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O Assassino e o Profeta - Guillaume Prevost

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Romance de Guillaume Prevost.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • um thriller bblicono corao da Palestina

    TraduoFernando Scheibe

  • Para meu pai

  • Sai enfim do discurso, para evitar que,apaixonado pela beleza das palavras,te tornes estranho beleza das coisas

    que essas palavras significam!Flon de Alexandria,

    De Migratione Abrahami

  • 1O Criador poderoso e sua criatura to fraca!Um brao sob o queixo, a mo que segura a nuca. Forar, forar mais. Um ltimo

    gemido e o pescoo cede finalmente, como o arco tensionado demais quebra. Devagar, ocorpo desliza para o cho. Tudo acabou. Tudo comea.

    De repente, um barulho atrs da porta. Passos cada vez mais lentos, um ouvido que sedemora... O corao bate no peito, a respirao se acelera. Apagar a lmpada? Norespirar? Talvez os gemidos de agora h pouco tenham...

    Os passos se afastam. No era nada. Ningum ousaria incomodar. No aqui.Acalmar-se. No tremer. A tnica se abre sem esforo. Um peito magro e gasto, o pobre

    corpo do bom e velho homem. O bom e velho homem... No ter sido ele escolhido?Agora, a faca. Cada inciso deve ser feroz, dez cortes extensos e profundos. Isso... Falta

    a boca. O corpo se deixa manusear, dcil, como se tivesse compreendido. Como se soubesse.Seus lbios sangram um pouco. Na palma, o cadaro de couro e o pergaminho minsculo.Enrol-lo, dobr-lo. Um n, minsculo tambm. O estojo. Pronto, no foi difcil.

    L fora, pela janela, a lua sobe iluminando Jerusalm. Jerusalm!Flon desceu do cavalo e se ajoelhou. Quantas vezes sonhara com aquilo? Quantas vezes,

    nas horas quentes da tarde, seu esprito de criana voara at as muralhas da Cidade Santa? Eleera aqueles homens de Davi, mil anos antes, subindo pelos tneis de gua para tomar afortaleza; ele era aqueles trabalhadores de Salomo, no suor e na poeira, ajustando as pedrasdo primeiro templo e cantando louvores ao Altssimo; ele era aquele soldado louco, com acarne e o corao sangrando, que saltava das muralhas para desafiar os exrcitos deNabucodonosor. Ele era o sumo sacerdote, vestido com a tnica sagrada, o mercador quecontava suas moedas, o campons que levava seu bezerro para o sacrifcio... Ele eraJerusalm, seu povo e sua histria! E eis agora que ela se oferecia a ele, a cidade que Deusescolhera, a cidade nica do Deus nico!

    Flon esfregou os olhos. Atrs dele, o pequeno grupo de viajantes tambm se calara.Tinham caminhado juntos atravs das montanhas, caravana improvisada de peregrinos emercadores, alguns montados em dromedrios, a maioria em burros. Por mais que a lei deRoma se estendesse at ali, as estradas estavam longe de ser seguras... Eles tinham visto o solnascer sobre os cumes esturricados, depois lamber a pedra cinza e a vegetao mirrada. Maisum dia seco em que nada viria do cu. Pouco tinham conversado durante o trajeto,economizando palavras como que para aliviar suas montarias. Finalmente, por volta das setehoras, Jerusalm surgiu. Aninhada no meio das colinas, a cidade ocupava uma ponta rochosa

  • que dominava dois profundos vales. Na claridade da manh, aquilo parecia um ba abertopara um fabuloso tesouro: milhares de tetos brilhavam encaixados no ocre das paredes ecoroados l no alto pela brancura do Templo. Dez medidas de beleza desceram sobre a terra.Jerusalm recebeu nove e o resto do mundo apenas uma. Ento o provrbio era verdadeiro...

