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Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana e argentina à Crise da Dívida como evidências da complexa interação entre o processo político e as forças da economia internacional Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Sociologia Rodrigo Luiz Medeiros da Silva Orientador: Prof. Dr. Brasílio João Sallum Júnior São Paulo, Fevereiro de 2012.

Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana

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  • Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana e argentina Crise da Dvida como

    evidncias da complexa interao entre o processo poltico e as

    foras da economia internacional

    Tese apresentada Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So

    Paulo como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de

    Doutor em Sociologia

    Rodrigo Luiz Medeiros da Silva

    Orientador: Prof. Dr. Braslio Joo Sallum Jnior

    So Paulo, Fevereiro de 2012.

  • ii

    Ficha Catalogrfica

    Silva, Rodrigo Luiz Medeiros da

    Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana e argentina Crise da Dvida como evidncias da complexa interao entre o processo poltico e as foras da economia internacional / Rodrigo Luiz Medeiros da Silva . So Paulo, SP : [s.n], 2012 Orientador: Braslio Joo Sallum Jnior Tese (doutorado) Universidade de So Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas 1. Coria (Sul) Industrializao. 2. Argentina Industrializao. 3. Crises da Dvida Dependncia. 4. Coria (Sul) Desenvolvimento. 5. Argentina Desenvolvimento. 6. Endividamento Industrializao. 7. Guerra Fria. 8. Teoria da Dependncia. 9. Imperialismo Estados Unidos, 10. Imperialismo - Japo.

    Ttulo em Ingls: Models, Counter-models and their Context: South-Korean and Argentine national

    responses to Debt-Crisis as evidences of the complex interaction between the political process and the

    forces of international economy

    Keywords: 1. (South) Korea Industrialization. 2. Argentina Industrialization. 3. Debt Crisis

    Dependency. 4. (South) Korea Development. 5. Argentina Development. 6. Indebtedness

    Industrialization. 7. Cold War. 8. Dependency Theory. 9. Imperialism United States. 10. Imperialism

    Japan

    rea de Concentrao: Sociologia

    Titulao: Doutor em Cincias

    Banca Examinadora:

    Data da Defesa:

    Programa de Ps-graduao: Sociologia

  • iii

  • iv

    O subdesenvolvimento, como o deus Jano,

    tanto olha para a frente como para trs, no

    tem orientao definida. um impasse

    histrico que espontaneamente no pode

    levar seno a alguma forma de catstrofe

    social. Somente um projeto poltico apoiado

    em conhecimento consistente da realidade

    social poder romper a sua lgica perversa.

    (Celso Furtado)

    [...] o subdesenvolvimento, onde ele surge e

    se mantm, no mera cpia frustrada de

    algo maior nem uma fatalidade. Mas uma

    escolha, se no realizada, pelo menos aceita

    socialmente, e que depende, para ser

    condenado e superado, de outras escolhas da

    mesma natureza, que forcem os homens a

    confiar em si mesmos ou em sua civilizao

    e a visarem o futuro. (Florestan Fernandes)

  • v

    AGRADECIMENTOS:

    Ao Prof. Dr. Braslio Joo Sallum Jr., orientador da

    pesquisa que conduziu a esta tese, pelo esteio, pelos

    conselhos ditos ou s subentendidos, alm das conversas

    que tanto fecundaram minha imaginao sociolgica.

    Ao Prof. Dr. Hyun-Chin Lim, co-orientador desta

    pesquisa, pelos hizontes abertos e pela hospitalidade.

    Aos Prof. Dr. Darcy Carvalho, pelo encorajamento

    sempre decisivo, que me impeliu a prosseguir abrindo

    portas e criando laos.

    Ao Prof. Dr. Plnio de Arruda Sampaio Jr., pela

    lio de firmeza intelectual e pela capacidade de trazer os

    grandes questionamentos ao nvel mais cotidiano.

    Ao Prof. Dr. Javier Amadeo, pelas preciosas

    orientaes e pelo estmulo.

    Ao Prof. Dr. Kim Jong-Cheol, pela amizade e pela

    lio de hospitalidade coreana.

    Ao colega Dr. Luis Mah Silva, pela amizade e pelo

    inpirador apoio em Seul.

    A Kang Minhyoung, pela pacincia e amabilidade.

    Ao grande amigo Fbio Pimentel De Maria da

    Silva, pelas incontveis conspiraes orquestradas nestes

    quase 20 anos de amizade, pela sua enorme influncia em

    meu modo de ver as coisas, pelo apoio.

    Aos meus pais, av e sogros, e sobrinho pela

    compreenso nas tantas ausncias, pela pacincia nos dias

    mais ansiosos, pelo apoio que sempre se alegraram em me

    dar, pela torcida e pelo inesgotvel carinho.

    Dora, por me ensinar o valor de ser incansvel.

    Lucimara, meu alicerce nestes anos conturbados

    e promissores, por entender o tempo e a energia

    necessrios maturao das idias e pontos de vista, pelo

    carinho e pela cumplicidade irrestrita.

    A todo pessoal do ASIA Center da Universidade

    Nacional de Seul, pelo frtil abrigo e pelo cuidado.

    Korea Research Foundation, pelo valioso auxlio

    material e imaterial que possibilitou a realizao de parte

    da pesquisa de campo.

    CAPES, pela bolsa.

  • vi

    RESUMO:

    No fim dos anos 1970, dois choques externos

    o segundo salto nos preos do petrleo e o reajuste na

    taxa bsica de juros norte-americana marcam o

    incio de tendncias econmicas divergentes entre o

    Leste da sia e a Amrica Latina. Para os prsperos

    tigres, a prxima dcada seria uma janela para o

    chamado catching up, culminando com a promoo

    simblica de seu prodgio, a Coria do Sul, ao status

    de pas desenvolvido quando da realizao dos Jogos

    Olmpicos em Seul. Na Amrica Latina, inversamente,

    os anos 1980 so geralmente apelidados de Dcada

    Perdida, inaugurando uma era de regresso

    econmica e instabilidade poltica. A Argentina,

    provavelmente a menos dinmica dentre as economias

    que ento se industrializavam, geralmente evocada

    como um desastre que tipifica a sina regional. A

    vasta maioria das investigaes acerca desta

    divergncia se concentra nas polticas econmicas

    domsticas e em seus resultados objetivos. No

    obstante, tais polticas foram formuladas e aplicadas

    sob uma combinao de circunstncias internacionais

    e polticas que podem variar consideravelmente de

    pas para pas ao longo do tempo. O objetivo deste

    texto examinar em que medida algumas das

    particularidades destes dois casos naquilo que

    concerne ao processo poltico interno e evoluo da

    economia internacional moldaram a reao de cada

    qual ao cenrio adverso.

  • vii

    ABSTRACT:

    At the end of the 1970s, a couple of

    external shocks namely, the second leap in

    petroleum prices and the readjust of American basic

    interest rate mark the beginning of divergent

    economic trends for East Asia and Latin America.

    For the prosperous tigers, the following decade

    would be a time for catching up, culminating with

    the symbolic promotion of its prodigy, South Korea,

    to the rank of a developed country by the time of

    Seouls Summer Olympics. In Latin America,

    inversely, the 1980s are generally nicknamed the

    Lost Decade, inaugurating an era of economic

    regression and political instability. Argentina,

    probably the worlds less dynamic industrializing

    economy at that time, is usually evoked as a

    disaster that typifies the regional fate. The vast

    majority of the investigations about this diversion

    concentrate on domestic economic policies and their

    objective results. Nonetheless, such policies were

    formulated and launched under a combination of

    international and political circumstances that can

    vary considerably from country to country and along

    the course of time. The aim of this text is to examine

    to what extent have some of these two cases

    particularities in what concerns to the domestic

    politic process and the evolution of international

    economy molded each national reaction to the

    adverse scenario.

  • viii

    NDICE:

    INTRODUO Modelos e Contramodelos de

    Desenvolvimento sob o Signo de uma Bifurcao de Trajetrias..........................1

    CAPTULO 1 A Real Dimenso de um Veloz Re-nivelamento:

    os dados econmicos e sociais de Coria do Sul e Argentina numa

    perspectiva histrico-comparada..........................................................................24

    1.1 Introduo...................................................................................................25

    1.2 O Contraste entre o Comportamento das Economias de Coria do Sul e Argentina durante

    a Dcada de 1980.................................................................................................28

    1.3 - Coria e Argentina: Indicadores Econmicos no Longo Prazo....................................................................................................52

    1.4 Coria e Argentina: Indicadores Demogrficos e Sociais desde 1980............................................................................................69

    CAPTULO 2 A Coria do Sul como Modelo: Retomando o Debate

    Dominante Sobre o Caso Coreano....................................................................82

    2.1 Introduo...................................................................................................83

    2.2 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Economia Ortodoxa....................87 2.2.1 - A Abstrao Neoclssica e o Poder de uma Economia Livre e Aberta..............................................................89

    2.2.2 - Neoclassicismo Fundamentado e o Salto Exportador como Alternativa s Ajudas................................................102

    2.2.3 - As Agncias de Washington e os Fundamentos Corretos.....................................................................114

    2.3 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Economia Heterodoxa..............128 2.3.1 - Alice Amsden e a Exaltao da Distoro dos Preos Relativos...............................................................133

    2.3.2 A Unicamp, Otaviano Canuto e o Capitalismo Tardio Coreano.........................................................................................140

    2.3.3 Estruturalismo e Neo-estruturalimo: do Nacional Desenvolvimentismo ao elogio da Transformao

    Produtiva com Eqidade na sia Oriental................................................147

    2.4 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Nova Economia Institucional......................................................................................163

    2.4.1 - Richard Nelson, Sidney Winter, Limsu Kim e as Teorias Comportamentais sobre o Papel do

    Progresso Tcnico no Crescimento Econmico.........................................166

  • ix

    2.4.2 O Novo Institucionalismo, o Sistema Nacional de Inovao e a Passagem da Imitao Inovao na sia......................176

    2.4.3 O Debate Acerca do Salto Educacional Sul-coreano..............183 2.4.4 - Principais Questionamentos Suscitados.......................................190

    2.5 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Sociologia Weberiana..............192 2.5.1 Max Weber e a tica Confucionista............................................195 2.5.2 Evidncias Etno-descritivas do Padro Moral dos dos Literati durante a Dinastia Yi (1392-1910)..........................................205

    2.5.3 Tu Wei-Ming e a Nova tica Confucionista...........................209 2.5.4 Principais Questionamentos Suscitados......................................224

