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Nocturno Indiano Antonio Tabucchi Romance Corrigido Nocturno Indiano 3ª edição Tradução de Maria Emí l i a Marques Mano Quetzal Lisboa / 1989 Titulo da edição original: Notturno indiano Capa e arranjo gráfico: Rogério Petinga 1984, Sellerio editore, via Siracusa 50, Palermo Direitos reservados para a publicação em Língua portuguesa: Quetzal Editores Rua Sanches Coelho, 3. 9. " Esq. 1600 Lisboa Telefones: 761397/762593 Telex: 65732 PEGEST P Composto e impresso por: Tipografia Guerra, Viseu Depósito legal n. " 83948

Nocturno Indiano Antonio Tabucchi - FILOSÓFICA …...Nocturno Indiano Antonio Tabucchi Romance Corrigido Nocturno Indiano 3ª edição Tradução de Maria Emília Marques Mano Quetzal

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Page 1: Nocturno Indiano Antonio Tabucchi - FILOSÓFICA …...Nocturno Indiano Antonio Tabucchi Romance Corrigido Nocturno Indiano 3ª edição Tradução de Maria Emília Marques Mano Quetzal

Noc tu r no Ind i a noAnton i o Tabucch iRomance

Cor r i g i d o

Noc tu r no Ind i a no3ª ed i ção

Tradução de Mar i a Emí l i a Marques ManoQuetza lL i sboa / 1989 Ti t u l o da ed i ção or i g i n a l : Not t u r n o i nd i a noCapa e ar r an j o grá f i c o : Rogér i o Pet i n ga1984, Se l l e r i o ed i t o r e , v i a Si r a cusa 50, Pa le rmo Di re i t o s rese r v ados para a pub l i c a ç ão em L íngua por t u guesa : Quetza l Ed i t o r e sRua Sanches Coe lho , 3. 9. " Esq. 1600 L i sboaTe le f o nes : 761397/762593 Te lex : 65732 PEGEST PCompos to e imp res so por : T ipog r a f i a Guer r a , ViseuDepós i t o l ega l n. " 83948

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As pessoas que dormem mal parecem ser mais ou menos cu l padas :o que fazem e las? Tornam a no i t e presen t e

Maur i c e Blancho t

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NOTAEste l i v r o , a lém de uma in són i a , é uma v i agem. A insón i a per t e n ce a quem esc r e veu o l i v r o , a v i agem a quem a fez . Porém, como também eu t i v e de perco r r e r os mesmos luga r e s que o pro t agon i s t a des t a h i s t ó r i a perco r r e u , parece- me opor t u no fo r nece r um breve índ i c e dos mesmos. Não se i bem se para i s so con t r i b u i u a i l u s ão de que um repo r t ó r i o topog r á f i c o , com a fo r ç a que o rea l possu i , pudesse dar l uz a es te Noc tu r no onde se procu r a uma sombra , ou a i r r a c i o n a l con j e c t u r a de que a lgum amante de i t i n e r á r i o s i ncong r uen t e s venha a pode r um d ia u t i l i z á - l o como gu i a .

A. T

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Índ i c e dos luga r e s des t e l i v r o1. Kha ju r a ho Hote l . Suk l a j i St r ee t , sem número , Bomba im.

2. Breach Candy Hosp i t a l . Bhu l aba i Desa i Road, Bomba im. 3. Ta j Maha l In t e r- Con t i n en t a l Hote l . Gateway o f Ind i a ,

Bomba im. 4. Rai lways Ret i r i n g Rooms. Vic t o r i a Sta t i o n ; Cent r a l

Rai lway , Bomba im. Dorm ida com b i l h e t e de combo io vá l i d o ou com o Ind r a i l Pass .

5. Ta j Coromande l Hote l . 5 Nungambakkam Road, Madras t a . 6. Theosoph i c a l Soc i e t y . 12 Adya r Road, Adya r , Madras t a .

7. Autobus- Stop . Est r ada Madras t a- Manga l o r e , ce r ca de 50 km de Manga l o r e , l oca l i d a d e desconhec i d a .

8. Arceb i s p ado e Colég i o de S. Boaven t u r a . Est r ada de Calangu t e- Pana j i , ve l ha Goa, Goa.

9. Zuar i Hote l . Swatan t r y a Path , sem número , Vasco da Gama, Goa.

10. Pra i a de Calangu t e . Cerca de 20 km de Pana j i , Goa. 11 . Mandov i Hote l . 28 Bandodka r Marg , Pana j i , Goa.

12. Obero i Hote l . Bogma lo Beach, Goa.

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Pr ime i r a Par t e

O cho fe r de táx i usava pêra , uma redez i n ha no cabe l o e um rab i c ho a tado com uma f i t a branca . Pense i que fosse um s i kh , porque o meu gu i a desc r e v i a- o exac t amen t e ass im. O meu gu i a i n t i t u l a v a- se: Ind i a , a t r a ve l su r v i v a l k i t , t i n h a- o comprado em Lond res , mais por cu r i o s i d a de do que por qua l que r ou t r a co i s a , porque fo r nec i a sob re a Índ i a i n f o rmações bas t an t e b i za r r a s e, à pr ime i r a v i s t a , supé r f l u a s . Só mais ta r de me dar i a con t a da sua u t i l i d a d e . O homem gu ia va depres sa de mais para o meu gos t o e tocava a buz i na com fú r i a . Pareceu- me que roçava os peões de propós i t o , com um sor r i s o inde f i n í v e l que não me agradava . Na mão d i r e i t a usava uma luva pre t a e também i s t o não me agradou . Quando meteu por Mar i ne Dr i v e pareceu- me aca lma r- se e a l i n h ou t r anqu i l amen t e numa das f i l a s13do t r ân s i t o , do lado do mar . Com a mão en l u vada ind i c o u as pa lme i r a s ao l ongo do mar e do arco do go l f o . - Al i é Trobay , d i s se , e à nossa f r en t e f i c a a I l h a de Elephan t a , mas não se vê. Com ce r t e z a há-de que re r v i s i t á - l a , os barcos par t em de hora a hora do Gateway o f Ind i a " .

Pergun t e i - lhe porque es ta va a perco r r e r Mar i r Dr i v e . Não conhec i a Bomba im, mas procu r a va segu i r o seu percu r s o no mapaz i nho que t i n h a em c ima dos joe l h o s . Os meus pon tos de re f e r ê n c i a eram Malaba r Hi l l e o Chor , o mercado dos lad r ões . O meu ho te l f i c a v a en t r e esses do i s pon tos e, para lá chega r , não era prec i s o perco r r e r Mar i ne Dr i v e . Estávamos a segu i r na d i r e c ção opos t a .

O ho te l que me ind i c o u f i c a num ba i r r o mise rá ve l , d i s se a fave lmen t e . - a mercado r i a é de má qua l i d a de , os tu r i s t a s que vêm a Bomba im pe l a pr ime i r a vez vão para r a luga r e s pouco recomendáve i s , l evo- o para um ho te l mais próp r i o para uma pessoa como o senho r " . Cusp i u pe l a j ane l a e p i s cou o o lho : nE com mercado r i a de pr ime i r a c l a s se Ex ib i u um sor r i s o v i s co so de grande cump l i c i d a de o que me agradou a inda menos. - Pare aqu i " , mande i , imed i a t amen t e . Ele vo l t o u- se e o lhou para mim com ar ser v i l . - Mas aqu i não posso , d i s se , há o t r ân s i t o . Então desço na mesma, pro f e r i ab r i n do a por t a e segu rando- a bem.

Ele t r a vou bruscamen te e começou uma a lga r a v i a d a numa l í n g ua

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que dev i a ser o mara t h i . T inha um ar fu r i b u ndo e cre i o que as pa l a v r a s que s i b i l a v a en t r e den tes não dev i am ser das mais educadas , mas não me impo r t e i nada. Levava comigo apenas

14uma pequena mala que t i n h a ao meu lado , por i s so nem seque r fo i prec i s o sa i r para me dar a bagagem. Deixe i- l he uma no ta de cem rup i a s e desc i para o enorme passe i o de Mar i ne Dr i v e ; na pra i a hav i a uma fes t a re l i g i o s a ou uma fe i r a , sabe- se lá , com uma grande mul t i d ã o ap i nhada em f r en t e de qua l que r co i s a que não consegu i d i s t i n g u i r . ao longo do mar hav i a vagabundos de i t a do s no paredão , miúdos que vend i am qu i nqu i l h a r i a , mend igos . Hav i a também uma f i l a de r i c k s baw a moto r , sa l t e i para den t r o de um cub í c u l o amare l o l i g ado a uma moto re t a e gr i t e i ao homenz i nho a rua do meu ho te l . Ele car r e gou no peda l de ar r anque e par t i u a toda a mecha, en f i a n do- se no t r ân s i t o .

O Ba i r r o das Gaio l a s era mui t o p io r do que eu imag i na r a . Conhec i a- o a t r a vé s de a lgumas fo t og r a f i a s de um fo t óg r a f o cé l eb r e e pensava es ta r prepa r ado para a misé r i a humana, mas as fo t og r a f i a s fecham o v i s í v e l num rec t ângu l o . O v i s í v e l sem moldu r a é sempre uma co i s a d i f e r e n t e . E depo i s aque l e v i s í v e l t i n ha um che i r o demas i ado fo r t e . Melho r d i zendo , mui t o s che i r o s .

Quando en t r ámos no ba i r r o ca í a o crepúscu l o e, o tempo de perco r r e r uma rua , de repen t e , como acon t e ce nos t r óp i c o s , ca i u a no i t e . Uma grande par t e das cons t r u ç ões do Ba i r r o das Gaio l a s é de made i r a e de es te i r a s . As pros t i t u t a s es tão em caso t a s de tábuas descon j un t a da s , com a cabeça de fo r a a t r a vé s de um pos t i g o . Algumas daque l a s caso t a s eram pouco maio r e s do que a guar i t a de uma sen t i n e l a . E depo i s hav i a bar r a ca s e cor t i n a s de fa r r a po s , ta l v e z l o j a s ou ou t r a s ac t i v i d a de s15comerc i a i s , i l um i n adas com candee i r o s de pe t r ó l e o , d ian t e das qua i s hav i a magotes de gen te . Mas o ho te l Kha ju r a ho t i n ha uma pequena tabu l e t a i l um i n ada e f i c a v a quase à esqu i na de uma rua com ed i f í c i o s em cons t r u ç ão . O ves t í b u l o , se ass im se pode chamar , t i n h a um aspec t o equ í v o co sem ser sórd i d o . Era uma sa l a na penumbra com um ba l cão a l t o como os ba l c ões dos pubs ing l e s e s , de cada lado do ba l cão hav i a do i s aba j u r e s verme l hos e a t r á s es tava uma mulhe r de idade . Ves t i a um sar i v i s t o s o e t i n h a as unhas p in tadas de azu l , pe l o aspec t o pod i a ser europe i a , embora usasse na tes t a um dos mui t o s s i na i s das mulhe r e s i nd i a nas . Most r e i - lhe o meu passapo r t e e d i s se que t i n h a fe i t o a rese r v a por te l e g r ama .

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Ela fez um ges t o de assen t imen t o e pôs- se a cop i a r os meus dados de iden t i f i c a ç ã o com os tens i v a d i l i g ê n c i a , depo i s deu-me a f i c h a para ass i na r .

Com ou sem casa- de- banho?", pergun t o u- me, e espec i f i c o u os preços .

Esco l h i o qua r t o com casa- de-banho. Pareceu- me que a pronúnc i a da recepc i o n i s t a t i n h a um l i g e i r o so taque amer i c ano , mas não apro f unde i .

Des t i n ou- me o qua r t o e deu-me a chave . O por t a- chaves era de ce l u l ó i d e t r an spa r en t e com uma deca l c oman i a den t r o a cond i z e r com o ho te l . - Quer j an t a r? , pergun t o u- me. Olhava- me com descon f i a n ç a . Perceb i que o loca l não era f r equen t a do por oc i den t a i s . Era ev i den t e que pergun t a va a s i próp r i a o que faz i a eu a l i , com uma bagagem ins i g n i f i c a n t e , depo i s de te r te l e g r a f a d o do aeropo r t o . 16

Respond i que s im. A ide i a não me at r a í a par t i c u l a rmen t e , mas t i n h a mui t a fome e não me parec i a opo r t u no anda r pe l o ba i r r o àque l a hora . - A sa l a de jan t a r fecha às o i t o , d i s se . depo i s das o i t o só ser v imos no quar t o . Disse que pre f e r i a j an t a r em ba i xo . e la conduz i u- me até uma cor t i n a do ou t r o lado do ves t í b u l o e en t r e i numa sa l e t a abobadada com as paredes p in t a das de escu ro , onde hav i a mesas ba i x as . As mesas es ta vam quase todas l i v r e s e a lu z era mui t o f r a ca . O menu prome t i a uma in f i n i d a d e de pra t o s , mas depo i s , ao pergun t a r ao empregado , f i q u e i a sabe r que jus t amen t e naque l a no i t e t i n h a acabado tudo . Hav i a só o número qu i n ze . Jan te i rap i d amen t e ar r o z e pe i xe , beb i uma cer ve j a morna e

vo l t e i para o át r i o . A recepc i o n i s t a a inda es ta vasen tada no seu luga r e parec i a abso r v i d a a d i spo rped r i n h a s co l o r i d a s numa espéc i e de espe l ho . Nopequeno so fá do can to , jun t o à por t a da en t r ada , es ta vam do i s rapazo l a s mui t o escu ro s , ves t i d o s àoc i den t a l , com ca l ç as à boca de s i no . Parece r am não dar por

mim, mas eu sen t i imed i a t amen t e um cer t o mal- es ta r . Pare i d ian t e do ba l c ão e espe re i que fosse e la a fa l a r . De fac t o fa l o u . Disse a lgo com uma voz neu t r a e ind i f e r e n t e . não perceb i bem do que se t r a t a v a e ped i- l he para repe t i r .

Era uma tabe l a . As ún i c as quan t i a s que perceb i fo r am a pr ime i r a e a ú l t ima : dos t r e ze aos qu i n ze anos , t r e zen t a s rup i a s ,

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depo i s dos c i nquen t a , c i n corup i a s .

- As mulhe r e s es tão na sa l e t a do pr ime i r o anda r , conc l u i u . 17

Ti r e i uma ca r t a do bo l s o e most r e i - lhe a ass i na t u r a . Sab i a o nome de memór i a , mas pre f e r i most r a r- l ho esc r i t o , para não have r equ í v o cos .

Vima la Sar , d i s se eu. Quero uma rapa r i g a que se chama Vima la Sar" .

Ela lançou um o lha r ráp i d o aos do i s rapazo l a s sen tados no so fá .

Vima la Sar já não t r aba l h a aqu i , d i s se , fo i- se embora" . Para onde fo i?" , pergun t e i .

Não se i , respondeu , mas temos rapa r i g a s mais bon i t a s do que e la .

As co i s as não começavam mui t o bem. Pe lo can to do o lho pareceu- me que os do i s rapazo l a s faz i am um l i g e i r o mov imen t o , mas ta l v e z fos se apenas imp res são minha .

Procu r e- ma, d i s se rap i d amen t e , eu espe ro no qua r t o . Por so r t e t i n h a no bo l so duas no tas de v i n t e dó l a r e s . Deixe i- l has en t r e as pedr i n ha s co l o r i d a s e pegue i na minha male t a . Enquan t o sub i a as escadas t i v e uma pequena i nsp i r a ç ã o d i t a da pe l o medo. - A minha emba i xada sabe que es tou aqu i , d i s se em voz a l t a .

O qua r t o parec i a l impo . Es tava p in t a do de ve rde pá l i d o e nas paredes hav i a gravu r a s com escu l t u r a s eró t i c a s de Kha ju r a ho , pareceu- me, mas não t i n h a mui t a von t ade de me cer t i f i c a r . A cama era mui t o ba i xa e ao lado hav i a uma po l t r o n a es fa r r a pada e um mont i n ho de a lmo fadas co l o r i d a s . Na mes inha- de-cabece i r a hav i a vár i o s ob j e c t o s de fo rma incon f u nd í v e l . Desp i- me e pegue i em roupa in t e r i o r la vada . A casa de banho era um cub í c u l o la cado que t i n ha na por t a um pos t e r com uma lou r a18montada numa Coca-co l a . O pos t e r es tava amare l e c i d o e manchado dos insec t o s , a lou r a usava o cabe l o à Mar i l y n Monroe , t i p o anos c i nquen t a , o que aumen tava a sua i ncong r uênc i a . Ao chuve i r o

fa l t a v a o cr i v o , era s imp l e smen t e um cano dondejo r r a v a um jac t o de água à a l t u r a da cabeça , masla va r- me pareceu- me a co i s a mais vo l up t u o sa domundo: t i n ha no pê l o o i t o horas de av i ão , t r ê s horas de

aeropo r t o e a t r a ves s i a de Bomba im.

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Não se i quan to tempo dorm i . Ta l vez duas horas , ta l v e z mais . Quando as pancad i n has na por t a me

aco rda r am, fu i abr i r maqu ina lmen t e , ao pr i n c í p i onem seque r me ape rceb i onde me encon t r a v a . A rapa r i g a era

pequena e ves t i a um bon i t o sa r i . Estavaa sua r e a maqu i l h a gem começava a des f a ze r- se aocan to dos o lhos . Disse :

- Boa no i t e , senho r , eu sou Vima l a Sar . F i cou de pé no quar t o , de o lhos ba i x os e braços ca í dos como se me desse opor t u n i d ade de a examina r .

- Sou um amigo de Xav i e r , - d i s se eu. Ela le van t o u os o lhos e l i uma grande su rp r e sano seu ros t o . T inha co l o cado a ca r t a de l a sob rea mes inha de cabece i r a . Olhou para e la e começou a cho ra r .

- Porque é que e le ve i o para r a um luga r des t e s? pergun t e i . O que faz i a aqu i? Onde es tá agora?- Ela começou a so l u ça r ba i x i n h o e eu perceb i que

t i n ha fe i t o demas i adas pergun t a s . - Aca lme- se, d i s se .

Quando soube que eu lhe t i n ha esc r i t o , zangou- se mui t o , d i s se e la .

- E porque me esc re veu?19

- Porque encon t r e i a sua d i r e c ção na agenda de Xav i e r " , d i s se e la , sab i a que vocês t i n h am s ido mui t o amigos , em tempos" .

Porque é que e le se zangou?". Ela le vou a mão à boca como para imped i r o cho ro . Nos ú l t imos

tempos to r na r a- se mau", d i s se , es ta va doen te . Mas o que é que e le faz i a?" .

Faz i a negóc i o s " , d i s se e la , não se i , não me con ta va nada, já não era bom".

Que t i p o de negóc i o s?" . Não se i " , repe t i u , não me con ta va nada, às vezes andava

ca l ado d ias e d ias , e depo i s , de repen t e , f i c a v a mui t o ag i t a do e t i n h a grandes exp l o sões de fú r i a " .

Quando é que e le chegou aqu i?" . No ano passado" , d i s se e la , v i nha de Goa, faz i a negóc i o s com

e les , depo i s adoeceu" . Eles , quem?". "Os de Goa, d i s se , de Goa, não se i . Sen tou- se no

so faz i n ho j un t o da cama, de i xa r a de cho ra r , parec i a mais ca lma.

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Compre qua l que r co i s a para bebe r , d i s se e la , naque l e armar i o z i n h o há l i c o r e s , uma gar r a f a cus t a c i nquen t a rup i a s " .

Fu i ao armar i o z i n h o e pegue i numa pequena gar r a f a che i a de um l í q u i d o amare l a do , um l i c o r de tange r i n a . Mas quem eram esses de Goa?", i ns i s t i , lemb ra- se pe l o menos do nome, qua l que r co i s a?

Ela abanou a cabeça e começou ou t r a vez a cho ra r . Os de Goa", d i s se , de Goa, não se i . Estava doen t e" , repe t i u .

Fez uma pausa e deu um longo susp i r o . Às vezesparec i a i nd i f e r e n t e a tudo" , d i s se , mesmo a mim.

20A ún i ca co i s a que o in t e r e s s a va um pouco eram as car t a s de Madras t a , mas depo i s , no d ia segu i n t e , vo l t a v a ao mesmo. Que car t a s?" . As ca r t a s de Madras t a " , d i s se e la i ngenuamen te , como se fosse uma in f o rmação su f i c i e n t e . Mas de quem?", i ns i s t i , quem lhe esc r e v i a? . "Não se i " , d i s se , uma soc i edade , não me lembro , nunca me de i xou lê- l as .

