Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana e argentina Crise da Dvida como
evidncias da complexa interao entre o processo poltico e as
foras da economia internacional
Tese apresentada Faculdade de
Filosofia, Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So
Paulo como parte dos requisitos
necessrios obteno do ttulo de
Doutor em Sociologia
Rodrigo Luiz Medeiros da Silva
Orientador: Prof. Dr. Braslio Joo Sallum Jnior
So Paulo, Fevereiro de 2012.
ii
Ficha Catalogrfica
Silva, Rodrigo Luiz Medeiros da
Modelos, Contramodelos e seu Contexto: as respostas sul-coreana e argentina Crise da Dvida como evidncias da complexa interao entre o processo poltico e as foras da economia internacional / Rodrigo Luiz Medeiros da Silva . So Paulo, SP : [s.n], 2012 Orientador: Braslio Joo Sallum Jnior Tese (doutorado) Universidade de So Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas 1. Coria (Sul) Industrializao. 2. Argentina Industrializao. 3. Crises da Dvida Dependncia. 4. Coria (Sul) Desenvolvimento. 5. Argentina Desenvolvimento. 6. Endividamento Industrializao. 7. Guerra Fria. 8. Teoria da Dependncia. 9. Imperialismo Estados Unidos, 10. Imperialismo - Japo.
Ttulo em Ingls: Models, Counter-models and their Context: South-Korean and Argentine national
responses to Debt-Crisis as evidences of the complex interaction between the political process and the
forces of international economy
Keywords: 1. (South) Korea Industrialization. 2. Argentina Industrialization. 3. Debt Crisis
Dependency. 4. (South) Korea Development. 5. Argentina Development. 6. Indebtedness
Industrialization. 7. Cold War. 8. Dependency Theory. 9. Imperialism United States. 10. Imperialism
Japan
rea de Concentrao: Sociologia
Titulao: Doutor em Cincias
Banca Examinadora:
Data da Defesa:
Programa de Ps-graduao: Sociologia
iii
iv
O subdesenvolvimento, como o deus Jano,
tanto olha para a frente como para trs, no
tem orientao definida. um impasse
histrico que espontaneamente no pode
levar seno a alguma forma de catstrofe
social. Somente um projeto poltico apoiado
em conhecimento consistente da realidade
social poder romper a sua lgica perversa.
(Celso Furtado)
[...] o subdesenvolvimento, onde ele surge e
se mantm, no mera cpia frustrada de
algo maior nem uma fatalidade. Mas uma
escolha, se no realizada, pelo menos aceita
socialmente, e que depende, para ser
condenado e superado, de outras escolhas da
mesma natureza, que forcem os homens a
confiar em si mesmos ou em sua civilizao
e a visarem o futuro. (Florestan Fernandes)
v
AGRADECIMENTOS:
Ao Prof. Dr. Braslio Joo Sallum Jr., orientador da
pesquisa que conduziu a esta tese, pelo esteio, pelos
conselhos ditos ou s subentendidos, alm das conversas
que tanto fecundaram minha imaginao sociolgica.
Ao Prof. Dr. Hyun-Chin Lim, co-orientador desta
pesquisa, pelos hizontes abertos e pela hospitalidade.
Aos Prof. Dr. Darcy Carvalho, pelo encorajamento
sempre decisivo, que me impeliu a prosseguir abrindo
portas e criando laos.
Ao Prof. Dr. Plnio de Arruda Sampaio Jr., pela
lio de firmeza intelectual e pela capacidade de trazer os
grandes questionamentos ao nvel mais cotidiano.
Ao Prof. Dr. Javier Amadeo, pelas preciosas
orientaes e pelo estmulo.
Ao Prof. Dr. Kim Jong-Cheol, pela amizade e pela
lio de hospitalidade coreana.
Ao colega Dr. Luis Mah Silva, pela amizade e pelo
inpirador apoio em Seul.
A Kang Minhyoung, pela pacincia e amabilidade.
Ao grande amigo Fbio Pimentel De Maria da
Silva, pelas incontveis conspiraes orquestradas nestes
quase 20 anos de amizade, pela sua enorme influncia em
meu modo de ver as coisas, pelo apoio.
Aos meus pais, av e sogros, e sobrinho pela
compreenso nas tantas ausncias, pela pacincia nos dias
mais ansiosos, pelo apoio que sempre se alegraram em me
dar, pela torcida e pelo inesgotvel carinho.
Dora, por me ensinar o valor de ser incansvel.
Lucimara, meu alicerce nestes anos conturbados
e promissores, por entender o tempo e a energia
necessrios maturao das idias e pontos de vista, pelo
carinho e pela cumplicidade irrestrita.
A todo pessoal do ASIA Center da Universidade
Nacional de Seul, pelo frtil abrigo e pelo cuidado.
Korea Research Foundation, pelo valioso auxlio
material e imaterial que possibilitou a realizao de parte
da pesquisa de campo.
CAPES, pela bolsa.
vi
RESUMO:
No fim dos anos 1970, dois choques externos
o segundo salto nos preos do petrleo e o reajuste na
taxa bsica de juros norte-americana marcam o
incio de tendncias econmicas divergentes entre o
Leste da sia e a Amrica Latina. Para os prsperos
tigres, a prxima dcada seria uma janela para o
chamado catching up, culminando com a promoo
simblica de seu prodgio, a Coria do Sul, ao status
de pas desenvolvido quando da realizao dos Jogos
Olmpicos em Seul. Na Amrica Latina, inversamente,
os anos 1980 so geralmente apelidados de Dcada
Perdida, inaugurando uma era de regresso
econmica e instabilidade poltica. A Argentina,
provavelmente a menos dinmica dentre as economias
que ento se industrializavam, geralmente evocada
como um desastre que tipifica a sina regional. A
vasta maioria das investigaes acerca desta
divergncia se concentra nas polticas econmicas
domsticas e em seus resultados objetivos. No
obstante, tais polticas foram formuladas e aplicadas
sob uma combinao de circunstncias internacionais
e polticas que podem variar consideravelmente de
pas para pas ao longo do tempo. O objetivo deste
texto examinar em que medida algumas das
particularidades destes dois casos naquilo que
concerne ao processo poltico interno e evoluo da
economia internacional moldaram a reao de cada
qual ao cenrio adverso.
vii
ABSTRACT:
At the end of the 1970s, a couple of
external shocks namely, the second leap in
petroleum prices and the readjust of American basic
interest rate mark the beginning of divergent
economic trends for East Asia and Latin America.
For the prosperous tigers, the following decade
would be a time for catching up, culminating with
the symbolic promotion of its prodigy, South Korea,
to the rank of a developed country by the time of
Seouls Summer Olympics. In Latin America,
inversely, the 1980s are generally nicknamed the
Lost Decade, inaugurating an era of economic
regression and political instability. Argentina,
probably the worlds less dynamic industrializing
economy at that time, is usually evoked as a
disaster that typifies the regional fate. The vast
majority of the investigations about this diversion
concentrate on domestic economic policies and their
objective results. Nonetheless, such policies were
formulated and launched under a combination of
international and political circumstances that can
vary considerably from country to country and along
the course of time. The aim of this text is to examine
to what extent have some of these two cases
particularities in what concerns to the domestic
politic process and the evolution of international
economy molded each national reaction to the
adverse scenario.