    2.6 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Sociologia Durkheimiana.........225 2.6.1 T. Parsons, K. Deutsch e G. Almond: as teorias funcionalistas da modernizao e o desenvolvimento

    poltico como correlato do desenvolvimento econmico...........................230

    2.6.2 Samuel Huntington: a aplicao conservadora ferramental funcionalista e o divrcio entre

    modernizao e ordem burguesa.................................................................241

    2.6.3 Chalmers Johnson: a burocracia e o Estado forte japons................................................................................261

    2.6.4 Eun Mee King: o chaebol, o Estado forte sul-coreano e os grandes negcios...........................................................264

    2.6.5 Principais Questionamentos Suscitados..........................................266

    CAPTULO 3 A Argentina como Contra-Modelo: Retomando

    o Debate Dominante Sobre o Caso Argentino................................................267

    3.1 Introduo.................................................................................................268

    3.2 - O Desastre Argentino na Acepo da Economia Ortodoxa...................274 3.2.1 A Semi-estagnao de um Prisma Analtico Livre-cambista: os ecos ricardianos e os Custos

    da Represso Econmica..........................................................................278

    3.2.2 O Significado Poltico Internacional do Caso Argentino nos Anos 1980: FMI, Banco

    Mundial e o Consenso de Washington....................................................292

    3.2.3 A Introspeco Latino-americana e a Proeminncia Doutrinria Livre-cambista nas

    Instituies de Ensino de Economia...........................................................296

    3.2.4 Possveis Questionamentos.............................................................298

    3.3 - O Desastre Argentino numa Acepo Heterodoxa................................301 3.3.1 A Semi-estagnao de um Prisma Desenvolvimentista: Hugo Nochteff,

    Martn Schorr e a Restruturao Regressiva...........................................304

    3.3.2 Celso Furtado, o Prisma Cepalino e o Estagnacionismo..................................................................................311

    3.3.3 Aldo Ferrer, o Estruturalismo Histrico Cepalino e a Baixa Densidade Nacional Argentina................................316

    3.3.4 Fernando Fajnzylber, o Neo-estruturalismo, e a Industrializacin Trunca da Argentina..............................................327

  • x

    3.3.5 Comentrios e Questionamentos....................................................332

    3.4 - O Desastre Argentino na Acepo da Economia Institucionalista........334 3.4.1 - Jorge Katz, Roberto Bisang, Gabriel Yoguel et alli, Daniel Schudnovsky et al, e a Imaturidade do Sistema

    Argentino de C & T....................................................................................336

    3.4.2 O Debate em Torno do Papel do Sistema Educacional no Estancamento Argentino...................................................340

    3.4.3 Possveis Questionamentos.............................................................346

    3.5 - O Desastre Argentino na Acepo da Sociologia Weberiana................348 3.5.1 Samuel Huntington e o Choque de Civilizaes...............................................................................................352

    3.5.2 - Daron Acemoglu, David Landes, e o Reverso da Fortuna............................................................................358

    3.5.3 Possveis Questionamentos.............................................................364

    3.6 - O Desastre Argentino na Acepo da Sociologia Durkheiminana........365 3.6.1 - Guillermo ODonnel e as Mars do Estado Burocrtico-Autoritrio..........................................................368

    3.6.2 Jorge Schvarzer e as Classes Dominantes na Argentina .............................................................372

    3.6.3 Possveis Questionamentos.........................................................377

    CAPTULO 4 O Cenrio Internacional e os Constrangimentos

    Externos Industrializao Tardia Luz da Teoria do Desenvolvimento.........378

    4.1 - Introduo..................................................................................................379

    4.2 Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, e a Vitalidade das Teorias do Sistema Mundo na

    Compreenso da Divergncia Coreano-argentina ............................................382

    4.3 Os Limites de Estrangulamento Externo nas Industrializaes Tardias como Prognstico Cepalino

    Fecundo s Teorias do Sistema Mundo.........................................................390

    4.4 Soluo Exgena para o Estrangulamento Externo ou Desenvolvimento a Convitena Coria do Sul...........................................394

    4.5 - O Conceito de Dependncia: alguma funcionalidade s Teorias Sistema Mundo?................................................................................402

    CAPTULO 5 Cenrio Externo e Crescimento: o Peso de Fatores

    Exgenos no Sucesso da Industrializao Coreana (1894-1997).......................405

    5.1 Introduo.................................................................................................406

    5.2 - A Coria antes do Processo de Modernizao: uma Cultura

    Milenar em Xeque e a Aparente Ausncia de Novos Horizontes.....................411

  • xi

    5.3 Imperialismo, Colonialismo, Ocupao Estrangeira

    e Mudana Social na Coria do Sul (1894-1948)..............................................415

    5.4 Os Aportes Exgenos para o Sucesso da Industrializao

    por Substituio de Exportaes na Coreia do Sul........................................421

    CAPTULO 6 Cenrio Externo e Estagnao: o Peso de Fatores Exgenos no

    Retardo e na Reverso Precoce da Industrializao

    Argentina (1929-2003).......................................................................................438

    6.1- Introduo...................................................................................................439

    6.2 - A Argentina na Periferia Prspera da Gr-Bretanha:

    o fausto primrio-exportador como caso extremo da riqueza

    sob a clssica dependncia.................................................................................447

    6.3 - A compresso do mercado relevante das exportaes argentinas

    no ciclo americano, o paradoxo cambial da substituio de

    importaes e o crnico estrangulamento externo......................................454 6.3.1 - O Fechamento da Fronteira Agrcola

    Argentina aps 1930...................................................................................456

    6.3.2 - O Panorama Emprico e a Deteriorao

    nos Termos de Troca.................................................................................457

    6.3.3 - A Conferncia de Ottawa, as Imperial

    Preferences, e o Protecionismo Continuado

    Agropecuria Britnica (1932-1973)........................................................459

    6.3.4- O Tratado de Roma, a Poltica Agrcola

    Comum e o protecionismo europeu (desde 1957).......................................462

    6.3.5 - A Substituio de Importaes no Brasil,

    os Preos Mnimos da Agricultura e o protecionismo

    Brasileiro no Mercado de Trigo (1951-1988).............................................465

    6.4 Choques do Petrleo, Petrodlares e Reajuste dos Juros

    Americanos na materializao do colapso cambial que

    tendencialmente baliza as industrializaes tardias...........................................468

    CONCLUSO O Milagre Sul-Coreano e o Desastre

    Argentino em seu Contexto Particular: Frestas Variveis

    na Hierarquia do Sistema Mundo, Sociedades Perifricas

    e Processo Poltico na Industrializao Retardatria..........................................478

    BIBLIOGRAFIA................................................................................................517

  • 1

    INTRODUO Modelos e Contramodelos de

    Desenvolvimento sob o Signo de

    uma Bifurcao de Trajetrias:

    A) sia e Amrica Latina: trajetrias bifurcadas, p.2

    B) Dinamismo e Estagnao: do dualismo aos padres regionais, p.3

    C) Dos Padres aos Arqutipos Regionais, p.8

    D) O Dinamismo e seus Arqutipos: da pujana asitica ao modelo sul-coreano,

    p.9

    E) Dos Modelos aos Contramodelos: o desastre argentino como anverso do milagre sul-coreano, p. 13

    F) Da Fragilidade dos Modelos e Contramodelos aos nossos Objetivos

    Especficos, p.18

  • 2

    A) sia e Amrica Latina: trajetrias bifurcadas

    Asiticos e latino-americanos guardam memrias extremamente distintas da

    dcada de 1980. Para a maioria daqueles que narram a histria dos pases orientais, esta

    foi uma dcada marcada por dinamismo econmico sem precedentes, sinalizando que

    Tigres e Drages haviam efetivamente vencido sua longa letargia. J no caso dos

    que se ocupam de seus pares latino-americanos, ento sacudidos por severas crises

    interconectas, os oitenta so geralmente descritos como uma Dcada Perdida,

    marcada por profundo rebaixamento das expectativas regionais de longo termo.

    Naqueles anos, e pela primeira vez desde o colonialismo, era possvel projetar o

    futuro asitico com slido otimismo. O maior parque industrial da regio, o Japo,

    consolidava sua vice-liderana dentre as economias desenvolvidas, e parecia embaraar

    at mesmo a supremacia industrial norte-americana, antes inquestionada. Alm disto, a

    mar de prosperidade se espraiara a outros rinces do continente, a ponto de permitir

    que as economias de Coria do Sul e China Insular fossem adquirindo feies

    estruturais progressivamente anlogas quelas das regies de industrializao mais

    antiga. Ao mesmo tempo, as cidades de Cingapura e Hong-Kong, vitrines da

    prosperidade regional, passavam a figurar entre os pcaros das estatsticas de renda e

    consumo por habitante, desafiando simbolicamente, em companhia de alguns distritos

    comerciais de Tquio, a coincidncia entre ocidentalidade e prosperidade, antes tida

    como obrigatria. No Vietn e na China Continental, ao seu turno, despontava um

    promissor processo de abertura econmica, objetivando a acelerao da acumulao

    industrial com concomitante insero nos mercados internacionais de manufaturas

    pouco complexas. Para o Poente, Indonsia, Malsia, Tailndia e ndia pareciam ter sido

    tocadas por aspiraes similares, e se industrializavam em ritmo acelerado, ainda que

    com compasso e estratgias singulares, e partindo de nveis heterogneos de

    complexidade do tecido econmico.

    Entre os principais pases latino-americanos, contudo, o quadro econmico geral

    foi precisamente o oposto: uma montona sucesso de crises cambiais e surtos

    inflacionrios, acompanhados por sobreendividamento pblico e intentos de

    acomodao, culminando com desajustes incapacitantes nos sistemas financeiro e

    produtivo. Ao passo que recesso e semi-estagnao se alternam persistentemente, vo

    adquirindo contornos de miragem os projetos de construo de parques industriais

    nacionais e integrados.

  • 3

    No caso da maior economia da regio, o Brasil, os anos 1980 foram marcados pelo

    colapso da estratgia de industrializao com endividamento externo, em curso desde

    1974. A recesso se instaura, a inflao se aprofunda, e, no bojo de trs planos

    malfadados de estabilizao econmica, prossegue o esgaramento dos mecanismos de

    interveno estatal na economia. Na Argentina, por sua vez, a nova dcada acena para o

    fracasso da estratgia de liberalizao radical em curso desde 1976. Desindustrializao,

    recesso, crise cambial, super- e hiper-inflao, falncia do Estado e at fracasso blico

    so as imagens mais fortes dos anos 1980. O caso do Mxico no menos infeliz. A

    dcada comea com uma profunda crise fiscal, sinalizando o desmoronamento das

    polticas de expanso da cobertura social e do gasto pblico ali realizadas desde meados

    dos anos 1970. Os bancos so nacionalizados sem que a questo da dvida seja

    equacionada, a inflao marca trs dgitos, e o pas declara moratria em 1982. O

    episdio o preldio de um decnio de semi-estagnao, desemprego elevado e

    conseqente frustrao do projeto industrial nacionalista, abalizando a integrao

    especializada Zona de Livre Comrcio Norte-americana. Na grande maioria dos

    demais pases do continente, da Amrica Central ao Uruguai, o quadro de descaminho

    das antigas estratgias semelhante.

