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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Daniela Jorge Milani
Relações entre Igreja e Estado:
Secularização, laicidade e
o lugar da religião no espaço público
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO – SP 2014
Daniela Jorge Milani
Relações entre Igreja e Estado:
Secularização, laicidade e
o lugar da religião no espaço público
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito, na área de concentração Filosofia do Direito, sob a orientação do Prof. Dr. Gabriel Benedito Issaac Chalita
SÃO PAULO – SP
2014
Banca Examinadora:
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
Ao meu marido, amigo e companheiro Romeu
Moisés e às nossas filhas Gabriela e Julia.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus que nunca me abandonou e cuja
presença pude sentir em toda a minha vida, especialmente neste momento tão
importante.
À querida professora Márcia Cristina Alvim sempre muito solícita e afetuosa.
Ao caríssimo professor Gabriel Chalita pelo incentivo e orientações.
Aos queridos professores de todas as matérias que cursei por terem
direcionado suas lições ao debate dos mais instigantes temas.
Ainda, aos meus caríssimos colegas dessas mesmas turmas por sua
excelente companhia e pela ótima troca de experiências.
Não poderia deixar de registrar também o meu agradecimento ao Rui, da
coordenação da pós-graduação strictu sensu em Direito, que com toda a paciência
me auxiliou na direção do cumprimento de meus compromissos do mestrado, tendo
me tranquilizado em momentos de desespero.
Agradeço também ao estimado amigo Claudio Langroiva Pereira por todo
apoio, auxílio e força, porque foi quem primeiro me encorajou para seguir esta
jornada, dando-me apoio até o final.
À minha querida mãe que me socorreu nas horas mais críticas, estando onde
eu não podia estar.
E, por fim, aos grandes amores de minha vida: meu marido e nossas filhas,
pela paciência, compreensão e estímulo.
“O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se ouve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem fervilha o
entusiasmo de fazer o bem.” Papa Francisco
RESUMO
O presente trabalho pretende elucidar as origens das relações entre o
poder temporal e o espiritual, assim entendidos como Estado e Igreja
genericamente. Deste modo, faz-se uma retrospectiva dessas relações, desde a
época primitiva em que as sociedades eram clãs familiares nas quais a posição de
chefe supremo se confundia com a de líder religioso, até os tempos modernos,
passando pelas correntes racionalistas naturalistas até a situação atual, buscando
esclarecer o real sentido do fenômeno da secularização e a consequente laicidade
do Estado, que não deve ser confundida com laicismo ou antirreligiosidade. Deve
ser entendida, na verdade, como pressuposto de uma relação de autonomia,
independência e cooperação entre as instâncias administrativa e religiosa. Nota-se
que, do ponto de vista da Igreja Católica, ao contrário do que se poderia pensar, o
Estado deve ser laico, visto que, invariavelmente, as relações de interdependência
acarretaram desmandos de parte a parte, desvirtuando o verdadeiro escopo de cada
esfera de atuação. E mais, demonstra-se que, não obstante a promessa de irrestrita
independência e autossuficiência da razão e a previsão de decadência e até de
aniquilamento da fé, das mais radicais correntes iluministas do século XVIII, a pós-
secularização se caracterizou pela persistência da religiosidade na sociedade, seja
nas formas mais tradicionais ou de modo mais individualista. Neste cenário de
laicidade e pós-secularização se questiona se haveria lugar para a religião no
espaço público ou lhes caberia somente a atuação em seu mundo interior, privado,
restrita aos seus templos e cultos? Haveria uma posição a assumir perante a
sociedade e especialmente no debate político necessário ao jogo da democracia?
Juntamente de Habermas, o filósofo alemão agnóstico, se conclui pela participação
das religiões e suas cosmovisões particulares, não apenas para a necessária
legitimidade do processo político democrático, que deve incluir a todos, mas pela
abertura ao diálogo entre fé e saber, que são complementares um à outra, levando a
sociedade a um progresso científico e tecnológico, sem abrir mão da ética e da
moral, onde o ser humano é compreendido como a razão de ser do mundo e não
como mero objeto de estudo e manipulação.
Palavras-chave: Igreja, Estado, secularização, antropocentrismo,
laicidade, laicismo, debate político, religião, democracia, tolerância, símbolos
religiosos, ensino religioso.
ABSTRACT
This study focuses on elucidating the origins of the relationship between
the temporal and spiritual power, understood as Church and State generically. So,
there is a retrospective of these relations from the earliest time when societies were
family clans in which the position of paramount chief mingled with the religious
leader, until modern times, passing through rationalistic conceptions, to the current
situation, seeking to clarify the real meaning of the phenomenon of secularization
and the consequent idea of secular state. It clarifies, in turn, that laity should not be
confused with laicism or anti-religiosity. It should be understood, in fact, as a
precondition to a relationship of autonomy, independence and cooperation between
administrative and religious bodies. Even from the point of view of the Catholic
Church, contrary to what one might think, the state should be laic since, invariably,
the relations of interdependence resulted excesses on both sides, distorting the true
scope of each sphere of activity. Furthermore, we demonstrate that, despite the
promise of independence and self-sufficiency of unrestricted ratio and prediction of
decadence and even annihilation of faith, as it was supposed by the enlightened
more radical currents of the eighteenth century; post-secularization was
characterized by the persistence of religion in society, or the more traditional forms or
more individualistic mode. In this scenario of laity and post-secularization one
questions which is the position of religion in the public space. It could be argued that
the churches only fits their action inside, in private, restricted to their temples and
cults world? Or was there a position to assume in society and especially in the
political debate necessary to the game of democracy? Along Habermas, the German
philosopher, agnostic, it is concluded by the participation of religions and their
particular worldviews, not only for the necessary legitimacy of the democratic political
process, which should include everyone, but by opening the dialogue between faith
and knowledge, which can be complementary to one another, leading society to a
scientific and technological progress, without sacrificing ethics and morals, where the
human being is understood as the reason for the world and not as your mere object
of study and manipulation.
Key words: Church, State, theocentrism, secularization,
anthropocentrism, laicism, political debate, position of religion, democracy, tolerance,
religious symbols, religious teaching.
SUMÀRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 14
1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO .............. 19
1.1 Considerações Preliminares ................................................................. 19
1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família ................................ 21
1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se ....................
Confundem .................................................................................................. 27
1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da .......
Filosofia ...................................................................................... 34
1.3.2 O Advento da Filosofia ............................................................... 40
1.4 O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da .............
Religião ................................................................................................... 48
1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo ........................................... 50
1.5 Igreja e Estado na Idade Média ............................................................. 53
1.5.1 A “Cristianização” dos Bárbaros ................................................. 57
1.5.2 Os Sacro-Impérios Romanos: Franco e Germânico ................... 60
1.5.3 O feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio ...... 62
2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA ........................ 72
2.1 Os Tempos Modernos e o Advento do Humanismo Antropocêntrico ..... 73
2.1.1 Reforma e Contrarreforma ......................................................... 75
2.1.2 A Era das Revoluções Francesa e Inglesa ................................. 78
2.1.3 O Liberalismo: a Razão Autônoma ............................................. 82
2.2 O Fenômeno da Secularização ............................................................. 84
2.2.1 A Secularização e o Desencantamento do Mundo ..................... 87
2.3 Secularização e Laicidade ..................................................................... 89
2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade.......................... 91
2.3.2 Laicidade e Laicismo .................................................................. 96
2.4 Dois Modelos de Estado Laico ............................................................ 100
2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado ..................................... 104
2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica ....
................................................................................................. 106
2.5.2 As Relações Constitucionais e Concordatárias entre Estado e .....
Igreja ................................................................................................. 110
3 A PÓS-SECULARIZAÇÃO, DEMOCRACIA E O LUGAR DA RELIGIÃO NO
ESPAÇO PÚBLICO ............................................................................................... 113
3.1 Pós-Secularização .............................................................................. 113
3.2 Democracia e Pluralismo .................................................................... 116
3.2.1 O Estado e as Instituições Parciais ou Intermediárias da ..............
Sociedade ......................................................................................... 119
3.2.2 Finalidade do Estado: O Bem Comum ..................................... 123
3.3 Liberdade Religiosa ............................................................................. 125
3.3.1 A Importância da Religião ........................................................ 129
3.3.2 Tolerância Religiosa ................................................................. 133
3.4. Lugar da Religião no Espaço Público ................................................. 141
3.4.1 O Reconhecimento da Existência das Bases Pré-Políticas e o ......
Problema da Legitimação do Direito .................................................. 142
3.5 Habermas e a dialética da razão comunicativa .................................... 145
3.5.1 Habermas e a Indispensável Participação Política da Religião ......
para a Legitimação do Direito ............................................................ 148
3.6 O Contributo das Três Grandes Religiões Monoteístas para a Construção
de uma Sociedade mais Justa e Fraterna ................................................. 151
3.7 O Uso Público da Razão Segundo John Rawls e Jürgen Habermas ... 159
3.7.1 O Liberalismo Político de John Rawls ...................................... 160
3.7.2 Habermas e o Liberalismo Político de Rawls ............................ 164
3.7.3 Habermas e a Necessidade de Colaboração para a “Tradução” ...
de Argumentos Religiosos na Esfera Pública .................................... 168
3.7.3.1 O Diálogo entre Habermas e Ratzinger: razão e fé em ......
debate....................................................................................... 171
4 A LAICIDADE NO BRASIL: QUESTÕES POLEMICAS .................................... 175
4.1. Panorama Histórico Geral das Relações Estado-Igreja no Brasil ....... 175
4.2 O Brasil e o Espaço para Deus: Breve Estudo Comparativo das .............
Constituições Brasileiras Pretéritas e Atual ............................................... 183
4.2.1 A Polêmica em Relação ao Preâmbulo da Constituição Federal ..
de 1988 ............................................................................................. 186
4.3 No Brasil Há e Deve Haver Laicidade ou Laicismo? ............................ 188
4.3.1 Igualdade ou Igualitarismo Religioso no Brasil? ...................... 193
4.3.2 A abolição dos Símbolos Religiosos ......................................... 196
4.4 O Decreto 7007/2010: A Concordata entre o Governo Brasileiro e a ........
Santa Sé ........................................................................................... 205
4.5 O Ensino Religioso no Estado Laico .................................................... 208
4.6 A Retirada da Menção a Deus na Nota da Moeda Nacional ................ 211
4.7 Concursos em Dia de Sábado ............................................................. 214
CONCLUSÃO ................................................................................................. 217
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 220
ANEXO A ................................................................................................. 228
ANEXO B ................................................................................................. 233
ANEXO C ................................................................................................. 235
14
INTRODUÇÃO
No campo da filosofia há de se notar que todos enfrentam a questão
sobre Deus. Seja para se declarar ateu, agnóstico ou crente o pensador tem que
enfrentar essa problemática.
Significa dizer que a filosofia passa inexoravelmente pela transcendência
e religiosidade do homem. Seja para aceitar, seja para negar, seja até mesmo para
se declarar indiferente ou agnóstico, o filósofo ou estudioso da filosofia tem que
enfrentar questões sobre Deus, tais como: Deus existe? Quem ou o que deu origem
ao universo? De onde surgiu o homem? Para onde vai após a morte? Há sentido na
vida humana?
À filosofia do direito, portanto, interessa a questão das relações entre
Estado e Religião, entre o poder temporal e o espiritual. Nesse âmbito se enfrentam
questões sobre a legitimidade do poder estatal e do Direito além de que, a liberdade
religiosa, hoje internacionalmente reconhecida como um direito humano, tem
diversas abordagens e consequências.
Igualmente, sendo o direito uma ciência social aplicada e a religião um
fato social é necessário que a filosofia do direito se aventure a desvendar e até
auxiliar a construir as relações entre esses dois campos de interesse social. O
estudioso do tema não pode se furtar a enfrentar estas questões.
O interesse em elaborar a presente pesquisa surgiu pelo desejo de
descortinar o real sentido de laicidade do Estado, o que se justifica diante do
crescente polêmica em torno da questão: Seria o Estado laico um Estado sem Deus,
ateu, que isola as religiões, ou um Estado não confessional, independente, mas
inclusivo, que garante a existência das diversas crenças, sejam da maioria quanto
das minorias? Implicaria a laicidade em absoluta separação entre as esferas? Seria
isto possível? Ou ela existe para conferir neutralidade, independência e autonomia a
cada uma?
São enormes as discussões acerca do tema e sua repercussão na mídia
e na sociedade. Todas estas questões são instigantes e dependem da correta
compreensão sobre as esferas de atuação do Estado e das religiões, bem como
sobre o que é secularização, laicidade e laicismo, termos que são esmiuçados para
garantir seu total esclarecimento.
15
Neste sentido, pergunta-se: Há lugar no espaço público para as religiões
e religiosos? É possível que um argumento religioso seja sustentado para defender
alguma posição perante o Estado laico? É justo que o cidadão religioso seja
obrigado a encontrar argumentos laicos, que não condizem com sua real motivação
interior, a fim de poder participar do debate político e do processo democrático? É
justo excluir posições defendidas por entidades religiosas apenas e tão somente
porque num Estado laico religião não tem voz? Ou o Estado, reconhecendo a
importância da religião na sociedade, deve estar aberto ao diálogo com diferentes
visões de mundo existentes na sociedade para em seguida chegar a um consenso
sobre as questões de interesse geral, legitimando, assim, o processo democrático,
como defende Jürgen Habermas?
Todas estas questões são enfrentadas neste trabalho.
Em relação ao Brasil se abordará, ao final, quais as consequências
práticas destas conclusões sobre a laicidade do Estado: Devem ser abolidos os
símbolos religiosos dos espaços públicos? É possível o ensino religioso em escolas
públicas? E a alteração de datas de concursos para que não ocorram em dias de
sábado? A concordata entre o Brasil e a Santa Sé firmada em 2010 fere a laicidade?
Com efeito, buscou-se a história das relações entre Estado e Igreja desde
os tempos mais remotos, notando que, primitivamente, não havia qualquer distinção
entre um e outro, já que autoridade pública e autoridade religiosa estavam fundidas
na mesma figura e não se vislumbrava uma sem a outra.
Interessante notar que foi o advento do cristianismo que trouxe uma nova
mentalidade sobre as relações entre o temporal e o espiritual, de outro, tendo em
vista o ensinamento bíblico de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus, concluindo daí que a autoridade religiosa e a temporal não se
confundem e cada qual tem seu campo de atuação.
Tal novidade trazida pelo cristianismo, no entanto, se enfraqueceu alguns
séculos após a instituição do cristianismo como a religião do ocidente. É que a
Igreja, como legitimadora da autoridade dos reis acabou servindo de instrumento de
mandos e desmandos daqueles a quem interessava a submissão do povo.
As relações entre Estado e Igreja se tornaram doentias e foram
denominadas posteriormente de cesaropapismo, regalismo e hierocracia.
Em virtude disto, bem como da situação social de inferioridade em que se
encontrava a burguesia na sociedade medieval, fortes reações surgiram contra este
16
sistema por meio da Reforma Protestante, do Renascimento, do Iluminismo e das
Revoluções Francesa e Inglesa contra os poderes absolutistas, fundamentados da
vontade divina.
Tudo isto se entrelaça e tem consequências para as relações entre a
Igreja e o Estado.
O humanismo antropocêntrico do Renascimento preparou o campo para a
ruptura formal com a Igreja, contribuindo com a Reforma Protestante, que se
mostrou apenas a “gota d´água” de um crescente movimento contrário à tradição
medieval católica.
As reações foram bastante violentas contra o domínio da Igreja Católica.
Defendia-se o direito à liberdade religiosa, bem como o direito natural do homem,
emancipando-se a razão. Inicia-se uma nova visão de mundo, desta feita não mais
teocêntrica, mas antropocêntrica, onde a razão humana é exaltada acima de todas
as outras potências.
O Iluminismo, movimento identificado em final do século XVII e início do
XVIII, reforça os ideais de separação entre o Estado e a Igreja, levando a uma nova
concepção da ideia de liberdade, que deve ser guiada não mais por um critério
objetivo de moralidade ou verdade e sim na própria vontade do indivíduo, que se
torna autossuficiente.
A Igreja Cristã se parte e perde o papel centralizador do poder e da
sociedade. A sociedade se torna plural e liberal, surgindo a democracia como
resposta à necessidade de lidar com as diferentes concepções de mundo.
Em decorrência, muitos Estados passaram a ser laicos, isto é,
independentes e autônomos perante a Igreja, defendendo a liberdade religiosa de
seus cidadãos, que não poderiam mais ser discriminados em virtude de seu credo.
Igualmente, no intuito de tratar de maneira mais concreta o assunto,
abordar-se-á de que forma a laicidade foi e ainda é empregada em dois diferentes
países, quais sejam, a França e os Estados Unidos, demonstrando como cada um
deles trata de forma diferente a separação entre Deus e o Estado.
A partir daí abordar-se-á outro ponto. A implicação do conceito de
liberdade religiosa não somente como liberdade de culto, mas como a necessária e
constitucional tolerância entre as diversas religiões e a não religiosidade.
Neste sentido, a laicidade é uma necessidade de um Estado Democrático
de Direito. Ela pressupõe um Estado que não privilegia nenhuma religião, não
17
restringe direitos por motivos de opção religiosa, não discrimina o credo religioso de
qualquer cidadão. Ao contrário, reconhece e acolhe as manifestações religiosas de
seu povo.
Demonstrar-se-á que a religião não é mero sentimento íntimo, mas uma
realidade social, organizada em estruturas visíveis que necessita ser reconhecida
como presença comunitária pública, como um aspecto sociológico do próprio
Estado.
Consequentemente, se o poder do Estado vem do povo e o povo é
religioso como se poderá conceber um Estado sem traços religiosos?
Por este motivo, ser laico não significa para o Estado apenas “aturar” as
religiões como um “mal necessário”, mas reconhecê-las como um aspecto
extremamente importante do desenvolvimento integral da pessoa humana, que,
ademais, integra a cultura e identidade de seu povo.
Em razão disto, a laicidade interessa não somente ao Estado e ao povo,
mas também às igrejas que tem a garantia de não sofrer ingerências do poder
público em assuntos internos.
Aborda-se, em continuidade, o fenômeno da pós-secularização,
reconhecendo a persistência da religiosidade mesmo após séculos das promessas
racionalistas de que a ciência e a razão seriam os instrumentos de emancipação do
homem que, com o passar do tempo, deixaria de lado a visão supersticiosa da fé.
Por conseguinte, uma das grandes questões a que se dedica este
trabalho é saber se há espaço ainda hoje em tais sociedades a uma participação
pública da religião, seja por intermédio da argumentação levada ao debate político,
seja pela valorização dos princípios éticos e morais defendidos pelas religiões.
Neste ponto, buscou-se no filósofo e cientista político alemão Jürgen
Habermas, agnóstico confesso, a visão flexível em relação à participação
democrática da religião no processo de elaboração das normas.
Busca-se, por outro lado, ao ajustar a ideia de Estado Laico ao direito de
liberdade religiosa, demonstrar que laicidade do Estado não se presta a impedir a
participação das posições religiosas nos debates públicos e assuntos de interesse
de toda a população, por meio de uma ação hostil para encerrá-las unicamente em
sua esfera privada.
Refutar-se-á o entendimento laicista de que o cidadão religioso não pode
manifestar num debate político seus argumentos, revelando, ao contrário, que deve
18
participar do processo democrático de maneira autêntica e isonômica, assim como
ostentar publicamente símbolos e sinais de sua religiosidade.
No capítulo final abordar-se-á a concepção de laicidade no Brasil,
enfrentando-se algumas questões controversas específicas como a menção a Deus
no preâmbulo da Constituição Federal, a retirada dos símbolos religiosos das
repartições públicas, o ensino religioso, concursos em dia de preceito e a retirada da
menção a Deus na nota da moeda nacional.
O estudo procurará responder a esta e outras questões bastante atuais e
de interesse de todos os cidadãos, comunidades, associações e demais instituições
parciais da sociedade.
19
1 RELAÇÕES ENTRE RELIGIÃO E ESTADO: ESCORÇO HISTÓRICO
1.1 Considerações Preliminares
A religião é a mais antiga e importante instituição social do mundo. Só
posteriormente surge o Estado.1
Mas o que é religião?
Impossível determinar um conceito fechado e definitivo. Alguns sustentam
que a religião dá sentido à existência, outros que a religião é o entorpecimento moral
do homem. Entretanto, é possível afirmar que:
a palavra “religião” pode ser conceituada como o conjunto de crenças que a humanidade cultua ao sobrenatural, divino, sagrado e transcendental, bem como o conjunto de códigos ético-morais, de símbolos e de rituais derivados dessas crenças. 2
Definir religião, conforme já dito, é uma tarefa praticamente impossível,
tendo em vista não se encontrar uma característica que autorize uma definição
ampla do termo. Não obstante, Nicola Abbagnano, recolhendo diversas
interpretações, descreve a religião como a: “Crença na garantia sobrenatural de
salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia”.3
Mas ele ressalta que a “determinação da relação do homem com a
divindade, ou seja, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas
características e funções em relação ao homem e ao mundo, sempre foi atribuída
mais à filosofia que à R.” E que o cumprimento desta tarefa pode até ter cunho
antirreligioso. Para alguns teólogos, continua ele, a relação entre o homem e Deus é
artigo de fé e não de religião, porque independe do mito, mas é constitutiva da
existência humana no mundo.
Por técnicas, Abbagnano afirma que seriam os atos ou práticas de culto
como as orações, sacrifícios, rituais e serviços divinos ou sociais, e teriam, assim,
1 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?
Tese de doutorado em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34. 2 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e Estado no Brasil: Utopia Constitucional?
Tese de doutorado em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 34. 3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 997.
20
caráter objetivo e institucional. Mas a crença é a atitude religiosa por excelência, e
tem caráter subjetivo.
Desde modo, uma religião natural seria constituída apenas desse
elemento subjetivo e uma religião positiva seria constituída pelas mencionadas
técnicas.
Importa dizer que, para este trabalho ambos os elementos, unidos ou
separadamente, são considerados religião, já que tem o potencial de comunicar-se,
dialogar, e, assim, ingressar no debate político, conforme mais a frente se afirmará.
Acrescente-se que, não houve a preocupação neste trabalho de
diferenciar o que seja religião, seita, fé, crença, pois seria um desvio desnecessário
ao que se pretende abordar. Igualmente, a palavra Igreja é utilizada quando se trata
da época medieval, para designar a Igreja Cristã, porém no restante do trabalho é
utilizada como sinônimo de religião e, assim, quando se pretender tratar de alguma
religião específica, indicar-se-á seu nome.
De outro lado, faz-se necessário tecer também algumas considerações
preliminares em relação ao termo Estado.
É consenso entre os autores que tratam do tema, que o termo “Estado” só
tomou corpo com O Príncipe, de Maquiavel, embora pesquisadores mostrassem que
a passagem do significado corrente do termo status, (de “situação”), para “Estado”,
no sentido moderno da palavra, teria ocorrido anteriormente a partir da expressão
clássica status rei publicae4.
Alguns autores (Karl Schimdt, Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira no
Brasil) não admitem sua existência antes do século XVII, baseados no fato de que a
nomenclatura Estado indicando uma sociedade política só aparece no século XVI.
Contudo, a maioria admite que seja Estado toda a sociedade política que, com
autoridade superior, fixa as regras de convivência de seus membros. Sendo assim,
admitem a existência do Estado anteriormente ao século XVII, embora com outras
designações5.
Por esta razão, adotar-se-á neste primeiro momento tal concepção latu
sensu de Estado.
4 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,
1989, p. 43.
21
1.2 Os Povos Primitivos: Leis e Autoridade na Família
No Estado Antigo6 a família, a religião, o Estado e a organização
econômica eram fundidos. Não se concebia a divisão que hoje se consegue
vislumbrar. As marcas fundamentais desse período eram a natureza unitária e a
religiosidade.7
Segundo os estudos de Fustel de Coulanges8, que compilou inúmeros
escritores e filósofos gregos e romanos da antiguidade clássica, tais como
Xenofonte, Cícero, Tito Lívio, Plutarco, Platão e Aristóteles, a religião construída
pelos antigos determinou de modo absoluto sua organização, suas instituições e
leis.
As famílias da Grécia e Roma antigas foram constituídas a partir da
religião, donde emanavam as regras de casamento, parentesco, propriedade e
sucessão.
Posteriormente, estas instituições formaram a base da cidade antiga, que,
portanto, foi influenciada de forma determinante pela crença religiosa dos antigos.
É possível afirmar que as mais remotas gerações descendentes do povo
indo-europeu, dentre os quais: gregos, romanos e vedas, acreditavam que havia
vida após a morte. De acordo com Fustel de Coulanges, o homem acreditava na
transformação da vida e não em sua extinção com a morte.
E mais: a morte não era entendida como a separação entre corpo e alma,
indo o corpo para ser consumido na terra e a alma para outra dimensão, e sim que
corpo e alma passavam a viver sob a terra, encerrados no túmulo. Permaneciam os
mortos, portanto, bem junto aos seus.
O que testemunha esta consideração são os ritos fúnebres que
sobreviveram a esta época primitiva.
Os ritos fúnebres mostram-nos claramente como, quando se colocava um corpo na sepultura, se acreditava que, ao mesmo tempo, se metia lá alguma coisa com vida. Virgílio, que sempre
6 Sobre a divisão da evolução do Estado em Antigo, Grego, Romano e Medieval, v. DALLARI, Dalmo
de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 51 e segs.. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,
1989, p. 53. 8 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as
instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975.
22
descreveu com muita precisão e escrúpulo as cerimônias religiosas, termina a sua narrativa dos funerais de Polidoro com estas palavras: “Encerramos a alma na sepultura”. Idêntica expressão encontramos em Ovídio e em Plínio, o Moço [...] atestando deste modo crenças antigas e populares.9
Acreditavam esses homens, ainda, que o corpo necessitava de
sepultamento para que a alma não lhe abandonasse e se tornasse errante, vagando
sem descanso, atormentando os vivos, provocando-lhes doenças, infortúnios, e
assustando-lhes com aparições tenebrosas.
De outro lado, não bastava repousar o cadáver sob a terra. Era
necessário que fossem proferidas as fórmulas prescritas por ritos tradicionais,
realizando funeral corretamente segundo as regras da religião. Disso dependia a
felicidade eterna do morto.
Por sua vez, acreditava-se que o corpo debaixo da terra continuava
necessitando de alimento, o que era providenciado anualmente através de uma
cerimônia religiosa:
Ovídio e Virgílio apresentam-nos descrição desta cerimônia, cujo uso permanecera intacto até à sua época, embora as crenças já então se houvessem alterado. Descrevem-nos o costume de se rodear o túmulo com grandes grinaldas de plantas e de flores e de sobre o mesmo se oferecerem doces, frutas, sal e ainda ali se verterem o leite, o vinho e algumas vezes o sangue de uma vítima.10
Os antepassados falecidos eram considerados sagrados, verdadeiros
deuses. Os gregos os denominavam de deuses subterrâneos e os romanos de
deuses manes. Os hindus, do mesmo modo, consideravam os mortos como deuses
que necessitavam das libações e sacrifícios para viver uma vida bem-aventurada.
Essas oferendas trariam a paz entre mortos e vivos.
Por outro lado, acreditavam os homens de então, que os mortos se
alegrariam com o culto e lhes seriam favoráveis, atendendo-lhes as súplicas e
pedidos de prosperidade.
9 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as
instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 12. 10
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 15.
23
Percebe-se, portanto, o valor ímpar atribuído a este ritual fúnebre. Cultuar
os mortos era dever dos vivos. Esta era a religião primitiva, o enigma da morte
fundamentava esta crença:
[...] Foi talvez, à vista da morte que o homem teve pela primeira vez a idéia do sobrenatural e quis confiar em coisas que ultrapassavam a visão de seus olhos. A morte teria sido o primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível ao invisível, do passageiro ao eterno, do humano ao divino.11
Um fator importante a ser destacado em relação a este culto dos mortos é
que somente poderia se dar dentro da família. Era o parente mais próximo do morto
que deveria presidir o ritual. Nenhum homem de outra família, considerado
estrangeiro, poderia estar nem mesmo nas proximidades quando eram realizados os
cultos, pois isto perturbava o repouso dos deuses.
As ofertas somente poderiam ser feitas aos próprios antepassados, sendo
um dever primário e fundamental:
Por esta razão na Grécia e em Roma, assim como na Índia, o filho tinha o dever de fazer libações e sacrifícios aos manes de seu pai e aos de todos os seus ancestrais. Faltar a este dever era a mais grave impiedade de quantas poderiam cometer-se, porque a interrupção do
culto provocava uma série de mortes e destruía a felicidade.12
Como se vê, aquele que não deixava filhos não recebia culto e estava
condenado à “fome perpétua”, daí a importância do casamento e a proibição ao
celibato.
A religião, assim, não existia em templos, mas na própria casa. Cada
família instituía suas regras sobre o culto, as cerimônias, festas religiosas, orações,
cânticos, tudo isto era próprio de cada uma delas.
O culto dos antepassados era de tal forma importante para o homem
primitivo, que foi o que determinou a constituição da família. Não era o sangue
precipuamente que determinava o aspecto fundamental do laço familiar e sim o
11
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 20. 12
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 29.
24
poder da religião. Esta unia os homens em vida e assim os mantinha após a morte,
formando um corpo único.
A família antiga seria, então, uma associação religiosa muito mais que
uma associação natural.
Esta afirmação, de pronto, não parece plausível, contudo, analisando o
modo como a religião determinava as relações de parentesco, acaba-se por
concordar com ela. Vejamos:
A primeira instituição estabelecida pela religião foi o casamento.
O casamento era muito mais do que apenas a união afetiva ou conjugal,
era, na verdade, um ritual sagrado que permitia que a mulher deixasse a religião de
seu pai e criasse um novo vínculo religioso, adotando e sendo adotada pela religião
e família de seu marido.
Viu-se anteriormente que o celibato era proibido, pois da descendência
dependia o culto aos mortos. O homem não tinha o direito de fazer esta escolha, a
família era que assim o determinava: “[...] o homem não pertencia a si mesmo;
pertencia à família”.13
Já desde o nascimento a criança deveria ser apresentada para uma
espécie de iniciação religiosa, junto ao fogo doméstico, cultuado também como deus
daquela família. Somente após passar por esta cerimônia é que a criança era
admitida na família e estava apta a praticar ritos, recitar orações e honrar seus
antepassados.
O parentesco era compreendido como comunhão de culto, isto é, aqueles
que adoravam os mesmos deuses, o mesmo fogo sagrado e o mesmo banquete
fúnebre, eram parentes: “O vínculo de sangue não basta para estabelecer este
parentesco; é indispensável haver o vínculo do culto”.14
Em outras palavras, somente o filho gerado do casamento religioso
poderia prosseguir com o culto dos antepassados, pois ainda que do mesmo
sangue, não tendo sido aceito pelos ritos religiosos, não pertencia à religião
doméstica, e, consequentemente, não pertencia à família.
Perceba-se o enorme peso do vínculo religioso na formação das famílias.
13
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 41. 14
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 48.
25
Para os casais estéreis a religião autorizava que a mulher fosse dada a
um parente próximo de seu marido e a criança gerada seria considerada filha do
casal.
Um último recurso à família que não era capaz de gerar filhos era a
adoção. O único intuito da adoção era a continuidade da religião doméstica, com a
conservação do fogo sagrado e culto dos ancestrais. Desta maneira, só era
autorizada a casais sem filhos.
Do mesmo modo como o casamento e o nascimento, o adotando era
introduzido na família através de rituais específicos da religião do lar.
Outro instituto determinado na antiguidade pela religião foi a propriedade:
“[...] as populações da Grécia e Itália, desde a mais longínqua antiguidade, sempre
reconheceram e praticaram a propriedade privada”.15
Como os deuses eram considerados propriedade exclusiva de cada
família, ou seja, somente aquela família poderia adorar aqueles deuses e estes, por
sua vez, só poderiam proteger àquela família; e, dado que se considerava que os
deuses eram sepultados na terra de sua família para dali não serem jamais
removidos, o solo se tornava também um lugar sagrado, era o altar onde se
realizava o banquete fúnebre.
Surge daí a ideia de domicílio. A família deveria permanecer reunida em
torno daquele altar para protegê-lo, pois o estrangeiro não pode se aproximar dali:
“Este limite, traçado pela religião e por ela protegido, afirma-se como o tributo mais
verdadeiro, o sinal irrecusável do direito de propriedade”16 (COULANGES, 1975).
A casa e o campo estavam como que vinculados à família, que deles não
poderia desfazer-se. Nestas sociedades primitivas foi a religião, portanto, que
estabeleceu o direito de propriedade.
Posteriormente, na época da Lei das Doze Tábuas na sociedade romana,
foi autorizada a divisão do campo entre os irmãos, porém deveria ser conservado o
local do túmulo. Por fim, permitiu-se a venda das terras, mas permanecia a
obrigatoriedade de realizar o culto mediante os rituais prescritos pela religião
daquela família.
15
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 49. 16
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 51.
26
Antes de começarem a vigorar as leis da cidade, eram as famílias que
prescreviam suas próprias leis. A religião determinava que o pai era o primeiro
diante do deus fogo, aquele a quem cabe a função primordial no culto. Era sacerdote
e rei.
A mulher era considerada apenas como parte integrante de seu esposo,
de quem recebera o culto, que não é de seus próprios antepassados.
Tanto gregos, como romanos e hindus, consideravam a mulher como
inferior, ela jamais poderia ter um culto para si ou presidir um culto, portanto, não era
senhora de si própria.
A lei de manu diz: “A mulher, durante sua infância, depende de seu pai; durante a juventude, de seu marido; por morte do marido, de seus filhos; se não tem filhos, dos parentes próximos de seu marido; porque a mulher jamais deve governar-se à sua vontade”. As leis Greco-romanas dizem o mesmo.17
Melhor sorte não assiste aos filhos, que “enquanto o pai viver serão
considerados sempre menores”.18 O pai tinha total poder sobre o filhos, tinha até
mesmo o direito de dispor de sua vida e liberdade.
Mas o pai não é somente esta autoridade familiar, ele é o sinal vivo de
seus antepassados, o que tem conhecimento das fórmulas secretas da oração,
enfim, o sacerdote da religião do lar.
Daí se origina a palavra pater, que não significava apenas pai, mas sim
aquele que não dependia de outro, o que tinha autoridade para se autodeterminar e
determinar a vida dos demais.
Investido deste poder, o pai, na família antiga, tinha o direito de
reconhecer ou rejeitar o filho ao nascer, de repudiar a mulher em caso de
esterilidade, de casar a filha e o filho, de excluir um filho da família (o que se
denominava emancipação), de adotar.
A família antiga foi assim: era a crença nos antepassados mortos que
regulava aquela pequena sociedade, seu governo, sua justiça, sua moral, suas
17
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Hemus, 1975, p. 69. 18
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 29.
27
instituições, sem necessidade de se recorrer ao direito ou força de qualquer poder
social, para tanto.
No tempo em que o homem só acreditava em seus deuses domésticos
era o tempo em que nada mais existia do que as famílias, independentes, isoladas e
autossuficientes, que constituíram seu próprio direito privado.
1.3 O Surgimento da Cidade: Autoridade Política e Religiosa se Confundem
Pode-se afirmar, de acordo com o que foi dito até agora, que a família da
antiguidade era, ao mesmo tempo, pequeno Estado e pequena Igreja.
Posteriormente, as famílias, já expandidas passaram a se unir, formando
frátrias (gregos) ou cúrias (romanos). Esta união, contudo, dependia de uma
divindade superior a que todas as famílias deveriam prestar culto sem abrir mão de
seus próprios cultos domésticos. Edificavam-lhe o altar, acendiam o fogo sagrado e
instituíam o novo culto.
As frátrias ou cúrias foram crescendo e acabaram realizando novas
reuniões formando tribos, cujas divindades eram denominadas de heróis e davam
nome à respectiva tribo. Tinha sua festa anual, para a qual deviam reunir-se todos
os seus membros.
Num outro momento, diferente religião se manifestava também na
antiguidade, era a religião da natureza “cujas principais figuras foram Zeus, Hera,
Atena, Juno, a do Olimpo helênico e a do Capitólio romano”.19
A natureza e seus fenômenos físicos provocavam no homem sentimentos
arrebatadores: “um misto de veneração, de amor, de terror” e o levaram a
personificar esses eventos, divinizando-os e cultuando-os.
Interessante que estes cultos surgiram de mentes diversas, provenientes
de diferentes lugares, em famílias isoladas, cada qual moldando seu deus a seu
modo. Contudo, nota-se a semelhança entre eles, pois todos dizem respeito aos
elementos da natureza. Dessa maneira, o Sol era adorado com vários nomes em
vários lugares.
19
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 96.
28
Ambas as religiões conviviam: o culto doméstico dos antepassados e o
culto dos deuses da natureza. Contudo, esse novo culto mostrava a necessidade do
homem de buscar um culto genérico não encerrado entre as fronteiras do território
familiar.
Então, essas divindades saíram dos limites da família e para elas foram
construídos templos, onde se acendia o fogo sagrado à entrada, fogo este que, de
protagonista, passou a ser apenas um acessório.
O historiador francês está convencido de que a propagação desta nova
religião foi responsável pelo desenvolvimento da sociedade na época.
A tribo, como as fratrias ou cúrias, era um corpo independente, tinham
uma assembleia que baixava os decretos a que os membros estavam submetidos,
tinha, ainda, tribunal com jurisdição sobre todos e, ademais, um chefe ou tribuno.
Chegou o tempo em que a tribos começaram a se unir, fosse pela força
ou aliança. No início a união entre as tribos era um tabu, dado que cada qual tinha
seus próprios deuses, contudo, ficou mantida a condição de manterem intocados os
cultos particulares. E nesse momento nasceu a cidade.
No nascimento da cidade, uma vez mais, as tribos instituíram um culto
comum e acenderam o fogo sagrado: “A fundação da urbe foi sempre um ato
religioso”.20
Como se vê, os homens passaram a se reunir em sociedade a partir da
união de pequenos grupos, cada qual mantendo suas próprias tradições religiosas,
mas criando nova divindade para culto comum.
Percebe-se que estas reuniões de grupos eram verdadeiras federações,
pois havia uma unidade, porém cada grupo menor mantinha suas leis, religião,
jurisdição, governo e assim por diante.
Se não houvesse a instituição de um novo culto, não seria possível a
existência destas novas associações, era algo inimaginável para a época.
Isto porque, como dito, era a criação de uma nova religião, comum a
todos, que atribuía àquelas reuniões de famílias e tribos o elemento de conexão
entre si, o que veio a resultar, ao final, na existência da cidade.
20
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo:
Hemus, 1975, p. 106.
29
Assim, permaneciam os cultos tribais e familiares e, frise-se, não acima
destes, se estabelecia o culto comum, ou seja, adoravam-se os deuses da cidade.
Na lição de Claudio de De Cicco21:
[...] na Antiguidade a formação das cidades, polis na Grécia, civitas em Roma, não se fez com diminuição da esfera de poder dos chefes de família, mas através de uma verdadeira “confederação” de famílias com antepassado comum, de modo que a cidade não era, como em nossa época se pretende, uma reunião de indivíduos, mas sim uma reunião de famílias. Não se concebe com essa perspectiva, a possibilidade de entender o poder do soberano da cidade, o rei ou basileus, como absoluto, mas simplesmente como o de alguém que é o líder, o primus inter pares, na assembleia dos chefes de família (grifo do autor).
Na concepção dos antigos, a urbe era um território que se estendia do
altar até seus limites sagrados, era o domicílio religioso que agasalhava os deuses e
acolhia os homens.
O fundador da cidade era o homem que realizava o ato religioso sem o
qual a cidade não poderia estabelecer-se. Esta data (da fundação) era sagrada e,
assim, o aniversário da cidade era comemorado todos os anos com rituais e
banquetes sagrados.
E, na cidade, como nas famílias e tribos, a liderança política e religiosa se
confundia na mesma pessoa ou pelo menos, na mesma instituição:
O local da reunião do senado de Roma foi sempre um templo. [...] Tanto em Roma como em Atenas, só funcionava a justiça da cidade em dias determinados pela religião como favoráveis. Em Atenas, a sessão do tribunal tinha lugar junto a um altar e começava pelo sacrifício [...].22
Entretanto, não se pode dizer que havia autoridade, assim como é
compreendida em nosso tempo, deste rei ou basileus sobre os assuntos de
interesse da família, pois esta era gerida de maneira ditatorial pelo pater, como já
mencionado.
21
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75. 22
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 131.
30
Neste sentido, o Senado romano foi uma instituição criada para o fim de
verificar se o direito privado (jus privatum) estava sendo respeitado pelo direito
público (jus publicum): “Para impedir atitudes do rei que viessem a resultar em
menoscabo do jus privatum é que existia o Senado, assembleia composta pelos
grandes chefes de famílias romanas ou patrícios (de pater)”.23
Eram o sumos-sacerdotes da cidade também seus reis:
A principal função do rei consistia, pois, em realizar as cerimônias religiosas. Um antigo rei de Sícion foi deposto porque as suas mãos se mancharam com um assassino e daí jamais ficaram em estado de poder sacrificar. E, não podendo mais ser sacerdote, não podia continuar rei.24
Mas não foi somente na época dos reis que se fundiam a figura da
autoridade política e do sacerdote. O Magistrado, que substituiu o rei após a
revolução que implantou o regime republicano mantinha as duas funções.
A autoridade da cidade era extremamente auferida pela tradição, como foi
constatado por Hannah Arendt, especificamente no que tange aos romanos:
Ao contrário de nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do passado. Se se quiser relacionar essa atitude com a ordem hierárquica estabelecida pela autoridade, visualizando essa hierarquia na familiar imagem da pirâmide, é como se o cimo da pirâmide não se estendesse até as alturas de um céu acima (ou, como no Cristianismo, além) da terra, mas nas profundezas de um passado terreno.25
E, ainda:
Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos. Enquanto essa tradição fosse ininterrupta, a autoridade estaria intata; e agir sem autoridade e tradição, sem padrões e modelos aceitos e
23
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54. 24
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 140. 25
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:
Perspectiva, 2011, p. 166.
31
consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos fundadores era inconcebível.26
Ela nota que a noção de autoridade entre os gregos repousava na função
do pater familiae, e foi aí que Platão teria ido buscar a referência de autoridade para
aplicar em sua cidade ideal.
Já os romanos tinham essa referência de autoridade na tradição dos pais
fundadores da cidade e, segundo Hannah Arendt, teria sido essa a razão da força
que Roma adquiriu, tendo alargado seus domínios por todo o ocidente e mantido
seu poder por séculos.
Assim como o rei era o sacerdote da cidade, as leis derivavam da religião
para gregos, romanos e hindus.
Os códigos das cidades eram um misto de prescrições religiosas e
disposições legislativas: “As normas de direito de propriedade e do direito de
sucessão achavam-se dispersas entre as regras relativas aos sacrifícios, à sepultura
e ao culto dos mortos”.27
Mesmo posteriormente, com o advento da lei escrita, o Código das Doze
Tábuas, no século 451 a.C., que igualou os direitos civis de nobres e ainda haviam
prescrições religiosas em meio às leis civis.
É fácil perceber o porquê da reunião dos homens nas cidades não ter sido
algo simples. O costume era cada qual seguir suas próprias regras, determinar seus
próprios cultos e instituições. Como fazer o instinto ceder à razão e a razão
particular à razão pública?
De fato, observou Hannah Arendt:
As grandiosas tentativas da Filosofia grega para encontrar um conceito de autoridade que obstasse a deterioração da polis e
salvaguardasse a vida do filósofo soçobraram devido ao fato de não existir, no âmbito da vida política grega, nenhuma consciência de autoridade que se baseasse em experiências políticas imediatas. 28
26
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 166. 27
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 150. 28
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:
Perspectiva, 2011, p. 161.
32
A força da crença no sobrenatural foi capaz de fazer o homem cultuar
seus antepassados, agrupar famílias, fazer a primeira religião. Desta antiga religião
surgem as primeiras concepções de moral, de dever. Surge também a ideia de
propriedade, de sucessão de bens, enfim diversas instituições de direito privado
surgem a partir da religião.
Como se não bastasse, os homens, à medida que sentem necessidade
de se unir, o fazem por meio da eleição de divindades comuns, para que essa
reunião se dê efetivamente através do culto religioso.
Assim se formam as primeiras cidades:
A concepção religiosa foi, entre os antigos, o sopro inspirador e organizador da sociedade. As tradições dos hindus, dos gregos e dos etruscos, recordavam aos homens terem sido os deuses quem lhes revelaram as leis sociais. Essa forma lendária oculta meia-verdade. As leis sociais foram obra dos deuses, mas esses deuses, tão poderosos e tão benfazejos, derivaram das crenças dos homens. Essa foi a forma de criação do Estado entre os antigos; seu estudo tornava-se indispensável para nos elucidar sobre a natureza e
instituições da cidade.29
É importante esclarecer que estas leis eram destinadas somente aos
cidadãos, isto é, àqueles aos quais pertencia o culto daquela cidade, que eram
admitidos a ele, estando excluídos todos os demais.
O culto religioso nas cidades gregas e em Roma tinha como cerimônia
principal um banquete, ao qual se dava o nome de sacrifício:
Comer a refeição preparada sobre o altar, tal foi, segundo todas as aparências, a primeira forma que o homem deu ao ato religioso. A necessidade de o homem se colocar em comunhão com a Divindade satisfazia-se com esse banquete, para o qual a convidavam e a quem faziam participar.30
O calendário das cidades era feito por sacerdotes, já que nada mais
registravam do que as festas religiosas e cada cidade tinha um calendário diferente
da outra, pois suas divindades também eram diferentes.
29
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 105. 30
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 124.
33
As leis da cidade eram consideradas sagradas, isto é, provenientes dos
deuses, não eram consideradas como obra humana.
Platão nos faz ter noção da importância da lei para o cidadão quando
descreve o discurso de Sócrates. O filósofo, condenado à morte, se entrega e afirma
que tudo deve ocorrer segundo desejo do deus e que deve obedecer à lei e fazer
sua defesa.31
São essas as palavras que Platão coloca na boca de Sócrates:
Mas, onde de lado a reputação, ó homens, não me parece certo que alguém suplique aos juízes para tentar fugir à condenação, em vez de informá-los e persuadi-los. Porque os juízes não estão aqui para ceder diante de tais atitudes, mas para fazer valer a justiça. O juramento que fizeram não foi para beneficiar a quem bem lhes parece, mas para julgar segundo as leis [...] E é por isso que, se pela persuasão ou pela súplica eu os condenasse a quebrar seus juramentos, pela persuasão ou pela súplica, estaria ensinando o desrespeito aos deuses e, ao me defender, estaria acusando a mim mesmo de não crer nos deuses, algo que está muito longe de ser verdade. Pois eu creio, ó homens de Atenas, mais que qualquer um de meus acusadores crê. E agora me coloco diante de vocês, e também do deus, esperando que possam decidir pelo que for melhor, tanto para mim quanto para vocês.32
As cidades exerciam poder de origem religiosa sobre seus integrantes.
O homem era obrigado ao serviço militar até os 46 anos em Roma e em
Atenas e Esparta por toda a vida. Seu dinheiro devia ficar à disposição da cidade,
incluindo as joias das mulheres e os frutos da terra. Algumas cidades proibiam o
celibato ao homem, em Esparta se regulamentava até o penteado das mulheres, e,
em Atenas, elas eram proibidas de levar mais de três vestidos em viagem. Em
Rodes o homem era proibido de fazer a barba e em Bizâncio era punido com multa
quem ao menos possuísse uma navalha, já Esparta exigia que se raspasse o
bigode.
Lei terrível das cidades era a que exigia dos pais que aniquilassem o filho
que tivesse nascido com alguma deformidade.
Não era permitido que o cidadão escolhesse particularmente suas
crenças, mas sim devia se subjugar à religião da cidade:
31
PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p.
26. 32
PLATÃO. Apologia de Sócrates, trad. Sueli Maria de Regino, São Paulo: Martin Claret, 2009, p.
49.
34
Podia-se odiar ou desprezar os deuses da cidade vizinha e, quanto às divindades de caráter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cibele ou Juno, havia a liberdade de neles ter ou não ter fé. Mas que ninguém ousasse duvidar de Atena Políada, de Erecteu ou de Cécrope. Seria grande impiedade contra a religião e o Estado, que este devia punir com toda a severidade. Sócrates foi condenado á morte por esse crime. A liberdade de pensamento, em matéria de
religião, era absolutamente desconhecida entre os antigos.33
A personalidade e atitudes dos aristocratas romanos e gregos eram
totalmente moldadas pela religião, que ocupava o lugar central em suas vidas, sua
casa era um templo, seus antepassados os seus deuses, os túmulos e os limites de
sua terra, sagrados.
Nascimento, casamento, iniciação eram sempre atos religiosos solenes.
Ofereciam sacrifícios todos os dias em sua casa, todos os meses em sua cúria,
anualmente em sua tribo.
Como se vê, no pensamento antigo não se concebia a separação de
poder terreno e religião, ou seja, a prática da cidadania era a prática da religião.
Neste sentido, constatou Hannah Arendt ao tratar especificamente do povo romano:
A religião e a atividade política podiam assim ser consideradas como praticamente idênticas [...] O poder coercivo da fundação [da cidade] era ele mesmo religioso, pois a cidade oferecia também aos deuses do povo um lar permanente.34
1.3.1 A Transformação da Cidade: a Força Popular e o Advento da Filosofia
Em que pese a força enorme exercida pela tradição sobre os antigos, a
partir do século VII a.C., aos poucos, este tipo de Estado primitivo poderoso foi
sendo transformado e desapareceu totalmente através de uma série de revoluções
que tiveram, segundo Coulanges, duas causas básicas: a reação da classe
oprimida e o desenvolvimento da racionalidade humana.
33
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p.184. 34
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed.; São Paulo,
Perspectiva, 2011, p. 163.
35
Os plebeus, que teriam sido provenientes de antigas populações
conquistadas e subjugadas, eram a maioria da população em Roma, apesar de não
serem concebidos como parte dela.35
Compunham essa classe, igualmente, famílias que não conseguiam
instituir seus cultos domésticos, empregados expulsos das famílias, filhos bastardos
ou que tivessem renegado a religião da família.
Como se vê, a plebe era resultante do caráter excludente do culto
doméstico, ou seja, era a parcela da população que não estava abrigada em
nenhuma família. E, fisicamente, estavam separados da cidade por um marco.
De outro lado, havia as famílias, cada uma com seu rei ou pater. Abaixo
das famílias, se formaram as cúrias ou fratrias, depois as tribos, cada qual com seu
chefe próprio. Era uma hierarquia de chefes. Posteriormente, estes chefes
escolhiam o rei da cidade, mas este não exercia poder total sobre a população.
Cada família escapava a sua ação e continuava submetida ao seu pater.
Por conseguinte, estes reis locais, os aristocratas, mantinham seu poder e
reunidos formavam uma força tão poderosa quanto à do rei da cidade. Quando
percebiam que o rei da cidade queria se tornar mais poderoso uniam-se contra ele.
Por toda a parte se travaram guerras entre a aristocracia e a realeza, que no final,
acabava sempre derrotada.
Isto até que o rei percebeu (e usou) a força da plebe e das leis da cidade.
Os reis, então, se uniram ao povo numeroso (e excluído) das cidades
para lutar contra os aristocratas das famílias sagradas, e os patres viram erguerem-
se contra si as classes que anteriormente desprezara. Essas lutas passaram a ter
um caráter social.
Paulatinamente foi-se operando uma transformação das cidades. Os
plebeus acabaram por derrubar as barreiras que lhes eram impostas e adentraram a
cidade onde se apoderaram do governo.
Em Atenas, Sólon, aristocrata que se tornou rei no Sec. VI a.C. libertou os
escravos, perdoou dívidas, mudou completamente a constituição política da cidade,
mas deixou intacta a organização religiosa, que somente com Clístenes foi
modificada para incluir todos os homens livres de Atenas:
35
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 192.
36
Sólon, ao mudar a constituição política, deixara subsistir toda a antiga organização religiosa da sociedade ateniense. [... ] havia duas espécies de homens: de um lado, os eupátridas, possuindo hereditariamente o sacerdócio e a autoridade; do outro, os homens de condição inferior que não eram mais nem servos nem clientes, mas que ainda se achavam ligados pela religião, à autoridade do eupátrida. Em vão a lei de Sólon declarava livres todos os atenienses. A antiga religião apoderava-se do homem à saída da assembleia onde livremente votara [...].36
Com a lei de Clístenes, veio a reforma religiosa e as quatro tradicionais
tribos foram substituídas por dez novas tribos divididas em certo número de demos,
cada qual com suas divindades, cultos, sacerdotes, juiz e assembleia para deliberar
sobre os interesses comuns.
Este culto, todavia, já não era o da religião hereditária, os heróis eram
escolhidos entre personagens antigos admirados. Os demos adoraram de maneira
geral a Zeus, protetor do domicílio e a Apolo paternal.37
E foi essa reforma de âmbito religioso que consolidou a queda da
aristocracia, dos eupátridas, que não sustentavam mais privilégios de casta ou
nascimento nem em âmbito político, nem em âmbito religioso.
Essas transformações ocorreram em todas as cidades gregas e também
em Roma, que começou a caminhar neste sentido sob o reinado de Sérvio, com
quem o plebeu conseguiu uma religião, e a quem os aristocratas tributaram profundo
ódio.
Sérvio introduziu um princípio novo na sociedade romana, qual seja: a
riqueza. As classes estratificadas o eram a partir de então em razão de suas posses
e não mais pela religião. Esta mesma divisão se deu igualmente em termos militares.
A cidade romana foi, destarte, totalmente alterada. Os patrícios
mantiveram seus cultos e organizações em cúrias, além do Senado, mas perderam
privilégios e os plebeus foram ganhando força e espaço na cidade.
Ao final, plebe e patriciado acabaram concluindo que um era necessário
ao outro e firmaram aliança de um modo ou de outro, conforme cada povo, e que
36
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.228. 37
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 229.