viii
NDICE:
INTRODUO Modelos e Contramodelos de
Desenvolvimento sob o Signo de uma Bifurcao de Trajetrias..........................1
CAPTULO 1 A Real Dimenso de um Veloz Re-nivelamento:
os dados econmicos e sociais de Coria do Sul e Argentina numa
perspectiva histrico-comparada..........................................................................24
1.1 Introduo...................................................................................................25
1.2 O Contraste entre o Comportamento das Economias de Coria do Sul e Argentina durante
a Dcada de 1980.................................................................................................28
1.3 - Coria e Argentina: Indicadores Econmicos no Longo Prazo....................................................................................................52
1.4 Coria e Argentina: Indicadores Demogrficos e Sociais desde 1980............................................................................................69
CAPTULO 2 A Coria do Sul como Modelo: Retomando o Debate
Dominante Sobre o Caso Coreano....................................................................82
2.1 Introduo...................................................................................................83
2.2 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Economia Ortodoxa....................87 2.2.1 - A Abstrao Neoclssica e o Poder de uma Economia Livre e Aberta..............................................................89
2.2.2 - Neoclassicismo Fundamentado e o Salto Exportador como Alternativa s Ajudas................................................102
2.2.3 - As Agncias de Washington e os Fundamentos Corretos.....................................................................114
2.3 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Economia Heterodoxa..............128 2.3.1 - Alice Amsden e a Exaltao da Distoro dos Preos Relativos...............................................................133
2.3.2 A Unicamp, Otaviano Canuto e o Capitalismo Tardio Coreano.........................................................................................140
2.3.3 Estruturalismo e Neo-estruturalimo: do Nacional Desenvolvimentismo ao elogio da Transformao
Produtiva com Eqidade na sia Oriental................................................147
2.4 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Nova Economia Institucional......................................................................................163
2.4.1 - Richard Nelson, Sidney Winter, Limsu Kim e as Teorias Comportamentais sobre o Papel do
Progresso Tcnico no Crescimento Econmico.........................................166
ix
2.4.2 O Novo Institucionalismo, o Sistema Nacional de Inovao e a Passagem da Imitao Inovao na sia......................176
2.4.3 O Debate Acerca do Salto Educacional Sul-coreano..............183 2.4.4 - Principais Questionamentos Suscitados.......................................190
2.5 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Sociologia Weberiana..............192 2.5.1 Max Weber e a tica Confucionista............................................195 2.5.2 Evidncias Etno-descritivas do Padro Moral dos dos Literati durante a Dinastia Yi (1392-1910)..........................................205
2.5.3 Tu Wei-Ming e a Nova tica Confucionista...........................209 2.5.4 Principais Questionamentos Suscitados......................................224
2.6 - O Milagre do Rio Han na Acepo da Sociologia Durkheimiana.........225 2.6.1 T. Parsons, K. Deutsch e G. Almond: as teorias funcionalistas da modernizao e o desenvolvimento
poltico como correlato do desenvolvimento econmico...........................230
2.6.2 Samuel Huntington: a aplicao conservadora ferramental funcionalista e o divrcio entre
modernizao e ordem burguesa.................................................................241
2.6.3 Chalmers Johnson: a burocracia e o Estado forte japons................................................................................261
2.6.4 Eun Mee King: o chaebol, o Estado forte sul-coreano e os grandes negcios...........................................................264
2.6.5 Principais Questionamentos Suscitados..........................................266
CAPTULO 3 A Argentina como Contra-Modelo: Retomando
o Debate Dominante Sobre o Caso Argentino................................................267
3.1 Introduo.................................................................................................268
3.2 - O Desastre Argentino na Acepo da Economia Ortodoxa...................274 3.2.1 A Semi-estagnao de um Prisma Analtico Livre-cambista: os ecos ricardianos e os Custos
da Represso Econmica..........................................................................278
3.2.2 O Significado Poltico Internacional do Caso Argentino nos Anos 1980: FMI, Banco
Mundial e o Consenso de Washington....................................................292
3.2.3 A Introspeco Latino-americana e a Proeminncia Doutrinria Livre-cambista nas
Instituies de Ensino de Economia...........................................................296
3.2.4 Possveis Questionamentos.............................................................298
3.3 - O Desastre Argentino numa Acepo Heterodoxa................................301 3.3.1 A Semi-estagnao de um Prisma Desenvolvimentista: Hugo Nochteff,
Martn Schorr e a Restruturao Regressiva...........................................304
3.3.2 Celso Furtado, o Prisma Cepalino e o Estagnacionismo..................................................................................311
3.3.3 Aldo Ferrer, o Estruturalismo Histrico Cepalino e a Baixa Densidade Nacional Argentina................................316
3.3.4 Fernando Fajnzylber, o Neo-estruturalismo, e a Industrializacin Trunca da Argentina..............................................327
x
3.3.5 Comentrios e Questionamentos....................................................332
3.4 - O Desastre Argentino na Acepo da Economia Institucionalista........334 3.4.1 - Jorge Katz, Roberto Bisang, Gabriel Yoguel et alli, Daniel Schudnovsky et al, e a Imaturidade do Sistema
Argentino de C & T....................................................................................336
3.4.2 O Debate em Torno do Papel do Sistema Educacional no Estancamento Argentino...................................................340
3.4.3 Possveis Questionamentos.............................................................346
3.5 - O Desastre Argentino na Acepo da Sociologia Weberiana................348 3.5.1 Samuel Huntington e o Choque de Civilizaes...............................................................................................352
3.5.2 - Daron Acemoglu, David Landes, e o Reverso da Fortuna............................................................................358
3.5.3 Possveis Questionamentos.............................................................364
3.6 - O Desastre Argentino na Acepo da Sociologia Durkheiminana........365 3.6.1 - Guillermo ODonnel e as Mars do Estado Burocrtico-Autoritrio..........................................................368
3.6.2 Jorge Schvarzer e as Classes Dominantes na Argentina .............................................................372
3.6.3 Possveis Questionamentos.........................................................377
CAPTULO 4 O Cenrio Internacional e os Constrangimentos
Externos Industrializao Tardia Luz da Teoria do Desenvolvimento.........378
4.1 - Introduo..................................................................................................379
4.2 Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, e a Vitalidade das Teorias do Sistema Mundo na
Compreenso da Divergncia Coreano-argentina ............................................382
4.3 Os Limites de Estrangulamento Externo nas Industrializaes Tardias como Prognstico Cepalino
Fecundo s Teorias do Sistema Mundo.........................................................390
4.4 Soluo Exgena para o Estrangulamento Externo ou Desenvolvimento a Convitena Coria do Sul...........................................394
4.5 - O Conceito de Dependncia: alguma funcionalidade s Teorias Sistema Mundo?................................................................................402
CAPTULO 5 Cenrio Externo e Crescimento: o Peso de Fatores
Exgenos no Sucesso da Industrializao Coreana (1894-1997).......................405
5.1 Introduo.................................................................................................406
5.2 - A Coria antes do Processo de Modernizao: uma Cultura
Milenar em Xeque e a Aparente Ausncia de Novos Horizontes.....................411
xi
5.3 Imperialismo, Colonialismo, Ocupao Estrangeira
e Mudana Social na Coria do Sul (1894-1948)..............................................415
5.4 Os Aportes Exgenos para o Sucesso da Industrializao
por Substituio de Exportaes na Coreia do Sul........................................421
CAPTULO 6 Cenrio Externo e Estagnao: o Peso de Fatores Exgenos no
Retardo e na Reverso Precoce da Industrializao
Argentina (1929-2003).......................................................................................438
6.1- Introduo...................................................................................................439
6.2 - A Argentina na Periferia Prspera da Gr-Bretanha:
o fausto primrio-exportador como caso extremo da riqueza
sob a clssica dependncia.................................................................................447
6.3 - A compresso do mercado relevante das exportaes argentinas
no ciclo americano, o paradoxo cambial da substituio de
importaes e o crnico estrangulamento externo......................................454 6.3.1 - O Fechamento da Fronteira Agrcola
Argentina aps 1930...................................................................................456
6.3.2 - O Panorama Emprico e a Deteriorao
nos Termos de Troca.................................................................................457
6.3.3 - A Conferncia de Ottawa, as Imperial
Preferences, e o Protecionismo Continuado
Agropecuria Britnica (1932-1973)........................................................459
6.3.4- O Tratado de Roma, a Poltica Agrcola
Comum e o protecionismo europeu (desde 1957).......................................462
6.3.5 - A Substituio de Importaes no Brasil,
os Preos Mnimos da Agricultura e o protecionismo
Brasileiro no Mercado de Trigo (1951-1988).............................................465
6.4 Choques do Petrleo, Petrodlares e Reajuste dos Juros
Americanos na materializao do colapso cambial que
tendencialmente baliza as industrializaes tardias...........................................468
CONCLUSO O Milagre Sul-Coreano e o Desastre
Argentino em seu Contexto Particular: Frestas Variveis
na Hierarquia do Sistema Mundo, Sociedades Perifricas
e Processo Poltico na Industrializao Retardatria..........................................478
BIBLIOGRAFIA................................................................................................517
1
INTRODUO Modelos e Contramodelos de
Desenvolvimento sob o Signo de
uma Bifurcao de Trajetrias:
A) sia e Amrica Latina: trajetrias bifurcadas, p.2
B) Dinamismo e Estagnao: do dualismo aos padres regionais, p.3
C) Dos Padres aos Arqutipos Regionais, p.8
D) O Dinamismo e seus Arqutipos: da pujana asitica ao modelo sul-coreano,
p.9
E) Dos Modelos aos Contramodelos: o desastre argentino como anverso do milagre sul-coreano, p. 13
F) Da Fragilidade dos Modelos e Contramodelos aos nossos Objetivos
Especficos, p.18
2
A) sia e Amrica Latina: trajetrias bifurcadas
Asiticos e latino-americanos guardam memrias extremamente distintas da
dcada de 1980. Para a maioria daqueles que narram a histria dos pases orientais, esta
foi uma dcada marcada por dinamismo econmico sem precedentes, sinalizando que
Tigres e Drages haviam efetivamente vencido sua longa letargia. J no caso dos
que se ocupam de seus pares latino-americanos, ento sacudidos por severas crises
interconectas, os oitenta so geralmente descritos como uma Dcada Perdida,
marcada por profundo rebaixamento das expectativas regionais de longo termo.
Naqueles anos, e pela primeira vez desde o colonialismo, era possvel projetar o
futuro asitico com slido otimismo. O maior parque industrial da regio, o Japo,
consolidava sua vice-liderana dentre as economias desenvolvidas, e parecia embaraar
at mesmo a supremacia industrial norte-americana, antes inquestionada. Alm disto, a
mar de prosperidade se espraiara a outros rinces do continente, a ponto de permitir
que as economias de Coria do Sul e China Insular fossem adquirindo feies
estruturais progressivamente anlogas quelas das regies de industrializao mais
antiga. Ao mesmo tempo, as cidades de Cingapura e Hong-Kong, vitrines da
prosperidade regional, passavam a figurar entre os pcaros das estatsticas de renda e
consumo por habitante, desafiando simbolicamente, em companhia de alguns distritos
comerciais de Tquio, a coincidncia entre ocidentalidade e prosperidade, antes tida
como obrigatria. No Vietn e na China Continental, ao seu turno, despontava um
promissor processo de abertura econmica, objetivando a acelerao da acumulao
industrial com concomitante insero nos mercados internacionais de manufaturas
pouco complexas. Para o Poente, Indonsia, Malsia, Tailndia e ndia pareciam ter sido
tocadas por aspiraes similares, e se industrializavam em ritmo acelerado, ainda que
com compasso e estratgias singulares, e partindo de nveis heterogneos de
complexidade do tecido econmico.
Entre os principais pases latino-americanos, contudo, o quadro econmico geral
foi precisamente o oposto: uma montona sucesso de crises cambiais e surtos
inflacionrios, acompanhados por sobreendividamento pblico e intentos de
acomodao, culminando com desajustes incapacitantes nos sistemas financeiro e
produtivo. Ao passo que recesso e semi-estagnao se alternam persistentemente, vo
adquirindo contornos de miragem os projetos de construo de parques industriais
nacionais e integrados.
3
No caso da maior economia da regio, o Brasil, os anos 1980 foram marcados pelo
colapso da estratgia de industrializao com endividamento externo, em curso desde
1974. A recesso se instaura, a inflao se aprofunda, e, no bojo de trs planos
malfadados de estabilizao econmica, prossegue o esgaramento dos mecanismos de
interveno estatal na economia. Na Argentina, por sua vez, a nova dcada acena para o
fracasso da estratgia de liberalizao radical em curso desde 1976. Desindustrializao,
recesso, crise cambial, super- e hiper-inflao, falncia do Estado e at fracasso blico
so as imagens mais fortes dos anos 1980. O caso do Mxico no menos infeliz. A
dcada comea com uma profunda crise fiscal, sinalizando o desmoronamento das
polticas de expanso da cobertura social e do gasto pblico ali realizadas desde meados
dos anos 1970. Os bancos so nacionalizados sem que a questo da dvida seja
equacionada, a inflao marca trs dgitos, e o pas declara moratria em 1982. O
episdio o preldio de um decnio de semi-estagnao, desemprego elevado e
conseqente frustrao do projeto industrial nacionalista, abalizando a integrao
especializada Zona de Livre Comrcio Norte-americana. Na grande maioria dos
demais pases do continente, da Amrica Central ao Uruguai, o quadro de descaminho
das antigas estratgias semelhante.