E e le respond i a?, pergun t e i a inda . Vima l a f i c o u abso r t a . Sim, respond i a , penso que s im, passava mui t a s horas a esc r e ve r " . Por favo r " , ped i , ten t e faze r um es fo r ç o , o que era essa soc i edade?". Não se i , d i s se , era uma soc i edade de es tudo , c re i o , não se i , senho r " . Fez ou t r a pausa e depo i s d i s se : e le era bom, a sua von t ade era boa, mas a sua na tu r e z a t i n ha um des t i n o t r i s t e " . T inha os dedos en t r e l a ç ado s , uns dedos compr i d o s e bon i t o s . Depo i s o lhou para mim com uma exp res são de a l í v i o como se lhe t i v e s s e v i ndo à memór i a uma reco r da ção . Theosoph i c a l Soc i e t y , d i s se . E pe l a pr ime i r a vez sor r i u . Ouça, d i s se eu, con te- me tudo com ca lma, tudo o que se lembra r , tudo o que possa d i ze r- me. Serv i- l he mais um copo. Ela bebeu e começou a con ta r . Fo i uma h i s t ó r i a l onga , pro l i x a , che i a de de ta l h e s . Fa lou- me da h i s t ó r i a de l e s , das es t r a da s de Bomba im, de excu r sões a leg r e s a Basse i n e a Elephan t a . E a inda de ta r des no Vic t o r i a Garden , de i t a do s na re l v a , dos banhos em Chowpa t t y Beach, sob as pr ime i r a s chuvas da monção. Soube como Xav i e r t i n h a aprend i d o a r i r e do que r i a ;21e de quan t o gos t a va do pôr- do-so l no mar de Oman, quando passeavam

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ao f im da ta r de , à be i r a- mar . Era uma h i s t ó r i a que e la t i n h a cu i dadosamen t e l impo de to r pezas e de misé r i a s . Era uma h i s t ó r i a de amor .

Xav i e r t i n ha esc r i t o mui t a s co i s as , d i s se e la , depo i s , um d ia , que imou tudo . Estava aqu i , nes t e ho te l , pegou numa bac i a de cob re e que imou tudo .

Porquê?, pergun t e i . Es tava doen te , d i s se e la , a sua na tu r e za t i n ha um des t i n o

t r i s t e . Quando Vima l a se fo i embora a no i t e dev i a es ta r no f im . Não

o lhe i para o re l ó g i o . Cor r i as cor t i n a s da jane l a e es tend i - me na cama. Antes de ado rmece r chegou até mim um gr i t o d i s t a n t e . Ta l vez fos se uma oração ou uma invocação ao novo d ia que es tava a nasce r . 22I IComo se chamava?, . Chamava-se Xav i e r , respond i . Como o miss i o ná r i o? , pergun t o u e le . E depo i s d i s se : c l a r o que não é i ng l ê s , não é verdade?, . Não, d i s se , é por t u guês , mas não ve i o como miss i o ná r i o , é um por t uguês que se perdeu na Índ i a . O médico abanou a cabeça em s ina l af i rma t i v o . Usava um ch i nó br i l h a n t e que se mov ia cada vez que mex ia a cabeça , como uma touca de bor r a cha . Na Índ i a perde- se mui t a gen te , d i s se , é um pa í s fe i t o de propós i t o para i s so . Eu d i s se : po i s é. E depo i s o lhe i para e le e também e le o lhou para mim com ar desp reocupado como se es t i v e s s e a l i po r acaso e tudo acon t e ces se por acaso , porque ass im t i v e s s e de ser . 23

Também sabe o ape l i d o?" , pergun t o u , às vezes pode a juda r " . Jana t a Pin t o , d i s se eu, t i n ha remo tas or i g ens ind i a na s , acho

que um seu an tepassado era de Goa, pe l o menos era o que e le d i z i a " .

O médico fez um ges t o que parec i a s i gn i f i c a r : i s so chega ; mas não era i s so que quer i a d i ze r , na tu r a lmen t e .

Haverá ce r t amen t e um arqu i v o " , d i s se , espe ro eu, . Ele sor r i u com ar in f e l i z e cu l pado . T inha os den tes mui t o

brancos e uma fa l h a na f i l a supe r i o r . Um arqu i v o . . . ", resmungou. De repen t e , a sua exp re s são to r nou-se dura , tensa . Olhou- me com seve r i d a de , quase com desp re zo . I s t o

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é um hosp i t a l de Bomba im", d i s se secamen te , ponha de par t e as suas ca tego r i a s europe i a s , são um luxo ar r ogan t e " .

Cale i- me e também e le f i c o u em s i l ê n c i o . Do bo l so da ba ta t i r o u uma car t e i r a de pa l ha e pegou num c iga r r o . At r á s da sua mesa, na parede , hav i a um grande re l ó g i o . Marcava se te horas , es tava parado . Olhe i para e le e e le percebeu o que eu es ta va a pensa r . Há mui t o que es tá parado" , d i s se , de qua l que r modo é meia- no i t e " .

Bem se i " , d i s se eu, es tou à sua espe ra desde as o i t o , o médi co de d ia d i s se- me que o senho r era o ún i c o que ta l v e z me pudesse a juda r , d i z que tem boa memór i a" .

Ele vo l t o u a so r r i r , com o seu so r r i s o t r i s t e e cu l pado e eu perceb i que mais uma vez t i n ha comet i d o uma ga fe , que não era uma qua l i d a de te r boa memór i a , num luga r como aque l e .

Era seu amigo?". 24 De ce r t o modo, d i s se eu, em tempos" . Quando fo i i n t e r n ado?. Há quase um ano, c re i o , no f im da monção, . Um ano é mui t o tempo, d i s se e le . E depo i s con t i n u ou a monção é o per í o do p io r , vem mui t í s s ima gen te . Imag i no , respond i . Pôs a cabeça en t r e as mãos como se re f l e c t i s s e ou como se es t i v e s s e mui t o cansado . Não imag i na , d i s se . Tem uma fo t og r a f i a de l e?. Era uma pergun t a s imp l e s e prá t i c a , mas eu t r opece i na respos t a , porque também eu sen t i o peso da memór i a e, ao mesmo tempo, a sua inadequação . O que é que se reco r da de um ros t o , no fundo? Não, não t i n ha uma fo t o g r a f i a , t i n h a apenas a minha reco r da ção : e a minha reco r da ção era só minha , não era desc r i t í v e l , era a exp re s são que eu t i n ha do ros t o de Xav i e r . F i z um es fo r ç o e d i s se : é um homem da minha a l t u r a , magro , de cabe l o s l i s o s , tem aprox imadamen t e a minha idade , às vezes uma exp res são como a sua, do u to r , porque , se sor r i , parece t r i s t e . Não é uma desc r i ç ã o mui t o prec i s a , d i s se e le , mas tan t o faz , não me lembro de nenhum Jana t a Pin t o , pe l o menos de momento . Encon t r á v amo- nos numa sa l a mui t o c i n zen t a , desp i da . Na parede do fundo hav i a uma grande t i n a de c imen t o , como um lavadou r o . Estava che i a de fo l h a s de pape l . Jun to da t i n a hav i a uma espéc i e de mesa compr i d a , também es ta a t r a vancada de papé i s . O médi co levan t o u- se e fo i ao fundo da sa l a . Pareceu- me que coxeava . Pôs-se a mexer nos

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papé i s da mesa. De longe , t i v e a imp res são25de que eram fo l h a s de cade rno e bocados de pape l cas t anho , de embru l h o .

É o meu arqu i v o , d i s se , são tudo nomes. Eu f i q ue i sen t ado em f r en t e da mes inha o lhando para os poucos ob j e c t o s que a ocupavam. Hav i a uma pequena bo l a de cr i s t a l com a imagem da pon te de Lond res e uma fo t og r a f i a emoldu r ada de uma casa que parec i a um cha l e t su í ç o . Pareceu- me absu rdo . A uma jane l a do cha l e t v i a- se uma f i g u r a de mulhe r , mas a fo t og r a f i a es tava des f o cada e não t i n h a con t o r n o s .

Não é um drogado , po i s não?, pergun t o u- me do fundo da sa l a . Não ace i t amos drogados .

F ique i em s i l ê n c i o e depo i s abane i a cabeça . Ta l vez não, respond i depo i s , não c re i o , não se i " .

Mas como sabe que ve i o para o hosp i t a l , tem a ce r t e z a?" . Disse- me uma pros t i t u t a do ho te l Kha j u r aho , era lá que e le es tava hospedado , no ano passado .

E o senho r?, pergun t o u , também es tá lá hospedado?Dormi lá a no i t e passada , mas amanhã mudo. procu r o não f i c a r

no mesmo ho te l mais do que uma no i t e , quando é poss í v e l . Porquê?, pergun t ou e le descon f i a d o . T inha um monte de papé i s nos braços e o lhava- me por c ima dos ócu l o s . Porque s im, d i s se . Gosto de mudar todas as no i t e s , tenho comigo apenas es ta pequena mala .

E para amanhã, j á dec i d i u?Ainda não, d i s se eu. Acho que gos t a r i a de um ho te l mui t o con f o r t á v e l , ta l v e z de l uxo . 26Poder i a i r para o Ta j Maha l , d i s se e le , é o ho te l mais l uxuoso de toda a Ás ia .

Ta l vez não se j a má ide i a " , respond i . Ele meteu os braços na t i n a en t r e os bocados de pape l . Tan to s homens" , d i s se . T inha- se sen tado na borda da t i n a e puse ra- se a l impa r os ócu l o s . Esf r egou os o lhos com um lenço como se os devesse te r cansados ou i r r i t a d o s . Pó, d i s se .

O pape l?" , pergun t e i eu. Ele ba i xou os o lhos , v i r o u- me as cos t a s .

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O pape l , d i s se , os homens" . De longe ve i o um lúgub r e es t r o ndo metá l i c o , como um b idão que ro l a s se pe l a s escadas aba i x o . De qua l que r modo não es tá cá, d i s se e le , de i xando ca i r todos os papé i s , penso que é i nú t i l procu r á- lo en t r e todos es tes nomes". Ins t i n t i v amen t e le van t e i - me. Tinha chegado o momento de me desped i r , ju l g ue i que era i s t o que me es ta va a d i ze r : que me fos se embora . Mas e le não pareceu dar- se con t a d i s so , d i r i g i u - se a um armar i o z i n h o de meta l que em tempos remo tos dev i a te r s i do p in t a do de branco . Vascu l hou den t r o de l e e pegou em medi camen t o s que meteu apressadamen t e nos bo l sos da ba ta , pareceu- me que os agar r a v a ao acaso , sem os esco l h e r . Se a inda cá es tá , a ún i c a mane i r a de o encon t r a r é i r à procu r a de l e , d i s se , eu tenho de faze r a minha vo l t a , se qu i se r pode v i r comigo . Di r i g i u - se para a por t a e abr i u- a. Fare i uma vo l t a mais compr i d a do que cos t umo, es ta no i t e , pode ser que você não ache opor t u no v i r comigo . Levan t e i - me e fu i a t r á s de l e . Acho opor t u no , d i s se . Posso l eva r a minha bagagem comigo?. 27

O át r i o para o qua l se abr i a a por t a era uma sa l a hexagona l e de cada um dos seus lados par t i a um cor r e do r . Estava a t r a vancada de roupa , de sacos , de lençó i s c i n zen t o s . Alguns t i n h am manchas roxas e cas t anhas . Metemos pe l o pr ime i r o cor r e do r à nossa d i r e i t a ; no umbra l hav i a um le t r e i r o em h indu , a lgumas le t r a s t i n ham ca í do , de i xando uma mancha c l a r a en t r e as l e t r a s verme l has .

Não toque em nada, , d i s se , e não se aprox ime demas i ado dos doen t e s , vocês europeus são mui t o de l i c a dos , .

O co r r edo r era mui t o compr i d o , p in t a do de azu l ce l e s t e , melancó l i c o . O chão es tava pre t o de bara t a s que reben t a vam deba i x o dos nossos sapa t o s , embora f i z é s s emos o poss í v e l para não as p i sa r . Exte rm i namo- las , d i s se o médi co , mas um mês depo i s vo l t am a nasce r , as paredes es tão imp regnadas de la r v a s , se r i a prec i s o demo l i r o hosp i t a l " .

O co r r edo r te rm i na va num novo át r i o idên t i c o ao pr i n c i p a l , mas es t r e i t o e sem luz , sepa rado por uma cor t i n a .

O que faz i a o senho r Jana t a Pin t o?, , pergun t ou- me enquan t o ar r edava a cor t i n a do á t r i o . Pense i em d i ze r- l he t r adu t o r s imu l t â n eo , , que era o que ta l v e z

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devesse d i ze r . E em vez d i s so respond i : esc r e v i a con t o s . Ah", d i s se e le . Tenha cu i dado , aqu i há um deg rau . De que

t r a t a v am?, . Bem, , d i s se eu, não se i bem como exp l i c a r . d igamos que

fa l a v am de co i s a s fa l h adas , de er r o s humanos , por exemp lo , fa l a v a de um homem que passou toda a v i da a sonha r com uma v i agem e quando28f i n a lmen t e , tem opor t u n i d ade de a faze r , nesse d ia dá-se con ta de que j á não l he ape tece fazê- la" . Contudo e le par t i u , , d i s se o médi co . Ass im parece , d i s se eu, e fec t i v amen t e" . O médi co de i xou ca i r a cor t i n a a t r á s de nós . Aqu i den t r o há uma cen t ena de pessoas , d i s se , rece i o que não se j a um espec t á cu l o agradáve l para s i , são os que es tão aqu i há a lgum tempo, o seu amigo pode r i a es ta r en t r e es te s , se bem que me pareça imp rováve l " . Segu i- o e en t r ámos na maio r sa l a que eu já v i . Era quase tão grande como um hanga r , e ao longo das paredes e em t r ê s f i l a s cen t r a i s hav i a camas, ou melho r , enxe rgas . Do tec t o pend i am a lgumas lâmpadas mor t i ç a s e eu pare i um momento porque o che i r o era mui t o fo r t e . De cóco r a s , jun t o à por t a da en t r ada , es tavam do i s homens ves t i d o s com roupas mise r á ve i s que, quando en t r ámos , se a fas t a r am. São In t o cá ve i s " , d i s se o médi co , são e les que se ocupam das necess i d ades corpo r a i s dos doen t e s , não há mais n inguém que faça es te t r aba l h o . A Índ i a é ass im" . Na pr ime i r a cama hav i a um ve l ho . Estava comp le t amen t e nu e era mui t o magro . Parec i a mor t o , mas t i n ha os o lhos ar r ega l a do s e o lhou para nós sem a menor exp re s são . T inha um enorme pén i s pousado na bar r i g a . O médi co aprox imou- se e tocou- lhe a tes t a . Pareceu- me que lhe met i a um medi camen t o na boca , mas não perceb i bem, porque me encon t r a v a aos pés da enxe rga . É um sádbuy , d i s se o médi co , os seus órgãos gen i t a i s es tão consag r ados ao29deus , em tempos era adorado pe l a s mulhe r e s es té r e i s , mas nunca proc r i o u " .

Depo i s e le afas t o u- se e eu segu i- o. Parava em todas as camas, enquan t o eu f i c a v a de lado a o lha r para o ros t o do en fe rmo . Jun t o de ou t r o s apenas um momento tocando- lhe a tes t a . As paredes

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es tavam manchadas de verme l ho , por causa das cusp i d e l a s do be te l mascado , e o ca l o r era su focan t e . Ou era ta l v e z o che i r o demas i ado in t e n so que dava aque l a sensação de aba famen t o , de su focação . As ven t o i n ha s no tec t o , con t udo , es tavam paradas . Depo i s o médi co vo l t o u para t r á s e eu segu i- o em s i l ê n c i o .

Não es tá , d i s se eu, en t r e es tes não es tá . Ele vo l t o u a afas t a r a co r t i n a do át r i o com imu tá ve l co r t e s i a

e deu-me passagem. Es tá um ca l o r in supo r t á v e l " , d i s se eu, e as ven to i n ha s es tão

paradas , é i nc r í v e l , . Em Bomba im a co r r en t e , de no i t e , é mui t o f r a ca , respondeu- me. E con tudo têm um reac t o r nuc l ea r em Trombay , v i a chaminé da

be i r a- mar . Esboçou um so r r i s o mui t o le ve .

A ene rg i a va i quase toda para as fáb r i c a s , e depo i s para os ho té i s de lu xo , e para o ba i r r o de Mar i ne Dr i v e , aqu i temos de nos con f o rma r " . Começou a caminha r ao longo do cor r e do r e tomou a d i r e c ção opos t a àque l a donde t í n h amos v i ndo . Ass im é a Índ i a conc l u i u .

O senho r es tudou aqu i?" , pergun t e i . Parou a o lha r para mim, e pareceu- me que nos seus o lhos passava um re l âmpago de nos t a l g i a . Estude i em Lond res e depo i s espec i a l i z e i - me em30 Zur i q ue . T i r ou do bo l so o seu es to j o de pa l ha e pegou num c iga r r o . Uma espec i a l i d a d e absu rda , para a Índ i a . Sou card i o l o g i s t a , mas aqu i n inguém f i c a doen te do co ração , só vocês na Europa mor rem de en fa r t e .

De que se mor re , aqu i?, pergun t e i eu. -De tudo o que não tem a ve r com o coração . Sí f i l i s , tube r c u l o s e , l ep r a , t i f o , sep t i c em i a , có l e r a , mening i t e , pe l ag r a , d i f t e r i a e ou t r a s co i s as . Mas eu gos t a va de es tuda r o coração , gos t a va de percebe r aque l e múscu l o que comanda a nossa v i da . Fez um ges t o com a mão abr i n do e fechando o punho. Ta l vez eu ju l g a s se que descob r i r i a qua l que r co i s a l á den t r o .

O co r r edo r desembocava num pequeno pá t i o cobe r t o , em f r en t e de um pav i l h ã o ba i xo de t i j o l o s . Você é c ren t e?, pergun t e i .

- Não, d i s se e le , sou a teu . Ser a teu é a p io r das

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mald i ç õe s , na Índ i a . At r a vessámos o pá t i o e parámos à f r en t e da por t a do pav i l h ã o . -Aqu i den t r o es tão os in cu r á v e i s , há uma remo ta poss i b i l i d a d e que o seu amigo es te j a en t r e e les .

O que têm?", pergun t e i . Tudo o que possa imag i na r " , d i s se e le , mas ta l v e z se j a melho r i r-se embora" .

Também acho, respond i . Vou acompanhá- lo , d i s se e le .

-Não, não se in comode, por favo r , ta l v e z eu possa sa i r por aque l a por t i n i a do gradeamen to , parece- me que dá para a rua .

31Chamo-me Ganesh" , d i s se , como o deus a leg r e com ca ra de

e le f a n t e . Eu também lhe d i s se o meu nome an tes de me afas t a r . O

por t ão z i n h o da sa í da f i c a v a a poucos passos , para a lém de uma sebe de ja sm i ns . Estava abe r t o . Quando me vo l t e i a o lha r para e le , e le d i s se a inda . Se eu o encon t r a r , d igo- lhe a lguma co i s a?, .

Não, por favo r " , d i s se eu, não lhe d iga nada. Ele t i r o u o ch i nó como se fos se um chapéu e fez uma l i g e i r a vén i a . Eu sa í para a rua . Es tava a amanhece r e a gen te nos passe i o s começava a aco rda r . Alguns es tavam a enro l a r as es te i r a s do repouso noc t u r n o . A rua es tava invad i d a de cor vos que sa l t i t a v am em vo l t a do es te r c o das vacas , Jun t o à escada r i a da en t r a da es tava um táx i descon j un t a do com um cho fe r que dorm i t a v a com a cara apo i ada na j ane l a .

Ta j Maha l , d i s se eu, en t r a ndo . 32I I I

OS ún i cos hab i t a n t e s de Bomba im que não se preocupam com o d i r e i t o de admissão , v i gen t e no Ta j Maha l são os cor vos . Descem sob re a esp l anada do In t e r c o n t i n e n t a l , pousam c io sos nas jane l a s do ed i f í c i o mais an t i g o , empo le i r am- se nos ramos das mangue i r a s dos ja r d i n s , sa l t i t a n d o sob re o impecáve l tape t e de re l v a que ce r ca a p i s c i n a . Ser i am capazes de bebe r dos bordos ou dar b i cadas na casca de la r an j a do copo do mar t i n i se um d i l i g e n t e c r i a do de l i b r é os não enxo t a s se com um pau de cr i c k e t , como num espec t á cu l o absu rdo pos t o em cena por um encenado r ex t r a v agan t e . É prec i s o cu i dado com os co r vos , têm o b i co mui t o porco . A câmara munic i p a l de Bomba im teve de mandar tapa r os eno rmes depós i t o s do aquedu t o :

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acon t e ceu já que as aves , que se enca r r e gam de re i n t r o d u z i r no c i c l o33b io l ó g i c o os cadáve r e s que os Parses expõem nas Tor r e s do Si l ên c i o (há numerosas to r r e s na zona de Malaba r Hi l l ) , de i xa r am ca i r na água a lguns bocados . Mas apesa r des t a s medidas , a câmara muni c i p a l não reso l v e u ev i den t emen t e o prob l ema da h ig i e ne , porque depo i s há o prob l ema dos ra t o s , dos insec t o s , das in f i l t r a ç õ e s nos esgo t o s . É melho r não bebe r a água de Bomba im. Pode bebe r- se no Ta j Maha l , que possu i os seus depu rado r e s próp r i o s e se orgu l h a da sua água. Porque o Ta j não é um ho te l : com os seus o i t o c en t o s qua r t o s é uma c i dade den t r o de uma c i dade .

