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7/22/2019 Notas Sobre Um Terreno Baldio
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Leila Danzinger
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Riki Kalbe, Berlim, agosto 1991. Todasas fotos so do livro Ein Grundstcke
in Mitte. Das Gelnde des knfitigenHolocaust-Mahnmals in Wort und Bild.Kalbe, Riki e Zuckermann, Moshe (orgs.),Gttingen: Wallstein, 2000.
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Notas sobre um terreno baldio
Notas sobre um terreno baldio
Leila Danzinger*
O artigo aborda o terreno, no Centro de Berlim, destinado
construo do Monumento aos Judeus Assassinados da
Europa, buscando sentidos para essa imensa rea antes
de sua definitiva institucionalizao. As fotos de Riki Kal-
be so antimonumentos do to polmico monumento
central. Aproxim-las a Monuments of Passaic, de Robert
Smithson, nos permite compreender, no Centro da capitalreunificada e normalizada , operaes que resistem
dinmica acelerada da reconstruo e aos compromissos
do esquecimento. O monumento de Peter Eisenman, em
vias de construo, e a obra proposta por Jochen Gerz so
tambm abordados.
Berlim, antimonumento, Shoah
Uma rea de 19.000m2 no Centro de Berlim, entre a Potsdamer Platz
e a Porta de Brandenburg, delimitada pelo Tiergarten e as ruas Behrens,
Wilhelm e Ebert. Esse local destinado construo do Monumento aos
Judeus Assassinados da Europa, iniciativa que ao longo da dcada de 1990
provocou um infindvel debate pblico. Surgiram, assim, questionamentos
imprescindveis sobre a identidade alem em face do trabalho da memria
de Auschwitz, os compromissos tico-estticos da arte contempornea ea legitimidade dos monumentos. Uma extensa documentao, publicada
em 1999, lana a dvida de que o debate instaurado seria o prprio mo-
numento: A Querela do Monumento o Monumento? O debate sobre o
Monumento aos Judeus Assassinados da Europa Uma documentao.1
As 1.300 pginas da publicao renem, alm dos projetos dos concursos
realizados em 1994/95 e 1997/98, textos de pesquisadores, artistas, polti-
cos e pensadores de todas as reas, publicados no calor da hora muitosdeles reaes francamente emocionais. Ao fim e ao cabo, o projeto ven-
cedor, do arquiteto americano Peter Eiseman, comeou a tomar forma,
embora novos problemas e discusses continuem vindo tona. 2
Enquanto a jornalista Lea Rosh e o historiador Ebehard Jckel, res-
ponsveis pela iniciativa do monumento, consideram a centralidade do
local importante eixo de articulao entre leste e oeste da cidade um
fator positivo, esse um ponto polmico e atacado por muitos, pois a
centralidade poderia ser compreendida como uma retomada acrtica de
diretrizes anteriores ao nazismo e mesmo decisivas no planejamento ur-
banstico da capital do Reich de Mil Anos. A relao entre o Monumento
* Artista plstica. Professora do Departamentode Artes e Design da UFJF. Doutora em HistriaSocial da Cultura pela Puc-Rio.
1 Heimrod Ute (org.) Der Denkmalstreit dasDenkmal? Die Debatte um das Denkmal fr dieermordeten Juden Europas - Eine Dokumenta-tion. Berlin: Philo, 1999.2 A construo do monumento foi iniciadaem abril de 2003 e pode ser acompanhadapelo site htt
p://www.holocaust-mahnmal.de.Quanto inaugurao, Eisenman declarou ementrevista (F.A.Z. 08/07/2000, Feuilleton: 41),que ao ir ver os jogos da Copa do Mundo de2006, programados para Berlim, espera encon-
trar o monumento pronto. Cabe ressaltar quea declarao dada imprensa, mesmo ligeira,sobre a Copa do Mundo e o monumento, nodeixa dvidas quanto funo deste ltimo. Adeclarao do arquiteto refora a constataode Andras Huyssen: O discurso atual dacidade como imagem o dos pais da cida-de, empreendedores e polticos que tentamaumentar a receita com turismo de massa,convenes e aluguel de espaos comerciais.
O que central para esse novo tipo de polticaurbana so os espaos estticos para consumocultural, megastores e megaeventos musicos,festivais e espetculos de todo tipo, todostentando atrair novos tipos de turista (...).
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ao Holocausto e a monumentalidade da fantasmagoria arquitetnica de
Speer estabelecida por Andreas Huyssen. Referindo-se ao resultado do
primeiro concurso, cuja deciso foi pela construo do projeto liderado
pela arquiteta Christine Jakob-Marks3 uma gigantesca placa de concreto
com todos os nomes dos judeus assassinados (os conhecidos, ao menos)
Huyssen, comenta que para administrar o Holocausto na dcada de
1990, os alemes teriam se apropriado de um ditado judaico, segundo
o qual o segredo da redeno a memria. O crtico avalia a iniciativa
do monumento sem hesitaes:
O caso mais flagrante [da redeno pela memria]: o projeto de
um gigantesco memorial do Holocausto, uma laje inclinada dotamanho de dois campos de futebol com os nomes de milhes
de vtimas gravados na pedra, em pleno corao de Berlim, pouco
ao norte do bunker de Hitler e bem em cima do que seria o eixo
norte-sul projetado por Albert Speer, entre o seu megalomanaco
Grande Salo ao norte do Porto de Brandenburgo e o arco do
triunfo de Hitler, ao sul, que tambm teria gravado em pedra os
nomes dos mortos na Primeira Guerra. A prpria localizao e
o posicionamento desse memorial do Holocausto (...) pareciamfuncionar ao mesmo tempo como mmese e como encobrimento
de um outro local comemorativo, com a monumentalidade pro-
porcional s dimenses do projeto original de Speer. De fato,
impressionante que uma pas que tem se pautado h dcadas por
um deliberado antimonumentalismo antifascista venha a recorrer
s dimenses monumentais quando se trata da comemorao
pblica do Holocausto pela nao reunificada. Alguma coisa a
est fora de sintonia 4 .
A centralidade do monumento e sua insero numa rede de signos
arquitetnicos significantes so o cerne da proposta de Horst Hoheisel,
artista que participou do primeiro concurso. Seu projeto, denominado
Um marco ilimitado Monumento aos Judeus Assassinados da Europa,
resumia-se a quatro operaes: (1) demolir a Porta de Brandenburg; (2)
tritur-la (incluindo, claro, a Quadriga de bronze); (3) dispersar seu p na
rea reservada ao monumento aos judeus; (4) recobrir a poeira com uma
imensa placa de granito. Este gesto de destruio concretiza a ruptura da
continuidade histrica e da identidade nacional alem aps o Holocausto.