    Como explicar que o incio dos anos 1980 tenha assinalado a divergncia de

    trajetrias entre, de um lado, os promissores parques industriais do Continente Asitico,

    e, de outro, os exemplos de industrializao inconclusa e truncada que caracterizavam a

    Amrica Latina? Por que conjunto de razes os indicadores que vinham da sia eram

    to positivos quando comparados aos latino-americanos? Esta a pergunta mais geral

    que norteia a realizao da pesquisa de doutoramento que conduziu a este tese.

    B) Dinamismo e Estagnao: do dualismo aos padres regionais

    O domnio amplo deste texto , assim, a bifurcao das trajetrias destas duas

    regies; ou seja, a manuteno de um frentico ritmo da acumulao capitalista nos

    principais parques industriais da sia, que se contrape ao aparente esgotamento dos

    outrora prsperos processos de industrializao tardia latino-americanos. De partida,

    contudo, cabe pontuar que esta divergncia no pode ser descrita como uma dualidade

    regional rgida. Afinal, sia e Amrica Latina no so espaos sequer minimamente

    homogneos, compondo entidades comparveis apenas sob substancial abstrao.

    Afinal, nenhuma destas duas regies coincide com uma unidade poltico-estatal singular,

  • 4

    sendo o Continente Asitico atualmente compreendido por nada menos que 49 pases,

    ao passo que 21 do forma Amrica Latina. Como de se esperar, h importantes

    assimetrias com respeito ao desempenho das economias que integram cada um destes

    dois fragmentados conjuntos, do mesmo modo que em ambos podemos pinar tipos

    extremos de boa e m ventura no processo de acumulao de capital.

    Precisamos, assim, procurar padres regionais em trajetrias a rigor particulares. E

    carecemos, por isto mesmo, de informaes mais completas sobre as caractersticas de

    cada uma delas. Nesta empreitada, a Figura I-1 ser nosso ponto de partida. Nela, cada

    pas selecionado aparece associado a uma combinao de duas diferentes estatsticas. O

    eixo horizontal foi reservado ao valor anualizado do crescimento total do Produto

    Interno Bruto, para o perodo compreendido entre 1971 e 1980. J o eixo vertical foi

    reservado estatstica anloga, porm correspondente aos anos entre 1981 e 1990.

    Figura I-1i

    Fundamentalmente, o diagrama da Figura 1.1 nos ajuda a perceber que, da tica

    do ritmo de acumulao capitalista, havia quatro diferentes padres de trajetrias entre

  • 5

    os pases citados excetuando os pases de industrializao mais antiga, que so

    representados na figura apenas por propsitos comparativos .

    Primeiramente, temos aqueles que j mantinham ritmo forte durante os anos 1970,

    seguindo esta senda durante anos 1980. No diagrama, estes pases so representados

    pelos pontos vizinhos ao canto direito superior. E salta aos olhos, nesta regio, a

    incidncia exclusiva dos quadradinhos cheios que representam os pases orientais. Mais

    especificamente, nos referimos aos pases asiticos de industrializao retardatria, tal

    qual China, Coria do Sul, Tailndia, Malsia, Indonsia, Cingapura, Taiwan e Hong-

    Kong. Juntos, os pontos que os representam compem uma nuvem de contornos ntidos,

    desconectada de todos os demais pontos do diagrama.

    Em segundo lugar, temos os pases onde a acumulao capitalista pouco ou nada

    prosseguiu durante as duas dcadas em questo. No diagrama, estes pases ocupam a

    vizinhana do canto esquerdo inferior, regio na qual no difcil diagnosticar a

    presena exclusiva de sete pontos que representam pases latino-americanos, quais

    sejam, Venezuela, El Salvador, Argentina, Uruguai e Peru, Bolvia e Panam. Em todos

    estes casos, a acumulao capitalista avanou menos que a mdia regional durante os

    anos 1970 e 1980.1 E, naquilo que concerne aos anos 1980, temos quatro cifras

    negativas para o crescimento anualizado, sugerindo uma regresso no nvel de capital

    acumulado. Tal fato tem lugar na Argentina, no Peru, em El Salvador e no Uruguai.2

    Em terceiro lugar, temos casos em que uma significativa desacelerao ocorre

    entre os anos 1970 e 1980. No diagrama, os pases nesta situao esto dispostos

    bastante abaixo da linha longitudinal inclinada que corta o espao do diagrama.3 Assim,

    junto base da rea de plotagem possvel identificar que tais pases do forma a outra

    nuvem de contornos ntidos, quase exclusivamente composta por pontos representativos

    de pases latino-americanos Honduras, Costa Rica, Guatemala, Mxico, Equador,

    Repblica Dominicana, Brasil e Paraguai . Entre estes casos, o paraguaio

    paradigmtico: depois de ter figurado entre as mais dinmicas economias do globo nos

    anos 1970, com um acrscimo anual mdio 8,9%, seu resultado na dcada seguinte no

    excede 2,9% anuais. O caso brasileiro tambm, tombando de 8,5% para 1,6%.

    1 Ou seja, o crescimento anualizado de seu PIB foi inferior (ou na melhor hiptese equivalente) a 5,05%

    nos anos 1970 e 1,37% nos anos 1980, mdias para os dezessete pases latino-americanos representados. 2 Que marcaram, respectivamente, -1,5%, -0,8%, -0,4% e -0,04% para o crescimento anualizado do PIB.

    3 Pois acima desta linha esto situados os pases cujo desempenho foi superior na dcada de oitenta em

    relao aos setenta. E, abaixo dela, esto aqueles cujo desempenho nos oitenta foi frustrante em relao

    quele observado nos setenta.

  • 6

    At aqui delineamos trs padres para pases oriundos de duas regies: os pases

    orientais so aqueles em que a acumulao mais avana em ambas as dcadas, enquanto

    os latino-americanos se dividem entre aqueles que enfrentavam problemas desde os

    anos 1970, e aqueles cujos problemas se manifestam apenas na dcada de 1980.

    Um quarto grupo , ento, composto pelas excees a estes padres regionais.

    ndia, Turquia e Sri Lanca, por exemplo, ostentam durante os anos 1980 um

    desempenho anlogo quele dos pases asiticos mais dinmicos. Mas nos anos 1970

    seu desempenho se acerca mais dos menos dinmicos dentre os pases latino-

    americanos. As Filipinas, por sua vez, vivenciam forte desacelerao dos anos 1970

    para os anos 1980, ostentando assim um desempenho semelhante a pases latino-

    americanos como a Guatemala e a Costa Rica. J entre os meridionais, o nico pas que

    no parece se encaixar nos dois padres que tipificam a regio o Chile.

    O Chile, alis, o nico dentre os principais pases latino-americanos a figurar

    acima da j referida linha longitudinal. Ele registra crescimento mdio de 3,7% durante

    os anos oitenta, o que conferia a ele grande destaque regional, mas mesmo assim o

    mantinha a muitas braadas dos mais dinmicos asiticos. Afinal, China, Coria do Sul,

    Tailndia e Taiwan marcam, respectivamente, 9,3%, 8,7%, 7,8% e 7,6% no mesmo

    perodo. Ademais, o Chile registra tal cifra aps ter sido um dos pases menos

    dinmicos do mundo durante a dcada de setenta.4 Com efeito, a economia chilena no

    foge muito modesta sina regional se o perodo em questo compreender ambas as

    dcadas de 1970 e 1980, como expe o Grfico I-1. A situao tampouco se altera se

    tomarmos em conta um perodo ainda mais dilatado, cobrindo as dcadas de 1970, 1980

    e 1990, como feito no Grfico I-2. Em ambos, o Chile aparece em ntida companhia

    dos demais pases latino-americanos, alm dos asiticos de menor dinamismo acima

    mencionados: ndia, Sri Lanca e Filipinas.5

    4 Pois seu crescimento mdio foi de apenas 2,9%, enquanto Taiwan, Hong-Kong, Cingapura e Brasil

    registram, respectivamente, 9,7%, 9,6%, 8,8% e 8,5%. 5 Note que a Turquia no foi includa nos Grfico I.1 e I.2 por no ser propriamente um pas asitico.

  • 7

    Grfico I-1ii

    Grfico I-2

    iii

    Em conjunto, os dados acima corroboram, sem lugar a numerosas excees, que a

    sia foi palco de uma veloz acumulao de capital durante as dcadas de setenta e

    oitenta. Ou, como prefeririam alguns, que houve um notvel e constante processo de

    desenvolvimento capitalista em praticamente toda a regio. Na Amrica Latina,

    opostamente, a acumulao de capital foi tipicamente acentuada na dcada de 1970, mas

    declinou severamente a partir de 1980. Pior ainda, h um subgrupo de pases latino-

    americanos onde a estagnao se fez presente em ambas as dcadas, sendo o saldo final

    quase nulo ou at negativo em termos de desenvolvimento capitalista.

    Taiw

    an

    Hong-K

    ong

    Cingapura

    Coria do S

    ul

    China

    Tailndia

    Indonsia

    Malsia

    Paraguai

    Brasil

    R. D

    ominicana

    Colm

    bia

    Equador

    Sri-L

    anca

    ndia

    Mxico

    Costa R

    ica

    Honduras

    Filipinas

    Chile

    Guatem

    ala

    Panam

    Bolvia

    Venezuela

    Uruguai

    Peru

    El S

    alvador

    Argentina

    0

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    10

    Comparao entre o Ritmo de Crescimento do PIB de Pases Asiticos e Latino-americanos, 1971-1990

    Crescimento Total do PIB no Perodo, Taxa Anualizada, em %, Pases Asiticos em Preto e Latino-americanos em Cinza

    China

    Cingapura

    Taiw

    an

    Coria do S

    ul

    Malsia

    Hong K

    ong

    Tailndia

    Indonsia

    R. D

    ominicana

    ndia

    Sri L

    anca

    Costa R

    ica

    Paraguai

    Chile

    Brasil

    Mxico

    Colm

    bia

    Honduras

    Equador

    Filipinas

    Guatem

    ala

    Panam

    Bolvia

    Peru

    El S

    alvador

    Uruguai

    Argentina

    Venezuela

    0

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    10

    Comparao entre o Ritmo de Crescimento do PIB de Pases Asiticos e Latino-americanos, 1971-2000

    Crescimento Total do PIB no Perodo, Taxa Anualizada, em %, Pases Asiticos em Preto e Latino-americanos em Cinza

  • 8

    C) Dos Padres aos Arqutipos Regionais:

    As qualificaes tecidas acima nos permitem reelaborar sutilmente o

    questionamento geral que instiga a pesquisa que conduziu a este texto, obviando a

    sugesto falaciosa de um dualismo regional estanque. Ele adquiriria, ento, a seguinte

    forma: Por que conjunto de razes o processo de acumulao prosseguiu to velozmente

    em um amplo conjunto de pases asiticos, ao passo um completo estancamento, por

    vezes com ntidas tendncias regressivas, vitimou vrios pases da Amrica Latina?