Quando en t r e i nes t a c i dade fu i receb i d o por um por t e i r o d i s f a r ç a do de pr í n c i p e ind i a no , de fa i x a e de tu r ban t e verme l hos que me gu i ou até à por t a r i a f l ame j a n t e de dourados onde hav i a ou t r o s empregados também masca rados de mabara j a . Provave lmen t e pensa r am que eu também es tava masca rado , mas ao con t r á r i o , que era um r i c a ço d i s f a r ç a do de pobre , e f i z e r am o poss í v e l para me ar r an j a r um quar t o na a la nob re do ed i f í c i o , a do mobi l i á r i o an t i g o e v i s t a para o Gateway o f Ind i a . O meu pr ime i r o impu l s o fo i d i ze r que não es tava a l i po r ques t ões de es té t i c a , mas apenas para dorm i r num desca r ado con f o r t o , e que pod i am ins t a l a r - me à von t ade de l e s num quar t o com mobí l i a ve rgonhosamen t e moderna , que mesmo o ar r anha- céus do In t e r c o n t i n e n t a l se r v i a . Mas depo i s pareceu- me crue l dar- l hes es ta des i l u s ão . Recuse i porém a su i t e dos pavões . Era excess i v a para uma pessoa só, mas não era ev i den t emen t e por uma ques t ão de preço , espec i f i q u e i para mante r o es t i l o que já t i n h a esco l h i d o . 34O quar t o era imponen t e , a minha male t aprecede r a- me por v i a s mis t e r i o s a s e es ta va em c ima de um banco de corda , a banhe i r a j á es tava che i a de água e de espuma, met i- me ne l a e depo i s embru l he i - me numa toa l h a de l i n h o . As jane l a s davam para o mar de Oman, era já quase d ia c l a r o , com uma luz rosada que t i n g i a a pra i a , a v i da da Índ i a começava a fo rm i ga r , as pesadas cor t i n a s de ve l udo verde des l i z a v am doces e mac ias como um pano de tea t r o , f i - l as desce r sob re a pa i sagem e o quar t o fo i todo penumbra e s i l ê n c i o , o zumb ido pregu i ç o so e recon f o r t a n t e da grande ven t o i n ha emba lou- me, t i v e apenas tempo de pensa r que também e la era um luxo supé r f l u o porque todo o qua r t o es tava per f e i t amen t e c l ima t i z a d o , e chegue i imed i a t amen t e a uma ve l ha

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cape l a numa co l i n a medi t e r r â n i c a , a cape l a era branca e faz i a ca l o r , es távamos es fomeados e Xav i e r , r i n do , t i r a v a sandu i c hes e v i nho f r e s c o , I sabe l também r i a , enquan t o Magda es tend i a uma manta na re l v a , l onge hav i a o azu l ce l e s t e do mar e um bur r o so l i t á r i o dorm i t a v a à sombra da cape l a . Mas não era um sonho, era uma reco r da ção rea l : o lhava no escu r o do quar t o e v i a aque l a cena d i s t a n t e que me parec i a um sonho porque t i n ha dorm ido mui t a s horas e o meu re l ó g i o marcava qua t r o da ta r de . F ique i mui t o tempo na cama a pensa r naque l e s tempos , vo l t e i a perco r r e r pa i sagens , ros t o s , v i das . Reco rde i as excu r sões de car r o a t r a vé s dos p inha i s , os nomes que t í n hamos dado uns aos ou t r o s , a gu i t a r r a de Xav i e r e a voz aguda de Magda, que anunc i a v a com i r ó n i c a grav i d ade , im i t a ndo os vendedo r e s ambu lan t e s das fe i r a s : senho r as e senho res35um pouco de atenção , temos connosco o roux i n o l i t a l i a n o! E eu pres t a va- me ao jogo e começava a can t a r ve l has canções napo l i t a n a s , im i t a ndo os gorge i o s an t i q u ados dos can t o r e s de ou t r o s tempos , enquan t o todos se r i am e ap l aud i am. Ent r e nós eu era o Roux e t i n h a- me res i g nado : as le t r a s i n i c i a i s de roux i n o l . Mas, d i t o ass im, parec i a um be lo nome exó t i c o , não hav i a razão para a gen te se zanga r . E depo i s os verões segu i n t e s des f i l a r am por sua vez . Magda a cho ra r , pense i , porquê? Ser i a ju s t o? E a Isabe l e as suas i l u s ões? E quando aque l a s reco r da ções ganha ram con t o r n o s in supo r t á v e i s , n í t i d o s como se fossem pro j e c t a do s na parede , l evan t e i - me e sa í do quar t o .

Às se i s da ta r de já não são horas para a lmoça r e é um pouco cedo de mais para jan t a r . Mas no Ta j Maha l , d i z i a o meu gu i a , graças aos seus qua t r o res t au r a n t e s , pode- se comer a qua l que r hora . No ú l t imo anda r do Apo lo Bunde r" hav i a o Rendez- vous , mas era demas i ado ín t imo . E demas i ado ca ro . Pare i no Apo lo Bar e esco l h i uma mesa jun t o do v i d r o da esp l anada o lhando as pr ime i r a s l uzes da no i t e , a be i r a- mar era uma gr i n a l d a , tome i do i s g ins tón i c o s que me puse ram de bom humor e esc r e v i uma car t a à Isabe l . Esc rev i duran t e mui t o tempo, de jac t o , com en tus i a smo , e con t e i -l he tudo . Fa le i - lhe daque l e s d ias passados e da minha v i agem e de como os sen t imen t o s vo l t am a af l o r a r com o tempo. Disse- lhe também co i sa s que nunca pensa r i a d i ze r- l he e quando vo l t e i a le r a car t a , com a a leg r i a in consc i e n t e de quem bebeu em je j um, perceb i que aque l a ca r t a , no fundo , era para Magda, t i n ha- a esc r i t o para e la , sem dúv i da , 36

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embora d i s ses se Quer i d a I sabe l " ; ass im amar r o t e i - a e de i xe i - a no c i n ze i r o , desc i ao rés- do-chão, en t r e i no Tan j o r e Res tau r an t e ped i um jan t a r sumptuoso , exac t amen t e como fa r i a um pr í n c i p e d i s f a r ç a do de pobre . E depo i s , quando acabe i de jan t a r , era de no i t e , o Ta j an imava- se e c i n t i l a v a de lu z , no re l v a do jun t o da p i s c i n a os cr i a do s de l i b r é es tavam pron t o s para a fugen t a r os cor vos , eu ins t a l e i - me num so fá no meio daque l e ha l l tão grande como um campo de fu t ebo l e pus-me a con t emp l a r o luxo . Não se i quem d i s se que no puro ac to de o lha r há sempre um pouco de sad i smo. Ten te i , mas não consegu i l emb ra r- me, porém, sen t i que hav i a a lgo de verdade i r o naque l a f r a se : e ass im pus-me a o lha r com maio r vo l úp i a , com a per f e i t a sensação de ser apenas do i s o lhos que o lhavam enquan t o eu es tava a lgu r e s , sem sabe r onde. Olhe i as mulhe r e s , e as jó i a s , os tu r ban t e s , os bar r e t e s mour i s c o s , os véus , as caudas , os ves t i d o s de cer imón i a , os muçu lmanos e os mi l i o n á r i o s amer i c anos , os re i s do pe t r ó l e o e os cr i a do s s i l e n c i o s o s : escu t e i garga l h adas , f r a ses compreens í v e i s e incompreens í v e i s , cump l i c i d a de s , seg redos . E tudo i s t o nunca parou duran t e toda a no i t e , quase a té ao amanhece r . Depo i s , quando as vozes se espaça r am e as luzes amor t e ce r am, encos t e i a cabeça às a lmo fadas do so fá e adormec i . Não fo i por mui t o tempo, porque o pr ime i r o barco para Elephan t a , mesmo em f r en t e do Ta j , l evan t a fe r r o às se te : e naque l e barco , a lém de um casa l de japoneses de meia- idade de máqu ina fo t og r á f i c a ao pescoço , i a também eu. 37IV que fazemos nós den t r o des t e s corpos , d i s se o senho r que se prepa r a va para se es tende r na cama ao l ado da minha . A sua voz não t i n h a uma en toação in t e r r o g a t i v a , ta l v e z não fos se uma pergun t a , era só, a seu modo, uma cons t a t a ç ão , em todo o caso ser i a uma pergun t a a que eu não pode r i a responde r . A luz que v i nha do ca i s da es tação era amare l a e desenhava nas paredes esca l a v r a das a sua sombra magra que se mov ia no quar t o com leveza , com prudênc i a e d i s c r i ç ã o , pareceu- me, como se movem os ind i a nos . De longe , v i nha uma voz len t a e monó tona , ta l v e z uma oração ou um lamen t o so l i t á r i o sem espe rança , como os lamen t o s que se exp r imem só por s i , sem nada ped i r . Era-me imposs í v e l dec i f r á - l o . A Índ i a era também i s t o : um un i ve r s o de sons monótonos , i nd i f e r e n c i a d o s , i nd i s t i n t o s . 39

Ta l vez v i a j emos den t r o de l e s" , d i s se eu. Dev i a te r passado um

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ce r t o tempo desde a sua pr ime i r a f r a se , t i n ha segu i do ou t r a l i n ha de pensamen to : a lguns segundos de sono, ta l v e z . Estava mui t o cansado .

Como d i s se?" , pergun t ou . Es tava a re f e r i r - me aos co rpos" , d i s se eu, ta l v e z se j am como

malas , em que nos t r an spo r t amos a nós próp r i o s " . Por c ima da por t a hav i a uma ve i l l e u s e azu l , como nas

car r u agens dos combo io s noc t u r n o s . Ao mis t u r a r- se com a luz amare l a da que v i nha da jane l a , c r i a v a uma luz verde- pá l i d a , quase um aquá r i o . Olhe i para e le e, na luz esve r deada , quase lúgub r e , v i o per f i l de um ros t o a f i l a d o , com o nar i z l i g e i r amen t e aqu i l i n o , as mãos sob re o pe i t o . Conhece Mantegna?", pergun t e i - l he . Também a minha pergun t a era absu rda , mas não menos do que a de l e , ce r t amen t e .

Não, d i s se , é um ind i a no?, . É um i t a l i a n o , d i s se eu.

Só conheço ing l e s e s" , ac res cen t o u , os ún i cos europeus que conheço são i ng l e s e s , .

O lamen t o d i s t a n t e recomeçou com maio r in t e n s i d a de , ago ra era mui t o agudo, por i ns t a n t e s j u l g ue i que fos se um chaca l .

É um an ima l " , d i s se eu, o que é que acha?. Pense i que era um amigo seu, respondeu em voz ba i xa . Não, não, d i s se eu, es tava a re f e r i r - me à voz que vem de fo r a . Mantegna é um p in t o r , mas eu não o conhec i , mor reu há a lguns sécu l o s " . 40O homem resp i r o u pro f undamen t e . Estava ves t i d o de branco , mas perceb i que não era mulçu lmano . Eu es t i v e em Ing l a t e r r a " , d i s se e le , mas também fa l a v a f r ancês , se pre f e r e fa l amos f r an cês" . A sua voz era neu t r a , como se f i z e s s e uma af i rmação d ian t e do gu i che t de uma repa r t i ç ã o púb l i c a ; e i s t o , não se i porquê , per t u r b ou- me. É um ja i n a " , d i s se e le da í a a lguns segundos , cho ra por causa da maldade do mundo". Eu d i s se : Ah, c l a r o " , porque t i n h a perceb i d o que agora se es tava a re f e r i r ao l amen t o que v i nha de l onge . Em Bomba im não há mui t o s ja i n a s " , d i s se a segu i r no tom de quem exp l i c a o fac t o a um tu r i s t a , no Su l s im, a inda há mui t o s . É uma re l i g i ã o mui t o be l a e mui t o es túp i d a . Disse i s so sem qua l que r

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desp re zo , sempre no tom neu t r o de um depo imen t o . O senho r o que é?", pergun t e i , que i r a descu l pa r a minha ind i s c r i ç ã o . Sou j a i n a " , d i s se . O re l ó g i o da es ta ção ba teu a meia- no i t e . O lamen t o d i s t a n t e parou de repen t e , como se espe ras se o ba te r do re l ó g i o . Começou um novo d ia" , d i s se o homem, a par t i r des t e momento é ou t r o d ia . F ique i em s i l ê n c i o . As a f i rmações de l e não de i xavam espaço ao d iá l o go . Passa ram a lguns minu t o s , pareceu- me que as luzes do ca i s t i n h am en f r a quec i d o . A resp i r a ç ão do meu companhe i r o to r na r a- se pausada e len t a , como se dorm i s se . Quando vo l t o u a fa l a r t i v e uma espéc i e de sob res sa l t o . Eu vou para Varanas i , d i s se , e o senho r?" . 41

Para Madras t a , d i s se eu. Madras t a , repe t i u e le , s im, s im. Quer i a ver o luga r onde d i zem que o após t o l o S. Tomás fo i mar t i r i z a d o , os por t ugueses cons t r u í r am lá uma ig r e j a no sécu l o XVI , não se i o que res t a de l a . E depo i s tenho de i r a Goa, vou consu l t a r uma an t i g a b ib l i o t e c a , fo i para i s so que v im à Índ i a . É uma pereg r i n a ç ão?" , pergun t ou e le . Respond i que não. Ou melho r , s im, mas não no sen t i d o re l i g i o s o do te rmo . Quando mui t o era um i t i n e r á r i o pr i v ado , se i l á , procu r a va somen te ras t o s . O senho r é ca tó l i c o , suponho , d i s se o meu companhe i r o . Todos os europeus são ca tó l i c o s , de cer t o modo, d i s se eu. Ou pe l o menos c r i s t ã o s , é pra t i c amen t e a mesma co i s a" .

O homem repe t i u o meu advé rb i o como se o sabo reasse . Fa lava um ing l ê s mui t o e legan t e , com pequenas pausas e as voga i s l evemen t e ar r a s t a da s e hes i t a n t e s , como é apanág i o de a lgumas un i ve r s i d a de s , perceb i . Prac t i c a l l y . . . Actua l l y , d i s se e le , "que pa l a v r a s cur i o s a s , ouv i- as mui t a s vezes em Ing l a t e r r a , vocês , europeus , usam mui t a s vezes es tas pa l a v r a s . Fez uma pausa mais l onga , mas perceb i que não t i n ha acabado de fa l a r . Nunca consegu i chega r à conc l u s ão se é por pess im i smo ou por op t im i smo , prossegu i u , o que é que l he parece?

Pergun t e i - lhe se não se impo r t a v a de exp l i c a r melho r . Bom, d i s se e le , é d i f í c i l exp l i c a r melho r . Por exemp lo , às

vezes pergun t o a mim próp r i o se é42uma pa l a v r a que ind i c a sobe rba ou se, pe l o con t r á r i o , quer s imp l e smen t e d i ze r c i n i smo . E também mui t o medo, ta l v e z . Está a

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percebe r? Não se i , d i s se eu, não é mui t o fác i l . Mas ta l v e z a pa l a v r a pra t i c amen t e não que i r a d i ze r pra t i c amen t e nada. O meu companhe i r o r i u . Era a pr ime i r a vez que r i a . -O senho r é mui t o háb i l , d i s se , ganhou-me ao mesmo tempo de i xou- me ganha r , pra t i c amen t e . Também eu r i , e depo i s ac res cen t e i imed i a t amen t e : se j a como fo r , no meu caso é pra t i c amen t e medo. Calámo-nos um bocado , depo i s o meu companhe i r o ped i u- me l i c e n ç a para fumar . Rebuscou num saco que t i n h a ao pé da cama e no qua r t o espa l hou- se o che i r o daque l e s c i ga r r o s i nd i a nos pequenos e per f umados fe i t o s de uma fo l h a de tabaco . Em tempos l i os Evange l hos , d i s se e le , um l i v r o mui t o es t r a nho .

Só es t r a nho? ", pergun t e i . Teve uma hes i t a ç ão . Também che i o de sobe rba , d i s se , sem o fensa . Rece i o não es ta r a percebe r mui t o bem, d i s se eu. Estava a re f e r i r - me a Cr i s t o , d i s se e le . O re l ó g i o da es ta ção ba teu meia- no i t e e meia . Sen t i a que o sono se es tava a apode ra r de mim. Do parque , at r á s das l i n h a s , chegou o croc i t a r dos cor vos . Varanas i é Benares , d i s se eu, é uma c i dade san t a , o senho r também va i em pereg r i n a ç ão?43

O meu companhe i r o apagou o c i ga r r o e toss i u . Vou para mor re r , d i s se , res t am-me poucos d ias de v i da . Aje i t o u a a lmo fada deba i x o da cabeça . Mas ta l v e z se j a melho r dorm i r , con t i n u ou , não temos mui t a s horas de sono, o meu combo io par t e às c i n co .

O meu par t e pouco depo i s , d i s se eu. Não tenha rece i o , d i s se e le , o cr i a do v i r á aco rdá- lo a tempo. Suponho que não te r emos ocas i ã o de nos vo l t a rmos a encon t r a r sob as aparênc i a s em que nos conhecemos, es tas nossas ac tua i s malas . Dese j o- l he boa v i agem.

Boa v i agem para s i também, respond i . 44

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Segunda Par t e

O meu gu i a af i rmava que o melho r res t a u r a n t e era o Mysore Res tau r an t do Coromande l , e eu t i n h a uma grande cur i o s i d a de em con f i rmá- lo . Na bou t i q u e do rés- do- chão compre i uma camisa branca , à ind i a na , e um par de ca l ç a s e legan t e s . Sub i ao meu quar t o e tome i um longo banho para la va r todas as marcas da v i agem. Os quar t o s do Coromande l têm mobí l i a a im i t a r o es t i l o co l on i a l , de bom gos t o . O meu quar t o dava para as t r a se i r a s , para um la r go amare l a do , cer cado de vege t a ção se l v agem. Era um quar t o enorme, com duas camas grandes cobe r t a s por duas co l c has mui t o bon i t a s . Ao fundo , ao pé da jane l a , hav i a uma esc r i v a n i n h a com uma gave t a ao cen t r o e t r ê s de cada lado . Fo i por pura casua l i d a de que esco l h i a ú l t ima gave t a da d i r e i t a para pôr os meus papé i s .

45Acabe i por desce r mui t o mais ta r de do que que r i a , mas em todo

o caso o Mysore f i c a v a aber t o a té à meia- no i t e . Era um res t au r a n t e com v id r a ç a s sob re a p i s c i n a , com mesas redondas e b iombos de bambu p in t a dos de ve rde . Os aba j u r e s das mesas t i n h am luzes azu i s e hav i a mui t o ambien t e . Um mús i co , sob re um es t r a do fo r r a do de verme l ho , en t r e t i n h a os c l i e n t e s com mús i ca mui t o d i s c r e t a . O cr i a do gu i ou- me at r a vé s das mesas e fo i mui t o so l í c i t o ao aconse l ha r- me a comida . Conced i- me t r ê s pra t o s e beb i sumo de manga f r e s c o . Os c l i e n t e s eram quase todos ind i a nos , mas na mesa ao lado da minha es tavam do i s senho r es ing l e s e s com ar dou to r a l que fa l a v am de ar t e drav í d i c a . Mant i n ham uma conve r sa mui t o grave e compe ten t e e duran t e todo o jan t a r d i ve r t i - me a con t r o l a r se as in f o rmações que fo r nec i am um ao ou t r o eram exac t a s . De vez em quando, um de le s comet i a er r o s c rono l ó g i c o s , mas o ou t r o parec i a não se aper cebe r . São cur i o s a s as conve r sa s ouv i das por acaso : d i r i a que eram ve l hos co l egas de un i ve r s i d a de e só quando um de le s con f i o u ao ou t r o que renunc i a v a ao voo do d ia segu i n t e para Colombo, perceb i que se t i n h am conhec i d o naque l e d ia . Ao sa i r , es t i v e ten t a do a en t r a r no Eng l i s h Bar do á t r i o , mas depo i s ache i que o meu cansaço não prec i s a v a de nenhuma a juda a l coó l i c a e sub i para o meu quar t o .

Quando o te l e f o ne tocou , es tava a lava r os den tes . De repen t e pense i que fos se a Theosoph i c ; Soc i e t y , que me prome te r a uma con f i rmação te l e f ó n i c a , mas ao pega r no te l e f o ne exc l u í a h ipó t e se ,

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46 tendo em con ta a hora . Depo i s lembre i - me que an tes do jan t a r t i n h a av i s ado a recepção de que uma to r ne i r a da casa de banho func i o nava mal . De fac t o , era da recepção . Descu l pe , senho r , es tá aqu i uma senho r a que dese j a fa l a r - l he . O quê?, pergun t e i , com a escova en ta l a da en t r e os den tes . Está aqu i uma senho ra que dese j a fa l a r com o senho r , repe t i u a voz da te l e f o n i s t a . Ouv i o c l i q u e da cav i l h a e uma voz fem in i n a , rouca e dec i d i d a , d i s se : Sou a pessoa que ocupava o seu quar t o an tes de s i . Prec i s o abso l u t amen t e de l he fa l a r , es tou no ha l l . Se espe ra r c i n co minu t o s vou te r cons i g o ao eng l i s h Bar , d i s se , a inda deve es ta r aber t o . Pre f i r o sub i r eu, d i s se , sem me dar tempo de rep l i c a r , é um assun t o da máx ima urgênc i a " . Quando ba teu eu t i v e r a apenas tempo de me vo l t a r a ves t i r . Disse que a por t a es ta va aber t a e e la en t r ou , parando um momento a o lha r para mim. O co r r edo r es tava na penumbra . Só v i que era a l t a e que t r a z i a um lenço sob re os ombros . Ent r ou e fechou a por t a . Eu es tava sen tado na po l t r o n a , em p lena luz , e levan t e i - me. Não d i s se nada, espe re i . E, de fac t o , e la fa l o u . Fa lou sem avança r um passo , com a mesma voz rouca e dec i d i d a que t i n h a ao te l e f o ne . Que i r a descu l pa r- me por es ta i n t r om i s s ão , deve acha r uma má educação inconceb í v e l , i n f e l i zmen t e há c i r c un s t â n c i a s em que não se pode procede r dou t r o modo.