    Flon voltou para cima de seu cavalo, dirigiu um sinal a seus companheiros e desceu odeclive at as primeiras casas que se estendiam aos ps da cidade. O mercador de cavalos deGaza de quem comprara seu animal lhe falara de um estbulo onde poderia deixar o cavalodurante sua estadia. Apesar da hora matinal, havia uma pequena feira ao lado da portaprincipal, atraindo numerosos viajantes e alguns fregueses habituais. Os vendedores, cobertosde longos tecidos azuis da cabea aos ps, ofereciam cebolas, tmaras e leite de cabrasupostamente mais baratos do que dentro da cidade. A seu redor, guardas romanos iam evinham, inspecionando os expositores e os clientes. De repente, um velho de barba e cabelossujos cuspiu na frente da patrulha. Com um empurro, um soldado furioso o jogou no cho,provocando um ajuntamento de onde partiam insultos e golpes.

    Malditos impuros! gritava o velho em hebreu. No servem nem para os vermes e para osces! O Senhor os julgar!

    Porcaria de macaco velho! Porcaria de macaco velho! repetia o guarda brandindo sualana.

    Flon estava prestes a intervir quando o chefe do destacamento se adiantou, ordenando aseus homens que se afastassem.

    Chega! Chega! No ele que estamos procurando. E voc, disse ele ao velho,obrigando-o a se levantar, suma daqui se no quiser passar a Pscoa na priso.

    O homem se afastou resmungando, mas os curiosos esperaram a partida da tropa para sedispersarem. Flon se dirigiu ento a um rapazinho que ajudava a carregar sacos de tmaras:

    Parece que os romanos no so muito bem-vindos aqui?O menino tinha o rosto duro e fechado. Observou seu interlocutor e se tranquilizou decerto

    com seus cachos negros e sua pele queimada: um estrangeiro, sim, mas judeu, sem dvida. o velho que tem razo, exclamou finalmente. Eles no tm nada o que fazer em

    Jerusalm. Se os outros tivessem mais coragem, teramos cado em cima deles e...Jogou violentamente o saco no cho. Sem armas? Armas teremos, sussurrou. Pode acreditar, ns as teremos.Flon se controlou para no sorrir diante da expresso determinada do garoto. Quem sabe

    se em sua idade e naquelas circunstncias... Pareciam estar atrs de algum, no? Vai saber. Eles esto sempre atrs de algum. Mas verdade que nos ltimos dias andam

    mais espevitados. Ento talvez seja melhor eu evit-los tambm. Enquanto isso, preciso chegar ao estbulo

    de Aceldama. Uma moeda para voc se me indicar onde fica. O estbulo? fcil, senhor. aquele com um grande telhado ali na frente.Apontava, a duzentos passos dali, numa pequena elevao, uma construo de forma

    alongada que parecia em estado lamentvel.

  • Mas, se fosse o senhor, no confiaria em Yarib, o proprietrio. Pague apenas a metadedo que ele pedir, um vigarista.

    Obrigado pelo conselho, amigo, vou lembrar.Flon colocou duas rodelinhas de cobre em sua mo. E voc, trate de no se aproximar demais dos soldados. Ter tempo de lutar mais tarde.O garoto pegou de novo seu saco, dando de ombros. Flon tomou a direo do estbulo,

    fazendo um grande desvio pelo oeste para evitar a patrulha. Contornou casas miserveis,cisternas vazias, jardins queimados pelo sol, cruzou com crianas correndo com uma vara namo atrs de carneiros famlicos. Antigos nmades, provavelmente, que tinham se fixadonaquele lado da colina, preferindo ser pobres sombra do Templo a serem ss nos desertosridos. As ltimas habitaes, tendas escurecidas e remendadas, situavam-se quase no vale daGeena, l onde os moradores de Jerusalm jogavam seu lixo e seus excrementos de cima dasmuralhas. Um fogo perptuo ardia ali, tentando reduzir a cinzas a acumulao de vriossculos de dejetos e soltando em lufadas bafios de podrido. Certas noites, dizia-se, ouviam-se ali os choros de recm-nascidos abandonados por suas mes.