    Esta pergunta nos redireciona a uma discusso sobre economias especficas,

    particularmente dinmicas ou especialmente inertes, ainda que em um plo tenhamos

    pases do Continente Asitico, e, em outro, pases latino-americanos. Como o nmero

    de naes envolvidas significativo, e so inmeros os atributos a serem apreendidos

    quando queremos compreender os fundamentos da acumulao em um territrio

    qualquer, o volume de informao a ser considerado incrivelmente grande. Como

    forma de lidar com este excesso de estmulos, absolutamente natural que nossa

    curiosidade se dirija primordialmente aos exemplos que parecem tipificar os extremos

    de cada destino regional. Por isto, recorrente a busca de modelos ou casos de

    desenvolvimento e estagnao em toda a literatura que versa sobre a referida

    divergncia. Trata-se de uma estratgia, em princpio razovel, de aprofundar a

    discusso acerca dos tipos considerados extremos e que, potencialmente, seriam

    portadores de sugestes analticas sobre um conjunto muito mais amplo de casos que se

    quer examinar.

    Com efeito, mirando especificamente o xito em acumular capital, os candidatos

    nossa anterioridade analtica se situam junto aos ngulos superior direito e inferior

    esquerdo do diagrama de disperso da Figura I-1. Deste modo, temos oito pases

    asiticos entre os que se mostraram mais dinmicos: China, Taiwan, Hong-Kong,

    Coria do Sul, Tailndia, Malsia, Indonsia e Cingapura. E, entre os menos dinmicos,

    quatro latino-americanos: Argentina, Uruguai, Peru e El Salvador. Os primeiros so

    nossos candidatos a ilustrar de forma arquetpica o dinamismo do espao econmico

    asitico nos anos 80, enquanto os ltimos podem aspirar a tipificar a m fase

    atravessada pela regio centro-meridional das Amricas durante a Dcada Perdida.

  • 9

    D) O Dinamismo e seus Arqutipos: da pujana asitica ao modelo sul-coreano

    Muito j se produziu sobre cada um dos pases acima aludidos no mbito da

    literatura sobre desenvolvimento. Em particular, possvel identificar volumosa

    contribuio intelectual a respeito daqueles cujo dinamismo paradigmtico, isto ,

    Coria do Sul, Tailndia, Cingapura e China (incluindo os antigos enclaves ocidentais e

    Taiwan), alm da Indonsia e da Malsia. Afinal, o estudo dos mecanismos em funo

    dos quais a acumulao prosseguiu de forma to vigorosa em cada uma destas

    economias parece ser fecundo, mutatis mutandis, em recomendaes e advertncias para

    as demais naes que busquem seguir sua trilha. No mbito aos anos 1980, contudo,

    nenhum destes pases atraiu mais a ateno de especialistas que a Coria do Sul. E no

    difcil compreender as razes deste magnetismo sul-coreano. Nos pargrafos abaixo,

    tentaremos enumer-las, ao mesmo tempo em que descartamos um a um os casos que

    rivalizavam com o pas peninsular.

    Inicialmente, temos os dinmicos entrepostos de Cingapura e Hong-Kong. E, de

    antemo, preciso considerar que ambos mal passam de cidades, com um peso

    demogrfico e territorial que as distancia muitssimo da grande maioria dos pases em

    desenvolvimento. totalmente natural intuirmos, com ou sem a devida reflexo prvia,

    que aquilo que vale para uma cidade-estado que logra enriquecer no se aplica a um

    pas do porte, digamos, do Brasil ou da Indonsia. Assim, seu desempenho notvel sem

    dvida garantiu sua fama entre os crculos especializados, mas no a ponto de permitir

    que seu sucesso simbolizasse a escalada asitica nos anos 1980.

    A China Continental, por sua vez, acabara de passar pela experincia da abertura,

    iniciada apenas em 1976. Em tempos quela altura ainda recentes, seu PIB havia

    oscilado freneticamente, chegando a se contrair 27,1% em 1961 e saltar 19,4% em 1970.

    No podia estar suficientemente claro, para observadores de meados dos anos 1980, que

    a China lograria manter, pelas dcadas subseqentes, o ritmo que hoje sabemos que ela

    efetivamente manteve, convertendo-a na superpotncia emergente de nossos dias. Alm

    do mais, a China integrava aquilo que em tempos de Guerra Fria se chamava Segundo

    Mundo, impregnando o debate com uma carga ideolgica especialmente forte, e

    complicando ainda mais as anlises comparativas que so tpicas dos estudos do

    desenvolvimento.

    Assim, entre os oito casos de dinamismo citados, apenas a China Insular, ou

    Taiwan, a Tailndia, a Malsia e a Indonsia, pases de porte significativo e que

  • 10

    integravam o ento chamado III Mundo, eram capazes de competir em p de igualdade

    com os sul-coreanos por ateno especializada. Vejamos, ento, por que razes a Coria

    foi particularmente visitada e referida como smbolo do salto industrial asitico, mesmo

    diante destes outros pases, cujo ritmo no acmulo de capital tambm to singular.

    Como pode ser percebido a partir do diagrama de disperso da Figura I-1, Malsia

    e Indonsia so, naquilo que concerne aos anos 1980, espaos sensivelmente menos

    pujantes que Taiwan, Coria do Sul e Tailndia. E isto a despeito das significativas

    conseqncias da alta nos preos do petrleo aps 1979, que influencia positivamente

    os termos de troca dos dois primeiros, que so exportadores de leo, ao passo que

    representa nus aos trs ltimos.6 Por bvias razes, este contraste contra-intuitivo

    acaba redirecionando nosso potencial interesse pela Indonsia e pela Malsia rumo a

    estes trs prsperos importadores de petrleo, que impressionam por terem passado

    relativamente inclumes aos solavancos macroeconmicos direta ou indiretamente

    associados aos Choques do Petrleo.

    Assim, mirando especificamente a trajetria do PIB, Coria do Sul, Taiwan e

    Tailndia parecem ser, por eliminao e at aqui, as melhores candidatas a ilustrar a

    acelerada acumulao de capital que teve lugar na sia. Entretanto, h uma forte razo

    para retirarmos tambm a Tailndia desta lista. Como evidencia o Grfico I-3, ela era

    nos anos 1980 uma nao muito pobre relativamente Taiwan e Coria do Sul. Em

    que pese o notvel crescimento que quela poca j registrava, este no era ainda

    suficiente para que se pudesse sugerir a partir de sua trajetria lies para os demais

    pases do ento chamado Terceiro Mundo notadamente os da ento conturbada

    Amrica Latina . Pois boa parte destes pases encontrava-se, ento, em estgios

    superiores da transio industrial, ostentando como sintoma nveis superiores de renda

    per capita. Este desnvel atestado pelo Grfico I-4, logo adiante.

    6 Mesmo em face da extraordinria fase no mercado internacional de petrleo, durante os nos 1980 o PIB

    evolui malaio cresce 5,98% anualmente, e o indonsio 6,4%, o que no faz frente aos sul-coreanos, aos

    tailandeses e aos taiwaneses. Pois, a despeito da das conseqncias deletrias do reajuste do petrleo em

    sua conta comercial, Taiwan, Coria e Tailndia marcam, respectivamente, 8,7%, 7,9% e 7,6%.

  • 11

    Grfico I-3iv

    Grfico I-4v

    Por tudo isto, Taiwan e Coria sero os dois pases em desenvolvimento a suscitar

    maior nmero de anlises especializadas durante os anos 1980. Ambos sero brindados

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    1990

    -

    2.000

    4.000

    6.000

    8.000

    10.000

    12.000

    Evoluo do PIB per capita da Tailndia e de Pases Asiticos Selecionados, 1980-1990

    Valores Corrigidos pela Paridade do Poder de Compra, em US$ de Geary Khamis de 1990

    Coria do Sul Taiwan Tailndia

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    1990

    -

    1.000

    2.000

    3.000

    4.000

    5.000

    6.000

    7.000

    8.000

    9.000

    Evoluo do PIB per capita da Tailndia e de Pases

    Latino-americanos Selecionados, 1980-1990

    Valores Corrigidos pela Paridade do Poder de Compra, em US$ de Geary Khamis de 1990

    Tailndia Mxico Argentina Brasil

  • 12

    com diversas contribuies, conduzidas sob amplo leque de preferncias tericas, cada

    qual iluminando diferentes facetas da situao de cada um dos pases, e, portanto,

    tecendo as mais distintas concluses. Contudo, como j antecipamos, a Coria do Sul

    acaba sobressaindo ainda mais. Examinemos quais as potenciais justificativas.

    De partida, o peso demogrfico da Repblica da Coria bastante maior que o da

    Repblica da China: em 1980, 38 milhes habitavam a primeira, enquanto apenas 17

    milhes a segunda. Alm disto, o ritmo de crescimento da economia sul-coreana durante

    os anos 1980 era ainda mais forte que o taiwans: 8,7% versus 7,6% anuais. E h ainda

    um fator que qui seja o mais importante: o fato de a Coria atrair ateno internacional

    por motivos alheios sua economia, facetas estas abaixo enumeradas.

    Primeiramente, o mundo ocidental apenas se familiarizou com este pas peninsular

    durante a Guerra das Corias, travada entre suas metades setentrional e meridional, mas

    na qual os Estados Unidos estiveram intensamente envolvidos, guarnecendo o sul

    capitalista. quela poca, nos idos dos anos 1950, o quadro material ali vigente era

    desesperador, o que confere peso simblico e reveste de certo herosmo a meno ao

    mesmo lugar, poucos anos depois, como modelo de prosperidade.