Como explicar que o incio dos anos 1980 tenha assinalado a divergncia de
trajetrias entre, de um lado, os promissores parques industriais do Continente Asitico,
e, de outro, os exemplos de industrializao inconclusa e truncada que caracterizavam a
Amrica Latina? Por que conjunto de razes os indicadores que vinham da sia eram
to positivos quando comparados aos latino-americanos? Esta a pergunta mais geral
que norteia a realizao da pesquisa de doutoramento que conduziu a este tese.
B) Dinamismo e Estagnao: do dualismo aos padres regionais
O domnio amplo deste texto , assim, a bifurcao das trajetrias destas duas
regies; ou seja, a manuteno de um frentico ritmo da acumulao capitalista nos
principais parques industriais da sia, que se contrape ao aparente esgotamento dos
outrora prsperos processos de industrializao tardia latino-americanos. De partida,
contudo, cabe pontuar que esta divergncia no pode ser descrita como uma dualidade
regional rgida. Afinal, sia e Amrica Latina no so espaos sequer minimamente
homogneos, compondo entidades comparveis apenas sob substancial abstrao.
Afinal, nenhuma destas duas regies coincide com uma unidade poltico-estatal singular,
4
sendo o Continente Asitico atualmente compreendido por nada menos que 49 pases,
ao passo que 21 do forma Amrica Latina. Como de se esperar, h importantes
assimetrias com respeito ao desempenho das economias que integram cada um destes
dois fragmentados conjuntos, do mesmo modo que em ambos podemos pinar tipos
extremos de boa e m ventura no processo de acumulao de capital.
Precisamos, assim, procurar padres regionais em trajetrias a rigor particulares. E
carecemos, por isto mesmo, de informaes mais completas sobre as caractersticas de
cada uma delas. Nesta empreitada, a Figura I-1 ser nosso ponto de partida. Nela, cada
pas selecionado aparece associado a uma combinao de duas diferentes estatsticas. O
eixo horizontal foi reservado ao valor anualizado do crescimento total do Produto
Interno Bruto, para o perodo compreendido entre 1971 e 1980. J o eixo vertical foi
reservado estatstica anloga, porm correspondente aos anos entre 1981 e 1990.
Figura I-1i
Fundamentalmente, o diagrama da Figura 1.1 nos ajuda a perceber que, da tica
do ritmo de acumulao capitalista, havia quatro diferentes padres de trajetrias entre
5
os pases citados excetuando os pases de industrializao mais antiga, que so
representados na figura apenas por propsitos comparativos .
Primeiramente, temos aqueles que j mantinham ritmo forte durante os anos 1970,
seguindo esta senda durante anos 1980. No diagrama, estes pases so representados
pelos pontos vizinhos ao canto direito superior. E salta aos olhos, nesta regio, a
incidncia exclusiva dos quadradinhos cheios que representam os pases orientais. Mais
especificamente, nos referimos aos pases asiticos de industrializao retardatria, tal
qual China, Coria do Sul, Tailndia, Malsia, Indonsia, Cingapura, Taiwan e Hong-
Kong. Juntos, os pontos que os representam compem uma nuvem de contornos ntidos,
desconectada de todos os demais pontos do diagrama.
Em segundo lugar, temos os pases onde a acumulao capitalista pouco ou nada
prosseguiu durante as duas dcadas em questo. No diagrama, estes pases ocupam a
vizinhana do canto esquerdo inferior, regio na qual no difcil diagnosticar a
presena exclusiva de sete pontos que representam pases latino-americanos, quais
sejam, Venezuela, El Salvador, Argentina, Uruguai e Peru, Bolvia e Panam. Em todos
estes casos, a acumulao capitalista avanou menos que a mdia regional durante os
anos 1970 e 1980.1 E, naquilo que concerne aos anos 1980, temos quatro cifras
negativas para o crescimento anualizado, sugerindo uma regresso no nvel de capital
acumulado. Tal fato tem lugar na Argentina, no Peru, em El Salvador e no Uruguai.2
Em terceiro lugar, temos casos em que uma significativa desacelerao ocorre
entre os anos 1970 e 1980. No diagrama, os pases nesta situao esto dispostos
bastante abaixo da linha longitudinal inclinada que corta o espao do diagrama.3 Assim,
junto base da rea de plotagem possvel identificar que tais pases do forma a outra
nuvem de contornos ntidos, quase exclusivamente composta por pontos representativos
de pases latino-americanos Honduras, Costa Rica, Guatemala, Mxico, Equador,
Repblica Dominicana, Brasil e Paraguai . Entre estes casos, o paraguaio
paradigmtico: depois de ter figurado entre as mais dinmicas economias do globo nos
anos 1970, com um acrscimo anual mdio 8,9%, seu resultado na dcada seguinte no
excede 2,9% anuais. O caso brasileiro tambm, tombando de 8,5% para 1,6%.
1 Ou seja, o crescimento anualizado de seu PIB foi inferior (ou na melhor hiptese equivalente) a 5,05%
nos anos 1970 e 1,37% nos anos 1980, mdias para os dezessete pases latino-americanos representados. 2 Que marcaram, respectivamente, -1,5%, -0,8%, -0,4% e -0,04% para o crescimento anualizado do PIB.
3 Pois acima desta linha esto situados os pases cujo desempenho foi superior na dcada de oitenta em
relao aos setenta. E, abaixo dela, esto aqueles cujo desempenho nos oitenta foi frustrante em relao
quele observado nos setenta.
6
At aqui delineamos trs padres para pases oriundos de duas regies: os pases
orientais so aqueles em que a acumulao mais avana em ambas as dcadas, enquanto
os latino-americanos se dividem entre aqueles que enfrentavam problemas desde os
anos 1970, e aqueles cujos problemas se manifestam apenas na dcada de 1980.
Um quarto grupo , ento, composto pelas excees a estes padres regionais.
ndia, Turquia e Sri Lanca, por exemplo, ostentam durante os anos 1980 um
desempenho anlogo quele dos pases asiticos mais dinmicos. Mas nos anos 1970
seu desempenho se acerca mais dos menos dinmicos dentre os pases latino-
americanos. As Filipinas, por sua vez, vivenciam forte desacelerao dos anos 1970
para os anos 1980, ostentando assim um desempenho semelhante a pases latino-
americanos como a Guatemala e a Costa Rica. J entre os meridionais, o nico pas que
no parece se encaixar nos dois padres que tipificam a regio o Chile.
O Chile, alis, o nico dentre os principais pases latino-americanos a figurar
acima da j referida linha longitudinal. Ele registra crescimento mdio de 3,7% durante
os anos oitenta, o que conferia a ele grande destaque regional, mas mesmo assim o
mantinha a muitas braadas dos mais dinmicos asiticos. Afinal, China, Coria do Sul,
Tailndia e Taiwan marcam, respectivamente, 9,3%, 8,7%, 7,8% e 7,6% no mesmo
perodo. Ademais, o Chile registra tal cifra aps ter sido um dos pases menos
dinmicos do mundo durante a dcada de setenta.4 Com efeito, a economia chilena no
foge muito modesta sina regional se o perodo em questo compreender ambas as
dcadas de 1970 e 1980, como expe o Grfico I-1. A situao tampouco se altera se
tomarmos em conta um perodo ainda mais dilatado, cobrindo as dcadas de 1970, 1980
e 1990, como feito no Grfico I-2. Em ambos, o Chile aparece em ntida companhia
dos demais pases latino-americanos, alm dos asiticos de menor dinamismo acima
mencionados: ndia, Sri Lanca e Filipinas.5
4 Pois seu crescimento mdio foi de apenas 2,9%, enquanto Taiwan, Hong-Kong, Cingapura e Brasil
registram, respectivamente, 9,7%, 9,6%, 8,8% e 8,5%. 5 Note que a Turquia no foi includa nos Grfico I.1 e I.2 por no ser propriamente um pas asitico.
7
Grfico I-1ii
Grfico I-2
iii
Em conjunto, os dados acima corroboram, sem lugar a numerosas excees, que a
sia foi palco de uma veloz acumulao de capital durante as dcadas de setenta e
oitenta. Ou, como prefeririam alguns, que houve um notvel e constante processo de
desenvolvimento capitalista em praticamente toda a regio. Na Amrica Latina,
opostamente, a acumulao de capital foi tipicamente acentuada na dcada de 1970, mas
declinou severamente a partir de 1980. Pior ainda, h um subgrupo de pases latino-
americanos onde a estagnao se fez presente em ambas as dcadas, sendo o saldo final
quase nulo ou at negativo em termos de desenvolvimento capitalista.
Taiw
an
Hong-K
ong
Cingapura
Coria do S
ul
China
Tailndia
Indonsia
Malsia
Paraguai
Brasil
R. D
ominicana
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Sri-L
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ica
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Panam
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Uruguai
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1
2
3
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5
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7
8
9
10
Comparao entre o Ritmo de Crescimento do PIB de Pases Asiticos e Latino-americanos, 1971-1990
Crescimento Total do PIB no Perodo, Taxa Anualizada, em %, Pases Asiticos em Preto e Latino-americanos em Cinza
China
Cingapura
Taiw
an
Coria do S
ul
Malsia
Hong K
ong
Tailndia
Indonsia
R. D
ominicana
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Sri L
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Costa R
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Paraguai
Chile
Brasil
Mxico
Colm
bia
Honduras
Equador
Filipinas
Guatem
ala
Panam
Bolvia
Peru
El S
alvador
Uruguai
Argentina
Venezuela
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Comparao entre o Ritmo de Crescimento do PIB de Pases Asiticos e Latino-americanos, 1971-2000
Crescimento Total do PIB no Perodo, Taxa Anualizada, em %, Pases Asiticos em Preto e Latino-americanos em Cinza
8
C) Dos Padres aos Arqutipos Regionais:
As qualificaes tecidas acima nos permitem reelaborar sutilmente o
questionamento geral que instiga a pesquisa que conduziu a este texto, obviando a
sugesto falaciosa de um dualismo regional estanque. Ele adquiriria, ento, a seguinte
forma: Por que conjunto de razes o processo de acumulao prosseguiu to velozmente
em um amplo conjunto de pases asiticos, ao passo um completo estancamento, por
vezes com ntidas tendncias regressivas, vitimou vrios pases da Amrica Latina?