    Flon se inclinou para a direita e virou um momento antes de perceber de novo o telhadodo estbulo. Penetrou num ptio de cercas derrubadas e avanou at a parte de trs daconstruo, que servia de alojamento para os animais. Ningum veio receb-lo. Empurrou aporta e um violento fedor assaltou suas narinas. Havia ali, fracamente iluminados por umaclaraboia, dois burros e trs dromedrios ruminando seu tdio. A forragem no fora trocada euma espcie de caldo preto escorria pelos lados. Flon estava a ponto de dar meia-volta,decidido a no abandonar seu cavalo ali, quando sentiu uma ponta dura em suas costas.

    Se gritar ou fizer um gesto, est morto.Uma voz de homem, rouca e apressada, ligeiramente arquejante. um bom judeu? continuou a voz.Flon demorou a responder. No era covarde por natureza e j tivera que lidar com

    bandidos em Mnfis e em Alexandria. Sua estatura era grande e musculoso , seu gosto pelaluta e pela corrida tinham lhe permitido se sair bem. Mas seus outros agressores nunca tinhamdemonstrado tantos escrpulos a propsito de suas origens e de sua religio!

    No gostaria de matar um bom judeu? Simplesmente no gostaria de mat-lo, mas o farei se no me deixar escolha.Para demonstrar sua determinao, passou seu brao por baixo do pescoo de Flon e

    pressionou sua lmina com mais fora. Cheirava a medo e poeira, e a manga de sua tnicaestava manchada de sangue. Era ele, evidentemente, que os soldados estavam procurando.

    Os romanos esto atrs de voc, isso? Sim, e no tenho mais quase nada a perder. Voc faria melhor em me obedecer. Suponho... suponho que um desses rebeldes que esto em guerra contra Roma. E que

    foi ferido ao fugir. por isso que perguntou se sou um bom judeu, no ?No campo de esportes vizinho ao grande ginsio de Alexandria, Flon no era conhecido

    por ser o mais forte dos lutadores. Mas era famoso por saber explorar a menor hesitao deseus adversrios. Percebeu um leve relaxamento no brao que o apertava, deu uma violentacotovelada para afastar a lmina e virou sobre si mesmo empurrando seu agressor. Os dois

  • caram na palha molhada, o homem se retorcendo de dor e colocando a mo sobre a perna.Tinha um grande corte na coxa sobre a qual incidia todo o peso de Flon.

    Solte-me! Solte-me! No tinha inteno de machuc-lo. E o que queria fazer ento? Vim aqui para encontrar uma montaria. Quando entrou com seu cavalo, pensei...Tentou se levantar, mas Flon o segurava firme. Estava descabelado, os olhos escavados

    pelo sofrimento: Escute, tenho muito pouco tempo. Se me pegarem, vo me torturar, e no estou certo de

    conseguir resistir. H coisas que eles no podem saber. Que tipo de coisas? No espere que as diga para voc. Se quer ser til a Jerusalm, precisa me dar esse

    cavalo. Ou, seno, me matar.Flon soltou-o. Ele tambm no gostava muito dos romanos. O rebelde tinha sua idade

    mais ou menos e parecia sincero. E se era realmente quem estava dizendo, os soldados no secontentariam em tortur-lo. Quanto a mat-lo a sangue frio... Flon resolveu confiar nele, mastomou a precauo de se apoderar do punhal de cabo esculpido em marfim e coloc-lo em seucinto.

    Est bem. Pegue esse cavalo. Estar melhor com voc do que nesse lamaal infame. Obrigado, prometo-lhe que...Interrompeu-se de repente: vozes distantes... So eles, esto chegando. Tenho absolutamente que...Levantou-se fazendo caretas e Flon teve que segur-lo e ajud-lo a subir na sela. L fora,

    as vozes se aproximavam. Pelo martelar dos passos, s podia ser a patrulha. V logo!Flon ajustou as rdeas e se assegurou de que o rebelde podia segur-las confortavelmente

    na mo. Ento se lanou para a porta, a fim de escancar-la. Sabe ao menos para onde ir?O outro olhou para ele sem responder. Seu olho estava ficando leitoso. Teve mesmo assim

    a fora de atiar o cavalo que partiu saltando para o lado da Geena, suscitando na patrulhaexclamaes e barulhos de corrida.