    Alm disto, tal qual Taiwan a criao da Coria do Sul um captulo da Guerra

    Fria, porm com implicaes geoestratgicas muito mais longevas. Como sabemos,

    ambos so entidades poltico-administrativas que ocupam um territrio reivindicado

    tambm por outro Estado. Contudo, no caso chins, o embate entre sistemas esvaziou-se

    desde 1979, quando o territrio continental deliberou pela abertura civilizao

    capitalista, tornado-se adiante quase um anacronismo medida que os antigos enclaves

    ocidentais foram incorporados Pequim segundo a soluo de dois sistemas para um s

    pas. Na Pennsula Coreana, ao contrrio, a Guerra Fria persiste como em nenhum

    outro lugar, ameaando se materializar em guerra total de tempos em tempos. Esta

    situao legitima a presena de macios contingentes militares norte-americanos em

    terras da Coria do Sul, supostamente para fornecer proteo a esta e ao Japo frente

    ameaa nortista. Assim, a divulgao das proezas industriais instaladas s margens do

    Rio Han acaba sendo muito funcional aos interesses estratgico-militares dos Estados

    Unidos. Pois o crescente contraste entre o prspero sul e o mendicante e beligerante

    norte que fundamenta, em ltima anlise, sua presena militar naquelas longitudes.7

    7 Cumpre ressaltar que o complexo militar estadunidense inclui centros de estudos capazes de fomentar

    pesquisas em reas consideradas estratgicas. Neste ambiente, costumam ter boa circulao e angariar

    seguidores as anlises particularmente alarmistas com relao suposta beligerncia nortista, descrito

  • 13

    Em face de todos estes atributos fortuitos, pelos idos da realizao dos Jogos

    Olmpicos de Seul, em 1988, j se tornara praticamente um consenso acadmico que a

    Coria do Sul constituiria um caso raro, tal qual paradigmtico, de nao perifrica que

    teria conseguido, em virtude da adoo de polticas econmicas acertadas, ultrapassar a

    barreira do subdesenvolvimento. Seja em ambientes especificamente devotados

    discusso do desenvolvimento, seja em outros ambientes acadmicos como em aulas

    ou seminrios do mais amplo espectro , ou mesmo nas discusses polticas e nos

    meios jornalsticos, a mesma concordncia ecoava muito freqentemente: a Coria do

    Sul era descrita como um exemplo para todas as naes em desenvolvimento,

    especialmente quando elas eram postas diante de crises mais ou menos srias ou

    prolongadas. Afinal, o vigor do processo de acumulao capitalista que tem lugar em seu

    territrio entendido, pela maioria esmagadora dos analistas que se debruaram sobre

    este tema, como funo direta das diretivas poltico-econmicas ali perseguidas. E, desta

    tica, o sucesso sul-coreano decorreria primordialmente, seno unicamente, de suas

    prprias escolhas.

    E) Dos Modelos aos Contramodelos: o desastre argentino como anverso do

    milagre sul-coreano

    Como j dito, a tese mais popular a respeito do milagre sul-coreano sustenta que

    um conjunto de receitas de poltica econmica teria logrado transformar este pas em um

    caso de sucesso industrial. Esta teoria, por razes translcidas, ganharia mais

    substncia argumentativa se, entre os pases que ento perseguiam resolutamente a

    industrializao mediante a adoo de outras estratgias, fosse possvel identificar um

    caso de fracasso: ou seja, um pas que colhesse resultados amplamente rotulados de

    insatisfatrios a partir da aplicao de diretrizes poltico-econmicas supostamente

    distintas das sul-coreanas.

    Esta complementaridade entre os arqutipos de sucesso e fracasso, sob o ponto

    de vista da coerncia emprica de qualquer teoria do desenvolvimento, traz tona a

    importncia do estudo daqueles pases que, durante os anos 1980, enfrentavam crises e

    estancamento no processo de acumulao de capital. Afinal, faz sentido propor que o

    conjunto de polticas econmicas em vigor nestes pases seja um terreno emprico

    como um famlico barril de plvora. Tais descries costumam ser complementadas por descries dos

    notveis progressos materiais sulistas, tipicamente marcadas por indisfarvel deslumbramento e

    marcante conformismo poltico.

  • 14

    fecundo compreenso dos potenciais entraves acumulao, especialmente se for

    diagnosticado que seus problemas tiveram origem sob a sombra de construtos

    contrastantes com aqueles que predominavam entre os casos de sucesso. Reemergem,

    aqui, os quatro candidatos sugeridos pela observao do diagrama da Figura I-1 e dos

    grficos que a seguem: Argentina, Uruguai, Peru e El Salvador. E, neste caso, para a

    maioria daqueles que buscaram algum pas que tipificasse o desmoronamento dos

    processos latino-americanos de industrializao, no foi muito difcil optar pelo primeiro,

    que inspirou a criao de volumosa bibliografia. Sintetizemos, ento, quais as razes que

    garantiram Argentina mais visibilidade que a estes outros pases, examinando as

    fragilidades de seus trs rivais enquanto casos de fracasso.

    Inicialmente, vejamos o caso de El Salvador. Nos anos 1980, havia menos de 5

    milhes de salvadorenhos, contingente que fragiliza o uso da trajetria deste pas como

    inspirao ao debate sobre as estratgias de desenvolvimento mundo afora. Neste

    contexto, questionamentos anlogos queles que costumam surgir a respeito de Hong-

    Kong e Cingapura acabam suscitando a posio, fundamentada ou no, de que aquilo

    que vale para uma unidade to pequena no costuma fazer sentido para pases da

    envergadura do Mxico ou da frica do Sul. El Salvador ser, portanto, um caso pouco

    visitado pelos estudos do desenvolvimento.

    Analisemos, ento, os atrativos e fragilidades de um outro candidato, o Peru.

    Naquilo que diz respeito ao peso demogrfico, ele no padece da mesma fragilidade de

    El Salvador, contando 17 milhes de habitantes em 1980. Alm disto, o pas andino

    dotado de amplas disponibilidades de recursos naturais, que luz de uma interpretao

    tradicional se coadunaria com prosperidade econmica, o que sabemos que no ocorre,

    atraindo nossa curiosidade. Contudo, o caso peruano padece de uma fragilidade

    anloga quela que apontamos acima a respeito da Tailndia, qual seja, seu retardo

    industrial cuja expresso sua ntida pobreza frente aos demais pases a quem as lies

    deveriam se aplicar. O Grfico I-6 , abaixo, compara o PIB per capita peruano com o de

    outros pases relevantes no contexto latino-americano, atestando esta dessimetria.

  • 15

    Grfico I-6vi

    Examinemos ento o caso do Uruguai, que primeira vista rico em atributos que

    reforam a relevncia do estudo da severa crise que atravessou durante os anos 1970 e

    1980. Afinal, o Uruguai um pas excepcionalmente dotado de superfcies frteis, algo

    que j primeira vista contrasta com as dificuldades econmicas que vitimam o pas,

    atiando nossa curiosidade intelectual. Alm disto, alguns famosos sintomas do precoce

    desenvolvimento social uruguaio, como o estatuto do divrcio e do voto feminino j em

    1917, ou a notvel expanso do ensino pblico especialmente sob a social-democracia de

    Jos Batlle y Ordez no parecem se coadunar com as dificuldades que acabaram

    vitimando sua economia. E h ainda um outro atributo da conhecida Sua latino-

    americana a reclamar ateno especializada no mbito dos estudos do desenvolvimento:

    a perturbadora durao da semi-estagnao que vitimou sua economia por cinco ou seis

    dcadas. Pois o Uruguai constitui caso paradigmtico de sociedade onde, apesar de em

    princpios do sculo XX prevalecer um padro de vida elevado relativamente mdia

    global, vigia na virada do milnio um nvel de renda nada mais que mediano.

    Contudo, na contramo das supracitadas razes que realam nosso interesse pela

    evoluo da economia uruguaia, incide sobre este pas o mesmo dilema de El Salvador a

    respeito do peso populacional. Afinal, nos anos 1980 eram contabilizados apenas cerca

    de 3 milhes de uruguaios, cerca da metade da populao ento reunida na cidade-estado

    de Hong-Kong. Este dado neutraliza, decididamente, grande parte do interesse que

    1975

    1977

    1979

    1981

    1983

    1985

    1987

    1989

    1991

    1993

    1995

    1997

    1999

    0

    2.000

    4.000

    6.000

    8.000

    10.000

    12.000

    Comportamento do PIB do Peru em Comparao com Outros Pases Latino-Americanos, 1975-2000

    Valores em US$ de Geary Khamis de 1990

    Argentina

    Brasil

    Chile

    Mxico

    Peru

  • 16

    outras facetas charras despertam nos pesquisadores, redirecionando seu foco

    Argentina.

    Afinal, em ambas as margens do Rio da Prata o perodo posterior Segunda

    Guerra foi marcado por uma longa semi-estagnao que as fez se distanciar

    progressivamente dos pases ricos de que antes se faziam acompanhar, ao menos naquilo

    que diz respeito aos indicadores de bem-estar material. Este malogro fica evidente no

    Grfico I-5, logo adiante. Utilizando os valores histricos do PIB per capita de ambos os

    pases, e comparando-os com uma mdia representativa de um vasto conjunto de pases

    europeus ocidentais, observamos nitidamente que Uruguai e Argentina falharam

    reincidentemente em acompanhar a trajetria do Velho Continente j a partir de meados

    dos anos 1950.

    Grfico I-5vii

    O referido grfico sugere, com nitidez, que h uma letargia de largo termo que, no

    caso destes dois pases, transcende em muito os limites da chamada Dcada Perdida.

    E, se est claro que a crise argentina tem durao anloga uruguaia e se abate sobre

    outra sociedade que comea o sculo numa posio relativamente afluente, tambm

    verdade que esta ocorre igualmente sob um territrio marcado por uma dotao de

    1900

    1905

    1910

    1915

    1920

    1925

    1930

    1935

    1940

    1945

    1950

    1955

    1960

    1965

    1970

    1975

    1980

    1985

    1990

    1995

    2000

    0

    5.000

    10.000

    15.000

    20.000

    25.000

    Comparao entre o PIB per capita de Argentina, Uruguai e Pases Europeus Selecionados, 1900-2000

    Em US$ de Geary-Khamis de 1990.

    Uruguai

    Argentina

    Mdia do PIB per capita de ustria, Sua, Dinamarca, Finlndia, Blgica, Frana, Alemanha, Itlia, Holanda, Noruega, Sucia e Reino Unido

  • 17

    recursos naturais por habitante praticamente sem par. Ao contrrio do Uruguai, contudo,

    a Argentina no recai na fragilidade da exigidade populacional, pois conta com o peso

    das 28 milhes de almas que a habitavam em 1980. E, por isto, acaba reclamando

    primazia analtica em relao a todas as demais opes citadas.