37
acarretou a possibilidade da plebe se organizar, podendo escolher entre os seus um
chefe. Essa é a origem do tribunado da plebe.38
O tribuno era inviolável e se apoderou do poder de julgar. Contudo, seu
poder era exercido somente perante a plebe, continuando a coexistir duas
sociedades: a cidade e a plebe, esta ainda sem direitos e sem lei, apesar de já
contar com seu protetor e juiz.39
A plebe passou a reunir-se em assembleia para deliberar acerca de seus
interesses, nomear chefes e formular plebiscitos. Contudo, ao contrário do que
ocorria nas assembleias patrícias, essas reuniões não eram precedidas de
sacrifícios e nem se consultavam oráculos para a tomada de decisões.
Em Roma por muito tempo se conheceram duas espécies de decretos: o senatus-consulto para os patrícios, e os plebiscitos para a plebe. Nem a plebe obedecia aos senatus-consulto, nem os patrícios aos plebiscitos. Havia dois povos em Roma.
Eram unidos apenas por necessidade de guerra, pois a nenhum
interessava a queda de Roma.
Ocorre que alguns plebeus conquistaram riquezas ou já provinham de
alguma família rica originária de outra cidade, mas que em Roma não tinham
qualquer valor.
Na divisão de castas pela riqueza, operada por Sérvio, alguns desses
plebeus acabaram ocupando a primeira delas, juntamente com muitos patrícios com
quem passaram a conviver e desejar a união dos dois povos.
Para isto, a plebe passou a pleitear uma lei para si, pois as leis existentes
eram sagradas, secretas e aplicadas somente aos patrícios. Esse caráter religioso
era, como já mencionado, excludente também em relação à lei. Por esta razão, a
plebe desejava colocar fim a esta característica da lei: “A plebe pediu não somente
38
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 236. 39
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 238.
38
que as leis fossem escritas e tornadas públicas, mas ainda que fossem igualmente
aplicáveis a patrícios e a plebeus.”40
Como já se viu, isso era sacrilégio para os patrícios e somente após muita
negociação se decidiram mudanças: os legisladores permaneceriam todos patrícios,
mas seu código, antes de ser promulgado e posto em vigor, devia ser exposto ao
público e submetido à aprovação prévia de todas as classes41, a quem passaria a
ser aplicado. Assim, nasce a Lei das Doze Tábuas, que Sólon promulgou.
Por conseguinte, a lei já não era mais resultado dos oráculos e sim da
vontade do povo, que, se preferir, posteriormente, poderá também modificá-la.
Neste momento, é alterada a natureza do Direito.
Esta foi uma extraordinária inovação, pois a partir daí os plebeus passam
a agir do mesmo modo que os patrícios, a conviver no mesmo tribunal, a estar
submetidos sob as mesmas leis, que agora deixaram de ser privadas e se tornaram
públicas e conhecidas de todos.
Os costumes e valores foram se mesclando e adaptando através da união
entre plebe e aristocracia pelo casamento. Aqueles conquistaram também o direito
de ser legisladores. E como tal, não se importavam com aspectos cultuais e
sagrados observados pelos aristocratas, que lhes soava como “sutilezas sem
valor”.42
Conquistada a igualdade civil desejava a plebe a igualdade política, isto é,
ter direito ao consulado43
.
Contudo, o caráter sacro era inerente à função, o que levou os patrícios a
se oporem fortemente ao apelo, pois os deuses só aceitavam os sacrifícios dos
patrícios, que tinham nas mãos a tradição familiar do culto.
40
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p.241. 41
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 241. 42
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 242. 43
O cônsul ou magistrado era o chefe da cidade, a quem era atribuído não somente o poder político e militar, como o religioso. Era, assim, igualmente sacerdote encarregado dos sacrifícios públicos e, portanto, para ser eleito, não bastava dar provas de coragem e probidade, mas de conhecimento e capacidade para celebrar as cerimônias do culto público. Dos sacrifícios ofertados dependiam o bom andamento da cidade, seus negócios e suas batalhas. Em cada cidade podia tomar ainda nomes diferentes: rei, prítane ou arconte.
39
A saída encontrada foi a separação entre a função religiosa, de muito
maior importância, da função administrativa. Esta permanecia com o magistrado ou
cônsul, mas para aquela foram instituídos os censores.
Aí a origem da separação entre Estado e religião primitivos. Houve a
separação entre o poder terreno e o poder sagrado, mas o intuito era não macular a
religião, não ofender os deuses. Até então, não se imaginava excluir a religião da
política. Isso era inconcebível.
Enfim: “O plebeu passou a usar o vestido púrpura [...]: administrou a
justiça, foi senador, governou a cidade e comandou as legiões44”.45
Nesta época, a única função da qual o plebeu ainda estava excluído era o
sacerdócio, pois conhecer o ritual, ter a posse dos deuses era um patrimônio
hereditário que nenhum estranho poderia usurpar. O culto da cidade pertencia
exclusivamente às famílias que a haviam fundado.
Por esta razão, ainda que os plebeus tivessem fundado sua própria
religião, ela não tinha valor nenhum aos olhos dos patrícios. Ocorre que, a plebe foi
se dando conta de que sem a igualdade religiosa não havia efetiva igualdade civil e
política, que eram ainda entrelaçadas.
E passou a exigir participação também no sacerdócio.
Foi essa a última conquista da classe inferior [...]. Os velhos princípios sobre os quais a cidade romana, como todas as cidades antigas se fundara, tinha desaparecido. Da antiga religião hereditária, que durante muito tempo governara os homens e estabelecera classes entre estes, nada mais restava do que meras formas externas. O homem do povo lutara contra a religião durante quatro séculos, na República e no tempo dos reis, mas saíra, finalmente, vitorioso.46
1.3.2 O Advento da Filosofia
Deve-se reconhecer que, conforme mostra a história, o homem foi se
desenvolvendo em vários aspectos, e, de modo especial, no que diz respeito a sua
razão.
44
As legiões eram o modo de divisão do exército romano. 45
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 244. 46
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 245.
40
A partir do ano 600 a.C. surgiram alguns pensadores que, não se
conformando com a explicação do mundo baseada nos mitos religiosos, ousaram
investigar a natureza e chegaram a conclusões nunca dantes imaginadas, mas que
hoje, milênios depois, se mostraram muito razoáveis, o que é bastante
surpreendente, considerando o conhecimento do mundo na época.
Pois bem, o marco do surgimento da filosofia é a passagem da explicação
mítica da origem do mundo, para uma tentativa de explicação racional, onde os
deuses do Capitólio ou do Olimpo cediam lugar à investigação da natureza.
Como seria de se esperar, a religião aos poucos vai sendo atingida por
este novo modo de pensar que já não admitia a existência de deuses particulares,
mas passava à concepção de um Deus único e universal.
Até o advento da filosofia na era antiga, os homens não concebiam a
divindade como poder supremo, mas como um protetor particular:
Cada família teve a sua religião doméstica, e cada cidade a sua religião nacional. Uma cidade era como que uma perfeita pequena Igreja, com seus deuses, seus dogmas e seu culto. Estas crenças parecem-nos muito grosseiras, mas foram crenças do povo mais espiritualista daqueles tempos, exercendo sobre esse povo e sobre o povo romano ação tão forte que desta religião teve origem a maior parte de suas leis, de suas instituições e de sua história.47
O refinamento da crença veio com o tempo, inicialmente pela revolução
feita pela plebe que acabou por dessacralizar o caráter hereditário e excludente do
culto religioso primitivo e, em seguida, pela reflexão filosófica que iniciou a ideia da
alma imaterial e de um Deus único do gênero humano e não mais deuses privados:
“[...] lenta e obscuramente foi operando uma revolução intelectual.”48
Os filósofos da antiguidade eram aristocratas, cidadãos, participavam
ativamente da vida política e jurídica de seu tempo. O esforço intelectual a que se
dedicavam visava o conhecimento de modo global: matemática, astronomia,
medicina e filosofia. Buscavam explicar a natureza de modo racional.
47
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p.123. 48
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 281.
41
Nos seus estudos sobre a Metafísica Aristóteles faz uma introdução com
uma breve história da filosofia, iniciando com os pensadores pré-socráticos até
Platão.49
Em Mileto, na Ásia Menor (Grécia) nascem os primeiros filósofos: Tales
(624 a.C a 545 a.C.), Anaximandro (610 a.C. a 547 a.C.) e Anaxímenes (585 a.C.
525 a.C.). 50
O primeiro, segundo Aristóteles seria o fundador da filosofia da natureza e
acreditava ser a água o elemento primordial, o princípio de tudo. Anaximandro
introduziu o conceito de necessidade na natureza, onde o elemento fundamental
seria apeiron, o ilimitado, o indeterminado, aquele que seria imutável. Anaxímenes
acreditava que a origem de todas as coisas seria o ar. E seria também apeiron,
ilimitado, indeterminado.
Em seguida vêm outros.
Pitágoras é da ilha de Samos, nascido em 570 a.C. e fundou a escola
filosófica que reunia a atividade matemático-investigativa e a místico-religiosa.
Acreditava na reencarnação da alma e pregava preceitos de purificação, influenciou
o pensamento platônico. Para os pitagóricos os números eram o princípio da
natureza através do qual seria possível explicar todos os fenômenos naturais.
Paralelamente à investigação da natureza começam a surgir na cultura
grega as primeiras tentativas de se pensar a origem do próprio pensamento sobre o
cosmos. Partiram dos filósofos chamados “eleatas”: Xenofontes, Heráclito e
Parmênides. A partir deles, o interesse se volta para a origem do próprio
pensamento, desloca-se o eixo da investigação, da natureza para o pensamento ou
logos.
Cassires constata isto. Ele nota que, nos seus primórdios, a filosofia
grega se ocupou apenas do universo físico, entretanto, com a evolução do
pensamento grego, vão além e iniciam o caminho da introspecção:
Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cosmológico e o antropológico. Embora fale ainda como filósofo natural e faça parte dos “antigos fisiologistas”, está convencido de que é impossível
49
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Marcelo Perine, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 17-
41. 50
CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana
de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 11-31.
42
penetrar o segredo da natureza sem ter estudado o segredo do homem.51
Xenofontes (570 a.C. a 480 a.C) teria sido professor de Parmênides
quando após muitas viagens chegou a Eleia. Era poeta e seus versos tratavam de
cosmologia e teologia, criticava os valores tradicionais como o elogio exagerado da
força física feito pelos gregos, pois a sabedoria valia mais do que a força. Acreditava
que na verdadeira religião não havia múltiplos deuses, mas apenas um único Deus.
Aristóteles dirá que ele foi o primeiro mestre da unidade entre os eleatas.
Heráclito de Éfeso provinha da aristocracia e seu pensamento era tido
como enigmático e obscuro, porém pode-se afirmar que seguiu a mesma
perspectiva de Xenofontes sobre a unidade e totalidade para o princípio de todas as
coisas, tanto do pensamento quanto da natureza, a este princípio deu o nome de
logos52.
Parmênides de Eléia (515 a.C. a 440 a.C.) elaborou o princípio básico da
ontologia: “só o ser é, o não ser não é”, que posteriormente foi chamado por
Aristóteles de princípio da não contradição.
A afirmação parece uma redundância, porém, simplificando, se pode dizer
que ele entendia que o logos, ou o pensamento, só pode pensar a verdade, ou o ser,
mas quando se exprime uma opinião, isto já não é o logos, é somente a aparência
do ser ou o não ser. E, assim, este ser é uno, imutável, imóvel e eterno, pois, do
contrário, teria em si o não ser, o que para ele era impossível.53
Em seguida, vem o sistema pós-parmenidiano com Empédocles,
Anaxágoras e Demócrito.
Empédocles (490 a.C. a 430 a.C.) reuniu os três elementos primordiais da
natureza quais sejam o ar, o fogo e a água54 e os uniu a outro elemento, a terra,
para afirmar que os seres nasceriam e pereceriam em função da composição e
separação desses quatro elementos. Para ele nenhum ser acaba completamente,
51
CASSIRES, Ernest. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.
Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 14. 52
CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana
de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.16. 53
CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga In Castro, Suzana
de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 17. 54
Para Tales de Mileto o elemento primordial da natureza era a água; para Heráclito era o fogo e para Anaxímenes, o ar.
43
mas se transforma na união com outros elementos ou corpos. Ele chamava de amor
ao princípio da composição dos corpos e de ódio ao de separação dos elementos.
Anaxágoras (500 a.C. a 428 a.C.) foi quem levou a filosofia para Atenas
quando ali foi morar em 465 a.C.. Ele acreditava também, como os anteriores, que
não há geração a partir do nada e nem corrupção completa até o nada, mas afirmará
que essas transformações não decorrem dos quatro elementos, mas de infinitas
sementes que, divisíveis ao infinito, estariam presentes em todas as coisas desde o
começo. Estas partes seriam idênticas umas às outras. Acreditava, ainda que,
haveria um princípio espiritual do universo que movimentaria este princípio material
das partículas infinitas:
Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência que reina sobre todos os homens e sobre todas as criaturas. Afastando-se das antigas crenças, distanciou-se também da antiga política. Como não acreditasse nos deuses do pritaneu, Anaxágoras não cumpria tampouco os seus deveres de cidadão; desse modo fugia das assembleias e não desejou ser magistrado. Sua doutrina representava um perigo para a cidade; os atenienses condenaram-no à morte.55
Por fim, surge Demócrito (460 a.C. a 370 a.C), conhecido por ser um dos
fundadores do atomismo56. Os atomistas, ao contrário dos eleatas admitiam a
existência do não ser, isto é, do Nada. Assim, o espaço vazio para Demócrito tem
existência, pois, graças a ele, os átomos podiam se movimentar e entrar em
composição ao se chocarem.
A partir do Século IV a.C., assistimos a um novo período da filosofia
antiga, onde ocorreram dois deslocamentos espaciais: primeiro, o deslocamento do
centro da cultura filosófica grega de suas colônias da Ásia Menor para as cidades-
estado (polis) da península, e, segundo, o êxodo da filosofia, partindo do silêncio das
escolas para o burburinho as cidades.57
55
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 281. 56
Teoria segundo a qual existe um elemento material mínimo e indivisível, o átomo, a partir do qual todas as coisas são compostas. Ainda, o átomo seria invisível, devido ao seu tamanho, eterno e imutável. 57
CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana
de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.19.
44
Os novos filósofos são chamados de sofistas e são responsáveis por uma
guinada na investigação filosófica, ou seja, deixam de lado a investigação da
natureza para investigar o próprio homem.
Dentre os sofistas mais destacados estavam Protágoras (480 a.C. a ?) e
Górgias (480 a.C. a 380 a.C.).
Eram eles que preparavam o jovem para sua atuação na vida pública,
ensinando-lhes não apenas a literatura, mas oratória, educação moral e civil, entre
outros. Viajavam de cidade em cidade oferecendo seus préstimos em troca de
remuneração equivalente. Também aconselhavam os jovens em questões de ética,
enfim, pretendiam educar a pensar, agir e falar corretamente, fosse na vida privada,
fosse na pública.
Eram homens ardentes no combate aos velhos erros [...] não poupavam nem as instituições da cidade, nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda regiam o Estado e a família [...] ensinando não precisamente a indiferença entre o justo e o injusto, mas uma nova justiça, menos acanhada e menos exclusiva que a antiga, mais humana, mais racional e livre das fórmulas das idades anteriores. [...] Ensinavam os gregos que, para governar o Estado, não bastava mais invocar antigos costumes e leis sagradas, mas era necessário persuadir os homens e agir sobre vontades livres. Substituíam o conhecimento dos antigos costumes pela arte de raciocinar e de falar, a dialética e a retórica [...] ligavam-se à eloquência e ao espírito.58
Os sofistas não acreditavam numa verdade absoluta, pois o que
encontravam em suas inúmeras viagens era uma variedade enorme de cultura.
Assim, seus ensinamentos sobre a teoria do conhecimento, política, ontologia e ética
tinham sempre uma perspectiva relativista e convencionalista.59
Quase concomitantemente Sócrates (470 a.C.) aparece, ensinando em
sua cidade natal, Atenas. Ele, ao contrário dos sofistas, ensinava sem cobrar e tecia
ácidas críticas àqueles que, além de cobrar pelo que ensinavam, se achavam muito
sábios.
58
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 281. 59
Para Protágoras o conhecimento jamais poderá ser único para todos os homens, pois a percepção que cada um tem da mesma coisa varia de acordo com o estado físico e emocional do indivíduo. Por esta razão, o conhecimento deve ser voltado para a prática e não para a abstração. Os sofistas eram, portanto, conselheiros dos jovens para que conduzissem sua vida da melhor forma.
45
Sócrates, por sua vez, afirmava nada saber e se ocupava com o
ensinamento da ética aos jovens, para que conduzissem sua vida da melhor
maneira, pela prática das virtudes. E o faz por meio de diálogos aporéticos, isto é,
que terminavam sem uma solução60.
Com efeito, sua investigação filosófica era voltada para o ser humano
concreto, anseios e perspectivas, teoria e vida não se separam para Sócrates61.
O filósofo não escreveu uma linha sequer, sendo que o principal
responsável por tornar conhecidas suas ideias foi Platão, seu jovem discípulo.
De acordo com o que nos fez conhecer Platão, Sócrates foi condenado à
morte por supostamente não reconhecer os deuses da cidade e corromper a
juventude, mas ele somente pretendia levar os jovens atenienses à descoberta do
pensamento autônomo e da reflexão62:
Deste modo, Sócrates:
Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima da lei. Distinguia a moral da religião [...] mostrou estar a origem do dever na própria consciência do homem. Em tudo isso, quer o quisesse ou não, ele fazia guerra aos cultos da cidade. [...] Condenaram-no à morte por haver atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como então se dizia, por corromper a geração presente.63
A morte de Sócrates não deteve a revolução que foi iniciada pelos
sofistas e a sociedade grega ia se libertando do domínio das antigas crenças e
velhas instituições:
60
Sócrates inaugura um modo próprio de questionamento filosófico. Pelos diálogos platônicos vê-se que fundamental para Sócrates era a atitude de interrogador. Enquanto seus interlocutores acreditavam possuir a verdade sobre as coisas, afirmava sua ignorância de tudo. A despeito do oráculo de Delfos ter dito que seria o homem mais sábio da Grécia, afirmava nada saber. O ponto de partida do método socrático é a interrogação que algum jovem lhe faz sobre determinado tema (por exemplo, o significado da virtude, da justiça, do amor, etc.) Seu objetivo é levar seu interlocutor a reconhecer sua própria ignorância acerca de um assunto que supunha saber. Destrinchando as afirmações do seu interlocutor, vai conduzindo a perceber o quão pouco justificado era o conhecimento que acreditava possuir. Para Sócrates e Platão só uma crença justificada poderia ser considerada verdadeira (CASTRO, op. cit., p. 23). 61
Segundo Coulanges, em que pese Sócrates ter reprovado o abuso que os sofistas fizeram do direito de duvidar, pertencia à mesma escola. Não admitia a autoridade da tradição e acreditava que as regras de conduta estavam gravadas na consciência humana 62
CASTRO, Suzana de. A filosofia antiga: os três períodos da filosofia antiga in Castro, Suzana de (org.). Introdução à filosofia. 2ª ed., Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p.24. 63
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 282.
46
Depois de Sócrates, os filósofos discutiram com toda a liberdade os princípios e as regras da sociedade humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto e muitos outros escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e dos direitos, apresentaram-se para todos os espíritos.64
Em que pese Platão ter sofrido a influência dos antigos costumes ao
imaginar sua cidade ideal ainda prenhe da cultura antiga e suas instituições,
proclama que as regras de moral e política estão na consciência humana e não na
tradição pura e simplesmente.
Por esta razão, afirmava ele que as leis somente são justas enquanto
conformes à natureza humana e por isto se deveria atentar ao ditames da razão.
Posteriormente, com Aristóteles (384-322 a.C.), novas ideias surgem. Ele
ensinava que os antigos eram gente ignorante e seria absurdo permanecer fiel a
suas crenças.
Aristóteles deu uma base sólida à noção de justiça65 que seria a
equidade, a proporcionalidade, conforme se verifica:
[..] o que todos visam com “justiça” é aquela disposição do caráter a partir da qual os homens agem justamente, ou seja, é o fundamento da ações justas e o que os faz ansiar pelo que é justo. [...]66
E assim: É necessário, pois, que a justiça implique pelo menos quatro termos, a saber, duas pessoas, no mínimo, para quem é justo que algo aconteça e duas coisas enquanto partes partilhadas. E haverá uma e a mesma igualdade entre as pessoas e as partes nela implicadas, pois a relação que se estabelece entre as pessoas é proporcional à relação que se estabelece entre as duas coisas partilhadas. Porque se as pessoas não forem iguais não terão partes iguais, e é daqui que resultam muitos conflitos e queixas, como quando pessoas iguais têm e partilham partes desiguais ou pessoas desiguais têm e partilham partes iguais.67
64
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p.282. 65
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 49. 66
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de Antonio Castro Caeiro. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 103. 67
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução do grego de Antonio Castro Caeiro. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 109.
47
Após Sócrates, que ainda procurava cumprir com seus deveres de
cidadão, houve um afastamento dos filósofos dos negócios públicos: Platão
pretendia reformar o governo da cidade (o único que admitia), Aristóteles limitou-se
a observar e analisar. Os epicuristas68 deixaram totalmente de lado a participação na
vida política e os cínicos69 nem sequer queriam ser cidadãos.70
Os estoicos retornaram à política, porém, assim como concebem um
Deus do universo, ensinam que na Terra também há um só governo para todos, que
todos os homens são concidadãos do mundo, por conseguinte não aceitavam que o
indivíduo fosse refreado pela cidade e libertaram a consciência humana desse jugo.
Ensinavam que o principal trabalho do homem devia ser o
aperfeiçoamento interior, a procura da virtude em si mesmo. Por este motivo, só se
deve obedecer à lei da própria consciência que deve manter-se independente,
qualquer que seja o governo da cidade. Essa teria sido uma enorme inovação na
época e acabou se tornando uma das regras mais sagradas da política.
Todos esses novos conceitos foram transformando o homem antigo que
adquiriu a importância de si próprio, deixando para trás a crença de que a cidade era
a razão de seu viver e a ela deveria se subjugar. O homem se volta para si e cai a
importância da cidade, morre o patriotismo municipal:
Como o coração do homem não se prendia mais ao pritaneu, aos deuses protetores, ao solo sagrado, mas somente às instituições e às leis, e como estas, no estado de instabilidade em que todas as cidades então se encontravam, mudassem frequentemente, o patriotismo tornou-se sentimento variável e inconsciente dependendo das circunstancias e sujeito às mesmas flutuações do governo. Só se ama a pátria pelo regime político que momentaneamente ali prevalece; quem não gostasse de suas leis não tinha mais razão para defendê-la.71
68
Doutrina de Epicuro de Samos dos séculos IV e III a.C., que identifica felicidade com prazer (hedoné), pois, psicologicamente, tudo o que se faz é para obter prazer, que é bom, já que a dor é ruim. Deste modo, para ser feliz é necessário agir para aumentar o prazer e diminuir a dor (CASTRO, 2011). 69
Filosofia fundada por volta de 400 a.C. por Antístenes, discípulo de Sócrates, que teve como maior representante Diógenes de Sínope e que pregava essencialmente o desapego aos bens materiais e externos. Era mais um modo de vida do que escola filosófica. Mais tarde o termo passou a ser empregado num sentido bastante diferente. 70
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 283. 71
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 290.
48
1.4 O Aparecimento do Cristianismo e a Mudança de Paradigma da Religião
Recorde-se, a essa altura, que na antiguidade era a religião que
determinava o governo dos homens, suas instituições e suas leis. Religião, direito,
governo, confundiam-se, eram uma só coisa vista sob três diferentes feições. E,
assim:
[...] a religião imperou como soberana absoluta na vida privada e na vida pública; onde o Estado era uma comunidade religiosa, o rei um pontífice, o magistrado um sacerdote, a lei uma fórmula sagrada; onde o patriotismo era a piedade e o exílio uma excomunhão; onde a liberdade individual era desconhecida e o homem estava sujeito ao Estado por alma, corpo e bens materiais; onde o ódio contra o estrangeiro se tornava obrigatório, e as noções de direito e de dever, de justiça e de afeto paravam nos limites da cidade; onde a sociedade humana se achava necessariamente encerrada dentro de uma circunferência ao redor de um pritaneu não se vendo possibilidade de fundar sociedades maiores. Tais os traços característicos das cidades gregas e italianas durante o primeiro período de sua história.72
O surgimento do Cristianismo completou um ciclo de transformações que
já havia sido iniciado pelas conquistas plebeias e pela influência da filosofia.
A independência que o indivíduo da cidade antiga foi conquistando se
deveu ao seu desligamento da religião primitiva. O direito e a política foram se
desvinculando das crenças, pois os homens já não lhes davam mais a mesma
importância e havia perdido muito de sua força.
Contudo, observa Fustel de Coulanges que, na Idade Antiga a religião
não era utilizada com propósitos políticos. Porém: “Foi nos tempos de Cícero73 que
se começou a julgar a religião útil ao governo, mas a religião já se sumira dos
corações dos homens”.74
Pois bem, também na visão do historiador inglês Edward Gibbon,
iluminista do século XVIII, havia uma conveniência política na manutenção da
tolerância religiosa dos diversos cultos pagãos:
72
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 304. 73
Marco Túlio Cícero (109 – 43 a.C.), filósofo, orador e estadista romano que apresentou aos romanos a filosofia grega. 74
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, op. cit., p.177.
49
A política dos imperadores e do Senado, no que respeitava à religião, era felizmente secundada pela opinião do setor esclarecido e pelos hábitos do setor supersticioso de seus súditos. As várias formas de culto que vigoravam no mundo romano eram todas consideradas pelo povo como igualmente verdadeiras, pelo filósofo como igualmente falsas e pelo magistrado como igualmente úteis. E assim a tolerância promovia não só a mútua indulgência como a concórdia religiosa. 75
O único povo que representava uma exceção a essa harmonia era o povo
judeu, que procurou sempre manter sua religião afastada da contaminação dos
pagãos.76
Surge, então, na história humana, em pleno Império Romano, uma nova
religião, onde Deus não era uma figura humana, com ela em nada se equiparava,
era o totalmente Outro. Era o Deus universal, mas não se confundia com a natureza
visível, estava acima e fora dela. Era o único Ser capaz de preencher a necessidade
de adoração inata que há no homem. O temor dos deuses transformou-se em amor
a Deus. A religião não era mais um culto particular e excludente, mas dirigido a
todos77.
Tal conceito de Deus era tão inovador que mesmo entre os discípulos
(judeus), no início da Igreja, houve muita discussão para que se concluísse que,
mesmo sendo o Cristo judeu, ele veio propor uma religião universal, aberta também
aos pagãos78
. Eram todos filhos de um único Pai, o Criador do Universo.
Até então, na concepção dos antigos, a divindade estava sempre ligada a
uma raça79, o Cristianismo, revelado após todos esses progressos do pensamento e
75
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição
abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53. 76
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição
abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 53. 77
Jesus Cristo mandou aos seus discípulos: “Ide e pregai o evangelho a toda a criatura” (Marcos 16,15) 78
São Paulo na Epístola aos Romanos 3, 29: “É porventura Deus somente dos judeus? Não é também dos gentios? Também dos gentios, certamente. 79
Os judeus acreditavam no Deus dos judeus, os atenienses na Palas ateniense, os romanos no Júpiter capitolino. O direito de praticar um culto fora um privilégio. O estrangeiro fora expulso dos templos; o não-judeu não pudera entrar no templo dos judeus; o lacedemônio não tinha usufruído do direito de invocar a Palas ateniense. É justo dizer-se que, nos cinco séculos que precederam o Cristianismo, todo homem que raciocinava se insurgia contra essas mesquinhas regras. A filosofia ensinara tantas vezes, depois de Anaxágoras, que o deus do universo recebia indistintamente as homenagens de todos os homens. A religião de Elêusis admitia iniciados de todas as cidades. Os cultos de Cibele, de Serápis e de alguns outros deuses haviam recebido, indiferentemente os adoradores de todas as nações. Os judeus começaram por admitir o estrangeiro à sua religião, e os
50
das instituições, apresentou à adoração de todos os homens um Deus único, um
Deus universal, um Deus para todos, que não tinha povo eleito e não distinguia nem
raças, nem famílias, nem Estados.80
Para esse Deus não havia mais estrangeiros [...] O templo passou a ficar
aberto a qualquer um que cresse em Deus. O sacerdócio deixou de ser hereditário,
porque a religião já não era um patrimônio. O culto não foi mais mantido em segredo
(a não ser para fugir da perseguição), ao contrário, passou-se a ensinar a religião
até os confins do mundo. O espírito de propaganda substituiu a lei da exclusão.
Esta nova religião surge em pleno Império Romano instaurado por Otávio
que havia pouco (ano 30 a.C.) conquistara a Grécia pela submissão das tropas de
Cleópatra (egípcia de sangue macedônico) e Marco Antonio na batalha naval de
Actium.81
Jesus nasceu no reinado de Otávio, o Augusto e foi morto no de Tibério.
Foi no reinado do terrível Claudio Nero (54 d.C. a 68 d.C.), assassino de
sua esposa e mãe, que o Cristianismo passou a ser perseguido, tendo sido mortos
Pedro e Paulo, dentre inúmeros outros chamados de mártires.
1.4.1 A Grande Novidade do Cristianismo
A grande novidade do Cristianismo era sua proposta de distanciamento
do poder e da autoridade dos governantes, que se tornou conhecida pela célebre
exortação bíblica: “Daí, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”82.
Jesus Cristo ensina que seu reino não é deste mundo, portanto, separa a religião,
que se ocupa das coisas do espírito; do Estado, que se ocupa do poder terreno.
Observa Jean Gaudemet que:
A aparição da Igreja Cristã introduz na vida política romana um dado novo e que o problema que ela criará ficará sendo, daí por diante, o de todos os Estados ocidentais. Nos Estados antigos, a religião era sempre associada ao poder público. As coisas mudam totalmente com o Cristianismo. A amplitude que tomou a nova religião, graças
gregos e os romanos haviam-no recebido em suas cidades (COULANGES, op. cit., p. 306). Assim, passaram a admitir estrangeiros em suas religiões particulares, mas não havia uma religião universal. 80
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, op. cit., p.306.. 81
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 61. 82
Mateus 22, 21.
51
ao proselitismo de seus primeiros adeptos, a organização da Igreja como sociedade, tendo suas regras e suas instituições próprias, a vontade de seus pastores e de seus doutores de fazer repeitar certos princípios de Moral, e, portanto de vida social, colocaram muito depressa o problema fundamental e difícil das relações entre sociedade religiosa e sociedade civil.83
Ora, César, na ocasião era a representação única do poder terreno e do
divino:
César, naquela época, era ainda o sumo pontífice, o chefe e o principal órgão da religião romana, o guarda e o intérprete das crenças; mantinha em suas mãos o culto e o dogma. Em César, sua própria pessoa era sagrada e divina, porque um dos aspectos da política dos imperadores era precisamente o de, ao quererem reaver os atributos da realeza antiga, não terem esquecido o caráter divino que a antiguidade atribuíra aos reis-pontífices e aos sacerdotes-fundadores. Mas eis que Jesus Cristo quebra essa aliança que o paganismo e o império procuravam reatar, e proclama que a religião não é mais o Estado e obedecer a César já não é o mesmo que obedecer a Deus.84
Assim, o Cristianismo, nos primeiros séculos, como se sabe, foi
perseguido pelo Estado e pela religião então constituída, já que, mesmo sem esse
intuito, acabou por retirar do Estado e da Lei Sagrada, uma parcela de seu poder,
instituindo o que se denominou de “dualismo cristão”.
Do importante estudo de Roberto de Almeida Gallego85 se verifica a
seguinte constatação:
O “dualismo cristão” ensejou, desde então, atritos com o Império Romano, que era monista. Neste diapasão, parece possível afirmar que o início das relações entre o Cristianismo e o Estado se dá em 311 d.C., através do Edito de Galério, por meio do qual a religião cristã passou a ser tolerada em todo o Império Romano. Antes de tal ato político, o Cristianismo era uma religião perseguida e sem voz, inexistindo, até então, entre ela e o Império Romano, qualquer tipo de diálogo capaz de ensejar
83
GAUDEMET, Jean. Instituitions de Làntique, Paris, Recuell Sirey, 1967 apud DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva,
2012, p. 83. 84
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1975, p. 307. 85
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
52
tratativas ou acordos. Com o Edito de Galério, o Cristianismo deixa a clandestinidade e arrefecem as perseguições contra os cristãos.
O Imperador Constantino era simpatizante da nova seita, já que sua mãe
Helena era cristã. Ele teria implorado o auxílio divino para vencer Maxêncio, seu
concorrente e unificar o Império, durante a batalha da Ponte Mílvio, quando lhe teria
aparecido no céu uma cruz luminosa com as palavras “In hoc signo vinces” – “Com
este sinal vencerás”. 86
Em 313 a.C. Constantino publica o Edito de Milão, pelo qual a religião
cristã passava a ser reconhecida e, portanto, lícita, isto é, cuja prática era aceita em
condições de igualdade com outras religiões do império.
Nesse período o Império deixara de ser um estado confessional,
passando à neutralidade em relação à religião, deixando de adotar como oficial o
que foi chamado posteriormente de paganismo: “Após derrotar seu concorrente
Maxêncio, Constantino se tornou o único imperador romano e, pelo Edito de Milão
(313), considerou o Cristianismo religião permitida no Império [...]”.87
A sociedade, a partir do Edito de Milão, iniciou um processo de
“cristianização”, no período que ficou conhecido por “era constantina”, dado que não
apenas o povo se convertia, mas os governantes igualmente:
De fato, o Imperador Constantino, assim como seus sucessores, fez editar uma série de leis que culminaram por favorecer a disseminação do Cristianismo por todo o Império Romano, tais como aquelas que apoiaram a afirmação da autoridade episcopal, a liberação, dos clérigos, do serviço militar e a faculdade concedida aos fiéis cristãos de realizarem doações causa mortis à Igreja, bem como – e principalmente - o combate às heresias.88
Constantino não se converteu logo no início de seu governo, mas
somente no ano 337, quando recebeu o batismo, porém como simpatizante da Igreja
e tendo coibido a perseguição aos cristãos, foi o responsável pela expansão da nova
religião, permitido que os cristãos propagassem sua fé por todo o Império.
86
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64. 87
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 64 88
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 45.
53
Algumas décadas após, o Imperador Teodósio, pelo Édito de Tessalônica,
faz da religião cristã a religião oficial do império, tornando-o, portanto, um estado
confessional.
1.5 Igreja e Estado na Idade Média
Denomina-se Idade Média, com boa dose de consenso, o período
compreendido entre a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, e a tomada
de Constantinopla pelos turcos em 1453. 89
Houve uma época em que o período medieval foi considerado como a
“Grande Noite de Dez Séculos”, isto é, um vácuo entre a Antiguidade Clássica e o
Renascimento, onde a humanidade não teria produzido nada de positivo:
A Idade Média carrega até mesmo em seu nome os estigmas de sua desvalorização. Media aetas, medium aevum, em latim, e as expressões equivalentes nas línguas europeias significam a idade do meio, um intervalo que não poderia ser nomeado positivamente, um longo parêntese entre uma Antiguidade prestigiada e uma época nova, enfim, moderna. [...] Quer se trate dos humanistas do século XVI, dos eruditos do século XVII ou dos filósofos do século XVIII, a Idade Média aparece claramente como o resultado de uma construção historiográfica que visa valorizar o presente através de uma ruptura proclamada com o passado próximo (grifo do autor).90
Foi com o Iluminismo que tomou corpo a visão “emocional” da Idade
Média que perdura até os dias de hoje. Foi nessa época, coincidente com a
ascensão da burguesia ao poder, que não apenas se “conduz a uma radical
renúncia das trevas anteriores, mas também leva a tornar incompreensível a época
medieval, o que só faz acentuar sua desvalorização”.91
Seja como for, esse preconceito já vem sendo desfeito, tendo em vista
que autores contemporâneos92 tem reconhecido esse período histórico como um
período de grandes criações artísticas, desenvolvimento da filosofia, bem como de
realizações jurídico-políticas que são de profundo significado para história da
civilização.
89
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 33-34. 90
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 25. 91
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 25. 92
Dos quais Jacques Le Goff e Jérôme Baschet são exemplos.
54
Pois bem, como se viu, os romanos, assim como os gregos, eram um
povo muito refinado e culto. Além disso, Roma se tornou uma grande fortaleza sobre
a qual nenhum povo foi capaz de se sobrepujar.
Vale dizer que Hannah Arendt atribuiu essa força romana à autoridade
derivada da tradição que se ligava à fundação da cidade. Afirma a filósofa que Roma
foi incapaz de, apesar das inúmeras conquistas, fundar novas cidades, mas estendia
sua crença, seus rituais às colônias, alargando o Império sob a mesma tradição.
Eis a razão porque os romanos foram incapazes de repetir a fundação de sua primeira polis na instalação de colônias, mas
conseguiram ampliar a fundação original até que toda a Itália e, por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o mundo inteiro não passasse de um quintal romano93.
Na lição do historiador inglês Adrian Goldsworth:
Os romanos tinham um talento único para absorver os outros e conseguiram convencer as províncias de que serem leais a Roma era mais vantajoso do que a alternativa da resistência. Este elemento de consentimento foi no fundo o que tornou possível o funcionamento do império. Em 180, ninguém conseguiria realmente imaginar, muito menos lembrar, um mundo sem Roma.94
Entretanto, no século V, o povo já tinha perdido o elã que fez de Roma
esta potência. O Império não apenas estava sendo militarmente dominado pelos
bárbaros95, mas já havia se implodido internamente, segundo alguns autores:
Todavia, o declínio de Roma foi a natural e inevitável consequência da grandeza imoderada. A prosperidade fez com que amadurecesse o princípio de decadência; as causas de destruição se multiplicaram com a extensão das conquistas; e, tão logo o tempo ou os acidentes removeram os sustentáculos artificiais, a estupenda estrutura desabou sob seu próprio peso.96
93
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed., São Paulo:
Perspectiva, 2011, p. 162. 94
GOLDSWORTHY, Adrian. O fim do império romano: o lento declínio da superpotência.
Tradução de João Bernardo Paiva Boléo. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 54. 95
Bárbaros era o nome dado pelos romanos para designar os povos germânicos, que eram nômades e não partilhavam seus costumes, cultura, nem a sua organização política. 96
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. Edição
abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 538.
55
Há inúmeras teorias sobre o declínio do império. Alguns autores o
atribuem à decadência moral, como Edward Gibbon, historiador inglês do século
XVIII citado logo acima, outros a algo interno do próprio império ou em virtude das
invasões dos bárbaros germânicos. Há, ainda, quem sustente terem sido as tensões
entre as classes sociais, dado que o povo estava oprimido e tinha que pagar altos
impostos. Outros apontam para falhas militares, decréscimo da população e até
mesmo para as alterações ambientais provenientes do impacto da agricultura e
indústria romanas, e para o colapso econômico97.
Em relação às invasões dos povos germânicos, é importante destacar
que essas foram, na verdade, infiltrações lentas, e nem sempre precedidas de
guerras sanguinárias, já que os talentos artesanais e militares destes homens foram
postos a serviço do Império, que por sua vez, lhes concedia o estatuto de “povo
federado”98.
Para uma visão global destas incursões, o comentário de Felipe Rinaldo
Queiroz de Aquino:
As invasões bárbaras foram uma longa série de migrações desses povos que ocorreu entre os anos 300 a 1000 a partir da Europa Central e que se estendeu sobre todo o Continente. É um fenômeno muito diversificado que transformou a Europa em um mosaico de povos após a queda do Império Romano do ocidente em 476 [...] os motivos dessas migrações dos povos bárbaros em todo o Continente europeu são incertos: talvez como reação aos ataques dos Hunos vindos da China sobre eles, as pressões populacionais ou até mesmo as alterações climáticas. [...] Os historiadores modernos dividem este movimento de migração em duas fases. Na primeira, dos anos 300 a 500, houve uma movimentação de povos germânicos por toda a Europa, chocando-se com as várias regiões ocupadas pelo Império Romano. Foram os Visigodos os primeiros a se enfrentar com o Império. Inicialmente eles foram contratados para ajudar na defesa das fronteiras do Império Romano; mas, mais tarde invadiram a Península Itálica; seguidos pelos Ostrogodos, liderados por Teodorico. Na segunda fase, anos 500 em diante, houve o estabelecimento progressivo dos Eslavos na Europa do leste, começando pela ocupação da região da antiga Checoslováquia. Os diversos grupos bárbaros já conheciam o Império Romano desde o século II e, inclusive alguns transitavam livremente para dentro e fora das fronteiras romanas. Várias tribos germânicas bárbaras se instalaram pacificamente no interior do Império, chegando mesmo a
97
GOLDSWORTHY, Adrian. O fim do império romano: o lento declínio da superpotência.
Tradução de João Bernardo Paiva Boléo. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2010, p. 25. 98
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 50.
56
integrar o exército romano, quer como soldados, quer como mercenários, contribuindo na defesa das fronteiras [...].99
Uma curiosidade sobre a tomada do poder e consequente queda do
Império em 476 é o fato de que tenha se dado com a deposição do imperador
Rômulo Augusto, que foi assim chamado para honrar tanto o fundador de Roma,
como seu primeiro imperador: Augusto; e acabou sendo o que representou a derrota
definitiva da supremacia romana.
Vale dizer que, Odoacro, o primeiro rei bárbaro, restituiu as insígnias
imperiais à Constantinopla, permitindo a manutenção do Império Romano do
Oriente, que experimentou, aliás, grande fortalecimento a partir de então.
O declínio do Império Romano do Ocidente é uma história fascinante em
si, porém muito extensa para ser completamente abordada neste estudo.
Importa saber que foi por ocasião desta decadência dos romanos, que o
ideal cristão foi triunfando na tentativa de subordinar a Cidade dos Homens à Cidade
de Deus, conforme a concepção do Bispo Agostinho de Hipona100.
Hannah Arendt observou que:
O vigor e continuidade extraordinários desse espírito romano – ou a extraordinária solidez do princípio fundador para a criação de organismos políticos – submeteram-se a um teste decisivo, reafirmando-se indiscutivelmente após o declínio do Império romano, quando a herança política e espiritual de Roma passou à Igreja Cristã. Confrontada com essa tarefa mundana bem real, a Igreja tornou-se tão “romana” e adaptou-se tão completamente ao pensamento romano em matéria de política que fez da morte e ressurreição de Cristo a pedra angular de uma nova fundação, erigindo sobre ela uma nova instituição humana de tremenda durabilidade [...] A vitória do espírito romano é com efeito praticamente um milagre; de qualquer modo, ela por si só capacitava a Igreja a “oferecer aos homens, na situação de membros da Igreja, o sentido de cidadania que nem Roma, nem a municipalidade podiam mais proporcionar a eles”.101
99
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,
2012, p. 37-38. 100
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 89. 101
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W.Barbosa; 7ª. Ed.; São Paulo:
Perspectiva, 2011, p. 168.
57
1.5.1 A “Cristianização” dos Bárbaros
Conforme reconheceu Hannah Arendt, a queda do Império Romano do
Ocidente acabou legando à Igreja, o trato da sociedade romana, invadida pelos
bárbaros.
Romanos e germânicos não tinham muito em comum. Os primeiros eram
refinados e cultos e os outros brutos, violentos e contavam com a frieza da vingança
contra os que, por tantos anos, os subjugaram.
De todo modo:
Seria um engano crer que o fim do Império signifique a substituição completa das estruturas sociais e culturais de Roma por um universo importado, próprio dos povos germânicos. Mais do que isso constata-se um processo de convergência e de mistura do qual as elites romanas locais são, sem nenhuma dúvida, os atores principais. [...[ É claro, custa-lhes negociar com esses “bárbaros”, vestidos de peles de animais e de cabelos longos102, que tudo ignoram dos refinamentos da civilização urbana. [...] Pouco a pouco [...] as diferenças entre aristocratas romanos e chefes germânicos atenuam-se [...]. Assim, opera-se a unificação das elites [...]. Essa fusão cultural romano-germânica é um dos traços fundamentais da Alta
Idade Média.103
Em que pese o Império ter sido destruído, a Igreja se manteve em pé, e
se entregou à pacificação dos bárbaros germânicos:
Os visigodos partilhavam entre si as províncias da Península Itálica, enquanto os francos se estabeleciam ao sul do Reno, e os borguinhões ao norte desse grande rio. Alanos e suevos devastavam a Península Ibérica e anglo-saxões, do outro lado do Canal da
Mancha, ocupavam a Grã-Bretanha (Inglaterra).104
Não obstante os interesses socioeconômicos terem dado início a essa
inculturação dos povos, foi a atuação da Igreja na conversão desses homens
chamados bárbaros, cristianizando-os, que os fez abandonar costumes cruéis e ir
adquirindo noções de bem, justiça e direito.
102
Símbolo de poder e força. 103
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 53. 104
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 90.
58
A Igreja, então, intervém para canalizar energia guerreira desses povos
para uma causa nobre, isto é, construir uma nova Civilização, longe dos costumes já
decaídos dos romanos do século V e das atrocidades que faziam parte da cultura
desses povos.
São Bento, no reino de Nápoles, São Bonifácio na Germânia, Santo
Agostinho e São Patrício na Inglaterra e na Irlanda encabeçaram a conversão de
inúmeros indivíduos destes povos brutos e violentos a quem foram levados muitos
benefícios como educação das crianças, construção de casas de pedra ao invés de
choupanas e especialmente a deixar a prática das “ordálias”, insistentemente
condenada pelos Papas, onde as contendas jurídicas eram decididas por
combate105.
Os bispos adquiriram, por tal atuação, grande respeito desses povos e,
por conseguinte, se tornaram autoridade diante deles.
Importante lembrar que, outra instituição surgida nos primeiros séculos
entre os cristãos mais piedosos, com intuito de estabelecer um estilo de vida mais
austero e liberto dos pecados da sociedade, teve forte influência na cristianização
dos campesinos, qual seja o monaquismo, pois até então a religião era
essencialmente urbana106.
O vocábulo “monaquismo” é originado do grego “moncos”, que significa o
que está só. A vida cristã monástica tinha a intenção de ser um vida retirada, de
silêncio e oração. Esses primeiros cristãos retirados eram conhecidos como
eremitas. Contudo, antes dos cristãos houve monges em outros lugares, de outras
filosofias e religiões, como os essênios na Palestina.
Na Igreja primitiva, os cristãos tinham como modelo deste tipo de vida,
Santo Antão (251-365), que é tido como o patriarca do monaquismo. Ele era
proveniente de família aristocrática, mas deixou tudo e retirou-se para o deserto,
quando conheceu o evangelho de Cristo.
Na vida eremítica os monges viviam em silêncio trabalhando na
confecção de cordas, cestas, esteiras e dedicando muito tempo à oração; os jovens
iam consultar os anciãos a respeito de seu tipo de ascese. Com o decorrer do
105
Ordália ou ordálio eram meio de obter prova em juízo, por meio de testes de resistência (combate, fogueira, água fervente), a fim de provar-se a inocência ou a culpa do acusado; também se chamava juízo de Deus. 106
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 65-67.
59
tempo, a vida eremítica foi sendo substituída pela vida retirada em comunidade, ou
cenobítica, que era normalmente regida por uma regra para controlar os “exageros”.
Assim, “o primeiro mosteiro data de 320; fundou-o São Pacônio de
Tabenisi, a 575 km ao sul da atual cidade do Cairo”.
Esses primeiros monges ficaram conhecidos como os “Padres dos
Deserto”, que deixaram escritos até hoje estudados.107
São Bento de Núrsia († 547), de nobre família rural, é considerado o
“patricarca dos monges ocidentais”. Escreveu sua regra inspirado pelo senso de
equilíbrio e discrição dos romanos:
A regra de São Bento se tornou um marco na salvaguarda e organização que a Igreja assumiu nos tempos bárbaros; e por isso, atraiu a muitos, até hoje. [...] ensina em sua Regra que o verdadeiro monge devia ser: “Não soberbo, não violento, não comilão, não dorminhoco, não preguiçoso, não murmurador, não detrator...mas casto, manso, zeloso, humilde, obediente” (2º Cap. da Regra). O “logotipo” monástico continha a cruz e o arado, e tornou-se a uma nova maneira (sic) de viver a vida cristã – oração e trabalho – para edificar espiritual e materialmente a nova sociedade, sobre as ruínas do mundo romano108 .
Os mosteiros eram oásis de paz e ordem durante as turbulentas invasões
bárbaras. Vários grupos de origem bárbara se interessaram pela vida monástica,
pois eram sempre recebidos como se fossem o próprio Cristo e assim foram sendo
evangelizados e civilizados, sendo este fato, em grande parte, responsável pela
reconstrução do Ocidente.109
Outra maneira de “cristianizar” os bárbaros foi a instituição da Cavalaria:
Num momento em que realmente havia situações de opressão, a Cavalaria surgiu como força de fiscalização social e, ao mesmo tempo, como tentativa de restabelecer o equilíbrio perdido a partir da queda do Império Romano, quando passou a não haver praticamente nenhuma autoridade centralizadora. Esse foi o momento histórico em
que veio à luz a Cavalaria.110
107
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,
2012, p. 66-67. 108
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,
2012, p. 70-71. 109
AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Uma história que não é contada; 9ª. Ed., Lorena: Cléofas,
2012, p. 72. 110
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 93.
60
Apesar de os germânicos já se reunirem em cavalaria, após a influência
cristã o costume ganhou novo sentido. Por meio desta corporação a Igreja ensinou
aos povos bárbaros a respeitar o direito ao invés de decidir as questões por meio da
força.
Com efeito, na Cavalaria filhos de nobres e plebeus se tornavam iguais,
ao menos no ideal que o grupo queria alcançar. Lá dentro já não importava mais
quem era proveniente da aristocracia e quem era plebeu: todos se consideravam
irmãos. Surgia aí o sentido de fraternidade111.
No século IV, em sua obra “A Cidade de Deus” Santo Agostinho112
procurou dar uma resposta ao caos instalado na sociedade ocidental da época
difundindo a fé no Poder e Onisciência de Deus, além da necessidade de submeter
a Cidade dos Homens (mundo terreno) à Cidade de Deus (cuja autoridade fora dada
no mundo à Igreja).
Destarte, a mensagem de uma vida futura, post mortem, bem como de
uma moral fundada nas virtudes e no bem comum, foram responsáveis por mudar a
concepção de vida do povo à época.
1.5.2 Os Sacro-Impérios Romanos: Franco e Germânico
Com o passar do tempo a Igreja vai tomando, então, como meta,
estabelecer o Reino de Deus sobre a terra, o que significava associar-se ao poder
terreno e submetê-lo ao poder de Deus, a fim de colocá-lo a serviço desta “missão”.
É o que se denominou de hierocracia, ou seja, onde o poder religioso se
impõe ao poder temporal, controlando-o, pois concebe a ideia de que o poder
espiritual na terra é superior ao poder exclusivamente terreno.113
Os francos foram os que primeiro abraçaram o Cristianismo, por meio de
seu rei Clóvis, no final do século V:
111
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. p. 93. 112
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. A Cidade de Deus: (contra os pagãos). Parte II; Tradução de Oscar Paes Leme, 2ª. Ed., Petrópolis: Vozes e São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1990, p. 171-179. 113 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado
Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 290.
61
[...] o monge São Remígio de há muito procurava converter o rei dos francos, Clóvis, cuja esposa, Clotilde, era cristã. Na batalha de Tolbiac, contra os borguinhões, que disputavam o Reno, Clóvis prometeu tornar-se cristão se vencesse os inimigos. Vitorioso, cumpriu sua palavra, fazendo-se instruir e batizar por São Remígio, que então lhe disse: “Adora o que queimaste e queima o que adoraste”. Com ele se fizeram batizar todos os seus súditos e, por isso, a nação dos francos ou França recebeu o título de “filha primogênita da Igreja”. No local do batismo se ergueu a célebre catedral de Notre Dame de Reims, onde foram sagrados todos os reis da França.114
Surgia, assim, o Sacro Império Romano Franco, ao qual o rei visigodo da
Espanha, Recaredo, se une em 587. A tentativa da Igreja era de manter sua
autoridade, sagrando os reis, que somente assim se tornariam legitimamente
governantes do Império.
A legitimidade do governo temporal era conferida pela submissão ao
governo de Deus, representado pela Igreja.
No ano de 751, Childerico III, o último rei da descendência de Clóvis, é
deposto por Pepino, o Breve, que mantém relações com a Igreja, e é coroado pelo
Papa em 754. Dois anos antes, os dois haviam firmado uma aliança pela qual
Pepino havia sido reconhecido como rei dos francos e em contrapartida estabelecia
o Estado Pontifício, cuja autonomia de governo era do bispo.
Isto ocorreu em virtude das péssimas consequências provenientes do
domínio exercido até então pelos imperadores sobre a Igreja especialmente na
questão das chamadas “investiduras leigas”, por meio das quais o imperador era
quem nomeava bispos e papas. Houve época em que os imperadores chegaram a
nomear doze papas e destituir cinco.
Eram condutas, posteriormente denominadas de regalismo115 e
cesaropapismo,116 que visavam a utilização da religião com fins políticos o que
114
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 90. 115
Atitude de ingerência do chefe de Estado em questões internas da Igreja. 116
O cesaropapismo representa uma tentativa de restauração do sistema pré-cristão que unificava os dois poderes na pessoa do imperador. A tendência iniciou-se com Constantino, que chegou a dizer “tudo o que eu quero deve considerar-se um cânon” (ou lei eclesiástica); [...] o nobre ou o rei que construía uma igreja ou mosteiro no seu território, julgava-se possuidor de certos direitos sobre a direção da Igreja e a nomeação ou destituição do sacerdote, ou do bispo que nela exercia as funções eclesiásticas. Portanto, a consagração episcopal converteu-se, por vezes, num instrumento político ou administrativo em benefício do rei ou do nobre, deturpando-se, assim, a essência dos ofícios eclesiásticos (LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado – 2ª. Ed. atualizada,
Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 65-66)
62
resultou em práticas detestáveis como a simonia (venda de cargos eclesiásticos) e o
nicolaísmo (clérigos casados ou que viviam em concubinato).