Esta pergunta nos redireciona a uma discusso sobre economias especficas,
particularmente dinmicas ou especialmente inertes, ainda que em um plo tenhamos
pases do Continente Asitico, e, em outro, pases latino-americanos. Como o nmero
de naes envolvidas significativo, e so inmeros os atributos a serem apreendidos
quando queremos compreender os fundamentos da acumulao em um territrio
qualquer, o volume de informao a ser considerado incrivelmente grande. Como
forma de lidar com este excesso de estmulos, absolutamente natural que nossa
curiosidade se dirija primordialmente aos exemplos que parecem tipificar os extremos
de cada destino regional. Por isto, recorrente a busca de modelos ou casos de
desenvolvimento e estagnao em toda a literatura que versa sobre a referida
divergncia. Trata-se de uma estratgia, em princpio razovel, de aprofundar a
discusso acerca dos tipos considerados extremos e que, potencialmente, seriam
portadores de sugestes analticas sobre um conjunto muito mais amplo de casos que se
quer examinar.
Com efeito, mirando especificamente o xito em acumular capital, os candidatos
nossa anterioridade analtica se situam junto aos ngulos superior direito e inferior
esquerdo do diagrama de disperso da Figura I-1. Deste modo, temos oito pases
asiticos entre os que se mostraram mais dinmicos: China, Taiwan, Hong-Kong,
Coria do Sul, Tailndia, Malsia, Indonsia e Cingapura. E, entre os menos dinmicos,
quatro latino-americanos: Argentina, Uruguai, Peru e El Salvador. Os primeiros so
nossos candidatos a ilustrar de forma arquetpica o dinamismo do espao econmico
asitico nos anos 80, enquanto os ltimos podem aspirar a tipificar a m fase
atravessada pela regio centro-meridional das Amricas durante a Dcada Perdida.
9
D) O Dinamismo e seus Arqutipos: da pujana asitica ao modelo sul-coreano
Muito j se produziu sobre cada um dos pases acima aludidos no mbito da
literatura sobre desenvolvimento. Em particular, possvel identificar volumosa
contribuio intelectual a respeito daqueles cujo dinamismo paradigmtico, isto ,
Coria do Sul, Tailndia, Cingapura e China (incluindo os antigos enclaves ocidentais e
Taiwan), alm da Indonsia e da Malsia. Afinal, o estudo dos mecanismos em funo
dos quais a acumulao prosseguiu de forma to vigorosa em cada uma destas
economias parece ser fecundo, mutatis mutandis, em recomendaes e advertncias para
as demais naes que busquem seguir sua trilha. No mbito aos anos 1980, contudo,
nenhum destes pases atraiu mais a ateno de especialistas que a Coria do Sul. E no
difcil compreender as razes deste magnetismo sul-coreano. Nos pargrafos abaixo,
tentaremos enumer-las, ao mesmo tempo em que descartamos um a um os casos que
rivalizavam com o pas peninsular.
Inicialmente, temos os dinmicos entrepostos de Cingapura e Hong-Kong. E, de
antemo, preciso considerar que ambos mal passam de cidades, com um peso
demogrfico e territorial que as distancia muitssimo da grande maioria dos pases em
desenvolvimento. totalmente natural intuirmos, com ou sem a devida reflexo prvia,
que aquilo que vale para uma cidade-estado que logra enriquecer no se aplica a um
pas do porte, digamos, do Brasil ou da Indonsia. Assim, seu desempenho notvel sem
dvida garantiu sua fama entre os crculos especializados, mas no a ponto de permitir
que seu sucesso simbolizasse a escalada asitica nos anos 1980.
A China Continental, por sua vez, acabara de passar pela experincia da abertura,
iniciada apenas em 1976. Em tempos quela altura ainda recentes, seu PIB havia
oscilado freneticamente, chegando a se contrair 27,1% em 1961 e saltar 19,4% em 1970.
No podia estar suficientemente claro, para observadores de meados dos anos 1980, que
a China lograria manter, pelas dcadas subseqentes, o ritmo que hoje sabemos que ela
efetivamente manteve, convertendo-a na superpotncia emergente de nossos dias. Alm
do mais, a China integrava aquilo que em tempos de Guerra Fria se chamava Segundo
Mundo, impregnando o debate com uma carga ideolgica especialmente forte, e
complicando ainda mais as anlises comparativas que so tpicas dos estudos do
desenvolvimento.
Assim, entre os oito casos de dinamismo citados, apenas a China Insular, ou
Taiwan, a Tailndia, a Malsia e a Indonsia, pases de porte significativo e que
10
integravam o ento chamado III Mundo, eram capazes de competir em p de igualdade
com os sul-coreanos por ateno especializada. Vejamos, ento, por que razes a Coria
foi particularmente visitada e referida como smbolo do salto industrial asitico, mesmo
diante destes outros pases, cujo ritmo no acmulo de capital tambm to singular.
Como pode ser percebido a partir do diagrama de disperso da Figura I-1, Malsia
e Indonsia so, naquilo que concerne aos anos 1980, espaos sensivelmente menos
pujantes que Taiwan, Coria do Sul e Tailndia. E isto a despeito das significativas
conseqncias da alta nos preos do petrleo aps 1979, que influencia positivamente
os termos de troca dos dois primeiros, que so exportadores de leo, ao passo que
representa nus aos trs ltimos.6 Por bvias razes, este contraste contra-intuitivo
acaba redirecionando nosso potencial interesse pela Indonsia e pela Malsia rumo a
estes trs prsperos importadores de petrleo, que impressionam por terem passado
relativamente inclumes aos solavancos macroeconmicos direta ou indiretamente
associados aos Choques do Petrleo.
Assim, mirando especificamente a trajetria do PIB, Coria do Sul, Taiwan e
Tailndia parecem ser, por eliminao e at aqui, as melhores candidatas a ilustrar a
acelerada acumulao de capital que teve lugar na sia. Entretanto, h uma forte razo
para retirarmos tambm a Tailndia desta lista. Como evidencia o Grfico I-3, ela era
nos anos 1980 uma nao muito pobre relativamente Taiwan e Coria do Sul. Em
que pese o notvel crescimento que quela poca j registrava, este no era ainda
suficiente para que se pudesse sugerir a partir de sua trajetria lies para os demais
pases do ento chamado Terceiro Mundo notadamente os da ento conturbada
Amrica Latina . Pois boa parte destes pases encontrava-se, ento, em estgios
superiores da transio industrial, ostentando como sintoma nveis superiores de renda
per capita. Este desnvel atestado pelo Grfico I-4, logo adiante.
6 Mesmo em face da extraordinria fase no mercado internacional de petrleo, durante os nos 1980 o PIB
evolui malaio cresce 5,98% anualmente, e o indonsio 6,4%, o que no faz frente aos sul-coreanos, aos
tailandeses e aos taiwaneses. Pois, a despeito da das conseqncias deletrias do reajuste do petrleo em
sua conta comercial, Taiwan, Coria e Tailndia marcam, respectivamente, 8,7%, 7,9% e 7,6%.
11
Grfico I-3iv
Grfico I-4v
Por tudo isto, Taiwan e Coria sero os dois pases em desenvolvimento a suscitar
maior nmero de anlises especializadas durante os anos 1980. Ambos sero brindados
1980
1981
1982
1983
1984
1985
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Evoluo do PIB per capita da Tailndia e de Pases Asiticos Selecionados, 1980-1990
Valores Corrigidos pela Paridade do Poder de Compra, em US$ de Geary Khamis de 1990
Coria do Sul Taiwan Tailndia
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
-
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
8.000
9.000
Evoluo do PIB per capita da Tailndia e de Pases
Latino-americanos Selecionados, 1980-1990
Valores Corrigidos pela Paridade do Poder de Compra, em US$ de Geary Khamis de 1990
Tailndia Mxico Argentina Brasil
12
com diversas contribuies, conduzidas sob amplo leque de preferncias tericas, cada
qual iluminando diferentes facetas da situao de cada um dos pases, e, portanto,
tecendo as mais distintas concluses. Contudo, como j antecipamos, a Coria do Sul
acaba sobressaindo ainda mais. Examinemos quais as potenciais justificativas.
De partida, o peso demogrfico da Repblica da Coria bastante maior que o da
Repblica da China: em 1980, 38 milhes habitavam a primeira, enquanto apenas 17
milhes a segunda. Alm disto, o ritmo de crescimento da economia sul-coreana durante
os anos 1980 era ainda mais forte que o taiwans: 8,7% versus 7,6% anuais. E h ainda
um fator que qui seja o mais importante: o fato de a Coria atrair ateno internacional
por motivos alheios sua economia, facetas estas abaixo enumeradas.
Primeiramente, o mundo ocidental apenas se familiarizou com este pas peninsular
durante a Guerra das Corias, travada entre suas metades setentrional e meridional, mas
na qual os Estados Unidos estiveram intensamente envolvidos, guarnecendo o sul
capitalista. quela poca, nos idos dos anos 1950, o quadro material ali vigente era
desesperador, o que confere peso simblico e reveste de certo herosmo a meno ao
mesmo lugar, poucos anos depois, como modelo de prosperidade.