Hoheisel no prope uma identificao falaciosa dos alemes como vti-
mas do destino. Seu gesto assemelha-se, em certa medida, ao de Anselm
Kiefer em A inundao de Heidelberg (Die berschwemmung Heidelbergs,
1969), interveno em forma de livro, em que o artista imagina a destrui-
o dolorosa da cidade, parte de sua prpria identidade. Para Hoheisel,
destruir a Porta de Brandenburg no foi uma deciso fcil e desenvolta:
Essa ruptura em nossa identidade, que no podemos mais reconstituir,
3 O primeiro concurso pblico (1994) foi ende-reado apenas a artistas residentes na Alema-
nha e 12 artistas convidados. Dos 529 projetosrecebidos, foi conferido o primeiro lugar aoprojeto de Simon Ungers e o segundo, ao grupoformado pela arquiteta Christine Jakob-Marks,Hella Rolfes, Hans Scheib e Reinhard Stangl.Ojri, formado por uma comisso de 30 profissio-nais, entre os quais artistas, arquitetos, crticosde arte, historiadores e polticos, decidiu-se afi-nal pela construo do segundo colocado: umagigantesca placa de concreto com todos osnomes (os repertoriados, ao menos) dos judeus
assassinados. Os artistas convidados foram:Magdalena Abakanovicz, Christian Boltanski,Rebecca Horn, Magdalena Jetelova, Dani Kara-van, Fritz Koenig, Jannis Konellis, Gerhard Merz,Karl Prantl, David Rabinovitch, Richard Serra,Gnther Uecker. Foram selecionados novefinalistas do primeiro concurso. Alm dos doisprimeiros citados, seguem-se: 3) Fritz Kenig/Christoph Hackelsberg; 4) Arno e Anna Simon-Dietsche; 5)Jose Dionne; 6) George Seibert;
7) Jrg Esefeld/ Heinz Nagler/ Rolf Storz/ H.J.Whrle; 8) Klaus Madlowski/ Mathias Gladisch;9) Rudolph Herz/ Reinhard Matz.4 Huyssen, Andreas. Seduo monumental emSeduzidos pela memria, op.cit.: 44-45.
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o que queria mostrar quando trituro a Porta de Brandenburg. No incio
eu no era muito radical, porque eu tambm tinha medo, j que a Porta
de Brandenburg tambm importante para minha identidade.5
No final das operaes propostas restariam dois grandes vazios no
centro de Berlim.6 O Portal deixaria um vcuo no eixo histrico da Unter
den Linden e a rea reservada para o Monumento aos Judeus Assassinados
permaneceria uma imensa superfcie selada pela placa de granito, sob a
qual estariam os detritos do Portal. Dois vazios que sinalizam a ruptura de
uma comunidade espiritual e de um massacre sem precedentes. Hohei-
sel recusa-se a criar mais um monumento nacional negativo, doloroso,
verdade, mas que cancela de uma vez por todas o vazio da destruio
provocada pelo nacional-socialismo, reestruturando triunfalmente o Cen-
tro da cidade. Antes, prope suprimir um dos mais significativos smbolos
nacionais, como materializao de uma situao que h dcadas j real: a
ruptura da histria. Contudo, um perigo evidente nos cartes-postais em
que o artista suprime o Portal clebre: sua presena fantasmtica parece
adquirir ainda mais potncia... No obstante, como uma forma de exerccio
espiritual e cvico, digamos, capaz de materializar mentalmente uma reali-dade histrica que no encontra lugar, poderia ser proposto a todo cidado
alemo. Como operao conceitual demonstra particular compreenso
das aporias da histria alem e do monumento moderno. A proposta de
Hoheisel integra decididamente o conjunto de monumentos imaginrios
do sculo XX. nessa condio que ele se faz operante, pois sabemos que
os monumentos falaciosamente voltados para a eternidade no existem
apenas quando permanecem concretamente na cidade. Cumprem suasfunes, com intensidades muito distintas, certo, tambm como projeto,
maquete, registro fotogrfico e, mesmo, como runa ou despojo. O que
ter sido feito dos monumentos depostos dos lderes e patriarcas do co-
munismo? Que nos baste a lembrana de tantas esttuas de Marx, Engels
e Lenin destitudas de seus pedestais e em trnsito na imprensa europia
da dcada de 1990. Os monumentos perpetuam-se muitas vezes apenas
na imaginao e na memria coletiva, qualidades que caracterizam, paraHalbwachs, os fatos urbanos.7 Algumas vezes, como no urbanismo utpico
do sculo XVIII, no pretendiam de fato realizar-se. o caso tambm dos
desenhos de monumentos imaginrios de Claes Oldenburg, que projetou
um conjunto de cemitrios verticais espalhados pela cidade de So Paulo
em forma de colossais parafusos...
Um terreno no CentroNa fortuna crtica do monumento, adensada antes mesmo do incio de
sua construo, uma pequena publicao destaca-se pela singularidade de
5 Citado por Spielmann, Jochen. Das Brander-burger Tor zu Staub zermahlen, em Hoheisel,Horst&Knitz, Andreas. Zermahlene Geschichte.Kunst als Umweg Schriften des ThringischenHauptstaatsarchivs, Nr. 1, Weimar 1999: 144.6 Das Brandenburger Tor wird zu Staub zermah-len, der Staub wird auf dem Denkmalsgelndeverstreut, das Gelnde wird mit Granitplattenbelegt. Als Denkmal entstehen zwei leere Orte,
deren doppelte Leere auszuhalten das eigentli-che Denkmal ist. Hoheisel, Horst, op.cit.: 163.7 Citado por Aldo Rossi A Arquitetura da cidade,So Paulo: Martins Fontes, 2001:.22.
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desinteressar-se da obra a ser construda e aceitar o desafio de enderear
sentidos a sua grande rea baldia. Seus organizadores a fotgrafa alem
Riki Kalbe e o historiador israelense Moshe Zuckermann parecem no ter
pressa quanto soluo encontrada para o monumento. Sabem que pro-
longar esse estado baldio ou, melhor, disponvel, aberto a tantos e tantos
sentidos fundamental, pois mais cedo ou mais tarde isso ser passado.
Uma vez construdo, o monumento receber chefes de Estado, autoridades
e ser inundado por turistas de todo o mundo. provvel que seja cenrio
de fotos to famosas quanto a de Willy Brandt ajoelhado em Varsvia, em
1970, junto ao monumento de Nathan Rappoport ao Levante do Gueto,
suscitando controvrsias que se propagaro em todos os jornais.
Intitulado Um terreno no Centro (Ein Grundstck in Mitte),8 o livro
parte das fotografias de Riki Kalbe, que durante 10 anos observou e foto-
grafou a rea designada em 1994 para a construo do monumento. Sua
sensibilidade to berlinense voltou-se para os territrios abertos aps a
queda do muro, como foi o caso da Potsdamer Platz, ponto central da
crnica da cidade, rapidamente disputada pela especulao imobiliria.
Onde hoje se erguem, com visibilidade ostensiva, os prdios da Sony Cen-ter, A&T e Daimler-Benz, era o matagal atravessado pelo velho narrador
do filme de Wim Wenders. Em Der Himmel ber Berlin ou, se quisermos,
Asas do desejo ,o velho berlinense procura no Centro da cidade a praa
desaparecida, seus cafs, seu comrcio famoso, seu trnsito intenso.
Aturdido, erra por um terreno semelhante ao das fotos iniciais de Riki
Kalbe, onde encontra apenas uma poltrona arruinada e exausto se senta
para ruminar o passado. Mas como ligar esse matagal praa, ponto ver-tiginoso da metrpole da dcada de 1920? Toda aquela regio central foi
arrasada pelos bombardeios de 1945 e, em seguida, esquartejada pelas
divises ideolgicas.