Com Pepino, então, se reconheceu que o Estado não poderia determinar
questões internas da Igreja, que passou a ser reconhecida como um Estado
independente, o Estado Pontifício.
Poder e autoridade passaram a caminhar lado a lado na construção do
Sacro Império, inaugurando-se com Carlos Magno, herdeiro do trono do pai, Pepino,
um reinado longo (768-814), de conquistas militares e conversões, até culminar com
a conquista da Germânia e sua integração ao Império, posteriormente denominado
Sacro Império Romano Germânico.
Carlos Magno, no ano 800, recebe a coroa imperial do Papa Leão III que
intencionava fortalecer o imperador cristão, já que o oriente se enfraquecia diante da
questão iconoclasta117 e o avanço dos muçulmanos. Ele foi responsável por
defender a cristandade das invasões de eslavos e avaros, avançando, com isto para
a Península Ibérica.
Com efeito, Carlos Magno consegue reunificar o Império Romano do
Ocidente e obter tal poder somente comparável ao ápice da Roma Imperial Antiga.
Esse período foi reconhecido como o “renascimento carolíngio”, pois ali
se desenvolveu a escrita: “é aos clérigos copistas da Alta Idade Média e a seu
trabalho obstinado, em um meio, não obstante, pouco favorável, que devemos a
conservação do essencial da literatura latina antiga”.118
A gramática e a retórica se tornaram disciplinas mestras do saber
carolíngio, que teve sua base na propagação do ensino do latim.Houve o
desenvolvimento de técnicas que permitira a expansão da liturgia, bem como o
renascimento artístico com a inovação da arquitetura e a construção de grandes
catedrais.
1.5.3 O Feudalismo, a Igreja e o Imperador: Sistemas de Domínio
Como se viu, segundo o pensamento medieval, Papa e Imperador
117
Movimento de caráter político-religioso que pregava a destruição de imagens e que destruiu inúmeras obras de arte da época. 118
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 75.
63
deveriam colaborar entre si para a plena instauração da cidade de Deus na cidade
dos homens.
Entretanto, os interesses de poder e mando se sobrepujaram a quaisquer
outros interesses, resultando não uma relação de simbiose, mas de parasitismo
entre o poder do Estado e a autoridade da Igreja, que acabou sendo usada com
intuito de domínio e manipulação do povo, seja pelos que nela ingressavam, seja
pelos reis que lhe prometiam obediência.
Houve por esta razão muitos desvios de conduta de clérigos imorais,
venda de indulgências e práticas que em nada lembravam a Cidade de Deus de
Agostinho.
A classe dominante no Ocidente medieval, a aristocracia, vai ganhando
poder. Esta classe social é caracterizada pela conjunção de três atividades, quais
seja, o comando dos homens, o poder sobre a terra e a atividade guerreira.
Tornaram-se os senhores feudais:
[..] o insucesso da tentativa carolíngea livra a Igreja Romana de uma associação como irmã gêmea do Império, que, ao contrário, perdurará em Bizâncio. No século X, a disseminação do poder de comando faz da Igreja a única instituição capaz de conclamar à ordem pública e à “paz de Deus”. Ao mesmo tempo, o processo de encelulamento e o estabelecimento dos senhorios obrigam-na a uma viva reação para evitar tornar-se prisioneira da malha senhorial e a fim de, ao contrário, ser sua principal ordenadora.119
Com isto, desde final do século IX o poder imperial começa a se
enfraquecer, e a desenvolver-se o sistema de feudos:
O século X é, assim, o tempo dos “principados”, grandes regiões constituídas em condados ou ducados, cujo senhor confunde aquilo que concerne a seu próprio poder, militar e fundiário, com a autoridade pública, que no passado era conferida pelo imperador ou pelo rei.[...] Esses senhores feudais encampavam o exercício da justiça e o direito de construir castelos, antes prerrogativa da autoridade real.120
A Cavalaria torna-se porta de entrada da aristocracia mesmo aos que não
detinham nenhum título de nobreza, apenas pela assunção dos ideais do grupo, os
119
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184. 120
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 126.
64
quais são fortemente influenciados pela Igreja. Os castelos são os pontos de fixação
em torno dos quais se define o poder aristocrático. Seu fundamento é o código de
honra, que impõe o dever de vingança, donde resultou grande violência entre os
feudos.
Note-se que, bem ao contrário do que é propagado “aos quatro ventos”,
os reis, nesse período, detém um poder simbolicamente prestigiado pela sagração
da Igreja, mas que, de modo algum significava poder dado por Deus:
Entretanto, diferentemente do basileus bizantino, que tem o estatuto de um sacerdote, os clérigos ocidentais apressam-se em ressaltar que o rei permanece um laico e recusam com veemência toda evocação explícita dos reis-sacerdotes bíblicos [...] e os clérigos não se privam de insistir sobre as obrigações que incumbem ao rei em virtude da consagração. [...] o rito põe a realeza em uma forte dependência simbólica em relação ao clero e seus representantes eclesiásticos (grifo do autor).121
Os feudos se tornaram pequenos Estados, nos quais a Igreja se fez
presente especialmente por meio da Cavalaria, onde, através dos rituais e ética
cavalheiresca, introduziam-se valores cristãos.
Esta época se caracterizou pela descentralização do poder entre os
senhores feudais e a presença da autoridade da Igreja por meio dos bispos locais,
onde o domínio sobre os “bens terrenos” era representado pelos reis aos quais os
senhores feudais deveriam se submeter: “Quem resolvia as questões judiciais dentro
de um feudo era o senhor feudal, mas de sua decisão cabia recurso à autoridade
real, em segunda instância”122.
Vale dizer com José Pedro Galvão de Souza:
A Igreja salvara o depósito de cultura dos tempos clássicos, recolhidos nos conventos e, assim, preservado da destruição pelos bárbaros, e por outro lado, domava o furor bélico dos germanos com instituições adequadas a este fim, como a cavalaria e a trégua de Deus. Passava-se a considerar todos os homens como filhos do mesmo Deus, remidos pelo sangue de Cristo, e assim a escravidão desaparecia aos poucos, substituída pela servidão da gleba, e a todos eram reconhecidos os direitos naturais da pessoa humana.123
121
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 184. 122
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª Ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 131. 123
SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p.
142.
65
O regime feudal se configurava como uma hierarquia de pessoas e de
terras sob o aspecto do direito privado, mas no campo do direito público o que o
distinguia era a divisão da soberania, que deixa de pertencer ao imperador e passa
a pertencer a cada senhor.124
Nesse cenário, havia uma classe excluída do sistema que introduzia o
clero, como classe superior e responsável pelo aspecto religioso, em seguida a
aristocracia guerreira e, por fim, o povo camponês, trabalhador.
Tal classe excluída da sociedade da época era a burguesia, sedenta de
liberdade, caracterizada por mercadores e mestres de ofício. Começam a formar-se
as comunas urbanas numa associação entre burguesia e aristocracia, que ora é
governado por uma, ora por outra.125
A partir do ano 1050 se inicia um novo tempo para o cristianismo
culminando com a ascensão ao papado de Inocêncio III (1198-1216), que conseguiu
orientar a Igreja segundo a fé cristã e restabelecer a paz.
Todavia, “Durante a Alta Idade Média o mundo cristão em seu conjunto
está na defensiva, amputado e sob ataque. O Império Islâmico dispõe de uma força
esmagadora comparada à de Bizâncio126”.
A ideia de uma reconquista dos territórios dominados pelo Islã ganha
corpo: “os meados do século XI aparecem como o momento decisivo em que se
engaja a contraofensiva ocidental para fazer recuar o Islã”.
Dois séculos antes se inicia o movimento em direção à reconquista do
Oriente especialmente Jerusalém e os lugares santos, por meio das Cruzadas. Em
1098 Antioquia é tomada, no ano seguinte, Jerusalém:
O sucesso da cristandade latina é brilhante. Mas a defesa dos territórios conquistados, em um contexto hostil, é difícil, apesar da criação de ordens específicas – Templários, Hospitalários e Cavaleiros Teutônicos – que, encarregados no início de acolher e proteger os peregrinos, logo adquirem papel propriamente militar. A implantação latina mantém-se sólida somente por um século. [...] Em 1187, Saladino do Egito retoma Jerusalém. O imperador Frederico
124
SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p.
143. 125
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 147-148. 126
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 90
66
Barba-Ruiva se lança na cruzada, obtém a vitória de Iconium, mas morre afogado em 1190. Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto ganham São João de Acre e assinam um armistício com Saladino. Durante o século XIII, os ocidentais não controlam mais do que algumas cidades costeiras. 127
As cruzadas se mostraram um malogro com o decorrer do tempo e
reafirmaram o cisma entre a ortodoxia do oriente e a cristandade romana ocorrido
em 1054, em virtude de questões doutrinárias.
Luta acirrada ocorreu entre o Imperador Henrique IV e o Papa Gregório
VII, monge da abadia de Cluny, eleito em 974 pelo Colégio dos Cardeais128 para
administrar a Igreja. O referido Papa iniciou uma série de mudanças para alcançar a
independência da Igreja que na época sofria ingerência do Imperador na nomeação
dos clérigos. Houve longo período de discórdia que incluiu a excomunhão do
Imperador e o exílio do Papa.
Passadas algumas décadas, em 1122, Henrique V entrou em acordo com
o Papa Calisto II e foi firmada a “Concordata de Worms” pela qual há uma
separação dos poderes do bispo entre aqueles temporais, que passam ao imperador
e aqueles espirituais, cuja investidura só poderia ser realizada pelo próprio bispo. É
novamente a tentativa da Igreja de retomar o poder de nomeação dos próprios
bispos. Sobre a Concordata de Worms atesta Baschet 129que:
Distinguir-se-ão os poderes temporais do bispo (temporalia) e seus poderes espirituais (spiritualia), de modo que o imperador pode transmitir os primeiros em um ritual de investidura pelo cetro, enquanto os últimos são objetos de uma investidura pelo anel e pelo cajado, que só pode ser realizada por outros clérigos. Sobretudo o princípio da libertas ecclesiae conduz a reafirmar que incumbe ao cabido da catedral eleger seu bispo, o tem como efeito retirar dos laicos (imperador, rei ou conde) o controle do recrutamento episcopal. [...] Essa modificação no recrutamento dos bispos revela-se, então, propícia à defesa dos interesses da Igreja e a uma separação (e uma concorrência) mais marcadas entre o alto clero e a aristocracia laica, o que contrasta com a osmose que prevalecia anteriormente. (grifo do autor)
127
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 93. 128
Os clérigos da Abadia de Cluny, na França começaram uma manifestação para exigir autonomia à Igreja, que queria tomar o poder de escolha de seus membros para si. Em 1058 foi criado o Colégio dos Cardeais. O papa Nicolau II, seu criador, tinha como prioridade dar aos clérigos o direito soberano de escolha dos líderes religiosos. E então foi eleito Gregório VII como papa. 129
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 191.
67
A partir de 1190 impõe-se na Igreja uma estabilidade com a
reorganização da cúria e a afirmação do poder do Papa em detrimento do poder
local dos bispos. Esse período se caracterizou por uma marcada separação entre
clero e leigos, consolidando-se o termo Igreja para o clero e cristandade para o
povo.130
Nessa mesma época nasce Francisco (1181 ou 1182), vindo de família
burguesa que após uma experiência mística renuncia à herança de seus pais,
inclusive à roupa que vestia, e abraça as exigências de uma vida na pobreza radical.
Sua mensagem é inovadora, pois anuncia a simplicidade e a penitência.
Continuando sempre leigo provoca uma mudança de comportamento que atraiu
inúmeros seguidores. Jamais atacou diretamente a autoridade e o modus vivendi
dos clérigos. Foi considerado um reformista dentro da própria Igreja.
Nisto lhe seguiu Catarina de Sena e, em seguida, Domingos de Gusmão.
Este, ao contrário de Francisco, optou pela carreira eclesiástica tradicional, ainda
que sua ordem fosse mendicante, como a do poverello. Dedicou-se à pregação e ao
combate das heresias, daí seus sucessores terem assumido as tarefas inquisitoriais:
A despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as aproxima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práticas bastante semelhantes [...] Os frades pregadores, caracterizados pela sua vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade), vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido) e reconhecidos, como Francisco pela simples corda com um nó atada à sua cintura, são talvez 2.500, por volta de 1250.131
A partir do século XII a cidade é sem dúvida um mundo novo. De início é
hostilizada pela Igreja por ser lugar de pecados e tentações, porém alguns
importantes setores abrem-se ao fenômeno urbano e colaboram para o
estabelecimento de uma religião cívica.
130
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196. 131
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 214.
68
É o que ocorreu com tais ordens mendicantes. Estes se diferenciam dos
monges, pois desejam manter-se em meio aos fiéis pregando e dando exemplo,
instalando-se no coração das cidades.
Desenvolvem-se nessa mesma época, no seio da Igreja, as
universidades, que, posteriormente, assumem a independência por meio de seus
estatutos. Destacam-se dentre elas Bologna, Oxford, Cambridge, Montpellier,
Salamanca, Nápoles e Pádua.132 A escolástica é seu método por excelência para
buscar associar a fé e o intelecto, ampliando os métodos de raciocínio e
argumentação.
Nesse contexto surge Tomás de Aquino, dentre outros, que tinham como
objetivo “sintetizar e esclarecer, pela força do raciocínio, o conjunto dos problemas
relativos a Deus, ao homem, ao universo e à organização da sociedade”.133
Por fim, é necessário concluir que a Igreja é, na Idade Média, a própria
organização social e sua dirigente. Estão absolutamente unidas nessa mesma
instituição a questão social e a religiosa:
A estruturação da cristandade, pensada como uma comunidade homogênea sob direção de uma instituição eclesial reforçada, produz, com efeito, um duplo movimento, de integração para os fiéis ajustados e de exclusão para os não cristãos. 134
Assim, a Idade Média se caracterizou pela presença da Igreja na
sociedade tornando-a teocêntrica, com a concepção do papa como a representação
do poder divino na terra.
Ao longo da primeira metade do século XIV a Idade Média se encontra
num momento de muitas dificuldades: fome geral, peste, guerra, cisma.
Estima-se que um terço da população do Ocidente morreu em razão da
peste bubônica.135
A Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França eclodiu quando o rei
inglês Eduardo III quis o trono francês após a morte de todos os filhos de Filipe, o
132
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 215. 133
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 216. 134
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 243. 135
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 250.
69
Belo, sem deixar descendentes. A destruição foi muito mais devastadora do que
guerras anteriores, pois haviam sido desenvolvidas novas técnicas da arte militar
como arcos e bestas.
Acresça-se a isto o advento do grande Cisma que dividiu a Igreja Romana
entre 1378 e 1417 em virtude da eleição de dois papas ao mesmo tempo estando
um em Roma (Urbano VI) e outro em Avignon onde o papa Clemente V, em 1309,
se instalou com a cúria numa espécie de cativeiro. A situação se resolve somente
mediante o Concílio de Constança (1414-1418) com a eleição de novo papa,
Martinho V: “O pessimismo invade os espíritos e o sentimento de viver em um
mundo que agoniza, que chega ao seu fim, se faz mais presente do que nunca”.136
Segundo a análise de Baschet atribui-se ao cristianismo a capacidade de
separar o humano do divino, onde Deus não se confunde com a natureza ou o
homem, mas ao qual se pode chegar pela transcendência e
Enquanto as religiões anteriores se propunham a reger o aqui embaixo, o investimento no além, que caracteriza a cristandade tende, a despeito dos efeitos contrários induzidos pela institucionalização da Igreja, a liberar parcialmente o mundo do peso da religião e a preparar a aceitação e o amor às realidades terrestres. Assim, à medida que ele assume a dinâmica da transcendência – à medida que, se quisermos, Deus se retira do mundo – o cristianismo amplia a possibilidade de uma ampliação do real e de um conhecimento racional dele. Com o tempo, a dinâmica da transcendência produz uma ruptura entre o ser e o dever ser, que torna capaz de se por ao mundo, para afrontá-lo e transformá-lo [...] e a modernidade resultaria não de seu enfraquecimento, mas da radicalização de suas potencialidades.137
Essa forma de adotar o cristianismo no Ocidente não ocorreu em
Bizâncio, onde Igreja, separada de Roma desde 1054, e Império mantiveram uma
relação de sobreposição e de submissão à tradição que acaba por intimidar a
dinâmica teológica.
Neste sentido, Jérôme Baschet afirma que, no geral, “a Cristandade
medieval não tomou exatamente a forma do que se tem o hábito de chamar de uma
teocracia, na qual a Igreja deteria efetivamente a soberania dos negócios
temporais”, mas no seu sentido mais combativo pretendia mais manter a “monarquia
136
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 251-252. 137
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 533.
70
pontifícia” sobre todos os outros poderes do Ocidente, fazendo-se reconhecer o seu
líder como guia da cristandade.138
Em sua visão a Igreja era a própria forma da sociedade medieval feudal,
sua principal força motriz:
De fato, o Ocidente é um corpo social unificado principalmente pela Igreja. É devido a ela, em primeiro lugar, que o feudalismo não é caracterizado unicamente pela força da inscrição local e do vínculo ao solo, mas pela articulação desse poderoso localismo com uma ampla unidade tendendo ao universalismo. Immanuel Wallerstein nomeava “civilização” este tipo de coesão, mas é possível lhe dar também seu nome próprio: cristandade.139
E disto resulta
a um só tempo, uma notável coesão interna, uma acumulação de forças materiais, um elã criativo e uma força de expansão para o exterior [...] o feudalismo cria uma poderosa dinâmica que conduz ao desenvolvimento interno e à expansão externa, mas sem os custos e os fardos que seriam impostos por uma unificação imperial.140
Infelizmente, essa ideologia universalista acabou por desembocar num
acesso de intolerância e exclusão de outras religiões, no intuito de implantação dos
valores cristãos, certamente em razão do ânimo bélico da sociedade da época.
No século XV há uma recuperação da Europa contra a peste e as guerras
e ocorre um grande aumento demográfico, quase igualado ao período anterior à
peste. Há transformações na economia com o surgimento de uma elite camponesa e
o crescimento do comércio, e a invenção da imprensa e de muitos outros
instrumentos, inovações tecnológicas, sem mencionar as Caravelas que permitiram
as aventuras pelo Atlântico.
Porém, a baixa da guerra e da peste deixou acéfalos os principais feudos
da Europa, fazendo com que os reis, se aproveitando da fragilidade momentânea e,
com o apoio da burguesia, se apoderassem de todos os reinos particulares para
realizar a unificação do Estado, sob seu poder absoluto: “No século XVI, a
138
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 196. 139
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539. 140
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 539.
71
centralização já se havia realizado quase que inteiramente em países como
Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Alemanha”.141
Pois bem, o desenvolvimento ocorrido nesse ínterim se deu na Idade
Média e não no Renascimento como muitos passaram a crer. 142
Por tudo isto, se pode afirmar que a “ruptura que leva à concepção
moderna da história não se produz antes da segunda metade do século XVIII”. 143
141
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 139. 142
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 262. 143
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 547.
72
2 SECULARIZAÇÃO: SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA
As cidades antigas da Grécia e Roma foram fundadas sobre a religião e
exerciam enorme força sobre seus membros, que se sentiam moralmente obrigados
a seguir tais leis:
[...] o cidadão estava em tudo submetido à cidade, sem reserva alguma: pertencia-lhe inteiramente. [...] A religião que dera origem ao Estado, e o Estado que sustentava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; esses dois poderes associados e vinculados constituíam um poder quase sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente
submetidos.144
Não fazia sentido falar em escolhas individuais, a pessoa humana não
tinha grande valor diante desta autoridade suprema da cidade, isto é, a pátria ou
Estado, daí adveio a máxima de que a salvação do Estado é a lei suprema.
Pensava-se que o direito, a justiça e a moral, tudo devia ceder perante o interesse
da pátria.
Na era seguinte verifica-se que, a ideia inicial do Cristianismo referente ao
dualismo do poder acabou se dissolvendo na prática desde que a Igreja passou a
servir de degrau político a quem almejava o poder.
Assim, Igreja e Estado se mesclavam e, como se viu, isto foi desfavorável
tanto para um quanto para o outro, pois não apenas resultava na autoridade da
Igreja sobre o poder do Estado, como na ingerência dos reis sobre questões
próprias da Igreja, que acabava servindo a fins políticos, desvirtuando-se do
caminho originário.
E, visto isto, percebe-se que a antiga concepção cristã de que há poderes
distintos para o comando do mundo sensível e o do mundo espiritual, acabou se
dissolvendo, acabando por gerar um “Estado-Igreja” ou “Igreja-Estado”, o que,
repita-se, não teve consequências positivas nem para um nem para outro e muito
menos para o povo.
De todo modo, ficou demonstrado que a confusão entre sacerdócio e
poder nada tem de surpreendente. Não foi encetada pela Igreja Cristã, encontramo-
144
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 182.
73
la na origem de quase todas as sociedades, seja porque na infância dos povos só a
religião pode obter a obediência, seja porque a nossa natureza sente a necessidade
de não se submeter a outra autoridade que não seja a concepção moral 145. Os
homens temeram antes os seus deuses do que a lei que se lhes impôs.
2.1 Os Tempos Modernos e o Advento do Humanismo Antropocêntrico
Chama-se Idade Moderna a era decorrida entre a tomada de
Constantinopla pelos turcos em 1453 e a Revolução Francesa de 1789. E foi iniciada
pelo movimento do Renascimento que estreou a ruptura do Estado com a Igreja e o
retorno à cultura greco-romana.
Neste sentido, o Renascimento foi um movimento que representou a
rejeição do espírito teocêntrico da Idade Média, totalmente imbricado pela Igreja,
pregando um retorno ao ideal de vida da Grécia e Roma antigas: “[...] os
renascentistas concebiam a arte como os gregos e romanos da Era Clássica,
portanto, de um modo naturalista, muito diferente dos medievais, que tudo
sobrenaturalizavam.”146
Nesse período surge na literatura a Divina Comédia de Dante Alighieri,
que busca uma fusão do espírito religioso medieval com o greco-romano. Ainda,
Francesco Petrarca que se afasta mais do espírito medieval para glorificar o amor
ideal, aproximando-se, assim, da filosofia platônica. Mais próximo ao espírito
renascentista e sem quase traços de medievalismo está Giovanni Boccacio em seu
Decameron.147
Nos corredores dos palácios reais e papais as esculturas de Michelangelo
faziam reviver a Roma antiga. É a época das obras de Leonardo e Rafael na Itália,
de Camões e Miguel de Cervantes na Península Ibérica, de Shakespeare no norte
da Europa.148
145
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 141. 146
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 133. 147
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 134. 148
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 134.
74
Entretanto, o historiador Jacques Le Goff afirma que a ruptura pretendida
pelos renascentistas não é tão verdadeira assim. O que de fato ocorreu foi uma
continuidade entre o desenvolvimento da Idade Média Central e o Renascimento:
“Ao contrário, o Renascimento é a marca de uma Idade Média prolongada e a
modernidade dos Tempos Modernos dever ser 'guardada entre as velharias'”.149
No mesmo sentido a observação de De Cicco sobre a suposta ruptura do
Renascimento com o pensamento medieval:
Um exame mais profundo nos mostra que não houve mudança fundamental na concepção do homem e do universo, ao menos no que se refere aos padrões de pensamento do século XV. O que houve – e isto não se pode negar – foi uma nova voga de antropocentrismo; mas o peso da civilização e cultura medievais ainda continuava a se fazer sentir, mesmo em países poderosamente influenciados pela Reforma Protestante. Foi o caso da Inglaterra, que, com Henrique VIII, adotou a forma de “Igreja Nacional”[...]150
A era moderna pode ser considerada como uma época de revolução
social, onde a principal articulação foi no sentido da substituição do modo de
produção feudal pelo modo de produção capitalista, dado o fortalecimento do
comércio e a decadência da produção agrícola.
Por outro lado, o Estado absolutista, concentrador de todo o poder, fosse
civil ou religioso, foi a primeira modalidade do Estado Moderno, que posteriormente
sofreu as revoluções francesa e inglesa, derrubando os respectivos reis.
A Era Moderna se caracteriza sobretudo pela transformação na
mentalidade dos homens e o surgimento de uma nova visão de mundo: O
humanismo antropocêntrico, em que o homem ocupa a posição central de todas as
coisas, o que conduziu a um novo modo de vida e novas instituições.
No entanto, no início o Renascimento não representou a ruptura com o
cristianismo e a Igreja e sim uma composição entre os valores da antiguidade
clássica e aqueles do cristianismo do medievo:
Este renascimento teocêntrico (que poderia ter como grandes representantes Tomás Morus e Luís Vives) constituiu uma culminação do pensamento tomista e ao mesmo tempo uma
149
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 531. 150
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 137.
75
superação dos aspectos primitivos e arcaicos da cultura e ordem social medievais: ampliam-se os campos visuais da ciência e da liberdade humana, aos quais se deve, em grande medida, a riqueza cultural dos tempos modernos.151
Não obstante, outra corrente mais “ruidosa”, que tem em Maquiavel e
Boccacio sua cabal expressão, efetivamente trasladou o centro da cultura e da
sociedade de Deus para o homem. O homem se converte na medida de todas as
coisas e valores. Daí o humanismo se tornar antropocêntrico.
O Humanismo do Renascimento preparou o campo para a ruptura formal
com a Igreja, contribuindo com a Reforma Protestante, que se mostrou apenas a
“gota d´água” de um crescente movimento contrário à tradição medieval católica
iniciado com a heresia dos cátaros152 no sul da França.
2.1.1 Reforma e Contrarreforma
Martinho Lutero teria ingressado para o seminário, em 1505, por medo de
morrer, pois viu um amigo a seu lado cair fulminado por um raio no meio de uma
tempestade. Tinha um temperamento enervado e ao mesmo tempo assolavam-no
terríveis crises de escrúpulos, isto é, sentimento de indignidade. 153
O padre Martinho Lutero tornou-se vigário do distrito de Wittenberg na
Alemanha.
Sobre Marinho Lutero atualmente estão superadas as teorias de
perversão moral e deformação psicológica ou mesmo de que seria um mero
professor assoberbado de trabalho que não encontrava mais tempo para rezar a
missa e recitar o breviário.154
Reconhece-se que:
Lutero teve uma experiência pessoal de Deus, um autêntico sentido do pecado e da própria nulidade, da qual se reergueria pelo apego a
151
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 80. 152
O termo deriva do grego “puro” As primeiras menções a essa heresia datam dos anos 1140 e sua crença se balizava pela impureza do mundo material e do corpo, razão de negarem totalmente o casamento e o ato carnal para procriação (cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 224). 153
Cf. DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 142. 154
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares
Moreira. V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 121-123.
76
Jesus Cristo e pela confiança cega nEle e em sua redenção. Sua familiaridade com os místicos alemães não teria explicação sem um verdadeiro e veemente desejo de Cristo. A isto se unia uma grande caridade para com os pobres. De outra parte o agostiniano possuía um caráter forte, unilateral, descomedido, exuberante, impulsivo, mais disposto a se apossar da realidade que a aceitá-la humildemente.155
E, ainda:
Isso explica sua forte tendência ao subjetivismo, que o levava a uma interpretação unilateral da Escritura e o tornava pouco disposto a aceitar as diretrizes de quem se apresentasse como mediador entre Deus e o homem. Essa mesma riqueza de vida interior explica o fascínio que ele exercia sobre todos os que dele se aproximavam [...] Mas de seu espírito explodia com frequência uma repentina fúria que o levava a expressões cruas e vulgares e a descaradas mentiras (como no caso da bigamia concedida a Filipe de hessen e negada em público), bem como a críticas exacerbadas a seus adversários, arrasados por uma avalanche de invectivas e impropérios: chamavam-no de doctor hyperbolicus.156
Segundo Giacomo Martina, os historiadores modernos se dividem
bastante em relação às razões da revolução protestante.157
A tese tradicional, que se tornou clássica, é a dos abusos e desordens
morais, sobretudo na cúria romana contra as quais Lutero teria se revoltado.
Contudo, posteriormente, estas concepções foram severamente criticadas, dado que
em outras épocas na Igreja também houve abusos graves, sem que isto levasse a
uma separação com Roma:
Em 1916, o historiador protestante Georg von Below negava incisivamente que Lutero fosse filho de um convento corrupto e se perguntava porque razão a reforma não tivera origem na Itália, onde as condições religiosas e morais não eram melhores que as da Alemanha.158
155
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.
V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 123. 156
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.
V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 123. 157
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.
V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 51-56. 158
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.
V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 52.
77
Atualmente católicos e protestantes, analisando melhor as palavras dos
reformadores, estão de acordo que a tese clássica deve ser rejeitada.
O que Lutero realmente questionava eram os dogmas da Igreja que
entendia como superstição quais sejam: a presença real de Cristo na eucaristia, o
sacrifício da missa, o primado do papa, seu magistério supremo e seu direito de
convocar concílios.
Foram sustentados, igualmente, como razões da Reforma, fatores
psicológicos. Uma nova religiosidade era desejada, que se distanciasse tanto da
superstição do povo como da aridez dos doutores eclesiásticos, que eliminasse
intermediários da Palavra de Deus possibilitando seu conhecimento direto, bem
como a certeza do perdão sem necessidade de confissão auricular. A certeza teria
vindo com a doutrina reformada da salvação somente pela fé.159
Há inúmeras outras teses religiosas e políticas sobre a Reforma, que não
cabem neste pequeno estudo, sob pena de um desvio desnecessário.160
Em suma, Lutero em 1510 fez uma viagem a Roma e escandalizou-se
com a venda de indulgências e alegando este motivo passou a atacar a autoridade
papal e negar os sacramentos. Passou a concitar nobres alemães a se apoderarem
das terras eclesiásticas. Declarou-se em rebeldia contra Roma que o havia incitado
a arrepender-se. Traduziu a Bíblia para o alemão e elaborou uma nova doutrina
onde somente a fé era necessária à salvação e seria possível o livre exame e
interpretação da Bíblia, única mediação entre o Cristo e os homens.
A partir da Reforma encabeçada por Lutero outros ramos do
protestantismo foram surgindo, dentre eles o de Calvino, presbiterianismo, que
dominou a Suíça e os Países Baixos chegando a instaurar um Estado Teocrático.161
Na Inglaterra não se adotou integralmente o protestantismo, mas em
virtude de questões pessoais Henrique XVIII encorajou-se a romper com a Igreja de
Roma, em que pese a oposição de Thomas Morus162, Chanceler do Reino. A partir
daí torna-se, ao mesmo tempo, o líder temporal e espiritual do Estado inglês. O líder
maior da Igreja da Inglaterra ou Anglicana é, portanto, até hoje, o rei ou rainha.
159
MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad. Orlando Soares Moreira.
V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 55. 160
Sobre essas teorias cf. MARTINA, Giacomo. História da Igreja: de Lutero a nossos dias. Trad.
Orlando Soares Moreira. V.1, São Paulo: Loyola, 1995, p. 57-115. 161
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 143. 162
Morus foi o célebre autor de Utopia, em que demonstra sua visão coletivista da sociedade, colocou-se dentre os grandes adeptos da tolerância (DE CICCO, op. cit., p. 143).
78
Como resposta surgiu na Igreja Romana o movimento denominado
Contrarreforma, obra conduzida por jesuítas e dominicanos, e que se configurou
como uma nova escolástica ou “Escolástica Tardia”, que restauraria a teoria do
direito natural não na concepção da cidade de Aristóteles, mas numa concepção de
“cidadãos do mundo” dos estoicos.163
A contrarreforma culminou com o Concílio de Trento em 1545-1563, que
além de definir dogmas católicos condenou o protestantismo, reafirmando o primado
do Papa.
Católicos e protestantes formariam dois partidos políticos que se
envolveriam em lances dramáticos na Idade Moderna e decidiriam a sorte da
Europa.
Houve, então, um período de guerras entre católicos e protestantes, onde
os Estados, por fim, se configuraram com base numa ou outra religião. Assim,
Portugal, Espanha, França, Itália e Bélgica eram redutos católicos. De outro lado,
assumindo a religião protestante, separada do Bispo de Roma, ficaram Inglaterra,
Alemanha, Holanda e Suíça.
A França, entretanto, ficou muito abalada com os grandes conflitos entre
protestantes (huguenotes), então favorecidos pelo rei Francisco I e seu filho
Henrique II, e católicos e iniciou-se uma era de revoluções.
2.1.2 A Era das Revoluções Francesa e Inglesa
As revoluções inglesa e francesa são importantes para se compreender a
caracterização dessa época como de muitas guerras religiosas que influenciaram na
secularização do poder.
Na França, quando em 1560 Carlos IX assumiu o trono, na verdade era
sua mãe Catarina de Médicis, mulher de Henrique II (morto subitamente em
decorrência de um torneio), quem governava. Ela tentou implantar uma política de
tolerância e conciliação entre católicos e protestantes, dando sua filha Margarida de
163
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 146.
79
Valois, católica, em casamento a Henrique de Bourbon, huguenote (protestante),
que se tornou o segundo na sucessão da França.164
Com a morte de Carlos IX subiu ao trono seu irmão Henrique III, tido
como um devasso e governante incapaz. 165
O povo, entretanto, era simpático da Santa Liga Católica, movimento de
oposição aos huguenotes, chefiado por Henrique de Guise, cujo pai havia sido
assassinado pelos huguenotes, e que era extremamente estimado em toda a
França.
Configurava-se assim a disputa pelo trono entre três Henriques: Henrique
III, irmão de Catarina e rei à época, tido como um devasso e incapaz; Henrique de
Bourbon, o huguenote, e Henrique de Guise, católico.166
O desfecho do embate se deu com o assassinato de Henrique de Guise e
de Henrique III por Henrique de Bourbon que se tornou o herdeiro do trono. Mas sua
condição de huguenote não permitia a assunção do trono do Reino católico:
Foi então que o bearnês “abjurou de seu credo protestante” e se tornou o Rei Henrique, quarto desse nome. Atribui-se a ele, nessa ocasião, a célebre frase: “Paris vaut bien une messe” – que significa o oportunismo de sua conversão. (“Paris vale bem uma missa”). Em 13 de abril de 1598, Henrique IV promulgou o Édito de Nantes, ou “da tolerância”, igualando católicos e protestantes e concedendo a estes cargos e cidades fortificadas, como La Rochelle, por exemplo.167
La Rochelle, uma cidade fortificada, apoiada pela Inglaterra e Holanda,
tornou-se um Estado huguenote dentro de outro Estado, contra o qual se ergueu o
então bispo Richelieu, que, por meio de suas posições e discurso conseguiu a
confiança do rei Luís XIII e combateu navios ingleses para tomar a cidade,
mantendo entretanto, a norma de tolerância, o Édito de Nantes.
Entremeios, a nobreza francesa armou um complô contra o rei para depô-
lo e levar ao trono seu irmão Gastão de Orléans que os atenderia, mas Richelieu foi
informado do golpe e agiu rapidamente para prendê-los e condená-los à morte.
164
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 165
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 166
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 150. 167
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 151.
80
Assim se fortalecia a monarquia. Richelieu queria levar a França a ser o “fiel da
balança” na Europa, motivo pelo qual lutou na Guerra dos Trinta Anos168 a favor das
nações protestantes.169
O cardeal Richelieu construiu o caminho para o reinado do monarca
absoluto Luís XIV, que acabou merecendo o título de “Rei Sol”. O rei se aliou à
nobreza feudal já bastante reduzida. Revogou o Édito de Nantes, o que provocou
novas guerras religiosas colocando de um lado nações protestantes e, de outro,
católicas. Vencendo os protestantes ganhou as Antilhas e São Domingos na
América e triunfou na Guerra de Sucessão na Espanha, colocando ali seu neto
Felipe D´Anjou. Assim o século XVII ficou conhecido como o Século de Luis XIV.
Entretanto, havia uma tensão crescente entre as estruturas políticas
conservadoras e os pensadores iluministas. O conflito entre uma sociedade feudal e
católica e as novas forças de vertente protestante e mercantil irá culminar
na Revolução Francesa.
O ressentimento do povo francês contra a política fiscal, a indiferença e
decadência da aristocracia se uniu aos ideais iluministas que, juntos, alimentaram
sentimentos radicais, fazendo eclodir a revolução em 1789.
Em consequência, a monarquia absolutista que tinha governado a nação
durante séculos entrou em colapso em apenas três anos. Por sua vez, a sociedade
francesa passou por uma tremenda transformação quando privilégios feudais,
aristocráticos e religiosos ruíram sob um ataque sustentado de grupos políticos
radicais de esquerda.
Antigos ideais da tradição e da hierarquia de monarcas, aristocratas e
da Igreja Católica foram subitamente derrubados pelos novos princípios de Liberté,
Égalité e Fraternité.
Aproximadamente um século antes, na Inglaterra, o trono foi tomado pelo
líder dos puritanos, seita protestante radical, Oliver Cromwell, que acabou com o
Parlamento e se tornou ditador, repelindo investidas de monarcas irlandeses e
escoceses com mão de ferro. A família real inglesa se refugiou na corte francesa.
168
A Guerra dos Trinta Anos decorreu entre 1618-1648 e assim foi denominada por conta de uma série de guerras travadas entre nações europeias por rivalidades religiosas, dinásticas, territoriais e comerciais. 169
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2012, p. 153.
81
Nesse cenário surge a concepção de Estado forte de Thomas Hobbes
(1588-1679), o Leviatã, para aplacar a ferocidade humana, pois em sua concepção
“o homem é o lobo do homem” em total oposição ao pensamento aristotélico de
bondade natural em sociedade.
A grande novidade de Hobbes é que o Estado Leviatã seria formado por
um consenso entre os governados, que renunciariam a sua liberdade natural
aceitando o governo totalitário, governo este que abarcaria tanto a totalidade do
poder civil, como do religioso.
Após a morte de Cromwell em 1658 a monarquia foi reinstaurada com
Carlos II.
Em 1688, pela Declaração dos Direitos (Bill of Rights), punha-se fim à
ditadura e determinava-se a tolerância religiosa. Entretanto, para evitar sobressaltos
puritanos, o Parlamento determinara que nunca pudesse ser rei da Inglaterra um
católico. Com isso garantia-se a sobrevivência da Igreja Anglicana, sem ceder aos
radicalismos.
Insatisfeitos, muitos puritanos passaram a emigrar para as colônias
inglesas da América do Norte.
Nesse período começou a ser colocada em prática a concepção de
divisão dos poderes do Estado com John Locke (1632-1704), passando o
Parlamento a exercer a função legislativa e o Primeiro-Ministro, escolhido pelo
Legislativo, a executiva.
Mais tarde Montesquieu conceberia a divisão do Estado em Três Poderes
Autônomos, acrescendo aos outros dois, o Judiciário.
Era a época do Iluminismo iniciada entre o final do século XVII e começo
do século XVIII, decorrida até a época das guerras napoleônicas (1804-1815).
Como se vê, a era das revoluções francesa e inglesa provocou a
separação entre a autoridade da Igreja e o poder dos reis absolutistas, que
outorgaram a si próprios a soberania, independente de Deus: “O Estado sou eu”,
disse Luis XIV.
E, posteriormente, ocasionou a concepção do poder de governo originado
no povo e não mais no próprio soberano.
82
2.1.3 O Liberalismo: a Razão Autônoma
Como se demonstrou, o humanismo antropocêntrico pretendia tornar o
homem o centro da cultura e da sociedade, a medida de todas as coisas, lugar que
antes era concedido a Deus.
Posteriormente, o Iluminismo procurou mobilizar o poder da razão, a fim
de aperfeiçoar a sociedade e o conhecimento herdado da tradição medieval e
acabou promovendo o intercâmbio intelectual. Além disso, foi contra a intolerância e
os abusos da Igreja e do Estado.
Surge daí uma nova concepção de liberdade, o liberalismo170.
A liberdade não se guia mais por um critério objetivo de moralidade ou
verdade e sim na própria vontade do indivíduo, que se torna autossuficiente,
independente de qualquer princípio transcendente, rejeitando qualquer lei
preexistente à própria consciência. Cria-se, assim, no campo filosófico um
individualismo radicado no cogito de Descartes, que passa pelo absolutismo da ideia
em Hegel e chega ao materialismo histórico de Marx e Engels.171
Jacques Maritain172 resume o humanismo clássico desde seu advento no
Renascimento em três momentos nos quais, sucessivamente, a ideia de Deus vai
perdendo o sentido que lhe havia sido dado na cristandade até que no século XX há
sua completa negação.
Assim, no primeiro momento Deus se torna o fiador do domínio do homem
sobre a matéria, é o Deus cartesiano, a transcendência divina é compreendida
racionalmente, a partir da razão humana. No segundo momento Deus se torna uma
ideia, é rejeitada a transcendência divina e uma filosofia da imanência (Deus no
mundo), lhe toma o lugar (Hegel). No terceiro momento é a morte de Deus (Nitsche
e Marx), o qual corresponderia na idade contemporânea ao ateísmo comunista173.
Na verdade, a visão excessivamente unitária do temporal e do religioso
na Idade Média, que não refletia a liberdade cristã em seus fundamentos, acabou
170
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.80. 171
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.83. 172
MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de
Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. 173
MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de
Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional,1942, passim.
83
por gerar a crítica do Humanismo Renascentista que desejou abdicar da “tutela da
Igreja para permitir uma evolução duma humanidade mais consciente e livre”.174
Nesse sentido, o individualismo encerrava um desejo legítimo de
libertação que acabou por preparar o advento dos direitos e garantias fundamentais
de liberdade perante o Estado, por um lado, mas, por outro, colocou a humanidade
no limiar de uma nova crise de liberdade reconhecida no capitalismo histórico e no
comunismo.
Com isto, a concepção objetiva da verdade e de Deus deixou de existir,
relativiza-se a verdade à medida de cada um. Ora, a negação de uma ideia objetiva
de Deus, tem como consequência lógica a negação de uma ordem querida por
Deus, seja ela social ou jurídica.
Do mesmo modo, a ideia de uma natureza humana se dissipa, ou seja, a
concepção de um Direito Natural anterior, e, portanto, superior ao Direito Positivo,
que pressupõe regras pré-ordenadas provenientes de uma ordem objetiva que
transcende a vontade individual, é superada: “em definitivo, o liberalismo é a
rebelião em face de uma lei natural instituída por Deus para todos os homens”.175
A religião passa a ser assunto privado: “A religião tem um caráter
introspectivo carente de direitos na vida pública”.176
Daí provém a moderna concepção de “liberdade de consciência”, isto é,
cada homem e mulher tem o direito de seguir o que acredita ser a verdade.
É a debandada de setores inteiros da sociedade do domínio da religião.
As instituições ganham autonomia. Não deveria mais ser como no período medieval,
onde escolas, universidades, corporações, associações de artesãos e outros
estavam sob a autoridade da Igreja.
Pois bem, esse embasamento filosófico iluminista moldou uma nova
concepção social e econômica, pois sendo o homem senhor de si, carrega todos os
recursos necessários ao seu desenvolvimento: “não seria originariamente um ser
social” e encarnaria a concepção de que a liberdade individual realiza em si mesma
a “ordem social natural. O que vem a converter-se na suma lei do liberalismo
174
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.87. 175
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.94. 176
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.85.
84
econômico, a livre concorrência, o laissez-faire, donde nasce o capitalismo como
uma teoria econômica cientificamente elaborada”.177
2.2 O Fenômeno da Secularização
O liberalismo atingiu radicalmente a questão religiosa. Deste modo, uma
religião não seria objetivamente verdadeira ou falsa, mas sim subjetivamente
reconhecida como verdadeira, isto é, é verdadeira “para mim”. Deus só existe na
medida em que o próprio caráter diz a cada um que existe:
Pela mesma razão que no terreno social desconhece o liberalismo toda responsabilidade comunitária, ignora no plano religioso toda possível solidariedade jurídica e mística, isto é, eclesiástica. E, se o homem no social deverá desvincular-se de toda lei supra-individual, no religioso deverá também libertar-se de toda lei dogmática. Junto do individualismo social surge, deste modo, o individualismo religioso que, no plano pessoal, apresenta a face da liberdade de consciência e, no plano social, a doutrina da separação absoluta entre a Igreja e o Estado.178
Em consequência os Estados Modernos tem de lidar com o fato do
pluralismo religioso, sendo necessário promover a abertura de todos sejam
religiosos, ateus, agnósticos, racionalistas, naturalistas, cientistas, ao diálogo onde
se busquem os limites da fé e da razão na própria dignidade do ser humano.
Não parece nada razoável, deste modo, simplesmente extirpar a religião
deste debate, sob o argumento de que o Estado moderno independe de
fundamentos de fé.
Na ausência do termo secularização, localiza-se o termo secularismo na
lição de Nicola Abbagnano, que, segundo o autor, deriva do latim saeculum:
Originado da reflexão presente no Novo Testamento sobre a diferença entre este mundo (v.,e) ou éon e o mundo celeste - , que
qualifica a ocupação mundana (v. MUNDANO), dada a afazeres terrenos, e não exclusivamente espirituais, por parte de pessoas ou instituições (ainda que eclesiásticas. Surgiu nos séculos XVI-XVII no campo jurídico para indicar a passagem de um religioso ao estado secular ou da transição de propriedades e prerrogativas eclesiásticas a instituições seculares ou laicas; assumiu relevância sociológica,
177
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.83-84. 178
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 84.
85
teológica e filosófica entre os séculos XIX e XX, exprimindo mais em geral a relação entre civilização moderna e cristianismo como derivação que comporta a perda de sacralidade. 179
Portanto, o termo deriva originalmente do dualismo cristão introduzido na
sociedade romana do Baixo Império, como já mencionado.
Tratava também da mudança de estado de um religioso para a vida leiga.
Entretanto, o termo secularismo vem sendo empregado erroneamente
como sinônimo de secularização, razão pela qual se faz necessário um breve
esclarecimento, na lição de Roberto de Almeida Gallego:
Com efeito, “secularismo” é uma expressão datada, porquanto diga respeito ao programa da “Londoner Secular Society”, fundada por “G.J. Holyoake, em Londres, em 1846. A expressão “secularismo”, forjada naquele contexto específico, resumia o ideário daquela sociedade, qual fosse o de interpretar e regular a vida prescindindo tanto de Deus como da religião. [...] assume ares de dogmatismo laico, ou verdadeira profissão de fé [...] a secularização, ao revés e em verdade não elimina o Mistério – a dimensão espiritual ou intangível da existência -, já que, na bela expressão de Catroga180, “a finitude não é secularizável”. Assevera, ademais, tal autor, que “secularização não é sinônimo de antirreligião, mas afirmação da autonomia do século”. [...] Por trás desta postura está o sonho de autonomia do homem moderno.181
Pois bem, a secularização é o fenômeno iniciado com o liberalismo que
confere autonomia ao poder temporal ante o espiritual. Em contrapartido ocorre
também o inverso.
Então, significaria a secularização, a morte de Deus?
Muito já se disse e escreveu acerca da “morte de Deus” e do desaparecimento das religiões. O super-homem de Nietsche, em sua virilidade heroica, desaba, dançando, no abismo trágico da existência, olhando superiormente os ressentidos, quais sejam, aqueles que em sua fraqueza não conseguem mirar, sem o filtro de uma crença, o abismo do sem-sentido. Freud, por sua vez, tenta explicar a crença através do mecanismo de projeção desencadeado
179
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi: Martins Fontes, São Paulo: 2007, p. 1027. 180
Fernando José de Almeida Catroga. Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Instituto de História e Teoria das Ideias. 181
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de
Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 281.
86
a partir da dolorosa percepção do pai castrado. Marx, ampliando as intuições iniciais de Feuerbach, entende Deus como o produto do processo de alienação através do qual a classe proletária entrega, passivamente, as rédeas do seu destino a um Deus imaginário, com o beneplácito e o interesse da classe dominante, que assim continua a oprimi-la.182
E mais:
O darwinismo, por seu lado, investe contra a ideia de telos na natureza, substituindo a ideia de um Deus criador e ordenador do universo pelo binômio design cego/ vastidão temporal, os quais, por si mesmos, seriam capazes de explicar a vida na terra.183
Mas a religião obstinadamente não desaparece, ao contrário, tem se
afigurado relevante para extensas camadas populacionais ao redor do mundo.
Segundo Roberto de Almeida Gallego estudos tem demonstrado que a
conturbada contemporaneidade, denominada de “pós-modernidade”, tem algumas
características próprias, dentre as quais o niilismo (não haveria qualquer sentido
maior na existência) e o individualismo na relação com o sagrado, bem como o
fundamentalismo como resposta à vulgarização da vida.
Isto porque, o ser humano não suporta a falta de sentido para a vida.
Por esta razão, desde os primórdios: “o sagrado tem sido, nas variadas
civilizações, o verdadeiro organizador do mundo e da vida”.184
Atualmente, porém, a “secularização abriga, em seus contornos, a ideia
de que o mundo imanente é absolutamente autônomo da religião, compreendendo-
se, não mais a partir desta, mas, unicamente, a partir de sua própria imanência”185.
182
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de
Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 281. 183
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de
Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 282. Telos equivale a finalidade e determinação em oposição ao acaso. 184
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado democrático de direito in (Re)pensando o direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio de
Cicco. Coordenação Álvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo, 2010, RT, p. 283. 185
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 87.
87
2.2.1 A Secularização e o Desencantamento do Mundo
O direito é fato social e, portanto, objeto da sociologia jurídica, que se
ocupa do relacionamento entre direito e sociedade explorando, cientificamente, esta
relação, com um conhecimento rigorosamente comprovável por métodos e técnicas
de pesquisa: “A tarefa fundamental da sociologia jurídica é definir a (sic) direito como
fato social”.186
Muito bem. O fenômeno da secularização está relacionado a um outro a
que o sociólogo Max Weber187 designou de “desencantamento do mundo”. Em sua
análise com o final da Idade Média e início dos tempos modernos, ocorre a
eliminação da magia188 como meio de salvação ou a racionalização da religião.
Com efeito, o mundo religioso se opõe ao mundo mágico, por ser dualista
no sentido de propiciar distinção entre ação e norma (ser e dever-ser), esta
coincidente sempre com a vontade divina. Aqui os rituais mágicos dão lugar a um
esforço racional para absorver os mandamentos divinos e aplicá-los na vida prática,
sendo este, somente, o caminho para a salvação.
Deste modo, o catolicismo é entendido por Weber como uma religião de
rituais mágicos, pois se acredita que o sacerdote é capaz de oferecer sacrifícios em
expiação dos pecados e absolver o penitente, fazendo uma ligação entre humano e
o divino através dos sacramentos.
No protestantismo se nega os sacramentos e a intercessão de santos,
pois o Deus transcendente não poderia ser conjurado pela prática de rituais
mágicos. Evidentemente que para esta visão de mundo
somente a relação especificamente religiosa com o eterno traz a salvação e esta se dá através da observância diuturna dos mandamentos éticos de estrita regulamentação da conduta humana. A prática religiosa se funde com a atividade cotidiana.189
186 CARNIO, Henrique Garbellini; GONZAGA, Álvaro. Curso de Sociologia Jurídica. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 145. 187
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução.José Marcos Mariani
de Macedo, revisão. Antonio Flávio Pierucci, 7ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.106-107. 188
Entenda-se a visão mágica da sociedade em Weber como aquela para qual no mundo existem duas instâncias, uma sendo habitada por seres temporais e outra, não visível, habitada por espíritos do bem e do mal. Nessa sociedade não há um abismo intransponível entre homens e espíritos, posto que estes podem ser evocados pelo fiel, por meio de rituais específicos. 189
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 91.
88
Interessante o diagnóstico de Max Weber que entrelaça o protestantismo
(especialmente o calvinismo) e o capitalismo, em virtude da convicção que somente
o chamado de Deus para a atuação no mundo, segundo sua vocação profissional,
lhe daria a certeza da salvação. Não que, de certa forma, se “adquiria” a salvação
pelo trabalho, já que esta competia somente à Graça de Deus, mas a dedicação
diária ao trabalho conferia ao crente a certeza de estar realizando a vontade divina.
Pois bem,
O acúmulo de capital, de modo ascético, no âmbito do trabalho vocacionado, era a única maneira de alguém se certificar de sua salvação. A incerteza da salvação é que obriga o puritano a se dedicar, diariamente, ao trabalho como um dever. Tal trabalho deve ser prestado à conformação racional do cosmos que nos circunda, tendo ele, pois, um objetivo impessoal. [...] o amor ao próximo se expressa, em primeiro plano, no cumprimento da missão vocacional-profissional, o que lhe empresa contornos de objetividade, impessoalidade e racionalidade.190
Desse racionalismo religioso teria brotado o capitalismo, que,
posteriormente, “emancipou-se da religião; entretanto, já se mostrava irreversível no
Ocidente, a racionalização da vida”.191
Ainda na perspectiva weberiana não há falar-se em fim da religião, diante
do processo secular, mas de um realocar de posição, enquanto antes era quem
direcionava a sociedade, agora ficou na esfera do privado, gerando a possibilidade
do pluralismo.
Mas teriam sentido equivalente para Weber o desencantamento e a
secularização? Segundo Roberto de Almeida Gallego, não, pois:
Em uma relação continente-contido, poder-se-ia afirmar que, em
Weber o processo de racionalização é mais amplo e abrangente do que o desencantamento do mundo e, neste sentido, o abarca. O desencantamento, por seu turno, tem duração histórica mais extensa que a secularização e, sob este prisma, contem-na. Certo é que Weber distingue os dois processos, reservando o sintagma “desencantamento do mundo” para a antiga luta da religião
190
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 93-94. 191
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 94.
