas sim me alegrou por viver em um

país onde há liberdade de culto. Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma

imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um

ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela

imagem é natural. O crucifixo nas Cortes, independentemente de haver uma religião

que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos

tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem

aos poderosos mais do que à Justiça.Vale dizer que se a medida for ser levada a

sério, deveríamos também extinguir todos os feriados religiosos, mudar o nome de

milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir símbolos e imagens,

a exemplo, que identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano

popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao

meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim,

dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de

uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e

qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que

é intolerância. Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do

que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que

razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer

extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado

histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e,

portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico

para retirar os Santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de

oportunismo.

Todos se recordam do lamentável episódio em que um religioso mal formado chutou

uma imagem de Nossa Senhora na televisão. Se é errado chutar a imagem da

Santa, não é menos agressivo querer retirar todos os símbolos. Não chutar a Santa,

mas valer-se do Estado para torná-la uma refugiada, uma proscrita, parece-me

talvez até pior, pois tal viés ataca todos os símbolos de todas as religiões, menos

uma. Sim, uma: a “não religião”, e é aqui que reside meu principal argumento contra

a moda de se atacar a presença de símbolos religiosos em locais públicos.

A recusa à existência de Deus, a qualquer religião ou forma de culto a uma

divindade não é uma opção neutra, mas transformou-se numa nova modalidade

religiosa. Se por um lado temos um ateísmo como posição filosófica onde não se crê

na(s) divindade(s), modernamente tem crescido uma vertente antiteísta. Para tentar

definir melhor essa diferença, vale dizer que se discute se budistas e jainistas seriam

ou não ateus, por não crerem em divindades além daquela representada pela

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própria pessoa ou grupo delas, no entanto jamais se discutiria se um budista é ou

não antiteísta. É inegável reconhecer-se que esta nova vertente religiosa tem seus

profetas, seus livros sagrados e dogmas. Como a maior parte das religiões, faz

proselitismo, busca novos crentes (que nessa vertente de fé, são os “não crentes”,

“not believers”, os que optam por um credo que crê que não existe Deus algum).

É conhecida a campanha feita pelos ateus nos ônibus de Londres. A British

Humanista Association colocou o anúncio There’s probably no God. Now stop

worrying and enjoy your life (“Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se

preocupar e aproveite sua vida”) nas laterais de ônibus britânicos, ao lado dos

tradicionais anúncios religiosos. Repare-se que o “provavelmente” demonstra

educação, senso político ou cortesia, e que nos cartazes nos ônibus todas as letras

estavam em caixa alta, eliminando a discussão sobre se deveriam escrever Deus

com “D” ou “d”. Mas nem todos os ateus são educados e cordatos, embora uma

grande quantidade deles, grande maioria eu creio, o seja. Assim como o

Protestantismo foi uma reação aos que não estavam satisfeitos com o catolicismo

romano, o antiteísmo, ou ateísmo militante, que vemos hoje, é uma reação dos que

estão insatisfeitos com a religião. Interessante perceber que esta linha de ateus é

intolerante e, como foi historicamente comum em todas as religiões iniciantes ou

pouco amadurecidas, mostrou-se virulenta e desrespeitosa no ataque às demais.

Esta nova religião, a “não religião”, ao invés de assumir o controle ou titularidade da

representação divina, optou por entender que não existe Deus nenhum. Em certo

sentido, ao eliminar a possibilidade de um ser superior, assumiu o homem como o

ser superior. Aqui o homem que professa tal tipo de crença não é mais o

representante de Deus, mas o próprio ser superior. Nesse passo, a nova religião tem

outra penosa característica das religiões pouco amadurecidas, consistente na

arrogância e prepotência de seus seguidores, apenas igualada pelo desprezo à

capacidade intelectual dos que não seguem a mesma linha de pensamento.