As fotos de Riki Kalbe mostram uma mutao urbana mais compassada
do que aquela presidida pela especulao imobiliria, um dos grandes
temas da Berlim dos anos de 90. O terreno baldio reservado ao monu-
mento tem suas transformaes travadas pelas querelas do trabalho dememria. Por sorte. As deambulaes aleatrias de um cachorro, a rota
de um ciclista, o isolamento de uma arvorezinha seca amparada por um
trip mambembe mostram o avesso da institucionalizao que logo
atingir o terreno. Em foto de 1991, uma corredora solitria atravessa
uma fronteira invisvel, o local exato onde pouco antes havia a solidez do
muro, sinalizado ainda pelos vergalhes ornados com bandeirolas. (Tenho
certeza, Goeldi adoraria essas fotos.)Antes de ser gradeado, o terreno convidava ao flanieren em sua na-
tureza indefinida (nem parque, nem praa), imensamente esperanosa,
8 Kalbe, Riki e Zuckermann, Moshe. Ein Grun-dstck in Mitte. Das Gelnde des knftigen Ho-locaust-Mahnmals in Wort und Bild, Gttingen:Wallstein, 2000.
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propiciada pela modificao de um estado de coisas que parecia at
ento imutvel (na cidade, nas Alemanhas, no mundo ocidental). Se a
idia no fosse algo esdrxula e anacrnica, poderia imaginar que os
surrealistas saberiam tirar grande proveito desse vazio redescoberto na
cidade. O termo baldio na verdade deslocado, pois quer dizer rea
sem proveito, intil, ou ainda inculto, agreste, um terreno por cultivar.
Em alemo, brachliegen (verbo e no adjetivo), utilizado pelos autores
para referir-se ao terreno, significa tambm ficar improdutivo. Mas esse
sentido metforico usado de modo irnico, pois as fotos e os textos do
livro empenham-se em mostrar justamente o contrrio, o quanto o terreno
operante na cidade.9
Uma ou outra foto de Riki Kalbe lembra vagamente a entropia da
paisagem humana que marca de forma to singular a tela Velho Msico,
de Manet, verdadeiro mostrurio de tipos humanos atingidos pelas re-
formas urbanas empreendidas por Haussmann na capital parisiense. Por
exemplo, aquela em que um pequeno grupo de pessoas de costas para
a cmera observa um dirigvel que sobrevoa o terreno. Contudo, um elo
rene aquelas cinco pessoas de modo, embora frouxo, mais convincentedo que os personagens da pintura de Manet. Alm de estarem absortos na
contemplao, creio que a dimenso do espao que os cerca lhes devolve
paradoxalmente coeso. Igualmente robustos, referem-se apenas uns aos
outros e parecem solidamente plantados no solo. A sua volta, os vergalhes
do muro desaparecido so monumentos entrpicos da nova realidade.
Com mais certeza do que a de Manet, as fotografias de Riki Kalbe remetem
a Robert Smithson e seu texto clebre A Tour of the Monuments of Passaic(1967), em que o artista americano confere categoria do monumento
imprescindvel atualidade.
O texto descreve sua viagem, em 30 de setembro de 1967, a Passaic
e tem incio com a compra de um exemplar do jornal New York Times
e do livro Earthworks, de Brian Aldiss. Aps instalar-se no nibus, seu
primeiro gesto abrir o jornal. As paisagens inicialmente descritas no
so aquelas vistas pela janela do nibus, como seria previsvel, e sim asimpressas no jornal, reproduzidas na rubrica Arts. Ao longo do trajeto,
no h distino entre o texto jornalstico, as imagens artsticas impressas
(as reprodues baratas do jornal) e aquelas vistas pela janela: somente
nessa indistino entre texto, imagem e espao externo que podemos
falar em paisagem.
Na primeira meno ao exterior do veculo, o que lhe chama ateno
ainda um texto: o nome da firma Howard Johnson impresso numacaminhonete que ultrapassa o nibus. Assim encontramos a atualizao
extrema de um dos temas to caros modernidade: a cidade como texto.
9 Uma cronologia no exaustiva das atividadesocorridas no terreno desde a queda do muro foiorganizada por Riki Kalbe, que inventaria desdemanifestaes artsticas organizadas, dentre asquais destaca-se a instalao de Ilya Kabakov,Zwei Erinnerungen an die Angst (1991). Inicia-se por uma srie de intervenes espontneas,como a de 31 de dezembro de 1989, quandoa torre de vigilncia da rea escalada e seusholofotes festivamente utilizados para recebero ano novo e no mais esquadrinhar o terreno
em busca de fugitivos. No incio da primaverade 1990, Ben Wargis orienta a abertura de trssegmentos no muro, atravs dos quais, h umtrnsito de plantas para o terreno, atividadespara as quais so convidados polticos e profis-sionais diversos. A tentativa de ocupar a reacom flores, bales e outros uma constante.Mencionam-se ainda as atividades que noreceberam a autorizao de para ser realizadasali, pois seria de algum modo faltar com orespeito a uma rea reservada ao monumento.Por exemplo, o enterro simblico de Honeckernum caixo vermelho e uma corrida de cavalos.Kalbe, Riki. Von der ffnung bis zur Sammlung,em: Kalbe e Zuckermann, op.cit.:7-17.
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Em sua viagem Passaic, Smithson estabelece completa continuidade
entre o mundo impresso e o espao externo. O real se distende e assimila
com naturalidade a espacialidade da escrita. O habitat natural de Robert
Smithson o fim da era de Gutemberg, detectado precocemente por
Benjamim.10
No texto de Smithson, os monumentos vo sendo prontamente reco-
nhecidos j sob a condio de monumentos. O processo de monumentali-
zar Passaic indissocivel de sua transformao em imagem ou, melhor, de
seu reconhecimento como imagem e sua elevao imagem de segunda
potncia. O que conduz o artista o prprio aparelho fotogrfico, mas
sua cmera barata, automtica, amadora. As imagens que constituem a
obra parecem feitas por qualquer um e no pelo artista-fotgrafo. Como
reconhece Jean-Pierre Criqui, esse um grande texto sobre a fotografia e
os efeitos de sua reproduo generalizada.11 Para Smithson, fotografia e
linguagem so matria-prima, algo curiosamente natural.
Em Passaic, o olhar do artista abaixa-se, detm-se no que resduo,
abandono, runa, estabelecendo o antimonumental. Sua obra realiza mo-
vimento descendente prprio ao flneur: A rua conduz o flanador a umtempo desaparecido. Para ele, todas so ngremes. Conduzem para baixo
(...).12A descida remete ao passado, origem, que, para Walter Benjamin,
sempre movimento, turbilho. O to comentado declnio da aura implica
um desvio para baixo, uma inclinao, uma nova inflexo, como observou
Didi-Huberman.13 Os objetos de culto (aurticos) convidavam sempre a
elevar o olhar, pois a obra era situada em plano concreto e simblico
acima daquele em que est o observador. O declnio da aura anlogoao declnio do monumento, detectado por Rosalind Krauss como deter-
minante para a compreenso da histria da escultura moderna. Desde
Rodin e Brancusi, a escultura no tem realizado outro movimento seno
descer de seu pedestal (ou integr-lo obra), abaixar-se, expandir-se no
espao do mundo.