Ouça, d i s se eu, a Índ i a é mis t e r i o s a por de f i n i ç ã o , mas as cha radas não são o meu fo r t e , poupe-me es fo r ç o s i nú t e i s . 47

Ela o lhou para mim com os tens i v a su rp r e sa . Deixe i s imp l e smen t e no seu qua r t o a lgumas co i s as que me

per t en cem, d i s se com ca lma. Venho buscá- las . Imag i nava que vo l t a s s e , d i s se eu, mas nãoespe ra va tão cedo , ou melho r , tão ta r de . A mulhe r o lhou para mim com redob r ada su rp r e sa .

Que quer d i ze r?" . Que você é uma lad r a " , d i s se eu. A mulhe r o lhou para a jane l a e t i r o u o lenço dosombros . Pareceu- me bon i t a , ou ta l v e z fosse a lu z f i l t r a d a

pe l o aba j u r que dava à sua cara um ar ar i s t o c r á t i c o e d i s t a n t e . Já não era mui t o j ovem e o seu corpo era mui t o e legan t e .

Você é mui t o de f i n i t i v o , d i s se . Passou a mão

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pe l a ca ra como se qu i s es se afugen t a r o cansaçoou um pensamen to . Os seus ombros es t r emece r am com um l i g e i r o

ar r ep i o . O que é que quer d i ze r rouba r?, pergun t ou . O s i l ê n c i o ca i u en t r e nós e de i- me con ta da to r ne i r a que con t i n u a va a go te j a r de modo exaspe r an t e . te l e f o ne i an tes de jan t a r " , d i s se eu, garan t i r am- me que a ar r an j a v am imed i a t amen t e .

um ru í d o in supo r t á v e l , rece i o que não me de i xedorm i r " . Ela so r r i u . Encos t a r a- se à cómoda de bambu comum braço ca í do ao longo do co rpo como se es t i v e s s e mui t o

cansada . Acho que te r á de se hab i t u a r , d i s se . Eu es t i v e aqu i uma semana e ped i dezenas de vezes que a ar r an j a s s em, por f im con f o rme i- me. Fez uma pequena pausa . Você é f r an cês?" .

Não, respond i . 48Olhou- me com ar des f e i t o .

Vim de táx i de Madura i " , d i s se e la , v i a j e i todo o d ia . Passou o l enço pe l a tes t a como se fos se um lenço de assoa r . Por um ins t a n t e teve uma exp res são desespe r ada , pareceu- me. A Índ i a é hor r í v e l " , d i s se , e as es t r a da s um in f e r n o . Madura i f i c a mui t o l onge , rep l i q u e i , porquê

Madura i? ". Ia para Tr i v and r um, depo i s , da l i , i r i a para

Colombo. Mas de Madras t a também há um av i ão para Colombo, ob j e c t e i .

Não que r i a apanha r esse , d i s se e la , t i n ha boasrazões , não lhe se rá d i f í c i l deduz i- la s .

Fez um ges t o cansado . De qua l que r modo j á o perd i " . Olhou- me com um ar i n t e r r o g a t i v o e eu d i s se :

Es tá tudo a l i onde o de i xou , na ú l t ima gave t a do lado d i r e i t o .

A esc r i v a n i n ha es ta va at r á s de l a , era uma esc r i v a n i n ha de bambu com can t o s de la t ã o e um grande espe l ho no qua l se re f l e c t i am os seus ombros nus . Ela abr i u a gave t a e pegou no maço de documen to s a tado com um e lás t i c o . É demas i ado es túp i d o , d i s se e la . Faz-se uma

co i s a des t a s e depo i s esquece- se tudo numa gave t a .

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Tive- o gua rdado duran t e uma semana no co f r e doho te l , e depo i s de i x e i - o aqu i enquan t o faz i a asmalas . Olhou- me como se espe ras se a minha con f i rmação .

De fac t o é mesmo es túp i d o , d i s se eu, a t r an s f e r ê n c i a de todo esse d inhe i r o é uma bur l a de

49grande enve rgadu r a , e depo i s você ca i numa d i s t r a c ç ão tão es túp i d a " .

Ta l vez es t i v e s s e demas i ado nervosa , d i s se e la . Ou demas i ado ocupada a v i nga r- se", ac res cen t e i . A sua car t a era no táve l , a sua v i ngança fe r o z , e e le não pode faze r nada, se você chega r a tempo. É só uma ques t ão de tempo" .

Os seus o lhos fa i s c a r am o lhando- me no espe l ho . Depo i s v i r o u-se de repen t e , v i b r an t e , com o pescoço h i r t o . Leu também a minha car t a! exc l amou com desdém.

Cop ie i a té uma par t e , d i s se eu. Ela o lhou- me com surp r e sa ou medo, ta l v e z . Cop iou?", repe t i u , porquê?".

Só a par t e f i n a l " , d i s se eu. Lamen to mui t o , fo i mais fo r t e do que eu. De res t o , não se i a quem é ende reçada , perceb i apenas que se t r a t a de um homem que a deve te r fe i t o so f r e r mui t o .

Era demas i ado r i c o , d i s se e la , pensava que pod i a compra r tudo , a té as pessoas . Depo i s fez um ges t o nervoso , apon tando para s i próp r i a , e eu perceb i .

Ouça, parece- me que percebo vagamen te o que se passou . Você não ex i s t i u duran t e anos , fo i sempre apenas um tes t a de fe r r o , a té que um d ia dec i d i u dar uma rea l i d a de a esse nome. E essa rea l i d a de é você mesma. Mas eu de s i conheço apenas o nome com que ass i nou , é um nome mui t o comum e não tenho i n t e n ções de sabe r mais nada.

na ve rdade" , d i s se e la , o mundo es tá che i o de Marga re t h s " . Afas t o u- se da esc r i v a n i n ha e fo i sen ta r- se no banco do

toucado r . Apo iou os co tove l o s nos j oe l h o s50e pôs a ca ra en t r e as mãos. F icou ass im mui t o tempo, sem d i ze r nada, escondendo a cara . Que pensa faze r agora?, pergun t e i . Não se i , respondeu , tenho mui t o medo. Tenho de es ta r nesse barco de Colombo, amanhã, senão todo aque l e d inhe i r o se evapo r a . -Ouça, d i s se eu, é no i t e a l t a , não pode i r para Tr i v and r um a es tas

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horas , e em todo o caso , não chega r i a a tempo do av i ão de amanhã. Amanhã de manhã, daqu i , há um av i ão para Colombo, es tá com sor t e porque , se se apresen t a r com tempo, ar r an j a l uga r , e a sua sa í da des t e ho te l es tá reg i s t a da .

Olhou para mim como se não percebesse . Olhou- me por mui t o tempo, i n t e n samen t e , es tudando- me. -Pe la minha par t e , você par t i u rea lmen t e" , ac res cen t e i , nes t e quar t o há duas camas con f o r t á v e i s . Pareceu descon t r a i r - se. Cruzou as pernas e esboçou um sor r i s o . Porque faz i s so?, pergun t ou . Não se i " , d i s se eu. Ta l vez eu tenha s impa t i a pe l o s fug i t i v o s . E, depo i s , também eu lhe roube i a lguma co i s a .

Deixe i a minha mala na recepção , d i s se e la . Ta l vez se j a mais pruden t e de i xá- la l á , va i buscá- la amanhã de manhã. Posso empres t a r- l he um p i j ama , somos quase do mesmo tamanho.

Ela r i u . Permanece apenas o prob l ema da to r ne i r a , d i s se e la .

Também r i . De qua l que r modo, você já es tá hab i t u a da , penso . O prob l ema é só meu. 51 VI

Le co rps huma in pou r r a i t b ien n 'ê t r e qu 'une appa rence , d i s se e le . I I cache no t r e réa l i t é , i l s ' épa i s s i t su r no t r e l um iè r e ou sur no t r e ombrep .

Levan t ou a mão e fez um ges t o vago. Ves t i a uma jaque t a l a r ga , branca ; a manga f l u t u o u sob re o pu l so magro . Bem, mas i s so não é a teoso f i a que o d i z . Vic t o r Hugo, Les Trava i l l e u r s de la Nle r v . Sor r i u e es tendeu- me uma beb i da . Ergueu o copo che i o de água como se fos se para br i n da r . A quê?, pense i . E depo i s ergu i também eu o copo e d i s se : À luz e à sombra . Ele vo l t o u a sor r i r . Descu l pe es te j an t a r demas i ado f r uga l " , d i s se , mas era a ún i ca mane i r a de conve r sa r com uma cer t a ca lma depo i s da sua breve v i s i t a des t a ta r de . Lamen to que os meus comprom i s sos

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não me tenham perm i t i d o recebê- lo com mais comod idade . É uma hon ra , d i s se eu, é mui t o s impá t i c o da sua par t e , não me

at r e ve r i a a espe ra r tan t o , . Raramen te recebemos v i s i t a s aqu i na sede,

prossegu i u no seu tom de vaga ju s t i f i c a ç ã o , mas penso te r perceb i d o que não é um s imp l e s cur i o s o .

Dei- me con t a que o meu b i l h e t e um pouco mis t e r i o s o , os meus te l e f o nemas , a minha v i s i t a da ta r de em que t i n h a apenas fe i t o a lusão a uma pessoa desapa r e c i d a " , tudo i s so parec i a uma mensagem em cód i go ; não pod i a con t i n u a r naque l e tom. Era necessá r i o exp l i c a r - me com c la r e za , com exac t i d ã o . Mas o que é que eu t i n h a que pergun t a r , a f i n a l? Só uma remo ta no t í c i a , um ras t o h ipo t é t i c o : uma poss í v e l p i s t a para chega r a Xav i e r .

Es tou à procu r a de uma pessoa , d i s se , chama-se Xav i e r Jana t a Pin t o , desapa r eceu há quase um ano, t i v e as ú l t imas no t í c i a s de l e em Bomba im, mas tenho boas razões para c re r que es tava em con t a c t o com a Theosoph i c a l Soc i e t y , e i s o mot i v o que me t r a z aqu i " . Ser i a uma ind i s c r i ç ã o pergun t a r- lhe qua i s os mot i v o s que o le vam a pensa r i s so?, pergun t ou o meu an f i t r i ã o .

Ent r ou um cr i a do com uma bande j a e nós ser v imo- nos com parc imón i a : eu por boa educação , e le cer t amen t e por háb i t o .

Quer i a sabe r se era membro da Theosoph i c a l Soc i e t y , d i s se eu.

O meu an f i t r i ã o o lhou- me nos o lhos . Não era , a f i rmou em voz ba i xa .

54-Mas mant i n ha uma co r r e spondênc i a convosco , d i s se eu. -Ta l vez" , d i s se e le , mas nesse caso t r a t a r - se- ia de uma

cor r e s pondênc i a pr i v ada e rese r v ada . Começámos a comer a lmôndegas de vege t a i s acompanhadas de um

ar r o z to t a lmen t e i ns í p i d o . O cr i a do espe rava de par t e com o tabu l e i r o na mão. A um ges t o do meu an f i t r i ã o desapa r e ceu d i s c r e t amen t e .

- Temos um arqu i v o , mas é rese r v ado aos nossos sóc i o s . De qua l que r modo, não i nc l u i a cor r e s pondênc i a pr i v ada , espec i f i c o u . Eu anu í em s i l ê n c i o , po i s aper ceb i - me de que e le es tava a conduz i r a conve r sa a seu be l- praze r e que era inú t i l eu con t i n u a r com pergun t a s d i r e c t a s e demas i ado exp l í c i t a s . O senho r conhece a Índ i a? , pergun t ou- me da í a pouco . Não, respond i , é a pr ime i r a vez que cá venho , a inda não perceb i bem onde es tou .

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Não es tava a re f e r i r - me conc r e t amen t e à geog ra f i a , prec i s o u , quer i a d i ze r a cu l t u r a . Que l i v r o s l eu?Mui t o poucos , respond i , ando agora a le r um que se in t i t u l a A t r a ve l su r v i v a l k i t , que me tem s ido bas t an t e ú t i l . E mui t o d i ve r t i d o , d i s se e le , g lac i a l , e mais nada?Bem, d i s se eu, mais a lgumas co i s as , de que agora não me lembro . Conco rdo que não v im prepa r ado . A ún i ca co i s a que reco r do bem é um l i v r o de Sch l ege l , mas não o mais conhec i d o dos do i s , 55o i rmão , c re i o , in t i t u l a v a- se Sobre a l i n gua e a sabedo r i a dos ind i a nos .

Ele re f l e c t i u e d i s se : deve ser um l i v r o an t i g o . Sim", d i s se eu, é de 1808".

Os a lemães sen t i am- se mui t o at r a í d o s pe l a nossa cu l t u r a , mui t a s vezes fo rmu l a v am ju í z o s i n t e r e s s an t e s sob re a Índ i a , não acha? "Ta l vez" , d i s se eu, não es tou à a l t u r a de o a f i rma r ca tego r i c amen t e .

Que pensa de Hesse , por exemp lo? Hesse era su í ç o , d i s se eu.

Não, não, prec i s o u o meu an f i t r i ã o , era a lemão, adqu i r i u a nac i ona l i d a d e su í ç a só em 1921 .

De qua l que r modo mor reu su í ç o" , in s i s t i . Ainda não me d i s se o que pensa de l e , re t o r q u i u o meu an f i t r i ã o em tom amáve l .

Era a pr ime i r a vez que sen t i a cresce r em mim uma fo r t e i r r i t a ç ã o . Aque l a sa l a i nósp i t a , escu r a , fechada , com bus t o s de bronze ao longo das paredes e as v i t r i n a s che i a s de l i v r o s ; aque l e i nd i a no sab i c hão e presunçoso que es tava a conduz i r a conve r sa a seu je i t o ; os seus modos en t r e condescenden t e s e as tuc i o s o s : tudo i s t o me provocava um mal- es ta r que, dava-me con t a , se es tava es tup i d amen t e a t r an s f o rma r em có l e r a . T inha v i ndo por razões bem d i f e r e n t e s e e le t i n ha- as igno r ado com desenvo l t u r a , ind i f e r e n t e à minha ans i edade que, sem dúv i da , t i n h a perceb i d o pe l o s meus te l e f o nemas e pe l o meu b i l h e t e . E es tava a l i a submete r- me a pergun t a s i d i o t a s sob re Hermann Hesse . Sen t i - me gozado .

Conhece o roso l i o? , pergun t e i - lhe , já a lguma vez o provou?. 56Cre i o que não, d i s se e le , o que é?.

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É um l i c o r i t a l i a n o que ago ra ra r amen t e se encon t r a , beb i a- se nos sa l ões burgueses do sécu l o XIX, é um l i c o r adoc i c ado e pega j o so . Hermann Hesse faz- me pensa r no roso l i o . Quando reg r e s sa r a I t á l i a mando- lhe uma gar r a f a , se é que a inda se encon t r a . Ele o lhou para mim sem percebe r se aqu i l o era ingenu i d ade ou inso l ê n c i a . Natu r a lmen t e era inso l ê n c i a , não era i s so que pensava de Hesse . Acho que não gos t a r i a , d i s se secamen te . Eu sou abs t ém i o , e a lém d i s so de tes t o co i s a s doces" . Dobrou o guardanapo e d i s se : Vamos tomar o chá?, . Passámos para as po l t r o n a s jun t o à es tan t e e o cr i a do en t r o u com a bande j a como se es t i v e s s e à espe ra a t r á s da cor t i n a . Com açúca r?" , pergun t ou- me o meu an f i t r i ã o , se r v i n do- me o chá. Não, obr i g ado , respond i , eu também não gos t o de co i s a s doces . Segu i u- se um longo e embaraçoso s i l ê n c i o . O meu an f i t r i ã o es tava de o lhos fechados , imóve l , por momentos pense i que t i v e s s e adormec i do . Ten te i ca l c u l a r a sua idade , sem sucesso . T inha um ros t o ve l ho , mas mui t o l i s o . Repare i que usava sandá l i a s de t i r a s , sem meias . O senho r é gnós t i c o? , pergun t ou- me de repen t e , mantendo os o lhos fechados . Cre i o que não, d i s se eu. E depo i s ac res cen t e i : Não, não sou, tenho apenas a lguma cur i o s i d a de . Ele abr i u os o lhos e o lhou para mim com mal í c i a , ou com i r o n i a . Até onde chega a sua cur i o s i d a de?. 57

Swedenbo rg , d i s se eu, Sche l l i n g , Ann i e Besan t : um pouco de todos , . Ele pareceu most r a r in t e r e s s e e eu espec i f i q u e i : A a lguns chegue i por v i a s i nd i r e c t a s , por exemp lo Ann ie Besan t . Traduz i u- a Fernando Pessoa , é um grande poe ta por t uguês , mor reu desconhec i d o em t r i n t a e c i n co . Pessoa" , d i s se e le , com cer t e z a .

Conhece- o?, pergun t e i . Alguma co i s a" , d i s se e le , como o senho r conhece os ou t r o s .

Pessoa dec l a r a v a- se gnós t i c o , d i s se eu, rosa- cruz , esc r e veu uma sér i e de poes i a s eso t é r i c a s i n t i t u l a d a s Passos da Cruz .

Nunca as l i , d i s se o meu an f i t r i ã o , mas conheço a lguma co i s a da sua v i da .

Sabe qua i s fo r am as suas ú l t imas pa l a v r a s?. Não", d i s se e le , qua i s?. Dêem-me os meus ócu l o s , d i s se eu. Era mui t o míope e qu i s en t r a r no

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ou t r o l ado com os ócu l o s- . O meu an f i t r i ã o so r r i u e não d i s se nada. Poucos minu t o s an tes

t i n h a esc r i t o um b i l h e t i n h o em ing l ê s , nas suas no tas pessoa i s usava f r equen t emen t e o ing l ê s , era a sua ou t r a l í n gua , fo r a c r i a do na Áf r i c a do Su l . Consegu i fo t o cop i a r esse b i l h e t i n h o , a ca l i g r a f i a é mui t o vac i l a n t e , na tu r a lmen t e , Pessoa es tava na agon i a , mas é dec i f r á v e l . Quer que l he d iga o que esc r e veu?.

O meu an f i t r i ã o abanou a cabeça como fazem os ind i a no s quando es tão de aco rdo .

" I know no t wha t tomor r ow wi l l br i n g" . Que ing l ê s tão esqu i s i t o , d i s se e le . Sim, d i s se eu, "que i ng l ê s tão esqu i s i t o . 58

O meu an f i t r i ã o le van t o u- se devaga r , fez- me s i na l para f i c a r sen t ado e a t r a ve s sou a sa l a . Que i r a descu l pa r- me um minu t o , d i s se , sa i ndo por uma por t a do fundo , por favo r não se in comode, . F ique i sen t ado a o lha r para o tec t o . Já dev i a se r mui t o ta r de , mas o meu re l ó g i o es tava parado . O s i l ê n c i o era abso l u t o . Pareceu- me ouv i r o t i c- tac de um re l ó g i o , nou t r a sa l a , mas ta l v e z fos se o range r da made i r a ou a minha imag i na ção . O cr i a do en t r ou sem d i ze r uma pa l a v r a e re t i r o u a bande j a . Começava a sen t i r um l i g e i r o mal- es ta r que, somado ao cansaço , me provocava uma sensação de incómodo, uma espéc i e de ind i s p o s i ç ã o . F ina l mente o meu an f i t r i ã o vo l t o u e an tes de se sen t a r es tendeu- me um pequeno enve l ope amare l o . Reconhec i imed i a t amen t e a le t r a de Xav i e r . Abr i o enve l ope e l i es te b i l h e t e : Caro mest r e e Amigo , as c i r c u n s t â n c i a s da v i da não me perm i t em vo l t a r a passea r ao longo das margens do Adya r . Torne i- me uma ave noc t u r n a e pre f i r o pensa r que ass im o qu i s o meu des t i n o . Reco rde-me ta l como me conheceu . Seu X. A da ta d i z i a : Calangu t e , Goa, 23 de Setembro . Olhe i para o meu an f i t r i ã o com ar es tupe f a c t o . Ele es ta va sen t ado e obse r vava- me com cur i o s i d a de , pareceu- me. Então já não es tá em Bomba imn, d i s se eu, es tá em Goa, no Fim de Setembro es tava em Goa. Ele fez um ges t o com a cabeça e não d i s se nada. Mas porque fo i para Goa?, pergun t e i . Se es tá ao cor r e n t e de a lguma co i s a , d iga- me. Ele cruzou as mãos sob re os joe l h o s e fa l o u- me com suav i d ade . Não se i , d i s se , não conheço a

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59v i da que leva o seu amigo , não o posso a juda r l amen t o mui t o . Ta l vez as t r an s f o rmações da sua v i da não lhe tenham s ido prop í c i a s , ou ta l v e z e le próp r i o ass im tenha quer i d o , nunca se deve ten t a r sabe r demas i ado das aparênc i a s dos ou t r o s " . Fez um sor r i s o t ím i d o e deu-me a en tende r que não t i n h a mais nada a d i ze r- me sob re o assun t o . Você a inda f i c a em Madras t a?"