89
contra a magia, e o termo “secularização” para o embate da modernidade cultural contra a religião. E a secularização implica, também, em um desencantamento do direito, que passa a não mais admitir formas outras de dirimir conflitos que não persuasão racional do juiz.192
Significa dizer que, o desencantamento do mundo gera a perda de
sentido, ou seja, a ciência, em última análise, ao transformar o mundo em um
mecanismo causal, desprovido de mistérios insondáveis, retira o sentido místico e
não é capaz de lhe emprestar outro em substituição. Esse desencanto, esta perda
de sentido não seria motivo para que alguém não se sentisse capaz de construir
uma comunidade política terrena, dotada de leis racionais, discutíveis e revisáveis.
Esta é a secularização do Estado.193
2.3 Secularização e Laicidade
Em seu trabalho de doutoramento CASAMASSO (2006, p. 124-215) faz
uma extensa explanação para aclarar a distinção entre secularização e laicidade,
cujas considerações interessam a este estudo e serão descritas de modo
sumarizado a seguir.
Ambos os fenômenos surgem da ascendência do político sobre o
religioso, fator ocorrido no Ocidente moderno que implicou o recuo da religião no
interior da sociedade política e a redefinição de seu papel voltado à esfera privada,
ficando o poder político na mão exclusiva do Estado.
Contudo a secularização foi uma primeira lógica de operacionalização da
supremacia da política sobre a religião e a laicização uma segunda lógica desse
processo.
Foram três os pontos característicos desse processo de emancipação do
poder terreno em relação ao poder espiritual: a Igreja passa a ser uma instituição
como outra qualquer da sociedade, deixando de deter a influência de outrora no
poder; o poder político deixa de estar legitimado por Deus e a cidadania torna-se
independente da religião.
192
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 95. 193
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 96.
90
A base desta distinção está na dicotomia catolicismo/ protestantismo,
estando a laicização vinculada a países de tradição católica.
Isto porque desde a Idade Média a Igreja Católica se tornou uma potência
que media forças em pé de igualdade com o Estado, pois nascida de uma força
transnacional atrelada ao Império Romano. Assim, a laicidade do Estado significaria
a retirada das pessoas e as diferentes esferas da vida social, da influência da Igreja
Católica.
Já no protestantismo não se vislumbra uma estrutura eclesiástica
hierarquicamente organizada capaz de medir forças com o Estado. De outro lado,
assumem uma identidade profundamente enraizada à nação de onde se originou,
criando entre si uma identidade nacional, caso típico do Estado inglês e a Igreja
Anglicana. O que faria os conflitos entre Igreja e Estado desaparecerem.
Esse fato se confirma na análise entre línguas latinas e línguas anglo-
saxônicas, donde a palavra laicidade do latim não encontraria equivalente nas
línguas de origem anglo-saxônicas.
Por sua vez, a secularização é um fenômeno social e corresponde a um
recuo da religião na humanidade como um todo, numa modificação de costumes e
instituições, com o avanço da ciência e a diminuição da prática tradicional religiosa,
restando a fé como uma escolha e vivência interior.
Outra característica da secularização seria sua influência sobre a própria
religião, que se abriria para o profano. É o caso especificamente das religiões
nacionais, onde o chefe de Estado é também o chefe da igreja, caso da Igreja
Anglicana e da Luterana na Dinamarca.
Neste sentido a laicização é diversa, pois diz respeito estritamente a uma
emancipação do Estado em relação à tutela religiosa ou de razões religiosas da
ação política.
Em suma, secularização se refere à sociedade e laicidade ao Estado: “Ou
seja, na síntese de Émile Poulat, a secularização é um ‘processo social’ e a
laicização ‘um processo legal’”194.
194
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 129.
91
Significa dizer que o fenômeno da secularização levou o Estado a se
tornar laico, a fim de evitar a ingerência da Igreja nas suas decisões, relacionando-
se de forma neutra com as religiões e o ateísmo.
Pois bem, isto significa que nas sociedades em que a secularização não
tenha sido um processo intenso, o Estado laico certamente irá coexistir com o forte
sentimento religioso de seu povo.
2.3.1 Os Significados Contidos na Palavra Laicidade
A tese de Marco Aurélio Lagreca Casamasso refere um problema de
passionalidade no trato da questão da laicidade.195 Esse caráter passional se
evidenciou no final do século XIX, na França, em virtude da polêmica sobre o ensino
religioso nas escolas públicas. O episódio ficou marcado por um forte conflito entre a
França dos católicos e a França dos laicistas, cujos argumentos e atitudes os
identificaram a uma ideologia anticlerical e antirreligiosa.
Portanto, o laicismo institui um princípio filosófico, uma ideologia de matriz
humanista que entende o homem na sua individualidade mais plural, excluindo
qualquer tipo de ligação do caráter individual com o caráter público, social do
homem. A laicidade, ao contrário, situa a individualidade dentro do espaço público,
na sociedade, devendo, assim, o Estado garantir os meios de concretizar este direito
onde nenhum grupo deve ser perseguido, nem, de outro lado, autorizado a se impor
de forma autoritária e totalitária, criando uma sociedade onde o espaço público seja
de todos, sem constrangimentos.
Logo, o desafio é tratar a laicidade não como uma bandeira ideológica,
mas como um instrumento organizador da sociedade política compatibilizando-a
com a ampla liberdade religiosa.
Nesse mesmo trabalho Marco Aurélio Lagreca Casamasso identificou
expressões como “laicidade de combate”, “laicidade aberta”, “laicidade-separação”,
“laicidade-neutralidade”, “laicidade-liberdade”, cada qual com um sentido como:
“ideologia”, “moral”, “cultura”, “pacto”, “método”, “princípio de organização política” e
“princípio constitucional”.
195
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 130.
92
Dada a multiplicidade de entendimentos é importante encontrar um núcleo
conceitual comum, partindo de seu sentido original, para construir o fundamento do
que aqui se designará por laicidade.
Primeiramente é necessário referir que a ideia geral de laicidade é a de
uma rígida separação entre religião e Estado, porém este significado não é
satisfatório, pois não leva em conta as diversas variáveis embutidas nessa relação,
como as implicações do direito à liberdade religiosa.
É necessário, assim, considerar as principais questões que dizem
respeito a esta relação para se compreender qual o papel da religião no Estado
Laico. E para compreender de modo isento a laicidade é necessário ter em mente
dois critérios: o de separação e o de neutralidade.
A ideia de separação contempla “a concepção política que estabelece a
separação entre o Estado e as religiões, por intermédio da qual o poder estatal deixa
de exercer o poder religioso e as confissões religiosas deixam de exercer o poder
político”.196
Significa dizer que há uma autonomia de parte a parte, ou seja, uma não-
interferência entre o Estado e as confissões religiosas, respeitando-se a
reciprocamente o próprio âmbito de atuação.
Ora, tal autonomia foi, como já mencionado, uma novidade do
cristianismo, que pregava a separação entre o poder de César e o poder de Deus.
Essa concepção cristã de laicidade não se coadunava com a crença pagã
do César-Deus, nem com a ideia judaica do César-Inimigo, pois Jesus legitima a
autoridade terrena, dizendo que vem de Deus197.
De todo modo, laicidade como separação implica a primazia do Estado
nas questões públicas, mas implica, de outro lado, a primazia das igrejas nas
questões religiosas.
Destarte, a laicidade é uma “rua de mão dupla”, para utilizar uma
expressão bem popular. Do mesmo modo que o Estado não quer e está livre da
interferência da religião em suas decisões políticas, do mesmo modo as religiões
estão livres da mão pesada do Estado no que tange às questões religiosas.
196
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional
apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 136. 197
João 19,11.
93
Tomás de Aquino estruturou este princípio cristão tradicional que mais
tarde foi reelaborado por Belarmino e Suarez, até configurar-se num corpo de
doutrina jurídica, fundamental para o Direito Público Eclesiástico. 198
Desde Leão XIII (1978-1903), a Igreja vem reforçando este dualismo
explicitamente, mostrando a necessidade de separação entre poder terreno e
espiritual, como organização cristã correta da sociedade, pois sendo ambos
derivados de Deus, cada qual deve prosseguir em seu ministério:
Deus dividiu, pois, o governo do gênero humano entre dois poderes: o poder eclesiástico e o poder civil; àquele preposto às coisas divinas, este às coisas humanas. Cada uma delas no seu gênero é soberana; cada uma está encerrada em limites perfeitamente determinados, e traçados em conformidade com a sua natureza e com o seu fim especial. Há, pois, como que uma esfera circunscrita em que cada uma exerce a sua ação “iure proprio”[...] porque não é uma sujeição de homem a homem, mas uma submissão à vontade de Deus, que reina por meio de homens. Uma vez reconhecido e aceito isso, daí resulta claramente ser um dever de justiça respeitar a majestade dos príncipes, ser submisso com fidelidade constante ao poder político, evitar as sedições e observar religiosamente a constituição do Estado.199
Dentre outros documentos, na Constituição Apostólica Gaudium et Spes
(Alegria e Esperança), proferida em 1965 e emanada do Vaticano II, a Igreja,
reforçou a necessária autonomia entre a esfera política e a religiosa:
A Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a sociedade nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e salvaguarda da transcendência da pessoa humana. No domínio próprio de cada uma, comunidade política e Igreja são independentes e autónomas. Mas, embora por títulos diversos, ambas servem a vocação pessoal e social dos mesmos homens. E tanto mais eficazmente exercitarão este serviço para bem de todos, quanto melhor cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo igualmente em conta as circunstâncias de lugar e tempo[...].200
198
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 161. 199
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em
<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso em 01/03/2014 200
FRANCISCO, Papa. Constituição Apostólica Gaudium et Spes – item 76. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html Acesso em 02-03-2014.
94
Tal autonomia da esfera pública tem como consequência lógica a
completa neutralidade do Estado em relação à religião, ou seja, a impossibilidade de
o Estado professar uma religião oficial.
O que não significa de modo algum dizer que a autonomia das realidades
temporais deva excluir da sociedade e do âmbito público a referência a Deus e ao
destino último do homem, daí a necessidade de cooperação entre ambas as esferas:
temporal e espiritual para que o homem atinja sua plenitude.
Neste sentido, a propalada separação entre Igreja e Estado Moderno não
deve pretender a separação, também no indivíduo, do aspecto espiritual e do
aspecto material, “como se o homem fosse capaz de existir bipartido no temporal
(que corresponderia exclusivamente ao Estado) e no espiritual (que unicamente
competiria à Igreja)”. 201
Bastante interessante a posição de José Pedro Galvão de Souza. O
cofundador da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo entende que a
sociedade civil tem um fim temporal, isto é, os homens reunidos em pequenos
grupos fazem esforço comum para obter o que necessitam. Contudo, esses mesmos
homens tem um fim outro, qual seja, o fim sobrenatural, a vida eterna. Esta
finalidade leva o homem a Deus e, portanto, é superior à ordem temporal. No
entanto, ele reflete:
O naturalismo dos nossos dias quer reduzir a vida humana a estas ordens inferiores. Daí provém, na organização das sociedades políticas, a concepção do Estado leigo ou secularizado, que fecha os olhos ao fim sobrenatural do homem. O Estado tem um fim precipuamente temporal, que, por isso mesmo, se subordina ao fim superior e último do homem. Cabe-lhe, pois, proporcionar a todos condições de ordem temporal que não prejudiquem, mas, antes, favoreçam o bem espiritual.202
Ainda em conformidade com a posição de José Pedro Galvão de Souza,
os pontos principais da doutrina católica sobre as relações entre a Igreja e o Estado,
tal como se encontram na encíclica Immortale Dei, citada logo acima, são
resumidamente:
201
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p.96. 202
SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 28-
29.
95
a) Distinção entre o Estado e a Igreja, já que a segunda tem caráter
sobrenatural. Há dualidade de poderes.
b) Autonomia. Cada um desses poderes é soberano dentro de sua esfera
de ação, cada qual com seus fins e interesses diversos.
c) Relações harmoniosas, já que a dualidade de poderes não significa
separação e oposição, até porque, há fatos que estão na esfera de ambas as
autoridades.
d) Primazia do espiritual. Aqui o autor afirma que o Estado deve observar
os princípios superiores de ordem moral, dos quais a Igreja é a intérprete autorizada.
Neste sentido, outro autor católico escreveu, em 1941:
A Igreja não reivindica para os seus ministros uma acção (sic) preponderante nos negócios do Estado, vê, até com mágua (sic), os
que se entregam mais à política do que às funções do seu sagrado ministério; e muito menos reivindica a posse da autoridade pública que decide os negócios temporais e governa os povos. [...] Quando se diz ou escreve que a Igreja pretende a conquista do poder civil, que ambiciona que os padres governem, trata-se de uma calúnia. O que a Igreja ambiciona, não tanto por si, como pelo bem dos indivíduos e das sociedades, é que os homens sejam verdadeiros cristãos [...].203
Foi necessário abordar tal posição mais conservadora primeiramente para
desmistificá-la. Sim, pois não se trata de defender poder absoluto à Igreja Católica,
mas lembrar que os valores morais por ela defendidos tem muito a oferecer ao
poder civil e à sociedade, o que não implica em impor sua visão de mundo e
dogmas.
De outro lado, foi importante suscitar a doutrina da Igreja a este respeito,
a fim de esclarecer que até mesmo seu Magistério defende a laicidade do Estado. O
que é refutado é o laicismo.
Laicidade não implica confundir a Igreja com um oratório doméstico, já
que a Igreja não pode ficar relegada a um ostracismo sem qualquer participação
política e social.204
203
BEJA, Monsenhor Fino. A Igreja e o Estado. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, 1941,
p. 48.
96
Daí a necessidade de separar o sentido de laicidade e o de laicismo.
2.3.2 Laicidade e Laicismo
Até aqui foi possível estabelecer a concepção de secularização como o
fenômeno que atinge a sociedade e a laicidade como o que atinge o Estado.
Como se verificou acima, a laicidade tem dois pilares básicos: a
independência e a autonomia, de tal modo que, qualquer doutrina religiosa,
filosófica, científica ou política que vise diminuir a autonomia das duas esferas é
contrária à laicidade.
A laicidade invoca esta autonomia não apenas entre religião e Estado,
mas também entre filosofia e religião:
Na primeira metade do século XIV, Ockham reivindicava com energia a autonomia da atividade filosófica. A propósito da condenação de algumas proposições de Tomás de Aquino feitas pelo Bispo de Paris, em 1277, ele dizia: “As asserções, principalmente filosóficas, que não concernem à teologia não devem ser condenadas ou proibidas, pois nelas qualquer uma ser livre para dizer livremente o que lhe apraz” (Dialogus inter magistrum et discipulum de imperatorum et pontificum potestate, I, II, 22). Essa foi a primeia e certamente uma das mais
enérgicas afirmações do princípio do L. [Laicismo] em filosofia e deve-se a um frade franciscano do século XVII.205
A laicidade pressupõe a separação e a neutralidade, mas permite as
relações de cooperação com a Igreja e religiões, sem recair no laicismo:
Existe, portanto, entre Igreja e Estado entre religião e política, uma separação lícita e necessária – a laicidade – e uma separação indiferentista e insustentável: o laicismo. Porque a laicidade é prerrogativa consubstancial à “ordem autônoma” do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e artificial do elo essencial que une toda a atividade com a “ordem teonômica”.206
204
SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 29-31. 205
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 691-692. 206
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 153-156. Ordem transcendente ou teonômica - Segundo o autor a autonomia do Estado é plena na esfera terrena, o que ele denomina ordem autonômica, porém há também uma ordem teonômica no Estado, à medida em que é formado por homens que são seres transcendentes, razão pela qual é plenamente autônomo na sua ordem, mas deve manter uma relação de harmonia com a ordem transcendente, ou seja, com a religião.
97
Na verdade, a separação saudável entre Estado e religião é entendida
como condição à plena liberdade religiosa, já que Estados confessionais tendem a
restringir a prática de outras religiões.
Há uma dimensão positiva da liberdade de religião, pois o Estado deve assegurar a permanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de todas confissões religiosas. Cumpre ao Estado empreender esforços e zelar para que haja essa condição estrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoas sobre religião e fé.207
Consequentemente, surgem para o Estado proibições como:
i) guerras santas; ii) discriminação estatal (lato sensu) arbitrária e danosa entre as diversas igrejas; iii) obrigar que o indivíduo apresente e divulgue suas convicções religiosas; estabelecer critérios axiológicos para selecionar as melhores religiões; v) estabelecer pena restritiva de direitos junto a templo religioso.208
Contudo, há um “aspecto forte” da laicidade que não se limita a buscar a
separação das esferas e suas respectivas autonomias, mas confunde-a com o
anticlericalismo e o ateísmo, ou seja, à exclusão da religião e da fé da esfera
pública. Este aspecto é reconhecido neste estudo como laicismo.
O laicismo se opõe à laicidade, pois pretende não a independência das
esferas, e sim a completa eliminação da religião do âmbito público, aprisionando-a
ao interior dos templos, ou seja, os laicistas entendem que a religião é estritamente
privada, devendo ser excluída do espaço público, não devendo exercer qualquer
influência na sociedade.
Tal posição radical, originada do Iluminismo, é portadora de um
extremismo antirreligioso e anticlerical “que aproveitou a justa reivindicação da
laicidade para introduzir sub-repticiamente, confundindo-o com ela, o laicismo
indiferentista e ateu”209.
Da lição de Ingo Sarlet:
207
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
605. 208
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
605. 209
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 159.
98
[...] há que se distinguir entre laicidade e separação (no sentido de independência) entre Estado e Igreja (e comunidades religiosas em geral) de laicismo e de uma postura de menosprezo e desconsideração do fenômeno religioso (das religiões e entidades religiosas) por parte do Estado, pois uma coisa é o Estado não professar nenhuma religião e não assumir fins religiosos, mantendo uma posição equidistante e neutra, outra coisa é assumir uma posição hostil em relação à religião e mesmo proibitiva de religiosidade.210
O problema do paradoxo laicidade/ laicismo é originado no combate aos
regimes de regalismo, cesaropapismo e hierocracia, provenientes da relação
existente entre Estado e Igreja, especialmente nos séculos XVII e XVIII, em que as
autoridades temporal e espiritual se confundiam na mesma liderança, ora o espiritual
submetendo o poder temporal, ora o inverso, conforme já foi mencionado.
Com efeito, a batalha da laicidade foi promovida pela Revolução Francesa
e pelo liberalismo, que lhe deram o caráter radical laicista. E a Igreja Católica se
ressentiu disto:
33. Dado que o Estado repousa sobre esses princípios, hoje em grande favor, fácil é ver a que lugar se relega injustamente a Igreja. Com efeito, onde quer que a prática está de acordo com tais doutrinas, a religião católica é posta, no Estado, em pé de igualdade, ou mesmo de inferioridade, com sociedades que lhes são estranhas. Não se tem em nenhuma conta as leis eclesiásticas; a Igreja, que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdizer toda ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado expedem por si mesmos decretos arbitrários, e sobre esses pontos ostentam um soberbo desprezo pelas santas leis da Igreja. [...] 35. Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a sua autonomia, e onde uma concordata pública interveio entre os dois poderes, a princípio grita-se que é preciso separar os negócios da Igreja dos negócios do Estado, e isso no intuito de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo afastando todos os obstáculos.211
Em suma:
210
SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição
atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 478. 211
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Immortale Dei. Roma, 1885. Disponível em
<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_01111885_immortale-dei_po.html> Acesso em 01/03/2014
99
O Estado laico comprometido com a laicidade, ao invés de rejeitar ou tentar suprimir o religioso, considera-o um fato público e, embora não perca de vista a distinção entre o campo religioso e a esfera secular, não desconhece as necessidades espirituais de seus cidadãos. O Estado laico movido pelos ideais de laicidade, embora não privilegie nenhuma religião específica, não se mostra hostil a nenhum credo, almejando com os mesmo, manter relação de colaboração de acordo com as especificidades de cada qual. O Estado laico de orientação laicista, por sua vez, ostenta nítida parecença com o Estado ateu: sua preocupação é com a administração das necessidades materiais do homem; a religião, para ele, é assunto exclusivamente privado, um anacronismo que a ciência e o progresso humano se incumbirão de exterminar; ademais caracteriza-se pela confusão entre o público e o estatal, porquanto não respeite a autonomia do social em sua
dimensão religiosa.212
Ninguém que busca conhecer honestamente a história do mundo pode
negar que valores cristãos foram responsáveis pela humanização do mundo, haja
vista a concepção do homem como imagem e semelhança de Deus, que lhe dá
dignidade ímpar na natureza.
Os equívocos surgem quando se pretende reduzir a complexidade da
Igreja Católica e das religiões a meros mecanismos de “freio à liberdade”. Sim, a
Igreja Católica, assim como outras religiões querem transmitir sua mensagem ao
mundo. São valores favoráveis à vida humana. Os dogmas são para os católicos,
mas os valores são para todos.
Há decisões jurídico-políticas que envolvem questões morais e que, por
esta razão, interessam a toda sociedade. Exigem, assim, diálogo, esclarecimentos e
ponderações. Não podem ser tomadas com base em teorias elitistas excluindo
valores que tem como base a religião.
Assim, a religião, de modo geral, além de ter direito à autonomia em seu
âmbito de atuação, é um fato social e deve encontrar guarida pelo Estado em
respeito à sociedade. O Estado laico e democrático é assim, não excludente.
Todavia, a compreensão laicista do Estado não permite qualquer tipo de
relação com as diversas instituições religiosas formadas por seus cidadãos. Ao
contrário, tudo o que diz respeito à religião deve ser excluído do ambiente público,
212
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
100
qualquer que seja ele. Especialmente se esta religião for a preponderante, como o é
a católica em diversas nações.
Enfim, a atitude estatal de hostilidade à religião é caracterizada como
laicismo:
O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às posturas de fé. Baseado, historicamente, no racionalismo e cientificismo, é hostil à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus recentes episódios de intolerância religiosa, pode ser aqui lembrada como exemplo mais evidente de um Estado que, longe de permitir e consagrar amplamente a liberdade de religião e o não-comprometimento religioso do Estado, compromete-se, ao contrário, com um postura de desvalorização da religião, tornando o Estado inimigo da religião, seja ela qual for.213
2.4 Dois Modelos de Estado Laico
Para tornar mais clara essa realidade, confronta-se dois modelos atuais
de estados laicos, quais sejam os Estados Unidos e a França.
Sabe-se que a colonização dos Estados Unidos se intensificou a partir da
Declaração dos Direittos (Bill of Rights) de 1688, em virtude da grande imigração de
religiosos extremistas (puritanos) insatisfeitos com o fim da ditadura e
restabelecimento da monarquia com o rei Carlos II.
Assim, a religiosidade está na raiz da formação do povo estadunidense.
Ali a separação entre Igreja e Estado significa independência da política e vida
pública em relação à religião, com duas vertentes básicas: O free excercise e o
nonestablishment, isto é, o livre exercício da religião escolhida e a proibição do
estabelecimento de vantagens a qualquer crença.214
Na nação estadunidense, todavia, a instituição do chamado wall of
separation, em que pese ter representado a autonomia e supremacia da política em
face da religião, não representou de modo algum a diminuição da prosperidade
religiosa, que influenciou inclusive a Declaração de Independência e a Declaração
213
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
606-607. 214
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 104-105.
101
de Direitos do Bom Povo da Virgínia de 1776, de nítido caráter iluminista, como se
vê:
Que a religião ou os deveres que temos para com o nosso Criador, e a maneira de cumpri-los, somente podem reger-se pela razão e pela convicção, não pela força ou pela violência; conseqüentemente, todos os homens têm igual direito ao livre exercício da religião, de acordo com o que dita sua consciência, e que é dever recíproco de todos praticar a paciência, o amor e a caridade cristã para com o próximo.215
O fato é que:
No caso norte-americano procurou-se conciliar a pujança do poder do Estado com os valores cristãos, tão cara à comunidade dos colonos. Com efeito, a instituição do wall of separation não significou um ato de opressão para a religião, mas a confirmação e a garantia do seu livre exercício, embora tenha significado, para o Estado, a legitimação da sua possibilidade de atuar soberanamente, sem submeter-se às limitações religiosas. Trata-se, por essa razão, segundo Paulo Adragão, de uma “consideração positiva da religião”. Ou, de acordo com Maurice Barbier, de um relacionamento com a religião sem caráter combativo.216
Já a França, por sua vez, influenciada pela ideologia radical jacobina
desde a Revolução Francesa, encampou de modo inédito, no sentido de avançar no
processo de emancipação do homem, o regime de separação entre religião e estado
que incluía o enfraquecimento da instituição da Igreja no seio da sociedade civil,
dado o forte apego ao racionalismo e à grande influência da Igreja Católica no
cenário político e econômico do Ancien Regime217, e assim, a sociedade
emancipada era duplamente avessa à religião.218
Com o Regime do Terror, os jacobinos (dentre os quais Robespierre)
instauram uma verdadeira guerra contra a burguesia: “Em 1793, Pache e Chaumette
215
Item XVI. Disponível em <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-a-criacao-da-Sociedade-das-Nacoes-ate-1919/declaracao-de-direitos-do-bom-povo-de-virginia-1776.html> Acesso em 01-03-2014. 216
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito
Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p.110. 217
Época das monarquias absolutistas que precedeu a era revolucionária. 218
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 107.
102
pediram o confisco dos gêneros de primeira necessidade e o extermínio da
burguesia”,219 tendo ainda sido decretada a “proscrição oficial do cristianismo no
território francês220”
Em que pese Inglaterra e França terem passados por períodos de
revoluções antiabsolutistas,
Na França, nação herdeira de uma hostilidade jacobina com relação à religião, prevalece o modelo excludente, no qual se almeja “limpar” o espaço público de qualquer traço religioso. Já na Inglaterra adota-se o modelo inclusivo, por meio do qual todas as crenças – e sua exteriorização – são toleradas no espaço público, desde que, obviamente, não malfiram a ordem pública.221
O caso da França é surpreendente. Ali, em que pese a Constituição
garantir a liberdade religiosa, os laicistas consideram a religião apenas de modo
negativo, algo que deve ser eliminado: “Não é sem razão, portanto, que se pode
observar na França do final do século XVIII a contraditória convivência de uma
teórica liberdade religiosa com a perseguição à Igreja Católica”.222
É verdade, pois
Em 1905, a lei de separação da Igreja e do Estado, que denunciava a Concordata de 1804, foi um acontecimento doloroso e traumatizante para a Igreja na França. Ela regulava o modo de viver em França o princípio do laicismo e, neste âmbito, ela mantinha unicamente a liberdade de culto, relegando ao mesmo tempo a fé religiosa para a esfera privada e não reconhecendo à vida religiosa e à Instituição eclesial um lugar no seio da sociedade. Desta forma, a vida religiosa do homem era considerada unicamente como um simples sentimento pessoal, não reconhecendo assim a natureza profunda do homem, ser ao mesmo tempo pessoal e social em todas as suas dimensões, incluindo a dimensão espiritual. Contudo, a partir de 1920, estamos gratos ao Governo francês por ter reconhecido de
219
DE CICCO, Claudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito; 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 98. 220
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito
Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 108. 221
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico. Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 97. 222
CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 110.
103
certa forma um lugar à fé religiosa na vida social, à vida religiosa pessoal e social, e a constituição hierárquica da Igreja, que é constitutiva da sua unidade.223
A grande diferença na compreensão de laicidade entre Estados Unidos e
França foi suscitada por Jürgen Habermas, quando trata do papel da religião no
Estado laico:
Nos Estados Unidos, ao contrário do que sucedeu na França, a introdução da liberdade de religião não significou uma vitória do laicismo sobre uma autoridade que garantira para as minorias religiosas, no melhor dos casos, uma tolerância interpretada de acordo com seus próprios critérios, os quais eram impostos à população. O poder do Estado, cuja postura quanto a visões de mundo era neutra, não tinha, em primeira linha, o sentido negativo de proteger os cidadãos contra imposições oriundas da consciência ou da fé.224
Destarte, no país norte-americano a liberdade religiosa é protegida
constitucionalmente como um direito fundamental que os cidadãos de uma
comunidade democrática se concedem mutuamente independentemente dos limites
estabelecidos pelas diferentes comunidades de fé. Significa dizer que defender
posições fundamentadas em convicções religiosas não é inconstitucional naquele
país.
Ainda hoje, o socialismo francês, influenciado pelo radicalismo jacobino,
emprega todos os meios para extirpar do cenário público qualquer traço de
religiosidade, chegando a restringir a liberdade religiosa, direito já consolidado em
Tratados Internacionais.
Veja-se a proibição feita em 2011 às mulheres muçulmanas de usar o véu
que recobre a cabeça em espaço público, bem como a reforma da educação, com a
elaboração da polêmica Carta do Laicismo, que faz referência à lei do laicismo de
1905, bem como à lei de 2004, que proíbe crianças de utilizar qualquer símbolo
223
Carta do Papa João Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa, dada no vaticano aos 11 de fevereiro de 2005 (Disponível em www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005. Acesso em 23-03-2014) 224
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 9.
104
religioso ao frequentar a escola pública, e foi afixada em todas as escolas públicas
do país.225
Entre as disposições deste documento consta expressamente a proibição
de uso de qualquer sinal de religiosidade, como seriam o véu islâmico, a estrela de
Davi ou a cruz católica.
2.5 Laicidade nas Relações entre Igreja e Estado
Como visto, laicidade e laicismo não se confundem e, deste modo:
Pretender que o Estado adote um total distanciamento da religião pode significar algo não apenas não desejável como também impossível (e fraudulento, neste sentido, por estar a encobrir uma realidade não-declarada e, possivelmente, não-consentida e não-compartilhada socialmente), além de ser um caminho propício para a diminuição da liberdade religiosa plena.226
O Estado, desse modo, não tem como função eliminar a esfera religiosa
do âmbito público, ao contrário, tem o dever de, representante que é de sua nação,
não obstar a prática das religiões do povo, nem evadir do debate político os valores
morais pelos quais se pautam estas religiões.
Ora, um regime de exclusão de opiniões, seja por serem religiosas ou
não, é absolutamente incompatível com o pluralismo e a democracia.
Tal concepção laicista do Estado tem origem, como visto, no Iluminismo
que exaltou a ciência e a razão como o caminho exclusivo de emancipação e
libertação do ser humano. Contudo, o tempo provou que ambas acabaram se
transformando em instrumentos do poder político e econômico, demonstrando a
fragilidade deste ponto de vista.
O fato é que há o perigo da “ditadura do racionalismo” ateu e materialista,
isto é, da tentativa de eliminar a verdade sobre direito e moral, que, no final, tem
como consequência colocar o homem nas mãos do mais forte, do útil, da
imoralidade. Isto é, a razão se torna instrumento de poder.
225
Sobre o assunto v. notícia Disponível em <http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/franca-adota-carta-da-laicidade?page=2> 226
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 605.
105
Interessante a posição de um grupo de filósofos marxistas que elaborou a
tese da Dialética do Esclarecimento. Era a Escola de Frankfurt que reunia os
trabalhos de um grupo de intelectuais marxistas, não ortodoxos, que, na década dos anos 20 permaneceram à margem de um marxismo-leninismo “clássico”, seja em sua versão teórico-ideológica, seja em sua linha militante e partidária. [...] todas as verdades anteriormente consideradas válidas e inabaláveis podem ser questionadas; todas as normas e valores vigentes têm de ser justificados; todas as relações sociais são consideradas resultado de uma negociação na qual se busca o consenso e se respeita a reciprocidade, fundados no melhor argumento.227
O grupo era ligado à Universidade de Frankfurt, mas muitos dos escritos
foram produzidos fora da cidade, especialmente no pós-guerra. Nomes como
Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin e Habermas fizeram parte dessa
“confraria”.
Embora não haja absolutamente nenhuma identidade entre o que ora se
propõe e as teorias desenvolvidas por estes autores, há um ponto que merece ser
abordado.
Convergem os autores da Escola de Frankfurt no tema da Dialética do
Esclarecimento, ou seja, no fato de que a razão exaltada pelo Iluminismo como
processo de emancipação do homem e que o conduziria à autonomia e
autodeterminação, acaba se transformando, paradoxalmente, em seu contrário, ou
seja, num crescente processo de instrumentalização para a dominação e repressão
do homem.228
Desta maneira: “A essência da dialética do esclarecimento consiste em
mostrar como a razão abrangente e humanística, posta a serviços da liberdade e
emancipação dos homens, se atrofiou, resultando na razão instrumental”.229
Destarte:
“O programa do iluminismo consistia no desencantamento do mundo”, inicia Horkheimer em seu conhecido ensaio sobre o conceito de iluminismo. “Eles queriam dissolver os mitos e fortalecer as impressões através do saber” (Horkheimer e Adorno, 1947). Mas o
227
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 84. 228
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 34. 229
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 35.
106
saber produzido pelo Iluminismo não conduzia à emancipação e sim à técnica e ciência moderna que mantêm com seu objeto uma relação ditatorial. Se Kant ainda podia acreditar que a razão humana permitiria emancipar os homens dos seus entraves, auxiliando-os a dominar e controlar a natureza externa e interna temos de reconhecer hoje que essa razão iluminista foi abortada. A razão que hoje se manifesta na ciência e na técnica é uma razão instrumental, repressiva.230
Assim sendo, a razão se transforma, na leitura de Horkheimer e Adorno,
em uma razão alienada que se desviou do seu objetivo emancipatório original
tornando-se instrumento de dominação.
A essência da dialética do esclarecimento consiste em mostrar como a
razão proveniente do humanismo clássico e posta a serviço da liberdade e
emancipação dos homens esvaziou-se, resultando posteriormente na razão
instrumental.
Jürgen Habermas faz parte de outra geração de frankfurtianos que
liderou o grupo num terceiro momento, após a liderança de Horkheimer, no primeiro,
e Adorno, no segundo. Afastando-se da abordagem pessimista da razão, do tipo “o
feitiço virou contra o feiticeiro”, acredita que a verdadeira razão se pode alcançar
através do diálogo ou da comunicação, daí sua teoria da razão como teoria da ação
comunicativa, que se abordará mais detidamente adiante.
2.5.1 O Ordenamento do Estado e o Ordenamento da Igreja Católica
Como já se mencionou, a necessária relação de neutralidade não significa
que o Estado deva ignorar a existência da religião ou viver ao arrepio desta.
No caso da Igreja Católica, por seu turno, há um ordenamento próprio: o
direito canônico. Então, pergunta-se: Como deve o Estado se colocar diante desta
situação?
Na concepção pluralista do ordenamento jurídico, diz-se que o
ordenamento estatal tem que conviver com outros muitos e variados ordenamentos
provenientes de instituições231 abrigadas nesse mesmo Estado.
Essa teoria se contrapõe a de monismo jurídico, em que haveria um único
ordenamento, o estatal, e tem como consequência o aumento da complexidade da
230
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª. edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasileiense, 2010, p. 35. 231
Assim entendidas como grupo social organizado.
107
relação entre o ordenamento do Estado e esses ordenamentos institucionais ou
menores.
Norberto Bobbio232 acata esta tese e distingue entre quatro tipos de
ordenamentos institucionais quais sejam:
a) Os que estão acima do Estado, como o ordenamento
internacional e segundo alguns, o da Igreja Católica;
b) Os que estão abaixo do Estado, como os ordenamentos
propriamente sociais, que o Estado reconhece, limitando-os ou
absorvendo-os;
c) Os ordenamentos ao lado do Estado, como o da Igreja
Católica, segundo outras concepções, ou ainda, o internacional,
conforme a concepção chamada dualística.
d) Os ordenamentos contra o Estado, como associações
para o crime e seitas secretas.
Vale dizer que, não obstante o reconhecimento destes ordenamentos
institucionais, a teoria da universalidade do ordenamento, como construção de um
direito positivo único, segundo Norberto Bobbio, está latente, especialmente após a
criação da Organização das Nações Unidas.
De todo modo, são múltiplas as relações que o Estado pode desenvolver
com essas instituições.
Em relação à Igreja, entretanto, a relação é sui generis.
Sabe-se que ambos, ordenamento estatal e da Igreja, são concomitantes
no tempo e no espaço, além de se dirigirem às mesmas pessoas. A diferença básica
é quanto à matéria de que se ocupam, quais sejam, jurídica ou moral.
São diversas as concepções sobre como os ordenamentos nesse caso
devem se relacionar:
a) Exclusão total, onde se concebe dois ordenamentos que
são completamente distintos quanto à matéria, pois um regula a moral
e o outro o direito;
232
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 158.
108
b) Inclusão total, onde se concebe que o ordenamento do
Estado tem a competência de gerir tanto toda a matéria de cunho
jurídico, quanto a de cunho moral;
c) Exclusão ou inclusão parcial, onde se concebem que dois
ordenamentos tem uma parte em comum e outra não comum. Assim,
o Estado absorve parte do ordenamento da Igreja, mas a parte não
absorvida estaria fora da jurisdição do Estado, competindo somente à
Igreja. Essa parte não compreendida pelo Estado é entendida como
mera licitude e não juridicidade.
Nesta terceira concepção de relação entre os ordenamentos compreende-
se que há pontos de intersecção, pois também o Direito manifesta a moral, e assim:
Nas relações entre direito e moral, a solução que apresenta esses relacionamentos como relacionamentos de inclusão parcial e exclusão parcial é talvez a mais comum: direito e moral, segundo esse modo de ver, em parte coincidem e em parte não, o que significa que há comportamentos obrigatórios tanto para um quanto para outro, mas, além disso, existem comportamentos moralmente obrigatórios e juridicamente lícitos, e, inversamente comportamentos juridicamente obrigatórios e moralmente lícitos. Que não se deva roubar vale tanto em moral como em direito; que se devem pagar as dívidas de jogo vale somente em moral; que se deve cumprir um ato com certas formalidades para que seja válido somente vale em direito.233
Igualmente, Bobbio234 faz uma rememoração das modalidades de relação
entre Estado e Igreja na história, após o advento do cristianismo, resumindo-as em
quatro modelos.
No primeiro deles, denominado de reductio ad unum, há uma unificação
entre eles, onde ou há uma redução do Estado à Igreja (teocracia) ou da Igreja ao
Estado (cesaropapismo na época imperial, erastianismo nos modernos Estados
nacionais protestantes).
A segunda espécie de relação é a subordinação, também dividida em dois
modos. Deste modo, sendo o Estado subordinado à Igreja, como se pretendia nos
233
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 161. 234
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 171-175.
109
Sacro-Impérios Romanos Franco e Germânico, trata-se da teoria da potestas
indirecta ou directiva. Já a Igreja subordinada ao Estado por meio do
jurisdicionalismo e territorialismo, ocorreu durante o período das monarquias
absolutas.
O sistema fundado sobre relacionamentos concordatários é a terceira
espécie citada por Bobbio e pressupõe o reconhecimento recíproco dos dois
poderes como independentes e soberanos cada qual em sua órbita de autoridade. É
o que vigora entre o Estado italiano e a Igreja Católica.
Por último há o sistema de separação ou separatismo, como ocorre nos
Estados Unidos, onde “as Igrejas são consideradas em nível de associações
privadas, às quais o Estado reconhece a liberdade de desenvolver a sua missão
dentro dos limites das leis”.235
Ao analisar a relação entre o Estado italiano e a Igreja Católica, Bobbio
nota que há pontos de entrelaçamento entre os ordenamentos, pois “Não se trata de
dois ordenamentos fechados um ao outro: em particular o ordenamento estatal se
refere, de várias maneiras, a instituições reguladas pelo direito canônico”236.
Com efeito, ele identifica duas figuras características dessa situação: o
pressuposto e o reconhecimento dos efeitos civis.
No primeiro, uma condição atribuída a alguém pela Igreja é recebida no
Estado como uma condição que cria consequências diferentes daquela. Assim, o
batismo na Igreja tem um sentido, e
com as leis raciais de 1938 o batismo foi considerado como o “pressuposto” para a atribuição de consequências jurídicas próprias do Estado italiano. Assim, o sacramento da ordem está regulado por normas do direito canônico, e certamente o Estado italiano não atribui à qualidade de clérigo as mesmas consequências atribuídas a ela pela Igreja, mas o ordenamento italiano pode fazer, em certas circunstâncias, da qualidade de clérigo um “pressuposto” para consequências jurídicas relevantes no próprio ordenamento (por exemplo a isenção do serviço militar).237
235
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 172-173. 236
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 173. 237
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 174.
110
O reconhecimento de efeitos civis ocorre quando o Estado “renuncia à
própria regulamentação, limitando-se a atribuir à regulamentação dada pelo
ordenamento da Igreja, efeitos civis”.238
2.5.2 As Relações Constitucionais e Concordatárias entre Estado e Igreja
Em que pese haver muita discussão em torno da natureza jurídica das
concordatas entre Estado e Igreja, pode-se dizer que se trata de
um contrato de natureza especial entre a Igreja e o Estado, que reveste a forma de um quase-contrato internacional, e que vem a regulamentar suas relações mútuas a respeito de matérias que interessam, de algum modo, a uma e a outra sociedade. Estas matérias abrangem capítulo como os seguintes: personalidade internacional da Santa Sé, personalidade jurídico-econômica da Igreja, Direito fiscal e tributário, propriedade eclesiástica, direitos dos tribunais eclesiásticos, autonomia interna da Igreja, matrimônio, educação, etc..239
O objetivo dessas concordatas não é relativizar a separação entre Estado
e Igreja e sim, reconhecendo-a, estabelecer relações formais de cooperação e
concórdia. As concordatas são em geral “verdadeiros tratados de paz e amizade,
onde se regulam duma maneira correta os assuntos referentes às chamadas
‘matérias mistas’”.240
Essas concordatas normalmente existem em países que não adotam o
regime laicista de separação, mas reconhecendo as religiões, as assume e lhes
garantem a liberdade. Nos países onde impera a atitude antireligiosa há grandes
perigos de perseguição aos cidadãos religiosos.
Vejamos alguns exemplos de países que adotaram em algum momento
de sua história atitudes hostis em relação à religião241:
238
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 174. 239
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 234-235. 240
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 234. 241
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 233.
111
a) Constituição de 1937 da URSS: artigo 124 – “A liberdade
de propaganda anti-religiosa é reconhecida a todos os cidadãos.”
b) Constituição de 1917 do México: artigo 130, parágrafo 5º -
“A lei não reconhece personalidade alguma às agrupações religiosas
denominadas Igrejas”
A França, como se viu, continua caminhando numa atitude hostil para
com as religiões, adotando a postura laicista e não neutra em relação às Igrejas.
Por outro lado, houve países que até criminalizaram as pessoas não
crentes, como ocorreu na Baviera, Constituição de 1946: “Artigo 150: O desprezo da
religião, das suas instituições, ministros e membros de congregações religiosas
considera-se como delito” e na Constituição da Síria de 1950 que inseriu no
preâmbulo o seguinte: “Um dos fins do texto constitucional consiste em lutar contra o
ateísmo e a dissolução dos costumes”.242
Não soa razoável, assim, de parte a parte, uma relação conflituosa,
marcada por desmandos e disputas internas, ferindo a autonomia seja do Estado,
seja de cada religião. As religiões são uma realidade com a qual os estados têm de
lidar. O ideal, portanto, é que se estabeleçam as condições desta relação nos limites
constitucionais, regulamentando-as por meio das concordatas, como ocorre no
Brasil.
A lógica das relações entre Igreja e Estado deve ser a da colaboração.
De nada adianta o Estado tentar eliminar a religião do espaço público, dado que a
religião é um fato social, ainda constatado, mesmo após séculos da propalada
ideologia racionalista naturalista e dos enormes avanços técnico-científicos.
Por outro lado, de nada adianta uma religião pretender impor sua visão de
mundo, uma vez que a fé é questão de consciência, foro íntimo, história e
experiência pessoal de vida.
Qual o benefício trazido à sociedade de uma relação pautada pela
desconfiança recíproca e ofensas de parte a parte?
Estado e Religião tem ambos uma importante função na sociedade: A
realização do homem como indivíduo e como ser social, promovendo o bem comum.
242
LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 234.
112
Os valores conquistados pela Fé e que contribuem com a valorização do
ser humano não podem ser desprezados pela Razão.
Do mesmo modo a valorização da racionalidade humana e as conquistas
técnico-científicas não podem ser desprezadas pela Fé. Há de haver o respeito nas
divergências e a colaboração nos pontos fortes de cada qual.
Diante disto, pondo-se abaixo “bandeiras ideológicas” a melhor
concepção de relações entre Fé e Razão é a da cooperação, reconhecendo cada
qual a função a ser desempenhada pelo outro.
113
3 A PÓS-SECULARIZAÇÃO, DEMOCRACIA E O LUGAR DA RELIGIÃO NO ESPAÇO PÚBLICO 3.1 Pós-Secularização
Cada tribo indígena tem o seu pagé e seus deuses, cada família da
antiguidade os seus deuses antepassados, os judeus Iahweh (o Senhor), os gregos
e romanos seus mitos, a Idade Média o cristianismo, a Idade Contemporânea o
esoterismo e o sincretismo; mas jamais a humanidade de modo geral deixou de crer
no sobrenatural.
É verdade que o agnosticismo e o ateísmo vem crescendo; mas fosse a
religiosidade só uma face decadente da história humana, o mundo, após mais de
meio milênio de liberalismo e secularização, teria dela apenas uma lembrança.
John Rawls reconheceu este fato e afirma que
“a diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis encontrada em sociedades democráticas é uma característica permanente da cultura pública, e não uma simples condição histórica que logo desaparecerá”.243
Foi e continua sendo frequente a indagação da filosofia acerca do
Absoluto. Inúmeros filósofos de todos os tempos tentaram provar a lógica seja da
existência ou da inexistência de algo além do mundo sensível. Efetivamente,
permanece ainda em grande parte da humanidade a fé no mistério da
transcendência e, por conseguinte, em toda a moralidade que daí deriva.
É incrível que, séculos após os protestos do Iluminismo, o Estado
Moderno se depare não apenas com a persistência de tradições religiosas como
com novas formas de expressão de religiosidade incluindo-se seitas pentecostais e
sociedades esotéricas e ainda formas individuais e comunitárias de sincretismo
religioso. Definitivamente, a religião está longe de dizer adeus à sociedade.
Nota Habermas que nos Estados Unidos não apenas crescem os
religiosos, como o movimento em prol dos direitos religiosos, que, de seu turno, vem
243
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 265.
114
sendo capaz de promover um despertar de consciências “o que provoca irritações
paralisadoras em seus opositores seculares”244.
O fato mais surpreendente consiste propriamente na revitalização política da religião no âmago dos Estados Unidos da América, portanto, no centro da sociedade ocidental, onde a dinâmica da modernização se expande com maior sucesso.245
Na Europa, de fato, a religiosidade está em declínio, contudo isso não
parece ocorrer no resto do mundo. A eterna busca de sentido para a vida, da alma
humana em direção ao que lhe transcende, está evidentemente presente no mundo
contemporâneo.
Deveria essa realidade ser simplesmente ignorada pelo Estado ou, sendo
ela parte substancial de seus cidadãos, deveria ser protegida, assegurando-se não
somente a prática da religiosidade de acordo com a fé de cada um, mas a
consideração de seus valores na construção da sociedade, por meio do Direito?
A versão clássica da narrativa histórica do processo de secularização de
acordo com o qual o isolamento da religião avança com o avanço da modernização,
vem sendo abandonada e dando lugar a uma nova concepção da modernidade,
consciente do fenômeno da persistência da religiosidade e de sua potencialidade
para contribuir com a vida política. A esta nova sociedade Habermas chama de pós-
secular.
Em consonância com a pós-secularização, faz o filósofo a crítica do
pensamento pós-metafísico, que não pode se resumir a um “jogo de soma zero”
entre as forças da ciência, de um lado, e a dos poderes tradicionais religiosos, de
outro, onde a vitória de um pressupõe o aniquilamento do adversário. Deve-se,
portanto, levar em conta o “papel civilizador de um senso comum”, funcionando
como uma terceira via, no caminho entre ciência sem religião e religião sem ciência.
É necessário o diálogo.246
244
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 131. 245
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 130. 246
HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:
Editora Unesp, 2013, p. 6.
115
Faz parte dessa nova postura a compreensão por parte das religiões que
é necessário dialogar com as outras confissões, bem como com a ciência, detentora
do monopólio do saber.
Tão logo uma questão existencialmente relevante vá para a agenda política, os cidadãos – tanto crentes como não crentes – entram em colisão com suas convicções impregnadas de visões de mundo e, à medida que trabalham as agudas dissonâncias desse conflito público de opiniões, têm a experiência do fato chocante do pluralismo das visões de mundo.[...] 247
O fato é que
O mundo moderno e contemporâneo, marcado pelo avanço tecnológico e científico, atestou que não necessitava mais da experiência do sagrado para explicar a realidade, nem tampouco para dar sentido à vida dos homens. Vozes da Modernidade (ou Pós-modernidade) ecoaram de muitos lugares atestando a “morte de Deus”. A Sociologia falou em “desencantamento do mundo”, uma vez que o progresso científico e a racionalidade moderna haviam provocado um despojamento da magia do mundo libertando o homem das interferências dos deuses. 248
Ocorre que:
curiosamente, o que se presencia no final do século XX e início do século XXI e terceiro milênio cristão, é o revigoramento e a ascensão do fenômeno religioso. Lévi Strauss, na primeira metade do século XX - enquanto os “teólogos da morte de Deus” proclamavam seus oráculos - recomendava que não voltássemos à tese vulgar de que a magia seria uma modalidade tímida e balbuciante da Ciência, “pois nos privaríamos de compreender todo o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento ou a uma etapa da evolução técnica e científica (...). Em lugar de opor magia e ciência, melhor seria colocá-las em paralelo, como duas formas de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos, mas não pelo gênero de operações mentais, que ambas supõem, e que diferem menos em natureza que em função dos tipos de fenômenos a que se aplicam”.249
247
HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:
Editora Unesp, 2013, p. 7. 248
KUNRATH, Pedro Alberto. Crer depois da “morte de Deus” / Teologia da criação (Fé) e Ciência (Razão): caminhos para o diálogo in 21º. Congresso Anual da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – Soter. Edição Digital: Paulinas, 2008, p. 130. (O autor é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS) Disponível em: <http://www.soter.org.br/documentos/documento-LNxF3ACMRE52Y5j.pdf> Acesso em 04-03-2014. 249
KUNRATH, Pedro Alberto. Crer depois da “morte de Deus” / Teologia da criação (Fé) e Ciência (Razão): caminhos para o diálogo in 21º. Congresso Anual da Sociedade de Teologia e
Ciências da Religião – Soter. Edição Digital: Paulinas, 2008, p. 131.
116
3.2 Democracia e Pluralismo
Constatado que a religião e a religiosidade continuam bastante presentes
nas sociedades modernas, e que se manifestam das mais diversas formas, como
deve o Estado se colocar diante deste fato social?
Para se chegar a uma conclusão sobre o assunto é necessário abordar
alguns conceitos de democracia, tendo em vita ser esse o regime político no qual as
liberdades são garantidas.
Na lição de José Afonso da Silva:
O regime democrático é uma garantia geral da realização dos direitos humanos fundamentais. Vale dizer, portanto, que é na democracia que a liberdade encontra campo de expansão. É nela que o homem dispõe da mais ampla possibilidade de coordenar os meios necessários à realização de sua felicidade pessoal. 250
A Democracia Liberal no conceito de Nicholas Wolterstorff:
Liberal democracy is that mode of governance that grants to all people within the territory of its governance equal protection under law, that grants to its citizens equal freedom in law to live out their lives as they see fit, and that requires of the state that it be neutral as among all the religions and comprehensive perspectives represented in society. Equal protection under law for all people, equal freedom in law for all citizens, and neutrality on the part of the state with respect to the diversity of religions and comprehensive perpectives – those are the core ideas (grifo do autor).251
Norberto Bobbio se ocupou com o estudo da democracia na teoria das
formas de governo e aduz interessantes conceitos, partindo de seus usos descritivo,
prescritivo e histórico252.
250
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 234. 251
AUDI, Robert; WOLTERSTORFF, Nicholas. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland, United States of America: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 70: A democracia liberal é o modo de governo que concede a todas as pessoas no território de seu governo igual proteção da lei, que concede aos seus cidadãos igual liberdade no direito de viver suas vidas como bem entenderem, e isso exige do Estado ser neutro entre todas as religiões e perspectivas abrangentes representadas na sociedade. Proteção igual sob a lei para todas as pessoas, igualdade de liberdade na lei para todos os cidadãos e neutralidade por parte do Estado no que diz respeito à diversidade de religiões e perspectivas abrangentes - essas são as ideias centrais. (tradução livre) 252
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 135-149.
117
Em seu sentido descritivo democracia indica o governo de muitos, em
contraposição ao de um só (monarquia) ou ao de poucos (aristocracia). É o governo
da multidão, como diriam Platão e Aristóteles, sendo que para estes a democracia
não seria a forma ideal de governo253. O critério, portanto, é o número, quantidade
de governantes.
O uso descritivo sugere a qualidade da forma de governo, isto é, se seria
uma boa ou má forma de. Nesta acepção:
os traços pelos quais a democracia é considerada forma boa de governo são essencialmente os seguintes: é um governo não a favor dos poucos, mas dos muitos; a lei é igual para todos, tanto para os ricos quanto para os pobres e portanto é um governo de leis, escritas ou não escritas, e não de homens; a liberdade é respeitada seja na vida privada seja na vida pública, onde vale não o fato de se pertencer a este ou àquele partido, mas o mérito.254
Mais do que isso, implica saber se a democracia seria melhor ou pior do
que outras formas de governo.
Os primeiros teóricos do pensamento político moderno como Hobbes,
Locke, Montesquieu preferem a monarquia. Também Spinoza era a favor da
democracia, pois partia de uma visão ex parte populi, em que os governados tem o
direito de não ser oprimidos pelos governantes que devem obedecer à lei tanto
quanto qualquer outro. Ou seja, sua principal preocupação era a liberdade do povo
em contraposição à unidade necessária para o estabelecimento da paz e da ordem,
que justificaria a restrição de liberdade.255
Assim, o defensor da democracia entende que governante e governados
não são entidades separadas, mas se identificam à medida em que o primeiro
provém da sociedade por indicação dela. Essa ideia remete àquele que é
considerado o pai da democracia: Rousseau que expressou a ideia de democracia
253 No oitavo livro da República de Platão, a democracia é considerada uma das formas degeneradas
de governo, pois representaria o governo dos pobres contra os ricos, bem como a liberdade na democracia se converte em licensiosidade pela ausência de freios morais e políticos, pela condescendência geral para com a subversão de toda autoridade e outros. Em Aristóteles também é considerada o governo de uns contra outros, de pobres contra ricos e não visa, portanto, o bem comum (cf. PLATÃO. A República. Tradução Pietro Nassetti, 8ª reimpressão, São Paulo: Martin Claret, 2000). 254 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 141. 255 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 143.