Alm disto, tal qual Taiwan a criao da Coria do Sul um captulo da Guerra
Fria, porm com implicaes geoestratgicas muito mais longevas. Como sabemos,
ambos so entidades poltico-administrativas que ocupam um territrio reivindicado
tambm por outro Estado. Contudo, no caso chins, o embate entre sistemas esvaziou-se
desde 1979, quando o territrio continental deliberou pela abertura civilizao
capitalista, tornado-se adiante quase um anacronismo medida que os antigos enclaves
ocidentais foram incorporados Pequim segundo a soluo de dois sistemas para um s
pas. Na Pennsula Coreana, ao contrrio, a Guerra Fria persiste como em nenhum
outro lugar, ameaando se materializar em guerra total de tempos em tempos. Esta
situao legitima a presena de macios contingentes militares norte-americanos em
terras da Coria do Sul, supostamente para fornecer proteo a esta e ao Japo frente
ameaa nortista. Assim, a divulgao das proezas industriais instaladas s margens do
Rio Han acaba sendo muito funcional aos interesses estratgico-militares dos Estados
Unidos. Pois o crescente contraste entre o prspero sul e o mendicante e beligerante
norte que fundamenta, em ltima anlise, sua presena militar naquelas longitudes.7
7 Cumpre ressaltar que o complexo militar estadunidense inclui centros de estudos capazes de fomentar
pesquisas em reas consideradas estratgicas. Neste ambiente, costumam ter boa circulao e angariar
seguidores as anlises particularmente alarmistas com relao suposta beligerncia nortista, descrito
13
Em face de todos estes atributos fortuitos, pelos idos da realizao dos Jogos
Olmpicos de Seul, em 1988, j se tornara praticamente um consenso acadmico que a
Coria do Sul constituiria um caso raro, tal qual paradigmtico, de nao perifrica que
teria conseguido, em virtude da adoo de polticas econmicas acertadas, ultrapassar a
barreira do subdesenvolvimento. Seja em ambientes especificamente devotados
discusso do desenvolvimento, seja em outros ambientes acadmicos como em aulas
ou seminrios do mais amplo espectro , ou mesmo nas discusses polticas e nos
meios jornalsticos, a mesma concordncia ecoava muito freqentemente: a Coria do
Sul era descrita como um exemplo para todas as naes em desenvolvimento,
especialmente quando elas eram postas diante de crises mais ou menos srias ou
prolongadas. Afinal, o vigor do processo de acumulao capitalista que tem lugar em seu
territrio entendido, pela maioria esmagadora dos analistas que se debruaram sobre
este tema, como funo direta das diretivas poltico-econmicas ali perseguidas. E, desta
tica, o sucesso sul-coreano decorreria primordialmente, seno unicamente, de suas
prprias escolhas.
E) Dos Modelos aos Contramodelos: o desastre argentino como anverso do
milagre sul-coreano
Como j dito, a tese mais popular a respeito do milagre sul-coreano sustenta que
um conjunto de receitas de poltica econmica teria logrado transformar este pas em um
caso de sucesso industrial. Esta teoria, por razes translcidas, ganharia mais
substncia argumentativa se, entre os pases que ento perseguiam resolutamente a
industrializao mediante a adoo de outras estratgias, fosse possvel identificar um
caso de fracasso: ou seja, um pas que colhesse resultados amplamente rotulados de
insatisfatrios a partir da aplicao de diretrizes poltico-econmicas supostamente
distintas das sul-coreanas.
Esta complementaridade entre os arqutipos de sucesso e fracasso, sob o ponto
de vista da coerncia emprica de qualquer teoria do desenvolvimento, traz tona a
importncia do estudo daqueles pases que, durante os anos 1980, enfrentavam crises e
estancamento no processo de acumulao de capital. Afinal, faz sentido propor que o
conjunto de polticas econmicas em vigor nestes pases seja um terreno emprico
como um famlico barril de plvora. Tais descries costumam ser complementadas por descries dos
notveis progressos materiais sulistas, tipicamente marcadas por indisfarvel deslumbramento e
marcante conformismo poltico.
14
fecundo compreenso dos potenciais entraves acumulao, especialmente se for
diagnosticado que seus problemas tiveram origem sob a sombra de construtos
contrastantes com aqueles que predominavam entre os casos de sucesso. Reemergem,
aqui, os quatro candidatos sugeridos pela observao do diagrama da Figura I-1 e dos
grficos que a seguem: Argentina, Uruguai, Peru e El Salvador. E, neste caso, para a
maioria daqueles que buscaram algum pas que tipificasse o desmoronamento dos
processos latino-americanos de industrializao, no foi muito difcil optar pelo primeiro,
que inspirou a criao de volumosa bibliografia. Sintetizemos, ento, quais as razes que
garantiram Argentina mais visibilidade que a estes outros pases, examinando as
fragilidades de seus trs rivais enquanto casos de fracasso.
Inicialmente, vejamos o caso de El Salvador. Nos anos 1980, havia menos de 5
milhes de salvadorenhos, contingente que fragiliza o uso da trajetria deste pas como
inspirao ao debate sobre as estratgias de desenvolvimento mundo afora. Neste
contexto, questionamentos anlogos queles que costumam surgir a respeito de Hong-
Kong e Cingapura acabam suscitando a posio, fundamentada ou no, de que aquilo
que vale para uma unidade to pequena no costuma fazer sentido para pases da
envergadura do Mxico ou da frica do Sul. El Salvador ser, portanto, um caso pouco
visitado pelos estudos do desenvolvimento.
Analisemos, ento, os atrativos e fragilidades de um outro candidato, o Peru.
Naquilo que diz respeito ao peso demogrfico, ele no padece da mesma fragilidade de
El Salvador, contando 17 milhes de habitantes em 1980. Alm disto, o pas andino
dotado de amplas disponibilidades de recursos naturais, que luz de uma interpretao
tradicional se coadunaria com prosperidade econmica, o que sabemos que no ocorre,
atraindo nossa curiosidade. Contudo, o caso peruano padece de uma fragilidade
anloga quela que apontamos acima a respeito da Tailndia, qual seja, seu retardo
industrial cuja expresso sua ntida pobreza frente aos demais pases a quem as lies
deveriam se aplicar. O Grfico I-6 , abaixo, compara o PIB per capita peruano com o de
outros pases relevantes no contexto latino-americano, atestando esta dessimetria.
15
Grfico I-6vi
Examinemos ento o caso do Uruguai, que primeira vista rico em atributos que
reforam a relevncia do estudo da severa crise que atravessou durante os anos 1970 e
1980. Afinal, o Uruguai um pas excepcionalmente dotado de superfcies frteis, algo
que j primeira vista contrasta com as dificuldades econmicas que vitimam o pas,
atiando nossa curiosidade intelectual. Alm disto, alguns famosos sintomas do precoce
desenvolvimento social uruguaio, como o estatuto do divrcio e do voto feminino j em
1917, ou a notvel expanso do ensino pblico especialmente sob a social-democracia de
Jos Batlle y Ordez no parecem se coadunar com as dificuldades que acabaram
vitimando sua economia. E h ainda um outro atributo da conhecida Sua latino-
americana a reclamar ateno especializada no mbito dos estudos do desenvolvimento:
a perturbadora durao da semi-estagnao que vitimou sua economia por cinco ou seis
dcadas. Pois o Uruguai constitui caso paradigmtico de sociedade onde, apesar de em
princpios do sculo XX prevalecer um padro de vida elevado relativamente mdia
global, vigia na virada do milnio um nvel de renda nada mais que mediano.
Contudo, na contramo das supracitadas razes que realam nosso interesse pela
evoluo da economia uruguaia, incide sobre este pas o mesmo dilema de El Salvador a
respeito do peso populacional. Afinal, nos anos 1980 eram contabilizados apenas cerca
de 3 milhes de uruguaios, cerca da metade da populao ento reunida na cidade-estado
de Hong-Kong. Este dado neutraliza, decididamente, grande parte do interesse que
1975
1977
1979
1981
1983
1985
1987
1989
1991
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1997
1999
0
2.000
4.000
6.000
8.000
10.000
12.000
Comportamento do PIB do Peru em Comparao com Outros Pases Latino-Americanos, 1975-2000
Valores em US$ de Geary Khamis de 1990
Argentina
Brasil
Chile
Mxico
Peru
16
outras facetas charras despertam nos pesquisadores, redirecionando seu foco
Argentina.
Afinal, em ambas as margens do Rio da Prata o perodo posterior Segunda
Guerra foi marcado por uma longa semi-estagnao que as fez se distanciar
progressivamente dos pases ricos de que antes se faziam acompanhar, ao menos naquilo
que diz respeito aos indicadores de bem-estar material. Este malogro fica evidente no
Grfico I-5, logo adiante. Utilizando os valores histricos do PIB per capita de ambos os
pases, e comparando-os com uma mdia representativa de um vasto conjunto de pases
europeus ocidentais, observamos nitidamente que Uruguai e Argentina falharam
reincidentemente em acompanhar a trajetria do Velho Continente j a partir de meados
dos anos 1950.
Grfico I-5vii
O referido grfico sugere, com nitidez, que h uma letargia de largo termo que, no
caso destes dois pases, transcende em muito os limites da chamada Dcada Perdida.
E, se est claro que a crise argentina tem durao anloga uruguaia e se abate sobre
outra sociedade que comea o sculo numa posio relativamente afluente, tambm
verdade que esta ocorre igualmente sob um territrio marcado por uma dotao de
1900
1905
1910
1915
1920
1925
1930
1935
1940
1945
1950
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1965
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1975
1980
1985
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1995
2000
0
5.000
10.000
15.000
20.000
25.000
Comparao entre o PIB per capita de Argentina, Uruguai e Pases Europeus Selecionados, 1900-2000
Em US$ de Geary-Khamis de 1990.
Uruguai
Argentina
Mdia do PIB per capita de ustria, Sua, Dinamarca, Finlndia, Blgica, Frana, Alemanha, Itlia, Holanda, Noruega, Sucia e Reino Unido
17
recursos naturais por habitante praticamente sem par. Ao contrrio do Uruguai, contudo,
a Argentina no recai na fragilidade da exigidade populacional, pois conta com o peso
das 28 milhes de almas que a habitavam em 1980. E, por isto, acaba reclamando
primazia analtica em relao a todas as demais opes citadas.