Não", d i s se eu, f i q ue i t r ê s d ias , par t o es ta no i t e , já tenho b i l h e t e para um au toca r r o de l ongo cur so" .

Pareceu- me que nos seus o lhos perpassava um ar de rep r o vação . É o mot i v o da minha v i agem", sen t i necess i d ade de exp l i c a r .

Vou consu l t a r um arqu i v o de Goa, tenho de faze r um es tudo . T inha de lá i r de qua l que r modo, mesmo que a pessoa que procu r o es t i v e s s e nou t r o l uga r " .

O que é que v i s i t o u aqu i?" , pergun t o u . Est i v e em Mahaba l i p u r am e em Kanch i pu r am", d i s se , v i s i t e i os temp l o s todos" .

Dorm iu l á?". Dorm i num ho te l z i t o do es tado , mui t o económi co , fo i o que

encon t r e i " . Conheço- o", d i s se e le . E depo i s pergun t o u- me: De que é que

gos t ou mais?". De mui t a s co i s as , mas ta l v e z do temp l o de Ka i l a s an t h a . Tem

qua l que r co i s a de penoso e mági co" . Ele abanou a cabeça .

É uma es t r a nha de f i n i ç ã o , d i s se . Depo i s l evan t o u- se com len t i d ã o e murmurou : Acho que é ta r de , a inda tenho mui t a s co i s a s para esc r e ve r es ta no i t e , perm i t a- me que o acompanhe" . 60Levan t e i - me e e le precedeu- me pe l o l ongo cor r e do r a té à por t a da en t r a da . Pare i um momento com e le no át r i o e ape r t ámos a mão. Quando i a a sa i r , d i s se- lhe boa no i t e . Ele so r r i u e não respondeu . Depo i s , an tes de fecha r a por t a , d i s se- me:Cega, a Ciênc i a é i nú t i l que l eva a pa l a v r a . Louca , a Fév i ve o sonho do seu cu l t o . Um novo deus é só

uma pa l a v r a . Não procu r e s nem c re i a s : tudo éocu l t o , .

Desc i os poucos deg raus e de i a lguns passos na a lameda de se i x o s . Depo i s perceb i de repen t e e vo l t e i - me rap i d amen t e : eram ver sos de um poema de Pessoa , só que mos t i n h a d i t o em ing l ê s , por

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i s so não os reconhece r a imed i a t amen t e . O poema chamava- se Nata l . Mas a por t a já es tava fechada e o cr i a do , ao c imo da a lamedaz i nha , espe rava- mepara fecha r também o por t ão .

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VI I

O au toca r r o a t r a ve s sa va uma p lan í c i e dese r t a e ra r a s a lde i a s adormec i das . Depo i s de um t r o ço de es t r a da montanhosa com cur vas aper t a das que o moto r i s t a en f r e n t o u com uma desenvo l t u r a que me parece r a excess i v a , des l i z á v amos agora por rec t a s enormes , t r anqu i l a s , na s i l e n c i o s a no i t e i nd i a na . T i ve a imp res são que era uma pa i sagem de pa lme i r a s e ar r o za i s , mas o escu r o era demas i ado pro f undo para pode r d i zê- lo com cer t e z a e a luz dos fa r ó i s a t r a ve s sa va rap i d amen t e os campos apenas duran t e uma ou ou t r a s i nuos i d ade da es t r a da . Segundo os meus cá l c u l o s , Manga l o r e não dev i a es ta r l onge , se o au toca r r o t i n h a gas t o o tempo prev i s t o no horá r i o de percu r s o . Em Manga l o r e espe ravam-me duas so l u ções : uma espe ra de se te horas pe l a l i g a ção com o au toca r r o de Goa, 63ou um d ia no ho te l para o au toca r r o do d ia segu i n t e . Não sab i a bem o que faze r . Duran t e o t r a j e c t o t i n ha dorm ido pouco e mal , e es ta va bas t an t e cansado ; a ide i a de um d ia em Manga l o r e não me at r a í a par t i c u l a rmen t e . De Manga l o r e o meu gu i a d i z i a que, s i t u ada jun t o ao mar de Oman, a c i dade não conse r va pra t i c amen t e nada do seu passado . É uma c i dade moderna e indus t r i a l , com um p lano urban í s t i c o rac i o na l e um aspec t o anón imo. Uma das poucas c i dades da Índ i a em que não há mesmo nada que ver" .

Ainda es ta va a faze r as minhas con j e c t u r a s sob re a dec i s ão a tomar , quando o au toca r r o parou . Não pod i a ser Manga l o r e , es távamos em campo aber t o . O moto r i s t a des l i g o u o moto r e a lguns passage i r o s desce r am. A pr i n c í p i o pense i que era uma breve paragem para sa t i s f a z e r as necess i d ades dos passage i r o s , mas passados qu i n ze minu t o s pareceu- me que a paragem se pro l o ngava inso l i t amen t e . Além d i s so , o moto r i s t a t i n h a- se abandonado t r anqu i l amen t e sob re o encos t o do assen t o e parec i a dorm i r . Espe re i mais um quar t o de hora . Os passage i r o s que não se t i n h am apeado dorm iam pac i f i c amen t e . O ve l ho de tu r ban t e à minha f r en t e t i r a r a de uma ces t a uma longa t i r a de tec i d o e es tava a enro l á- l a com pac i ênc i a , a l i s a ndo com cu i dado as pregas a cada vo l t a do

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pano. Sussu r r e i - l he ao ouv i do uma pergun t a , mas e le v i r o u- se e o lhou para mim com um sor r i s o vaz i o , dando-me a en tende r que não perceb i a . Olhe i para fo r a pe l a jane l a e v i que à be i r a da es t r a da , num la r go de are i a hav i a uma espéc i e de bar r a cão com uma luz f r ou xa .

64Parec i a uma garagem fe i t a de tábuas . À por t a es tava uma mulhe r , v i que a lguém en t r a v a .

Dec i d i ped i r exp l i c a ç õe s ao condu t o r . Cus tava- me aco rdá- lo , gu i a r a mui t a s horas , mas ta l v e z fos se melho r i n f o rma r- me. Era um homem gordo que dorm ia de boca aber t a , toque i- l he no ombro e e le o lhou- me com ar con f u so . Porque es tamos parados?, pergun t e i . I s t o não é Manga l o r e , . Ele end i r e i t o u- se e a l i s o u o cabe l o . Não senho r , não é. E en tão porque es tamos parados?, É apenas uma paragem", d i s se e le , es tamos à espe ra de uma l i g a ção . A paragem não es tava prev i s t a no prog r ama do meu b i l h e t e , mas já me t i n h a hab i t u a do a cer t a s surp r e sas da Índ i a . De modo que me in f o rme i sem most r a r espan t o , apenas a t í t u l o de cur i o s i d a de . Era o au toca r r o para Mudab i r i e Karka l a , soube . Ten te i uma rép l i c a que me pareceu l óg i c a . os passage i r o s que vão para Mudab i r i e Karka l a não podem espe ra r soz i nhos , sem nós espe ra rmos com e les? Nesse au toca r r o há pessoas que apanham o nosso para i r em para Manga l o r e , respondeu- me o moto r i s t a ca lmamen te . É por i s so que es tamos à espe ra . Vo l t o u a es tende r- se no assen t o , dando-me a en tende r que gos t a r i a de con t i n u a r a dorm i r . Vo l t e i a fa l a r - l he com tom res i g nado . Quan to tempo vamos es ta r parados?Oi t en t a e c i n co minu t o s , respondeu com uma exac t i d ã o que não perceb i se era educação br i t â n i c a6 5 ou uma fo rma de requ i n t a da i r o n i a . E depo i s con t i n u ou : De qua l que r modo, se es tá cansado de espe ra r no au toca r r o , pode desce r , aqu i ao l ado há uma sa l a de espe ra .

Dec i d i que ta l v e z fosse melho r desen t o r p e ce r um pouco as pernas para i l u d i r o tempo. A no i t e es ta va suave e húmida com um in t e n so aroma de ervas . Dei uma vo l t a ao au toca r r o , fume i um c iga r r o encos t ado à escad i n ha pos t e r i o r e depo i s d i r i g i - me para a sa l a de espe ra . Era uma bar r a ca ba i xa e compr i d a , com uma lu z a

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pe t r ó l e o pendu rada à por t a . Na ombre i r a da por t a hav i a uma imagem em gesso co l o r i d o de uma d i v i n dade que desconhec i a . Dent r o hav i a uma dezena de pessoas sen t adas em bancos ao longo das paredes . Duas mulhe r e s , de pé jun t o à en t r a da , fa l a v am an imadamen te . Os poucos passage i r o s apeados do au to car r o t i n h am-se espa l hado pe l o banco c i r c u l a r ao cen t r o , à vo l t a de um p i l a r ao qua l es ta vam co l ados fo l h e t o s de vár i a s cores e um mani f e s t o amare l e c i d o que pod i a se r um horá r i o ou um anúnc i o do gove rno . No banco do fundo es tava sen t ado um rapaz de uns dez anos , de ca l ç ões e sandá l i a s . T inha cons i go um macaco agar r a do aos seus ombros , com a cabeça escond i d a no seu cabe l o , e as mãoz i nhas en l a çadas à vo l t a do pescoço do seu dono, numa at i t u d e de a fec t o e temor . Além da lâmpada a pe t r ó l e o à por t a , hav i a duas ve l a s sob re um ca i xo t e de emba lagem: a luz era mui t o f r ou xa e os can t o s da bar r a ca es tavam às escu r a s . F ique i a lguns momentos a o lha r para aque l a gen te que não parec i a dar por mim. Ache i es t r a nho aque l e menino só naque l e l uga r com o seu macaco .

66embora na Índ i a se j a f r equen t e encon t r a r c r i a n ças soz i nhas com an ima i s , e imed i a t amen t e pense i num menino que me era quer i d o e no seu modo de abraça r um boneco an tes de adormece r . Ta l vez fos se aque l a assoc i a ç ão de ide i a s que me impe l i u a té e le e sen t e i - me a seu lado . Ele o lhou para mim com do i s o lhos be l í s s imos e sor r i u-me, e também eu lhe so r r i ; e só en tão me aper ceb i com repugnânc i a de que o pequeno ser que t r a z i a às cos t a s não era um macaco mas um ser humano. Era um mons t r o . Uma at r o c i d ade da na tu r e z a , ou uma te r r í v e l en fe rm i dade t i n h am at r o f i a d o o seu corpo d i s t o r c e ndo fo rmas e d imensões . Os seus membros eram con t o r c i d o s e a l t e r a do s , sem ou t r a ordem e medida que a de um at r o z gro t e s c o . Também a cara , que agora desco r t i n a v a en t r e os cabe l o s do seu por t a do r , não t i n h a escapado à devas t a ção da de fo rm i dade . A pe l e áspe ra e as rugas pro f undas como fe r i d a s davam-lhe aque l e aspec t o s im i e s co que jun t amen t e com as suas fe i ç õ e s t i n ham provocado o meu equ í v oco . De humano, res t a vam naque l a cara os o lhos : do i s o lhos pequen í s s imos , agudos , i n t e l i g e n t e s , que se mov iam inqu i e t o s em todas as d i r e c ções como se es t i v e s s em assombrados pe l a ameaça de um grande per i g o , pe l o medo.

O rapaz saudou- me cord i a lmen t e e eu também lhe de i as boas-no i t e s e não fu i capaz de me levan t a r e i r- me embora . Para onde va i s? pergun t e i - l he . Vamos a Mudab i r i n , d i s se e le sor r i n d o , ao temp l o de Chand rana t he .

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67Fa lava um ing l ê s razoáve l , sem hes i t a ç õe s .

Fa las bem ing l ê s " , d i s se- lhe , quem to ens i nou?". Aprend i na esco l a " , d i s se o rapaz com orgu l h o . Ande i lá t r ê s

anos" . Depo i s fez um ges t o movendo len t amen t e a cabeça e teve uma exp res são de descu l pa . Ele não sabe i ng l ê s , não pôde i r à esco l a .

Cla ro , d i s se eu, compreendo . O rapaz fez uma ca r í c i a nas mãos que lhe ape r t a v am o pe i t o .

É o meu i rmão" , d i s se em tom afec t u o so , tem v i n t e anos" . Depo i s vo l t o u a assumi r a exp re s são de orgu l h o e d i s se : Mas conhece as Esc r i t u r a s , sabe- as de cor , é mui t o i n t e l i g e n t e .

Eu ten t e i mante r uma at i t u d e desp reocupada , como se es t i v e s s e um pouco d i s t r a í d o e ime r so nos meus próp r i o s pensamen to s para d i s s imu l a r a fa l t a de coragem para o lha r a pessoa de quem e le es tava a fa l a r . O que é que vocês vão faze r a Mudab i r i ? , pergun t e i .

São as fes t a s " , d i s se e le , os ja i n a s vêm de toda a Kera l a , há mui t o s pereg r i n o s nes t e s d ias" .

Vocês também são pereg r i n o s?. Não", d i s se e le , nós vamos de temp l o em temp l o , o meu i rmão é

Arban t n . Descu l pa , d i s se eu, Mas não se i o que i s so s i gn i f i c a , . Arban t é um pro f e t a ja i n an , exp l i c o u o rapaz pac i en t emen t e .

Lê o karma dos pereg r i n o s , ganhamos mui t o d inhe i r o . Então é ad i v i n h o .

Sim, d i s se o rapaz com candu r a , vê o passado e o fu t u r o " . Depo i s fez uma assoc i a ç ão de i de i a s68pro f i s s i o n a l e pergun t ou- me: queres conhece r o teu karma ? São c i n co rup i a s . De aco rdo , d i s se eu, pergun t a ao teu i rmão . O rapaz fa l o u docemen te ao i rmão e es te respondeu- lhe sussu r r a ndo , o lhando para mim com os seus o lh i t o s i nqu i e t o s . O meu i rmão pergun t a se te pode toca r na tes t a " , t r an sm i t i u - me o rapaz . O mons t r o fez um ges t o de assen t imen t o com a cabeça , espe rando . Cla r o que pode, se é necessá r i o " . O ad i v i n h o es tendeu a mãoz i t a con t o r c i d a e apo i ou o ind i c a do r na minha tes t a . F i cou ass im a lguns ins t a n t e s , f i x a ndo- me in t e n samen t e . Depo i s re t i r o u a mão e seg redou a lgumas pa l a v r a s ao ouv i do do i rmão . Segu i u- se uma cur t a d i s cus são ag i t a da . O ad i v i n h o

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f a l a v a com veemênc i a , parec i a con t r a r i a d o e i r r i t a d o . Quando te rm i na r am a d i s cus são , o rapaz v i r o u- se para mim com ar a f l i t o . Então , pergun t e i eu, posso sabe r?" . Lamen to mui t o , d i s se e le , o meu i rmão d i s se que não é poss í v e l , tu és um ou t r o " . Ah s im", d i s se eu, en tão quem sou? O rapaz vo l t o u a fa l a r com o i rmão e es te respondeu- lhe rap i d amen t e . I s so não impo r t a , t r an sm i t i u - me o rapaz , é apenas mayay.

E o que é maya?". É a aparênc i a do mundo", respondeu o rapaz , mas é apenas i l u s ão , o que con t a é o a tma.

E o a tma, o que é?, . O rapaz sor r i u da minha igno r ân c i a . "The sou l , d i s se , a a lma ind i v i d u a l , . Uma mulhe r en t r o u e fo i sen t a r- se no banco em f r en t e de nós . Transpo r t a v a um ces t o com uma6 9cr i a n ça a dorm i r . Eu o lhe i para e la e e la fez umráp i d o s i na l com as mãos ergu i d a s d ian t e da cara , em s ina l de respe i t o . Ju l gava que den t r o de nós hav i a apenas okarma, d i s se eu, a soma das nossas acções , doque fomos e do que seremos . O rapaz vo l t o u a sor r i r e fa l o u ao i rmão . O mons t r o o lhou para mim com os seus o lh i t o s agudos e fez o s i na l de do i s com os dedos . Oh não, exp l i c o u o rapaz . Há também o a tma, es tácom o karma mas é uma co i s a d i s t i n t a . E en tão se eu sou ou t r o , quer i a sabe r onde es tá o meu a tma, onde es tá agora" . O rapaz t r aduz i u para o i rmão e segu i u- se umacer r a da conve r sa . É mui t o d i f í c i l de d i ze r , t r an sm i t i u - me depo i s , e le não é capaz . Expe r imen t a pergun t a r- l he se dez rup i a s o a juda r i am" , d i s se eu. O rapaz d i s se- lhe e o mons t r o f i x o u- me no ros t o com os seus o lh i t o s . Depo i s pronunc i o u a lgumas pa l a v r a s d i r i g i d a s a mim, mui t o rap i d amen t e . Diz que não é uma ques t ão de rup i a s " , t r aduz i u o rapaz , não es tás aqu i , não é capaz de d i ze r- te onde es tás , . Fez-me um be lo sor r i s o e con t i n u ou : mas se qu i se r e s dar- nos as dez

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rup i a s ace i t amo- las i gua lmen t e . Cla ro que tas dou", d i s se eu, mas pe l o menospergun t a- l he quem sou agora" . O rapaz fez de novo um sor r i s o i ndu l g en t e edepo i s d i s se : mas i s so é apenas o teu maya, de que te ser ve sabê- lo?, . Cer t o , d i s se eu, tens razão , não ser ve de nada" . Depo i s t i v e uma ide i a e d i s se : pede- lhe que ten t e ad i v i n h a r " . 70O rapaz o lhou para mim es tupe f a c t o . Ad i v i n h a r o quê?. Ad i v i n h a r onde es tá o meu atmay , d i s se , não d i s ses t e que é um ad i v i n h o?. O rapaz t r an sm i t i u - l he o meu ped i do e o i rmão respondeu- lhe brevemen t e . Diz que pode ten t a r , t r aduz i u , mas não garan t e . Não tem impo r t â n c i a , que ten t e mesmo ass im, . O mons t r o f i x o u- me com mui t a i n t e n s i d ade , l ongamen t e . Depo i s fez um ges t o com a mão e eu espe re i que e le fa l a s s e , mas não fa l o u . Os seus dedos mov iam-se l i g e i r o s no ar desenhando ondas , depo i s fez uma concha com as mãos como para reco l h e r água imag i ná r i a . Sussu r r o u a lgumas pa l a v r a s . Diz que es tás num barco , seg redou- me por sua vez o rapaz . O mons t r o fez um ges t o es tendendo as pa lmas das mãos para a f r en t e e f i c o u imóve l . -Num barco , d i s se eu. Pergun t a- l he onde, depres sa , que barco é?O rapaz encos t ou o ouv i do à boca do i rmão . Vê mui t a s l uzes . Não vê mais nada, é i nú t i l i ns i s t i r e s . O ad i v i n h o assumi r a de novo a sua pos i ç ão in i c i a l , com a ca ra escond i d a en t r e os cabe l o s do i rmão . Pegue i em dez rup i a s e en t r e gue i - l has . Sa í para a escu r i d ã o da no i t e e acend i um c iga r r o . Det i v e- me a o lha r para o céu e para a or l a escu r a da vege t a ção à be i r a da es t r a da . O au toca r r o de Mudab i r i já não dev i a es ta r l onge . 71

Terce i r a Par t e

VI I I

O gua rda era um ve l ho t e de ros t o enrugado e co rd i a l , com uma coroa

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de cabe l o s brancos que sob res sa í am na sua pe l e cor- de-aze i t o n a . Fa lava um por t uguês per f e i t o e quando lhe d i s se o meu nome fez- me um grande sor r i s o abanando a cabeça , como se es t i v e s s e mui t o con t en t e de me ve r . Exp l i c o u- me que o senho r Pr i o r es ta va a d i ze r a missa da ta r de e que me ped i a para o espe ra r na b ib l i o t e c a . Ent r egou- me um car t ã o onde l i : Se ja benv i ndo a Goa. Vou te r cons i g o à b ib l i o t e c a às 18, 30. Se prec i s a r de a lguma co i s a , Teo tón i o es tá à sua d i spos i ç ã o . Padre Pimen te l . Theo tón i o acompanhou-me sub i ndo a escada a conve r sa r . Era fa l a do r e desenvo l t o , v i ve r a mui t o tempo em Por t uga l , em Vi l a do Conde, d i s se , onde t i n h a paren t e s , gos t a va dos bo l o s por t u gueses , espec i a lmen t e de pão-de-ló . 73

A escada era de made i r a escu ra e le vava a uma grande ga l e r i a mal i l um i nada , com uma mesa compr i d a e um mapa-mundo. Nas paredes hav i a quad ros com f i g u r a s em tamanho na tu r a l , homens graves de barbas , eneg rec i d o s pe l o tempo. Theo tón i o de i xou- me à por t a da b ib l i o t e c a e vo l t o u a desce r ve l o zmen t e como se t i v e s s e mui t o que faze r . A sa l a era ampla e f r e s c a com um pene t r a n t e che i r o a fechado . As es tan t e s t i n h am to r c i d o s bar r o co s e embut i d o s de mar f im , mas em mau es tado , pareceu- me. Hav i a duas mesas compr i d a s com pernas to r neadas e a lgumas mesas ba i xas jun t o às paredes , com bancos de ig r e j a e ve l has po l t r o n a s de pa l ha . Dei uma o lhade l a à pr ime i r a es tan t e da d i r e i t a , v i a lguns l i v r o s de pa t r í s t i c a e a lgumas crón i c a s do sécu l o XVI I da Companh i a de Jesus , pegue i em do i s l i v r o s ao acaso e sen te i - me na po l t r o n a jun t o à por t a da en t r a da . Sobre a mesa ao lado es tava um l i v r o abe r t o , mas não repa r e i ne l e , fo l h ee i um daque l e s em que t i n h a pegado, a Relação do novo caminho que fez por Ter r a e por mar , v i ndo da Índ i a para Por t uga l , o Padre Manoe l God inho da Companh i a de Iesu . O có l o f o n d i z i a : Em L i sboa na Of f i c i n a de Henr i q ue Va len t e de Ol i v e i r a , Impres so r de l Rey N. S. , Anno 1665. Manoe l God inho t i n h a uma v i são pragmá t i c a da v i da , o que não con t r a s t a v a de modo a lgum com a sua função de guard i ã o da fé ca tó l i c a naque l e enc l a ve da Cont r a-Refo rma cer cado pe l o pan teão h indu . A sua nar r a ção era prec i s a e c i r c un s t a n c i a da , sem cer imón i a s nem re t ó r i c a . Não gos t a va de metá f o r a s nem comparações , aque l e padre ; t i n h a um o lho es t r a t é g i c o , d i v i d i a a te r r a em zonas favo r á ve i s74e des f a vo r á v e i s e conceb i a o Ociden t e c r i s t ã o como o cen t r o do mundo. T inha chegado ao f im do longo preâmbu l o ded i c ado ao Rei ,

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quando, sem sabe r porquê , t i v e a sensação de não es ta r soz i nho . Ta l vez tenha ouv i do um leve range r ou uma resp i r a ç ão ; ou ta l v e z , com mais probab i l i d a d e , t i v e s imp l e smen t e a sensação que se expe r imen t a quando um o lha r nos f i x a . Levan t e i os o lhos e o lhe i em vo l t a . No so fá , en t r e as duas jane l a s , no ou t r o ex t r emo da sa l a , a mancha escu r a , que quando eu en t r a r a me parece r a um ves t i d o a t i r a d o para as cos t a s da cade i r a , v i r o u- se devaga r , exac t amen t e como se es t i v e s s e à espe ra do momento de ser o lhado , e f i x o u- me. Era um ve l ho com um ros t o compr i d o e esca l a v r a do e a cabeça cobe r t a por um chapéu de fo rma ind i s t i n t a .