Assim, enquanto existe um ateísmo que simplesmente não crê e que demonstra as

razões disso em um ambiente de respeito e diversidade, vemos crescer também um

outro ateísmo, agressivo, que não apenas não livrou o mundo dos males da religião,

mas também passou a reprisá-los. O principal profeta dessa religiosidade invertida

(mas nem por isso deixando de ser uma manifestação religiosa) é Richard Dawkins,

autor do livro “Deus, um Delírio”. Ele está envolvido, como qualquer profeta, na

profusão de suas ideias, fazendo palestras e livros, concedendo entrevistas e

fazendo suas “cruzadas”. A Campanha Out (em inglês: Out Campaign) é uma

iniciativa proselitista em favor do ateísmo, tendo até mesmo um símbolo, o “A”

escarlate. A campanha atualmente produz camisetas, jaquetas, adesivos, e broches

vendidos pela loja online, e os fundos se destinam à Fundação Richard Dawkins

para a Razão e a Ciência (RDFRS). Algo que não deixa de ser muito semelhante às

campanhas financeiras típicas de outras manifestações de fé. Como alguns profetas

religiosos, Dawkins não poupa pessoas ilustres de credos concorrentes. Por

exemplo, em seu livro ele diz sobre Madre Teresa o seguinte: “(...) Como uma

mulher com um juízo tão vesgo pode ser levada a sério sobre qualquer assunto,

quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um Premio Nobel?

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Qualquer um que fique tentado a ser engabelado pela hipócrita Madre Teresa (...)”

(pág. 375). Naturalmente, entendo que Dawkins e seus seguidores têm todo o direito

de pensarem e professarem qualquer fé, mesmo que seja a fé na inexistência de

Deus e nos malefícios da religião. Contudo, só porque não creem em um Deus ou

vários deles, não estão menos sujeitos aos valores, princípios e leis que, se não nos

obrigam à fraternidade, ao menos nos impõem a respeitosa tolerância. Outra coisa

que não se pode é identificar em qualquer Deus ou símbolo religioso um inimigo e se

tentar cooptar a laicidade do Estado para proteger sua própria linha de pensamento

sobre o assunto religião. A meu ver, discutir os símbolos religiosos é mais fácil do

que enfrentar a distribuição de renda, a fome, injustiça e a desigualdade social. Não

nego a importância do assunto, mas acharia cômico se não fosse trágico que as

pessoas se ofendam com uma cruz o bastante para acionar o Estado e não o façam

diante de outras situações evidentemente mais prementes. Talvez mexer com os

religiosos seja mais simples, divertido e seguro, mas certamente não demonstra uma

capacidade superior de escolher prioridades. Portanto, parece conveniente lembrar

que católicos, judeus, evangélicos, espíritas e muçulmanos, e bom número de ateus

também, gastam suas energias ajudando aos necessitados. Tenho a esperança de

que nas discussões haja mais coerência e menos “pirotecnia” e “perfumaria” de

quem discute o sexo, digo, a existência dos anjos ao invés de enfrentar os

verdadeiros problemas de um país que, salvo raras e desonrosas exceções, é palco

de feliz tolerância religiosa. A eliminação dos símbolos religiosos atende aos desejos

de uma vertente religiosa perfeitamente identificada, e o Estado não pode optar por

uma religião em detrimento de outras. A solução correta para a hipótese é tolerar e

conviver com as diversas manifestações religiosas. Assim, os carros poderão

continuar a falar em Jesus, Buda, Maomé, Allan Kardec ou São Jorge sem que

ninguém deva se ofender com isso. Ou, se isso ocorrer, que ao menos não receba o

beneplácito de um Estado que optou por ficar equidistante das inúmeras,

infinitamente inúmeras, formas de se pensar o tema fé. Não ter fé e não apreciar

símbolos religiosos é apenas uma delas, respeitabilíssima, mas apenas uma delas.

Por fim, acaso fosse possível ser feita uma opção, não poderia ser pela visão da

“minoria”, mas da “maioria”. Talvez essa afirmação choque o leitor. Dizer que se for

para optar, que seja pela “maioria” choca, pois o conceito de “respeito às minorias” já

está razoavelmente assimilado. Mas também deveria chocar a ditadura da minoria, a

tirania dos que se transformam em vítimas ao invés de evoluírem o suficiente para

ver nos símbolos religiosos não uma ofensa, mas um direito, e entender que os que

já estão por aí, nas ruas, repartições e monumentos são apenas uma consequência

da nossa longa formação histórica e cultural. Em suma, espero que deixem este

crucifixo, tão católico apostólico romano quanto é, exatamente onde ele está. Excluir

símbolos é fazer o Estado optar por quem não crê. A laicidade aceita todas as

religiões ao invés de persegui-las ou tentar reduzi-las a espaços privados, como se o

espaço público fosse privilégio ou propriedade de quem se incomoda com a fé

alheia. Eu, protestante e empedernidamente avesso às imagens esculpidas, as verei

nas repartições públicas e saudarei aos católicos, que começaram tudo, à liberdade

de culto e de religião, à formação histórica desse país e, mais que tudo, ao fato de