118
como associação mediante a qual cada um, livremente, unindo-se aos demais,
obedece apenas a si mesmo, permanecendo assim, livre. 256
Tal ideia rousseauniana de liberdade como obediência da lei prescrita por
si próprio se torna talvez o principal argumento a favor da democracia no período
após as revoluções francesa e americana, bem como com o nascimento das
primeiras doutrinas socialistas e anarquistas:
O progresso da democracia caminha passo a passo com o fortalecimento da convicção de que após a idade das luzes, como observou Kant, o homem saiu da menoridade, e como um maior de idade não mais sob tutela deve decidir livremente sobre a própria vida individual e coletiva. Na medida em que um número sempre maior de indivíduos conquista o direito de participar da vida política, a autocracia retrocede e a democracia avança. 257
Na época em que se foram formando os grandes Estados europeus por
meio da unificação exercida pelos príncipes, utilizava-se como argumento contrário à
democracia o fato de que ela somente seria factível em pequenos Estados. Até
mesmo Rousseau fez afirmações neste sentido.258
Entretanto, nova modalidade de democracia surge concomitantemente no
outro lado do mundo: a democracia representativa nos Estados federados da
América. Segundo Bobbio, deve-se a Alexis de Tocqueville o reconhecimento de
que a democracia representativa na América era a mais autêntica democracia dos
modernos, em contraposição à democracia dos antigos, pois ali a sociedade é
efetivamente soberana, ela é o fundamento do poder.259
Deste modo, as duas características fundamentais deste novo Estado
democrático, assim como elencados por Tocqueville são o princípio da soberania do
povo e o fenômeno da associação. E, assim, essa nova modalidade de governo se
estende à Europa por meio do movimento constitucional dos primeiros decênios do
256 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 145. 257
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 145. 258
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 150. 259
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 151.
119
século XIX, que acabou resultando no alargamento do direito de sufrágio e na
formação de partidos políticos.260
Com efeito:
Desejou-se dar uma legitimação às organizações que através da agregação de interesses homogêneos facilitam a formação de uma vontade coletiva numa sociedade caracterizada pela pluralidade de grupos e por fortes tensões sociais.261
Portanto, na modernidade há uma mudança de mentalidade em relação ao
Estado. Passa-se não mais a olhar o Estado a partir do ponto de vista dos
governantes (ex parte principis), isto é, de sua potência e do dever de obediência,
bem como da centralidade do poder; mas do ponto de vista da sociedade, que pode
lhe exigir a garantia da democracia e dos direitos individuais:
A mais alta expressão praticamente relevante desta inversão são as Declarações dos direitos americanas e francesas, nas quais é solenemente enunciado o princípio de que o governo é para o indivíduo e não o indivíduo para o governo, um princípio que exerceu grande influência não apenas sobre todas as constituições que vieram depois, mas também sobre a reflexão a respeito do Estado, tornando-se, assim, ao menos em termos ideais, irreversível.262
3.2.1 O Estado e as Instituições Parciais ou Intermediárias da Sociedade
A evolução da democracia contempla não apenas a integração da
democracia direta, mas, sobretudo, diz respeito a sua expansão até atingir esses
corpos intermédios, que não se equiparam às associações políticas propriamente
ditas.
Desta maneira, o indivíduo passa a ser visto não somente como um
cidadão com deveres e direitos de participação política, porém em toda sua
potencialidade, “na multiplicidade de seus status”263, ou seja, como pai de família,
260
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 153. 261
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 154. 262
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 65. 263
cf. BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad.
Marco Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 156.
120
como profissional, como consumidor, como produtor, gestor de serviços públicos ou
seu usuário e uma infinidade de outros.
Portanto o pluralismo é decorrência da mais legítima democracia: O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses
contraditórios e antinômicos.264
Norberto Bobbio, lembrando Tocqueville, ensina:
Contrariamente à democracia dos antigos – que, fundada sobre o governo de assembleia, não reconhece nenhum ente intermediário entre o indivíduo e o Estado, o que faz com que Rousseau (seu moderno advogado de defesa) condene as sociedades parciais, capazes de dividir o que deve permanecer unido -, a democracia dos modernos é pluralista, vive sobre a existência, a multiplicidade e a vivacidade das sociedades intermediárias. Mais que pela igualdade das condições, a sociedade americana impressionou Tocqueville pela tendência que têm os seus membros de se associarem entre si com o objetivo de promover o bem público.265
Tais entes intermediários são associações livres de cidadãos que
sozinhos nada poderiam. Somente por meio da cooperação entre si, da ajuda mútua
para o bem de todos é que tal democracia sobrevive, reconhece Bobbio, como já
notara Tocqueville.
De fato, ao contrário da concepção de Rousseau, Locke e Kant, para
quem somente o acordo de vontades particulares era que formava o Estado, a
sociedade não é constituída somente de indivíduos justapostos. Mas vivendo em
sociedade, as pessoas se organizam em grupos nos quais há uma identidade de
valores e normas, a fim de concretizar o que desejam fazer para alcançar a
felicidade.
É como afirma a teoria organicista de Maurice Hauriou, para quem o
Estado deve ser reformulado para ser um Estado de Solidariedade, do bem comum,
e não do bem-estar individual, onde:
264
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 143. 265
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 152.
121
a subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico se baseia não mais na lógica subjetivista, mas na lógica do direito de solidariedade, o qual prepondera sobre o direito individual em matéria de organização do poder.266
O Estado moderno deve se tornar a instituição das instituições, segundo
Maurice Hauriou, ou seja, ele resulta da pluralidade de grupos sociais e de divisão
de funções entre cada um deles, o que reporta a um equilíbrio de forças: “é preciso
procurar na ‘instituição’ os equilíbrios das forças ativas das quais é feita a
estabilidade social”.267
Pois bem, segundo Maurice Hauriou o Estado é composto destes grupos
sociais, que ele denominou “instituições”, das quais as igrejas fazem parte.
Deste modo, se também as igrejas constituem o Estado, não é pelo fato
de que a religião não mais é o fundamento da soberania e poder do governante, que
numa concepção extremista, se deve extirpá-las da sociedade ou, pelo menos, do
âmbito público.
O relato sobre a Cidade Antiga feito anteriormente mostra tal integração
de modo bastante evidente, pois as cidades gregas e romanas foram sendo
fundadas por meio de ritos religiosos que uniam tribos. Estas, por sua vez foram
fundadas da união de frátrias (ou cúrias) que, por sua vez, foram formadas pelas
famílias. Ou seja, a cidade era uma confederação.
Neste sentido, os cultos das famílias eram preservados, assim como o da
frátria e da tribo, cada qual cultuando seus deuses, além dos deuses da cidade, com
suas normas e prescrições. Ou seja, os grupos menores não foram dissolvidos pela
fusão com outros grupos e formação de uma grupo maior. Ao contrário, as tradições
de cada família eram preservadas.
Na época dos iluministas a concepção era do poder soberano do povo
que num pacto social o outorgava ao governante e poderia modificá-lo a qualquer
tempo. Mas Montesquieu, diferentemente, notou que:
Essa forma de governo [República Federativa] é uma convenção, pela qual diversos corpos políticos concordam em se tornar cidadãos
266
FARIAS, José Fernando de Castro. A teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 63. 267
FARIAS, José Fernando de Castro. A teoria do Estado no fim do século XIX e no início do século XX: os enunciados de Léon Duguit e de Maurice Hauriou. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1999, p. 100.
122
de um Estado maior, que querem formar. É uma sociedade das sociedades, as quais constituem uma nova, que pode aumentar com novos associados, até que seu poder baste para a segurança dos que se uniram.268
Há uma integração na coexistência das instituições ou estados menores,
que Montesquieu chamou de “corpos intermediários”, cujas relações privadas devem
ser respeitadas pelo Estado, que jamais poderá substituí-las. Por esta razão, a
atuação do Estado é subsidiária, tendo como finalidade o bem comum dos
indivíduos e instituições, que tem finalidades específicas.269
Pelo que consta, a concepção de Maurice Hauriou se coaduna com o
entendimento da Igreja Católica a esse respeito, senão vejamos o que diz a
Constituição Apostólica Gaudium et spes:
Para que a cooperação responsável dos cidadãos leve a felizes resultados na vida pública de todos os dias, é necessário que haja uma ordem jurídica positiva, que estabeleça convenientemente divisão das funções e dos orgãos da autoridade pública e ao mesmo tempo protecção do direito eficaz e plenamente independente de quem quer que seja. Juntamente com os deveres a que todos os cidadãos estão obrigados, sejam reconhecidos, assegurados e fomentados os direitos das pessoas, famílias e grupos sociais, bem como o exercício dos mesmos. Entre aqueles, é preciso recordar o dever de prestar à nação os serviços materiais e pessoais que são requeridos pelo bem comum. Os governantes tenham o cuidado de não impedir as associações familiares, sociais ou culturais e os corpos ou organismos intermédios, nem os privem da sua actividade legítima e eficaz; pelo contrário, procurem de bom grado promovê-la ordenadamente. Evitem, por isso, os cidadãos quer individual quer associativamente, conceder à autoridade um poder excessivo, nem lhe peçam, de modo inoportuno, demasiadas vantagens e facilidades, de modo a que se diminua a responsabilidade das pessoas, famílias e grupos sociais.270
Tais entes intermediários entre o indivíduo e o Estado se revelam
inicialmente na família, célula mater da sociedade. Depois vem a escola, a
universidade, a empresa, a associação de classes de profissionais, os sindicatos,
268
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis : as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes, presidencialismo versus parlamentarismo. Tradução de
Pedro Vieira Mota, 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 1999, p.154. 269
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,
1989, p. 91. 270
Disponível em http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html Acesso em 02-03-2014.
123
partidos políticos e tantos outros. Dentre estes grupos estão também os grupos
religiosos ou as igrejas. Isso é um fato social.
Logo, num Estado Democrático às pessoas é permitido associar-se para
manifestar suas crenças e agir na sociedade em conformidade com sua consciência.
E são inúmeras as formas como elas despontam, o que resulta numa sociedade
plural.
Pois bem, não privar os cidadãos e suas instituições de atuar na vida
social e política é dever do Estado, sendo este o verdadeiro sentido de liberdade,
conforme o entendeu Hannah Arendt e se abordará mais adiante.
3.2.2 Finalidade do Estado: O Bem Comum
Enfrentar a questão da finalidade do Estado é necessário para examinar
se as funções que ele desempenha são com ela coerentes:
A falta de consciência das finalidades é que faz com que, não raro, algumas funções importantes, mas que representam apenas uma parte do que o Estado deve objetivar, sejam tomadas como finalidade única ou primordial, em prejuízo de tudo o mais. Dois exemplos atuais, ilustrativos dessa deformação, são representados pela superexaltação da funções econômico-financeiras do estado e pela obsessão de ordem, uma e outra exigindo uma disciplina férrea, que elimina, inevitavelmente, a liberdade.271
Há, por um lado, algumas concepções que defendem que a finalidade
seria elemento essencial do Estado e outras, que nem seria interessante estudá-la,
já que é por demais genérica272, e, ainda outras, que o Estado seria um fim em si
mesmo.
Seja como for é impossível negar importância ao seu estudo, tanto que há
inúmeras teorias em torno dela, classificando-as ou entre as que distinguem os fins
em subjetivos e objetivos, ou fins expansivos, limitados e relativos.
Dallari procede a uma síntese de todas essas ideias verificando que
o Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais sociedades possam
271
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,
1989, p. 87. 272
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva,
1989, p. 87.
124
atingir seus respectivos fins particulares. Assim, pois pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como o conceituou o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana.273
A referência ao pontífice católico trata da Encíclica Pacem in Terris, que
afirma textualmente o seguinte:
A atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos 53. Todo o cidadão e todos os grupos intermediários devem contribuir para o bem comum. Disto se segue, antes de mais nada, que devem ajustar os próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na devida forma e limites de competência. Quer isso dizer que os respectivos atos da autoridade civil não só devem ser formalmente corretos, mas também de conteúdo tal que de fato representem o bem comum, ou a ele possam encaminhar. 54. Essa realização do bem comum constitui a própria razão de ser dos poderes públicos, os quais devem promovê-lo de tal modo que, ao mesmo tempo, respeitem os seus elementos essenciais e adaptem as suas exigências às atuais condições históricas.(grifo do autor)274
Bastante interessante este reconhecimento da Igreja sobre o propósito do
Estado, com base na lei e no bem comum.
A diferença entre a sociedade e o Estado é fundamental, já que este
busca o bem comum de seu povo, aquele que se situa em seu território. Deste
modo, é às pessoas componentes deste povo que se destina a ação do Estado,
mais especificamente para promover seu desenvolvimento humano integral.
Tem-se em vista aqui que, o que determina as peculiaridades de ação de
cada Estado são as peculiaridades de seu povo.275
Segundo o entendimento de José Pedro Galvão de Souza o homem
busca na vida terrena o que necessita para realizar sua felicidade, que, no entanto,
não se alcança plenamente na vida temporal, mas somente na eternidade, para
273
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 91. 274
JOÃO XXIII, Beato Papa.Carta Encíclica Pacem in terris. Vaticano, 1963. Disponível em <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html>. Acesso em 25-03-2014. 275
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado; 14ª ed.; Sao Paulo; Saraiva,
1989, p. 91-92.
125
onde o homem é guiado pela Igreja276. Por esta razão é necessário que haja união e
harmonia entre o Estado e a Igreja que devem fazê-lo em cooperação.
Neste sentido o Estado deve assegurar a liberdade de crença e
consciência, pois isto faz parte do desenvolvimento integral de cada pessoa que tem
o direito de buscar o sentido de sua existência e viver de acordo com ele.
E não apenas isto. Deve dar todo tipo de apoio, inclusive financeiro, a
instituições que comprovadamente praticam obras de caridade e auxiliam na
construção de uma sociedade mais justa e fraterna.
E, assim, Estado e sociedade buscando a cooperação para o bem
comum, poderão construir uma verdadeira família dos povos:
A ação do homem sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus, que é a meta pra onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la em certa medida antecipação que prefigura a
cidade de Deus sem barreiras.277
3.3 Liberdade Religiosa
A liberdade religiosa foi uma das primeiras liberdades asseguradas nas
declarações de direitos, alcançando a condição de direito humano fundamental
consagrado na esfera do direito internacional e na grande maioria dos Estados
Democráticos, permanecendo no cerne da problemática dos direitos fundamentais,
dado ser uma aquisição recente:
Não existiu nas teocracias orientais e nas Cidades-Estado da antiguidade clássica, nem pode existir em certos Estados Islâmicos da actualidade; assim como não poderia coadunar-se com o cesaropapismo bizantino (com afloramentos no Ocidente medieval e que se prolongaria na Rússia czarista), ou, em menor grau embora, com o regalismo das monarquias absolutas dos séculos XVI a XVIII. Muito menos garantem a liberdade religiosa os regimes totalitários e a maior parte dos regimes autoritários contemporâneos, sejam quais
276
SOUZA, José Pedro Galvão de. Iniciação à teoria do Estado. 2ª ed., São Paulo: RT, 1996, p. 15. 277
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo, Paulinas, 2009, p. 11.
126
forem as suas inspirações; toleram-na, quando a não podem destruir.278
Segundo o constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, nos estudos de Georg
Jellinek sobre a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a
liberdade religiosa teria sido a primeira expressão da ideia de um direito universal e
fundamental da pessoa humana. Mas:
Independentemente da posição de Jellinek estar, ou não, correta em toda a sua extensão, o fato é que a proteção das opiniões e cultos de expressão religiosa, que guarda direta relação com a espiritualidade e o modo de conduzir a vida dos indivíduos e mesmo de comunidades inteiras, sempre esteve na pauta preferencial das agendas nacionais e supranacionais em matéria de direitos humanos e fundamentais.279
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948,
artigo XVIII:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular. 280
Outro importante documento internacional de direitos humanos que trata
deste direito é o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966,
promulgado no Brasil pelo Decreto 592/92281, artigo 18, afirma:
1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de
278
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 407. 279
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luís Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional, 2ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 471. 280
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Disponível em http://www.dudh.org.br/declaracao/ Acesso em 02-03-2014. 281
BRASIL. Decreto 592 de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm> Acesso em 02-03-2014.
127
professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino. 2. Ninguém poderá ser submetido a medidas coercitivas que possam restringir sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou crença de sua escolha. 3. A liberdade de manifestar a própria religião ou crença estará sujeita apenas a limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas. 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.
No âmbito dos países americanos foi assinado o Pacto de San José da
Costa Rica282que praticamente reproduziu a norma acima. O direito também está
previsto (não de forma tão detalhada) nas Convenções da Europa e África, mas de
modo específico a ONU o proclamou pela Assembleia Geral de 1981 por meio da
Resolução 36/55.
De acordo com a doutrina brasileira de José Afonso da Silva283 a
liberdade religiosa compreende três vertentes, quais sejam a liberdade de crença, a
liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa.
Na liberdade de crença, que não se confunde com a liberdade de
consciência, está incluída a liberdade de optar pela religião que se quer, de aderir a
seitas religiosas, mudar de religião, e, ainda, o direito de não aderir a nenhuma
religião. “Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de
qualquer religião, de qualquer crença, pois aqui também a liberdade de alguém vai
até onde não prejudique a liberdade dos outros” 284
A prática de rituais próprios da religião escolhida é garantida pela
liberdade de culto seja em casa, seja em público, o que inclui o direito de receber
contribuições para tanto. Abrange, além disso, o direito de proteção pelo Estado aos
locais de culto. No Brasil a Constituição Federal dá inclusive imunidade tributária aos
templos de qualquer profissão religiosa.
282
BRASIL. Decreto 678 de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm> Acesso em 02-03-2014. 283
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 248. 284
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 249.
128
Reunir-se em locais públicos para a prática religiosa é também um direito,
porém aproxima-se mais da liberdade de reunião do que da liberdade religiosa
propriamente.
Por fim, a liberdade de organização religiosa é o direito de ser
reconhecido como entidade organizada e instituída no território daquele país e de
estabelecer relações com o Estado.
No Estado laico como já se viu, essas relações são de absoluta
neutralidade, pois não podem privilegiar ou obstaculizar qualquer religião.
É fato incontroverso que, para a garantia de igual liberdade a todas as
religiões, a laicidade, entendida como independência e neutralidade entre Estado e
Igreja, é condição sine qua non, além da transferência do exercício do poder político
para uma base não mais religiosa.285
Tal neutralidade não impede, entretanto, um regime de cooperação entre
o Estado e as instituições religiosas que a isto se propuserem, sempre com
finalidade de interesse público e do bem comum.
É notório que as entidades religiosas promovem o acolhimento dos
necessitados em abrigos, hospitais, casas de apoio e tantas outras, assumindo
funções que, a princípio caberiam ao Estado. Por esta razão, é importante
regulamentar essas relações evitando a invasão da esfera de um pelo outro,
relações de dependência e confusão de papéis, como outrora ocorrera.
Os ateístas, de seu turno, enfrentam um estigma por seus
posicionamentos contrários à religião. Por serem discriminados encontram nos
ideais da liberdade religiosa, também a liberdade de não ter religião.
Há ateístas, entretanto, que não aceitam ser denominados deste modo,
preferindo ser identificados como agnósticos. Significa que não aceitam e nem
defendem a tese da existência de Deus, mas não negam a possibilidade de que
exista uma divindade. Afirmam eles que essa questão não pode ser resolvida devido
à limitação da razão humana.286
De todo modo, a liberdade religiosa atinge a todos: os que professam
uma religião pela qual optaram e os que nada professam neste sentido.
285 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 286 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e estado no Brasil: Utopia
Constitucional? Tese de doutoramento em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 54-55.
129
O fato é que a liberdade religiosa está estreitamente ligada com a
liberdade cultural e a liberdade política:
Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões – compatível com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado – não há plena liberdade cultural, nem plena liberdade política. Assim como, em contrapartida, aí onde falta a liberdade política, a normal expansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada.287
3.3.1 A Importância da Religião
Nesse novo contexto ocidental de secularização, a grande questão que se
impõe é: a religião integra o patrimônio de uma nação, assim como sua filosofia,
ciências e artes plásticas, a ponto de demandar igual solicitude do Estado? Ou será
que as exigências da alma e do espírito humano, assim como sua consciência moral
e tradições, reveladas na religião professada deveriam ser excluídas de sua
proteção e generosidade? Seria isto liberalismo, democracia e pluralismo ou
verdadeiro ateísmo?
Para Karl Marx, um dos maiores expoentes do ateísmo na humanidade é
necessária não apenas a completa separação entre religião e Estado, mas uma
verdadeira extinção da ideia de que a religião tem importância social. Seu
pensamento se resume na concepção de que a religião é o “ópio do povo”. Está
presente em muitos segmentos políticos, mas de maneira especial no comunismo,
cujo evidente objetivo era enfraquecer a oposição das pessoas e operar sobre elas o
controle total.288
No liberalismo de John Rawls, há uma pressuposição de que na
autonomia política racional dos cidadãos se integra a preocupação não somente
com os desejos materiais e físicos, mas com a realização dos interesses de ordem
superior relacionados à sua capacidade moral e concepções do bem, a fim de
possibilitar que as pessoas desenvolvam-se integralmente:
287
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 408. 288 SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre Religião e estado no Brasil: Utopia
Constitucional? Tese de doutoramento em Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 53.
130
Numa cultura democrática, esperamos e, mais do que isso, desejamos que os cidadãos se preocupem com suas liberdades e oportunidades básicas, a fim de desenvolver e exercer suas capacidades morais, e de procurar realizar suas concepções do bem. Julgamos que mostram falta de auto-respeito e fraqueza de caráter quando não o fazem.289
Como se demonstrou, desde as sociedades primitivas a religiosidade é
típica do espírito humano, provém do desejo de transcendência e, ainda que Freud
atribua esse “sentimento oceânico” ao inconsciente290, é inegável que o homem
desde os primórdios até a pós-modernidade teve necessidade de busca de algo
além do mundo material, de dar sentido a sua existência.
O sagrado designa o que é separado do mundo material, algo que
transcende, ultrapassa o homem. O fato é que
ao ser humano parece sempre ter repugnado a falta de sentido, a ausência de ordem, daí porque seja recorrente, na mitologia dos povos, uma cosmologia ou cosmogonia. [...] as diversas culturas expressaram com nomes diferentes, a mesma ânsia por organização e sentido [...] O sagrado enquanto elemento estruturador de todas as coisas remanesce sempre preservado da desordem, da desagregação, da entropia, ensejando o aparecimento, no seio das sociedades, de desdobramentos morais e jurídicos [...].291
Em contraposição ao sagrado está o profano que é o “reino do devir, da
inconstância, da relatividade, da dispersão e, como tal, não conta com um centro,
um ponto fixo capaz de conferir estabilidade ao mundo”.292
A morte é uma realidade do reino profano que deixa atônito o homem e o
desafia na busca de sentido.
Para alguns, essa predisposição faz do homem um animal naturalmente
voltado para a transcendência, denominado homo religiosus.. 293
289
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 121-123. 290
FREUD, Sigmund. O Mal estar na Civilização. Tradução Paulo César de Souza – 1ª edição: Penguin Classics Companhia das Letras, São Paulo, 2011, passim. 291 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 20-21. 292 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 22.
131
Não se quer dizer com isso que a fé é resultado de uma necessidade
humana de ordem, pois isso implicaria dizer que é o cérebro que cria o fenômeno
religioso. O sagrado é da ordem do mistério que ultrapassa as fronteiras do querer
humano.294
É bastante esclarecedora sobre a importância da religião, a posição do
Papa Emérito Bento XVI ao afirmar que:
Quando o Estado promove, ensina ou até impõe formas de ateísmo prático, tira aos seus cidadãos a força moral e espiritual indispensável para se empenharem no desenvolvimento humano integral e impede-os de avançarem com renovado dinamismo no próprio compromisso de uma resposta humana mais generosa ao amor divino.295
A justiça como equidade defendida por Rawls vê a sociedade como
avalista do reconhecimento público das pessoas como cidadãos livres e iguais: “Ao
garantir essas coisas, a sociedade política satisfaz as necessidades fundamentais
dos cidadãos”. E que
[...] em circunstâncias normais, podemos supor que essas capacidades morais se desenvolverão e se exercerão sob as instituições da liberdade política e da liberdade de consciência, e que seu exercício deve ser promovido e apoiado pelas bases sociais do auto-respeito e do respeito mútuo.296
Ora, o fato de que há grande parte da sociedade composta por pessoas
crentes não pode, simplesmente, ser ignorado pelo Estado, como se não se tratasse
de assunto seu, até porque uma posição assim não contribui com a construção da
solidariedade entre os cidadãos e os povos, tão cara ao estabelecimento da paz.
Vale trazer a tona o teor da palestra do ex-premier britânico Tony Blair
proferida na Universidade de Yale em dezembro de 2008, auge da crise econômica
que ainda reflete suas implicações, no sentido de que a fé e os credos podem ser
293 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 25. 294 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 26. 295
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo, Paulinas, 2009, p. 49. 296 RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 251.
132
determinantes no futuro que se pretende construir, pois tanto poderá ser elemento
de destruição, quanto de congregação, o que importa é buscar os valores comuns a
todos e estabelecer a cooperação para uma nova globalização.
Percebeu o político que acolher a fé e as religiões, garantindo a tolerância
e respeito mútuos não apenas é exigência de Justiça, como resulta na convivência
pacífica e solidária. Ainda que por razões práticas, de eficiência, o fato é que houve
a percepção da necessidade de incluir a fé na política e não simplesmente renegá-
la, isolando-a ao respectivo templo:
Deste meu empreendimento tirei dez lições: 1) A fé religiosa é muito importante. Gostemos ou não, bilhões são motivados por ela. 2) A fé não está em declínio. Poderá estar em declínio em alguns lugares, mas não no mundo todo. Em algumas partes está em ascensão. 3) A fé religiosa pode atuar de modo positivo, apoiando, por exemplo, as Metas de Desenvolvimento do Milênio estabelecidas pela ONU para reduzir a pobreza e permitir o avanço do desenvolvimento. Ou pode atuar de modo negativo, com o extremismo. 4) A globalização está criando sociedades multiconfessionais. A Londres onde meu filho está crescendo é totalmente diferente da Londres em que teria crescido há 30 anos. O mesmo se aplica a toda a Europa e aos EUA. 5) Para funcionar com eficiência, a globalização precisa de valores como confiança, fé, abertura e justiça. 6) A fé não é o único meio, mas é importante para proporcionar estes valores, quando a própria fé se abre e não se fecha; quando se baseia na compaixão e na ajuda aos outros e não numa identidade única. 7) Para que a globalização possa prosperar, precisamos de capital social - a confiança recíproca para que possamos confiar no futuro. O capital espiritual é uma parte importante do capital social. 8) Mas, em uma era de globalização e de sociedades multiconfessionais, a criação do capital exige não apenas tolerância, mas também o respeito pelas pessoas de outras confissões. 9) O elemento fundamental do respeito é a compreensão e, portanto, a necessidade de aprender e educar-se a respeito da fé e das tradições do outro. 10) A religião organizada deveria apoiar este processo e permitir por meio dele a evolução da fé de modo que ela seja uma força positiva, construtiva e progressista. A fé e seus valores são muito importantes. Sua integração definirá de modo crucial as perspectivas de sucesso, de prosperidade e de coexistência pacífica da sociedade global em que vivemos. A alternativa é a tensão, o conflito e a violência. O que isso significa em termos práticos? Antigamente eu acreditava que a globalização era um processo que não contemplava valores. Eu pensava que numa era de globalização era preciso buscar a justiça por seu valor
133
intrínseco, e não por motivos de eficiência. Agora mudei minha posição. A crise econômica mostra o por quê.297
Mais do que um direito de participar da vida pública, todos os cidadãos,
sejam religiosos e motivados por sua crença ou não, tem nela o “locus privilegiado
da vida digna de ser vivida” 298.
É lá que as funções são colocadas a bem da sociedade.
3.3.2 Tolerância Religiosa
Pois bem, após as análises precedentes a respeito da secularização,
laicidade e laicismo, já se concluiu ser não religioso não significa para o Estado que
ele deva ser antirreligioso.299
Então qual deve ser a postura de um Estado Laico em relação à religião
de modo geral?
O Estado laico, não confessional, além de não poder associar-se com
quaisquer igrejas ou associações religiosas, deve também garantir a tolerância e
respeito entre religiões e entre cidadãos de diferentes crenças, inclusive a crença na
inexistência de Deus, zelando pela cooperação entre todos para a construção de
uma sociedade verdadeiramente democrática e solidária.
Na verdade, em sua origem, a palavra tolerância estava estritamente
relacionada com a transigência em relação a outras confissões religiosas, passando
a ser termo jurídico quando alguns governos, no decorrer dos séculos XVI e XVII,
começam a redigir documentos neste sentido, exigindo da população ortodoxa, o
trato respeitoso com as minorias religiosas. Foi o que ocorreu na França, quando
Henrique IV publicou o Edito de Nantes300.
297
BLAIR, Tony. O papel da fé para o êxito da globalização. adaptação de uma palestra feita por ele, na Universidade de Yale. Artigo extraído do periódico Estado de São Paulo de 20 de dezembro de 2008. (Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-papel-da-fe-para-o-exito-da-globalizacao,297203,0.htm – Acesso em 27-02-2014). 298
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 255. 299 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi: Martins Fontes, São Paulo:
2007, p. 692-693. 300
O Edito de Nantes foi promulgado em 13 de abril de 1598 e concedeu, ainda que de maneira limitada, aos protestantes da França, os huguenotes, direitos religiosos, civis e políticos, pois vinham sendo duramente reprimidos pelas autoridades seculares e eclesiásticas daquele país.
134
Posteriormente, o instituto foi sendo englobado em outras normas de
outras nações. Essas normas determinavam um comportamento indulgente com
membros de uma comunidade religiosa até então acuada.301
Entretanto, quando hoje se fala em tolerância, o que vem à mente é um
conceito mais generalizado para a questão da convivência com as minorias ou os
que são chamados de “diferentes” como negros, homossexuais e deficientes.302
Vale trazer a diferenciação aduzida por Norberto Bobbio entre a ideia de
tolerância geral e a específica em relação às religiões, pois as razões de defesa de
um tipo e de outro são diferentes.
No primeiro caso, trata-se de verdadeiro preconceito por motivos físicos
ou sociais, que deságuam na inevitável discriminação dessas minorias. Já o
segundo deriva da convicção de que se está com a verdade. E, nesse caso, como
seria possível compatibilizar duas verdades opostas?
Bobbio se ocupa das razões da tolerância religiosa, da convivência de
confissões religiosas diversas, problema que nasceu com a reforma e a
consequente divisão da cristandade. Bastante perspicaz a observação do jurista
italiano:
Da acusação que o tolerante faz ao intolerante, isto é, de ser um fanático, o intolerante se defende acusando-o de, por sua vez, ser um cético ou, pelo menos, um indiferente, alguém que não tem convicções fortes e que considera não existir nenhuma verdade pela
qual valha a pena lutar.303
Recorda ele a posição de Benedetto Croce segundo quem a tolerância
seria mera fórmula prática e contingente e não um princípio universal. Portanto, não
poderia ser um critério de julgamento da história, que teria critérios a ela própria
inerentes. Ainda, segundo Benedetto Croce, os tolerantes nem sempre foram os
espíritos mais combativos e vigorosos e sim os indiferentes e retóricos (termo
utilizado de modo pejorativo). Significa dizer que os tolerantes não eram assim
devido a boas razões, mas por não dar a menor importância à verdade.
301 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 279. 302
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 187. 303
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 187.
135
Contudo, Bobbio analisa as razões práticas e teóricas da tolerância, por
não estar convencido disso.304
O que é mais interessante na análise de Bobbio é que ele reconhece que
a tolerância pode ter um sentido negativo ou indulgência com o mal, seja por
comodismo, cegueira ou falta de princípios. Infelizmente, alguns usariam este
sentido negativo para denegrir a tolerância como um todo.
De todo modo, a primeira razão prática para ser tolerante é a de que isto
seria um mal menor. Desse modo, a tolerância não implicaria renunciar à própria
verdade, mas apenas suportar erro alheio:
Mesmo nesse nível elementar, capta-se a diferença entre o tolerante e o cético: o cético é aquele para quem não importa que a fé triunfe; o tolerante por razões práticas dá muita importância ao triunfo de uma verdade, a sua, mas considera que, através da tolerância, o seu fim, que é combater o erro ou impedir que ele cause danos, é melhor alcançado do que mediante a intolerância.305
Uma segunda razão seria a escolha da persuasão como método de
convivência e a recusa consciente da violência como método de triunfo das ideias.
Este seria um traço dos regimes democráticos a diferenciá-los do despotismo.
A terceira razão aduzida por Bobbio tem cunho moral e não meramente
utilitarista: é o respeito ao outro. Não significa, portanto, renunciar à própria verdade
ou ser indiferente. É atitude que está intimamente ligada ao reconhecimento do
direito de liberdade.
Ao lado dessas três razões práticas da tolerância há razões teóricas,
segundo as quais “ a verdade tem muitas faces”. Segundo Bobbio são três posições
filosóficas neste sentido: o sincretismo, o ecletismo e o historicismo relativista:
O sincretismo de que foi expressão, numa época de grandes controvérsias teológicas o humanismo cristão, e hoje, numa época de grandes conflitos ideológicos, as várias tentativas de conjugar cristianismo e marxismo; o ecletismo, ou filosofia do “justo meio”, que teve o seu breve momento de celebridade como filosofia da restauração, e, portanto, também numa perspectiva irênica, após período de choque violento entre revolução e reação, revivendo hoje nas várias propostas de “terceira via”, entre liberalismo e socialismo,
304
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 188. 305
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 189.
136
entre mundo ocidental e mundo oriental, entre capitalismo e coletivismo; e o historicismo relativista, segundo o qual, para retomar a famosa afirmação de Max Weber, numa era de politeísmo de valores, o único templo aberto deveria ser o panteão, um templo no qual cada um pode adorar seu próprio deus.306
Seja como for:
O núcleo da ideia de tolerância é o reconhecimento do igual direito a conviver, que é reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considera depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos do direito ao erro de boa fé. A exigência da tolerância nasce no momento em que se toma consciência da irredutibilidade das opiniões e da necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma
regra do jogo), que permita que todas as opiniões se expressem. Ou a tolerância, ou a perseguição: tertium non datur.307
De qualquer modo, a tolerância tem alcance dúplice, designando tanto a
conduta condescendente entre cidadãos de confissões diversas, quanto a postura
transigente do Estado em relação a todas as religiões:
É possível uma distinção mais nítida entre “tolerance” enquanto virtude ou disposição para o comportamento e “toleration”, que constitui um ato jurídico. Nós empregamos a mesma expressão “tolerância” (Toleranz) para designar ambas as coisas: tanto uma ordem jurídica que garante tolerância, como a virtude política do trato tolerante.308
Tolerância no sentido de não intervenção do Estado no âmbito privado de
seus cidadãos, forçando-os a uma determinada crença religiosa foi bastante
difundida pelo iluminista e burguês protestante John Locke. Ele afirmou
categoricamente que não deve haver confusão entre a esfera religiosa e secular. Na
ocasião, a religião católica ainda era imposta em alguns Estados.
Para o filósofo inglês, o Estado deve se preocupar com a proteção dos
interesses materiais de seus cidadãos, mas não tem nenhum poder sobre o recesso
íntimo das consciências individuais e, por conseguinte, sobre a fé que escolhem.
306
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 192. 307
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 194 (tertium non datur: expressão em latim que significa que há impossibilidade de uma terceira via). 308
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 280
137
Além disso, John Locke afirmava que o poder do soberano não era
fundamentado na vontade divina, mas originado no pacto social, isto é, um acordo
entre os indivíduos livres com intuito de utilizar sua força coletiva na execução das
leis naturais, renunciando à executá-las pela força individual.
Em suas próprias palavras:
Denomino de bens civis a vida, a liberdade, a saúde física e a libertação da dor, e a posse de coisas externas, tais como terra, dinheiro, móveis, etc. É dever do magistrado civil [...] assegurar para o povo em geral e para cada súdito em particular a posse justa dessas coisas que pertencem a esta vida [...] o magistrado reveste-se de força, ou seja, com toda a força de seus súditos, a fim de punir os que infringiram quaisquer direitos de outros homens.[...] Não cabe ao magistrado civil o cuidado das almas [...] Isso não lhe foi outorgado por Deus, porque não parece que Deus jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre o outro para induzir outros homens a aceitar sua religião [...] Mesmo se alguém quisesse, não poderia jamais crer por imposição de outrem. É a fé que dá força e eficácia à verdadeira religião que a gente professa [...] Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito.309
Para ele a religião é escolha individual, segundo a consciência de cada
um, sendo impossível sua imposição por meio da força coercitiva, que caberia ao
poder civil. No entanto, para Locke aos ateus não caberia nenhum tipo de tolerância.
A causa disto, segundo Norberto Bobbio era a certeza de que um ateu
não teria razão para cumprir uma promessa ou observar um juramento, e, portanto,
não seriam pessoas confiáveis. 310
Da mesma maneira, mesmo que um príncipe seja cristão não pode
favorecer sua igreja em detrimento de outras ou de um ateu. Às igrejas, por seu
turno, seria razoável excomungar os que transgridem seus preceitos, desde que de
modo não ofensivo.
Continua Locke afirmando que faz parte da missão do que professa
determinada fé, a manifestação pública, o ensino de sua doutrina, o testemunho de
sua vida, não cabendo à religião um lugar apenas privado:
309
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p.5. 310
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 193.
138
Libertamos, assim, todos os homens de se dominarem mutuamente em assuntos religiosos. Portanto, o que é que devem fazer? Todos nós sabemos e reconhecemos que temos que cultuar Deus publicamente; por que devemos nos reunir em assembleias públicas? Porque os homens dotados dessa liberdade devem fazer parte de certa sociedade religiosa para manter serviços públicos, não apenas para mútua edificação, como também para testemunhar ao mundo que são cultores de Deus [...] e, finalmente, pela pureza de sua doutrina, santidade de sua vida, e forma decente de culto, estimam encorajar outros a amar a religião e a verdade, e a executarem esses serviços religiosos que não podem ser realizados pelos homens isoladamente.311
Resulta daí que, ao Estado não caberia proibir os cultos religiosos, mas
garantir sua segurança e proteção.
Nem pessoas, nem igrejas, segundo Locke devem se atacar ou prejudicar
mutuamente em seus bens civis por professarem religiões diversas.
Locke assim ensinou por ter concluído que a intolerância religiosa teria
sido a razão da maioria das disputas e guerras que se tem manifestado no mundo
cristão, pois os líderes religiosos estavam imbuídos de avareza e desejo de
domínio.312
Essa concepção subjetiva de tolerância também é reconhecida em
autores contemporâneos como Jürgen Habermas e Norberto Bobbio.
Para o primeiro:
Devemos continuar respeitando no outro o co-cidadão, mesmo quando avaliamos sua fé ou seu pensamento como falsos ou rejeitamos a correspondente conduta de vida como ruim. A tolerância preserva uma comunidade política pluralista de se dilacerar em meio a conflitos oriundos de visões de mundo diferentes.313
Assim, a tolerância em seu aspecto social exige o igual respeito e o
reconhecimento recíproco da liberdade religiosa como regras da atitude
condescendente, que requer a ausência de qualquer tipo de coação, seja política,
seja moral, a fim de fazer prevalecer verdades de fé:
311
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 14. 312
LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 3ª edição. São
Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 27. 313
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 286.
139
A tolerância religiosa pode ser garantida de modo transigente pelas condições sob as quais os cidadãos de uma comunidade democrática se concedem mutuamente liberdade de religião. Desta maneira, é possível solucionar o aparente paradoxo [...] pelo direito ao livre exercício da própria religião e pela correspondente liberdade negativa de não ser molestado pela religião dos outros.314
Observe-se que tolerar não significa ser indiferente, mas ter respeito à
liberdade de escolha do outro, admitindo-se a presença de outras cosmovisões lado
a lado com a que foi por si escolhida. Não pode estar presente, portanto, o
preconceito, nem, por outro lado, a ideia de que todas as concepções de mundo
devem ser aceitas por todos como igualmente verdadeiras.
Como leciona John Rawls, cada religião é uma doutrina compreensiva, ou
seja, é uma imagem de mundo que envolve integralmente e conduz a vida de seus
membros. Deste modo, a tolerância é necessária para evitar a ânsia de impor-se
sobre os demais e consequentemente evitar conflitos intermináveis para fazer
prevalecer apenas uma visão de mundo. As religiões, neste sentido, tem que
compreender que a vida política se diferencia da vida religiosa.
De outro lado, os cidadãos seculares devem compreender que essa
diferenciação não implica na exclusão da religião da vida política, mas na aceitação
de que as motivações de religiosos na esfera pública são invariavelmente religiosas:
“A necessária diferenciação dos papéis de membro de uma comunidade e de
cidadão da sociedade precisa ser fundamentada, convincentemente, na visão da
própria religião. Caso contrário, os conflitos de lealdade aprofundar-se-ão”. 315
Isso quer dizer que, a tolerância é uma exigência pacificadora a ser posta
em prática pelos cidadãos religiosos entre si, sem que nenhum deles seja obrigado a
reconhecer como verdadeira uma concepção diversa, mas é, de outra maneira, uma
imputação também aos não crentes:
Porquanto, em sociedades pluralistas constituídas de modo liberal, a compreensão da tolerância não exige apenas dos crentes, no seu trato com crentes de crenças diferentes, que levem na conta, de modo razoável, a devida permanência de um dissenso. Já que a mesma compreensão é exigida dos não-crentes no seu trato com crentes em geral. Para a consciência secular isso implica, contudo, a
314
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 282. 315
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 291.
140
exigência de determinar, de modo autocrítico, a relação entre fé e saber.316
Habermas afirma isto porque entende que o saber deve conceder à fé um
“status epistêmico”, deixando de olhá-la como se fosse uma simples irracionalidade.
Ele perfilha que a verdadeira tolerância a ser garantida pelo Estado secular deve
assegurar que as cosmovisões se desenvolvam sobre a base do respeito mútuo,
“sem regulamentações preconceituosas” de parte a parte.
É imperativo reconhecer que, em assuntos polêmicos, que envolvam
questões éticas, como aborto e manipulação genética; as opiniões políticas
baseadas em visões de mundo religiosas podem “abrir os olhos de outros cidadãos
para um aspecto até então negligenciado, de tal sorte que eles podem influenciar a
formação da maioria”.317
O direito de livre escolha religiosa e sua manifestação exige do Estado a
pacificação do pluralismo das visões de mundo:
Somente o exercício de um poder secular estruturado num Estado de direito, neutro do ponto de vista das imagens de mundo, está preparado para garantir a convivência tolerante, e com igualdade de direitos de comunidades de fé diferentes que, na substância de suas doutrinas e visões de mundo continuam irreconciliáveis. A secularização do poder do Estado e as liberdades positivas e negativas do exercício da religião constituem que dois lados de uma mesma medalha. No passado, elas protegeram comunidades religiosas, não somente das consequências destrutivas resultantes de conflitos sangrentos que irromperam entre elas, mas também de um modo de pensar, inimigo da religião, difundido numa sociedade secular.318
Por outro lado,
O direito fundamental da liberdade de consciência e de religião constitui a resposta política adequada aos desafios do pluralismo religioso. Isso permite desarmar, no contexto do trato social dos cidadãos, o potencial conflituoso que continua permeando, no nível
316
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 293. 317
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 294. 318
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 9.
141
cognitivo, as convicções existenciais de crentes, de não-crentes e de crentes de outras denominações.319
Significa dizer que num Estado constitucional que garante a liberdade de
culto e consciência, tolerância e laicidade se entrelaçam:
Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico, por outro, entendido este como a formação daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais às razões da razão que une todos os homens do que
aos impulsos da fé. 320
E, enfim:
Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados não confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo liberais, ou neutros em matéria política; e por outro, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrataste de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da áurea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que não invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, “a liberdade do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal” (que é a lei da razão).321
3.4 Lugar da Religião no Espaço Público
Enfim, chega-se ao ponto nevrálgico deste estudo, a tentativa de reflexão
acerca de uma questão crucial para a filosofia, a religião e o Estado moderno:
Até que ponto a separação entre Igreja e Estado, a qual é requerida pela constituição, pode influenciar o papel a ser desempenhado pelas tradições e comunidades religiosas na esfera pública política e na sociedade civil, portanto, na formação política da opinião e da vontade dos cidadãos?322
Ou seja, a neutralidade inerente à racionalidade que supera as
intolerâncias recíprocas implica em que as religiões devam ficar completamente
319
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 320 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 198. 321
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, 13ª. reimpressão,
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 198. 322
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136.
142
apartadas do espaço público? Ou seja, motivações e argumentos de fundo religioso,
com repercussão em questões de interesse da sociedade, por obediência à regra de
tolerância, devem ser coibidos de participação política, de se expressar?
A resposta é negativa porque não se pode ignorar a existência das bases
pré-políticas, anteriores ao nascimento daquele Estado. Ou seja, havia uma nação
com valores e regras de convivência, antes da instituição do Estado e do
ordenamento jurídico, que, por questões de legitimação do poder, devem ser
recepcionadas.
3.4.1 O Reconhecimento da Existência das Bases Pré-Políticas e o Problema da Legitimação do Direito
Sobre a existência dessas bases pré-políticas do ordenamento jurídico,
identificando-as como seu poder originário, ou a fonte das fontes, leciona Norberto
Bobbio que:
Nenhum ordenamento nasce num deserto; metáforas a parte, a sociedade civil na qual se vem formando um ordenamento jurídico, como é, por exemplo, o do Estado, não é uma sociedade natural, destituída por completo de leis, senão uma sociedade na qual vigem normas de variados gêneros, morais, sociais, religiosas, costumeiras, consuetudinárias, convencionais e outras mais. O novo ordenamento que surge não elimina jamais por completo as estratificações normativas que o precederam.323
Este novo ordenamento, segundo o autor, já surge limitado pelos
ordenamentos precedentes, isto é, pelas fontes culturais, morais, éticas, religiosas
que formaram aquele povo e lhe deram a identidade324. São essas as bases pré-
políticas de uma sociedade.
Sobre o problema da legitimidade ou justificação do poder afirma Norberto
Bobbio:
Admitido que o poder político é o poder que dispõe do uso exclusivo da força num determinado grupo social, basta a força para fazê-lo
323
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 55. 324
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo:
Edipro, 2011, p. 56.
143
aceito por aqueles sobre os quais se exerce, para induzir os seus destinatários a obedecê-lo?325
O filósofo alemão Jürgen Habermas reflete sobre o mesmo assunto
partindo da pergunta formulada por Ernst-Wolfgang Böckenförde em meados dos
anos 60, qual seja: “Será que o Estado secularizado continua alimentando-se de
pressuposições normativas que ele não consegue garantir por si mesmo?”.326
A pergunta revela a preocupação em saber se o Estado por si só
consegue manter e renovar suas pressuposições normativas ou depende de
tradições éticas, religiosas ou metafísicas, para obrigar a coletividade.
Certamente era esta também a proposição de Fustel de Coulanges
quando, conforme páginas atrás, afirmou: “a nossa natureza sente a necessidade de
não se submeter a outra autoridade que não seja a concepção moral”327.
Na antiguidade, como na Idade Média, essa legitimação da autoridade era
obtida por fundamentação religiosa, onde o detentor do poder estava abalizado pela
autoridade religiosa, isso quando ambos não se confundiam na mesma pessoa.
Já na Modernidade o Estado secular não conta mais com esta base,
então donde virá tal autoridade? O que poderá dar a quem detém o poder, uma
razão de comandar, e a quem suporta o poder, uma razão de obedecer?
A autoridade estabelecida sobre a tradição, ou em outras palavras, sobre
tais bases pré-políticas, segundo Hannah Arendt, é que faz com que os homens
obedeçam, pois “a autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua
liberdade”.328
Gaetano Mosca respondeu à pergunta afirmando que
em todas as sociedades discretamente numerosas e que apenas chegaram a um certo grau de cultura, aconteceu que a classe política não justifica exclusivamente seu poder somente com a posse de fato, mas procura dar a ele uma base moral e também legal, fazendo-o
325
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 86. 326
BÖCKENFÖRDE, E. W..Die Entstehung des Staates als Vorgnag der Säkularisation. (1967), in id. Recht, Staat, Freiheit. Frankfurte; M. 1991, 92 ss, apud HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 115. 327 FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as
instituições da Grécia e de Roma; trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1975, p. 141. 328
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro; trad. Mauro W. Barbosa; 7a. Ed., São Paulo:
Perspectiva, 2011, p. 144.
144
derivar como consequência necessária de doutrinas e crenças geralmente reconhecidas e aceitas na sociedade que ela dirige.329
Desta concepção diverge o positivismo jurídico, doutrina para a qual só é
direito o que é posto pelas autoridades delegadas para este fim pelo próprio
ordenamento e tornado eficaz por outras autoridades também previstas no
ordenamento, independente de bases pré-políticas.
Seja como for, na descrição das formas históricas de legitimidade do
poder, Weber, desejando mostrar quais foram até agora os fundamentos reais do
poder político, identificou três modalidades de motivação do poder legítimo, isto é, o
poder tradicional (derivada da tradição e sacralidade), o poder racional-legal (deriva
da crença na racionalidade do comportamento conforme a lei) e o poder carismático
(que deriva dos dotes extraordinários do chefe do poder).330
Niklas Luhmann, por sua vez, entende que a legitimidade está no
procedimento e não nas partes que o compõem. Ele analisa três procedimentos
jurídicos: o judiciário, o legislativo e o administrativo, e refere que “a função
legitimadora do procedimento não está em substituir uma decepção por um
reconhecimento, mas em imunizar a decisão final contra as decepções
inevitáveis”.331
O direito, então, tido como sistema autopoiético, mas que admite
“irritações” externas legitima-se quando os sujeitos participam dos procedimentos
por meio da comunicação. Assim, geram uma necessária ilusão, a fim de que a
possibilidade de decepção rebelde não se concretize, obtendo com isso a
obediência.
Essa concepção de sociedade foi contraposta por Habermas.
O filósofo procurou elaborar uma nova teoria que questiona a validade da
proposta positivista de postular a objetividade e verdade do conhecimento apenas
em função do método, ou melhor, do procedimento lógico-formal.
Com efeito, a teoria da ação comunicativa de Habermas pressupõe que a
racionalidade é um procedimento argumentativo pelo qual dois sujeitos ou mais se
329
MOSCA, Gaetano. Elementi di scienza politica. Bocca, Roma: Ed. Laterza, Bari, 1923 , p. 108 apud BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco
Aurélio Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 88. 330
BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade; por uma teoria geral da política; trad. Marco Aurélio
Nogueira, 2ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 42. 331
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Trad. De Maria da Conceição Corte-Real.
Brasilia: Editora Universidade de Brasília, 1980, passim.
145
põem de acordo sobre questões relacionadas com a verdade, a justiça e a
autenticidade:
Na ação comunicativa cada interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (begründet),
isto é, com argumentos.332
Possivelmente esta seja a resposta adequada para orientar a relação entre
Estado e Religião no mundo pós-secular.
3.5 Habermas e a dialética da razão comunicativa
A história da humanidade mostrou o quanto a religião sempre esteve
entrelaçada com o Estado, muitas vezes numa relação patológica. Reações radicais
contra essas patologias, todavia, acabaram por enveredar numa concepção negativa
da religião, que, portanto, no Estado Moderno, deveria se restringir à esfera privada,
até que a ciência e o progresso a eliminassem de vez.
Contudo, a religiosidade persiste e as religiões desejam sair da esfera
estritamente privada e atuar no espaço público, como parte de sua identidade
religiosa. Isto seria algo a temer? Um retrocesso? Ou existe um lugar para a Religião
no Espaço Público? É possível pensar a religião e a política em termos de
cooperação?
Esses questionamentos vêm sendo feitos por inúmeros autores333 que já
perceberam este movimento de liberação das religiões em direção à esfera pública
Segundo os estudos do filósofo alemão Jürgen Habermas é necessário
para a legitimação do Estado e do Direito que todos participem do debate público na
tomada de decisões políticas.
Ele refutou a razão instrumental, isto é, o uso da razão e da ciência como
instrumento de poder, e desenvolveu a teoria política da razão comunicativa, que
332
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo: Brasiliense, 2010, p. 59. 333 Sobre tais autores cf. CASAMASSO, Marco Aurélio Lagreca. Política e Religião: o estado laico e a liberdade religiosa à luz do constitucionalismo brasileiro. Dissertação de Doutorado em Direito Constitucional apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2006, p. 112-118.
146
supõe a razão como o resultado do diálogo entre diferentes posições e não a
imposição de cosmovisões seja de um lado seja de outro334.
Habermas é um dos remanescentes da Escola de Frankfurt, cuja
descrição foi feita anteriormente.
Em que pese tenha ele elaborado trabalhos que fizeram renascer o
pensamento de seus mestres, suas reflexões acerca dos problemas sobre a
legitimação do Estado moderno e a elaboração de uma teoria da ação comunicativa
exemplificam seus esforços no sentido de reformulação e inovação teórica dos
intelectuais de Frankfurt, que os supera e transcende.335
Acredita o autor que, a linguagem e a capacidade de compreensão do ser
humano leva a uma transparência das relações sociais, pois a sociedade é um
sistema apenas para quem a observa de fora. Mas para o que a vê de dentro, como
participante das relações sociais, a visão não é por assim dizer “fria”, mas permeada
das vivências e experiências e da subjetividade dos afetos.