Para dar fora a esta escolha, contamos com mais um dado de envergadura: dentre
todos os quarenta e quatro casos analisados, o PIB que evolui de forma mais
desfavorvel durante os anos 1980 o argentino. Ele se contrai 1,5% ao ano durante a
Dcada Perdida, enquanto no Peru, segunda economia mais afetada pela crise,
observada uma contrao ligeiramente menor, de 0,8% ao ano. Igualmente digno de
nota o fato de a Argentina ser, por volta de 1980, uma economia onde a
industrializao havia avanado quase tanto quanto em um pas do porte da Coria do
Sul ou do Mxico, apesar de estar em face de bvios obstculos sinalizando tendncias
regressivas no tecido produtivo.
Um outro fator de natureza simblica que pesa em prol da visibilidade argentina
ela ter provocado e perdido uma guerra contra a Gr-Bretanha em primrdios da dcada.
E, naturalmente, em seu contexto econmico delicado a derrota militar acentuava o
senso de decadncia geral, e realava o contraste com a opulncia perdida que
caracterizara seu j distante I Centenrio. Assim, a soma destas razes faz do ciclo de
crises atravessado pela Argentina nos anos 1980, etapa de um longussimo
estancamento costumeiramente aludido como desastre argentino, o principal
candidato a tipificar a m fase vivida ento pela Amrica Latina, em contraposio ao
bom momento das economias asiticas.
Em virtude da formidvel aderncia de suas histrias industriais na segunda
metade do sculo XX a tipos extremos de sucesso e fracasso, Argentina e Coria do Sul
so casos obrigatoriamente estudados e re-estudados quando o tema o
desenvolvimento econmico. Com efeito, em fins dos anos 1980 a prspera Repblica
da Coria era quase sempre, apesar de nem sempre, descrita como modelo de
extroverso e audcia comercial, caso notrio de sucesso de uma estratgia de
industrializao com nfase na concomitante insero exportadora nos mercados de
manufaturados. J a entorpecida Argentina havia se popularizado como um
contramodelo, falseando as teorias cepalinas e advertindo o mundo perifrico sobre
os vcios do industrialismo deliberado e do protecionismo.
Por breve perodo, durante o governo Menem, o caso argentino foi
costumeiramente alvo de reelaborao, atestando a capacidade de recuperao de um
18
pas economicamente beira da runa que, enveredando pela seara do livre-cambismo,
comeara j a colher resultados propensamente slidos. Contudo, o dbacle financeiro
do pas na virada do milnio imprimiu nova linearidade secular crise argentina,
revalidando-a como um contramodelo que comprovaria a inadequao do
intervencionismo.
Mas esta polarizao entre um caso de sucesso do laissez-faire e, de outro lado,
um contra-exemplo que supostamente aclararia os vcios do industrialismo no
mapeia completamente o debate acalorado que traz como insgnias o milagre coreano
e o desastre argentino. Afinal, nos debates sobre desenvolvimento h sempre uma
heterodoxia pronta a rever as sugestes do pensamento convencional. E, para esta,
temos concluses essencialmente contrrias, quais sejam, que a Coria do Sul progrediu
por executar polticas econmicas ativas, ao passo que a Argentina demonstra o
insucesso seja de medidas liberalizantes, ou de medidas intervencionistas mal-
conduzidas.
F) Da Fragilidade dos Modelos e Contramodelos aos nossos Objetivos Especficos:
Ainda hoje, contada quase uma dcada desde o retorno dos ventos aos moinhos do
Rio da Prata, e amortizado sensivelmente o ritmo da economia sul-coreana8, parcela
francamente majoritria dos analistas ainda costuma aludir s histrias industriais de
Coria do Sul e Argentina como arquetpicas, respectivamente, daquilo que serve como
modelo e daquilo que deve ser evitado em um pas perifrico e sub-industrializado. Seu
re-nivelamento quase sempre descrito com tons fatalistas, como algo desde muito
perenizado. E o debate que ainda se trava parece confinado, ento, eterna ciso entre
liberais e intervencionistas acerca de quais as polticas efetivamente aplicadas em cada
lugar, supondo de antemo que so elas que explicam o aprofundamento de uma
divergncia tida como progressiva, encontre ela hodiernamente amparo emprico ou no.
Hoje, Coria do Sul e Argentina muito se distanciaram dos antigos cenrios
marcados por extremos de vigor e apatia. Mas pela resiliente meno a ambos nestes
termos, no soa exagero afirmar que o milagre coreano se cristalizou, no mbito das
disputas terico-ideolgicas, como o perfeito avesso do desastre argentino, e vice
versa. Ambos povoam vivamente o acervo de nosso imaginrio poltico, e so ainda
freqentemente evocados como libis para as mais diversas contendas acadmicas e
8 O desempenho do PIB argentino tem sido muito positivo desde 2003, atingindo uma mdia anual de 7,6%
entre 2003-2010. J o desempenho da economia sul coreana no mesmo intervalo foi de 3,8% anuais.
19
poltico-distributivas. Seu emprego resiste, ainda que cada vez menos ancorado em
dados quaisquer, seno na funcionalidade retrica da meno a duas histrias contadas
com tons anedticos, cheias de simbolismo e com aceitao consagrada e quase
universal. A primeira delas, aquela que versa sobre um pas pauprrimo, de exguo
territrio e solapado pela guerra, que penetrou o crculo das economias avanadas
aps escolher as polticas certas. A segunda, aquela que narra como um pas rico, com
pradarias incrivelmente prdigas, clima mediterrneo e populao culta e politizada
acabou tombando ao rol dos pases pobres mediante a aplicao de polticas
equivocadas.
Para quem levanta ou acata o contramodelo argentino, pouco desconforto
provocado pelo fato de este pas ser, no ano de 2010, o mais afluente dentre os latino-
americanos9, ou o fato de sua renda per capita superar em cerca de 80% aquela que
prevalece na elogiada Tailndia.10
Tampouco costumam causar embarao seus notveis
indicadores sociais que, se bem que menos favorveis que aqueles exibidos pela Coria
do Sul, a posicionam muito frente da maioria dos pases de industrializao tardia,
inclusive orientais. J para quem revalida o modelo sul-coreano, no costuma acender
inquietao que, tambm neste ano de 2010, sua renda per capita ainda no exceda 63%
daquela vigente nos Estados Unidos.11
Nem mesmo quando tambm se sabe que, desde
2003, a Coria do Sul tem crescido sistematicamente menos que a maioria dos pases
sul-americanos, inclusive a estigmatizada Argentina.
Mas o objetivo desta nfase nestes dados contra-instintivos no desafiar a noo
amplamente difundida de que houve, sim, um paradigmtico processo de acumulao de
capital na Coria do Sul, fenmeno que se contraporia ao frustrante progresso material
logrado concomitantemente na Argentina. Pois esta noo popular , sem lugar dvida,
profundamente coerente com os fatos. Mas isto no nos permite, ainda assim, deixar
enfatizar que teremos que lidar objetivamente, se quisermos chegar a algum lugar, com
dois casos de boa e m ventura a tal ponto sedimentados em nosso repertrio terico-
ideolgico, que se tornou comum que negligencissemos alguns questionamentos que
deveriam ser constantes e obrigatrios.
9 Segundo o FMI, a renda per capita argentina em 2010 se situa em US$ 15.603, enquanto a chilena
marca US$ 14.982 e a uruguaia US$ 14.382 (em valores corrigidos pela Paridade do Poder de Compra). 10
Segundo o FMI, temos US$ 15.603 versus US$ 8.643. 11
Segundo dados do FMI, com valores corrigidos pelo mtodo da Paridade do Poder de Compra, temos
US$ 47.123 versus US$ 29.791.
20
Pois a temtica do milagre coreano e do desastre argentino nos assedia com os
mesmos impulsos que desafiam um historiador social que, ao perseguir objetividade na
elucidao de um evento pretrito, tope com o aparente protagonismo de um heri
popular, de representao sempre acompanhada por um anti-heri, com fama
igualmente consolidada. Mesmo sem discordar frontalmente dos atributos comumente
associados a tais personagens, virtuosos ou viciosos, no lhe resta alternativa seno
question-los. E isto no deve confundir-se com negar seus traos folclricos a priori,
mas insistir em discutir o que realmente os embasa. Assim, se nosso objetivo
compreender os diferentes rumos tomados pela sia Oriental e pela Amrica Ibrica nos
1980, e para tal cabe aprofundar nosso conhecimento sobre as histrias econmicas
recentes de Coria do Sul e Argentina, precisaremos demarcar objetivamente o desnvel
aberto entre estes dois pases. Aonde logrou efetivamente chegar a Coria do Sul? De
que ponto ela realmente partiu? E a Argentina? Aonde mesmo que ela havia chegado
durante os anos 1940? Quo objetivamente profunda foi sua decadncia? Faz sentido
pensar que ela , por princpio, definitiva? Qual o ponto de partida da industrializao
em ambos os casos? Como podemos caracterizar o quadro material de ambos naquele
ponto e hoje? Somente tal abordagem pode nos livras da superficialidade oca dos heris
e contra-heris.
Prosseguindo nesta busca por objetividade, precisaremos questionar uma opo
metodolgica eleita ou no mnimo referendada pela imensa maioria dos
pesquisadores que tratam do referido re-nivelamento. Trata-se do juzo segundo o qual
desempenho destas economias subdesenvolvidas necessariamente explicado por
variveis endgenas. Ou seja, precisaremos questionar a suposio, com fortes
desdobramentos para nossa pesquisa, de que as escolhas realizadas internamente,
abstradas as circunstncias internacionais, necessariamente explicam o ritmo do
processo de acumulao de capital.
Afinal, as economias destes pases, que para alguns seriam caracterizadas pela
alcunha de perifricas, so visivelmente afetadas por variveis que escapam sua
dinmica interna. Com efeito, fatores governados por dinmicas completamente
exgenas desde sua tica, como as flutuaes nos preos internacionais dos produtos de
exportao e importao, tm consensualmente implicaes severas sobre o
desempenho de curto prazo das economias no-industrializadas. De forma anloga, as
polticas comerciais dos principais pases, priorizando as compras em alguns mercados
em detrimentos de outros, assumem poder explicativo igualmente robusto naquilo que
21
concerne ao desempenho de mdio e longo prazos destas economias. E, para alm dos
fluxos comerciais, devemos destacar a relevncia do nvel internacional de liquidez
financeira, que determina no curto prazo o potencial de absoro de emprstimos
externos por estes pases, tipicamente dotados de sistemas financeiros imaturos.