    Para dar fora a esta escolha, contamos com mais um dado de envergadura: dentre

    todos os quarenta e quatro casos analisados, o PIB que evolui de forma mais

    desfavorvel durante os anos 1980 o argentino. Ele se contrai 1,5% ao ano durante a

    Dcada Perdida, enquanto no Peru, segunda economia mais afetada pela crise,

    observada uma contrao ligeiramente menor, de 0,8% ao ano. Igualmente digno de

    nota o fato de a Argentina ser, por volta de 1980, uma economia onde a

    industrializao havia avanado quase tanto quanto em um pas do porte da Coria do

    Sul ou do Mxico, apesar de estar em face de bvios obstculos sinalizando tendncias

    regressivas no tecido produtivo.

    Um outro fator de natureza simblica que pesa em prol da visibilidade argentina

    ela ter provocado e perdido uma guerra contra a Gr-Bretanha em primrdios da dcada.

    E, naturalmente, em seu contexto econmico delicado a derrota militar acentuava o

    senso de decadncia geral, e realava o contraste com a opulncia perdida que

    caracterizara seu j distante I Centenrio. Assim, a soma destas razes faz do ciclo de

    crises atravessado pela Argentina nos anos 1980, etapa de um longussimo

    estancamento costumeiramente aludido como desastre argentino, o principal

    candidato a tipificar a m fase vivida ento pela Amrica Latina, em contraposio ao

    bom momento das economias asiticas.

    Em virtude da formidvel aderncia de suas histrias industriais na segunda

    metade do sculo XX a tipos extremos de sucesso e fracasso, Argentina e Coria do Sul

    so casos obrigatoriamente estudados e re-estudados quando o tema o

    desenvolvimento econmico. Com efeito, em fins dos anos 1980 a prspera Repblica

    da Coria era quase sempre, apesar de nem sempre, descrita como modelo de

    extroverso e audcia comercial, caso notrio de sucesso de uma estratgia de

    industrializao com nfase na concomitante insero exportadora nos mercados de

    manufaturados. J a entorpecida Argentina havia se popularizado como um

    contramodelo, falseando as teorias cepalinas e advertindo o mundo perifrico sobre

    os vcios do industrialismo deliberado e do protecionismo.

    Por breve perodo, durante o governo Menem, o caso argentino foi

    costumeiramente alvo de reelaborao, atestando a capacidade de recuperao de um

  • 18

    pas economicamente beira da runa que, enveredando pela seara do livre-cambismo,

    comeara j a colher resultados propensamente slidos. Contudo, o dbacle financeiro

    do pas na virada do milnio imprimiu nova linearidade secular crise argentina,

    revalidando-a como um contramodelo que comprovaria a inadequao do

    intervencionismo.

    Mas esta polarizao entre um caso de sucesso do laissez-faire e, de outro lado,

    um contra-exemplo que supostamente aclararia os vcios do industrialismo no

    mapeia completamente o debate acalorado que traz como insgnias o milagre coreano

    e o desastre argentino. Afinal, nos debates sobre desenvolvimento h sempre uma

    heterodoxia pronta a rever as sugestes do pensamento convencional. E, para esta,

    temos concluses essencialmente contrrias, quais sejam, que a Coria do Sul progrediu

    por executar polticas econmicas ativas, ao passo que a Argentina demonstra o

    insucesso seja de medidas liberalizantes, ou de medidas intervencionistas mal-

    conduzidas.

    F) Da Fragilidade dos Modelos e Contramodelos aos nossos Objetivos Especficos:

    Ainda hoje, contada quase uma dcada desde o retorno dos ventos aos moinhos do

    Rio da Prata, e amortizado sensivelmente o ritmo da economia sul-coreana8, parcela

    francamente majoritria dos analistas ainda costuma aludir s histrias industriais de

    Coria do Sul e Argentina como arquetpicas, respectivamente, daquilo que serve como

    modelo e daquilo que deve ser evitado em um pas perifrico e sub-industrializado. Seu

    re-nivelamento quase sempre descrito com tons fatalistas, como algo desde muito

    perenizado. E o debate que ainda se trava parece confinado, ento, eterna ciso entre

    liberais e intervencionistas acerca de quais as polticas efetivamente aplicadas em cada

    lugar, supondo de antemo que so elas que explicam o aprofundamento de uma

    divergncia tida como progressiva, encontre ela hodiernamente amparo emprico ou no.

    Hoje, Coria do Sul e Argentina muito se distanciaram dos antigos cenrios

    marcados por extremos de vigor e apatia. Mas pela resiliente meno a ambos nestes

    termos, no soa exagero afirmar que o milagre coreano se cristalizou, no mbito das

    disputas terico-ideolgicas, como o perfeito avesso do desastre argentino, e vice

    versa. Ambos povoam vivamente o acervo de nosso imaginrio poltico, e so ainda

    freqentemente evocados como libis para as mais diversas contendas acadmicas e

    8 O desempenho do PIB argentino tem sido muito positivo desde 2003, atingindo uma mdia anual de 7,6%

    entre 2003-2010. J o desempenho da economia sul coreana no mesmo intervalo foi de 3,8% anuais.

  • 19

    poltico-distributivas. Seu emprego resiste, ainda que cada vez menos ancorado em

    dados quaisquer, seno na funcionalidade retrica da meno a duas histrias contadas

    com tons anedticos, cheias de simbolismo e com aceitao consagrada e quase

    universal. A primeira delas, aquela que versa sobre um pas pauprrimo, de exguo

    territrio e solapado pela guerra, que penetrou o crculo das economias avanadas

    aps escolher as polticas certas. A segunda, aquela que narra como um pas rico, com

    pradarias incrivelmente prdigas, clima mediterrneo e populao culta e politizada

    acabou tombando ao rol dos pases pobres mediante a aplicao de polticas

    equivocadas.

    Para quem levanta ou acata o contramodelo argentino, pouco desconforto

    provocado pelo fato de este pas ser, no ano de 2010, o mais afluente dentre os latino-

    americanos9, ou o fato de sua renda per capita superar em cerca de 80% aquela que

    prevalece na elogiada Tailndia.10

    Tampouco costumam causar embarao seus notveis

    indicadores sociais que, se bem que menos favorveis que aqueles exibidos pela Coria

    do Sul, a posicionam muito frente da maioria dos pases de industrializao tardia,

    inclusive orientais. J para quem revalida o modelo sul-coreano, no costuma acender

    inquietao que, tambm neste ano de 2010, sua renda per capita ainda no exceda 63%

    daquela vigente nos Estados Unidos.11

    Nem mesmo quando tambm se sabe que, desde

    2003, a Coria do Sul tem crescido sistematicamente menos que a maioria dos pases

    sul-americanos, inclusive a estigmatizada Argentina.

    Mas o objetivo desta nfase nestes dados contra-instintivos no desafiar a noo

    amplamente difundida de que houve, sim, um paradigmtico processo de acumulao de

    capital na Coria do Sul, fenmeno que se contraporia ao frustrante progresso material

    logrado concomitantemente na Argentina. Pois esta noo popular , sem lugar dvida,

    profundamente coerente com os fatos. Mas isto no nos permite, ainda assim, deixar

    enfatizar que teremos que lidar objetivamente, se quisermos chegar a algum lugar, com

    dois casos de boa e m ventura a tal ponto sedimentados em nosso repertrio terico-

    ideolgico, que se tornou comum que negligencissemos alguns questionamentos que

    deveriam ser constantes e obrigatrios.

    9 Segundo o FMI, a renda per capita argentina em 2010 se situa em US$ 15.603, enquanto a chilena

    marca US$ 14.982 e a uruguaia US$ 14.382 (em valores corrigidos pela Paridade do Poder de Compra). 10

    Segundo o FMI, temos US$ 15.603 versus US$ 8.643. 11

    Segundo dados do FMI, com valores corrigidos pelo mtodo da Paridade do Poder de Compra, temos

    US$ 47.123 versus US$ 29.791.

  • 20

    Pois a temtica do milagre coreano e do desastre argentino nos assedia com os

    mesmos impulsos que desafiam um historiador social que, ao perseguir objetividade na

    elucidao de um evento pretrito, tope com o aparente protagonismo de um heri

    popular, de representao sempre acompanhada por um anti-heri, com fama

    igualmente consolidada. Mesmo sem discordar frontalmente dos atributos comumente

    associados a tais personagens, virtuosos ou viciosos, no lhe resta alternativa seno

    question-los. E isto no deve confundir-se com negar seus traos folclricos a priori,

    mas insistir em discutir o que realmente os embasa. Assim, se nosso objetivo

    compreender os diferentes rumos tomados pela sia Oriental e pela Amrica Ibrica nos

    1980, e para tal cabe aprofundar nosso conhecimento sobre as histrias econmicas

    recentes de Coria do Sul e Argentina, precisaremos demarcar objetivamente o desnvel

    aberto entre estes dois pases. Aonde logrou efetivamente chegar a Coria do Sul? De

    que ponto ela realmente partiu? E a Argentina? Aonde mesmo que ela havia chegado

    durante os anos 1940? Quo objetivamente profunda foi sua decadncia? Faz sentido

    pensar que ela , por princpio, definitiva? Qual o ponto de partida da industrializao

    em ambos os casos? Como podemos caracterizar o quadro material de ambos naquele

    ponto e hoje? Somente tal abordagem pode nos livras da superficialidade oca dos heris

    e contra-heris.

    Prosseguindo nesta busca por objetividade, precisaremos questionar uma opo

    metodolgica eleita ou no mnimo referendada pela imensa maioria dos

    pesquisadores que tratam do referido re-nivelamento. Trata-se do juzo segundo o qual

    desempenho destas economias subdesenvolvidas necessariamente explicado por

    variveis endgenas. Ou seja, precisaremos questionar a suposio, com fortes

    desdobramentos para nossa pesquisa, de que as escolhas realizadas internamente,

    abstradas as circunstncias internacionais, necessariamente explicam o ritmo do

    processo de acumulao de capital.

    Afinal, as economias destes pases, que para alguns seriam caracterizadas pela

    alcunha de perifricas, so visivelmente afetadas por variveis que escapam sua

    dinmica interna. Com efeito, fatores governados por dinmicas completamente

    exgenas desde sua tica, como as flutuaes nos preos internacionais dos produtos de

    exportao e importao, tm consensualmente implicaes severas sobre o

    desempenho de curto prazo das economias no-industrializadas. De forma anloga, as

    polticas comerciais dos principais pases, priorizando as compras em alguns mercados

    em detrimentos de outros, assumem poder explicativo igualmente robusto naquilo que

  • 21

    concerne ao desempenho de mdio e longo prazos destas economias. E, para alm dos

    fluxos comerciais, devemos destacar a relevncia do nvel internacional de liquidez

    financeira, que determina no curto prazo o potencial de absoro de emprstimos

    externos por estes pases, tipicamente dotados de sistemas financeiros imaturos.