Essa visão interna que compõe a memória e história do povo não pode
ser desprezada, como tenta fazer a modernidade, que quer criar um hiato entre o
mundo vivido e o mundo sistêmico, isto é, a visão estanque e instrumentalizada do
mundo:
O mundo vivido, regido pela razão comunicativa, está ameaçado em sua sobrevivência pela interferência da razão instrumental, Ocorre uma anexação do mundo vivido por parte do sistema, desativando as esferas regidas pela razão comunicativa e impondo-lhes a razão instrumental, tecnocrática. A interferência do subsistema estatal na esfera do mundo vivido é a burocratização, e a do subsistema econômico, a monetarização. Essas duas usurpações são responsáveis pelas patologias do mundo vivido.336
Por este motivo entende Habermas que é necessário resgatar a
comunicação e os argumentos inseridos no mundo vivido, no mundo histórico-
cultural, para
334
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo: Brasiliense,
2010, passim. 335
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense,
2010, p.29. 336
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense,
2010, p. 62.
147
Reorientar a razão instrumental, reconduzindo-a aos limites dentro dos quais é imprescindível e pode fornecer uma contribuição inestimável para assegurar a organização e sobrevivência das modernas sociedades de massa. Segundo Habermas, é na esfera social e da cultura [...] que devem ser conjuntamente fixados os destinos da sociedade, através do questionamento e da revalidação dos valores e das normas vigentes no mundo vivido. Somente quando este reconquistar o terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se tornou urgente: a “descolonização” do mundo vivido pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa, estaria recolocando em seu devido lugar a razão instrumental.337
Evidente que ele resgata a importância das bases pré-políticas para
identificá-las e revalidá-las através do diálogo.
Assim, tem ele a sua frente o desafio da legitimação, já que: “A
constituição democrática precisa preencher a lacuna de legitimação aberta pela
neutralização – em termos cosmológicos – do poder do Estado”338
Ele se ocupou com o “embate” sobre a correta interpretação das
consequências da secularização entre uma “racionalização social e cultural”
originada no Iluminismo e as “ortodoxias religiosas”, já que isto tem implicações
políticas339.
Para o autor é necessário que ambas as esferas se disponham à
autorreflexão, tendo em vista que disso depende a coesão da comunidade política:
“[...] o etos340 do cidadão liberal exige, de ambos os lados, a certificação reflexiva de
que existem limites, tanto para a fé como para o saber”.
De nada adianta o Estado ser neutro e proteger a pluralidade se as
partes, sejam ou não religiosas, não se convencerem de que vivem numa sociedade
democrática, que pressupõe uma solidariedade respeitosa. Solidariedade esta que
não brota do Direito Posto e sim da predisposição de ouvir-se em debates públicos,
aprendendo uns com os outros341.
337
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. 5ª edição, 2ª. reimpressão, São Paulo: Brasiliense, 2010, p. 62-63. 338
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 136. 339
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 8. 340
conjunto das características distintivas de um povo, grupo ou comunidade, nomeadamente no que diz respeito a atitudes, hábitos e crenças 341
HABERMAS, op. cit., p. 9
148
3.5.1 Habermas e a Indispensável Participação Política da Religião para a Legitimação do Direito
Conseguiria o Estado Moderno, não mais legitimado pela vontade de
Deus ou pela lei natural, fazer com que os homens obedeçam somente por seus
próprios meios ou ainda necessitaria do embasamento moral e cultural do qual a
sociedade está permeada?
Esse era o teor do questionamento de Böckenförd, citado por Habermas.
Ele encontrou a resposta no processo democrático, do qual devem
participar todos os cidadãos e grupos. No fruto deste diálogo, precisamente, é que
se encontra a legitimidade342 e, portanto, a autoridade, do direito.
A interpretação de Böckenförde de que o direito positivo depende de uma
fundação nas convicções éticas pré-políticas da comunidade, pois a ordem jurídica
por si só não é capaz de legitimar-se, não é aceita totalmente por Habermas.
A princípio, reconhece o autor que a teologia cristã medieval sobre o
direito natural está na genealogia dos direitos humanos, legitimando-os, no entanto
os fundamentos de legitimação do Poder do Estado provêm de fontes profanas da
filosofia do século XVII e XVIII.
É forçoso reconhecer a necessidade do diálogo entre todas as posições
da sociedade, incluindo-se a religiosa. No Estado laico, portanto, é necessário haver
uma dialética entre as posições religiosa e secular.
Portanto, os cidadãos devem assumir seus direitos de comunicação e
participação ativamente, não apenas visando o interesse próprio, mas o bem
comum, para promover um modelo kantiano do processo democrático, onde cada
qual se sente colegislador.
Contudo, reconhece Habermas que isso exige uma “taxa elevada de
motivação” que não pode ser imposta legalmente, mas emana numa sociedade que
vive de fontes espontâneas ou pré-políticas: “Os motivos para uma participação dos
cidadãos (Bürger) na formação política da opinião e da vontade alimentam-se,
certamente, de projetos de vida éticos e de formas de vida culturais”343.
342
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 116. 343
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 119.
149
O ponto em que Habermas se opõe a Böckenförde é que, para o primeiro,
o processo democrático em que há a participação dos cidadãos desenvolve um
mecanismo próprio e se desliga das ancoragens pré-políticas, ele próprio torna-se o
“laço unificador” da compreensão correta da constituição, especialmente sobre
assuntos que mobilizam mais fortemente a sociedade.
Mas a solidariedade, ainda que abstrata, da qual depende a participação
nesse processo democrático, permanece ancorada nas bases pré-políticas daquela
sociedade que fornecem seus valores éticos e culturais: “O status de cidadão do
Estado está, de certa forma, embutido numa sociedade civil que vive de fontes
espontâneas ou, se preferirmos, 'pré-políticas'”.344
Diante disso, é necessário compreender que o processo democrático
deve envolver todas as pessoas e seus modos de visão do mundo, fazendo com que
as exigências morais e culturais surgidas no debate político sejam compreendidas
como limites a uma modernização imposta por forças externas, já que pode destruir
o laço de solidariedade necessário a um Estado Democrático de Direito:
Uma modernização “descarrilhadora” da sociedade poderia muito bem esgarçar, em sua totalidade, o laço democrático e consumir o tipo de solidariedade da qual o Estado democrático depende e a qual ele não pode obter pela força. Pois, neste caso, entraria em cena a constelação que Böckenforde tem na mira, ou seja: a transformação dos cidadãos de sociedades liberais abastadas e pacíficas em mônadas individualizadas que agem guiadas pelos próprios interesses e que utilizam seus próprios direitos subjetivos como se fossem armas apontadas para os outros.345
O rompimento desta solidariedade certamente acarretaria uma sociedade
de indivíduos fechados em suas visões de mundo, que agem somente em vista de
seus próprios interesses, utilizando seus direitos como um poder contra os demais.
O exemplo típico é o caso do fundamentalismo religioso crescente não
apenas em países do Oriente Médio, como da África, Sudeste da Ásia e Índia, cuja
origem pode ser entendida por uma colonização violenta e uma descolonização
através da imposição de um capitalismo não correspondente à cultura local. Melhor
344
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 119. 345
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 121
150
dizendo, as mudanças impostas a estes povos foram radicais, provenientes de
cultura diversa e não correspondente com a tradição local:
Nesta linha de interpretação, os movimentos religiosos tendem a processar as mudanças sociais radicais e a não-simultaneidade cultural, que são experimentadas sob as condições de uma modernização acelerada ou fracassada, interpretando-as como desenraizamento.346
Por este motivo, segundo Habermas novamente:
Entre os cidadãos do Estado surge uma solidariedade – mesmo que abstrata e mediada pelo direito – apenas quando os princípios da justiça conseguem ter acesso à rede das orientações axiológicas culturais, que são muito mais densas.347
Um processo verdadeiramente democrático, legitimador do direito e do
Estado, deve incluir as cosmovisões dos diversos setores da sociedade, os
argumentos de parte a parte, cada qual reconhecendo seu lugar no jogo político,
qual seja, delimitando reciprocamente o espaço de ação do outro. A razão elimina o
fundamentalismo religioso e a religião fornece as bases éticas para a ciência.
A Igreja Católica demanda este lugar na esfera pública, pois crê que
“negar espaço para as verdades de fé acarretam consequências negativas para o
verdadeiro desenvolvimento”.348
Tanto é assim que:
A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este “estatuto de cidadania” da religião cristã. [...] A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal.349
346
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 130. 347
HABERMAS. HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 121. 348
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 105. 349
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 106.
151
Com efeito, Habermas reconhece que a filosofia tem a aprender com a
religião não por simples razões funcionais, mas em relação a conteúdo, recordando
que a helenização do cristianismo acabou por promover uma “apropriação, por parte
da filosofia, de conteúdos genuinamente cristãos” que se solidificou, dentre outros,
em “responsabilidade, autonomia e justificação; história, recordação e recomeço;
inovação e retorno; emancipação e completude; renúncia, incorporação,
internalização, individualidade e comunidade”350.
Portanto, participação pública da religião, seja por intermédio da
argumentação levada ao debate político, seja pela valorização dos princípios éticos
e morais defendidos é necessária à legitimação do Direito e do poder político.
3.6 O Contributo das Três Grandes Religiões Monoteístas para a Construção
de uma Sociedade mais Justa e Fraterna
Os valores defendidos pela tradição judaico-cristã foram e ainda o são de
grande auxílio para que os homens alcancem maior consciência moral de sua
conduta. Eles agem no sentido de um “despertar de consciências” que capacita o
homem a abandonar ideologias e culturas de crueldade e de “coisificação” do ser
humano.
O passado é testemunha da crueldade com que o homem pode tratar seu
semelhante, basta lembrarmos dos campos de concentração e câmaras de gás do
nazismo ou mesmo a escravidão que arrancou milhões de negros de sua terra natal
para uma situação de absoluta indignidade.
É Fábio Konder Comparato quem expressa o contributo das duas grandes
religiões monoteístas cristãs para o mundo:
[...] as prescrições dadas por Deus a Moisés não eram apenas cultuais, mas também morais: o povo de Israel assumiu o dever não apenas de prestar um culto a Iahweh, de acordo com o ritual prescrito, mas também de viver de modo justo e digno351.
350 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 125. 351 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
152
Neste ponto, toma-se a liberdade de citar alguns textos bíblicos, a fim de
fundamentar a colocação acima.
No judaísmo, Isaías indicava que Deus quer a prática do bem antes de
uma religião meramente de rituais e sacrifícios afirma:
Que me importam os vossos inúmeros sacrifícios? [...] Basta de trazer-me oferendas vãs: Elas são para mim um incenso abominável.[...] Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, Aprendei a fazer o bem! Buscai o direito, corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!352
Jesus Cristo veio acentuar que de nada adianta uma vida de perfeição
ritual na obediência aos preceitos, se se pratica a injustiça e a opressão. Recorde-se
o quanto o farisaísmo irritava o Rabi Nazareno:
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas. Condutores cegos, que coais o mosquito e tragais o camelo! [...] [...] Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem bonitos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e toda a podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos aos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidades.353”
A respeito do apego excessivo ao dinheiro foi enfático ao dizer: “Ninguém
pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se
apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao
Dinheiro”354
O Cristo veio revelar que o mandamento mais importante é o Amor, pois
Deus é Amor e nos amou primeiro e porque Ele nos ama somos também capazes
de amar a Deus e ao próximo, ainda que se trate de um inimigo.
O modelo da ética cristã, segundo Fábio Konder Comparato é renunciar
ao egoísmo e dar a vida pelo outro. É um modelo católico, isto é, universal e,
portanto:
352
Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, p. 1359. 353
Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, Mateus 23, 23-27. 354
Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, 6ª. Impressão, São Paulo, 1993, Mateus 6, 24.
153
Sob o aspecto ético, em suma, a pessoa histórica de Jesus Cristo, independentemente da fé em sua divindade, representou, pela sua vida e o seu ensinamento, um modelo excepcional de perfeição humana, que serviu de exemplo a um número incontável de homens e mulheres de todas as culturas, através dos séculos355.
Muito mais significativa do que a ideia de igualdade é a ideia de
fraternidade, em que se deseja fazer o bem ao outro, reconhecido como irmão:
A razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a fraternidade. Esta tem origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amor primeiro, ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna. 356
Mesmo no islamismo Deus é Bom e Misericordioso, é Ele o modelo da
perfeição a ser seguido357.
Pois bem, as três grandes religiões monoteístas tem como base o Deus
único que é Amor e que fez os homens à sua imagem e semelhança, bem como
destinatário de sua Graça Divina. Não é mero acidente da natureza:
O homem não é um átomo perdido num universo casual, mas é uma criatura de Deus, à qual quis dar uma alma imortal e que desde sempre amou. Se o homem fosse fruto apenas do acaso ou da necessidade, se as suas aspirações tivessem de reduzir-se ao horizonte restrito das situações em que vive, se tudo fosse somente história e cultura e o homem não tivesse uma natureza destinada a transcender-se numa vida sobrenatural, então poder-se-ia falar de incremento ou de evolução, mas não de desenvolvimento.358
Este é o fundamento universal da dignidade humana, pois Deus é o
Criador do homem, a quem concedeu uma alma imortal, capaz de conhecê-Lo. A
dignidade humana está indissoluvelmente ligada à origem do homem em Deus.
Neste sentido:
[...] nas três grandes religiões monoteístas, a pessoa do Deus Único é apresentada como modelo de vida para o ser humano, cuja
355 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p 453. 356
BENTO XVI, Papa Emérito Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 29. 357
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 452. 358
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 48-49.
154
dignidade situa-se em sua dupla condição de criatura moldada segundo a imagem e semelhança do Criador, e de criatura benficiária do especial favor divino. Essa concepção foi decisiva para a elaboração histórica do conceito de pessoa humana e para o seu reconhecimento como padrão ético, mesmo fora da relação religiosa359.
Propõe Jacques Maritain uma obra comum: uma comunidade fraternal a
realizar, como uma obra humana a realizar na terra pela passagem de algo divino,
que é o amor, nos meios humanos e no próprio trabalho humano. Ele propõe sair de
uma religiosidade meramente cultual para a prática da Justiça e do Amor.360
Neste sentido se desenvolveu na Igreja Católica sua Doutrina Social, com
objetivo de anunciar a verdade que liberta, a favor de uma sociedade à medida do
homem, da sua dignidade, da sua vocação.361
A preocupação da Igreja Católica com a miséria e a injustiça social se
expressa nessa mensagem em que preceitua o desenvolvimento humano integral,
que não se realizará prescindindo de Deus:
[...] tal desenvolvimento requer uma visão transcendente da pessoa, tem necessidade de Deus: sem Ele, o desenvolvimento ou é negado ou acaba confiado unicamente às mãos do homem, que cai na presunção da autossalvação e acaba por fomentar um desenvolvimento desumanizado.362
E, portanto, por entender que o homem tem uma vocação ao
desenvolvimento, cuja referência é o desígnio de Deus para ele, a Igreja Católica se
vê como legitimada a intervir nas questões sociais, iluminando-as com a luz do
Evangelho:
È precisamente este fato que legitima a intervenção da Igreja nas problemáticas do desenvolvimento. Se este tocasse apenas aspectos técnicos da vida do homem, e não o sentido do seu caminhar na história juntamente com seus irmãos, nem a individuação da meta de tal caminho, a Igreja não teria título para falar. [...] Dizer que o desenvolvimento é vocação equivale a reconhecer, por um lado, que
359
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p 452. 360
MARITAIN, Jacques. Humanismo integral: uma visão nova da ordem cristã. Tradução de
Afranio Coutinho, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, passim. 361 BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 14. 362
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 18.
155
o mesmo nasce de um apelo transcendente e por outro, que é incapaz, por si mesmo de atribuir-se o próprio significado último.363
Segundo o entendimento dos papas, qualquer proposta de
desenvolvimento que se funde em si mesmo, acaba por tornar o ser humano um
meio para obtenção desse desenvolvimento, enquanto “quem acolhe uma vocação
se transforma em verdadeira autonomia, porque torna a pessoa livre”.364
Isto porque o desenvolvimento deve ser integral, isto é, “de todos os
homens e do homem todo”.365
Vale trazer, a citação do Papa Emérito Bento XVI que recorda outro
pontífice Paulo VI, autor da Encíclica Populorum Progressio, sobre as causas do
subdesenvolvimento:
[...] as causas do subdesenvolvimento não são primariamente de ordem material, convidando-nos a procurá-las noutras dimensões do homem. Em primeiro lugar, na vontade, que muitas vezes descuida os deveres da solidariedade. Em segundo, no pensamento, que nem sempre saber orientar convenientemente o querer; por isso, para a prossecução do desenvolvimento servem “pensadores capazes de reflexão profunda, em busca de um humanismo novo, que permita ao homem moderno o encontro de si mesmo”. E não é tudo; o subdesenvolvimento tem uma causa anda mais importante do que a carência de pensamento: é “a falta de fraternidade entre os homens e entre os povos”.366
Pois bem, a fraternidade que exige o saudável desenvolvimento integral
não é possível de se alcançar somente por meio de forças humanas, mas “tem
origem numa vocação transcendente de Deus Pai, que nos amou primeiro,
ensinando-nos por meio do Filho o que é a caridade fraterna”.
Para alguns este discurso poderia ser contestado como sendo apenas
argumento de cunho religioso, não devendo ser utilizado para fundamentar qualquer
tipo de norma ou decisão judicial ou administrativa. Não deveria nem mesmo ser
citado num trabalho acadêmico.
Mas o fato é que essa proposta cristã é universal, isto é, cabe a todos,
admite o pluralismo e não exige a profissão de fé nos dogmas religiosos.
363
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 24. 364
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 26. 365
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 27. 366
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 29.
156
A Igreja Católica, assim como outras religiões, podem trazer à tona
valores esquecidos ou preteridos pela sociedade moderna e que acabam gerando
tantas injustiças e enganos.
Tais valores interessam não apenas à religião, mas à filosofia, à política e
à sociedade como um todo, que deseja construir um mundo melhor.
Outra grande preocupação demonstrada pelos papas é o plano cultural,
que, se de um lado padece de um relativismo que não ajuda num verdadeiro diálogo
intercultural, onde cada qual deve assumir sua própria identidade; de outro corre o
risco do nivelamento cultural com a homogeneização dos comportamentos e estilos
de vida:
Ecletismo e nivelamento cultural convergem no fato de separar a cultura da natureza humana. Assim, as culturas deixam de saber encontrar a sua medida numa natureza que as transcende, acabando por reduzir o homem a simples dado cultural. Quando isto acontece, a humanidade corre novos perigos de servidão e manipulação. 367
Habermas nos socorre na defesa desses argumentos. Não porque seja
um filósofo religioso como Maritain, mas por ter já compreendido a necessidade de
que os racionalistas se abram a um diálogo pluralista procurando “decifrar” a
racionalidade existente nos argumentos provenientes das tradições religiosas.
O filósofo afirma:
[...] defendo a tese hegeliana, segundo a qual, as grandes religiões constituem parte integrante da própria história da razão. Já que o pensamento pós-metafísico não poderia chegar a uma compreensão adequada de si mesmo caso não incluísse na própria genealogia as
tradições metafísicas e religiosas [...]368.
Ele considera um “desleixo” entender as grandes tradições religiosas
apenas um resíduo arcaico da história:
[...] as tradições religiosas conseguiram articular a consciência daquilo que falta. Elas mantém viva a sensibilidade para o que falhou. Elas preservam na memória dimensões de nosso convívio
367
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 41. 368
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 13.
157
pessoal e social, nas quais os progressos da racionalização social e
cultural provocaram danos irreparáveis.369
O mesmo autor reconhece que, pelo menos da parte da Igreja Católica,
não há oposição ao fundamento do direito e da moral na razão.370
A razão não pode se arrogar a coroa da superioridade, pois sozinha pode
ser muito perigosa, é capaz de destruir e construir, colocando o ser humano sob sua
égide, submetendo alguns em prol de outros, de acordo com a conveniência do
momento e de quem está no poder. De outro lado, uma religião não pode exigir que
o mundo se submeta a suas crenças, modo de ver o mundo, utilizando-se de
extremismos e terrorismo.
Neste sentido, de um lado, os cidadãos religiosos devem aprender a
compatibilizar sua fé com o fato de viverem num Estado laico e pluralista, e de outro,
os cidadãos não religiosos devem aprender a avaliar os argumentos religiosos na
perspectiva de descobrir neles um conteúdo racional.371
Significa dizer, em suma, que, nem o religioso pode refutar um argumento
não religioso, desde que racional, nem é possível aos cidadãos não crentes
afastarem, a priori, um argumento somente por ter sido apresentado por uma visão
religiosa, que, por si só já implicaria sua irracionalidade.
Isto é, o fato de o Estado ser laico e a sociedade secularizada não
pressupõe o descarte imediato de motivações religiosas, por serem o que são, ou
seja:
Um são pluralismo, que respeite verdadeiramente aqueles que pensam diferente e os valorizem como tais, não implica uma privatização das religiões, com a pretensão de as reduzir ao silêncio e à obscuridade da consciência de cada um ou à sua marginalização no recinto fechado das igrejas, sinagogas ou mesquitas. Tratar-se-ia, em definitivo, de uma nova forma de discriminação e autoritarismo.372
369
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 14. 370
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 117. 371
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 12. 372
FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013, p. 142.
158
Pelo contrário, a neutralidade necessária a um Estado laico não permite
qualquer tipo de preferência, seja por uma determinada religião, seja pela não
religião.
É necessário que as partes interessdas falem e se ouçam, sem que uma
descarte a outra simplesmente por ser ou não religiosa:
Cidadãos secularizados não podem, à proporção que se apresentam no seu papel de cidadãos do estado, negar que haja, em princípio, um potencial de racionalidade embutido nas cosmovisões religiosas, nem contestar o direito dos concidadãos religiosos a dar, em uma linguagem religiosa, contribuições para discussões públicas. Uma cultura política liberal pode, inclusive, manter a expectativa de que os cidadãos secularizados participarão dos esforços destinados à tradução – para uma linguagem publicamente acessível – das contribuições relevantes contidas na linguagem religiosa.373
Isto porque “a formação da opinião e da vontade não pode ser canalizada
por meio de censuras à linguagem nem isolada das possíveis fontes geradoras de
sentido” 374.
Repita-se, que Habermas compreende isto do ponto de vista filosófico de
uma crítica fundamental à autocompreensão pós-metafísica da modernidade
ocidental, que não se alinha nem com a cosmovisão secular científica, nem com a
religiosa. Parte, por esta razão, de uma posição neutra em relação aos dois lados:
“pois desconfia tanto das sínteses das ciências naturais como das verdades
reveladas”375, e pretende a substituição de concepções religiosas do mundo por
sistemas de normas e valores consensualmente elaborados pelos atores do sistema
em situações dialógicas livres de repressão.
Mas não nega que religião e crenças de um lado, e, de outro, razão e
ciência, devem reconhecer a importância uma da outra, bem como seus próprios
limites, pautando-se pelo bem comum e pelo respeito à pessoa humana e seu modo
de vida.
Portanto, só é possível a legitimação do direito por meio de um processo
democrático que se alimente de dois fatores, quais sejam:
373
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 128. 374
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 12. 375
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 13.
159
a participação política simétrica dos cidadãos, a qual garante aos destinatários das leis a possibilidade de se entenderem, ao mesmo tempo, como seus autores; e da dimensão epistemológica de certas formas de uma disputa guiada discursivamente, as quais fundamentam a suposição de que os resultados são aceitáveis em termos racionais.376
Implica afirmar que os cidadãos devem respeito uns aos outros,
independentemente de suas cosmovisões ou crenças, como membros de uma
comunidade política, dotados de direitos iguais. Devem procurar o consenso
motivado racionalmente, o que os obriga a apresentar argumentos convincentes.
É somente com a apresentação de argumentos de parte a parte, com
ampla participação de todos os setores da sociedade que o Estado perde seu
caráter eminentemente repressivo, fato que ocorre quando apenas uma visão de
mundo domina o cenário político.377
Ressalte-se, para evitar compreensões equivocadas, que, Habermas não
abre mão da justificativa secular para as decisões no âmbito político.
Com efeito, ele apenas não concorda com a posição laicista, de acordo
com a qual deve haver a completa exclusão da religião do debate político,
relegando-as às suas esferas privadas. Ele aceita, inclusive, que deve haver uma
abertura dos cidadãos não crentes para reconhecer que a fé pode dar reais
contribuições para a construção de uma sociedade pautada por valores éticos.
O que importa é não excluir qual opinião seja (desde que razoável) do
processo democrático, sob pena de deslegitimá-lo. O diálogo é o melhor caminho
para manter a solidariedade necessária ao Estado liberal e neutro, sem desmotivar
cidadãos crentes à participação política.
3.7 O Uso Público da Razão Segundo John Rawls e Jürgen Habermas
Na verdade, quem iniciou o debate sobre o uso público da razão foi John
Rawls378 ao afirmar que todo cidadão e todas as doutrinas abrangentes379 devem
376
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 137. 377
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 138. 378
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000. 379
Rawls denomina de doutrinas abrangentes as doutrinas filosóficas, religiosas ou morais, adotadas por cidadãos razoáveis professam sendo que nenhuma delas é (e nunca se espera que sejam)
160
participar do debate público.
Com efeito, sua investigação é no sentido de compreender como, uma
sociedade plural, dividida por doutrinas religiosas, filosóficas e morais muitas vezes
incompatíveis entre si, pode ser estável e justa. Como é possível a convivência
dessas doutrinas abrangentes e a aceitação de um só tipo de concepção política de
um regime constitucional. Como conquistar esse apoio?
Essa é a finalidade do liberalismo político de Rawls.
3.7.1 O liberalismo Político de John Rawls
Parte o autor da ideia de sociedade como um sistema equitativo de
cooperação, entendido este como “regras e procedimentos publicamente
reconhecidos, aceitos pelos indivíduos que cooperam e por eles considerados
reguladores adequados de sua conduta”380. Nesta ideia, todos os envolvidos tem
sua própria concepção de bem a ser alcançado.
Esses termos equitativos devem ser estabelecidos por um
comprometimento entre as pessoas envolvidas de forma equitativa, isto é, onde
nenhuma pessoa ou grupo tenha mais vantagens que outros, excluindo-se, portanto,
“a ameaça, uso da força, a coerção, o engodo e a fraude”.
Somente será possível atingir este comprometimento quando as balizas a
serem escolhidas tiverem origem no artifício da chamada “posição original” ou “véu
de ignorância”, onde não é permitido que as partes conheçam posição social, etnia,
gênero e talentos naturais daqueles que representam.
Em primeiro lugar, essa concepção política pressupõe que uma
comunidade política não é o mesmo do que uma comunidade de membros com o
mesmo ideal e a mesma visão de mundo, já que isto inexoravelmente levaria ao uso
da força do Estado para impor uma só concepção, seja ela religiosa, seja secular. A
proposta é a do consenso sobreposto resultante da negociação política, que supõe a
defesa de pontos de vista de cada doutrina abrangente:
professada por todos os cidadãos. Daí resulta que o pluralismo é inevitável, consequência do exercício da razão humana dentro da estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional. Essas doutrinas devem ser acolhidas no âmbito da política quando forem razoáveis, isto é, quando não rejeitarem os princípios da democracia, não forem absurdas nem irracionais (op. cit., p. 24). 380
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000., p. 64.
161
Por conseguinte um consenso sobreposto não é apenas um consenso sobre a aceitação de certas autoridades, ou a adesão a certos arranjos institucionais, fundamentados numa convergência de interesses pessoais ou de grupos. Todos os que concordam com a concepção política partem de sua própria visão abrangente e se baseiam nas razões religiosas, filosóficas e morais que essa visão oferece.[...] Os dois aspectos anteriores de um consenso sobreposto – objeto moral e razões morais – estão ligados a um terceiro aspecto: a estabilidade. Isso significa que aqueles que concordam com as várias cisões que dão sustentação à concepção política não deixarão de apoiá-la se a força relativa de sua própria visão na sociedade aumentar e acabar tornando-se dominante. [...] Cada visão apóia a concepção política em seu (da visão) próprio benefício ou por suas próprias razões.381
Em suma, o filósofo pretende que mesmo que alguma dessas doutrinas
se torne dominante no cenário sócio-político, não poderá se prevalecer disso, a fim
de impor aos demais sua visão de mundo, mas manter a estabilidade para não
deslegitimar o consenso.
O consenso sobreposto, assim, seria uma espécie de acordo de tal modo
profundo que alcance ideias como “a de sociedade enquanto um sistema equitativo
de cooperação e a de cidadãos considerados como indivíduos razoáveis e racionais,
livres e iguais”382.
Para tornar possível esse ideal proposto por Rawls, uma concepção
política de justiça deve ser endossada ao menos por uma maioria substancial dos
cidadãos politicamente ativos. E para se atingir essa maioria, não é possível excluir
as doutrinas abrangentes e razoáveis, mesmo que opostas.
Sejam religiosas ou não, as pessoas desejam realizar plenamente o ideal
de cidadania, de participação política na construção da sociedade em que vivem,
permeando-a de valores em que acreditam.
Certo é, como insiste Rawls, que tais valores emanados de doutrinas
abrangentes devem ser razoáveis, isto é, concordes com os princípios democráticos
e garantias constitucionais, mas desde que o sejam, é necessário incluí-los no
debate político.
Não quer Rawls dizer com isto que as visões de mundo próprias das
doutrinas abrangentes possam oferecer o conteúdo da razão pública sobre questões
381
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 194. 382
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 195.
162
políticas fundamentais, ou seja, os argumentos religiosos ou ideológicos ou
seculares específicos, não aceitos por todos, não servem como fundamento das
decisões sobre o direito e a justiça. Podem e devem, sim, colocar-se na origem, na
motivação das pessoas que partem para sua participação ativa de cidadãos na
política.
Assim, o argumento de que não há salvação fora daquela Igreja não é
apto a se impor publicamente, já que muitos não compartilham da mesma visão. De
outro lado, isto não significa que no meio público caberia qualquer consideração
acerca da verdade ou inverdade deste dogma. Isso toca aos que participam desta
Igreja.
Deste modo:
Para encontrar uma ideia compartilhada do bem dos cidadãos que seja apropriada a propósitos políticos, o liberalismo político procura uma ideia de benefício racional no interior de uma concepção política que seja independente de qualquer doutrina abrangente específica e que, por isso, pode ser objeto de um consenso sobreposto.383
A concepção de razão pública de Rawls pressupõe que, mesmo num
Estado moderno e laico não é possível ignorar a motivação de cidadãos religiosos à
participação democrática para elaboração do direito e dos valores sobre os quais
devem ser construídos.
Segundo ele, todos os agentes de uma sociedade, seja indivíduo, seja
grupo, tem uma forma de articular seus planos, uma ordem de prioridades dos fins a
atingir; agindo de acordo com o caminho que traçou. Uma sociedade política
também faz isto e o modo como o faz é sua razão.
Há razões públicas e não públicas, ou que não interessam senão dentro
do contexto daquele indivíduo ou grupo, como igrejas, universidades e vários outros
tipos de associação.
De seu lado, a razão pública é característica de um povo democrático,
dos que compartilham a mesma condição de cidadãos e tem como objetivo o bem
comum: “[...] numa sociedade democrática, a razão pública é a razão de cidadãos
383
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 227.
163
iguais que, enquanto corpo coletivo, exercem um poder político final e coercitivo uns
sobre os outros ao promulgar leis e emendar sua constituição”384.
Consequentemente a razão pública não se aplica às
deliberações e reflexões pessoais sobre questões políticas, nem à discussão sobre elas por parte dos membros de associações como as igrejas e universidades, constituindo tudo isso uma parte vital da cultura de fundo.385
Contudo, para Rawls, o cidadão religioso é obrigado a “traduzir” o seu
argumento, que é baseado em concepções religiosas, para uma linguagem laica,
que pode ser aceita por todos. Ele entende que no debate político somente podem
ser aceitos argumentos da razão pública:
Enquanto razoáveis e racionais, sabendo-se que endossam uma grande diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espere que outros possam aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos. Procurar satisfazer esta condição é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós. Entender como se comportar enquanto cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.386
Este trabalho de adaptação das motivações reais para a razão pública
deve ser feito pelo cidadão que as defende, pois as políticas públicas devem ser
justificáveis perante todos os cidadãos e:
Ao fazermos essas justificações, devemos apelar unicamente para as crenças gerais e para as formas de argumentação aceitas no momento presente e encontradas no senso comum, e para os métodos e conclusões da ciência, quando estes não são controvertidos.387
Então, para Rawls, cada qual deve estar preparado para esclarecer o
critério no qual se baseia para esperar dos outros que razoavelmente o apoiem.
384
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo: Ática, 2000, p. 264. 385
Ibidem, p. 264. 386
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000p. 267. 387
RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Edição, São Paulo:
Ática, 2000, p. 274.
164
Pois bem, nota-se que Habermas sustenta praticamente todo o raciocínio
feito por Rawls para esclarecer seu liberalismo político, especialmente no que tange
à necessidade de um processo democrático aberto às diversas cosmovisões,
incluindo as religiosas, de maneira igualitária, pois somente esta dialética
democrática é capaz de legitimar o direito.
O principal ponto de divergência é a crítica de Habermas de que a
linguagem secular deve ser exigida dos religiosos para esse diálogo democrático.
Neste sentido ele é mais ousado do que John Rawls.
3.7.2 Habermas e o Liberalismo Político de Rawls
Habermas entende que a exigência do liberalismo político de que os
crentes devam traduzir sua linguagem religiosa para a secular, a fim de poderem
participar do debate político é por demais pesada e parte de uma visão estreita do
papel político da religião no processo democrático:
A procura por argumentos voltados à aceitabilidade universal só não levará a religião a ser injustamente excluída da esfera pública, e a sociedade secular só não será privada de importantes recursos para a criação de sentido, caso o lado secular se mantenha sensível para a força de articulação das linguagens religiosas. Os limites entre os argumentos seculares e religiosos são inevitavelmente fluidos. Logo, o estabelecimento da fronteira controversa deve ser compreendido como uma tarefa cooperativa em que se exija dos dois lados aceitar
também a perspectiva do outro (grifo do autor).388
Porquanto: “A autoridade dos mandamentos divinos tem um eco na
validade incondicional dos deveres morais que não podemos deixar de escutar”389.
A filosofia, assim, guarda distância da religião, mas sem fechar-se para
suas perspectivas.
Um tipo de secularização que exige do religioso a “tradução” para
linguagem secular pode simplesmente aniquilá-la, já que parte de uma visão laicista.
Para o liberalismo de Rawls só valem como legítimas as decisões
políticas que puderem ser abonadas por argumentos compreensíveis em geral, isto
388
HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:
Editora Unesp, 2013, p. 15-16. 389
HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução Fernando Costas Mattos. 1ª. Edição – São Paulo:
Editora Unesp, 2013, p. 17.
165
é, que são imparciais tanto para cidadãos religiosos como para não-religiosos, ou
para cidadãos de orientações de fé distintas.
Contudo, para Habermas, como se viu, é necessário reconhecer o
contributo da religião para a sociedade, a fim de perceber que neutralidade do
Estado não pode corresponder a laicismo.
Ele defende que a separação entre Estado e Igreja significa neutralidade
e não “abster-se de toda política que apoia ou coloca limites à religião enquanto tal”.
Exemplo bem sucedido desta participação política religiosa é, entre
outros, o movimento americano liderado por Martin Luther King em prol da defesa da
igualdade de todos os cidadãos, independentemente de etnia.390
E mais, admite o filósofo que o papel desempenhado pelas igrejas e
religiões é de grande importância para a estabilização e desenvolvimento de uma
cultura política liberal, dado que não apenas contribuem no debate político
apresentando argumentos como motivam seus membros à participação política.
Contudo, essa participação política ficaria por demais comprometida, no
caso de se exigir dos cidadãos religiosos, como faz Rawls, uma espécie de
“tradução” de seus argumentos antes de serem expostos publicamente, isto é,
devem explicá-los numa linguagem secular.
Parece claro para Habermas que “um Estado não pode impor aos
cidadãos, aos quais garante liberdade de religião, obrigações que não combinam
com uma forma de existência religiosa – porquanto ele não pode exigir deles algo
impossível” 391
Sobre esta questão também debateram os dois filósofos estadunidenses
Robert Audi e Nicholas Wolterstorff.392
De seu turno, Audi defende o “principle of secular rationale”393, em que:
“one has a prima facie obligation not to advocate or support any law or public policy
390
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 141. 391
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 142. 392
AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 25. 393
Princípio de justificação secular.
166
that restricts human conduct, unless one has, and is willing to offer, adequate secular
reason for this advocacy or support”.394
Portanto, Audi se aproxima da visão de Rawls, já que exige que quaisquer
que sejam as motivações para uma proposição política que restrinjam alguma
conduta humana, os argumentos seculares devem ser suficientemente fortes para
tanto.
Habermas se rende à corrente que se opõe a esta exigência, tendo em
vista estar convencido de que o Estado liberal estaria sendo incoerente ao garantir
liberdade religiosa a seus cidadãos, permitindo-lhes conduzir sua vida conforme
convicções de fé, e, ao mesmo tempo exigindo que deixem de lado estas mesmas
convicções para fundamentar suas posições políticas. Isso equivaleria a colocar em
risco o modo de vida de tais cidadãos.395
Esta exigência caberia então apenas aos políticos que assumem cargos
públicos, que neste caso estariam obrigados à neutralidade esperada no Estado
laico.
Mas exigir isto de cidadãos e organizações seria uma “generalização
excessiva”, visto que:
O caráter secular do poder do Estado não implica, para o cidadão em particular, uma obrigação pessoal e imediata de complementar suas convicções religiosas, publicamente exteriorizadas, e de traduzi-las por meio de equivalentes em uma linguagem acessível em geral. [...] o Estado liberal que protege de igual modo todas as formas religiosas de vida, não pode obrigar os cidadãos religiosos a levarem a cabo na esfera pública política, uma separação estrita entre argumentos religiosos e não-religiosos quando, aos olhos deles, esta tarefa pode constituir um ataque à sua identidade pessoal.
E, ainda:
O Estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos [...] Por
isso, eles deveriam poder expressar, e fundamentar suas convicções
394
A pessoa tem uma obrigação prima facie de não defender ou apoiar qualquer lei ou política pública que restringe a conduta humana, a menos que tenha, e esteja disposta a oferecer, a razão secular adequada para esta defesa ou apoio. 395 HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2007, p. 145-148.
167
em uma linguagem religiosa mesmo quando não encontram para tal
uma “tradução” secular.396
(grifo do autor).
Neste ponto Habermas concorda com Nicholas Wolterstorff quando este
afirma que, para o cidadão religioso, a religião não é algo diferente de sua existência
social e política. Deste modo, exigir deles que não baseiem suas decisões e
discussões acerca de questões políticas em sua crença é infringir o seu direito de
liberdade religiosa.397
Esta realidade se pode averiguar em relação à religião católica quando o
então Papa João Paulo II escreve aos bispos franceses398:
Reconhecer a dimensão religiosa das pessoas e dos componentes da sociedade francesa, significa querer associar esta dimensão às outras dimensões da vida nacional, para que contribua com o seu dinamismo para a edificação social e para que as religiões não se refugiem num sectarismo que poderia representar um perigo para o próprio Estado. A sociedade deve poder admitir que as pessoas, no respeito do próximo e das leis da República, possam manifestar a sua pertença religiosa. Em caso contrário, corre-se sempre o risco de um fechamento de identidade e sectário, e do incremento da intolerância, que impede a convivência e a concórdia no seio da Nação.
E mais, afirmara o pontífice que a missão dos cristãos abrange a
manifestação pública nas grandes questões da sociedade:
Devido à vossa missão, estais chamados a intervir regularmente nos debates públicos sobre as grandes questões da sociedade. De igual modo, em nome da sua fé, os cristãos, pessoalmente ou em associações, devem poder tomar a palavra publicamente para expressarem as suas opiniões e manifestar as suas convicções, contribuindo assim para os debates democráticos, interpelando o Estado e os seus concidadãos sobre as responsabilidades de homens e mulheres, principalmente no campo dos direitos fundamentais da pessoa humana e do respeito da sua dignidade, do progresso da humanidade que não pode ser obtido a qualquer preço, da justiça e da igualdade, assim como da protecção do planeta, são âmbitos que dizem respeito ao futuro do homem e da humanidade, e
396
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 147. 397
AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 105. 398
Carta do Papa João Paulo II a D. Jean-Pierre Ricard, Arcebispo de Bordéus e Presidente da Conferência Episcopal Francesa, dada no vaticano aos 11 de fevereiro de 2005 (Disponível em www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005. Acesso em 23-03-2014).
168
à responsabilidade de cada geração. Eis por que a laicidade, longe de ser o lugar de um confronto, é verdadeiramente o espaço para um diálogo construtivo, no espírito dos valores de liberdade, igualdade e fraternidade, que são justamente muito queridos ao povo da França.
Incrível como a tese do agnóstico Jürgen Habermas e a tese católica são
congruentes.
3.7.3 Habermas e a Necessidade de Colaboração para a “Tradução” de Argumentos Religiosos na Esfera Pública
Resta clara a posição de Habermas no sentido de que no âmbito do
debate político, inclusive no Parlamento, é necessária participação de todos os
cidadãos com suas visões de mundo..
Pois bem, argumentos religiosos podem ser apresentados na esfera
pública política, mas necessitam de uma tradução que não pode ser imposta a seus
autores, até porque nem sempre tem essa habilidade.
Portanto, a “tradução” para uma linguagem que possa ser aceita por
todos viria por meio de uma cooperação entre os concidadãos seculares e
religiosos, a fim de se alcançar, ao final, uma justificação institucional.
Com efeito, os cidadãos religiosos que só trazem argumentos religiosos à
esfera do debate político, tem que contar com a tradução colaborativa de seus
concidadãos seculares. Isso tudo para ser rigidamente liberal e neutro:
O Estado liberal possui, evidentemente, um interesse na liberação de vozes religiosas no âmbito da esfera pública política, bem como na participação política de organizações religiosas. Ele não pode desencorajar os crentes, nem as comunidades religiosas de se manifestarem também, enquanto tal, de forma política, porque ele não pode saber de antemão se a proibição de tais manifestações não estaria privando ao mesmo tempo a sociedade de recursos importantes para a criação de sentidos.399
Por conseguinte, não há como afirmar-se que a religião deve ser
simplesmente excluída do debate, pois a laicidade do Estado o impõe.
Suponha-se um argumento dito religioso como aquele que repudia a
destruição de embriões humanos para uso de células-tronco embrionárias em
399
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 148.
169
pesquisas científicas com objetivo de cura de doenças humanas. O principal
fundamento religioso que justifica a posição é a proteção da vida humana desde a
concepção e que o embrião, mesmo tendo sido fecundado em laboratório seria
portador de vida humana e, portanto de alma.
É possível que outras entidades ou cidadãos dêem o contributo para
“tradução” deste argumento em termos neutros ou não religiosos, caso os que o
sustentam não possam fazê-lo.
Assim, um dos fundamentos laicos deste argumento, que conta com
respaldo de diversos cientistas, é o de que há outros tipos de células-tronco no
corpo humano que servem ao mesmo propósito. Além disso, a ciência concorda em
que há vida no embrião e destruí-lo seria destruir uma vida humana, cuja proteção é
normalmente garantida pelas constituições.
Como se vê, o argumento religioso é favorável à vida humana, não é a
imposição de um dogma, sendo assim, não deveria ser refutado somente pelo fato
de provir de alguma entidade religiosa ou de cidadãos crentes, algo como: “isto é
argumento religioso e não serve para o debate público, porque o Estado é laico”.
A exclusão de argumentos religiosos no Estado laico não é aceita por
Habermas, para quem ninguém pode ser excluído do debate político, sob pena de
falta de legitimidade do processo democrático.
Ora, a democracia é a garantia da liberdade de expressão e do
pluralismo, princípios que pressupõem o Estado Democrático de Direito:
Afinal é mediante a fruição de direitos de participação política (ativos e passivos) que o indivíduo não será reduzido à condição de mero objeto da vontade estatal (mero súdito), mas terá assegurada a sua condição de sujeito do processo de decisão sobre a sua própria vida e a da comunidade que integra. 400
Reconhece Habermas que as tradições religiosas tem a intuição moral,
principalmente em relação “a formas sensíveis de uma convivência humana”, o que
as tornam sérias candidatas a “possíveis conteúdos de verdade, os quais podem
400
SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição
atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 658.
170
ser, então, tomados do vocabulário de uma determinada comunidade religiosa e
traduzidos para uma linguagem acessível em geral”401.
Vale dizer, excluir as vozes fundamentadas na fé, porque são
fundamentadas na fé, deslegitima o processo democrático, que passaria a ser
somente instrumento de manipulação para obtenção de interesses de alguns.
Assim sendo, para Habermas a neutralidade do Estado liberal pressupõe
a necessidade dessa colaboração na compreensão e tradução do argumento
religioso para o laico e não que isto deve ser um pressuposto para a participação
política do cidadão que deseja oferecer um argumento religioso ao debate.
De todo modo, o filósofo que sabidamente não é um religioso entende ser
necessário incluir as religiões com suas linguagens próprias no debate político,
sendo que
Enquanto os cidadãos seculares estiverem convencidos de que as tradições religiosas e as comunidades religiosas constituem apenas uma relíquia arcaica de sociedades pré-modernas, mantidas na sociedade atual, eles considerarão a liberdade de religião apenas como uma proteção cultural para espécies naturais em extinção. [...] Nesta linha de raciocínio, o próprio princípio da separação entre Igreja e Estado só pode ter o sentido laicista de um indiferentismo preservador.402
Nicholas Wolterstorff vai mais longe e entende que essa tradução não
seria necessária, pois importa muito mais o propósito do que a razão justificadora da
aspiração política. Ele cita como exemplo um grupo de cristãos defensores do meio-
ambiente que foram a Washington protestar contra ações que pudessem de algum
modo enfraquecer, prejudicar, reduzir ou acabar com a proteção das criaturas de
Deus. O grupo fundamentou suas reivindicações na Bíblia.
Wolterstorff entende que, de modo algum, esses cristãos estariam
violando a ética dos cidadãos de uma democracia liberal, pois “Whether or not a
reason for a position is appropriate depends not only on the position but on one´s
purpose”403.
401
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 148-149. 402
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 157. 403
AUDI, R.; WOLTERSTORFF, N.. Religion in the public square: the place of religious convictions in political debate. Maryland: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 1997, p. 112. Tradução livre: se uma razão é ou não apropriada para defender uma posição depende não somente da posição, mas do propósito.
171
Seja como for, mesmo tecendo elogios a Rawls pela reflexão adiantada
sobre o papel político da religião, Habermas faz um outro questionamento:
Será que os cidadãos podem aceitar o liberalismo como sendo a única resposta correta para o pluralismo religioso? Para chegar a uma conclusão sobre esse ponto, os cidadãos religiosos, como também os seculares, devem saber interpretar, cada um na sua respectiva visão, a relação entre fé e saber, porquanto tal interpretação prévia lhes abre a possibilidade de uma atitude auto-reflexiva e esclarecida na esfera pública política.404
3.7.3.1 O Diálogo entre Habermas e Ratzinger: razão e fé em debate
Colocando em prática sua própria teoria, Habermas aceitou o convite para
um interessante encontro promovido pela Academia Cattolica di Monaco di Baviera,
no ano de 2004, entre si e o teólogo, então cardeal, depois tornado papa, Joseph
Ratzinger, com intuito de abordar as relações entre a razão e a fé.
Em outras palavras, foi o encontro do filósofo laico que concede “espaço
para Deus” com o teólogo que acredita na necessidade de uma troca recíproca entre
razão e fé para uma ética comum.
As palestras foram publicadas no ano seguinte, dando maior publicidade
ao debate.405
O tema do encontro foi precisamente a secularização e o lugar da religião
no mundo ocidental moderno. Ambos procuraram responder ao questionamento
sobre o que mantém o mundo unido.
Para Habermas, que reproduziu sua teoria exposta acima, o poder político
deve ser baseado numa justificação pós-metafísica ou não-religiosa. Porém, a
solidariedade entre os cidadãos, necessária ao Estado liberal, se exauriria caso se
impusesse uma secularização aberrante. É necessário ter em conta, então, que
muitos cidadãos são motivados à participação política em virtude de sua religião.406
De fato, Habermas entende que o processo democrático, em si, com o
debate político, sem a exclusão de qualquer voz, é o que legitima o poder e o direito,
404
HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Tradução Flávio Beno
Siebeneichler, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 167. 405
Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005. 406
Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005, p. 41-63.
172
fazendo com que seja mantida a solidariedade entre os cidadãos e, portanto, a
submissão à lei.
Da parte de Raztinger407 há uma preocupação em encontrar os
fundamentos éticos para a atuação das culturas num mundo globalizado e para a
construção de uma forma comum de delimitação do poder, que seja fornecida
através da legitimação jurídica.
Ele afirma que a ciência não é capaz de prover a consciência ética
através de debates, mas não nega sua importância na erradicação de antigas
crenças. Existe para a ciência, segundo Ratzinger, uma responsabilidade de não
determinar o ser humano enquanto tal, pois só conseguirá mostrar aspectos parciais
dessa realidade. De seu turno, a filosofia deve acompanhar os progressos científicos
e auxiliar a separar o elemento científico do não científico, até mesmo para que não
permita o uso da razão e da ciência a finalidades de poder e dominação.
Em relação à legitimidade do poder afirma Ratzinger que a lei é o
instrumento por excelência para contê-lo, sendo que não deve prevalecer a lei do
mais forte, mas a força da lei, que controla o poder.
Todavia, isto remete à questão sobre como nasce o direito e como ele se
torna e se mantém, não como o instrumento do interesse de alguns, mas como o
instrumento do processo decisório democrático produzido no interesse comum.
Neste ponto é evidente a convergência entre ambos, pois Ratzinger
também crê que a participação política inclusiva e colaborativa na formação do
direito é o grande benefício da democracia.
O problema que resta para ser solucionado é o consenso, já que nem
sempre as decisões baseadas na preferência da maioria se coadunam com a
justiça. Deste modo, o princípio da maioria deixa sempre aberta a questão dos
fundamentos éticos da lei, qual seja, se existem coisas que não podem nunca ser
tidas por legitimas, sob pena de, por si próprias, se tornarem injustiça ou porque, por
sua natureza, seja uma lei imutável.
Aqui está a grande divergência entre as posições de um lado, pós-
metafísica e, de outro, teológica, já que Habermas não acredita na legitimação do
direito positivo na lei natural ou imutável. Mas para Joseph Ratzinger é muito
407
Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005, p. 65-81.
173
perigoso depender somente da decisão da maioria, que pode reduzir o homem a
mero instrumento, como o mundo já teve oportunidade de experimentar.
Numa outra ocasião Joseph Ratzinger apontou que:
O saber nunca é obra apenas da inteligência; pode, sem dúvida, ser reduzido a cálculo e a experiência, mas se quer ser sapiência capaz de orientar o homem à luz dos princípios primeiros e dos seus fins últimos, deve ser “temperado” com o “sal” da caridade. [...] As exigências do amor não contradizem as da razão. O saber humano é insuficiente e as conclusões das ciências não poderão sozinhas indicar o caminho para o desenvolvimento integral do homem.408
E continua afirmando que: “As ponderações morais e a pesquisa científica
devem crescer juntas e que a caridade as deve animar num todo interdisciplinar
harmônico, feito de unidade e distinção”.409
Portanto, ao contrário do que alguns possam imaginar, a Igreja, o clero
não é contrário à ciência e ao desenvolvimento tecnológico, apenas que sozinhas
não podem indicar o caminho do desenvolvimento do homem..
Há outro ponto de convergência: Quanto ao perigo do fundamentalismo
religioso, que, tanto quanto o laicismo impedem o diálogo e a colaboração entre
razão e fé e: “A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o
desenvolvimento da humanidade”.410
Para Ratzinger isso significa que a fé necessita dos limites da razão.
Entretanto, afirma o teólogo que a razão também já causou muito aniquilamento,
com as guerras, o nazismo, a manipulação da vida humana, eugenia e outros.
Com efeito, o então cardeal deixa em aberto se a resposta não estaria na
limitação da razão pela fé e vice-versa:
Ora, non dovrebbe dunque a sua volta essere messa sotto osservazione la ragione? Ma da chi o da cosa? O forse religione e ragione dovrebbero limitarsi a vicenda, e ciascuna mettere l´altra al suo posto e condurla sulla via positiva? A questo punto di nuovo si pone la questione di come, in una società globale con i suoi meccanismi di potere e con le sue forze senza freni, con le sue differenti visioni di ciò che è giusto e di ciò che è morale, si possa trovare una evidenza etica operativa, con suficiente potere di
408
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 50. 409
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 50. 410
BENTO XVI, Papa Emérito. Caritas in veritate. 2a. ed., São Paulo: Paulinas, 2009, p. 106.
174
motivarsi e di imporsi, per rispondere alle sfide delineate in procedenza e aiutare a superarle.411
411
Habermas, J.; Ratzinger, J.. Ragione e Fede in Dialogo. Venezia: Marsilio Editori, 2005. p.72-73.
Tradução Livre: Agora, portanto, não deve por sua vez ser colocada sob observação a razão? Mas a quem ou o quê? Ou talvez a religião e razão devessem limitar-se um ao outro, e cada um colocar o outro no lugar dele e conduzi-lo em um caminho positivo? Neste ponto, mais uma vez se põe a questão de como, em uma sociedade global com seus mecanismos de poder e com suas forças sem freios, com suas diferentes visões do que é certo e do que é moral, se possa encontrar uma evidência ética operativa, com poder suficiente para motivar e estabelecer-se, para responder aos desafios descritos acima e ajudar a superá-los.
175
4 A LAICIDADE NO BRASIL: QUESTÕES POLEMICAS
4.1. Panorama Histórico Geral das Relações Estado-Igreja no Brasil
O embate entre modernidade e religião existe, mas é diferente, de acordo
com a história e cultura do país. O tema em tela leva a interessantes reflexões. A
questão das relações entre Estado e Igreja está estreitamente conectada com a
história de cada nação.