Tambm no devemos negligenciar a importncia dos fluxos voluntrios de capitais,
assim como as transferncias unilaterais oriundas das grandes potncias, cuja
centralidade para o equilbrio de mdio e longo prazos dos Balanos de Pagamentos
destas economias no raras vezes eclipsa a relevncia de suas contas Comercial e de
Servios.
Por que razo deveramos assumir, mesmo em face destas advertncias, tal qual
faz a imensa maioria da bibliografia que adiante percorreremos, que o dinamismo sul-
coreano e o estancamento argentino possuem bases necessariamente endgenas? No
parece nada sensato, por exemplo, obviarmos uma discusso aprofundada sobre os
profundos efeitos dos dois Choques do Petrleo, em 1973 e 1979-81, para o equilbrio
externo de ambas as economias. Tampouco podemos descurar das drsticas
conseqncias do sobressalto observado nas taxas norte-americanas de juro,
especialmente a partir de 1979. Pois estes dois choques de natureza exgena estiveram
nitidamente associados seqncia de moratrias latino-americanas, a comear pela
mexicana em 1982, sem ter produzido equivalente efeito desestabilizador nas
economias do Continente Asitico. Quanto a isto, por que razes a Coria do Sul
escapou inclume s Crises da Dvida? Faz sentido confinar esta explicao dimenso
endgena, explorando a composio prvia de seu endividamento externo, ou a oferta
de divisas garantida pelo sucesso de suas polticas exportadoras, e excluir a priori a
anlise das polticas financeiras regionais do Japo? Ser que o sucesso sul-coreano na
rolagem de sua gigantesca dvida no guarda qualquer relao, por definio e de
antemo, com a forma pela qual o Japo enxergava e tratava sua hinterlndia industrial?
Estamos a tal ponto convencidos da irrelevncia das finanas japonesas para a Coria do
Sul, que podemos descartar desde j a anlise deste fator exgeno? Claro que no.
Ao contrrio, temos todas as razes para sustentar que a recusa s explicaes
exgenas constituiu uma grave omisso metodolgica, responsvel pelo grosso da
mistificao que assola este relevante debate. Com efeito, a nica forma de fazer com
que os modelos e os contramodelos cumpram seu mandato explicativo qual seja,
o de fornecer sugestes analticas para a compreenso de um conjunto maior de
ocorrncias menos extremas que se almeja explicar , com alguma obstinao,
22
insistir em contextualiz-los. E, neste esforo, um crucial passo traar o quadro de
interferncias oriundas do plano internacional, assim como os limites e possibilidades a
ele associados, em que se inscrevem as escolhas efetivamente abertas a cada pas
analisado.
Ao mesmo tempo, temos uma segunda opo metodolgica tradicional a discutir.
Trata-se da preferncia por considerar a dinmica econmica como um fenmeno que
independe do processo poltico. Ora, as polticas econmicas no so delineadas
abstratamente. Suas conseqncias provveis despertam reaes capazes de dificultar,
obstaculizar e at reverter sua execuo. Neste contexto, o poder que um governo
efetivamente possui de executar quaisquer polticas econmicas acaba sendo
visivelmente cerceado pelas atribulaes originadas nas arenas polticas. E, se
sabidamente assim, como considerar as escolhas certas sem ter em vista as escolhas
efetivamente disponveis em funo da realidade poltica de cada pas?
Durante os anos 1980, Coria do Sul e Argentina foram pases marcados por
desenvolvimentos polticos bastante heterogneos. No caso da primeira, a dcada de
setenta termina com o assassinato do General Park Chung Hee, em 1979, episdio ao
qual se segue um novo golpe que conduz mais um militar ao poder, o General Chun
Doo-Hwan. Seu governo estende-se at 1988, e ele sucedido por um terceiro general,
Roh Tae-Woo, que fica no poder at 1993. Ou seja, o perodo militar na Coria do Sul
preenche o longo intervalo entre 1961 e 1993, e sob apenas trs lideranas relevantes.
No de se estranhar que o projeto econmico erigido sob seu signo, comumente
referido pelo cognome de industrializao puxada por exportaes, tenha sido levado
at as ltimas conseqncias, pouco contando a substancial oposio poltica que muitas
de suas conseqncias diretas despertavam.
J no caso da Argentina, o retorno dos civis ao poder muito mais precoce. Ral
Alfonsn toma do lugar do General Bignone j em 1983, de modo que a transio
poltica coincide exatamente com o pice da crise econmica internacional. A um s
turno, despencavam sob a jovem democracia uma crise fiscal terminal, a emergncia de
um processo hiper-inflacionrio, antigos anseios justicialistas por repartio da renda
nacional, alm da necessidade de voltar a patrocinar a concluso de seu errtico
processo de industrializao. A todos estes fatores, devemos somar ainda o substancial
desgaste internacional em funo do recente fiasco nas Ilhas Malvinas. Tambm no
surpreende que, sob o fogo cruzado de demandas to multifacetadas, o novo governo
argentino demonstrasse paralisia ante os severos reveses da economia internacional.
23
Feitas todas estas consideraes, cumpre estabelecer que o objetivo especfico
deste texto discutir as histrias industriais de Coria do Sul e Argentina, inscrevendo
no contexto destas o auge de sua longa divergncia, os anos 1980. Cumpre ressaltar,
para compreendermos suas trajetrias especficas nessa dcada, teremos que dilatar
tanto quanto parecer necessrio o escopo temporal analisado, de modo a apreender
tendncias e processos mais duradouros. Trataremos, nesse esprito, a divergncia
coreano-argentina como segmentos de complexas histrias sociais, inscritas em um
quadro internacional riqussimo em estmulos e desafios.
Como frisamos, enxergamos seus retrospectos como sugestivos da bifurcao que
identificamos entre um grupo maior de pases, qual seja, o conjunto dos pases latino-
americanos e aquele composto pelos pases orientais de industrializao tardia.
Esperamos, assim, que ao visitarmos estes dois casos tenhamos concluses fecundas
para a compreenso do desnivelamento entre estes conjuntos mais extensos. No entanto,
pelas razes que j destacamos, assumimos de antemo ser imperiosa a contextualizao
de cada intricada histria industrial.
24
CAPTULO I A Real Dimenso de um Veloz
Re-nivelamento: os dados
econmicos e sociais de Coria
do Sul e Argentina numa
perspectiva histrico-
comparada
1.1) Introduo, p.25
1.2) O Contraste entre o
Comportamento das Economias
de Coria do Sul e Argentina
durante a Dcada de 1980, p.28
1.3) Coria e Argentina:
Indicadores Econmicos no
Longo Prazo, p.52
1.4) Coria e Argentina:
Indicadores Demogrficos e
Sociais desde 1980, p.69
25
1.1 - Introduo:
Em Outubro de 1988, a cidade de Seul sediou os Jogos Olmpicos de Vero, e,
durante o evento, grande parte das atenes da imprensa ocidental esteve direcionada para
a Coria do Sul. Como caracterstico durante as vrias edies dos Jogos, o noticirio
estritamente esportivo costumava ser suplementado por uma cobertura mais geral sobre o
pas-sede, destacando suas peculiaridades culturais, histricas e econmicas. E, neste
contexto, as partidas representavam um convite popularizao da emblemtica
transformao econmico-produtiva vivenciada desde alguns anos por este pas. A Coria
do Sul era ento descrita como um pas que entrava definitivamente no clube dos ricos,
deixando para trs um passado relativamente recente de pobreza e beligerncia.
Paralelamente, a delegao sul-coreana obtm um excelente resultado nas competies,
alcanando 12 medalhas de ouro, feito impressionante para um pas que conquistara sua
primeira vitria olmpica somente em 1976, doze anos antes, em Montreal. Mas nem todos
os pases tinham tanto a comemorar.
As Olimpadas de Seul terminaram sem que nenhum membro da delegao argentina
fosse laureado com uma medalha de ouro. Na realidade, o resultado obtido na Coria se
insere em um longussimo perodo em que o hino nacional argentino esteve ausente das
premiaes olmpicas. Pois entre as edies de Melbourne, em 1956, e Sidney, em 2000,
nenhuma medalha olmpica dourada rumou para este pas. No longo vo de regresso da
sia a Buenos Aires, ao fim das disputas, provvel que vrios dos inegavelmente
talentosos atletas da delegao argentina, como a tenista laureada com a prata, Grabriela
Sabatini, cultivassem ainda alguma esperana de, no correr de suas carreiras, ajudar seu
pas a repetir os alvissareiros resultados por ele j alcanados em um passado que ora se
distanciava. No entanto, faanhas como as de 1948, em Londres, onde a Argentina
contabilizou sete medalhas e trs de ouro, teriam esperar at Atenas, em 2004, edio na
qual a Argentina finalmente angariou duas novas medalhas douradas. Para aquela gerao
de atletas, assim, o anseio de feitos olmpicos extraordinrios jamais seria cumprido. E a
festa terminava com o inevitvel retorno a seu pas de origem, ento convulsionado por
uma severssima etapa de sua crnica crise econmica, ento alardeada pela imprensa
internacional como o desastre argentino: a converso de um pas rico e promissor em um
pas empobrecido e sem perspectivas.
Neste captulo visitaremos a informao estatstica que amparava as duas noes
acima aludidas, quais sejam:
26
i. a de que a Coria do Sul descolava-se da maioria dos demais pases
subdesenvolvidos, adquirindo, nos mais diversos campos da atividade humana, e em seus
indicadores materiais gerais, feies crescentemente comparveis quelas exibidas pelos
pases de industrializao precoce, e,
ii. a de que a Argentina atravessava um ntido processo de involuo econmica,
fenmeno que acompanhado por diversos sintomas de declnio em vrios ramos da
atuao humana.