No seria exagero inserir a experincia de Smithson e tambm a de
Riki Kalbe em Berlim na categoria da ruminao melanclica. Como nasrepresentaes de um espao saturnino denso e travado , Smithson
movimenta-se com lentido em meio tecnologia transformada em dejeto
e caos. Os monumentos de Passaic ponte, muros, canos, crateras, guindas-
tes, canteiro de areia, estacionamento mostram o avesso da metrpole
ou, melhor, o avesso do grande centro urbano por excelncia na segunda
metade do sculo XX: Nova York. Como Humpty Dumpty,14 nem todos os
esforos do mundo moderno combinados poderiam reerguer Passaic,pois a construo de uma New Passaic geraria outro subrbio entrpico
semelhante ao que foi recuperado, e assim por diante.
10 Seligmann-Silva, Mrcio. Ler o Livro doMundo. Walter Benjamin: Romantismo e crticaliterria, So Paulo: Iluminuras, 1999:120. A esserespeito ver a conhecida passagem de Rua deMo nica: A escrita, que no livro impressohavia encontrado um asilo onde levava umaexistncia autnoma, inexoravelmente arras-tada para as ruas pelos reclames e submetida
s brutais heteronomias do caos econmico.Essa a rigorosa escola de sua nova forma. Seh sculos ela havia gradualmente comeadoa deitar-se, da inscrio ereta tornou-se manus-crito repousando oblquo sobre escrivaninhas,para afinal acamar-se na impresso, ela comeaagora com a mesma lentido, a erguer-se nova-mente do cho. J o jornal lido mais a prumoque na horizontal, filme e reclames forama escrita a submeter-se de todo ditatorial
verticalidade. E, antes que um contemporneochegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhosum to denso turbilho de letras cambiantes,que as chances de sua penerao na arcaicaquietude do livro se tornaram mnimas. Ben-jamin, W. Obras escolhidas II, Rua de mo nica,So Paulo: Ed. Brasiliense, 5 ed.,1995:28.11 Criqui, Jean-Pierre. Ruines lenvers. Intro-duction la visite des monuments de Passaicpar Robert Smithson, Les Cahiers du MNAM,Centre Georges Pompidou, no. 43, primavera
de 1993: 8.12 Benjamin, Walter. Obras escolhidas III, SoPaulo: Brasiliense, 1995:186.13 Did-Huberman, Georges. Devant limage.Histoire de lart et anchronisme des images,Paris: Seuil, 2000:234.14 Perhaps a nice succinct definition of entro-py would be Humpty Dumpty. Like HumptyDumpty sat on a wall, Humpty Dumpty had abig fall, all the kings horses and all the kingsmen couldnt put Humpty Dumpty back toge-ther again. There is a tendency to treat closedsystems in such a way. Entropy Made Visible.Interview with Allison Sky, em: The Writings ofRobert Smithson, Holt, Nancy (org.), New York
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Sobre os monumentos de Passaic no se aplica nem mesmo o adjetivo
efmero, pois nenhuma prtica formal do artista transforma os resduos,
apenas identificados como monumentais. Runas romnticas ao avesso
ruins in reverse , as construes do subrbio americano no se desfa-
zem em runas depois de construdas e sim erguem-se em runas antes
mesmo de efetivamente existir. Passaic surge no vcuo de Nova York,
mas tambm o avesso da cidade eterna e ideal, Roma, onde Smithson
passou alguns meses, em 1961. Obviamente, ao contrrio de Roma ou
Jerusalm, Passaic no demanda nenhum tipo de peregrinao. J em
1973, notava-se que apenas a ponte e o canteiro de areia descritos no
texto permaneciam, o que no provoca espanto algum. O que o texto deSmithson ativa uma estranha operao potica que nos torna aptos a
identificar de modo crtico paisagens-monumentos entrpicos, onde
quer que se encontrem.
Assim voltamos a Berlim. certo que a rea central destinada ao
monumento, mesmo abandonada e esvaziada, jamais se converte numa
suburbe. Ao contrrio do subrbio americano, que aparentemente no
anseia reverter o estado de entropia, as fotos do terreno em questomostram sua sada progressiva desse caos sutil e produtivo; mostram o
despertar lento de um estado de letargia pleno de significados. Por mais
residuais que sejam os elementos mostrados nas fotografias, no h como
tornar-se imune ao peso da histria que os assombra. E talvez seja essa
precisamente a funo do gigantesco monumento: calar a fora desse
vazio, afastar os fantasmas do Centro da capital. Como monumentos-en-
trpicos-berlinenses, as imagens de Riki Kalbe surpreendem ainda maispela proximidade da rea construda e pela potncia da paisagem urbana
reconhecvel: nada mais inslito e antimonumental do que a viso da
Porta de Brandenburg a partir de uma espcie de trincheira. Ao contrrio
das runas de Passaic, despojadas do fardo da memria, os detritos que
aqui surgem so assustadoramente histricos; afinal, estamos prximos
ao bunker de Hitler, do qual se encontram restos no terreno, jamais pro-
priamente vazio. Wolfgang Schche, em ensaio que remonta s ocupaesda rea no sculo XVIII, afirma que inexiste relao imediata entre o local
escolhido para o monumento e a sistemtica destruio dos judeus. Nem
lugar das vtimas, tampouco realmente lugar dos criminosos e de suas
brbaras decises como a Casa da Conferncia de Wansee e o terreno
da documentao Topografia do Terror , embora instncias do poder e
responsveis pelo sistema nacional-socialista tenham tido na Wilhelms-
trasse (que limita o terreno a leste) seus endereos.15
O que define a rea,portanto, sua insero prxima de tantos signos arquitetnicos nacionais
e tambm da histria sepultada. O bunker de Hitler, descoberto aps a
15 Schche, Wolfgang. Das Areal des knftigenHolocaust-Denkmals. Anmerkungen zu seinerGeschichte, in R. Kalbe e M. Zuckermann,op.cit.:18-27.
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queda do muro, permanece trancado para evitar que se torne local de
culto neonazista. Com grande senso de oportunidade e ironia, Henryk M.
Broder sugeriu que sobre a rea do bunker fosse construda a embaixada
de Israel.16
Cercado e aplainado, o terreno fecha-se ao acaso, tornando-se indife-
renciado da paisagem de canteiros de obras que o rodeia. Domesticado
enfim, integra-se cidade justamente quando tem seu acesso barrado
ao passante. Uma foto de janeiro de 1998 mostra um grupo de pessoas
no posto de observao que permite a vista panormica do terreno. A
partir de ento, Riki Kalbe fotografa a distncia. Em uma foto, o mato
rarefeito evoca um campo de lpides vegetais, que como notou MosheZuckermann, remete vagamente ao cemitrio de concreto do projeto
vencedor criado por Eisenman. Alm disso, vemos apenas as estaes do
ano que se alternam. As fotos perdem em estranheza e interrompem-se
em outubro de 1999.