No caso do Brasil, a religião católica está na raiz da fundação de suas
cidades e desenvolvimento de seu povo.
Como se sabe, a colonização do Brasil se deu por Portugal, um país
eminentemente católico.
Duas correntes disputavam a razão que inspirou as conquistas marítimas
portuguesas. A primeira sustenta que teria sido por razões espirituais precipuamente
e somente em segundo plano ficariam as razões comerciais. A segunda afirma
exatamente o oposto.412
Neste sentido, segundo a primeira corrente, D. Manuel I, rei de Portugal à
época do descobrimento do Brasil, teria o objetivo de disseminar o cristianismo entre
todos os povos, tomado do “espírito de cruzada”.
A corrente que afirma a prevalência de motivação espiritual sobre a
comercial parece bastante razoável no que tange à colonização do Brasil, pois
segundo estudiosos, Portugal, durante anos, não auferiu lucros. Além da vastidão do
território, havia populações nativas bastante hostis, cujos hábitos horrorizavam os
colonizadores, tais como a antropofagia413.
Assim, os jesuítas que vieram ao Brasil com a frota de Tomé de Souza
estavam investidos, pelo rei Dom João III, dos poderes necessários para a heroica
tarefa de evangelizar os nativos gentios.
412 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 58. 413
Pederastas, incestuosos, sodomitas, bestiais, compraziam-se em banquetes de carne humana. Devoravam não só os europeus, mas os próprios compatriotas, costumando engordá-los antes do festim, para o que davam à vítima tratamento requintado, que incluía o prazer de uma moça à escolha dele. Às vezes, estas fêmeas engravidavam do sentenciado, e, se, quando ele era comido, ficava filho dos seus últimos contatos, era a própria mulher que, depois de o parir e cozinhar, dele comia em primeiro lugar. Neste caminho iam tão longe que chegavam a rasgar o ventre das mulheres prenhas para lhes devorarem os filhos, depois de assados (BROCHADO, Costa. A lição do Brasil, Lisboa: Portugália Editora, 1949 apud GALLEGO, op. cit., p. 58)
176
Mas a Igreja nesta empreitada estava sob a ascensão do Estado que se
aperfeiçoava de três maneiras: o padroado, o beneplácito e o recurso à coroa.414
Os privilégios do padroado (direito de conferir benefícios eclesiásticos) e
do beneplácito ( necessidade de licença imperial para se publicarem atos na Cúria)
são empregados amplamente como consequências do regalismo.
O padroado era o recurso oferecido aos que proviam materialmente a
fundação de alguma igreja de poder indicar os bispos e arcebispos à Igreja Católica.
O beneplácito ou exequatur era a “chancela” necessária do Estado para a entrada
em vigor de qualquer ato eclesiástico. E, por fim, o recurso à coroa, instituído pela
Lei 231 de 1841, que autorizava o recurso à Coroa portuguesa aos que não
aceitassem as decisões proferidas pelos tribunais eclesiásticos:
Como afirma Caio Prado Junior:
Aqui como alhures, no passado como no presente, a organização clerical é em substância a mesma. Lembremos unicamente o padroado, concedido ao rei de Portugal e nas suas possessões ultramarinas, o que lhe permitia larga ingerência nos negócios eclesiásticos, inclusive e sobretudo a criação e provimento dos bispados; ereção de igrejas, e delimitação de jurisdições territoriais ; autorização para estabelecimento de Ordens religiosas, conventos ou mosteiros. Cabia ainda ao monarca, por concessão, como vimos à Ordem de Cristo, a percepção dos dízimos, que é um tributo eclesiástico destinado originalmente à manutenção do clero. Em compensação, competia à coroa prover a esta manutenção e tal é o objeto das côngruas, isto é, subvenções pecuniárias aos membros do clero.415
As relações entre Estado e Igreja no Brasil colônia foram norteados em
grande medida pelos preceitos das Ordenações Filipinas (que sucedeu as
Ordenações Afonsinas de 1446-1447 e as ordenações manuelinas de 1521, já que
Portugal estava sob domínio da Espanha de 1580 a 1640), cujo segundo livro dos
cinco existentes era totalmente dedicado ao tema.
Com efeito, o Estado intervinha em assuntos religiosos tais como a
fiscalização do culto visando sua “decência”, mas a Igreja ficava responsável por
414 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 59. 415
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 2008, p. 332.
177
assuntos como educação, saúde pública, obras assistenciais e registro de
nascimentos, batismo, casamento e óbito.
O primeiro bispo do Brasil foi escolhido pessoalmente pelo rei, já
denotando o fenômeno do regalismo, abordado anteriormente, isto é, a influência do
poder dos governantes sobre a Igreja:
Decorre daí que as necessidades espirituais se colocam no mesmo plano que as exigências da vida civil. A participação nas atividades religiosas não é menos importante que nas daquela última. Poder frequentar os sacramentos, o culto, as cerimônias da Igreja, constitui urgência que nada fica a dever ao que se pede noutro setor: a justiça, a segurança, ou as demais providências da administração pública. O Estado não se podia furtar a ela. E nem jamais cogitou disto. Pelo contrário, disputou sempre à Igreja de Roma o direito de ministrar ele próprio, a seus súditos, o alimento espiritual que reclamavam. Nunca lhe escapou a importância política disto.416
Depois da expulsão dos jesuítas em 1759 os negócios eclesiásticos
ficaram inteiramente entregues ao poder do soberano da coroa:
Aliás, o Papado, já muito enfraquecido e com as atenções ocupadas em outros setores mais importantes, não assume, relativamente ao Brasil e à sua metrópole, nenhuma atitude reivindicatória de seus direitos: abandona inteiramente nas mãos do Rei Fidelíssimo os assuntos religiosos da colônia. 417
Acrescenta, ainda, Prado Júnior: “A Igreja no Brasil se tornara em simples
departamento da administração portuguesa e o clero secular e regular, seu
funcionalismo”.418
A relação era de uma proteção imobilizadora, mesmo na época do
Império em que a Constituição em 1824 declarou o Estado católico.
Segundo Rafael Llano Cifuentes, alguns constitucionalistas da época
sustentavam que o Estado tinha o direito de polícia sobre o culto religioso, bem
como direito de inspeção quanto à disciplina e atividade espiritual do clero, mas
sobretudo que a nomeação dos bispos e os provimentos dos benefícios
416
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 2008, p. 329. 417
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 2008, p. 333. 418
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed., São Paulo:
Brasiliense, 2008, p. 333.
178
eclesiásticos eram privativos da soberania nacional, cabendo à Cúria somente a
faculdade de confirmação.419
De qualquer maneira, a participação da Igreja Católica era notável nas
questões sociais, como assistência social aos pobres, doentes, idosos e crianças
desamparadas; o ensino, catequização dos índios e mesmo no setor da diversão
pública, sendo responsável pelas festividades e comemorações populares.
Tendo em vista os estreitos laços existentes entre Portugal e a religião
católica havia verdadeira prevalência desta religião em detrimento de outras. Já na
tripulação das naus de Cabral chamava a atenção o predomínio da religião e até a
existência de uma imagem de Nossa Senhora da Esperança entronizada num altar
erguido no convés da capitania.420
Assim, os benefícios da coroa portuguesa eram somente concedidos aos
católicos, somente estes eram contemplados com terras.
O sistema colonial consistiu inicialmente na divisão do território em
capitanias hereditárias, totalmente independentes umas das outras, que,
posteriormente, foram ligadas por meio do sistema de governadores-gerais, tendo
Tomé de Souza como o primeiro deles, estabelecidos por meio dos Regimentos do
Governador-Geral.421
Um desses regimentos, editado em 1677, que vigorou até 1806,
estabelecia regras exaustivas para o trato das questões atinentes à Igreja, tais como
o modo de remuneração dos quadros eclesiásticos, o controle eficaz do culto por
meio de funcionário público, que se reportava ao rei, fornecimento das regras de
comportamento necessárias à administração daquele local específico.422
O sistema dos governos-gerais se rompe em 1672 e vai aos poucos se
descentralizando até chegar em centros autônomos subordinados a poderes
político-administrativos regionais, subdivisões estas feitas a partir de interesses
econômicos. Assim:
419 LLANO CIFUENTES, Rafael. Relações entre Igreja e o Estado. 2ª ed. atualizada, Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989, p. 239. 420 CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São
Paulo: Almedina, 2012, p. 69. 421 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 70. 422 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado Laico.
Dissertação de Mestrado em Filosofia do Direito apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 61.
179
o governo-geral divide-se em governos regionais (estado do Maranhão e estado do Brasil), e estes, em várias capitanias gerais, subordinando capitanias secundárias, que, por sua vez, pouco a pouco, também se libertam das suas metrópoles, erigindo-se em capitanias autônomas. Cada capitania divide-se em comarcas, em distritos e em termos. 423
Então, formam-se pequenos governos locais, cuja autoridade máxima era
representada pelo capitão-mor das aldeias, que acabavam sendo os próprios
senhores de terra daquele local, cujas enormes fazendas acabavam se equiparando
aos antigos feudos europeus, com seus castelos, cortes e súditos:
Nas zonas de exploração agrícola, floresceu uma organização municipal, que teve profunda influência no sistema de poderes da colônia. O Senado da Câmara ou Câmara Municipal constituiu-se no órgão do poder local. Era composto de vários “oficiais”, à imitação do sistema de Portugal. Seus membros eram eleitos dentre os “homens bons da terra”, que, na realidade, representavam os grandes proprietários rurais.424
Daí a origem da estrutura política do Estado Brasileiro que iria se
constituir com a Independência. Ela se estendeu não só na fase imperial, mas
também na republicana: a oligarquia dos coronéis.
A partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil vai
se alterando a condição política do país.
Sobre a liberdade religiosa na época:
Um dos primeiros documentos sobre liberdade religiosa no Brasil é o tratado do Comércio e Navegação, de 19 de fevereiro de 1810, celebrado entre Portugal e Inglaterra logo após a chegada da Coroa portuguesa na colônia em 1808. O artigo XIII desse tratado dispunha que os vassalos da Majestade Britânica residentes em territórios de domínio português não poderiam ser perturbados ou molestados por causa de sua religião, e teriam plena liberdade de consciência e licença para celebrarem seu culto. Porém, essa liberdade havia limites bem precisos, como, por exemplo, a proibição de que tais Igrejas ostentassem a religião britânica, pois deveriam se assemelhar às casas de habitação, sendo vedada inclusive a utilização dos
sinos.425
423 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 71. 424 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 72. 425
CHEHOUD, Heloisa Sanches Querno. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São Paulo:
Almedina, 2012, p. 69.
180
Em 1815, o Brasil se torna Reino Unido a Portugal, pondo fim ao sistema
colonial. Mais um passo à frente e se dá a Independência em 1822, da qual surge o
Estado Brasileiro sob forma de Império, que perdurou até 1889.426
A sede do governo foi transferida para o Rio de Janeiro, mas essa
organização de poder não teve influência no interior do país, onde ainda prevalecia a
autoridade dos coronéis.
De outro lado, a esta altura, já se havia constituído uma elite burguesa e
intelectual brasileira, que, formada nas grandes universidades europeias, começava
a revolucionar os grandes centros intelectuais do país, como o Rio de Janeiro e
Pernambuco, com novas teorias políticas que “agitavam o mundo europeu: o
Liberalismo, o Parlamentarismo, o Constitucionalismo, o Federalismo, a Democracia,
a República”427.
A grande preocupação dos defensores da Independência era a unidade
do país, à época todo fragmentado em poderes locais. O constitucionalismo era,
então, o princípio fundamental desta teoria, a fim de assegurar o liberalismo e a
proteção dos direitos do homem, bem como a divisão de poderes.
Após inúmeras revoltas (Balaiadas, Cabanadas, Sabinadas, Inconfidência
Mineira, República de Piratini), cujos estandartes surgem já na Assembleia
Constituinte de 1823, chega-se finalmente à 1889, com a vitória das forças
republicanas que afirmavam como princípios: “o federalismo, como princípio
constitucional de estruturação do Estado, a democracia, como regime político que
melhor assegura os direitos humanos fundamentais”.428
A vitória foi obtida, dentro dos limites havidos na época, com a
Constituição de 1824, ainda na época imperial, que estabelece um poder
centralizado, que, em poucas palavras se resumia no Poder Moderador do
Imperador. Era na verdade um poder absoluto.
Segundo Caio Prado Júnior, a maçonaria esteve por trás de toda a luta
pela Independência do Brasil, não porque lhe interessasse a República tupiniquim,
426
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 72. 427
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 73. 428
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 77.
181
mas porque precisavam enfraquecer um grande centro de poder europeu, qual seja
a monarquia portuguesa.429
Em Portugal, vale suscitar a questão, proclamou-se a República em meio
a terrível conflito religioso, proveniente da reação do positivismo e do jacobinismo do
partido republicano contra o sistema de união entre Igreja e Estado, tendo se
difundido em alguns setores da população urbana o anticlericalismo:
A legislação dos primeiros meses de novo regime assumiu uma intenção vincadamente laicista e anticatólica e chegou a haver perseguições. A Constituição de 1911 foi marcada por este espírito (embora dela não conste expressamente o princípio da separação decretada em 22 de abril desse ano pelo Governo Provisório). Por um lado, garantiu formalmente a liberdade de consciência e de crença e a igualdade política e civil de todos os cultos (art. 3º., ns. 4 e 5); por outro lado adoptou medidas restritivas da actividade das confissões religiosas, dirigidas especialmente contra a Igreja Católica.430
De qualquer maneira, de volta ao Brasil, a Constituição de 1824 declarava
que o Império Brasileiro professava a religião católica, permitindo outros cultos,
desde que não fossem ostensivos. Vale transcrever seu artigo 5º:
A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de Templo.431
Outro dispositivo legal que tratava da liberdade era o parágrafo 5º do
artigo 179, que determinava a proibição da perseguição religiosa, desde que não se
ofendesse o culto oficial e a moral pública.432
Enfim, a religião católica permeava a vida civil, pois o Estado era religioso
e os clérigos ficavam encarregados de atos de importância para ambas as esferas
como registros de batismo, casamento e óbito. Este cenário perdurou até 15 de
novembro de 1889 quando, por um golpe de Estado foi proclamada a República no
429 PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 23ª ed.. São Paulo.
Brasiliense, 2008, p.370-377. 430 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 12. 431
CHEHOUD, Heloisa Sanches Querno. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São Paulo:
Almedina, 2012, p. 72-73. 432
CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São
Paulo: Almedina, 2012, p. 73.
182
Brasil por meio do Decreto n. 1 de 15 de novembro de 1889, redigido por Rui
Barbosa.
Em seguida sobreveio a Constituição da República em 1891 pela qual a
religião estava livre da ingerência do Estado e assim dispunha:
Art. 72 - A constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade nos termos seguintes [...] Parágrafo 3 – Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. Parágrafo 4 – A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. Parágrafo 5 – Os cemitérios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. Parágrafo 6 – Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. Parágrafo 7 – Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou o dos Estados.433
Nesta ocasião, portanto, o Estado Brasileiro se torna laico e a Igreja
Católica não tem mais nenhum privilégio. Entretanto, o Império interferia tanto nas
questões próprias da Igreja que a laicidade da nova Constituição também por ela foi
comemorada, pois promovendo a separação entre Estado e Igreja permitiu sua
liberdade de atuação no país, não obstante a atmosfera antirreligiosa e maçônica
que prevalecia na elite intelectual na ocasião.
Ocorre que o povo continuava religioso, e muito. Daí ter-se seguido uma
incongruência entre a realidade social e a jurídica, isto é, entre os sentimentos do
povo brasileiro e a constituição que se tentava implantar. Pois bem, essa
dissonância acabou levando a novas interpretações sobre a laicidade no Brasil, que
repercutiram nas Constituições seguintes, como se exporá a seguir.
433
CHEHOUD, Heloisa Sanches Querino. A liberdade religiosa nos Estados modernos. São
Paulo: Almedina, 2012, p. 77.
183
4.2 O Brasil e o Espaço para Deus: Breve Estudo Comparativo das
Constituições Brasileiras pretéritas e atual
O Brasil imperial de 1824 era confessional, mas na prática era a Igreja
que estava submetida ao Estado, como mencionado.
Posteriormente, a Constituição da República de 1891 trouxe o ideal
iluminista do liberalismo e do laicismo ateísta, equiparando todas as religiões, sem
associar o Estado a nenhuma.
Em virtude disto, indiretamente, facilitou a liberação da Igreja face ao
Estado.
Tentou-se impor a total separação entre o Estado e a Igreja Católica.
Todavia, a discrepância entre tais ideais antirreligiosos e o sentimento do povo
acabou refletindo nas Constituições seguintes, que, aos poucos, voltam a fazer
menção a Deus e à necessária colaboração entre Estado e religiões, mantendo a
tolerância e o respeito à liberdade de crença e de consciência.
O preâmbulo da Constituição de 1934 dizia:
Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (grifo nosso).434
Por sua vez o preâmbulo da Constituição de 1946 pronunciava:
Nós, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteção de Deus, em Assembléia Constituinte para organizar um regime democrático, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (grifo nosso).435
434
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm> Acesso em 03-04-2014. 435
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao46.htm> Acesso em 03-04-2014.
184
Em continuidade, os preâmbulos das Constituições de 1967 e 1969: “O
Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga a seguinte
Constituição do Brasil (grifo nosso).”436
E, finalmente, o preâmbulo da atual Constituição aduz:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (grifo nosso).437
Colacionam-se abaixo os dispositivos introduzidos a cada nova Carta
Constitucional que vão introduzindo paulatinamente expressões que indicavam a
necessidade de reconhecimento da religiosidade do povo, dos quais seguem as
partes mais relevantes, com destaque para os trechos referidos:
CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1891: Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926). [...] § 7º Nenhum culto ou igreja gosará de subvenção official, nem terá relações de dependencia ou alliança com o Governo da União, ou o dos Estados. A representação diplomatica do Brasil junto á Santa Sé não implica violação deste principio. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
. CONSTITUIÇÃO DE 1946: Art 31 - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: I - criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uns contra outros Estados ou Municípios; II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-lhes o exercício; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo;
436
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm> Acesso em 03-04-2014. 437
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 03-04-2014.
185
CONSTITUIÇÕES DE 1967 E 1969: Art 9º - A União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: [...] II - estabelecer cultos religiosos ou igrejas; subvencioná-los; embaraçar-lhes o exercício; ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de Interesse público, notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.
CONSTITUIÇÃO DE 1988: Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
A Constituição Federal de 1988 desde seu preâmbulo deixa bastante
evidente que o Estado Brasileiro não acolhe a laicidade como ateísmo. Ao contrário,
acolhe o pluralismo de concepções de vida sejam religiosas, sejam ideológicas ou
filosóficas. Neste sentido, protege a liberdade de consciência e de crença:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Mas não se resume a isto, pois ao longo de toda a Constituição Federal
há dispositivos que manifestam o respeito ao sentimento religioso do cidadão, bem
como às funções religiosas e seu ensino:
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de
186
crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º - [...] § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Como se vê, com exceção da Constituição da República de 1891, laicista,
que pregava a total separação entre o Estado e a religião, as Cartas seguintes foram
reincorporando o sentimento popular admitindo diversas formas de relações de
cooperação entre ambas as instâncias, em prol do bem comum.
4.2.1 A Polêmica em Relação ao Preâmbulo da Constituição Federal de 1988
Inicialmente, é importante lembrar que, o preâmbulo da atual Constituição
Federal acima citado foi votado e aprovado pelos constituintes à época, juntamente
com todo o texto da Constituição de 1988.
Ele exprime valores que o Estado Brasileiro adota. É reflete a
religiosidade do povo brasileiro.
O espírito em que foi promulgada a Constituição tinha este forte apelo ao
auxílio divino, pois os desafios seriam muitos na implantação da Lei Maior do país.
“Declaro promulgada! O documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil! Que Deus nos ajude para que isso se cumpra!” Com esta frase, proferida em 5 de outubro de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, promulgou a Constituição da República Federativa do Brasil, concluindo o trabalho de 20 meses que demandou 9 mil horas
187
de discussão em 320 sessões plenárias e colocou o ponto final na transição democrática (grifo nosso).438
No ano de 1999 foi interposta Ação Direta de Inconstitucionalidade
perante o Supremo Tribunal Federal levando a Corte a se manifestar sobre a
natureza jurídica do preâmbulo.439
A medida foi promovida pelo Partido Social Liberal do estado do Acre no
sentido de ver declarada a inconstitucionalidade da constituição daquele estado por
ter omitido a expressão “sob a proteção de Deus”, contida no preâmbulo da
Constituição da República.
O pedido se fundamentou em diversos argumentos, porém o mais
importante deles dizia que a reprodução da expressão teria caráter compulsório e
que sua exclusão significaria também a exclusão do povo do Acre da proteção de
Deus, o que não ocorria nas demais unidades federativas.
A ação foi julgada improcedente, conforme ementa abaixo:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. - Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI 2076, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 15/08/2002, DJ 08-08-2003 PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218)
A Corte Suprema, no voto do relator e então Ministro Carlos Velloso,
decidiu que, em que pese o preâmbulo conter princípios que serão consagrados ao
longo do texto constitucional e, por esta razão, terem caráter obrigatório, no que
tange à expressão “sob a proteção de Deus”, não se trata de norma de reprodução
obrigatória, mas meramente de caráter político, refletindo a posição ideológica do
constituinte.
438
Jornal do Senado, edição de 12 de outubro de 2008. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noticias/jornal/arquivos_jornal/arquivosPdf/Encarte_constitui%C3%A7%C3%A3o_20_anos.pdf. Acesso em 16/06/2014. 439
ADI 2076-AC
188
Portanto, segundo interpretação dada pela Corte Suprema a expressão
“sob a proteção de Deus” tem caráter político-ideológico e, por esta razão, não tem
caráter imperativo. Contudo, o restante do preâmbulo contém princípios
consagrados no texto constitucional e, portanto, sim, teria tal caráter.
O preâmbulo exprime a condição em que se colocaram os constituintes
naquela ocasião em que se viram na responsabilidade de organizar um regime
democrático para o Brasil, por meio da norma superior.
No entanto, parece óbvio que daí não resulta a conclusão de que não há
espaço para Deus no Estado Brasileiro.
A menção a Deus numa Constituição de um Estado Laico reforça a
concepção de que laicidade não significa antirreligião ou ateísmo. Significa apenas
que não se pode privilegiar ou prejudicar cidadãos em virtude de sua crença. O
caráter da relação do Estado Brasileiro com a Religião é, por conseguinte, de
inclusão e não de exclusão.
Basta um pequeno esforço mental para reconhecer que são inúmeras as
obras de caridade motivadas pela fé, existentes no Brasil em favor da sociedade.
Ora, não deve o Estado apoiar tais obras, por ser laico? Dinheiro público não pode ir
a uma obra social religiosa em virtude disto?
O bem comum requer respostas negativas a estas perguntas, como prevê
a própria Constituição, que admite alianças com igrejas em prol do interesse público.
É inegável que a menção a Deus determinou a possibilidade de existência
de relações amistosas entre o Estado Brasileiro e as religiões, eliminando por
completo a concepção de um Estado ateu ou laicista, antirreligoso.
Até porque o texto constitucional contém outras disposições que refletem
o status de tais relações não apenas em respeito ao sentimento religioso de seu
povo, mas como reflexo da necessidade de cooperação para o bem comum entre
Estado e sociedade.
Assim, é evidente o progressivo restabelecimento destas relações.
4.3 No Brasil Há e Deve Haver Laicidade ou Laicismo?
A disposição constitucional brasileira que evidencia a laicidade do Estado
é:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
189
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Portanto, o Brasil é um Estado laico, ou seja, é não confessional. Quanto
a isto não há nenhuma dúvida. No entanto, a polêmica acontece na interpretação
desta laicidade.
Significaria total separação e até mesmo repúdio às igrejas e religiões?
Certamente não. A laicidade no Brasil significa, como bastante bem
elucidado por José Afonso da Silva440, o tratamento igualitário a todos os cidadãos,
independente do credo ou não crença que professem.
Afirma também o autor que houve pequenos ajustes nas relações entre
Estado e Igreja no Brasil, que passou de uma separação mais rígida para um
sistema que admite certa aproximação.
Com efeito, no Brasil a história das disposições constitucionais demonstra
a reaproximação entre Estado e Religião sempre num sentido de cooperação e
respeito e não de privilégios ou discriminações.
A atual Constituição Federal, como se viu, admite aliança do Estado com
entidades religiosas em prol do interesse público.
Segundo Celso Ribeiro Bastos o Brasil se enquadra inequivocamente no
modelo de separação entre Estado e Igreja desde o advento da República, com a
edição do Decreto n. 119-A de 17 de janeiro de 1890441, quando então se tornou
laico ou não-confessional.442
De todo modo, observa o jurista que:
o princípio fundamental é o da não-colocação de dificuldades e embaraços à criação de igrejas. Pelo contrário, há até um manifesto intuito constitucional de estimulá-las, o que é evidenciado pela imunidade tributária de que gozam.443
440 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 226. 441
Cf. Anexo B. 442
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 199. 443
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 199.
190
A expressão “Estado Laico”, como se demonstrou anteriormente, se
relaciona com a neutralidade em relação às religiões, o que significa não privilegiar
ou desprestigiar cidadãos em virtude de seu credo ou não crença.
Isto não significa ignorar que há uma religião predominante no país.
O censo demográfico promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística em 2010444 evidenciou que:
Quadro 1: Grupos de religião entre brasileiros445
RELIGIÃO PORCENTAGEM
católicos romanos 64,62%
católicos ortodoxos 0,30%
protestantes de tradição 4,03%
protestantes pentecostais 13,30%
outras religiões e religião indefinida
9,71%
TOTAL 91,96%
sem religião 7,65%
ateus 0,32%
agnósticos 0,07%
TOTAL 8,04%
FONTE: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – Censo Demográfico do ano de 2010, p. 143-144.
Deste modo, pouco mais de 8% da população brasileira se declara sem
religião, ateu ou agnóstico. Dentre estes, 7,65% se declara sem religião, mas não
descrente em Deus.
Significa dizer que ateus e agnósticos correspondem a menos de 0,4% da
população brasileira. O restante da população, ou seja, praticamente 99,6% da
população brasileira se declara de algum modo crente no sobrenatural, ainda que
alguns professem uma fé particular, individualista.
Não se pretende com isto que estas minorias mereçam respeito menor ou
tratamento diferenciado. Ao contrário, igual respeito e tratamento é devido a todos.
444
Cf. publicação completa disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf > Acesso em 08-03-2014 (tabela p. 143-144). 445
Quadro elaborado especificamente para este trabalho com percentagens aproximadas baseadas nas informações numéricas da pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, realizada em 2010.
191
Apenas se quer demonstrar que o povo brasileiro é um povo que cultiva a fé! E
dentre estes, a maioria absoluta se declara pertencente a alguma religião, ou seja,
são religiosos.
Outra evidente constatação é: dentre os religiosos, o cristianismo
prepondera absoluto e dentro do cristianismo, a maioria pertence à religião católica
romana.
Equivoca-se, portanto, quem defende a laicidade do Estado Brasileiro
como uma condição de isolamento e desprezo em relação às religiões e mesmo em
relação à religião predominante, qual seja, a católica.
É evidente que o Brasil não admite o laicismo e sim a salutar separação
entre Estado e Igreja, bem como a neutralidade em relação a todas as religiões,
garantindo o pluralismo religioso:
Importa destacar que o laicismo e toda e qualquer postura oficial (estatal) hostil em relação à religião revelam-se incompatíveis tanto com o pluralismo afirmado no Preâmbulo da Constituição Federal, quanto com uma noção inclusive de dignidade da pessoa humana e liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, de modo que a necessária neutralidade se assegura por outros meios, tal como bem o demonstra o disposto no art. 19, I.446
No mesmo sentido, Gilmar Mendes, quando Ministro do Supremo Tribunal
Federal, teve oportunidade de se manifestar em relação a este assunto:
Nesse sentido, não se revelaria aplicável à realidade brasileira as conclusões a que chegou o Justice Black da Suprema Corte norte-americana, no famoso caso Everson v. Board of Education, segundo as quais a cláusula do estabelecimento de religião (“establishment of religion” clause) prevista na Primeira Emenda à Constituição norte-
americana não estabeleceria apenas que “nenhum Estado, nem o Governo Federal, podem fundar uma Igreja”, mas também que “nenhum dos dois podem aprovar leis que favoreçam uma religião, que auxiliem todas as religiões”. Segundo Thomas Jefferson, a referida cláusula deveria ser compreendida como a construção de um “muro” entre Igreja e Estado (“erect a wall of separation between Church and State”).447
Ele continua:
446
SARLET, I.W; MARINONI, L.G.; MITIDIERO, D.. Curso de Direito Constitucional. 2ª. edição atualizada, São Paulo: RT, 2013, p. 478. 447
Cf. Mandado de Segurança 28960. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.
192
Tal entendimento não se afigura, a priori, compatível com a nossa Constituição, pois se revela contrária, até mesmo, à concessão de imunidade tributária aos templos de qualquer culto (art. 150, IV, “b”), à prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII), ou quaisquer outras que favoreçam ou incentivem todas as religiões. [...] Não se revela inconstitucional, portanto, que o Estado se relacione com as confissões religiosas, tendo em vista, inclusive, os benefícios sociais que elas são capazes de gerar.448
É como se demonstrou anteriormente: o Estado não pode impor um
ordenamento jurídico sem levar em conta as bases pré-políticas de sua nação, isto
é, sua cultura e seus costumes.
A imposição de normas “de fora para dentro”, que não correspondam a
tais bases preexistentes, acabam descaracterizando e destruindo aquilo que Jürgen
Habermas denominou de “solidariedade” entre os cidadãos na participação política
no jogo da democracia. Isto porque, na prática há uma sensação de desconexão
entre a esfera particular da vida e a pública, gerando o desinteresse nesta último e
formação de comunidades e indivíduos voltados apenas para si mesmos, na defesa
de seus próprios interesses.
Contudo, os princípios da laicidade e da liberdade religiosa, na visão de
Celso Ribeiro Bastos implicam tratamento absolutamente igualitário entre as
religiões o que poderia dificultar até mesmo a desejada colaboração entre o Estado
e alguma religião em especial:
O referido preceito impede relações de dependência ou de aliança entre o Estado e as igrejas, o que não exclui vínculos diplomáticos com a Santa Sé, que no caso comparece como Estado e não como Igreja. Mas uma certa colaboração é possível, como reza o mesmo o dispositivo. Remete contudo à lei o definir as modalidades desta cooperação. O próprio Texto Constitucional não faz referência ao conteúdo que ela possa assumir, ao contrário do Texto anterior, em que ela se daria notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar. No entanto, esta colaboração será sempre difícil, uma vez que deverá estar adstrita ao princípio de uma absoluta igualdade entre todas as igrejas.449
448
Cf. Mandado de Segurança 28960. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.
193
Mas estaria correto afirmar de maneira genérica que o tratamento
desigual entre religiões é inconstitucional?
4.3.1 Igualdade ou Igualitarismo Religioso no Brasil?
Sobre este questionamento André Ramos Tavares afirma:
Uma resposta adequada não pode ser oferecida, no âmbito constitucional, com atenção exclusiva ao princípio da neutralidade do Estado. Essa seria uma leitura distorcida (do ponto de vista da teoria constitucional) e ideológica (o resultado é conhecido previamente). Outros elementos normativos devem ser considerados. Assim, por exemplo, a categoria do interesse público, que em muitas ocasiões pode coincidir com as atividades religiosas, embora possa haver aí, também nova área de disputa conceitual, ou a proteção da cultura e do patrimônio histórico nacional, também presente na maior parte das constituições contemporâneas.450
Como se viu anteriormente, a igualdade é um dos pilares do Estado
democrático, uma vez que a ninguém pode ser dado privilégios em detrimento de
outros. O mesmo se aplica à liberdade religiosa.
Contudo, há que se fazer a diferenciação entre situações de privilégios e
situações de tratamento especial, pois estas últimas são admitidas. É necessário
explicar.
Segundo o jurista português Jorge Miranda, tratando a respeito das
Concordatas com a Santa Sé e o Estado português:
O entendimento dominante e acolhido pelos órgãos de fiscalização da constitucionalidade é que os princípios constitucionais se compadecem com um tratamento diferenciado das várias confissões, em razão do modo como elas se encontram difundidas entre as pessoas ou do peso real que têm na sociedade. O que não admitem, em caso algum, é o tratamento privilegiado ou, ao invés, discriminatório desta ou daquela confissão.451
E continua:
449
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 22ª. Edição atualizada, São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 200. 450
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
606. 451
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 420.
194
Um tratamento privilegiado para uns e discriminatório para outros conduziria ao arbítrio; um tratamento diferenciado, pelo contrário, repele o arbítrio, desde que assente numa cuidadosa ponderação de situações e valores. [...] O princípio não impede a subsistência de regras específicas e imediatamente dirigidas à Igreja Católica – por força de sua realidade histórica e sociológica – desde que estas regras correspondam a critérios de objectividade, necessidade e adequação.452
Em relação à Igreja Católica Portugal e Brasil se assemelham e “mesmo a
liberdade de religião não está a impedir toda e qualquer relação entre Estado e
Igreja ou, no caso brasileiro, especificamente com a Igreja Católica”.453
Tal tratamento diferenciado se justifica na distinção entre igualdade e
igualitarismo.
Este último se caracteriza por uma uniformização forçada, artificial, de
diferenças. A igualdade, por sua vez, corresponde ao conceito aristotélico de
isonomia, isto é:
A relação que se estabelece entre as pessoas é proporcional à relação que se estabelece entre as duas coisas partilhadas. Porque se as pessoas não forem iguais não terão partes iguais, e é daqui que resultam muitos conflitos e queixas, como quando pessoas iguais têm e partilham partes desiguais ou pessoas desiguais têm e partilham partes iguais [...] Assim, tal como a proporção é o meio; também o justo é o proporcional. [...] “Justo” neste sentido é então a proporção. “Injusto”, enquanto a acepção oposta é o que viola o princípio da proporção.454
Igualdade é proporção, isto é, isonomia. Igualdade como proporção é
justiça, igualitarismo é injustiça, pois implica tratar de forma igual os desiguais.
452
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 421. 453
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
608. 454
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. do grego de Antonio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas,
2009, p. 109-110
195
Segundo José Afonso da Silva o corolário do tratamento sem distinção de
credo é “que todos hão de ter igual tratamento nas condições de igualdade de
direitos e obrigações sem que sua religião possa ser levada em conta”455.
O próprio autor em seguida emenda a constatação de que não se verifica
no Brasil, de modo geral, discriminação contra as religiões, não parecendo que este
fator seja causa de tratamento desigual de quaisquer cidadãos seja pela iniciativa
privada, seja pela pública.
Destarte, o que a constituição proíbe é a discriminação de alguém em
virtude de sua crença, o que não é o mesmo de considerar igualitariamente cada
credo.
Resulta daí que, sem discriminar cidadãos, os credos podem e devem ter
trato diferenciado, desde que em conformidade com a Constituição:
E se se insiste em que não somente é possível como necessário este trato diferenciado, porque o Estado, ante a regulação do fenômeno religioso, não pode adotar uma postura igualitária ou uniformizadora quanto às confissões religiosas. A igualdade não impede – mas ao contrário exige – o reconhecimento jurídico das peculiaridades reais dos sujeitos, sempre que o acolhimento das mesmas não implique em desprestígio de categoria igual na condição de sujeitos de
liberdade de religião.456
No mesmo sentido a assertiva de André Ramos Tavares:
Diversa, contudo, é a situação na qual há elementos culturais fortes que justifiquem um tratamento não–uniforme e não totalmente idêntico. Nesse caso, eventual tratamento particularizado estará respeitando, ainda, a igualdade, pois o Estado não pode conferir tratamento meramente uniforme se outros elementos aconselham ou impõem a distinção pontual. Não se pode traduzir a igualdade religiosa (decorrente da neutralidade do Estado e da aplicação do princípio da igualdade no âmbito religioso) como a exigência de tratamento matematicamente idêntico entre confissões religiosas, por parte do Estado.457
455
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25ª. Edição, revista e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 226. 456
MURGOITIO, José Manuel. Igualdad religiosa y diversidad de trato de La Iglesia Católica apud GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 292. 457
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
608.
196
Neste sentido, é evidente que a religiosidade católica tem traços
distintivos no país, seja por sua história e cultura, seja em virtude de, até os dias
atuais, a população se declarar predominantemente desta religião.
Resta claro, portanto, que a correta concepção de laicidade no Brasil é
inclusiva e não excludente. De um lado não exclui as minorias e de outro não
significa anticlericalismo ou revanchismo ideológico contra o catolicismo, religião da
maioria do povo brasileiro.
4.3.2 A abolição dos Símbolos Religiosos
Os sinais da religião fundadora do país estão espalhados por toda a parte
no país seja no nome de Estados, cidades, ruas, empresas; seja nos feriados, festas
populares; ou, ainda, na existência pública de sinais que representam tal religião.
Portanto, a “catolicidade” identifica a formação nacional brasileira, isso é
certo.
Sendo assim:
A cultura, como elemento normativo a ser preservado e promovido, constitui uma categoria extremamente ampla. No caso brasileiro, o chamado patrimônio cultural é formado, dentre outros, pelos bens (inclusive imateriais) portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Em seu art. 215 a Constituição brasileira impõe ao Estado a proteção das manifestações das culturas populares, indígenas e afro-descendentes e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. 458
E mais:
A ideia de identidade é chave para compreensão aqui. Há uma nítida
imbricação entre determinadas manifestações religiosas no Brasil (e não apenas o catolicismo) com a formação nacional de uma identidade e de uma cultura própria. Nesses casos, o Estado encontra-se obrigado a agir, protegendo essas manifestações em suas diversas dimensões. Mais do que isso, o Direito não se pode furtar a uma leitura cultural de suas normas (grifo do autor).459
458
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
612. 459
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
613.
197
No Brasil o contexto histórico cultural é predominantemente católico, com
seus feriados e festas religiosos, e tantos sinais espalhados por toda a sociedade,
seja no espaço privado, como no público.
Ora:
As normas constitucionais refletem a e são refletidas pela sociedade, pelo concreto, pela identidade nacional e pelos padrões gerais de comportamento construídos e sedimentados ao longo dos tempos. Com o princípio do Estado laico não será diferente. Nada há que imponha uma leitura específica apartada da teoria geral do Direito Constitucional, como exceção conceitual.460
O desembargador José Renato Nalini reconhecendo que para remover os
sinais católicos do país teríamos que reescrever sua história diz:
A tentativa de eliminar símbolos do Cristianismo das repartições públicas é utopia. O Brasil se chamou Terra de Santa Cruz, a religião católica foi a oficial desde 1500 até 1890. [...] A se levar a sério a eliminação de qualquer sinal da cristandade, cultura entranhada em nossas tradições, teríamos de reescrever a história. E isso é impossível. Veja-se o ridículo da revisão do passado, de maneira a excluir o que é “inexcluível”, tema que George Orwell já enfrentou no seu célebre “1984″. Ao proceder a leitura de “O Tempo das Ruas”, da antropóloga Fraya Frehse, mais me certifiquei disso. Ela fala de São Paulo, cidade fundada sob a invocação do Apóstolo dos Gentios, por padres jesuítas que aqui estavam a catequizar os indígenas. A reescrita obrigaria São Paulo a não se chamar assim. Seria apenas “Paulo”? Não estaria implícito e subjacente a santidade do patronímico? Onde se chegaria se tivéssemos de dizer que a população recenseada pelo poder público paulistano em 1872 e 1890 obedecia a uma divisão administrativa que se chamava, simplesmente, Nossa Senhora da Assunção da Sé, Nossa Senhora da Conceição de Santa Ifigênia, Nossa Senhora da Consolação e São João Batista, Senhor Bom Jesus do Mattosinhos do Braz, Nossa Senhora da Expectação do Ó, Nossa Senhora da Penha de França, Nossa Senhora da Conceição de São Bernardo, Nossa Senhora do Desterro do Juqueri e Nossa Senhora da Conceição dos Guarulhos? As cidades todas têm padroeiro, os Estados membros também, a Nação idem. Que cidade não tem a sua “rua do Rosário”, invocação mariana entranhada na consciência das pessoas e que nenhum decreto humano conseguirá apagar. Vide a URSS, que ao ser dissolvida, viu voltar, em plenitude e exuberância, a fé e a crença na transcendência, vocação natural dos míseros humanos. Conformem-se, ateus, e tentem ganhar a adesão dos descrentes, sem modificar
460
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.
613.
198
o passado. Este já foi e é a única dimensão do tempo com que se pode efetivamente contar.461
Portanto, uma salutar concepção de laicidade não impõe a destruição da
tradição cultural do país em nome de um igualitarismo de inspiração laicista. Tal
soaria mais como perseguição do Estado contra a religião predominante, em nome
de um suposto respeito às minorias:
O respeito devido às minorias de agnósticos ou de não crentes não se deve impor de maneira arbitrária que silencie as convicções de maiorias crentes ou ignore a riqueza das tradições religiosas. No fundo isso fomentaria mais o ressentimento do que a tolerância e a paz.462
Um exemplo de inclusão é a homenagem do país à umbanda quando os
Correios lançaram um carimbo alusivo ao Dia Nacional da Umbanda em sessão
solene que ocorreu no plenário da Câmara dos Deputados, no dia 12 de novembro
de 2012463.
Ora, caso a laicidade fosse excludente, tal jamais poderia ser permitido.
Por qual razão se poderia homenagear uma religião e não outra? Não poderiam
sentir-se ofendidos os que professam o espiritismo ou a religião judaica?
Evidente que o reconhecimento pela atuação de uma religião no país,
especialmente se está ligada à prática da caridade e do amor ao próximo, não pode
ser repudiada em nome da laicidade do Estado.
De outro lado, isto significa reconhecer que há uma religião tradicional no
país, cujos sinais são evidentes e, se não é desejável a tirania da maioria, do
mesmo modo não se pode admitir a tirania da minoria.
O sentimento religioso do povo brasileiro, cuja esperança reside de modo
decisivo em sua fé no Deus cristão e nos seus santos protetores e que proclamou
como padroeira a Virgem Aparecida, merece o respeito de todos, seja dos que
professam outros credos, seja dos que nenhum credo professam.
461
NALINI, José Renato. A cruz é inextinguível. Artigo eletrônico publicado em 28 de março de
2014. Disponível em: <https://renatonalini.wordpress.com> Acesso em 05-05-2014. 462
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulus, Loyola, 2013, p. 142. 463
Cf. notícia no blog dos Correios. Disponível em: < http://blog.correios.com.br/correios/?p=4687> Acesso em 06-04-2014.
199
Todo o país está impregnado de traços da religião católica, sobre a qual
foi construído e na qual a maior parte do povo foi formada, sendo até hoje a religião
mais professada no território.
Além disso, houve grande crescimento de outras confissões religiosas
cristãs. Portanto, o país é eminentemente cristão.
Isto não significa que as denominações não cristãs que representam a
minoria sejam ou devam ser desprezadas ou desrespeitadas. Esse respeito e igual
tratamento é imposição da laicidade.
Porém, num país de colonização católica a tradição é católica.
Reconhecer isto seria ser intolerante com as demais denominações? Reconhecer
que a sociedade brasileira está prenhe de manifestações religiosas católicas e
respira catolicidade por todos os poros, é dizer que o estado não é laico? Por certo
que não. É necessário reconhecer o valor cultural desta religião no país.
São diversos feriados, inúmeros nomes de estados e cidades, dezenas de
monumentos e festas populares como a junina, de reis, do divino e tantas outras em
cada Estado que caracterizam o Brasil e são provenientes da religião católica.
O grande símbolo do Brasil no exterior é a cidade do Rio de Janeiro com
o Corcovado e o Cristo Redentor.
Alguns defensores da retirada dos símbolos religiosos católicos das
repartições públicas alegam que os crentes de outras religiões se sentem ofendidos
pela presença de tais sinais externos de uma crença específica. Ou ainda, que
algumas questões levadas ao Judiciário têm viés religioso e a existência de um
crucifixo nas salas de julgamento seria causa de decisões parciais.464
Em sua dissertação de mestrado Roberto de Almeida Gallego mostra que:
Há algum tempo, uma organização não governamental intitulada “Brasil Para Todos” apresentou requerimento ao conselho Nacional de Justiça, no sentido da retirada de crucifixos dos Fóruns e
464
Segundo o Jornalista Leonardo Sakamoto: “[...] É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. E, o mais relevante: as denominações cristãs são parte interessada em polêmicas judiciais, como pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão presentes nos locais onde são tomadas as decisões, como garantir que as decisões serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, para promover nenhuma delas. [...]” (Disponível em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2011/10/09/tirem-o-crucifixo-do-stf-o-cristo-redentor-pode-ficar/ Acesso em 12-06-2014)
200
Tribunais de todo o país, sob o argumento de que a prática de manter tais símbolos religiosos nas dependências de órgãos do Poder judiciário vulnera o princípio constitucional da laicidade do Estado. O Conselho Nacional de Justiça em decisão proferida na data de 06.06.2007 houve por bem não acolher tal pleito, sob os seguintes argumentos: a) o caráter tradicional e costumeiro da prática impugnada; b) a inexistência de qualquer vedação a ela; c) o caráter positivo da mensagem que porta o crucifixo, como “símbolo que homenageia princípios éticos e representa especialmente a paz”; d) a ausência de qualquer violação de direitos ou de discriminação na exibição de crucifixo nos tribunais; e) a autonomia administrativa dos tribunais para decidirem livremente sobre o assunto, tendo em vista a ausência de balizas legais.465
O constitucionalista Daniel Sarmento escreveu artigo sobre o assunto
onde argumenta que a decisão do Conselho Nacional de Justiça de manter os
crucifixos foi equivocada466.
Para isto aduz em síntese que: a) o crucifixo é à evidência um símbolo
religioso associado ao cristianismo; b) não é ele um mero adorno; c) o protesto
contra a presença de crucifixos não é intolerância religiosa; d) a retirada dos
símbolos religiosos não é antidemocrática; e) que democracia não é mero governo
das maiorias; f) a justificativa do CNJ de que tais símbolos são tradição é
equivocada e expressa visão conservadora do direito; g) quaisquer considerações
acerca da mensagem que o crucifixo transmite fere a neutralidade do Estado laico;
h) a inexistência de lei proibindo a existência de tais símbolos não a torna
automaticamente lícita; i) a retirada de símbolos não implica necessariamente a
concepção de inconstitucionalidade dos feriados religiosos, nem que o Estado não
possa empregar recursos na conservação do patrimônio histórico-religioso.
Em sua dissertação de mestrado Roberto de Almeida Gallego traz tais
argumentos para refutá-los. Segundo ele, de fato o crucifixo não é mero adorno e
está associado à mensagem cristã. Mas para o autor, isto não vulnera a laicidade
do Estado.
465
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 294-295. 466
SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista Eletrônica do
Ministério Público Federal de Pernambuco. Ano 5. 2007. Disponível em: < http://www.prpe.mpf.mp.br/internet/Legislacao-e-Revista-Eletronica/Revista-Eletronica/2007-ano-5/O-Crucifixo-nos-Tribunais-e-a-Laicidade-do-Estado> Acesso em 06-04-2014.
201
O primeiro contra-argumento é o que constata não haver qualquer tipo de
influência sobre o julgador para exercer sua função:
Assim, o Estado-juiz atua julgando as controvérsias que lhe são levadas à apreciação pelos jurisdicionados. Neste contexto, pergunta-se: em que medida matéria confessional – especificamente cristã ou católica – é levada em conta pelo julgador quando da prolação de uma sentença? [... ] Em atenção ao princípio da persuasão racional o magistrado deve explicitar, logicamente, os argumentos dos quais se utilizou para embasar sua decisão.[...] Não há aqui nenhum endosso estatal de mensagens religiosas.467
O autor refuta a ideia de que o símbolo religioso possa ser ofensivo aos
que não professam a fé cristã:
Por conseguinte, para um cristão o crucifixo ostenta um valor religioso, enquanto que, para o seguidor de outra fé, represente um valor cultural, ou uma síntese de valores – hoje com roupagem secular – que são caros às sociedades livres. Dizer-se, por exemplo, que a cruz pode ser afrontosa a alguém pertencente a uma religião de matriz africana é ignorar o intenso sincretismo existente, em nosso país, entre o catolicismo e tais religiões; afirmar-se que a cruz agride os muçulmanos é ignorar o respeito que o Corão tem pela figura de Jesus. [...] Com relação aos denominados “sem religião”, isto é, ateus e agnósticos, a presença do crucifixo em tribunais lhes deveria ser indiferente, muito embora certo “ateísmo militante”, movido por verdadeiro ódio à religião esteja, atualmente, a tentar ocupar espaço na sociedade.468
Outro argumento é o questionamento sobre em que medida a presença
da cruz em salas de audiência ou outras dependências de Cortes de Justiça daria
ensejo a alguém ser discriminado por não professar a mesma religião? Este motivo
não é levado em conta pelo Magistrado no momento de julgar, pois se o for, aí sim,
seria motivo de discriminação. Mas não é o que parece ocorrer.
Por fim, em relação à democracia não ser a tirania da maioria e que o
direito não pode avalizar acriticamente posições tradicionais existentes na
sociedade, afirma Gallego que se deve recorrer “no trato de questões sensíveis,
467 GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado
Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 296. 468
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 296-297.
202
como aquelas ligadas à religião, não somente à razão organizadora do mundo, mas
também ao sentimento do povo”.469
O sentimento do povo está manifestado no preâmbulo da Constituição
Federal, pois ali foi aprovada a menção a Deus, quer queiram ou não:
O preâmbulo está, assim, a registrar um sentimento construído e alimentado no curso de longa história e, embora o direito não deva acatar, passivamente, as tradições estabelecidas, cabe-lhe resistir à tentação jacobina de reformar o mundo a partir de um ponto zero, ignorando ou subvalorando a ancestralidade. Afinal, como bem intuiu Edmund Burke, a sociedade é uma comunidade de almas, formada por aqueles que já se foram, os que aqui estão no momento atual e aqueles que ainda virão a nascer, sem solução de continuidade.470
A simples existência desses símbolos católicos no ambiente público,
portanto, não fere a laicidade, é um sinal cultural. Ofenderia se fosse exigido do
cidadão, que, ao adentrar o recinto público, fizesse uma reverência ao crucifixo ali
afixado.
Bastante interessante a manifestação do juiz federal e escritor protestante
William Douglas a este respeito. Ele, que por sua crença repudia as imagens, é
absolutamente contra a arbitrária atitude laicista de retirada de símbolos religiosos
dos tribunais e repartições públicas.
Segundo o Magistrado a alegação de que a laicidade impõe a retirada de
símbolos católicos do espaço público é oportunismo. De seu texto, cujo inteiro teor
colaciona-se no anexo “A”, pedimos vênia para extrair citação um tanto longa:
Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela imagem é natural. O crucifixo nas Cortes, independentemente de haver uma religião que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem aos poderosos mais do que à Justiça.Vale dizer que se a medida for ser levada a sério, deveríamos também extinguir todos os feriados
469
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298. 470
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298.
203
religiosos, mudar o nome de milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir símbolos e imagens, a exemplo, que
identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim, dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que é intolerância. Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e, portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico para retirar os Santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de oportunismo. 471
Deste modo, a presença dos crucifixos nas repartições públicas é de fato
uma tradição, já que o cristianismo historicamente, desde a colonização, é a religião
da maior parte da população. Porém não é uma tradição maléfica, como o foi a
escravidão.
Em comparação, pode-se lembrar de outro símbolo proveniente de uma
religião como é a escultura feita em pedra inspirada na deusa grega Têmis ou
romana Iustitia, como símbolo da Justiça colocada bem em frente ao prédio do
Supremo Tribunal Federal.472
Assim: “As tradições não precisam ser mudadas, a menos que se prove o
efetivo e injusto dano que estejam elas a causar a pessoas de carne e osso”.473
E neste ponto relembra-se o quanto afirma Habermas em relação a uma
“modernização descarrilhadora” imposta a sociedade por meio de uma mudança
cultural radical.
Por outro lado, é evidente que a cultura brasileira está permeada de
traços da religiosidade católica seja nos sinais existentes em diversos locais públicos
471
DOUGLAS, William. A laicidade do Estado laico: todos os credos ao invés de nenhum. Texto
publicado no blog do Magistrado Federal. Disponível em: <http://www.williamdouglas.com.br/conteudo04.php?id=681> Acesso em 06/04/2014. 472
Cf. informações no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal (Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=124639&caixaBusca=N – Acesso em 12-06-2014) 473
GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a ágora: religião e laicidade no Estado Democrático de Direito in (Re)pensando o Direito: Estudo em homenagem ao Porf. Cláudio de Cicco; coordenação Alvaro de Azevedo Gonzaga, Antonio Baptista Gonçalves, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 298.
204
e privados, seja no nome dado às mais diversas cidades e Estados do país, os
feriados católicos, as festas de origem católica como festas de São João, Folia de
Reis, Festa do Divino; além dos feriados provenientes de datas comemorativas
católicas, dos quais todos podem de algum modo ter proveito, seja para praticar o
culto, seja para mero descanso.
Isto não pode ser simplesmente descartado sob pena de grande falta de
respeito com o sentimento do povo.
Em outras palavras, o povo brasileiro é religioso, a religiosidade (de modo
geral e a católica em especial) faz parte da cultura brasileira, é parte de sua
identidade. A maior prova disto está no preâmbulo da Carta Política, já
anteriormente analisado.
A igualdade no trato de todos os cidadãos se impõe, mas não está
condicionada à redução de visibilidade da religião mais tradicional do país, desde
que nenhuma discriminação se faça em nome dela. O que equivale a dizer que sua
importância histórica e os sinais daí provenientes, por si só, não representam
qualquer tipo de privilégio em face de outros credos ou do ateísmo.