Se ja benv i ndo a Goa", d i s se em voz ba i x a . -Cometeu uma imp rudênc i a em v i r de Madras t a , a es t r a da es tá che i a de band i dos , . T inha uma voz mui t o rouca e por vezes ar f a va . Olhe i para e le es tupe f a c t o . Pareceu- me es t r a nho que usasse a pa l a v r a band i dos , e a inda mais s i ngu l a r que conhecesse a minha proven i ê n c i a . E a paragem noc t u r n a naque l e luga r hor r í v e l não lhe deu cer t amen t e nenhum con f o r t o , ac res cen t o u . É jovem e empreendedo r , mas mui t a s vezes tem medo, não dar i a um bom so l dado , provave lmen t e ser i a venc i d o pe l a coba rd i a . Olhou- me com indu l g ên c i a . Não se i porquê , sen t i um grande embaraço que me imped i u de responde r . Mas como sab i a e le da minha v i agem?, pense i . Quem o t i n h a i n f o rmado?75

Não se preocupe , d i s se o ve l ho como se ad i v i n h a s se os meus pensamen to s . Tenho mui t o s i n f o rmado r e s .

Pronunc i o u a f r a se num tom quase ameaçado r , e i s t o causou- me uma cur i o s a imp res são . Estava mos a fa l a r por t uguês , l embro- me, e as suas pa l a v r a s eram f r i a s e apagadas , como se en t r e e las a sua voz houvesse uma remo ta d i s t â n c i a . Porque fa l a v a daque l a mane i r a , pense i , quem pode r i a se r e le? A grande sa l a es tava na penumbra e e le encon t r a v a- se no ou t r o ex t r emo, longe de mim uma mesa escond i a da minha v i s t a par t e do seu corpo . Tudo i s t o , j un t amen t e com a surp r e sa , me imped i r a de obse r va r o seu aspec t o . Mas ago ra repa r e i que usava um chapéu t r i a n gu l a r de pano. a barba longa e gr i s a l h a var r i a- l he o pe i t o cobe r t o por um co l e t e bordado com f i o s de pra t a . Pe lo ombros t i n h a um capo t e pre t o , l a r go , à moda an t i g a , com as mangas tu f adas . Leu cer t amen t e a surp r e sa na minha cara , ar r edou a cade i r a e sa l t o u para o meio da sa l a com uma ag i l i d a d e insuspe i t á v e l . Usava bo tas a l t a s com uma dobra na coxa e uma espada à c i n t u r a . Fez um ges t o tea t r a l um pouco r i d í c u l o ,

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desc r e vendo um grande arco com o braço d i r e i t o que depo i s l evou ao pe i t o e exc l amou com voz ton i t r u a n t e : Sou Afonso de Albuque r que , Vice- re i das Índ i a s!

Só nesse momento me de i con ta de que era louco . Dei- me con ta d i s so e ao mesmo tempo pense i cu r i o s amen t e que e le era mesmo Afonso de Albuque r que , e tudo i s t o não me causou espan t o : provocou- me apenas uma ind i f e r e n ç a cansada , como se tudo fos se necessá r i o e i ne l u t á v e l . 76O ve l ho obse r vava- me com ar receoso , descon f i a d o , com o lh i t o s c i n t i l a n t e s . Era a l t o , majes t o so , sobe rbo . Perceb i que es tava à espe ra que eu fa l a s s e ; e eu fa l e i . Mas as pa l a v r a s sa í r am-me sem eu quere r , sem con t r o l o da minha von t ade . Você parece- se com Ivan o Ter r í v e l , d i s se eu, ou melho r , parece- se com o ac to r que o rep r e sen t a v a . Ele não d i s se nada e le vou a mão ao ouv i do . Estava a re f e r i r - me a um ve l ho f i lme , exp l i q u e i . Ve io- me à memór i a um ve l ho f i lme" . E enquan t o eu d i z i a i s t o , no seu ros t o v i s l umb rou- se um c la r ã o , como se uma chama br i l h a s s e a l i per t o numa la r e i r a . Mas não hav i a nenhuma la r e i r a , a sa l a es tava cada vez mais escu r a , ta l v e z fos se o ú l t imo ra i o do so l que se es tava a pôr . O que é que ve i o cá faze r?" , gr i t o u de repen t e . O que é que quer de nós?. Nada, d i s se eu, não quero nada. Vim in ves t i g a r o arqu i v o , é a minha pro f i s s ã o , es ta b ib l i o t e c a é quase desconhec i d a no Ociden t e . Procu r o c rón i c a s an t i g a s . O ve l ho a t i r o u o amplo capo t e para o ombro , exac t amen t e como fazem os ac to r e s de tea t r o quando es tão para se de f r o n t a r em due l o . É ment i r a! , ber r ou com veemênc i a , ve i o por ou t r omot i v o! A sua v i o l ê n c i a não me assus t a va , não t i n ha medo que e le me agred i s s e : e con t udo sen t i - me es t r a nhamen t e sub j ugado , como se e le t i v e s s e descobe r t o uma cu l pa que t i n h a escond i d a den t r o de mim. Ba i xe i os o lhos de vergonha e v i que o l i v r o aber t o em c ima da mesa era San to Agos t i n h o . L i es tas pa l a v r a s : Quo modo praesc i a n t u r fu t u r a . Era77apenas uma co i n c i d ên c i a ou a lguém quer i a que eu les se aque l a s pa l a v r a s? E quem, a não se r o ve l ho? Disse r a- me que t i n h a os seus in f o rmado r e s , fo r am pa la v r a s suas , e i s t o pareceu- me uma co i s a lúgub r e e sem sa í da .

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Vim procu r a r Xav i e r , con fe s se i , é ve rdade , ando à procu r a de l e .

Ele o lhou para mim com ar t r i u n f a n t e . Agora hav i a i r o n i a no seu ros t o e ta l v e z mesmo desp re zo . E quem é Xav i e r?" .

Aque l a pergun t a pareceu- me uma t r a i ç ã o , porque sen t i que queb rava um aco rdo tác i t o , que e le sab i a quem era Xav i e r e que não dev i a pergun t a r- mo. E eu não quer i a d i ze r- l ho , também sen t i a i s so . Xav i e r é meu i rmão , ment i .

Ele pôs- se a r i r fe r o zmen t e e espe t ou o ind i c a do r na minha d i r e c ção . Xav i e r não ex i s t e " , d i s se , é apenas um fan t a sma. Fez um ges t o aba rcando a sa l a . Estamos todos mor to s , a inda não percebeu? Eu es tou mor to , e es ta c i dade es tá mor t a , e as ba ta l h a s , o suo r , o sangue , a g ló r i a e o meu pode r : es tá tudo mor to , nada ser v i u para nada.

Não, d i s se eu, sempre f i c a a lguma co i s a . O quê?, pergun t ou e le . A reco r da ção? A memór i a? Estes l i v r o s?

Deu um passo na minha d i r e c ç ão e eu sen t i uma grande repugnânc i a , po i s j á sab i a o que e le ia faze r , não se i como, mas sab i a- o. Empur r ou com a pon ta da bo ta um pequeno embru l ho que es tava a seus pés , e v i que era um ra t o mor t o . Ele fez rebo l a r o an ima l pe l o chão e d i s se com sar casmo: Sou es te ra t o?. Vo l t o u a r i r e o seu r i s o ge l ou- me o sangue . Eu sou o f l a u t i s t a de Hamel i n! , gr i t o u . 78Depo i s a sua voz to r nou- se a fáve l , chamou-me pro f e s s o r e d i s se- me: descu l pe se o aco rde i " . Descu l pe- me se o aco rde i , d i s se o Padre Pimen te l . Era um homem dos seus c i nquen t a anos , de f í s i c o robus t o e exp re s são f r an ca . Estendeu- me a mão e eu l evan t e i - me es t r emunhado . -Mui t o obr i g ado" , d i s se- lhe , es tava no meio de um pesade l o " . Ele sen tou- se na po l t r o n a ao meu lado e t r anqu i l i z o u- me com um ges t o . Receb i a sua car t a , d i s se , o arqu i v o es tá à sua d i spos i ç ã o , pode f i c a r o tempo que qu i se r , ca l c u l o que es ta no i t e durma cá, já l he mande i prepa r a r o quar t o . Theo tón i o en t r ou com o tabu l e i r o do chá e um bo lo que me pareceu pão-de-ló . - Obr i gado , d i s se eu, agradeço a sua hosp i t a l i d a d e , mas es ta no i t e não f i c o , vou para Calangu t e e já a lugue i um ca r r o , quer i a ten t a r

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sabe r a lguma co i s a sob re uma pessoa . Vo l t a r e i daqu i a a lguns d ias . 79 IXTUDO pode acon t e ce r na v i da , até dorm i r no ho te l Zuar i . Na a l t u r a pode rá parece r- nos um acon t e c imen t o não par t i c u l a rmen t e fe l i z ; mas na reco r dação , como sempre nas reco r dações , pur i f i c a d a das sensações f í s i c a s imed i a t a s , dos che i r o s , das cores , da v i s t a daque l e b i cha r o c o deba i x o do lava t ó r i o , a c i r c un s t â n c i a perde os con t o r n o s e a imagem melho r a . A rea l i d a de passada é sempre menos má do que e fec t i v amen t e fo i : a memór i a é uma fa l s á r i a espan t o sa . É-se desones t o mesmo sem quere r . Hoté i s como es te j á povoam o nosso imag i ná r i o : j á os encon t r ámos nos l i v r o s de Conrad ou de Maugham, em cer t o s f i lmes amer i c anos baseados nos romances de Kip l i n g ou de Bromf i e l d : quase nos parece fam i l i a r . Chegue i ao ho te l Zuar i uma no i t e , j á ta r de , e fo i uma esco l ha fo r ç ada , como mui t a s vezes acon t e ce80na Índ i a . Vasco da Gama é uma v i l a excepc i o na lmen t e fe i a do es tado de Goa, escu r a , com vacas que andam pe la s ruas , gen te pobre ves t i d a à oc i den t a l , herança da permanênc i a por t uguesa , e por t an t o com um ar de misé r i a sem mis t é r i o Os ped i n t e s abundam, mas não há aqu i temp l o ou luga r e s sag rados , e es tes pobres não pedem e nome de Vishnu e não o fe r e cem bênçãos e fó rmu l a s re l i g i o s a s : são tac i t u r n o s e a tón i t o s , como mor to s .

No ha l l do ho te l Zuar i há um grande ba l c ão semi c i r c u l a r a t r á s do qua l es tá um recepc i o n i s t a gordo sempre a fa l a r ao te l e f o ne . Reg i s t a o c l i e n t e a fa l a r ao te l e f o ne ; en t r e ga- lhe a chave a fa l a r ao te l e f o ne e, de madrugada , quando a pr ime i r a c l a r i d a de anunc i a que se pode f i n a lmen t e renunc i a r à hosp i t a l i d a d e do qua r t o , l á es tá e le a fa l a r ao te l e f o ne em voz ba i x a , monótona , i ndec i f r á v e l . Com quem es ta r á sempre a fa l a r o recepc i o n i s t a do ho te l Zuar i?

Há também um eno rme d in i n g- room, no pr ime i r o anda r do ho te l Zuar i , con fo rme o le t r e i r o por c ima da por t a : mas nessa no i t e es tava às escu r a s e sem mesas e eu jan t e i no pá t i o , um pequeno pá t i o com buganv í l i a s e f l o r e s mui t o per f umadas e mesas ba i x as com banqu i nhos de made i r a e uma luz mui t o f r ou xa . Comi l agos t i n s do tamanho de lagos t a s e doce de manga, beb i chá e uma espéc i e de v i nho que sab i a a cane l a ; tudo por uma quan t i a co r r e s ponden t e a t r e zen t o s escudos , o que mui t o me an imou. Em vo l t a do pá t i o

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ergu i a- se a varanda para a qua l davam os quar t o s e por en t r e as pedras do pá t i o co r r i a um coe l ho branco . Hav i a uma fam í l i a i nd i a na a j an t a r numa mesa do fundo . 82 Ao lado da minha mesa es ta va uma senho ra lou r acom idade i nde f i n i d a , de uma be l e za murcha . Comiacom t r ê s dedos , à moda i nd i a na , fazendo bo l i n h a sper f e i t a s de ar r o z que ensopava no molho . Pareceu- me ing l e s a e era- o. T inha um o lha r de louca , mas só de vez em quando. Depo i s con t ou- me uma h i s t ó r i a que não me parece opor t u no re l a t a r . Pode mesmo te r s i do um sonho mau. De res t o , o ho te lTuar i não é prop í c i o a sonhos cor- de-rosa .

83ERA ca r t e i r o em Fi l a dé l f i a , aos dezo i t o anos já t r o t a v a

pe l a s ruas com a mala a t i r a c o l o , sempre , todas as manhãs , de Verão quando o as fa l t o é um melaço e de Inve r no quando se esco r r e ga na neve ge l ada . Ass im duran t e dez anos , a leva r ca r t a s . Tu não imag i na s quan t a s car t a s d i s t r i b u í , mi l ha r e s . Eram todos senho r es , nos enve l opes . Car t a s de todas as par t e s do mundo: Miami , Par i s , Lond res , Caracas . Bom-d ia , senho r . Bom-d ia , senho r a . Sou o car t e i r o , . Levan t ou o braço e apon t ou um grupo de jovens na pra i a . O so l es tava a pôr- se, a água c i n t i l a v a . Pescado r es , ao nosso lado , prepa r a vam um barco . Eram homens seminus com um pano à c i n t u r a . -Aqu i somos todos igua i s " , d i s se , não há senho r es , . Olhou para mim com uma exp res são mal i c i o s a . Tu és um senho r?"85O que é que achas?

Olhou para mim duv i doso . Mais l ogo te dou a respos t a . Depo i s i nd i c o u as pequenas bar r a ca s de fo l h a s de pa lme i r a que se ergu i am à nossa esque r da , apo i adas às dunas . Nós v i vemos a l i , é a nossa a lde i a , chama-se Sunn. Sacou de uma ca i x i n h a de made i r a com mor ta l h a s e mis t u r a e enro l o u um c iga r r o . Fumas?

Norma lmen t e não, d i s se eu, mas ago ra fumo, se me deres um". Prepa r ou também um para mim e d i s se : Este tabaco é bom, dá a leg r i a , tu és a leg r e?"Ouve, d i s se eu, es ta va a gos t a r da tua h i s t ó r i a , con t i n u a a con t a r .

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Bem, d i s se e le , num d ia ia por uma rua de Fi l a dé l f i a , es ta va mui t o f r i o , andava a en t r e ga r o cor r e i o , era de manhã, a c i dade es tava cobe r t a de neve , é tão fe i a F i l a dé l f i a , perco r r i a ruas enormes , depo i s met i por um beco longo e escu ro , apenas um ra i o de so l que consegu i r a rompe r a t r a vé s do nevoe i r o que o i l um i na va ao fundo . Eu conhec i a aque l e beco , ia l á le va r o co r r e i o todos os d ias , era uma rua que te rm i nava no muro que c i r c undava uma fáb r i c a de au tomóve i s . Bem, sabes o que v i naque l e d ia? Ad i v i n h a . -.

Não faço ide i a , d i s se eu. Ad i v i n h a . Des i s t o , é demas i ado d i f í c i l . O mar , d i s se e le . Vi o mar . Ao fundo do beco ; hav i a um be lo mar azu l com ondas enc re spadas de espuma e uma pra i a arenosa e pa lme i r a s . Que te parece , hem? Cur i o so , d i s se eu. 86O mar, t i n h a- o v i s t o apenas no c i nema ou nos pos t a i s que v i nham de Miami ou de Havana . E aque l e mar era parec i d o , um oceano , mas sem n inguém, com a pra i a dese r t a . Pense i : t r ou xe r am o mar a Fi l a dé l f i a . E a segu i r pense i : é uma mi ragem como se lê nos l i v r o s . O que é que tu pensa r i a s?A mesma co i s a- , d i s se eu. Cla ro ; só que o mar não pode chega r a Fi l a dé l f i a . E as mi ragens acon t e cem no dese r t o , quando o so l es tá a p ique e tens mui t a sede. E naque l e d ia es ta va um f r i o dos d iabos , es tava tudo che i o de neve su j a . Ass im, aprox ime i- me devaga r i n h o , a t r a í d o por aque l e mar , com von t ade de mergu l ha r ne l e , embora es t i v e s s e f r i o , porque aque l e azu l era um conv i t e e as ondas c i n t i l a v am, o so l i l um i n ava- as. Fez uma breve pausa e puxou uma fumaça . Sor r i a com ar ausen t e e d i s t a n t e , rev i v e ndo aque l e d ia . Era uma p in t u r a . T inham p in t a do o mar , aque l a s a lmas do d iabo . Em Fi l a dé l f i a às vezes fazem i s so , é uma ide i a dos arqu i t e c t o s , p in t am no c imen t o pa i sagens , va l e s , bosques e co i s a s no géne ro , ass im não te parece tan t o que v i ves numa c i dade de merda . Es tava a do i s passos daque l e mar no muro, com a minha mala a t i r a c o l o , no fundo do beco , o ven t o redemo i nhava e por ba i xo da are i a dourada rodop i a vam fo l h a s secas , papé i s , um saco de p lás t i c o . Pra i a su j a , em Fi l a dé l f i a . Olhe i para e le um momento e pense i : se o mar não va i te r com Tommy, Tommy va i te r com o mar . Que achas?-Conhec i a ou t r a ver são- , d i s se eu, mas a i de i aé a mesma

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87Pôs-se a r i r : I sso mesmo, d i s se e le . E en tão

sabes o que f i z? Ad i v i n h a . Não faço i de i a , . Ad i v i n h a .

Des i s t o , d i s se eu, é demas i ado d i f í c i l . Abr i o ca i x o t e do l i x o e de i t e i lá a minha mala : F ica a í qu i e t i n h a , cor r e s pondênc i a . Depo i s fu i co r r e r aos cor r e i o s cen t r a i s e ped i para fa l a r com o d i r e c t o r . Prec i s o de t r ê s meses de ordenado ad i an t a do , d i s se- lhe , o meu pa i tem uma doença grave , es tá no hosp i t a l , ve j a es tes a tes t a dos médi cos . Ele d i s se : pr ime i r o ass i na es ta dec l a r a ç ão . Eu ass i ne i e receb i o d inhe i r o .