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viver num Estado laico, onde não sou obrigado a me curvar às imagens, mas jamais

seria honesto (ou laico, ou cristão, ou jurídico) me incomodar com o fato de elas

estarem ali.

(Disponível em: <http://www.williamdouglas.com.br/conteudo04.php?id=681> Acesso em 09-05-

2012).

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233

ANEXO B

Presidência da República

Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 119-A, DE 7 DE JANEIRO DE 1890.

Vigência restabelecida pelo Decreto nº 4.496 de

2002

Proibe a intervenção da autoridade federal e dos

Estados federados em materia religiosa, consagra

a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e

estabelece outras providencias.

O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos

Estados Unidos do Brasil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação,

DECRETA:

Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis,

regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear

differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por

motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.

Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto,

regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que

interessem o exercicio deste decreto.

Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem

as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito

de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem

intervenção do poder publico.

Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas.

Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para

adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de

mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus

edificios de culto.

Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do

culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o

arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos

artigos antecedentes.

Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario.

Sala das sessões do Governo Provisorio, 7 de janeiro de 1890, 2° da Republica.

Manoel Deodoro da Fonseca. Aristides da Silveira Lobo.

Ruy Barbosa.

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Benjamin Constant Botelho de Magalhães.

Eduardo Wandenkolk. - M. Ferraz de Campos Salles.

Demetrio Nunes Ribeiro. Q. Bocayuva.

Este texto não substitui o original publicado no Coleção de Leis do Império do Brasil de 1890

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ANEXO C

Presidência da República

Casa Civil

Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 7.107, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010.

Promulga o Acordo entre o Governo da

República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo

ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil,

firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro

de 2008.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da

Constituição, e

Considerando que o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé celebraram, na

Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008, um Acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja

Católica no Brasil;

Considerando que o Congresso Nacional aprovou esse Acordo por meio do Decreto Legislativo

no 698, de 7 de outubro de 2009;

Considerando que o Acordo entrou em vigor internacional em 10 de dezembro de 2009, nos

termos de seu Artigo 20;

DECRETA:

Art. 1o O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao

Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de

2008, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele

se contém.

Art. 2o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar

em revisão do referido Acordo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos

do art. 49, inciso I, da Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio

nacional.

Art. 3o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 11 de fevereiro de 2010; 189º da Independência e 122º da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Celso Luiz Nunes Amorim

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ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A SANTA SÉ

RELATIVO AO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL

A República Federativa do Brasil

e

A Santa Sé

(doravante denominadas Altas Partes Contratantes),

Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito

Canônico;

Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas respectivas

responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa humana;

Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria ordem, autônomas,

independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e

fraterna;

Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito

Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;

Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade religiosa;

Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos;

Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes;

Convieram no seguinte:

Artigo 1º

As Altas Partes Contratantes continuarão a ser representadas, em suas relações diplomáticas,

por um Núncio Apostólico acreditado junto à República Federativa do Brasil e por um Embaixador(a)

do Brasil acreditado(a) junto à Santa Sé, com as imunidades e garantias asseguradas pela

Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961, e demais regras

internacionais.

Artigo 2º

A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece

à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de

suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro.

Artigo 3º

A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de

todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em conformidade com o direito

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canônico, desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras, tais como

Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou

Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações

Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros

Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.

§ 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir todas as Instituições

Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo.

§ 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pela República

Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato de criação, nos termos da

legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de

criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato.

Artigo 4º

A Santa Sé declara que nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil dependerá de Bispo cuja

sede esteja fixada em território estrangeiro.

Artigo 5º

As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º, que, além de fins

religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social, desenvolverão a própria atividade e

gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de

natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os

requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira.