A essa altura, o projeto da arquiteta Christine Jakob-Marks, finalista
do primeiro concurso (1994/95), havia sido recusado. Atacado por artistas,
intelectuais e mesmo por parte significativa da comunidade judaica, foifinalmente vetado por Helmut Kohl. Creio que seu problema grave e es-
trutural era apostar na totalidade numrica dado que orienta a iniciativa
do concurso , a cifra incomensurvel dos seis milhes de mortos, na qual
o trabalho de memria se dissipa em abstraes genricas. certo que o
resgate do nome prtica que orienta muitas obras sobre o Holocausto,
mas sempre obedecendo a um determinado recorte nacional, comuni-
trio ou familiar , pois os nomes trabalham na construo da identidadedestes grupos. O Yad Vashem memorial e centro de pesquisas sobre o
Holocausto, em Jerusalm , significa Monumento do Nome. Em Isaas
56, 5, encontramos a afirmao: Em minha casa e em meu muro, funda-
rei um Monumento (Yad) e um Nome (Vashem) (...); para eles fundarei
um nome eterno, que no ser extinto.17 Devemos a Gershon Scholem
o conhecimento da importncia do nome de Deus, mas tambm dos
homens - na mstica judaica. Pronunciar o nome dos mortos faz parte doIzkor, orao pela memria dos parentes falecidos, rezada, entre outras
ocasies, no Iom Kipur, o Dia do Perdo, quando o judeu pede para ser
inscrito no Livro da Vida do ano iniciado 10 dias antes. Lembrar o nome
dos mortos faz parte, assim, de um ritual de expiao, purificao e prepa-
rao do ano que comea. No projeto de Jakob-Marks, contudo, a tentativa
de resgatar a identidade das vtimas, distante de uma implicao efetiva
com a reflexo sobre o nome, resulta simplesmente em anonimato. Aconvocao de novo concurso, dirigido a artistas convidados de diferentes
nacionalidades, teve como resultado, em fins de 1997, a seleo de quatro
16 Nowel, Ingrid. Berlin. Vom preussischenZentrum zur neuen Hauptstadt: Architekturund Kunst, Geschichte und Literatur, Colnia:Dumont, 1998: 202.17 Die Heilige Schrift, trad. Leopold Zunz, TelAviv e Stuttgart: Sinai/ Doronia, 1997: 828.18 Os artistas convidados para o segundoconcurso foram: Christian Boltanski, EduardoChilida, Peter Eiseman, Jochen Gerz, Zvi Hecker,Hans Hollein, Rebecca Horn, Dani Karavan,Daniel Libeskind, Maukus Lpertz, GerhardMerz, David Rabinovich, Ulrich Rckhiem,James Turrel, Gesine Weinmiller, Rachel Withe-read. Tambm os nove premiados do primeiroconcurso foram convidados a enviar novas
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finalistas: Richard Serra & Peter Eisenman, Jochen Gerz, Daniel Libeskind
e Gesinne Weinmiller.18
Contudo, cabe prolongar por alguns instantes a metfora do terreno
baldio. Em agosto de 2000, tambm fotografei o local do monumento.
Na rea gradeada, apenas uma estratgia publicitria, desprovida de
dispositivos crticos que esses recursos adquirem em tantas obras de Jo-
chen Gerz. Enquanto uma torre exibia conhecidas imagens dos campos,
outra continha reprodues da maquete do projeto de Peter Eisenman.
Os painis solicitavam doaes, pois o monumento financiado pelo Es-
tado alemo, pelo governo municipal de Berlim e pela iniciativa privada.
Sobre as fotos dos deportados, a afirmao enftica de que aquele olugar do monumento e a curiosa declarao: Dez anos de conversa so
suficientes.(10 Jahren Reden sind genug.) Na medida em que desde o
incio os dados bsicos da iniciativa do monumento nunca puderam ser
questionados, e nada indica qualquer alterao, h de se concordar com
o cartaz. O tecido urbano esgarado do Centro ser restaurado; a ferida no
meio da cidade, como disse Vered Maimon, ser fechada.19 Seria tentador,
mas impossvel, apostar no desejo de deixar tudo como era [logo depoisda queda do muro], o memorial como uma pgina vazia bem no Centro
da cidade reunificada.20 Seria talvez realizar um desejo de Adorno, que,
em Minima Moralia, dizia: Talvez a verdadeira sociedade se farte do de-
senvolvimento e deixe, por pura liberdade, possibilidades sem utilizar.
O conceito de dinmica que vem complementar a a-historicidade
burguesa v-se elevado ao absoluto, ao passo que na sociedade
emancipada ele prprio teria que ser enquanto reflexo antro-polgico das leis de produo criticamente confrontado com
as necessidades. A idia de uma atividade sem peias, de uma
procriao ininterrupta, de uma insaciabilidade de boca cheia,
da liberdade como uma empresa a todo vapor nutre-se daquele
conceito burgus de natureza que serviu to somente para pro-
clamar a violncia social como inaltervel, como um trecho da s
eternidade.21
Deixar existir no corao de Berlim, to prximo nova city da Pots-
damer Platz, um terreno baldio de 19.000m2; refrear a nsia de construir
e restaurar; deixar na cidade possibilidades sem utilizar, espera; no
fazer com que a cidade conte falastronamente seu passado, mas que o
contenha, escrito nos ngulos das ruas, nas grades das janelas, nos corri-
mos das escadas (...), cada segmento riscado por arranhes, serradelas,
entalhes, esfoladuras22 no seria parte de uma tica capaz de procurar
honrar a memria dos judeus assassinados?23
19 Maimon, Vered. Archiv als Wunde em K albee Zuchermann, op.cit.:72-76.
20Huyssen, Andreas. Seduzidos pela memria,Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000: 99.21 Adorno, Theodor. Minima Moralia, So Paulo:tica, 1992: 136 137.22 Calvino, Italo. As cidades invisveis, So Pau-lo: Companhia das Letras, 1991:14-15.23 Deixar a rea da Potsdamer Platz vazia sugesto do arquiteto Daniel Libeskind, autordo projeto Entre linhas, o Museu Judaico emBerlim, inaugurado em 2001, e um dos finalistasdo segundo concurso, embora seu projeto para
o Monumento aos Judeus Assassinados nomantenha o compromisso radical de seu texto:Sugiro um descampado de um quilmetro deextenso, dentro do qual tudo pode ficar comoest. A rua simplesmente termina no mato.Maravilhoso. Afinal, essa rea o resultado dodireito natural divino de hoje: ningum a quer,ningum a planejou, no entanto ela permanecefirmemente implantada nas mentes de todosns. E l, nas nossas cabeas, essa imagem dovazio da Potsdamer Platz ficar por dcadas.Coisas como essa no podem ser facilmenteapagadas, mesmo se toda rea estiver ocu-pada. Libeskind (Radix-Matrix: Architekturenund Schriften, Munique, 1994) apud Huyssen
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Floresta de lpides
Sobre a superfcie de 19.000m2 distribuem-se quatro mil pilares de
largura e comprimento constantes (0,92m x 2,30m), eqidistantes cerca
de um metro, e cujas alturas variam entre a proximidade do solo e cinco
metros. Os blocos de cimento podem inclinar-se em at trs graus em
relao ao plano do solo, como se uma trao subterrnea qualquer os
trabalhasse de modo imprevisvel e diferenciado. Tanto a inclinao quanto
a altura varivel desses blocos faz com que a sistematicidade do espao
organizado em fileiras e corredores seja aparente e enganosa, pois, na
verdade, constroem um percurso labirntico, cuja vocao fechar-se sobresi mesmo, oferecendo uma vivncia radical de desorientao espacial.