    Tambm no devemos negligenciar a importncia dos fluxos voluntrios de capitais,

    assim como as transferncias unilaterais oriundas das grandes potncias, cuja

    centralidade para o equilbrio de mdio e longo prazos dos Balanos de Pagamentos

    destas economias no raras vezes eclipsa a relevncia de suas contas Comercial e de

    Servios.

    Por que razo deveramos assumir, mesmo em face destas advertncias, tal qual

    faz a imensa maioria da bibliografia que adiante percorreremos, que o dinamismo sul-

    coreano e o estancamento argentino possuem bases necessariamente endgenas? No

    parece nada sensato, por exemplo, obviarmos uma discusso aprofundada sobre os

    profundos efeitos dos dois Choques do Petrleo, em 1973 e 1979-81, para o equilbrio

    externo de ambas as economias. Tampouco podemos descurar das drsticas

    conseqncias do sobressalto observado nas taxas norte-americanas de juro,

    especialmente a partir de 1979. Pois estes dois choques de natureza exgena estiveram

    nitidamente associados seqncia de moratrias latino-americanas, a comear pela

    mexicana em 1982, sem ter produzido equivalente efeito desestabilizador nas

    economias do Continente Asitico. Quanto a isto, por que razes a Coria do Sul

    escapou inclume s Crises da Dvida? Faz sentido confinar esta explicao dimenso

    endgena, explorando a composio prvia de seu endividamento externo, ou a oferta

    de divisas garantida pelo sucesso de suas polticas exportadoras, e excluir a priori a

    anlise das polticas financeiras regionais do Japo? Ser que o sucesso sul-coreano na

    rolagem de sua gigantesca dvida no guarda qualquer relao, por definio e de

    antemo, com a forma pela qual o Japo enxergava e tratava sua hinterlndia industrial?

    Estamos a tal ponto convencidos da irrelevncia das finanas japonesas para a Coria do

    Sul, que podemos descartar desde j a anlise deste fator exgeno? Claro que no.

    Ao contrrio, temos todas as razes para sustentar que a recusa s explicaes

    exgenas constituiu uma grave omisso metodolgica, responsvel pelo grosso da

    mistificao que assola este relevante debate. Com efeito, a nica forma de fazer com

    que os modelos e os contramodelos cumpram seu mandato explicativo qual seja,

    o de fornecer sugestes analticas para a compreenso de um conjunto maior de

    ocorrncias menos extremas que se almeja explicar , com alguma obstinao,

  • 22

    insistir em contextualiz-los. E, neste esforo, um crucial passo traar o quadro de

    interferncias oriundas do plano internacional, assim como os limites e possibilidades a

    ele associados, em que se inscrevem as escolhas efetivamente abertas a cada pas

    analisado.

    Ao mesmo tempo, temos uma segunda opo metodolgica tradicional a discutir.

    Trata-se da preferncia por considerar a dinmica econmica como um fenmeno que

    independe do processo poltico. Ora, as polticas econmicas no so delineadas

    abstratamente. Suas conseqncias provveis despertam reaes capazes de dificultar,

    obstaculizar e at reverter sua execuo. Neste contexto, o poder que um governo

    efetivamente possui de executar quaisquer polticas econmicas acaba sendo

    visivelmente cerceado pelas atribulaes originadas nas arenas polticas. E, se

    sabidamente assim, como considerar as escolhas certas sem ter em vista as escolhas

    efetivamente disponveis em funo da realidade poltica de cada pas?

    Durante os anos 1980, Coria do Sul e Argentina foram pases marcados por

    desenvolvimentos polticos bastante heterogneos. No caso da primeira, a dcada de

    setenta termina com o assassinato do General Park Chung Hee, em 1979, episdio ao

    qual se segue um novo golpe que conduz mais um militar ao poder, o General Chun

    Doo-Hwan. Seu governo estende-se at 1988, e ele sucedido por um terceiro general,

    Roh Tae-Woo, que fica no poder at 1993. Ou seja, o perodo militar na Coria do Sul

    preenche o longo intervalo entre 1961 e 1993, e sob apenas trs lideranas relevantes.

    No de se estranhar que o projeto econmico erigido sob seu signo, comumente

    referido pelo cognome de industrializao puxada por exportaes, tenha sido levado

    at as ltimas conseqncias, pouco contando a substancial oposio poltica que muitas

    de suas conseqncias diretas despertavam.

    J no caso da Argentina, o retorno dos civis ao poder muito mais precoce. Ral

    Alfonsn toma do lugar do General Bignone j em 1983, de modo que a transio

    poltica coincide exatamente com o pice da crise econmica internacional. A um s

    turno, despencavam sob a jovem democracia uma crise fiscal terminal, a emergncia de

    um processo hiper-inflacionrio, antigos anseios justicialistas por repartio da renda

    nacional, alm da necessidade de voltar a patrocinar a concluso de seu errtico

    processo de industrializao. A todos estes fatores, devemos somar ainda o substancial

    desgaste internacional em funo do recente fiasco nas Ilhas Malvinas. Tambm no

    surpreende que, sob o fogo cruzado de demandas to multifacetadas, o novo governo

    argentino demonstrasse paralisia ante os severos reveses da economia internacional.

  • 23

    Feitas todas estas consideraes, cumpre estabelecer que o objetivo especfico

    deste texto discutir as histrias industriais de Coria do Sul e Argentina, inscrevendo

    no contexto destas o auge de sua longa divergncia, os anos 1980. Cumpre ressaltar,

    para compreendermos suas trajetrias especficas nessa dcada, teremos que dilatar

    tanto quanto parecer necessrio o escopo temporal analisado, de modo a apreender

    tendncias e processos mais duradouros. Trataremos, nesse esprito, a divergncia

    coreano-argentina como segmentos de complexas histrias sociais, inscritas em um

    quadro internacional riqussimo em estmulos e desafios.

    Como frisamos, enxergamos seus retrospectos como sugestivos da bifurcao que

    identificamos entre um grupo maior de pases, qual seja, o conjunto dos pases latino-

    americanos e aquele composto pelos pases orientais de industrializao tardia.

    Esperamos, assim, que ao visitarmos estes dois casos tenhamos concluses fecundas

    para a compreenso do desnivelamento entre estes conjuntos mais extensos. No entanto,

    pelas razes que j destacamos, assumimos de antemo ser imperiosa a contextualizao

    de cada intricada histria industrial.

  • 24

    CAPTULO I A Real Dimenso de um Veloz

    Re-nivelamento: os dados

    econmicos e sociais de Coria

    do Sul e Argentina numa

    perspectiva histrico-

    comparada

    1.1) Introduo, p.25

    1.2) O Contraste entre o

    Comportamento das Economias

    de Coria do Sul e Argentina

    durante a Dcada de 1980, p.28

    1.3) Coria e Argentina:

    Indicadores Econmicos no

    Longo Prazo, p.52

    1.4) Coria e Argentina:

    Indicadores Demogrficos e

    Sociais desde 1980, p.69

  • 25

    1.1 - Introduo:

    Em Outubro de 1988, a cidade de Seul sediou os Jogos Olmpicos de Vero, e,

    durante o evento, grande parte das atenes da imprensa ocidental esteve direcionada para

    a Coria do Sul. Como caracterstico durante as vrias edies dos Jogos, o noticirio

    estritamente esportivo costumava ser suplementado por uma cobertura mais geral sobre o

    pas-sede, destacando suas peculiaridades culturais, histricas e econmicas. E, neste

    contexto, as partidas representavam um convite popularizao da emblemtica

    transformao econmico-produtiva vivenciada desde alguns anos por este pas. A Coria

    do Sul era ento descrita como um pas que entrava definitivamente no clube dos ricos,

    deixando para trs um passado relativamente recente de pobreza e beligerncia.

    Paralelamente, a delegao sul-coreana obtm um excelente resultado nas competies,

    alcanando 12 medalhas de ouro, feito impressionante para um pas que conquistara sua

    primeira vitria olmpica somente em 1976, doze anos antes, em Montreal. Mas nem todos

    os pases tinham tanto a comemorar.

    As Olimpadas de Seul terminaram sem que nenhum membro da delegao argentina

    fosse laureado com uma medalha de ouro. Na realidade, o resultado obtido na Coria se

    insere em um longussimo perodo em que o hino nacional argentino esteve ausente das

    premiaes olmpicas. Pois entre as edies de Melbourne, em 1956, e Sidney, em 2000,

    nenhuma medalha olmpica dourada rumou para este pas. No longo vo de regresso da

    sia a Buenos Aires, ao fim das disputas, provvel que vrios dos inegavelmente

    talentosos atletas da delegao argentina, como a tenista laureada com a prata, Grabriela

    Sabatini, cultivassem ainda alguma esperana de, no correr de suas carreiras, ajudar seu

    pas a repetir os alvissareiros resultados por ele j alcanados em um passado que ora se

    distanciava. No entanto, faanhas como as de 1948, em Londres, onde a Argentina

    contabilizou sete medalhas e trs de ouro, teriam esperar at Atenas, em 2004, edio na

    qual a Argentina finalmente angariou duas novas medalhas douradas. Para aquela gerao

    de atletas, assim, o anseio de feitos olmpicos extraordinrios jamais seria cumprido. E a

    festa terminava com o inevitvel retorno a seu pas de origem, ento convulsionado por

    uma severssima etapa de sua crnica crise econmica, ento alardeada pela imprensa

    internacional como o desastre argentino: a converso de um pas rico e promissor em um

    pas empobrecido e sem perspectivas.

    Neste captulo visitaremos a informao estatstica que amparava as duas noes

    acima aludidas, quais sejam:

  • 26

    i. a de que a Coria do Sul descolava-se da maioria dos demais pases

    subdesenvolvidos, adquirindo, nos mais diversos campos da atividade humana, e em seus

    indicadores materiais gerais, feies crescentemente comparveis quelas exibidas pelos

    pases de industrializao precoce, e,

    ii. a de que a Argentina atravessava um ntido processo de involuo econmica,

    fenmeno que acompanhado por diversos sintomas de declnio em vrios ramos da

    atuao humana.