Artigo 6º

As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica,

assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante

do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a

fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas

eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico.

§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que

a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser

salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam

surgir da sua natureza cultural.

§ 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural, compromete-se a facilitar o

acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades

religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos.

Artigo 7º

A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as

medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas

liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso

ilegítimo.

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§ 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico, observada a função social

da propriedade e a legislação, pode ser demolido, ocupado, transportado, sujeito a obras ou

destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou

por interesse social, nos termos da Constituição brasileira.

Artigo 8º

A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira, especialmente dos

cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as exigências da lei, a dar assistência

espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou

similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada

estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a

prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do Brasil garante à Igreja Católica o direito de

exercer este serviço, inerente à sua própria missão.

Artigo 9º

O reconhecimento recíproco de títulos e qualificações em nível de Graduação e Pós-

Graduação estará sujeito, respectivamente, às exigências dos ordenamentos jurídicos brasileiro e da

Santa Sé.

Artigo 10

A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o Estado, continuará a colocar

suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus

fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro.

§ 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de constituir e

administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e cultura.

§ 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos obtidos nos Seminários e

Institutos antes mencionados é regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em condição de

paridade com estudos de idêntica natureza.

Artigo 11

A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da

diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso

em vista da formação integral da pessoa.

§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa,

constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o

respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras

leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Artigo 12

O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas, que atender também às

exigências estabelecidas pelo direito brasileiro para contrair o casamento, produz os efeitos civis,

desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.

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§ 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo

órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre

homologação de sentenças estrangeiras.

Artigo 13

É garantido o segredo do ofício sacerdotal, especialmente o da confissão sacramental.

Artigo 14

A República Federativa do Brasil declara o seu empenho na destinação de espaços a fins

religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos de planejamento urbano a serem

estabelecidos no respectivo Plano Diretor.

Artigo 15

Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados

com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos

impostos, em conformidade com a Constituição brasileira.

§ 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que exerçam atividade social

e educacional sem finalidade lucrativa receberão o mesmo tratamento e benefícios outorgados às

entidades filantrópicas reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de

requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção.

Artigo 16

Dado o caráter peculiar religioso e beneficente da Igreja Católica e de suas instituições:

I -O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses

ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e portanto, observado o disposto na

legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja

provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica.

II -As tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, assistencial, de promoção

humana e semelhantes poderão ser realizadas a título voluntário, observado o disposto na legislação

trabalhista brasileira.

Artigo 17

Os Bispos, no exercício de seu ministério pastoral, poderão convidar sacerdotes, membros de

institutos religiosos e leigos, que não tenham nacionalidade brasileira, para servir no território de suas

dioceses, e pedir às autoridades brasileiras, em nome deles, a concessão do visto para exercer

atividade pastoral no Brasil.

§ 1º. Em conseqüência do pedido formal do Bispo, de acordo com o ordenamento jurídico

brasileiro, poderá ser concedido o visto permanente ou temporário, conforme o caso, pelos motivos

acima expostos.

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Artigo 18

O presente acordo poderá ser complementado por ajustes concluídos entre as Altas Partes

Contratantes.

§ 1º. Órgãos do Governo brasileiro, no âmbito de suas respectivas competências e a

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, devidamente autorizada pela Santa Sé, poderão celebrar

convênio sobre matérias específicas, para implementação do presente Acordo.

Artigo 19

Quaisquer divergências na aplicação ou interpretação do presente acordo serão resolvidas por

negociações diplomáticas diretas.

Artigo 20

O presente acordo entrará em vigor na data da troca dos instrumentos de ratificação,

ressalvadas as situações jurídicas existentes e constituídas ao abrigo do Decreto nº 119-A, de 7 de

janeiro de 1890 e do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre Assistência

Religiosa às Forças Armadas, de 23 de outubro de 1989.

Feito na Cidade do Vaticano, aos 13 dias do mês de novembro do ano de 2008, em dois

originais, nos idiomas português e italiano, sendo ambos os textos igualmente autênticos.

PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Celso Amorim

Ministro das Relações Exteriores

PELA SANTA SÉ

Dominique Mamberti

Secretário para Relações com os Estados