Percorr-lo uma experincia obrigatoriamente individual, pois o exguo
intervalo entre os lpides permite a passagem de uma nica pessoa a
cada vez. A densa concentrao sugere a organicidade da floresta ou do
cemitrio romntico, embora essas no sejam metforas voluntariamente
evocadas por seus autores, mas inegvel que os blocos lembram marca-
es tumulares. Em meio massa uniforme de monolitos de cimento, umnico bloco de mrmore branco diferencia-se numa apario imprevisvel,
j que o espao no converge em sua direo e nenhuma sinalizao
indica sua presena. Em meio massa indiferenciada, essa nica lpide
evocaria certamente a existncia singular, embora testemunhe tambm
sua impotncia. 24
Essa a descrio sumria do projeto original apresentado por Richard
Serra e Peter Eisenman, no segundo concurso de 1997. A coluna de mr-more, meno encontrada em jornais da poca, logo abandonada.
certo que o bloco de mrmore introduziria um novo sentido no labirinto
de lpides, conferindo-lhe um telos, um vis narrativo, pois, informados
de sua presena solitria, iramos certamente a sua procura.
Em junho de 1998, noticiava-se a sada de Richard Serra do empre-
endimento, atitude coerente com sua obra. Nesse momento dizia-se
que a concepo original era de Peter Eisenman, que havia convidado oescultor para participar da criao do labirinto-monumental. A gramtica
de Eisenman reconhecvel nos deslocamentos, rotaes no plano e na
elevao, incerteza quanto aos volumes, forma e ao fundo, ao interior e
ao exterior. Nem signo arquitetnico, nem lugar, o monumento afirma-se
na atopia, lugar de errncia sem objetivos, seno a vivncia do presente
que no se transforma em experincia, muito menos em conhecimento:
h to-somente a lembrana viva.Embora, dentre as finalistas do concurso, a obra tenha sido a preferida
de Helmut Kohl, foram solicitadas modificaes notveis, prontamente
24 Retiro essas informaes do texto dosartistas publicadas por Ute Heimrod (org.),op.cit.:881, 882. A informao sobre o blocode mrmore nico foi obtida em jornais de1997/98 e no mencionada na descrio doprojeto na documentao de 1999. EduardBeaucamp tambm faz meno ao blocosolitrio, como pertencendo concepooriginal do projeto (ainda com Serra). VerBeaucamp, Eduard. Baut Serra!, em FrankfurtAllgeimeine Zeitung 3/02/1998 e Jeissmann,
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acatadas pelo arquiteto. No intuito de humanizar a obra e torn-la menosabrupta no contexto da cidade, o nmero dos pilares foi sensivelmente
reduzido (de 4000 para 2700). Tais mudanas (entre outras, como a inclu-
so de um grupo de rvores num dos limites com as ruas vizinhas) foram
defendidas de modo entusiasmado por James E. Young, talvez o maior
especialista americano em monumentos ao Holocausto. Em artigo publi-
cado no jornal Der Tagesspiegel (22/8/98), Young considerava o projeto
de Eisenman uma soluo humana para o insolvel e parece no terdificuldades em acatar alteraes que transformam o cerne da proposta,
sua capacidade em provocar efetiva desorientao espacial.
Em entrevista concedida em setembro de 1998, Peter Eisenman afir-
mava que as alteraes secundrias, meros ajustes no significavam
alguma forma de compromisso com os organizadores do concurso, mas
mencionou que o primeiro ministro, ao ver o projeto, perguntou sobre
o estacionamento dos nibus e sobre a rea reservada para os eventoscomemorativos.
Colocamos ento rvores nas ruas, introduzimos pontos de nibus
para que a chegada e a sada de numerosos visitantes se faam sem
problemas. E colocamos disposio, na margem do monumento,
uma rea suplementar para cerimoniais e outros encontros. En-
quanto realizamos essa passagem entre o memorial e o contexto,
cuidamos simultaneamente para que o monumento no fique
enquadrado, porque o vemos como parte importante da cidade(...) Neste sentido o projeto no mudou de modo algum.25
Em junho de 2000, aprovado acrscimo considervel concepo
Riki Kalbe, Berlim, fevereiro 1995
25 Eisenman, Peter. Dem eigenen Unbewusstins Gesicht schauen. Entrevista com VerenaLueken, Frankfurter Allgeimeine Zeitung,22/09/1998.
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inicial. Um Lugar da Informao (Ort der Information) subterrneo ser
construdo, com o objetivo de complementar a forma abstrata da memria
com informaes amplas sobre as vtimas.26 Uma equipe multidisciplinar,
dispondo de um sistema multimdia, cuidar dos bancos de dados queintegram os diferentes espaos do anexo subterrneo. De fato, a funo
desse Lugar da Informao responder e compensar uma srie de crticas
endereadas ao monumento no apenas ao projeto de Eisenman , mas
idia do monumento central desde o incio. Uma resposta hierarqui-
zao das vtimas encontra-se no espao dedicado s Outras vtimas da
perseguio nacional-socialista, onde sero reunidas informaes sobre
todos os grupos humanos perseguidos e massacrados (ciganos, teste-munhas de Jeov, deficientes fsicos e mentais...). J a crtica ao perigo do
endereamento conjunto aos seis milhes de mortos, ignorando suas
especificidades e reduzindo-os ao anonimato encontra resposta no espao
Familienschicksale (Destinos de famlias), onde sero apresentados de 10
a 12 destinos exemplares de diferentes camadas sociais, nacionais, culturais
e religiosas do universo judaico. Desse modo ficar visvel o contraste entre
a vida antes, durante e depois da perseguio (...).27 A busca do Individual respondida na criao de um Hall of Names com os trs milhes de no-
mes reunidos durante 50 anos pelo Memorial Yad Vashem, em Jerusalm.
Sero colocadas disposio do monumento nacional alemo as Pginas
do Testemunho (tambm trs milhes) que concentram depoimentos,
documentos e algumas fotografias reunidas sobre as vtimas.
A estao subterrnea do Monumento aos Judeus Assassinados da
Europa aposta no apenas na centralidade, mas tambm numa certatotalidade informativa. O que se apresenta inegavelmente uma soluo
de compromisso que tenta anular as aporias inerentes a essa tarefa infinita.
No obstante, Gerhard Schweppenhser acredita que o compromisso da
frmula monumento + museu pode ser visto de uma forma positiva,
como uma sada para o dilema no qual nos enrascamos depois de mais
de 10 anos de debate a respeito do monumento na Alemanha.28
Warum?
Em uma deciso acertada, o segundo concurso para selecionar o
projeto do Monumento aos Judeus Assassinados da Europa endereou-
se a artistas de todo o mundo e no permaneceu restrito a alemes ou
residentes na Alemanha, como na primeira ocasio. Contudo, com a re-
cusa do projeto apresentado por Jochen Gerz, perdeu-se a oportunidade
imensa de pensar a constituio da memria coletiva e da escritura dahistria orientada pela potica pblica desse artista, cujo laboratrio
poltico, artstico, existencial ativa-se a partir da sociedade alem do
26 Home page: http://www.holocaust-mahn-mal.de27 Idem.28 Schweppenhuser, Gerhard. Em Mimesese Expresso, Duarte, R. e Figueiredo, V., BeloHorizonte: UFMG, 2001:132.29 Ignaz Bubis, j falecido, era presidente do
Conselho Central de Judeus da Alemanha (Zen-tralrat der Juden in Deutschland), instituioque coordena as comunidades e associaesjudaicas no pas.