    Ele est ali! Ele est ali! Peguem suas lanas!Trs ou quatro dardos voaram, mas o cavaleiro j estava fora de alcance. Se conseguisse

    se equilibrar por mais algum tempo, estaria salvo... Era hora de Flon se preocupar consigomesmo. Pensou primeiro em se esconder, mas o estbulo no oferecia bons lugares para tantoe os romanos o revistariam minuciosamente. Fugir tambm? Sem chance. Ento fazer o qu?De seu recanto lamacento, os trs dromedrios o observavam balanando a cabea.Decididamente: detestava o ar de superioridade daqueles animais.

    O Estbulo! Cerquem o estbulo!No mesmo instante o jovem se deixou cair no cho, com o rosto na lama. Um primeiro

    soldado transps o alpendre e se precipitou sobre ele. Por aqui! H outro deles!Viraram-no brutalmente, dando-lhe diversos pontaps. Ento plantaram uma lana sobre

  • seu peito para imobiliz-lo. Est morto? perguntou um dos legionrios.Flon abriu lentamente os olhos, como se voltasse a si. No parece to mal assim, retorquiu o tribuno militar que comandava o grupo. Podemos

    saber o que est fazendo aqui? Eu... eu no sei. Vim deixar meu cavalo neste estbulo. Devo ficar alguns dias em

    Jerusalm e... um desses peregrinos que vm para a Pscoa? interrompeu-o o tribuno. No entanto, as

    festas s comearo daqui a uma semana. E bastante raro ver um simples viajante com umcavalo.

    Todo seu ser transpirava desconfiana. Era um homem de estatura mediana, mas de ombrosmuito largos, cobertos por uma armadura de metal ornada com cabeas de leo. Tirou seucapacete de pluma vermelha para examinar o jovem mais detidamente. Seus traos eram durose salientes, seu olho escuro muito agitado e seus cabelos curtos caam em mechas no alto datesta. No seria fcil engan-lo.

    Meu nome Flon e acabo de chegar de Alexandria. Na verdade, foi meu irmo que memandou para c. Ele devia inaugurar as portas do Templo que foram guarnecidas de ourograas generosidade dele. Mas est doente e no pde fazer a viagem a tempo para a Pscoa.

    Um Egpcio, hein? E, pra piorar, uma espcie de enviado.O tribuno fez um sinal e seus soldados recuaram. Flon ps-se de p com fingida lentido.

    Todos riam de sua tnica e de sua cara sujas. Parece estar menos brilhante do que as portas de seu Templo. Foi o rebelde que o deixou

    assim? Era um rebelde? Eu no vi nada. Entrei agora h pouco com meu cavalo, chamei e, do

    nada, aquele homem caiu sobre mim. Devia estar escondido na palha, l atrs. Ele me atingiuno sei com o qu e eu desabei no cho. Quando voltei a mim, vocs estavam a meu redor. Elequeria minha montaria, isso?

    O tribuno ignorou a pergunta: Como explica todo esse sangue em voc?Flon passou os dedos na nuca: Ele deve ter me cortado. Ou tero sido os pontaps com que seus soldados me

    presentearam? Meus legionrios obedecem a ordens. Aquele homem um sedicioso. Ele e seus

    comparsas pretendem desencadear uma guerra contra o Imprio. Escapou-nos de manh cedono bairro dos perfumistas e seus ferimentos o teriam impedido de ir mais longe. Mas contoucom cumplicidades dentro da cidade. Sabe a sorte reservada aos cmplices desse tipo detraidores?

    Avanou um passo, quase encostando em Flon. Queria esmag-lo fisicamente com seupoder e sua fora.

    Sim, bvio que sabe. Assim, melhor explicar muito bem o porqu de todo essesangue. Que o tenha nas costas, tudo bem, se ele o atacou por trs. Mas e na frente? Temcerteza que no ficou cara a cara com ele? E de que no o ajudou?