Mas o teu pa i es ta va rea lmen t e doen te? Cla ro que es tava , t i n h a um canc r o . Mas, de qua l que r modo, mor r i a na mesma, a inda que eu con t i n u a s se a leva r a cor r e s pondênc i a aos senho r es de F i l a dé l f i a .

É l óg i c o , d i s se eu. Trouxe apenas uma co i s a , d i s se e le , ad i v i n h a- ,

Na verdade é demas i ado d i f í c i l , é i nú t i l , des i s t o . A l i s t a te l e f ó n i c a " , d i s se e le com sa t i s f a ç ão . A l i s t a te l e f ó n i c a?

Exac t o , a l i s t a te l e f ó n i c a de Fi l a dé l f i a . Fo i toda a minha bagagem, é tudo o que me res t a da Amér i c a .

Porquê?, pergun t e i - lhe . A co i s a começava a in t e r e s s a r- me. Esc revo pos t a i s . Agora sou eu que esc re vo aos senho res de

Fi l a dé l f i a . Pos ta i s com um be lo mar e a pra i a dese r t a de Calangu t e , e por de t r á s esc r e vo mui t o s cumpr imen t o s do car t e i r o Tommy. Chegue i à l e t r a C. Cla ro que sa l t o os ba i r r o s que não

88me in t e r e s s am e esc r e vo sem se l o , a mul t a paga- a o des t i n a t á r i o . Há quan t o tempo es tás aqu i?" , pergun t e i - l he . Quat r o anos" , d i s se e le . A l i s t a te l e f ó n i c a de F i l a dé l f i a deve ser ex tensa" . Sim, d i s se e le , é enorme. Mas de qua l que r modo não tenho pressa , tenho a v i da toda" . O grupo na pra i a t i n h a fe i t o uma grande fogue i r a , a lguém começou a can t a r . Quat r o pessoas sepa ra r am- se do grupo e aprox ima r am-se, t r a z i am f l o r e s no cabe l o e sor r i am para nós . Uma rapa r i g a t r a z i a pe l a mão uma menina de cer ca de dez anos .

A fes t a va i começa r , d i s se Tommy, va i se r uma grande

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f es t a , é o equ i nóc i o . Qua l equ i nóc i o qua l h i s t ó r i a " , d i s se eu, o equ i nóc i o é a v i n t e e t r ê s de Setembro , es tamos em Dezembro" . Enf im , uma co i s a parec i d a " , rep l i c o u Tommy. A menina deu- lhe um be i j o na tes t a e depo i s fo i- se embora com os ou t r o s . Não se pode d i ze r que se j am mui t o novos" , d i s se eu, parecem pa i s de fam í l i a . São os pr ime i r o s que chega r am", d i s se Tommy, os Pi l g r im s . Depo i s o lhou para mim e d i s se : Porquê , tu és como?"

Como e les" , respond i . -Estás a ver?" , d i s se e le . Prepa r ou ou t r o c i ga r r o , par t i u- o ao meio e deu-me metade . Que mot i v o te t r ou xe aqu i?" , pergun t ou . Procu r o um t i p o que se chama Xav i e r , às vezes pod i a te r passado por es tas bandas" . Tommy abanou a cabeça . Mas e le f i c a con t en t e de tu o procu r a r e s?89"Não se i . Então não o procu r e s . Ten te i faze r- l he uma desc r i ç ã o pormeno r i z a da

de Xav i e r . Quando so r r i parece t r i s t e , conc l u í . Uma rapa r i g a sepa rou- se do grupo e chamou-nos . Tommy chamou-a por sua vez e e la ve i o a té j un t o de nós . É a minha companhe i r a , exp l i c o u Tommy. Era uma lou r i t a des l a vada com o lhos abso r t o s e duas t r anc i n ha s in f a n t i s apanhadas no a l t o da cabeça . Caminhava ba l ançando- se, um pouco insegu r a . Tommy pergun t ou- lhe se conhec i a um t i p o des t a mane i r a e daque l a , con f o rme a minha desc r i ç ã o . Ela sor r i u i ncong r uen t emen t e e não respondeu co i s a a lguma. Depo i s es tendeu- nos as mãos docemen te e sussu r r o u : Hote l Mandov i .

- Es tá a começa r a fes t a- , d i s se Tommy, anda também. Es távamos sen tados na borda de um barco de aspec t o mui t o

pr im i t i v o , com um tosco ba l anc im como os ca tamaran . Ta l vez vá te r com vocês mais l ogo , d i s se eu, -es tendo- me um bocado no barco e durmo um sono. Enquan t o se a fas t a v a não res i s t i e gr i t e i - l he que se t i n h a esquec i d o de me d i ze r se eu também era senho r . Tommy parou , l evan t o u o braço e d i s se : ad i v i n h a .

Rendo-me, d i s se eu, é demas i ado d i f í c i l .

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Pegue i no meu gu i a e acend i a lguns fós f o r o s . Encon t r e i - o quase imed i a t amen t e . Davam-no como, a popu l a r top range Hote l , com um res t au r a n t e respe i t á v e l . Loca l i d a de Pana j i , ex- Nova Goa, no in t e r i o r . Estend i- me no fundo do barco e pus-me a o lha r para o céu. A no i t e es ta va verdade i r amen t e magn í f i c a . Segu i as cons t e l a ç õe s e pense i nas es t r e l a s

90e no tempo em que as es tudava e nas ta r de s passadas no p lane t á r i o . De repen t e l embre i- me de l a s como as t i n h a aprend i d o , segundo a c l a s s i f i c a ç ã o da in t e n s i d ade lum inosa : Sí r i o , Canopo, Centau r o , Vega, Cape l a , Ar t u r , Or í on . E depo i s pense i nas es t r e l a s var i á v e i s e no l i v r o de uma pessoa quer i d a . E depo i s nas es t r e l a s ex t i n t a s , cu j a lu z a inda con t i n u a a chega r a té nós, e nas es t r e l a s de neu t r õ e s , na fase f i n a l da evo l u ção , e no déb i l ra i o que emi t em. Disse em voz ba i x a : pu l sa r . E quase como se t i v e s s e s i do aco rdada pe l o meu sussu r r o , como se t i v e s s e acc i onado um gravado r , chegou a té mim a voz nasa l e f l e umá t i c a do pro f e s s o r St i n i que d i z i a : quando a massa de uma es t r e l a agon i z an t e é supe r i o r ao dobro da massa so l a r , j á não ex i s t e es tado da maté r i a capaz de de te r a concen t r a ç ão , e es ta procede a té ao in f i n i t o ; já não sa i mais nenhuma rad i a ção dessa es t r e l a , que se t r an s f o rma ass im num buraco negro .

91 XI

SÃO tão es t r a nhas as co i s a s . O ho te l Mandov i chama-se ass im porque fo i cons t r u í d o mesmo à margem do r i o . O Mandov i é um r i o grande , ca lmo, com um enorme es tuá r i o or l a do de pra i a s quase mar i nhas . À esque r da f i c a o por t o de Pana j i , por t o f l u v i a l para pequenos barcos , com vagões car r e gados de mercado r i a s , do i s embocadou r o s descon j un t a do s e uma p la t a f o rma en fe r r u j a d a . Quando chegue i , como se es t i v e s s e a sa i r do r i o , mesmo pe l a bord i n ha da p la t a f o rma , es tava a nasce r a Lua. T inha um c í r c u l o amare l o à vo l t a e era che i a e ave rme l hada . Pense i : l ua verme l ha , e ins t i n t i v amen t e pus-me a assob i a r uma ve l ha canção . A ide i a oco r r eu- me como um cu r t o-c i r c u i t o . Pense i num nome, Roux, e logo a segu i r nas pa l a v r a s de Xav i e r : to r ne i - me uma ave noc t u r n a ; e en tão tudo me pareceu ev i den t e , a té mesmo es túp i d o ,

93e depo i s pense i : por que não me lembre i d i s t o mais cedo?

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Ent r e i no ho te l e de i uma v i s t a de o lhos em vo l t a . O Mandov i é um ho te l do f im dos anos c i nquen t a , com ar j á ve l ho . Ta l vez tenha s i do cons t r u í d o na época em que os por t ugueses a inda es tavam em Goa. Não se i bem em quê, mas pareceu- me que mant i n ha um t r a çado ao gos t o fas c i s t a da época : ta l v e z dev i do ao enorme át r i o mais próp r i o de uma sa l a de espe ra de uma es tação de caminho de fe r r o ou dev i do àque l a mobi l i a impessoa l e depr imen t e , de es tação de cor r e i o ou de min i s t é r i o púb l i c o . At r á s do ba l cão es tavam do i s empregados , um ves t i a uma l i b r é às r i s c a s e o ou t r o um casaco pre t o um pouco usado e um ar impo r t a n t e . Di r i g i - me a es te e most r e i - l he o meu passa por t e . Quer i a um quar t o .

Ele consu l t o u o reg i s t o e anu i u . Com va randa e v i s t a para o r i o , prec i s e i .

Sim senho r , d i s se o empregado . O senho r é o d i r e c t o r? , pergun t e i , enquan t o e le preench i a a minha f i c h a . Não senho r , respondeu , o d i r e c t o r es tá ausen t e , mas se j a para o que fo r pode d i r i g i r - se a mim".

Ando à procu r a de Mis t e r Nigh t i n g a l e , d i s se . Mis t e r Nigh t i n g a l e j á de i xou o ho te l , d i s se com na tu r a l i d a d e , par t i u há a lgum tempo.

Sabe para onde fo i? , pergun t e i , ten t a ndo também eu mante r um tom de na tu r a l i d a d e .

"Norma lmen t e va i a Bangkok , d i s se , Mis t e r Nigh t i n g a l e v i a j a mui t o , é um homem de negóc i o s .

94 Bem se i , d i s se eu, Mas pod i a ser que j á t i v e s s e reg r e s sado . O empregado le van t o u os o lhos da f i c h a e o lhou para mim com ar perp l e x o . Não se i d i ze r- l he , senho r- , respondeu educadamen te . Pense i que no ho te l a lguém me pudesse dar na in f o rmação mais conc r e t a ; ando à procu r a de l e por causa de um negóc i o impo r t a n t e , v im de propós i t o da Europa . Vi que f i c o u imp res s i o nado e ten t e i t i r a r par t i d o desse fac t o . Saque i duma no ta de v i n t e dó l a r e s e met i- a deba i x o do passapo r t e . Os negóc i o s f i c am ca ros , d i s se , é desag r adáve l faze r uma v i agem em vão, percebe? Ele pegou na no ta e res t i t u i u - me o passapo r t e . Agora Mis t e r Nigh t i n g a l e vem cá mui t o ra r amen t e , d i s se . Aparen t o u um ar mor t i f i c a d o . Sabe-, ac res cen t o u , o nosso ho te l é bom, mas

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não pode compe t i r com os ho té i s de l uxo . Só ta l v e z nesse momento se ape rcebeu de es ta r a fa l a r de mais . E aper cebeu- se também de que eu aprec i a v a o seu fa l a r de mais . Fo i só um o lha r , mas bas t ou . Tenho de t r a t a r um negóc i o impo r t a n t e com Mis t e r Nigh t i n g a l e , d i s se , com a n í t i d a sensação de que aque l a to r ne i r a se t i n h a fechado . De fac t o t i n h a . - Não t r a t o dos assun t o s de Mis t e r Nigh t i n l e - d i s se gen t i lmen t e , mas com f i rmeza . Depo i s con t i n u ou num tom pro f i s s i o n a l : -Quan tos d ias va i o senho r f i c a r?

Só es ta no i t e , d i s se eu. Ao dar- me a chave pergun t e i - l he a que horas abr i a o res t au r a n t e . Respondeu- me so l i c i t amen t e que abr i a às o i t o e meia e que pod i a j an t a r à l i s t a ou ao bu f f e t , que95ser i a co l o cado no meio da sa l a . O bu f f e t é só de comida i nd i a na , prec i s o u . Agradec i e pegue i nas chaves . Quando já es ta va no e levado r vo l t e i a t r á s e f i z- l he uma pergun t a i nócua . Penso que Mis t e r Nigh t i n g a l e j an t a v a no ho te l , quando es tava aqu i-. Ele o lhou para mim sem percebe r mui t o bem, Cla ro , respondeu com orgu l h o , o nosso res t au r a n t e é um dos melho r e s da c i dade .

Os v i nhos na Índ i a são mui t o ca ros , são quase todos impo r t a dos da Europa . Beber v i nho , mesmo num bom res t au r a n t e , é s i na l de um cer t o pres t í g i o . Até o meu gu i a o d i z i a : ped i r v i nho imp l i c a a i n t e r v e n ção do mai t r e . F i z pon ta r i a no v i nho .

O mai t r e era um gorducho com o lhe i r a s e cabe l o s che i o s de br i l h a n t i n a . A sua pronúnc i a de v i nhos f r an ceses era desas t r o s a , mas fez o que pôde para i l u s t r a r as carac t e r í s t i c a s de cada marca . T i ve a imp res são de que imp rov i s a v a um tan t o , f i z de con t a que não perceb i a . F i- l o espe ra r um bom bocado , es tudando a l i s t a . Sab ia que me es tava ar r u i n a r , mas agora ser i a o ú l t imo d inhe i r o gas t o com es te ob j e c t i v o : pegue i numa no ta de v i n t e dó l a r e s e co l oque i - a den t r o da l i s t a , feche i- a e en t r e gue i - l ha . É uma esco l h a d i f í c i l , d i s se , t r aga- me o v i nho que Mis t e r Nigh t i n g a l e esco l h e r i a . Ele não acusou o toque . Afas t o u- se com ca lma e vo l t o u com uma

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gar r a f a de Rosé de Provença . Abr i u- a com cu i dado e se rv i u- me do i s dedos para prova r . Prove i e não me pronunc i e i . Ele também permaneceu impass í v e l . Sen t i que chega r a o momento de joga r a minha car t a da . Beb i mais um go le e d i s se : Soube que Mis t e r Nigh t i n g a l e só se i n t e r e s s a

96por produ t o s de pr ime i r a qua l i d a de , o que e é que acha?".

Ele o lhou para a gar r a f a com o lhos inexp r e s s i v o s . Não se i , senho r , depende dos gos t o s" , respondeu com ar desenvo l t o .

A ve rdade é que também sou de gos t o ex i gen t e , d i s se eu, só compro produ t o s de pr ime i r a qua l i d a de . F i z uma pausa para dar mais ên fase ao que es ta va a d i ze r e ao mesmo tempo para parece r mais con f i d e n c i a l . Sen t i a- me como u f i lme e quase es tava a gos t a r do jogo . A t r i s t e z a hav i a de v i r depo i s , sab i a- o. Produ t o s mui t o requ i n t a do s , d i s se por f im , sub l i n h ando a pa l a v r a , e em quan t i d a de subs t an c i a l . Ele o lhou novamen te para o meu copo inexp r e s s i v amen t e e con t i n u ou a esqu i v a r- se. Deduzo que não gos t ou do v i nho , senho r " . Não me agradou nada que sub i s se a parada . As minhas f i n a nças es tavam a esgo t a r- se, mas já agora va l i a a pena i r a té ao f im . E depo i s t i n h a a cer t e z a que o Padre Pimen te l pod i a empres t a r- me a lgum d inhe i r o . Ass im, ace i t e i o desa f i o e d i s se : Traga- me a l i s t a , ten t a r e i esco l h e r uma marca melho r . Ele abr i u- me a l i s t a sob re a mesa e eu met i- lhe ou t r a no ta de v i n t e dó l a r e s . Depo i s i nd i q ue i um v inho ao acaso e d i s se : Acha que Mis t e r Nigh t i n g a l e gos t a r i a des t e?Sem dúv i da , respondeu so l í c i t o . -Tenho uma grande von tade de lho pergun t a r a e le , d i s se eu, o que me aconse l ha?-No seu l uga r , procu r a r i a um bom ho te l na cos t a , d i s se e le . 97Na cos t a há mui t o s ho té i s , é d i f í c i l ace r t a r exac t amen t e naque l e que i n t e r e s s a" . Os melho r e s são só do i s , respondeu , é imposs í v e l engana r- se, o For t Aguada Beach e o Obero i . Ambos es tão magn i f i c amen t e s i t u ados , com uma pra i a encan t ado r a e pa lme i r a s que se es tendem até ao mar. Tenho a cer t e z a de que ambos serão do seu agrado .

Levan t e i - me e d i r i g i - me para o bu f f e t . Hav i a uma dezena de tabu l e i r o s em c ima da es tu f a a á l coo l , t i r e i comida ao acaso ,

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deb i c ando daqu i e da l i . Pare i j un t o da jane l a aber t a com o pra t o na mão. A lua já i a bem a l t a e re f l e c t i a - se no r i o . Agora ia chegando a melanco l i a , como t i n h a prev i s t o . Aperceb i- me de que não t i n h a fome. At r a vesse i a sa l a e d i r i g i - me para a sa í da . Ao sa i r , o mai t r e fez- me uma l i g e i r a vén i a . Mande-me ser v i r o v i nho no quar t o , d i s se , pre f i r o bebê- lo na varanda .

98 XI I

DESCULPE a bana l i d a de da f r a se , mas tenho a imp res são de que a conheço" , d i s se eu. Levan t e i o meu copo e toque i o de l a , pousado no ba l cão . A rapa r i g a sor r i u e d i s se : também eu tenho a mesma imp res são , você parece- se es t r a nhamen t e com um senho r com quem, ho j e de manhã, v im de táx i de Pana j i . Também me pus a r i r . Po i s bem, é i nú t i l d i s s imu l a r , esse homem sou eu. -Sabe que faze r a v i agem a meias fo i uma ide i a exce l e n t e? ac res cen t o u com sen t i d o prá t i c o . Os gu i a s d i zem que na Índ i a os táx i s são económi cos e, pe l o con t r á r i o , cus t am os o lhos da cara" . -Depo i s aconse l h o- lhe um gu ia de con f i a n ç a , a f i rme i com au to r i d a de . O nosso táx i fez um percu r s o fo r a da c i dade e o preço t r i p l i c a . Eu t i n h a um car r o a lugado , mas t i v e de o de i xa r porque

99era mui t o caro . De qua l que r modo a maio r van t agem para mim fo i faze r o percu r s o com uma companh i a tão agradáve l .

Al t o " , d i s se e la , não se aprove i t e da no i t e t r op i c a l e des t e ho te l en t r e pa lme i r a s . Sou vu l ne r á ve l aos e log i o s e de i xa r- me-ia cor t e j a r sem opor res i s t ê n c i a , não ser i a l ea l da sua par t e . Também e la ergueu o copo e pusemo-nos a r i r de novo .

A magn i f i c ê n c i a proc l amada pe l o mai t r e do Mandov i pecava por de fe i t o . O Obero i era mais do que magn í f i c o . Era um ed i f í c i o branco em meia- lua que repe t i a exac t amen t e a cu rva da pra i a sob re a qua l se ergu i a uma enseada abr i g ada por um promon tó r i o a Nor t e e por um paredão de rochedos a Su l . A sa l a pr i n c i p a l era um enorme espaço aber t o que se pro l o ngava pe l a esp l anada , da qua l es tava sepa rado apenas pe l o ba l cão do bar , que pod i a ser u t i l i z a d o dos do i s l ados . Na esp l anada , as mesas pos t a s para o jan t a r es tavam ornamen tadas com f l o r e s e luzes . Um p iano escond i d o a lgu r e s no

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escu r o , tocava em surd i n a mús i cas oc i den t a i s . Pensando bem, era tudo excess i v amen t e para tu r i s t a de luxo , mas naque l e momento i s so não me desag r adava . As pr ime i r a s pessoas ocupavam já as mesas da esp l anada . Disse ao empregado para nos rese r v a r uma mesa de can t o , em pos i ç ão d i s c r e t a e um pouco na penumbra , depo i s propus ou t r o aper i t i v o .

Desde que não se j a a l coó l i c o , d i s se a rapa r i g a E depo i s con t i n u ou no seu tom de br i n cade i r a ; pa rece- me que você es tá a i r depres sa de mais . O que lhe faz c re r que ace i t o o seu conv i t e para j an t a r?