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ps-guerra. Sendo o monumento em pauta coisa dos alemes (e no
da comunidade judaica, seja alem ou europia), como j afirmara Ignaz
Bubis29 como tambm reivindicam Habermas e tantos outros , teria sido
certamente uma ocasio rara reservar ao tipo especial de alemo que Gerz a tarefa de conduzir a construo do to problemtico wir (ns) na
atual Repblica de Berlim. Mesmo que Gerz se tenha exilado volunt-
ria e estrategicamente na Frana desde 1966, esse deslocamento no
o eximiu das questes essenciais da herana de sua gerao. De fato, ao
longo da dcada de 1990, ningum melhor do que o artista compreendeu
as aporias do monumento, criando novas condies de possibilidade para
a tarefa no de os construir ou erguer verbos que pertencem ainda aoregime do monumento tradicional , mas simplesmente coloc-los em
ao por algum tempo. Ao contrrio de Robert Smithson, que manobrava
com desenvoltura estupenda camadas geolgicas, imagticas e discursivas
( certo que num mundo sempre assombrado pela catstrofe final), Gerz
opera ou, melhor, simplesmente ativa, de modo pontual e sem grandes
gestos, a memria coletiva da Europa do ps-guerra.30 Enquanto a reflexo
sobre o monumento uma questo explicitamente recusada por Serra eEisenman,31 no percurso de Gerz crescente o embate com esse desafio
endereado arte contempornea, embora ele nem se considere propria-
mente artista, tampouco terico ou escritor, mas simplesmente aquele
que se torna pblico (Ich bin einer, der sich verffentlich). 32
Nascidos na dcada de 1940, Jochen Gerz e Anselm Kiefer respon-
dem ao mesmo fardo histrico em registros radicalmente opostos. Com
Kiefer os gestos indissociveis de construir e de destruir (a identidade, amemria cultural, o mito) afirmam a potncia do fazer pictrico (sim, seus
livros e instalaes permanecem informados pela pintura); com Gerz a
experincia da forma expande-se em operaes dispersas no campo da
cultura, o que, no obstante, vem gerando presenas complexas e, talvez,
igualmente poderosas.
Para o monumento no Centro de Berlim, Gerz planejou que 15.000m2
do terreno seriam progressivamente recobertos com as respostas dos visi-tantes pergunta: Por que isso aconteceu? (Warum ist es geschehen?).
Trinta e nove postes distribudos pela rea conteriam a interrogao
Por que?, (qu?,) escrita em non nas 39 lnguas dos judeus europeus
assassinados. Haveria tambm um espao interno, o edifcio denomina-
do Das Ohr (A Escuta), projetado pela arquiteta iraniana Nasrine Seraji e
subdividido, por sua vez, em trs espaos dedicados ao Testemunho,
Resposta e ao Silncio.O espao do Testemunho conteria depoimentos em vdeo dos sobrevi-
ventes que integram os arquivos da Fundao Shoah, de Steven Spielberg,
30 verdade que o artista tem sido convida-do por universidades americanas para fazerworkshops e trabalhos especficos. Contudosua potica de dar forma memria pblicaorigina-se claramente de interesses comunsa artistas europeus de sua gerao, comoBoltanski e o escritor Patrick Modiano, entretantos outros.31 Embora em 1995 tenha participado da Bienalde Withney com uma escultura intitulada PrimoLevi, a negao de Richard Serra a obras monu-mentais notria: Nem pela forma nem pelocontedo, minhas obras referem-se histriados monumentos. Elas no celebram nenhuma
pessoa, nenhum lugar, nenhum acontecimen-to. Bois, Yves-Alain. Promenade pittoresqueautour de Clara-Clara, em Richard Serrra. Paris:Muse National dArt Moderne, Centre GeorgesPompidou, 1983:14 -15. Sobre as (no) relaesentre a obra de Eisenman e a prtica dos mo-numentos, ver: Fiori Arantes, Otlia. O lugar daarquitetura depois dos modernos, So Paulo:Edusp, 2003: 66-68.32 Epgrafe do texto de Marion Hohlfeldt.Achtung Kunst korrumpiert, em Gerz, Jochen.
Res Publica. Das ffentliche Werk 1968-1999.Osternfield: Hantje Cantz, 1999: 9. Ver ainda:Hans-Werner Schmidt, Jochen Gerz Denkzet-tel und Anschlge, idem: 18. Gerz, der sich nicht
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atividade distinta de sua prtica cinematogrfica. Alm da constituio
de arquivos, o videotestemunho um ato pblico que ajuda a construir
comunidades de entrevistadores e organizadores ad hoc, como afirma
Geoffrey Hartman.33 O testemunho em vdeo um processo humanizadorque atua sobre o passado resgatando o individual com rosto e nome pr-
prios, do lugar do terror no qual aquele rosto e aquele nome foram levados
embora.34 A imagem viva daquelas pessoas que sobreviveram significa
tambm uma resistncia ao abjeto: O meio vdeo-visual no existe para
servir narrativa, mas para corporificar o sobrevivente, substituindo fotos
nazistas degradantes e s vezes injuriosas que, at recentemente, eram o
que havia de mais comum nos museus do Holocausto.35 No obstante,Hartman pondera que esses vdeos no podem ser considerados uma
forma de arte, pois resistem ao paradigma da mestria artstica, tanto
quanto a outras formas de integrao psquica. So intrinsecamente re-
petitivos e cumulativos temos de acompanh-los um a um. No cedem
muito facilmente a generalizaes, ainda que possam ser influenciados
por convenes sociais e literrias que amortecem, e assim transmitem,
experincias extremas.36 No monumento de Gerz, os vdeo-testemunhoslembrariam ainda o desaparecimento gradual da ltima gerao de
sobreviventes e reafirmariam a esperana de se achar uma testemunha
para a testemunha.
No espao dedicado Resposta o visitante seria convidado a deixar em
um livro sua tentativa de responder questo Por que isso aconteceu?.
Pouco a pouco, o acmulo dos livros preencheria as paredes de vidro do
edifcio, dando origem a uma imensa biblioteca. As respostas coletadas noslivros seriam, por sua vez, gravadas no solo, com procedimentos precisos.
Ainda no terceiro espao, dedicado ao Silncio, o visitante encontraria o
som do eterno e, do compositor La Motte Young.
Distinto do projeto inicial de Serra e Eisenman, que abolia toda a comu-
nidade, e da soluo de compromisso encontrada pelo arquiteto ao criar,
margem do monumento, um local para cerimnias oficiais, o projeto de
Jochen Gerz estruturado no espao compartilhado, que, mesmo visando superao de fronteiras, identidades e religies, manter-se-ia como um
lugar da identidade alem (reflexiva, fraturada, plural).37
Ocorre-me que a arte pblica de Jochen Gerz afina-se com a crena
bsica que orientava a Escultura Social de Joseph Beuys. Inegavelmente,
Gerz distancia-se da figura carismtica xamnica do artista, tal qual ela
investida por Beyus. Com outras operaes, gestos, discursos, biografia
com potica radicalmente distinta, enfim ressurge, no obstante, aaposta radical e, talvez, anacrnica na ao transformadora da arte no
mundo. Gerz aceita o temerrio desafio de utilizar as tcnicas e os procedi-
33 Hartman, Geoffrey. Holocausto, testemu-nha, arte e trauma, em Catstrofe e Represen-tao, Seligmann-Silva, M. e Nestrovski, A (org.),So Paulo: Escuta, p.217.34 Hartman,G., Op. cit.::215.