    O caminho que percorreremos ser o seguinte. Primeiramente, na Seo 1.2,

    tomaremos como ponto de partida o ano de 1980, incio de um decnio que ficar

    conhecido, na Amrica Latina, pela alcunha de Dcada Perdida, ao passo que no Oriente

    muitos davam conta de um Milagre Asitico. Contraporemos, naquilo que diz respeito

    referida dcada, a evoluo dos principais indicadores econmicos sul-coreanos e

    argentinos. E ficar evidente que, ao passo que na Coria do Sul o ritmo do processo de

    acumulao permitiu que seus indicadores econmicos gerais fossem progressivamente se

    acercando daqueles vigentes nos pases de industrializao mais antiga, na Argentina um

    caminho essencialmente oposto era trilhado. Ou seja, uma longa paralisia no processo de

    acumulao se materializava no progressivo distanciamento entre os indicadores

    econmicos argentinos e aqueles que prevalecem nos pases mais afluentes.

    Como sugerido acima, a etapa adversa do capitalismo argentino no se inicia apenas

    em 1980. A bem da verdade, o processo de acumulao de capital neste pas parece ter se

    desencaminhado muito antes, aps o desfecho da II Guerra Mundial. O mesmo pode ser

    afirmado a propsito da economia sul-coreana: seu bom momento no se inicia em 1980.

    Por isto, na Seo 1.3 alargaremos nosso horizonte temporal, apresentando dados gerais

    acerca do comportamento secular de ambas as economias, entre 1910 e 2010.

    Como veremos, na Coria do Sul a boa fase comea tardiamente em relao m

    fase da economia argentina. Enquanto a primeira inicia seu longo ciclo de crescimento

    apenas em princpios dos anos 1960, a ltima entra em sua longa paralisia j a partir do

    incio dos anos 1950. E somente com o fim do milnio que a roda da fortuna novamente

    girar. Nestes anos, uma conhecida seqncia de crises financeiras volta a perturbar os

    principais pases perifricos: o Mxico, em 1994, a Coria e vrios outros pases da sia

    Litornea, em 1997, a Rssia, em 1998, o Brasil, em 1999, e finalmente a Argentina em

    2001-2. A partir da assim chamada Crise Asitica de 1997, a economia sul-coreana no

    mais atingiu o ritmo de crescimento econmico que a caracterizou nas trs dcadas

    antecedentes. Na Argentina, ao seu turno, a crise cambial e a moratria por ela gestada, em

  • 27

    2001, acabam coincidindo com um ponto de inflexo no comportamento de seu PIB. A

    partir de 2003, como evidenciar a anlise dos indicadores adiante dispostos, o capitalismo

    argentino aparentemente recupera o dinamismo das primeiras dcadas do sculo XX. E,

    como resultado, o PIB do pas austral evolui durante a dcada passada a um ritmo

    nitidamente superior ao sul-coreano.

    Ao alargarmos o perodo histrico coberto, para alm de comparar as duas economias

    analisadas, tentaremos efetuar comparaes entre os resultados exibidos por elas e por

    outras economias ao longo do sculo. Assim o fazendo, esperamos ser capazes de datar os

    movimentos de convergncia e divergncia entre ambas e os pases que lideram o processo

    de acumulao. Paralelamente, desejamos caracterizar a situao de ambos os pases no

    incio e ao fim do perodo coberto, esclarecendo os seguintes questionamentos. O quo

    desfavorvel era o quadro material vigente na Coria do Sul antes da II Guerra? E o quo

    favorvel, em um comparativo internacional, ele havia se tornado em fins do sculo? Alm

    disto, o quo favorvel era a realidade argentina antes da II Guerra? E, s vsperas do

    milnio, o quo desfavorvel era sua situao quando contraposta s demais naes?

    Mais adiante, na Seo 1.4, visitaremos alguns indicadores demogrficos e sociais a

    respeito dos dois casos estudados. Esperamos, com eles, apurar o quanto da ascenso sul-

    coreana e da decadncia argentina se traduziu em alteraes nas condies objetivas de

    vida de ambos os povos. Ficar claro, pela anlise dos grficos selecionados, que a Coria

    do Sul logrou, sim, uma impressionante elevao dos nveis de vida de seus cidados

    durante sua escalada econmica. Ser evidente, outrossim, que a runa econmica

    argentina preservou a notoriedade de alguns seus indicadores sociais, especialmente

    quando contrapomos sua realidade quela dos demais pases de industrializao tardia.

  • 28

    1.2 - O Contraste entre o Comportamento das Economias de Coria do Sul e Argentina durante a Dcada de 1980:

    Na introduo deste trabalho, insistimos que as assimetrias de ritmo no processo de

    acumulao capitalista mundo afora instigam um amplo debate entre os analistas do

    desenvolvimento, levando seleo entre as vrias naes de casos de estudo que

    supostamente tipifiquem sucesso e fracasso. Como tambm argumentamos, Coria do

    Sul e Argentina so costumeiramente evocados como arqutipos adequados a simbolizar,

    respectivamente, ventura e desventura neste processo planetrio de acumulao de capital.

    Nesta seo, nos debruaremos sobre alguns indicadores estattiscos gerais que do suporte

    ao uso destes dois pases enquanto casos opostos. Quanto a isto, nosso objetivo especfico

    confrontar, em linhas gerais, o comportamento das economias argentina e sul-coreana

    durante os anos 1980, momento em que a meno a ambos os pases em termos antitticos

    se populariza nos meios acadmicos.

    Como ponto de partida, temos um trio de estatsticas fortemente indicativas do ritmo

    do processo de acumulao em cada pas, quais sejam, a taxa de crescimento anual do

    Produto Interno Bruto, o ritmo da Formao Bruta de Capital Fixo e o nvel de

    Desemprego Aberto. Em tese, medida que mais e mais capital acumulado dentro das

    fronteiras de um pas, maior ser a soma do valor dos bens e servios que pode ser criada

    em seu interior. Assim, a taxa de crescimento do PIB, estatstica que almeja mensurar esta

    ltima soma, uma medida indireta convincente para captarmos o quo veloz a

    acumulao em um dado lugar. De modo anlogo, parece razovel que quanto mais capital

    acumulado em um territrio, mais e mais mquinas, equipamentos, instalaes de infra-

    estrutura ou edifcios sero nele provavelmente acumulados. Por isto, a Formao Bruta de

    Capital Fixo pode ser apontada como um indicador fortemente correlacionado ao avano

    na acumulao de capital. Paralelamente, sabemos que o capital instalado no tem qualquer

    serventia sem que trabalhadores o utilizem como potencializador de suas capacidades e

    energias. Por isto, uma elevao do nvel de emprego costuma ocorrer simultaneamente a

    expanses suficientemente robustas no nvel de capital acumulado.

    No Grfico 1.2-1, logo abaixo, temos o acrscimo anual no Produto Interno Bruto

    medido nestes dois pases. Salta aos olhos de qualquer um que examine este grfico que o

    PIB argentino regride em nada menos do que cinco dos dez anos cobertos. Paralelamente,

    fortes taxas de expanso, no raras vezes superiores a 10%, caracterizavam o

    comportamento do PIB sul-coreano. Ambas as economias so afetadas negativamente pela

  • 29

    recesso mundial de 1980, e a sul-coreana ostenta inclusive um desempenho pior que a

    argentina neste ano. No obstante, ao longo do restante da dcada o desempenho sul-

    coreano foi constantemente forte, enquanto a economia argentina alterna expanses

    tmidas e contraes severas. Na realidade, sua economia patina durante toda a dcada, a

    ponto de o PIB registrado em 1989 ser 4% inferior quele registrado em 1980. A Coria do

    Sul, ao seu turno, emana sinais que sugerem o acmulo de capital a taxas impressionantes,

    de modo que seu PIB de 1989 108,6% superior ao registrado logo no incio do decnio.

    Grfico 1.2-1viii

    J no Grfico 1.2-2, adiante, contraposto o ritmo de acmulo de bens de capital

    em ambos os pases, incluindo a cobertura das eventuais depreciaes. No caso da Coria

    do Sul, possvel observar uma contrao no valor auferido durante a recesso que atinge

    sua economia nos primrdios da dcada. Esta contrao, inclusive, invade o ano de 1982,

    quando o PIB sul-coreano j havia voltado a crescer. No restante da dcada, contudo,

    podemos observar fortes taxas de formao bruta de capital fixo, chegando a atingir 18%

    em 1987. Na Argentina, ao contrrio, a formao bruta de capital fixo negativa em nada

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    -10

    -5

    0

    5

    10

    15

    1,45

    -6,6 -4,94

    3,012,65

    -4,35

    5,72

    2,17

    -2,63 -4,49-1,5

    6,2

    7,3

    10,8

    8,1

    6,8

    10,611,2

    10,6

    6,8

    Ritmo de Crescimento das Economias de Argentina e Coria do Sul - 1980-1989

    Taxas Anuais de Crescimento do PIB, em %

    Argentina Coria do Sul

  • 30

    menos que seis dos dez anos cobertos pelo grfico, intervalo em que contraes que

    beiraram 20% e 22% so observadas, respectivamente, em 1982 e 89.

    Grfico 1.2-2ix

    Grfico 1.2-3x

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    -25

    -20

    -15

    -10

    -5

    0

    5

    10

    15

    20

    25

    8,33

    -14,98

    -19,94

    0,4

    -4,13

    -14,1

    11,04 12,94

    -3,52

    -21,6

    -10,72 -3,09

    11,12

    17,45

    10,86

    5,27

    11,53

    18,09

    13,62

    15,99

    Evoluo da Formao Bruta de Capital Fixo na Coria do Sul e na Argentina - 1980-1989

    Taxas Anuais de Crescimento, em %

    Argentina Coria do Sul

    1980

    1981

    1982

    1983

    1984

    1985

    1986

    1987

    1988

    1989

    0

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    2,6

    4,6

    5,3

    4,6 4,6

    6,1

    5,65,9

    6,3

    7,7

    5,2

    4,5 4,44,1

    3,84

    3,8

    3,1

    2,5 2,6

    Evoluo do Desemprego na Argentina e na Coria do Sul - 1980-1989

    Taxas Mdias Anuais de Desemprego Aberto, em %

    Argentina Coria do Sul

  • 31

    No Grfico 1.2-3, por sua vez, podemos acompanhar a evoluo do desemprego

    aberto nos dois pases de que nos ocupamos. Como expresso direta do permanente

    dinamismo do processo de acumulao de capital na Coria do Sul, um contingente cada

    vez mais vasto de trabalhadores foi mobilizado para o processo de produo. Assim, a taxa

    de desemprego aberto ali medida logrou um ritmo cadente a partir de 1981. Na Argentina,

    ao contrrio, a taxa de desemprego evolui desfavoravelmente ao longo de todo decnio.

    Desta maneira, durante as trs contraes do PIB ao longo da dcada em 1980-82, em

    1985 e em 1988-89 , a Populao Economicamente Ativa argentina ser confrontada

    com fortes elevaes nesta est