O caminho que percorreremos ser o seguinte. Primeiramente, na Seo 1.2,
tomaremos como ponto de partida o ano de 1980, incio de um decnio que ficar
conhecido, na Amrica Latina, pela alcunha de Dcada Perdida, ao passo que no Oriente
muitos davam conta de um Milagre Asitico. Contraporemos, naquilo que diz respeito
referida dcada, a evoluo dos principais indicadores econmicos sul-coreanos e
argentinos. E ficar evidente que, ao passo que na Coria do Sul o ritmo do processo de
acumulao permitiu que seus indicadores econmicos gerais fossem progressivamente se
acercando daqueles vigentes nos pases de industrializao mais antiga, na Argentina um
caminho essencialmente oposto era trilhado. Ou seja, uma longa paralisia no processo de
acumulao se materializava no progressivo distanciamento entre os indicadores
econmicos argentinos e aqueles que prevalecem nos pases mais afluentes.
Como sugerido acima, a etapa adversa do capitalismo argentino no se inicia apenas
em 1980. A bem da verdade, o processo de acumulao de capital neste pas parece ter se
desencaminhado muito antes, aps o desfecho da II Guerra Mundial. O mesmo pode ser
afirmado a propsito da economia sul-coreana: seu bom momento no se inicia em 1980.
Por isto, na Seo 1.3 alargaremos nosso horizonte temporal, apresentando dados gerais
acerca do comportamento secular de ambas as economias, entre 1910 e 2010.
Como veremos, na Coria do Sul a boa fase comea tardiamente em relao m
fase da economia argentina. Enquanto a primeira inicia seu longo ciclo de crescimento
apenas em princpios dos anos 1960, a ltima entra em sua longa paralisia j a partir do
incio dos anos 1950. E somente com o fim do milnio que a roda da fortuna novamente
girar. Nestes anos, uma conhecida seqncia de crises financeiras volta a perturbar os
principais pases perifricos: o Mxico, em 1994, a Coria e vrios outros pases da sia
Litornea, em 1997, a Rssia, em 1998, o Brasil, em 1999, e finalmente a Argentina em
2001-2. A partir da assim chamada Crise Asitica de 1997, a economia sul-coreana no
mais atingiu o ritmo de crescimento econmico que a caracterizou nas trs dcadas
antecedentes. Na Argentina, ao seu turno, a crise cambial e a moratria por ela gestada, em
27
2001, acabam coincidindo com um ponto de inflexo no comportamento de seu PIB. A
partir de 2003, como evidenciar a anlise dos indicadores adiante dispostos, o capitalismo
argentino aparentemente recupera o dinamismo das primeiras dcadas do sculo XX. E,
como resultado, o PIB do pas austral evolui durante a dcada passada a um ritmo
nitidamente superior ao sul-coreano.
Ao alargarmos o perodo histrico coberto, para alm de comparar as duas economias
analisadas, tentaremos efetuar comparaes entre os resultados exibidos por elas e por
outras economias ao longo do sculo. Assim o fazendo, esperamos ser capazes de datar os
movimentos de convergncia e divergncia entre ambas e os pases que lideram o processo
de acumulao. Paralelamente, desejamos caracterizar a situao de ambos os pases no
incio e ao fim do perodo coberto, esclarecendo os seguintes questionamentos. O quo
desfavorvel era o quadro material vigente na Coria do Sul antes da II Guerra? E o quo
favorvel, em um comparativo internacional, ele havia se tornado em fins do sculo? Alm
disto, o quo favorvel era a realidade argentina antes da II Guerra? E, s vsperas do
milnio, o quo desfavorvel era sua situao quando contraposta s demais naes?
Mais adiante, na Seo 1.4, visitaremos alguns indicadores demogrficos e sociais a
respeito dos dois casos estudados. Esperamos, com eles, apurar o quanto da ascenso sul-
coreana e da decadncia argentina se traduziu em alteraes nas condies objetivas de
vida de ambos os povos. Ficar claro, pela anlise dos grficos selecionados, que a Coria
do Sul logrou, sim, uma impressionante elevao dos nveis de vida de seus cidados
durante sua escalada econmica. Ser evidente, outrossim, que a runa econmica
argentina preservou a notoriedade de alguns seus indicadores sociais, especialmente
quando contrapomos sua realidade quela dos demais pases de industrializao tardia.
28
1.2 - O Contraste entre o Comportamento das Economias de Coria do Sul e Argentina durante a Dcada de 1980:
Na introduo deste trabalho, insistimos que as assimetrias de ritmo no processo de
acumulao capitalista mundo afora instigam um amplo debate entre os analistas do
desenvolvimento, levando seleo entre as vrias naes de casos de estudo que
supostamente tipifiquem sucesso e fracasso. Como tambm argumentamos, Coria do
Sul e Argentina so costumeiramente evocados como arqutipos adequados a simbolizar,
respectivamente, ventura e desventura neste processo planetrio de acumulao de capital.
Nesta seo, nos debruaremos sobre alguns indicadores estattiscos gerais que do suporte
ao uso destes dois pases enquanto casos opostos. Quanto a isto, nosso objetivo especfico
confrontar, em linhas gerais, o comportamento das economias argentina e sul-coreana
durante os anos 1980, momento em que a meno a ambos os pases em termos antitticos
se populariza nos meios acadmicos.
Como ponto de partida, temos um trio de estatsticas fortemente indicativas do ritmo
do processo de acumulao em cada pas, quais sejam, a taxa de crescimento anual do
Produto Interno Bruto, o ritmo da Formao Bruta de Capital Fixo e o nvel de
Desemprego Aberto. Em tese, medida que mais e mais capital acumulado dentro das
fronteiras de um pas, maior ser a soma do valor dos bens e servios que pode ser criada
em seu interior. Assim, a taxa de crescimento do PIB, estatstica que almeja mensurar esta
ltima soma, uma medida indireta convincente para captarmos o quo veloz a
acumulao em um dado lugar. De modo anlogo, parece razovel que quanto mais capital
acumulado em um territrio, mais e mais mquinas, equipamentos, instalaes de infra-
estrutura ou edifcios sero nele provavelmente acumulados. Por isto, a Formao Bruta de
Capital Fixo pode ser apontada como um indicador fortemente correlacionado ao avano
na acumulao de capital. Paralelamente, sabemos que o capital instalado no tem qualquer
serventia sem que trabalhadores o utilizem como potencializador de suas capacidades e
energias. Por isto, uma elevao do nvel de emprego costuma ocorrer simultaneamente a
expanses suficientemente robustas no nvel de capital acumulado.
No Grfico 1.2-1, logo abaixo, temos o acrscimo anual no Produto Interno Bruto
medido nestes dois pases. Salta aos olhos de qualquer um que examine este grfico que o
PIB argentino regride em nada menos do que cinco dos dez anos cobertos. Paralelamente,
fortes taxas de expanso, no raras vezes superiores a 10%, caracterizavam o
comportamento do PIB sul-coreano. Ambas as economias so afetadas negativamente pela
29
recesso mundial de 1980, e a sul-coreana ostenta inclusive um desempenho pior que a
argentina neste ano. No obstante, ao longo do restante da dcada o desempenho sul-
coreano foi constantemente forte, enquanto a economia argentina alterna expanses
tmidas e contraes severas. Na realidade, sua economia patina durante toda a dcada, a
ponto de o PIB registrado em 1989 ser 4% inferior quele registrado em 1980. A Coria do
Sul, ao seu turno, emana sinais que sugerem o acmulo de capital a taxas impressionantes,
de modo que seu PIB de 1989 108,6% superior ao registrado logo no incio do decnio.
Grfico 1.2-1viii
J no Grfico 1.2-2, adiante, contraposto o ritmo de acmulo de bens de capital
em ambos os pases, incluindo a cobertura das eventuais depreciaes. No caso da Coria
do Sul, possvel observar uma contrao no valor auferido durante a recesso que atinge
sua economia nos primrdios da dcada. Esta contrao, inclusive, invade o ano de 1982,
quando o PIB sul-coreano j havia voltado a crescer. No restante da dcada, contudo,
podemos observar fortes taxas de formao bruta de capital fixo, chegando a atingir 18%
em 1987. Na Argentina, ao contrrio, a formao bruta de capital fixo negativa em nada
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
-10
-5
0
5
10
15
1,45
-6,6 -4,94
3,012,65
-4,35
5,72
2,17
-2,63 -4,49-1,5
6,2
7,3
10,8
8,1
6,8
10,611,2
10,6
6,8
Ritmo de Crescimento das Economias de Argentina e Coria do Sul - 1980-1989
Taxas Anuais de Crescimento do PIB, em %
Argentina Coria do Sul
30
menos que seis dos dez anos cobertos pelo grfico, intervalo em que contraes que
beiraram 20% e 22% so observadas, respectivamente, em 1982 e 89.
Grfico 1.2-2ix
Grfico 1.2-3x
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
-25
-20
-15
-10
-5
0
5
10
15
20
25
8,33
-14,98
-19,94
0,4
-4,13
-14,1
11,04 12,94
-3,52
-21,6
-10,72 -3,09
11,12
17,45
10,86
5,27
11,53
18,09
13,62
15,99
Evoluo da Formao Bruta de Capital Fixo na Coria do Sul e na Argentina - 1980-1989
Taxas Anuais de Crescimento, em %
Argentina Coria do Sul
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
2,6
4,6
5,3
4,6 4,6
6,1
5,65,9
6,3
7,7
5,2
4,5 4,44,1
3,84
3,8
3,1
2,5 2,6
Evoluo do Desemprego na Argentina e na Coria do Sul - 1980-1989
Taxas Mdias Anuais de Desemprego Aberto, em %
Argentina Coria do Sul
31
No Grfico 1.2-3, por sua vez, podemos acompanhar a evoluo do desemprego
aberto nos dois pases de que nos ocupamos. Como expresso direta do permanente
dinamismo do processo de acumulao de capital na Coria do Sul, um contingente cada
vez mais vasto de trabalhadores foi mobilizado para o processo de produo. Assim, a taxa
de desemprego aberto ali medida logrou um ritmo cadente a partir de 1981. Na Argentina,
ao contrrio, a taxa de desemprego evolui desfavoravelmente ao longo de todo decnio.
Desta maneira, durante as trs contraes do PIB ao longo da dcada em 1980-82, em
1985 e em 1988-89 , a Populao Economicamente Ativa argentina ser confrontada
com fortes elevaes nesta est