35 Idem:216.36 Idem.37 Texto de Jochen Gerz publicado por UteHeimrod (org), op.cit.:884.
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mentos dedicados ao design e propagao da mercadoria, sem se tornar
mero tcnico ou operador de imagens reificadas. Seus cartazes funcionam
como atentados sutis, sabotagens, sons dissonantes (Gegentne) no coro
das informaes, como bem observou Hans-Werner Schmidt.38
Inversamente ao projeto de Eisenman, que termina por anexar a do-
cumentao como tentativa de objetivar a memria, o projeto de Gerz
prope, logo de sada, uma forma ambgua, porm indita, de monumen-
to/ arquivo, como que a desconfiar de que a Forma artstica em si mesma
seja impotente (o que, nesse caso, inegavelmente ). Sabemos que a fora
de atuao de qualquer monumento contemporneo ou tradicional
depende de sua interao com muitos outros fatores; seu princpio aintertextualidade e o fato de ser apenas um dos elementos de nossa cul-
tural memorial.39 O monumento de Gerz assume precisamente a crescente
incerteza dos limites entre monumento, museu e historiografia relativos
Shoah. Essa sua singularidade e sua fora; mas, talvez, tambm sua
fraqueza, pois permanece certa nostalgia da experincia da Forma (o que
o projeto de Serra e Eisenman parecia oferecer na chave do sublime).
Ao centrar seu trabalho na pergunta Por que isso aconteceu?, Gerzparece responder a Claude Lanzmann. O cineasta francs considera que
Riki Kalbe, Berlim, maro 1995
38 Schimdt, Hans-Werner. Jochen Gerz Denzettel und Anschlge, em Res Publica,op.cit.:21.39 Huyssen, Andreas. Denkmal und Erinnerung
im Zeitalter der Potmoderne, em Mahnmaldes Holocaust, Munique, Prestel Verlag, 1994:
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inquirir sobre a razo da morte dos judeus , em si mesmo, obsceno.40 O
que importa, afirma Lanzmann, o ato de transmisso (o testemunho)
ao qual nenhum conhecimento antecede. Mas fundar seu monumento
na pergunta Por que isto aconteceu? no significa que o artista acrediteque a indagao obtenha resposta: Ao lado do Tiergarten, surge uma
segunda floresta uma floresta de palavras, perguntas e respostas. No
se trata de superar a pergunta para a qual no existe resposta, mas sim
acrescentar, a sua singularidade, a pluralidade de todos que a ouvem e
tentam respond-la.41 A indagao de Gerz abdica to-somente da tota-
lidade, pois o conjunto resultante de respostas permanece inalcanvel
e incognoscvel. Orientar assim um projeto memorial surge de uma obracujos momentos de produo e recepo so indistintos.
***
Sabemos que a experincia da forma dos monumentos ou da arte
tout court no suficiente para garantir a estabilidade e permanncia
de seus sentidos originais. Tanto os monumentos iconogrficos do sculo
XIX quanto os abstratos emudecem fatalmente com a passagem do tempo.
Mas isso justificaria sua renncia no presente? Um monumento, escreveGehard Schweppenhuser, um gesto de respeito materializado. Consi-
der-lo impossvel por questes estticas seria incorrer na aporia tica.
Creio que se pode lidar melhor com a aporia esttica do que com
a aporia tica. Traria algum prejuzo se dissssemos: isso tudo
no d certo, tambm no leva a nada, vamos deixar de lado. O
valor simblico de um memorial de alerta [Mahnmal] ou de recor-
dao pode ser problemtico esteticamente, mas so possveis
aproximaes. Do ponto de vista tico, a renncia de se tentar aomenos algo esttico seria um smbolo negativo: um smbolo da
mentalidade do ponto final. Isso seria o sinal errado. Mais difcil
seria tornar crvel que, aps a ruptura com a civilizao do Terceiro
Reich, estaramos engajados em reconquistar a civilizao e a
cultura de forma sustentvel no sentido de Ernst Cassirer que
entende a cultura como a produo de sentido com o auxlio de
simbolizaes.42
Schwenppernhuser recorre a Habermas, que afirma a necessidade
do monumento para os alemes (e no para as vtimas ou seus familiares
vivos!). O passado evocado pelo monumento uma forma de os alemes
afirmarem perante si mesmos sua responsabilidade poltica; trata-se de
um auxlio simblico para prestar contas a si mesmo, recuperando a
auto-estima atravs da recordao das vtimas.43 Para Habermas o mo-
numento deve dispensar o compromisso do museu anexo e efetivar-sena linguagem abstrata das formas da arte moderna. Embora reconhea
a dificuldade e at a impossibilidade de se representar as rupturas da
40 Para Paul Ricoeur, o historiador da Shoah nose deve intimidar com o postulado de que ex-plicar desculpar, compreender perdoar. Ojulgamento moral atrelado ao histrico provm
de uma camada do sentido histrico distintadaquela da descrio e da explicao. Ver:Ricoeur, Paul. La Mmoire, lhistoire, loublie, Ed.Seuil, 2000:453-436. Tambm Eric Hobsbawnafirma: Compreender a era nazista na histriaalem e enquadr-la em seu contexto histricono perdoar o genocdio. De toda forma, no provvel que uma pessoa que tenha vivido estesculo extraordinrio se abstenha de julgar. Odifcil compreender. Hobsbawm, Eric. Era dosExtremos: o breve sculo XX: 1914-1991, So
Paulo: Companhia das Letras, 1995:15.41 Gerz, op.cit.: 885.42 Schweppenhuser, G. Op. cit.: 138-139.43 Idem, op. cit.:138.
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civilizao dos alemes com os meios da arte, renunciar tentativa, ele
considera definitivamente errado.44
Mesmo que no se tenha renunciado construo do monumento,
as escolhas feitas at ento encaminham-se no sentido de suplantar asaporias. Concordo ainda com Schweppenhuser quando afirma que ape-
sar da aporia ser uma condio desagradvel, ela no uma vergonha.
Vergonha seria fingir que no existe o beco sem sada, como se tivssemos
caminhos livres para trilhar. 45
As fotos realizadas por Riki Kalbe, artista falecida em 2002, permane-
cero como os antimonumentos do monumento central. Por enquanto,
resta-nos aguardar a inaugurao do monumento de Eisenman. Apesarde certo interesse da radicalidade da primeira concepo de Serra e Ei-
senman, no gostaria de v-la efetivada no Centro de Berlim. (Que fique
como monumento imaginrio, espectral que o seja, assombrando sua
verso pacificada). Creio que o cemitrio estilizado de Peter Eisenman
ser assimilado como pendant ps-moderno e high-tech do monumen-
to tradicional de Nathan Rappoport, ao Levante do Gueto em Varsvia.
Docilmente entregue instrumentalizao, suavemente assimilado aoentorno projeta-se a embaixada americana na imediata proximidade
, a obra afasta-se de questes que animam a arte contempornea. Sem
hesitaes teria entregue a Jochen Gerz a tarefa de conduzir todas as
aporias em questo e materializ-las em processo no to problemtico
Centro de Berlim.
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45 Idem, op.cit.:144, nota 46.
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