O fato é que a cultura do povo deve sempre ser preservada e respeitada
como sua parte integrante. Até porque, os valores que perpassam cada cultura
auxiliam na construção de sua ética, cujos fundamentos primeiros são universais:
Ressalte-se, desde logo, que não pode servir de critério para o juízo do bem e do mal a opinião deste ou daquele indivíduo. Aqui, tal como no campo das ciências da natureza, a famosa fórmula de Protágoras, “o homem”, isto é, cada indivíduo humano, “é a medida de todas as coisas”, conduz logicamente, como bem ressaltou Sócrates, à negação de todo saber racional. Em matéria ética, o critério ou modelo de vida deve valer, no essencial, para todos os homens e todas as civilizações. Frise-se: no essencial, pois há valores secundários que variam enormemente, entre as diferentes culturas e civilizações. 474
Portanto, há um mínimo ético que deve ser universalmente preservado, a
fim de se evitar desigualdades, já que estas indicam a negação da dignidade
inerente a qualquer ser humano sem exceção. De outro lado, há as diferenças
474
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo,
Companhia das Letras, 2006, p. 439.
205
culturais, sejam elas fundadas no aspecto biológico ou cultural e constituem valores
a serem sempre respeitados, sob pena, aí, de negação da dignidade humana.475
Quem defende o contrário parece defender uma posição radical de
revanchismo contra a Igreja Católica, tomado por motivações de vingança, que
evidentemente não se coaduna com a visão neutra exigida pela laicidade do Estado.
4.4 O Decreto 7.007/2010: a concordata entre o governo brasileiro e a Santa Sé
Concordata é o nome dado aos acordos internacionais firmados pela
Santa Sé, na qualidade de Estado independente, com outros Estados
independentes.
Outrossim, a Igreja Católica é universal e está presente em inúmeros
países não apenas como sociedade civil organizada, como na pessoa de seus fiéis.
Para estes é quase como ter uma “dupla cidadania”. Portanto, nada melhor do que
colocar às claras qual tipo de relação há entre a Igreja Católica e o país que a
abriga.
Portugal é um país que tradicionalmente firma acordos com a Santa Sé,
tendo em vista a reconhecida trajetória da Igreja no país, que conta com mais de
90% de católicos e tem notórias obras de caridade em benefício da população por
ela promovidas.476
Muito semelhante ao Brasil.
São inúmeros os países que firmaram com a Santa Sé acordo de
cooperação e garantia de respeito à liberdade religiosa de parte à parte. Veja-se as
concordatas firmadas com Croácia, Saxônia, Áustria, Espanha, Venezuela, Polônia,
Malta e até Israel.477
Tais acordos garantem a ambas as partes segurança jurídica para evitar
tanto ofensas à liberdade religiosa quanto enganos sobre a atuação da Igreja no
respectivo país.
Neste sentido, no Brasil, o Decreto n. 7007/2010 aprova o Acordo feito
entre o Governo Brasileiro e a Santa Sé, no que tange à situação da religião católica
475 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 439. 476
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 3, 3. Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 419. 477
Cf. informações no sítio eletrônico do Vatincano (www.vatican.va).
206
no país, sem que haja nenhuma inconstitucionalidade ao contrário do que algumas
vozes propagaram publicamente.478
A principal insurgência é quanto ao ensino religioso, pois assim está
disposto no artigo 11:
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa. §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.
Neste sentido, a utilização da expressão “católico e de outras confissões
religiosas” trouxe alguns ataques acalorados em favor da laicidade do Estado.
Contudo, a questão do ensino religioso no Estado laico será abordada mais
detidamente à frente.
A referida concordata, desde que lida atentamente, mostra mais a
necessidade da Igreja de autonomia em suas funções no território brasileiro do que
qualquer outra coisa. Que é o que preceitua a sã laicidade: a autonomia das esferas.
Como já anteriormente demonstrado foram muitas as interferências do
Estado na Igreja, o que gerou prejuízos de toda a sorte. É este mal que parece
preocupar a Santa Sé, bem como, com a perseguição aos católicos em países em
que não se respeita a liberdade religiosa. Outro tema abordado é a do patrimônio da
Igreja em solo brasileiro, a fim de que haja cooperação no cuidado e acesso, pois é
reconhecidamente patrimônio cultural brasileiro também.
A integralidade do Decreto e do Acordo seguem no Anexo “C”, porém
destaca-se algumas disposições específicas, a fim de se verificar o “tom” desta
composição amigável.
Vejamos:
478
Cf. Ação Educativa e laboratório da laicidade. Disponível em <http://www.acaoeducativa.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=1843&Itemid=2> e: < http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/concordata_educ_publ_mira_vaticano.htm>. Acesso em 26-05-2014.
207
Artigo 2º A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro. [...] Artigo 7º A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo. § 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico, observada a função social da propriedade e a legislação, pode ser demolido, ocupado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, nos termos da Constituição brasileira. [...] Artigo 10 A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o Estado, continuará a colocar suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro. § 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de constituir e administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e cultura. § 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos obtidos nos Seminários e Institutos antes mencionados é regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em condição de paridade com estudos de idêntica natureza.
Em todo o documento se nota a necessária obediência aos princípios
constitucionais e respeito à lei brasileira. Deste modo, nada há em tal acordo que fira
a laicidade do Estado brasileiro.
Não é antagônico à laicidade, ademais, o fato de somente a Igreja
católica ter firmado este acordo, posto que a laicidade é inclusiva e não excludente.
Quem sabe não foram abertas as portas para que outras religiões se organizem e
firmem também acordos que assegurem a proteção de seus cultos, patrimônio e sua
liberdade de atuação no país?
208
4.5 O Ensino Religioso no Estado Laico
A pesquisadora Marília De Franceschi Neto Domingos479 em artigo publicado em
2009 na Revista de Estudos da Religião480 afirma que a laicidade no meio
educacional está distante de ideias anticlericais.
Segundo a autora, a espiritualidade é uma tendência natural do ser
humano, na busca de uma transcendência, enquanto “o fato religioso é a resposta
das religiões a esta tendência fundamental que aflora quando o homem toma
consciência da fragilidade da sua própria existência”.
Diante disso:
Mesmo tendo consciência de que não cabe à escola a tarefa de resolver todos os problemas não resolvidos pela sociedade em geral e pelas famílias em especial, negar a necessidade de abertura de diálogo sobre o ensino religioso na escola laica é contribuir para o obscurantismo, o sectarismo e a intolerância. Toda experiência pedagógica acumulada pelos especialistas na área nos leva a concluir que a tolerância religiosa, característica essencial da cidadania, não se constrói sobre um fundo de ignorância religiosa.481
Ela corrobora a posição já afirmada anteriormente em relação à diferença
entre laicidade e laicismo, já que este acabou se tornando um princípio filosófico-
político:
O laicismo levado ao exagero tem aparecido como uma militância que se opõe tanto às procissões quanto aos toques de sinos das igrejas, conclamando os fiéis para as festas religiosas ou missas; tanto aos elementos religiosos em prédios públicos quanto às datas festivas do calendário referentes a datas religiosas. Pode mesmo ser considerado, de forma mais agressiva, um proselitismo laico, agressivo, que ofende à liberdade de consciência e à própria proibição do proselitismo em espaço público.482
479
Doutora em Sociologia pela Universidade de Paris I – Pantheon Sorbonne (2003). Professora da Universidade Federal da Paraíba – Centro de Educação e Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões. Líder do Baobah – Grupo de Pesquisa em Educação e Ensino Religioso – CNPq. 480
DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014. 481
DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 68. 482
DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 64.
209
Segundo a autora é a laicidade que permite a convivência pacífica entre
as religiões e o respeito aos indivíduos que optam por não professar nenhuma
religião, sendo a escola o espaço onde esses universos culturais se encontram,
onde os conflitos podem se acirrar ou ser desarmados.
Assim sendo:
A grande questão, então, é de saber conciliar diversidade na unidade, articulando-as de tal forma que uma não comprometa nem oprima a outra. A laicidade, então, não é um produto cultural espontaneamente surgido de uma tradição particular, mas uma conquista de uma sociedade que buscou separar-se do poder teológico e político tradicional, estabelecendo a necessária distância entre um poder e outro. O ensino dos fatos religiosos propõe fornecer ao estudante os meios de poder escolher uma orientação religiosa, caso ele assim o deseje; mas uma escolha consciente, motivada por um desejo consciente e não uma opção forçada ou induzida por influências externas e muitas vezes extremistas. Nesse aspecto, o Relatório Debray já afirmava que “ninguém pode confundir catecismo e informação, proposição de fé e oferta de saber, 'testemunhos' e relatos”. (DEBRAY 2000). O Ensino Religioso
em um Estado laico tem toda a sua força baseada em uma aproximação descritiva, analítica, das religiões dentro da sua pluralidade.483
De opinião de que o ensino religioso deve ser generalista, a autora
ressalta que é necessário investir na formação deste professor:
A atenção dada à melhoria da formação dos docentes do Ensino Religioso, a constante adequação dos programas de ensino, materiais didáticos e recursos, a revisão dos materiais didático-pedagógicos, são essenciais para a educação para a tolerância, a não-violência, o aprender a ser e o aprender a viver juntos. Somente uma formação sólida fornecerá a esse docente conhecimento, recursos e metodologia próprios ao ensino das religiões. É a esta formação inicial e continuada, às discussões dela decorrentes, que o meio acadêmico, em especial as universidades públicas, não pode se furtar.484
De outro ponto de vista, o constitucionalista português Jorge Miranda
afirma que: “Não há contradição entre o ensino de religião e moral católica nas
483
DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 61-62. 484
DOMINGOS, Marília De Franceschi Neto. Ensino Religioso e Estado Laico: uma lição de tolerância. Revista de Estudos da Religião. Publicado em 2009, p. 45-70. Disponível em:
<http://www.pucsp.br/rever/rv3_2009/t_domingos.htm>. Acesso em 26-05-2014, p. 61-62.
210
escolas públicas [...] e a regra da não confessionalidade do ensino público, contanto
que os dois termos sejam correctamente apreendidos e enquadrados.”485
Afirma o autor que a neutralidade do ensino público significa que não há
identidade com uma religião específica, mas “não significa que as religiões, as
convicções, as filosofias ou as ideologias não devam ter expressão no ensino
público.” 486
Isto porque o direito dos pais de assegurar a educação de seus filhos de
modo coerente com suas convicções religiosas e filosóficas, aliás, consagrado no
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é
signatário, inclui a escola pública, sobretudo quando o fator que impede a escolha
de uma escola confessional é a condição financeira.487
O Estado deve garantir, portanto, este direito aos pais.
E àqueles que não querem seja ministrado ensino religioso a seus filhos,
deve ser dado o direito não apenas da ausência à aula de ensino religioso, como
assegurar a alternativa de atividade correlata, como ensino dos direitos humanos,
desenvolvimento pessoal, filosofia e cultura brasileira.
Mas para que isto funcione corretamente são requisitos:
a) a livre opção dos pais;
b) igual oportunidade de ensino a todas as religiões e
c) ensino ministrado por docentes indicados por cada confissão, sob a
responsabilidade e com programas por ela definidos.488
Pois bem, em relação ao Brasil e ao Acordo com a Santa Sé, que prevê a
possibilidade de ensino religioso, católico e outros, pode-se afirmar que isto fere a
laicidade?
Para responder é necessário ler atentamente o texto e perguntar se há ali
algum privilégio especial dado à religião católica e negado a outras religiões ou
mesmo se há disposição discriminatória em relação a outras religiões.
A resposta parece ser negativa, salvo melhor juízo, pois a questão do
ensino faz parte do direito à liberdade religiosa, conforme anteriormente colocado.
485
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 438. 486
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 438. 487
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 439. 488
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. V. 4, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora,
2000, p. 440.
211
Está expresso no texto o respeito ao caráter plural e diverso da
religiosidade e cultura no Brasil, e por esta razão o ensino deve ser obrigatoriamente
oferecido, mas é facultativo, proibida a discriminação. A imposição do ensino
confessional, sim, seria ofensivo não apenas à Constituição Brasileira, mas à
consciência de cada brasileiro.
No entanto, sendo ainda maioria, muitas famílias católicas, especialmente
as mais carentes financeiramente, devem ter o direito de poder dar aos seus filhos
uma formação ampla, humanista, que inclui a formação no âmbito de sua religião e
também conhecimento sobre as demais religiões.
Exigir do Estado que não financie o ensino religioso é privar o cidadão de
uma formação integral. Por que as crianças não podem conhecer as religiões e os
valores que pregam?
Infelizmente, o que se nota nos opositores do ensino religioso público é
novamente a ideologia ateísta, para os quais se deve ensinar às crianças o
desprezo à religião na cartilha do laicismo, como a França tem feito.
Isso, todavia, não parece neutralidade, nem liberdade de consciência,
mas doutrinação.
Então, famílias religiosas ou não devem ter o direito, se assim desejarem
(daí a facultatividade e liberdade), de dar a conhecer a seus filhos sobre as religiões
e seus valores. Talvez seja no ensino fundamental a única oportunidade que alguma
criança brasileira terá de conhecer a pluralidade de culturas e religiões, bem como
valores de justiça, amor, perdão e paz.
Diante disto, a expressão “ensino religioso, católico e de outras
confissões religiosas, de matrícula facultativa”, que consta da concordata do Brasil
com a Santa Sé, se conforma com a necessidade de ensino plural das religiões e
está adequada à exigência de laicidade do Estado, entendida esta não como
antirreligiosidade.
4.6 A Retirada da Menção a Deus na Nota da Moeda Nacional
Em novembro de 2012, o Ministério Público Federal, por seu procurador
Jefferson Aparecido Dias ingressou com Ação Civil Pública em face da União
Federal e do Banco Central, com objetivo de que fosse determinada a retirada da
inscrição “Deus seja louvado” da nota da moeda nacional no prazo de cento e vinte
212
dias. Trata-se do feito número 0019890-16.2012.4.03.6100, que tramitou perante a
7ª. Vara da Seção Judiciária de São Paulo e atualmente aguarda julgamento do
recurso no Tribunal Regional Federal da 3ª. Região.
Um dos argumentos do procurador era de que a manutenção da referida
expressão não se coaduna com a condição de coexistência entre convicções
religiosas, características da laicidade estatal, uma vez que “configura uma
predileção pelas religiões adoradoras de Deus, constrangendo a liberdade de
religião dos cidadãos que não cultuam”.
A medida resultou do Inquérito Civil instaurado por representação de
procurador perante o Ministério Público Federal.
No processo em questão, a tutela antecipada foi negada pela juíza sob a
seguinte alegação:
[...] De fato, não foi consultada nenhuma instituição laica ou religiosa não cristã que manifestasse indignação perante as inscrições da cédula e não há notícia de nenhuma outra representação perante o Ministério Público neste sentido. Entendo este fato relevante na medida em que a alegação de afronta à liberdade religiosa não veio acompanhada de dados concretos, colhidos junto à sociedade, que denotassem um incômodo com a expressão "Deus" no papel-moeda. Ademais, em uma análise preliminar, a menção a expressão Deus nas cédulas monetárias não parece ser um direcionamento estatal na vida do indivíduo que o obrigue a adotar ou não determinada crença, assim como também não são os feriados religiosos e outras tantas manifestações aceitas neste sentido, como o nome de cidades, exemplificativamente. Saliento, por fim, que os dizeres encontram-se há quase três décadas impressos no papel moeda, o que afasta qualquer risco de dano irreparável como a não concessão do pleito antecipatório.[...] 489
A ação foi julgada improcedente, sendo importante citar alguns trechos da
sentença490:
[...] Como dito na decisão que indeferiu a antecipação da tutela a própria Portaria que institui o Inquérito Civil Público e ensejou a propositura da presente ação não se baseou em qualquer sorte de clamor popular.Ao contrário, tudo surgiu no seio interno do Ministério Público Federal, como se lê no documento de fls, 16 em que a
489
V. decisão integral no sítio eletrônico da Justiça Federal de São Paulo. Disponível em: <http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais > Acesso em 25-06-2014. 490
V. decisão integral no sítio eletrônico da Justiça Federal de São Paulo. Disponível em: <http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais > Acesso em 25-06-2014.
213
representação inicial foi oferecida por um Procurador da República perante outro. [...]
Nota-se aqui que o interesse verdadeiramente defendido pelo Ministério
Público não é o do cidadão e sim o de uma ideologia laicista e antirreligiosa.
Em seguida, restou decidido que:
[...] não compete ao Judiciário definir se esta inscrição pode ou não estar cunhada no papel moeda. Ela, em si, não fere nenhum direito individual ou coletivo, ou impõe determinada conduta.O próprio Constituinte optou por inserir menção a "Deus" no preâmbulo da Constituição. Acolher esta pretensão seria admitir que o Poder Judiciário também pudesse abolir feriados nacionais religiosos já comemorados de longa data, determinar a modificação do nome de cidades, proibir a decoração de natal em espaços públicos e impedir a manutenção de reconhecidos símbolos nacionais de cunho religioso com dinheiro público. Essas decisões devem ser tomadas pela coletividade através de seus representantes [...].
Por fim, a sentença menciona caso semelhante ocorrido nos Estados
Unidos e define que a menção a Deus não deve ser retirada da nota monetária:
[...] Como salientado pela União, trazendo em sua contestação o julgado Lynch v. Donnelly, a Suprema Corte americana afirmou a constitucionalidade da colocação de um presépio em um parque municipal, assentando à impossibilidade de total separação entre Estado e religiosidade.Importante frisar que apesar de o Estado americano ser secular, sua moeda também vem grafada com expressão "in god we trust" sendo que até o momento o Poder Judiciário local não acolheu a pretensão de grupos ateus de excluir a expressão das cédulas.Isto posto, com base na fundamentação traçada, entendo, que a expressão cunhada na moeda não é ilegal e sua menção não ofende direito fundamental ou bem jurídico que justifique sua retirada pelo Poder Judiciário.[...]
A inserção da expressão “Deus seja louvado” na cédula monetária há
mais de trinta anos não causou qualquer tipo de reação da população brasileira, seja
de grupos religiosos ou ateus, demonstrando o que foi dito páginas atrás a respeito
da religiosidade do povo brasileiro e da tolerância, pois seja cristão, muçulmano ou
judeu, é o Deus único que essas religiões temem e cultuam. Mesmo religiões
politeístas respeitam a divindade.
Importa recordar que a laicidade no Brasil significa a independência e
autonomia entre as esferas, mas não significa a total separação ou repúdio entre
214
Estado e religião, o que seria impossível, especialmente tratando-se de um povo
quase que integralmente se define de alguma crença ou fé.
Repita-se: apenas 0,39% da população, segundo o último censo
demográfico, é de ateus e agnósticos. A esmagadora maioria da população
certamente acredita que o Poder Público tem mais o que fazer do que se preocupar
com este tipo de querela.
Como bem denotou o Magistrado que julgou o feito, esta expressão
inserida na cédula não fere qualquer direito, não privilegia nenhuma religião, não
associa o Estado a uma religião específica ou fere a liberdade de crença e
consciência, pois um ateu convicto não se tornará crente por conta disto.
Deste modo, novamente é a ideologia do laicismo, do anticlericalismo, do
revanchismo contra a maioria cristã que fundamentam essas medidas e não uma
verdadeira preocupação com a laicidade e a liberdade de crença e consciência.
Salvo melhor juízo os defensores de tal concepção ideológica de laicidade
parecem confundir o sentimento de irritação de que são tomados quando se
deparam com a presença de Deus no âmbito público, com a ofensa real e o
constrangimento de não poder professar e viver livremente sua crença ou
concepção de vida, o que, de fato ocorre em muitos países.
Num país plural, que garante a liberdade de crença e consciência como o
Brasil, não há espaço para medidas como esta, que demonstram apenas e tão
somente intolerância.
4.7 Concursos em Dia de Sábado
Os adeptos de algumas religiões cristãs e não cristãs devem guardar o
sábado como preceito obrigatório. Neste sentido não devem se dedicar a nenhuma
atividade que não diga respeito ao culto de seu Deus.
Isto tem gerado uma controvérsia acerca dos concursos públicos que são
realizados em dia de sábado, dado que essa parcela da população ficaria excluída
de participar da seleção para cargo público.
A Constituição Federal prevê no artigo 5º, que:
215
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Estariam esses religiosos sendo privados do direito de prestar concursos,
cujas provas se realizem aos sábados? Seria de fato uma privação de direito? Teria
o Estado que se reorganizar para que essas provas se dessem aos domingos? Mas
e as religiões que devem guardar o domingo? Ou será que admitir a alteração de
datas seria dar privilégios a certas convicções religiosas?
Assim, munidos de argumentos como a tolerância religiosa, o caráter laico
do Estado, a pluralidade de crenças, a dignidade da pessoa humana, os
compromissos assumidos pela República Federativa do Brasil em tratados e
declarações internacionais, alguns adventistas do sétimo dia ingressaram no ano de
2010 com mandado de segurança perante o STF. Os autos tomaram o número
28960.
Pretendiam os impetrantes que fosse alterada a data do concurso ou,
subsidiariamente, lhes fosse dada a oportunidade de realizar a prova após o pôr-do-
sol do referido dia, ficando os mesmos, incomunicáveis e na presença de fiscais, ,
resguardando no período de isolamento o direito à leitura da bíblia, previamente
conferida por fiscais, e recolhidas quando do início da prova. 491
O relator, então Ministro Gilmar Mendes, expressou-se no sentido de que
alterar a data da prova seria dar privilégio a um grupo religioso específico em
detrimento dos demais. A seu ver a melhor alternativa seria a manutenção dos
impetrantes em local isolado, conforme pedido subsidiário.
No entanto, após a impetração do writ, o Centro de Seleção e de
Promoção de Eventos da Universidade de Brasília - ente que organizava o certame
publicou novo edital deixando consignado que candidatos que solicitassem
atendimento especial por motivos religiosos deveriam comparecer ao local
designado para a realização das provas com antecedência mínima de uma hora do
491
V. integralidade do processo no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3924151> Acesso em 25-06-2014.
216
horário fixado para o seu início e permanecer em recinto exclusivo até o pôr do sol,
para, então, poderem realizar as provas.
Com isto o mandado de segurança perdeu o objeto e não houve acórdão.
Em caso semelhante, mas promovido por autores da religião judaica em
relação à aplicação das provas do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, o
Ministro Gilmar Mendes reiterou entendimento de que a neutralidade do Estado laico
não significa indiferentismo em relação à religião.
Afirmou que:
Em alguns casos, imperativos fundados na própria liberdade religiosa impõem ao ente público um comportamento positivo, que tem a finalidade de afastar barreiras ou sobrecargas que possam impedir ou dificultar determinadas opções em matéria de fé.492
No entanto, em relação ao pedido de que fossem feitas provas diferentes
em outras datas para esses candidatos afirma novamente:
Ademais, cumpre ressaltar a existência de outras confissões religiosas, as quais possuem “dias de guarda” diversos do dos autores. Assim, a fixação de data alternativa apenas para um determinado grupo religioso configuraria, em mero juízo de delibação, violação ao princípio da isonomia e ao dever de neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso. Tal fato atesta, ainda, o “efeito multiplicador” da decisão impugnada, haja vista que, se os demais grupos religiosos existentes em nosso país também fizessem valer as suas pretensões, tornar-se-ia inviável a realização de qualquer concurso, prova ou avaliação de âmbito nacional, ante a variedade de pretensões, que conduziriam à formulação de um sem-número de tipos de prova.
Pois bem, a neutralidade do Estado impõe uma alternativa que não
imponha ao Poder Público oneração excessiva, nem se configure como um privilégio
a determinado grupo. Neste sentido, a permissão para realização da mesma prova
no mesmo dia, porém em outro horário, após o alvorecer, parece se coadunar com a
melhor interpretação de laicidade do Estado.
492
Autos de Suspensão de Tutela Antecipada – STA n. 389/MG. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=3796954> Acesso em 25-06-2014.
217
CONCLUSÃO
Por tudo quanto se expôs nota-se o caminho percorrido pelas relações
entre Estado e Igreja na história da humanidade.
No início, a religião era determinante da vida, da pertença a uma família,
à cidade, da participação política. Havia um só ente que representava a autoridade
perante os homens, desconhecia-se a separação entre o terreno aspecto e o
espiritual. A religião representava a autoridade total, o domínio sobre todos os
aspectos da vida humana. Não ter religião era fator de exclusão da sociedade
familiar ou civil. Ainda, não se concebia falar em separação de poder entre a
administração dos bens civis e celebração do culto religioso, pois o primeiro decorria
do segundo.
Contudo, a ascensão da plebe e o advento da filosofia contribuíram para
enfraquecer este esquema primitivo.
Com o advento do cristianismo vai se idealizando e concretizando uma
nova maneira de pensar a relação entre a religião e o poder terreno, desvinculando-
se uma da outra. Posteriormente, com a decadência do Império Romano e a
cristianização dos povos que formaram a Europa, houve novas formas de ingerência
da Igreja no Estado e do Estado na Igreja.
Veio, então, o Renascimento, a Reforma Protestante e o Iluminismo o
liberalismo e a secularização.
Em decorrência, desenvolveu-se aos poucos a concepção do Estado
liberal, plural e democrático; onde o poder da Igreja emanava de Deus, mas o poder
do Estado emanava do povo, combatendo-se o absolutismo fosse da religião, fosse
dos monarcas. O Estado separado da Igreja Católica tornou-se laico.
Entretanto, concluiu-se que a laicidade não significa a completa exclusão
da Igreja e das religiões em geral do âmbito público. Significa, sim, a saudável
independência entre as esferas, que são completamente autônomas na gerência de
si próprias.
De outro lado, sendo a espiritualidade manifestamente parte do
desenvolvimento integral do ser humano, no Estado laico é não apenas possível,
como necessário que a religião do povo não seja relegada somente aos templos,
reconhecendo-se seus sinais exteriores e o que defendem.
218
A religiosidade faz parte da cultura e história de um povo que não pode ir
sendo apagada pela intolerância de alguns. Além disso, a fé faz o contrapeso com a
ciência e a técnica, cada qual servindo de limite um ao outro.
Não bastasse isto, percebe-se que excluir qualquer tipo de argumentação
razoável da esfera política, deslegitima todo o processo e seu resultado. Defendeu-
se que é necessária a colaboração de todos, crentes e não crentes, para fazer uma
espécie de “tradução” da linguagem religiosa, caso ela já não venha traduzida, para
uma linguagem laica que possa ser aceita por todos.
Até porque a motivação para a efetiva participação política de inúmeros
cidadãos é religiosa e moral. Por esta razão, a tentativa de uma “modernização
descarrilhadora”, para usar a expressão de Jürgen Habermas, do Estado, impondo
padrões não popularmente aceitos, pode desestruturar a sociedade.
É o que, segundo ele, ocorreu na colonização feita pelos países
europeus. Com efeito, a tentativa de imposição de valores externos aos povos de
suas colônias pode ter sido a causa do extremismo religioso e fundamentalista que
ameaça o mundo hoje.
Por esta razão é essencial, no Estado liberal e laico, o respeito às
diferentes cosmovisões, ainda que religiosas (ou especialmente estas), desde que
razoáveis e concordes com os princípios constitucionais de direito.
É certo que caberá a interpretação destas disposições constitucionais
pelo órgão jurisdicional competente, que, no entanto, não poderá recusar a
plausibilidade da argumentação laica dos religiosos, também em virtude da laicidade
do Estado, nem aplicar automaticamente a ideologia laicista em seus julgados.
Portanto, conclui-se que o Estado laico é autônomo e independente em
relação à Igreja Católica e às visões de mundo religiosas como um todo, não
podendo privilegiar nenhuma delas. Ao Estado não cabe declarar-se nem religioso,
nem ateu. Não se podem permitir regalias para uma confissão em detrimento de
outras ou do ateísmo. De outro lado, não lhe cabe alinhar-se a ideologias laicistas
demonstrando animosidade contra religiões e religiosos na tentativa de excluir os
sinais de religiosidade, ainda que sejam os da religião predominante.
A adaptação de uma sociedade às mudanças trazidas pela modernidade
ocorre lentamente, de dentro para fora e não imposta, nem mesmo pelo
entendimento, de certo modo elitista, do órgão supremo de Justiça do país.
219
Outrossim, modernização não significa a lenta exclusão da religião da
esfera pública e sim o profícuo diálogo entre fé e razão em que uma coloca limite à
outra, permitindo o progresso e desenvolvimento da humanidade sempre tendo o
homem como seu fim e não mero instrumento.
Enfim, laicidade não é laicismo, ateísmo, intolerância ou aversão contra
qualquer religião ou igreja, bem ao contrário, já que deve garantir aos seus cidadãos
o direito de ser, demonstrar e ensinar tanto sua religiosidade quanto sua não
religiosidade.
Afirmar o contrário significaria dizer que o Estado é confessional e não
laico, isto é, confessa o ateísmo radical que promove violenta perseguição e o
preconceito contra os cidadãos religiosos.
A ideia central, portanto, é a defesa da laicidade no sentido de que não
cabe ao Estado impor nenhuma verdade especificamente religiosa ou filosófica,
deixando tal questão à consciência de cada indivíduo, competindo-lhe defender a
tolerância entre religiões e também entre religiosos e ateus, bem como valorizar e
respeitar não apenas as crenças, mas observar e absorver os valores morais delas
provenientes.
Soa utópico, é verdade, conseguir que os homens cheguem a colocar em
prática tal respeito e consideração pela visão de mundo do outro, sem tentar
sobrepor-se por seus próprios argumentos, mas tentando chegar a um consenso,
através do diálogo racional.
Contudo, é perda de tempo tentar destruir o modo de ser e pensar do
outro enquanto bilhões de seres humanos em situação de absoluta miséria
necessitam da união de esforços de crentes e não crentes para erradicar a miséria,
a fome e a injustiça.
E enquanto é feito o esforço para trilhar este caminho, Fé e Razão,
Religião e Ciência, vão se respeitando e acolhendo mutuamente, e quando se
voltarem para trás poderão ver o longo caminho já percorrido e os frutos colhidos
deste novo modo de abordagem recíproca.
Afinal, valores como dignidade humana, liberdade, proteção da vida,
respeito ao meio-ambiente, fraternidade, justiça e paz são indispensáveis para a
construção de um mundo melhor.
220
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RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução Dinah de Abreu Azevedo, 2ª. Ed.,
São Paulo: Ática, 2000.
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luis Guilherme; MITIDIERO, Daniel Curso de
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SARMENTO, Daniel. O crucifixo nos tribunais e a laicidade do Estado. Revista
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SAYEG, Ricardo Hasson e BALERA. Wagner. O capitalismo humanista.
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo:
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227
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Tradução.José
Marcos Mariani de Macedo, revisão. Antonio Flávio Pierucci, 7ª reimpressão, São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.
DOUGLAS, William. A laicidade do Estado laico: todos os credos ao invés de
nenhum. Texto publicado no blog do Magistrado Federal. Disponível em:
<http://www.williamdouglas.com.br/conteudo04.php?id=681> Acesso em 06/04/2014.
228
ANEXO A
A laicidade do Estado laico: todos os credos ao invés de nenhum
Por William Douglas, juiz federal, professor e escritor.
Segundo notícia publicada no Portal IG, “em atenção à queixa de um cidadão, que
se sentiu discriminado pela presença de um crucifixo no Tribunal Regional Eleitoral e
São Paulo, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão entrou com uma ação
civil pública para obrigar a União a retirar todos os símbolos religiosos ostentados
em locais de atendimento ao público no Estado. A ação, com pedido de liminar, visa
garantir a total separação entre religião e poder público, característica de um Estado
laico, ainda que de maioria cristã, como o Brasil. ‘Minha ação restringe-se aos
ambientes de atendimento ao público. Nada contra o funcionário público ter uma
imagem de santo, por exemplo, sobre a sua mesa de trabalho’. Católico praticante
(‘comungo e confesso’, diz Dias, 38 anos, o Procurador responsável pela ação. Uma
decisão favorável no TRF-SP certamente levará o assunto a outras instâncias. O
único precedente que existe é negativo. Em junho de 2007, o Conselho Nacional de
Justiça indeferiu o pedido de retirada de símbolos religiosos de todas as
dependências do Judiciário. Na ação pública, Dias lembra que, além de estarmos
em um Estado laico, a administração pública deve zelar pelo atendimento aos
princípios da impessoalidade, da moralidade e da imparcialidade, ou seja, garantir
que todos sejam tratados de forma igualitária. O procurador entende, nesse sentido,
que um símbolo religioso no local de atendimento público é mais que um objeto de
decoração, mas pode ser sinal de predisposição a uma determinada fé. “Quando o
Estado ostenta um símbolo religioso de uma determinada religião em uma repartição
pública, está discriminando todas as demais ou mesmo quem não tem religião,
afrontando o que diz a Constituição’.” (04/08 - 16:29 - Mauricio Stycer, repórter
especial do IG). O tema vem sendo cada vez mais discutido e, ao meu ver, está
sendo objeto de uma interpretação equivocada por aqueles que desejam a retirada
dos símbolos religiosos. O Estado é laico, isso é o óbvio, mas a laicidade não se
expressa na eliminação dos símbolos religiosos, e sim na tolerância aos mesmos.
A resposta estatal ao cidadão queixoso, mencionado acima, não deveria ser uma
ação civil pública, mas uma simples orientação, no sentido de que o país ter uma
formação histórico-cultural cristã explica que haja na parede um crucifixo e que tal
presença não importa em discriminação alguma. Ao contrário, o pensamento
deletério e a ser combatido é a intolerância religiosa, que se expressa quando
alguém desrespeita ou se incomoda com a opção e o sentimento religioso alheio, o
que inclui querer eliminar os símbolos religiosos. Ao contrário do que entende o
ilustre Procurador mencionado, a medida não se limitará aos ambientes de
atendimento ao público. O próximo passo será proibir também os símbolos na mesa
de trabalho, seja porque o ambiente pertence ao serviço público, seja porque em
tese poderia ofender algum colega que visualizasse o símbolo. No final, como se
prenuncia no poema “No caminho, com Maiakóvski”, o culto e devoção terão que ser
229
feitos em sigilo, sempre sob a ameaça de que alguém poderá se ofender com a
religião do próximo. Nesse passo, eu, protestante e avesso às imagens (é notório o
debate entre protestantes e católicos a respeito das imagens esculpidas de Santos),
tive a ocasião de ver uma funcionária da Vara Federal onde sou Titular colocar sobre
sua mesa uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. A minha formação religiosa
e jurídica, onde ressalto a predileção, magistério e cotidiano afeito ao Direito
Constitucional, me levou a ver tal ato com respeito, vez que cada um escolhe sua
linha religiosa. A imagem não me ofendeu, mas sim me alegrou por viver em um
país onde há liberdade de culto. Igualmente, quando vejo o crucifixo com uma
imagem de Jesus não me ofendo por (segundo minha linha religiosa) haver ali um
ídolo, mas compreendo que em um país com maioria e história católica aquela
imagem é natural. O crucifixo nas Cortes, independentemente de haver uma religião
que surgiu do crucificado, é uma salutar advertência sobre a responsabilidade dos
tribunais, sobre os erros judiciários e sobre os riscos de os magistrados atenderem
aos poderosos mais do que à Justiça.Vale dizer que se a medida for ser levada a
sério, deveríamos também extinguir todos os feriados religiosos, mudar o nome de
milhares de ruas e municípios e, ad reductio absurdum, demolir símbolos e imagens,
a exemplo, que identificam muitas das cidades brasileiras, incluindo-se no cotidiano
popular de homens e mulheres estratificados em variados segmentos religiosos. Ao
meu sentir, as pessoas que tentam eliminar os símbolos religiosos têm, elas sim,
dificuldade de entender e respeitar a diversidade religiosa. Então, valendo-se de
uma interpretação parcial da laicidade do Estado, passam a querer eliminar todo e
qualquer símbolo, e por consequência, manifestação de religiosidade. Isso sim é que
é intolerância. Embora cristão, as doutrinas católicas diferem em muitos pontos do
que eu creio, mas se foram católicos que começaram este país, me parece mais que
razoável respeitar que a influência de sua fé esteja cristalizada no país. Querer
extrair tais símbolos não só afronta o direito dos católicos conviverem com o legado
histórico que concederam a todos, como também a história de meu próprio país e,
portanto, também minha. Em certo sentido, querer sustentar que o Estado é laico
para retirar os Santos e Cristos crucificados não deixaria de ser uma modalidade de
oportunismo.
Todos se recordam do lamentável episódio em que um religioso mal formado chutou
uma imagem de Nossa Senhora na televisão. Se é errado chutar a imagem da
Santa, não é menos agressivo querer retirar todos os símbolos. Não chutar a Santa,
mas valer-se do Estado para torná-la uma refugiada, uma proscrita, parece-me
talvez até pior, pois tal viés ataca todos os símbolos de todas as religiões, menos
uma. Sim, uma: a “não religião”, e é aqui que reside meu principal argumento contra
a moda de se atacar a presença de símbolos religiosos em locais públicos.
A recusa à existência de Deus, a qualquer religião ou forma de culto a uma
divindade não é uma opção neutra, mas transformou-se numa nova modalidade
religiosa. Se por um lado temos um ateísmo como posição filosófica onde não se crê
na(s) divindade(s), modernamente tem crescido uma vertente antiteísta. Para tentar
definir melhor essa diferença, vale dizer que se discute se budistas e jainistas seriam
ou não ateus, por não crerem em divindades além daquela representada pela
230
própria pessoa ou grupo delas, no entanto jamais se discutiria se um budista é ou
não antiteísta. É inegável reconhecer-se que esta nova vertente religiosa tem seus
profetas, seus livros sagrados e dogmas. Como a maior parte das religiões, faz
proselitismo, busca novos crentes (que nessa vertente de fé, são os “não crentes”,
“not believers”, os que optam por um credo que crê que não existe Deus algum).
É conhecida a campanha feita pelos ateus nos ônibus de Londres. A British
Humanista Association colocou o anúncio There’s probably no God. Now stop
worrying and enjoy your life (“Provavelmente Deus não existe. Então, pare de se
preocupar e aproveite sua vida”) nas laterais de ônibus britânicos, ao lado dos
tradicionais anúncios religiosos. Repare-se que o “provavelmente” demonstra
educação, senso político ou cortesia, e que nos cartazes nos ônibus todas as letras
estavam em caixa alta, eliminando a discussão sobre se deveriam escrever Deus
com “D” ou “d”. Mas nem todos os ateus são educados e cordatos, embora uma
grande quantidade deles, grande maioria eu creio, o seja. Assim como o
Protestantismo foi uma reação aos que não estavam satisfeitos com o catolicismo
romano, o antiteísmo, ou ateísmo militante, que vemos hoje, é uma reação dos que
estão insatisfeitos com a religião. Interessante perceber que esta linha de ateus é
intolerante e, como foi historicamente comum em todas as religiões iniciantes ou
pouco amadurecidas, mostrou-se virulenta e desrespeitosa no ataque às demais.
Esta nova religião, a “não religião”, ao invés de assumir o controle ou titularidade da
representação divina, optou por entender que não existe Deus nenhum. Em certo
sentido, ao eliminar a possibilidade de um ser superior, assumiu o homem como o
ser superior. Aqui o homem que professa tal tipo de crença não é mais o
representante de Deus, mas o próprio ser superior. Nesse passo, a nova religião tem
outra penosa característica das religiões pouco amadurecidas, consistente na
arrogância e prepotência de seus seguidores, apenas igualada pelo desprezo à
capacidade intelectual dos que não seguem a mesma linha de pensamento.
Assim, enquanto existe um ateísmo que simplesmente não crê e que demonstra as
razões disso em um ambiente de respeito e diversidade, vemos crescer também um
outro ateísmo, agressivo, que não apenas não livrou o mundo dos males da religião,
mas também passou a reprisá-los. O principal profeta dessa religiosidade invertida
(mas nem por isso deixando de ser uma manifestação religiosa) é Richard Dawkins,
autor do livro “Deus, um Delírio”. Ele está envolvido, como qualquer profeta, na
profusão de suas ideias, fazendo palestras e livros, concedendo entrevistas e
fazendo suas “cruzadas”. A Campanha Out (em inglês: Out Campaign) é uma
iniciativa proselitista em favor do ateísmo, tendo até mesmo um símbolo, o “A”
escarlate. A campanha atualmente produz camisetas, jaquetas, adesivos, e broches
vendidos pela loja online, e os fundos se destinam à Fundação Richard Dawkins
para a Razão e a Ciência (RDFRS). Algo que não deixa de ser muito semelhante às
campanhas financeiras típicas de outras manifestações de fé. Como alguns profetas
religiosos, Dawkins não poupa pessoas ilustres de credos concorrentes. Por
exemplo, em seu livro ele diz sobre Madre Teresa o seguinte: “(...) Como uma
mulher com um juízo tão vesgo pode ser levada a sério sobre qualquer assunto,
quanto mais ser considerada seriamente merecedora de um Premio Nobel?
231
Qualquer um que fique tentado a ser engabelado pela hipócrita Madre Teresa (...)”
(pág. 375). Naturalmente, entendo que Dawkins e seus seguidores têm todo o direito
de pensarem e professarem qualquer fé, mesmo que seja a fé na inexistência de
Deus e nos malefícios da religião. Contudo, só porque não creem em um Deus ou
vários deles, não estão menos sujeitos aos valores, princípios e leis que, se não nos
obrigam à fraternidade, ao menos nos impõem a respeitosa tolerância. Outra coisa
que não se pode é identificar em qualquer Deus ou símbolo religioso um inimigo e se
tentar cooptar a laicidade do Estado para proteger sua própria linha de pensamento
sobre o assunto religião. A meu ver, discutir os símbolos religiosos é mais fácil do
que enfrentar a distribuição de renda, a fome, injustiça e a desigualdade social. Não
nego a importância do assunto, mas acharia cômico se não fosse trágico que as
pessoas se ofendam com uma cruz o bastante para acionar o Estado e não o façam
diante de outras situações evidentemente mais prementes. Talvez mexer com os
religiosos seja mais simples, divertido e seguro, mas certamente não demonstra uma
capacidade superior de escolher prioridades. Portanto, parece conveniente lembrar
que católicos, judeus, evangélicos, espíritas e muçulmanos, e bom número de ateus
também, gastam suas energias ajudando aos necessitados. Tenho a esperança de
que nas discussões haja mais coerência e menos “pirotecnia” e “perfumaria” de
quem discute o sexo, digo, a existência dos anjos ao invés de enfrentar os
verdadeiros problemas de um país que, salvo raras e desonrosas exceções, é palco
de feliz tolerância religiosa. A eliminação dos símbolos religiosos atende aos desejos
de uma vertente religiosa perfeitamente identificada, e o Estado não pode optar por
uma religião em detrimento de outras. A solução correta para a hipótese é tolerar e
conviver com as diversas manifestações religiosas. Assim, os carros poderão
continuar a falar em Jesus, Buda, Maomé, Allan Kardec ou São Jorge sem que
ninguém deva se ofender com isso. Ou, se isso ocorrer, que ao menos não receba o
beneplácito de um Estado que optou por ficar equidistante das inúmeras,
infinitamente inúmeras, formas de se pensar o tema fé. Não ter fé e não apreciar
símbolos religiosos é apenas uma delas, respeitabilíssima, mas apenas uma delas.
Por fim, acaso fosse possível ser feita uma opção, não poderia ser pela visão da
“minoria”, mas da “maioria”. Talvez essa afirmação choque o leitor. Dizer que se for
para optar, que seja pela “maioria” choca, pois o conceito de “respeito às minorias” já
está razoavelmente assimilado. Mas também deveria chocar a ditadura da minoria, a
tirania dos que se transformam em vítimas ao invés de evoluírem o suficiente para
ver nos símbolos religiosos não uma ofensa, mas um direito, e entender que os que
já estão por aí, nas ruas, repartições e monumentos são apenas uma consequência
da nossa longa formação histórica e cultural. Em suma, espero que deixem este
crucifixo, tão católico apostólico romano quanto é, exatamente onde ele está. Excluir
símbolos é fazer o Estado optar por quem não crê. A laicidade aceita todas as
religiões ao invés de persegui-las ou tentar reduzi-las a espaços privados, como se o
espaço público fosse privilégio ou propriedade de quem se incomoda com a fé
alheia. Eu, protestante e empedernidamente avesso às imagens esculpidas, as verei
nas repartições públicas e saudarei aos católicos, que começaram tudo, à liberdade
de culto e de religião, à formação histórica desse país e, mais que tudo, ao fato de
232
viver num Estado laico, onde não sou obrigado a me curvar às imagens, mas jamais
seria honesto (ou laico, ou cristão, ou jurídico) me incomodar com o fato de elas
estarem ali.
(Disponível em: <http://www.williamdouglas.com.br/conteudo04.php?id=681> Acesso em 09-05-
2012).
233
ANEXO B
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
DECRETO Nº 119-A, DE 7 DE JANEIRO DE 1890.
Vigência restabelecida pelo Decreto nº 4.496 de
2002
Proibe a intervenção da autoridade federal e dos
Estados federados em materia religiosa, consagra
a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e
estabelece outras providencias.
O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio da Republica dos
Estados Unidos do Brasil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação,
DECRETA:
Art. 1º E' prohibido á autoridade federal, assim como á dos Estados federados, expedir leis,
regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religião, ou vedando-a, e crear
differenças entre os habitantes do paiz, ou nos serviços sustentados á custa do orçamento, por
motivo de crenças, ou opiniões philosophicas ou religiosas.
Art. 2º a todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto,
regerem-se segundo a sua fé e não serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que
interessem o exercicio deste decreto.
Art. 3º A liberdade aqui instituida abrange não só os individuos nos actos individuaes, sinão tabem
as igrejas, associações e institutos em que se acharem agremiados; cabendo a todos o pleno direito
de se constituirem e viverem collectivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem
intervenção do poder publico.
Art. 4º Fica extincto o padroado com todas as suas instituições, recursos e prerogativas.
Art. 5º A todas as igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade juridica, para
adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas leis concernentes á propriedade de
mão-morta, mantendo-se a cada uma o dominio de seus haveres actuaes, bem como dos seus
edificios de culto.
Art. 6º O Governo Federal continúa a prover á congrua, sustentação dos actuaes serventuarios do
culto catholico e subvencionará por anno as cadeiras dos seminarios; ficando livre a cada Estado o
arbitrio de manter os futuros ministros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos
artigos antecedentes.
Art. 7º Revogam-se as disposições em contrario.
Sala das sessões do Governo Provisorio, 7 de janeiro de 1890, 2° da Republica.
Manoel Deodoro da Fonseca. Aristides da Silveira Lobo.
Ruy Barbosa.
234
Benjamin Constant Botelho de Magalhães.
Eduardo Wandenkolk. - M. Ferraz de Campos Salles.
Demetrio Nunes Ribeiro. Q. Bocayuva.
Este texto não substitui o original publicado no Coleção de Leis do Império do Brasil de 1890
235
ANEXO C
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
DECRETO Nº 7.107, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2010.
Promulga o Acordo entre o Governo da
República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo
ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil,
firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro
de 2008.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da
Constituição, e
Considerando que o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé celebraram, na
Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de 2008, um Acordo relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja
Católica no Brasil;
Considerando que o Congresso Nacional aprovou esse Acordo por meio do Decreto Legislativo
no 698, de 7 de outubro de 2009;
Considerando que o Acordo entrou em vigor internacional em 10 de dezembro de 2009, nos
termos de seu Artigo 20;
DECRETA:
Art. 1o O Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao
Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado na Cidade do Vaticano, em 13 de novembro de
2008, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele
se contém.
Art. 2o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar
em revisão do referido Acordo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos
do art. 49, inciso I, da Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio
nacional.
Art. 3o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 11 de fevereiro de 2010; 189º da Independência e 122º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Celso Luiz Nunes Amorim
236
ACORDO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A SANTA SÉ
RELATIVO AO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL
A República Federativa do Brasil
e
A Santa Sé
(doravante denominadas Altas Partes Contratantes),
Considerando que a Santa Sé é a suprema autoridade da Igreja Católica, regida pelo Direito
Canônico;
Considerando as relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil e suas respectivas
responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa humana;
Afirmando que as Altas Partes Contratantes são, cada uma na própria ordem, autônomas,
independentes e soberanas e cooperam para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e
fraterna;
Baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito
Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico;
Reafirmando a adesão ao princípio, internacionalmente reconhecido, de liberdade religiosa;
Reconhecendo que a Constituição brasileira garante o livre exercício dos cultos religiosos;
Animados da intenção de fortalecer e incentivar as mútuas relações já existentes;
Convieram no seguinte:
Artigo 1º
As Altas Partes Contratantes continuarão a ser representadas, em suas relações diplomáticas,
por um Núncio Apostólico acreditado junto à República Federativa do Brasil e por um Embaixador(a)
do Brasil acreditado(a) junto à Santa Sé, com as imunidades e garantias asseguradas pela
Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 18 de abril de 1961, e demais regras
internacionais.
Artigo 2º
A República Federativa do Brasil, com fundamento no direito de liberdade religiosa, reconhece
à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de
suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro.
Artigo 3º
A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de
todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em conformidade com o direito
237
canônico, desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras, tais como
Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou
Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações
Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros
Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
§ 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir todas as Instituições
Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo.
§ 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pela República
Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato de criação, nos termos da
legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de
criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato.
Artigo 4º
A Santa Sé declara que nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil dependerá de Bispo cuja
sede esteja fixada em território estrangeiro.
Artigo 5º
As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º, que, além de fins
religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social, desenvolverão a própria atividade e
gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de
natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os
requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira.
Artigo 6º
As Altas Partes reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica,
assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante
do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a
fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas
eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico.
§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que
a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser
salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam
surgir da sua natureza cultural.
§ 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural, compromete-se a facilitar o
acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades
religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos.
Artigo 7º
A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as
medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas
liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso
ilegítimo.
238
§ 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico, observada a função social
da propriedade e a legislação, pode ser demolido, ocupado, transportado, sujeito a obras ou
destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou
por interesse social, nos termos da Constituição brasileira.
Artigo 8º
A Igreja Católica, em vista do bem comum da sociedade brasileira, especialmente dos
cidadãos mais necessitados, compromete-se, observadas as exigências da lei, a dar assistência
espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou
similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada
estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a
prática religiosa e a requeiram. A República Federativa do Brasil garante à Igreja Católica o direito de
exercer este serviço, inerente à sua própria missão.
Artigo 9º
O reconhecimento recíproco de títulos e qualificações em nível de Graduação e Pós-
Graduação estará sujeito, respectivamente, às exigências dos ordenamentos jurídicos brasileiro e da
Santa Sé.
Artigo 10
A Igreja Católica, em atenção ao princípio de cooperação com o Estado, continuará a colocar
suas instituições de ensino, em todos os níveis, a serviço da sociedade, em conformidade com seus
fins e com as exigências do ordenamento jurídico brasileiro.
§ 1º. A República Federativa do Brasil reconhece à Igreja Católica o direito de constituir e
administrar Seminários e outros Institutos eclesiásticos de formação e cultura.
§ 2º. O reconhecimento dos efeitos civis dos estudos, graus e títulos obtidos nos Seminários e
Institutos antes mencionados é regulado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em condição de
paridade com estudos de idêntica natureza.
Artigo 11
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da
diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso
em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa,
constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o
respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras
leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.
Artigo 12
O casamento celebrado em conformidade com as leis canônicas, que atender também às
exigências estabelecidas pelo direito brasileiro para contrair o casamento, produz os efeitos civis,
desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
239
§ 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo
órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre
homologação de sentenças estrangeiras.
Artigo 13
É garantido o segredo do ofício sacerdotal, especialmente o da confissão sacramental.
Artigo 14
A República Federativa do Brasil declara o seu empenho na destinação de espaços a fins
religiosos, que deverão ser previstos nos instrumentos de planejamento urbano a serem
estabelecidos no respectivo Plano Diretor.
Artigo 15
Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados
com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos
impostos, em conformidade com a Constituição brasileira.
§ 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que exerçam atividade social
e educacional sem finalidade lucrativa receberão o mesmo tratamento e benefícios outorgados às
entidades filantrópicas reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de
requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção.
Artigo 16
Dado o caráter peculiar religioso e beneficente da Igreja Católica e de suas instituições:
I -O vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses
ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e portanto, observado o disposto na
legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja
provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica.
II -As tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, assistencial, de promoção
humana e semelhantes poderão ser realizadas a título voluntário, observado o disposto na legislação
trabalhista brasileira.
Artigo 17
Os Bispos, no exercício de seu ministério pastoral, poderão convidar sacerdotes, membros de
institutos religiosos e leigos, que não tenham nacionalidade brasileira, para servir no território de suas
dioceses, e pedir às autoridades brasileiras, em nome deles, a concessão do visto para exercer
atividade pastoral no Brasil.
§ 1º. Em conseqüência do pedido formal do Bispo, de acordo com o ordenamento jurídico
brasileiro, poderá ser concedido o visto permanente ou temporário, conforme o caso, pelos motivos
acima expostos.
240
Artigo 18
O presente acordo poderá ser complementado por ajustes concluídos entre as Altas Partes
Contratantes.
§ 1º. Órgãos do Governo brasileiro, no âmbito de suas respectivas competências e a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, devidamente autorizada pela Santa Sé, poderão celebrar
convênio sobre matérias específicas, para implementação do presente Acordo.
Artigo 19
Quaisquer divergências na aplicação ou interpretação do presente acordo serão resolvidas por
negociações diplomáticas diretas.
Artigo 20
O presente acordo entrará em vigor na data da troca dos instrumentos de ratificação,
ressalvadas as situações jurídicas existentes e constituídas ao abrigo do Decreto nº 119-A, de 7 de
janeiro de 1890 e do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre Assistência
Religiosa às Forças Armadas, de 23 de outubro de 1989.
Feito na Cidade do Vaticano, aos 13 dias do mês de novembro do ano de 2008, em dois
originais, nos idiomas português e italiano, sendo ambos os textos igualmente autênticos.
PELA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores
PELA SANTA SÉ
Dominique Mamberti
Secretário para Relações com os Estados