100Para d i ze r a ve rdade , não t i n ha qua l que r in t e n ção de a conv i d a r " , con f e s se i i nocen t emen t e , as minhas pobres economias es tão quase no f im e cada um paga a sua con t a . Jan t amos s imp l e smen t e na mesma mesa, es tamos sós e fazemos companh i a um ao ou t r o , parec i a- me lóg i c o . Ela não d i s se nada e l im i t o u- se a bebe r o sumo de f r u t a que o empregado nos ser v i r a . E depo i s não é ve rdade que não nos conhecemos, con t i n u e i , conhecemo-nos es ta manhã. Nem seque r nos apresen t ámos , ob j e c t o u e la . É uma lacuna que se pode remed i a r fac i lmen t e , d i s se eu, chamo-me Roux. Eu chamo-me Chr i s t i n e , d i s se e la , e depo i s ac res cen t o u : não é um nome i t a l i a n o , po i s não?Que impo r t â n c i a tem i s so?". De fac t o , nenhuma", conco r dou e la . E depo i s susp i r o u : a sua cor t e é verdade i r amen t e i r r e s i s t í v e l . Admi t i que não t i n h a qua l que r i n t e n ção de lhe faze r a cor t e , que t i n h a par t i d o com a ide i a de um jan t a r despo r t i v o , com uma conve r sa amigáve l de igua l para i gua l . Em suma, qua l que r co i s a des t e géne ro . Ela o lhou para mim com um ar f i n g i d a mente sup l i c a n t e , con t i n u ando no seu tom de br i n cade i r a e pro t e s t o u :Oh não, faça- me a cor t e , por favo r , d iga- me co i s a s gen t i s , fa l e- me de co i s a s bon i t a s , tenho uma te r r í v e l necess i d ade de tudo i s so . Pergun t e i - l he donde v i nha . Ela o lhou para o mar e d i s se : De Calcu t á . F i z uma breve paragem em Pond i che r r y para uma es túp i d a repo r t a gem sob re os meus compa t r i o t a s que a inda a l i v i vem, mas t r aba l h e i um mês em Calcu t á . 101

O que é que faz i a em Calcu t á?Fotog r a f a v a a ab j e c ção , respondeu Chr i s t i n e . Que

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quer d i ze r com i s so?A misé r i a " , d i s se e la , a deg radação , o hor r o r , chame-lhe como

qu i se r . Porque o fez?".

É o meu of í c i o , d i s se e la , pagam-me para i s so- . Fez um ges t o que pod i a s i gn i f i c a r res i g nação à pro f i s s ã o da sua v i da , e depo i s pergun t ou- me: Já a lguma vez es teve em Calcu t á?Abane i a cabeça . Não vá l á" , d i s se Chr i s t i n e , nunca cometa um er r o desses .

Pensava que uma pessoa como você achasse que na v i da é prec i s o ver o mais poss í v e l .

Não, d i s se e la conv i c t a , é prec i s o ve r o menos poss í v e l " . O empregado fez- nos s i na l de que a nossa mesa es tava pron t a e

conduz i u- nos a té à esp l anada . Era uma be l a mesa de can t o como eu t i n h a ped i do , j un t o aos arbus t o s da sebe, um pouco à par t e . Pergun t e i a Chr i s t i n e se pod i a sen t a r- me à sua esque r da , de modo a pode r ve r as ou t r a s mesas. O empregado era mui t o so l í c i t o e d i s c r e t í s s i mo , como sabem sê- lo os empregados dos ho té i s do t i p o do Obero i . Pre f e r í amos coz i nha ind i a na ou barbecue? Não quer i a i n f l u e n c i a r , na tu r a lmen t e , mas os pescado r es de Calangu t e ho j e t i n h am t r a z i d o ces t a s de lagos t a s , es ta vam ao fundo da esp l anada pron t a s a serem comidas , a l i onde se v i a o coz i nhe i r o com o bar r e t e branco e o re f l e x o das brasas ao ar l i v r e . Aprove i t a n do a sua suges t ão , perco r r i com o o lha r a esp l anada , as mesas, os comensa i s . A l uz era bas t an t e d i f u s a , em cada mesa

102hav i a ve l a s , mas com um pouco de concen t r a ç ão era poss í v e l d i s t i n g u i r as pessoas . Disse- lhe o que faço , d i s se Chr i s t i n e , e você , o que faz? Se é que tem von t ade de me responde r . Bem, suponhamos que es tou a esc r e ve r um l i v r o , por exemp lo .

Que t i p o de l i v r o?" . Um l i v r o " . Romance?", pergun t ou Chr i s t i n e com o lhos as tu t o s . Uma co i s a parec i d a " . Então é um romanc i s t a , d i s se e la com uma cer t a l óg i c a . Nem tan t o " , d i s se eu, ser i a só uma expe r i ê n c i a , a minha pro f i s s ã o é ou t r a , procu r o ra t o s mor t o s . O que é que d i s se? ! ". Estava a br i n ca r " , d i s se eu. Vascu l ho ve l hos arqu i v o s , procu r o

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c rón i c a s an t i g a s , co i s a s sepu l t a d a s pe l o tempo. É essa a minha pro f i s s ã o , eu chamo-lhes ra t o s mor t o s .

Chr i s t i n e o lhou- me com indu l g ênc i a e ta l v e z com uma pon t i n h a de des i l u s ão . O empregado chegou so l í c i t o , t r a zendo- nos t i g e l i n h a s che i a s de molho . Pergun t ou- nos se quer í amos v i nho e nós d i s semos que s im. A lagos t a chegou fumegan t e , chamuscada só na carapaça , com a po l pa sa l p i c a da de mante i g a der r e t i d a . Os molhos eram p i can t í s s imos , bas t a va uma go ta para incend i a r a boca . Mas depo i s o fogo apagava- se logo e o pa l a t o ench i a- se de aromas de l i c i o s o s e insó l i t o s : era poss í v e l reconhece r o geng i b r e e depo i s espec i a r i a s desconhec i d a s . Sa lp i c ámos cu i dadosamen t e a nossa l agos t a e l evan-

103támos os copos . Chr i s t i n e con f e s sou que já se sen t i a um pouco a leg r e , e porven t u r a também eu, mas não me dava con t a d i s so .

Con te- me o romance , vamos" , d i s se e la a ce r t a a l t u r a , es tou che i a de cur i o s i d a de , não me faça so f r e r " .

Mas não é um romance" , pro t e s t e i eu, é um bocado aqu i ou t r o a l i , não há seque r uma verdade i r a h i s t ó r i a , são apenas f r agmen t o s de uma h i s t ó r i a . E depo i s não o es tou a esc r e ve r , eu d i s se suponhamos que es tou a esc r e ve r " .

Era ev i den t e que ambos t í n hamos uma fome te r r í v e l . A ca rapaça da lagos t a j á es ta va vaz i a e o empregado ve i o logo , so l í c i t o . Encomendámos ou t r a s co i s a s , à sua esco l h a . Coisas leves , espec i f i c ámos , e e le anu i u com ar compe ten t e .

Há a lguns anos pub l i q u e i um l i v r o de fo t o g r a f i a , d i s se Chr i s t i n e . Era a sequênc i a de um ro l o , f i c o u mui t o bem imp res so , como eu gos t a va , rep r oduz i a a té os den tes da pe l í c u l a , não t i n h a legendas , só fo t og r a f i a s . Começava por uma fo t og r a f i a que cons i d e r o a melho r co i s a que f i z duran t e a minha ca r r e i r a , depo i s l ha mando se me de i xa r a sua d i r e c ç ão , era uma ampl i a ç ão , a fo t og r a f i a rep r oduz i a um jovem pre t o , só o bus t o ; uma camiso l a com uma f r a se pub l i c i t á r i a , um corpo de a t l e t a , no ros t o a exp re s são de um grande es fo r ç o , as mãos no ar em s ina l de v i t ó r i a : es tá ev i den t emen t e a cor t a r a meta dos cem met ro s , por exemp lo- . Olhou para mim com ar um pouco mis t e r i o s o , espe rando que eu d i s ses se a lguma co i s a .

E depo i s , pergun t e i eu, onde es tá o mis t é r i o?104A segunda fo t og r a f i a " , d i s se e la . Era uma fo t og r a f i a em corpo in t e i r o . À esque r da es tá um po l í c i a ves t i d o de marc i ano , t r a z um capace t e na cara , bo tas a l t a s , empunha uma esp i nga r da , os o lhos

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f e r o ze s sob a v i s e i r a fe r o z . Es tá a d i spa r a r para o pre t o . E o pre t o va i a fug i r com os braços no ar , mas já es tá mor t o : um segundo depo i s de eu faze r c l i c j á es tava mor to" . Não d i s se mais nada e con t i n u ou a comer . Conte- me o res t o , d i s se eu, j á agora comp le t e o con t o" . O meu l i v r o chamava- se Áf r i c a do Su l e t i n h a uma ún i ca legenda sob a pr ime i r a fo t og r a f i a que lhe desc r e v i , a ampl i a ç ão . A legenda d i z i a : Méf i e z- vous des morceaux cho i s i s . Fez uma l i g e i r a care t a e con t i n u ou : Nada de tex t o s esco l h i d o s , por favo r , con t e- me a subs t ân c i a do seu l i v r o , quero sabe r a i de i a " . Ten te i re f l e c t i r . É d i f í c i l d i ze r o conce i t o de um l i v r o . Como pode r i a te r s i do o meu l i v r o . Chr i s t i n e o lhava para mim imp l a cáve l , era uma rapa r i g a obs t i n a da . Por exemp lo , no l i v r o eu se r i a um t i p o qua l que r que se perde na Índ i a " , d i s se rap i d amen t e , a i de i a é es ta" . Não, não" , d i s se Chr i s t i n e , não chega , não se l i v r a com essa fac i l i d a d e , a subs t ân c i a não pode ser s imp l e smen t e essa" . A subs t ânc i a é que nes t e l i v r o eu sou um t i p o que se perde na Índ i a " , repe t i , d igamos ass im. Há ou t r o que anda à minha procu r a , mas eu não tenho nenhuma in t e n ção de me de i xa r encon t r a r . Vi- o chega r , segu i- o pra t i c amen t e d ia após d ia . Conheço as suas pre f e r ê n c i a s , as suas impac i ên c i a s , os seus105ar r eba t amen t o s , as suas gene ros i d ades e os seus medos. Tenho- o pra t i c amen t e sob con t r o l o . Ele , pe l o con t r á r i o , não sabe quase nada de mim. Tem a lgumas vagas p i s t a s : uma car t a , tes t emunhos con f u sos ou re t i c e n t e s , um b i l h e t i n h o mui t o gera l : s i na i s que labo r i o s amen t e ten t a faze r enca i x a r .

Mas quem é você?", pergun t o u Chr i s t i n e , no l i v r o , que ro d i ze r " . I s so não é d i t o " , respond i , sou a lguém que não que r de i xa r- se encon t r a r , por t an t o não faz par t e do j ogo d i ze r quem sou.

E esse que o procu r a e que você parece conhece r tão bem", pergun t ou a inda Chr i s t i n e , esse conhece- o?"

Dan tes conhec i a- me, suponhamos que fomos grandes amigos , em tempos . Mas i s t o passava- se há mui t o tempo, fo r a da moldu r a do l i v r o " .

E e le , porque anda à sua procu r a com tan t a in s i s t ê n c i a?"Quem sabe" , d i s se eu, é d i f í c i l sabê- lo , i s so nem mesmo eu

que es tou a esc r e ve r o se i . Ta l vez procu r e um passado , uma respos t a para qua l que r co i s a . Ta l vez que i r a agar r a r qua l que r co i s a

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que em tempos não soube ve r . De ce r t o modo anda à procu r a de s i próp r i o . Quero d i ze r , é como se, ao procu r a r- me, se procu r a s se a s i próp r i o : nos l i v r o s acon t e ce mui t a s vezes ass im, é l i t e r a t u r a " . F i z uma pausa como se fos se um momento c ruc i a l e d i s se con f i d e n c i a lmen t e : Sabe, na rea l i d a de há também duas mulhe r e s" .

Ah, f i n a lmen t e " , exc l amou Chr i s t i n e , ago ra o assun t o começa a to r na r- se i n t e r e s s an t e!"

106-In f e l i zmen t e não, con t i n u e i , porque e las também es tão fo r a da moldu r a , não per t en cem à h i s t ó r i a . Que cha t i c e , d i s se Chr i s t i n e , mas nesse l i v r o es tá tudo fo r a da moldu r a? É capaz de me d i ze r o que é que es tá den t r o da moldu r a?Há um t i p o que procu r a ou t r o , j á lhe d i s se , há um t i p o que anda à minha procu r a , o l i v r o é o seu anda r à minha procu r a . "En tão con t e- me um pouco melho r! Está bem", d i s se eu, começa ass im: e le chega a Bomba im, tem a d i r e c ção de uma espe l un ca onde eu more i em tempos e põe-se à procu r a . E lá conhece uma rapa r i g a que em tempos me conheceu e es ta in f o rma- o de que eu adoec i , que fu i para o hosp i t a l , e depo i s que t i n ha con t a c t o s com gen te do Su l da Índ i a . Ass im e le va i à minha procu r a ao hosp i t a l , que se reve l a uma fa l s a p i s t a , e depo i s de i xa Bomba im e começa uma v i agem, dando sempre a descu l p a de te r de me procu r a r , mas na rea l i d a de v i a j a por mot i v o s pessoa i s , o l i v r o é bas i c amen t e i s t o : a sua v i agem. Encon t r a uma sé r i e de pessoas , na tu r a lmen t e , porque nas v i agens encon t r am- se pessoas . Chega a Madras t a , caminha pe l a c i dade , pe l o s temp l o s dos ar r edo r e s , numa assoc i a ç ão de es tud i o s o s encon t r a a lgumas hábe i s p i s t a s minhas . E f i n a lmen t e chega a Goa, onde de qua l que r modo t i n h a de i r , por mot i v o s pessoa i s . Chr i s t i n e es ta va agora a segu i r - me, concen t r a da , chupava um pauz i nho de hor t e l ã- p imen t a e o lhava- me. A Goa", d i s se , logo a Goa, i n t e r e s s an t e . E aqu i o que é que acon t e ce?107

Aqu i têm luga r mui t o s ou t r o s encon t r o s , con t i n u e i , e le vague i a um pouco por aqu i e por a l i , e depo i s uma ta r de chega a uma v i l a e a l i pe rcebe tudo .

Tudo o quê?"Bem", d i s se eu, e le não me encon t r a v a também por uma

razão mui t o s imp l e s , eu t i n h a mudado de nome. E e le consegue descob r i - l o . No fundo não era ass im tão d i f í c i l de descob r i r ,

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porque era um nome que t i n ha a ve r com e le em tempos . Só que esse nome eu t i n h a- o mudado e camuf l a do . Não se i como consegu i u ad i v i n h á- lo , mas de fac t o consegu i u , ta l v e z tenha s i do por acaso .

E que nome é?. Nigh t i n g a l e " , d i s se eu.

L indo nome", d i s se Chr i s t i n e , con t i n u e . Bem, a l i consegue ev i den t emen t e sabe r onde me encon t r o , fazendo cre r que t i n h a um negóc i o impo r t a n t e a t r a t a r comigo : a lguém lhe d i z que es tou num ho te l de l uxo na cos t a , um luga r do t i p o des t e .

Oh, l á l á!" , d i s se Chr i s t i n e , aqu i tem de mecon ta r mui t o bem, es tamos den t r o do cená r i o .

Exac t o , d i s se eu, como cená r i o adop t o es te . Suponhamos que es tá uma no i t e como es ta , quen te e per f umada , ho te l mui t o f i n o , à be i r a- mar , grande esp l anada com mesas e ve l a s , mús i ca em surd i n a , empregados que vão e vêm so l í c i t o s e d i s c r e t o s , comida se l e c c i o nada , na tu r a lmen t e , com coz i nha in t e r n a c i o na l . Eu es tou numa mesa com uma be l a mulhe r , uma rapa r i g a como você , com aspec t o de es t r a nge i r a , es tamos do l ado opos t o àque l e em que108nos encon t r amos agora , a mulhe r es tá vo l t a d a para o mar, eu, pe l o con t r á r i o , o lho para as ou t r a s mesas, es tamos a conve r sa r amave lmen t e , a mulhe r r i de vez em quando, vê-se pe l o s ombros , exac t amen t e como você . A cer t a a l t u r a . . . . Cale i- me e o lhe i para a esp l anada , passando o o lha r por todas as pessoas que es tavam a jan t a r nas ou t r a s mesas. Chr i s t i n e par t i r a o pauz i nho de hor t e l ã-p imen t a , t i n h a- o ao can t o da boca como um c iga r r o , com ar a ten t o . A cer t a a l t u r a? , pergun t ou . O que é que acon t e ce a cer t a a l t u r a?A ce r t a a l t u r a ve j o- o. Está numa mesa ao fundo , do ou t r o lado da esp l anada . Es tá sen t ado na mesma pos i ç ão que eu, es tamos f r en t e a f r en t e . Ele também es tá com uma mulhe r , mas e la es tá de cos t a s e não posso sabe r quem é. Ta l vez eu a conheça ou pense conhecê- la , faz- me lembra r uma pessoa , ou a té duas pessoas , tan t o pod i a ser uma como a ou t r a . Mas ass im de longe , à luz das ve l a s , é d i f í c i l te r a cer t e z a e, a lém d i s so , a esp l anada é mui t o grande , exac t amen t e como es ta . Ele provave lmen t e d i z à mulhe r para não se vo l t a r , o lha- me duran t e um grande bocado , sem se mexer , tem uma exp res são sa t i s f e i t a , quase sor r i d e n t e . Ta l vez também e le j u l g ue reconhece r a mulhe r que es tá comigo , faz- lhe lembra r uma pessoa , ou a té duas pessoas , tan t o pod i a ser uma como a ou t r a " . Em suma, o homem que anda à sua procu r a consegu i u encon t r á- l o , d i s se Chr i s t i n e .

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Não exac t amen t e" , d i s se eu, não é exac t amen t e ass im. Procu r ou- me tan t o que agora que me encon t r o u já não tem von t ade de me encon t r a r , perdoe- me o jogo de pa l a v r a s , mas é mesmo ass im.

109E eu também não tenho von t ade de ser encon t r a do . Ambos pensamos exac t amen t e a mesma co i s a , l im i t amo- nos a o lha r um para o ou t r o .

E depo i s? d i s se Chr i s t i n e , que mais acon t e ce?. Acon te ce que um de nós do i s acaba de bebe r o ca fé , dob ra o

guardanapo , compõe a grava t a , suponhamos que es tá de grava t a , com um ges t o chama o empregado , paga a con t a , l evan t a- se, a fas t a educadamen te a cade i r a à senho r a que es tá com e le e que se levan t a com e le , e va i- se embora . Chega, o l i v r o es tá te rm i nado .

Chr i s t i n e o lhou para mim duv i dosa . Parece um f i n a l um pouco ins í p i d o para uma nove l a" , d i s se , pousando a chávena na mesa.

É ve rdade , também me parece" , d i s se eu, pousando também a minha chávena , mas não encon t r o ou t r a s so l u ções .

F im do con to , f im do jan t a r " , d i s se Chr i s t i n e os tempos co i n c i d em" .

Acendemos um c iga r r o e eu f i z s i na l ao empregado . Oiça , Chr i s t i n e " , d i s se eu, descu l pe- me se mude i de ide i a s ; gos t a va de lhe ofe r e ce r es te jan t a r , penso que tenho d inhe i r o que chegue" .

De modo nenhum", respondeu e la , o nosso aco rdo era mui t o exp l í c i t o , j an t a r de camaradagem e de i gua l para i gua l " .

Por favo r " , in s i s t i , ace i t e- o como uma descu l p a por tê- la maçado tan t o " .

Mas eu d i ve r t i - me mui t i s s imo , pro t e s t o u Chr i s t i n e , in s i s t o em paga rmos a meias .

O empregado aprox imou- se de mim e seg redou- me qua l que r co i s a ao ouv i do , depo i s fo i- se110embora com o seu passo de ve l udo . É inú t i l d i s cu t i rmos , d i s se eu, o jan t a r é grá t i s , o fe r e ce- o um c l i e n t e do ho te l que dese j a permanece r anón imo. Ela o lhou- me com espan t o . Será um seu admi r ado r " , d i s se eu, a lguém mais ga l an t e do que eu. Não d iga d i spa r a t e s , d i s se Chr i s t i n e . Depo i s assumiu um f i n g i d o ar de o fend i d a . Não é lea l " , d i s se , j á t i n h a tudo comb inado com o empregado . Os cor r e do r e s que levavam aos quar t o s t i n h am a lpend r e s de made i r a

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br i l h a n t e , como um c laus t r o que dava para o escu r o da vege t a ção que cresc i a a t r á s do ho te l . Dev í amos ser dos pr ime i r o s a re t i r a r -nos , os c l i e n t e s t i n ham f i c a do quase todos nas cade i r a s de repouso da esp l anada a ouv i r mús i ca . Caminhávamos lado a lado , em s i l ê n c i o , ao fundo da ga l e r i a esvoaçava uma borbo l e t a noc t u r n a . Há qua l que r co i s a que não me quad ra no seu l i v r o , d i s se Chr i s t i n e , não se i bem o que é, mas não me quad ra . "Eu também acho" , respond i . Oiça , d i s se Chr i s t i n e , você es tá sempre de aco rdo com as cr í t i c a s que eu faço , é i nsupo r t á v e l " . Mas é que es tou mesmo convenc i d o de l a s" , a f i rme i , a sér i o . Deve ser um pouco como aque l a sua fo t og r a f i a , a ampl i a ç ão fa l s e i a o con t e x t o , é prec i s o ver as co i s a s de longe . Méf i e z- vous des morceaux cho i s i s " . Quan to tempo va i f i c a r? , pergun t ou- me. Par t o amanhã. Tão depres sa?111

Os meus ra t o s mor t o s es tão à minha espe ra , d i s se eu, cada um tem o seu t r aba l h o " . Ten te i im i t a r o ges t o de res i g na ção que e la t i n ha fe i t o ao fa l a r do seu t r aba l h o . Também a mim me pagam para i s t o " .

Ela so r r i u e meteu a chave na fechadu r a . 112

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