  • Flon sustentou seu olhar. Estava persuadido de que o romano no teria nenhum interesseem maltratar um mecenas do Templo. A menos que dispusesse de provas contra ele.

    Disse que ele estava ferido. Talvez ele tenha me revistado com as mos cheias desangue.

    O tribuno fez uma expresso em que se misturavam a ironia e o desdm: Voc tem resposta para tudo, egpcio. Mas isso no o torna inocente aos meus olhos.

    Pelo contrrio... Onde ficar hospedado em Jerusalm? Esperam-me na casa de Ezequias. Ezequias, o encarregado da ordem no Sindrio1? Que coincidncia! Um rebelde foge,

    rouba um cavalo, e o proprietrio deste hspede justamente de Ezequias... Confesse que, emmeu lugar, tambm ficaria com a pulga atrs da orelha.

    No faz nem uma hora que cheguei a Jerusalm! E isso o mais incrvel. Mas que seja, admitamos que seja inocente nesta histria.Ento repetiu, detalhando cada uma das slabas: Admitamo-lo provisoriamente. Pois bem! Como no quero que lhe aconteam outros

    imprevistos, dois de meus soldados o escoltaro at a casa de Ezequias. Eles aproveitaropara verificar se no mentiu para ns. O que no me surpreenderia, como pode imaginar...

    Examinou mais uma vez Flon da cabea aos ps, particularmente o punhal de cabo ornadocom motivos geomtricos. Depois, designou dois homens para acompanh-lo. Fez ento que iasair com o resto de seus soldados, mas, na soleira da porta, voltou-se:

    A propsito, egpcio. Sua faca. No creio que ela tenha vindo do Egito.

    1 Grande Conselho de Jerusalm, encarregado das questes de religio e de justia.

  • 2Flon imaginara sua primeira visita a Jerusalm mais gloriosa. Sua tnica estavanauseabunda, coberta de sangue e de um lquido ftido, e ele seguia escoltado por doissoldados como se fosse um bandido. O mais baixinho dos dois s abria a boca parapronunciar sons agudos e incompreensveis de que longnqua provncia a legio oarrancara? o mais alto, para insult-lo. Este provavelmente era o mesmo que batera no velhona feira e o chamara de macaco, pois enquanto subiam os degraus que levavam parte maisantiga da cidade, injuriava as crianas que se aglutinavam para v-los passar:

    Macacos! Caras de gorila! Deem o fora ou vou espet-los!Donde Flon deduzia que ele devia ter conhecido as guarnies africanas e suas

    populaes de primatas indisciplinados. Cada um de seus insultos era pontuado pelos silvosdo outro, que parecia ter uma flauta na garganta. E dizer que era com guerreiros desse nvelque Roma fazia seu imprio no Mediterrneo!

    Atravessaram a cidade dirigindo-se para o oeste, deixando os bairros pobres e entrandonos ricos. Embora obrigado a manter os olhos baixos, Flon observou que os passantespareciam mais incomodados com os soldados do que com ele. As relaes com o ocupantepareciam bastante tensas.

    Finalmente chegaram diante de uma magnfica residncia em estilo helnico: muros altostalhados em belas pedras, um jardim com tanques floridos, um vasto ptio rodeado porcolunas e, em todas as partes, fontes que cantavam. Uma escrava, bastante jovem e bela, os fezesperar um pouco num vestbulo de cores vivas. Os legionrios aproveitaram para tirar seuscapacetes e enxugar o suor. Pareciam ambos de pssimo humor. O menor, de traos vagamenteasiticos, at parou de silvar. Quando Ezequias surgiu, mal o cumprimentaram.

    Estamos aqui por ordem do tribuno Julius, comeou o mais alto. Este homem foidescoberto quando estvamos a ponto de capturar um rebelde no estbulo de Aceldama. Eleafirma ter vindo do Egito e ser esperado em sua casa. Confirma sua histria?

    Ezequias era um velho elegante, de barba e cabelos bem cuidados, vestido com uma tnicaleve e delicadamente bordada. Seu olhar amvel ia dos soldados ao pobre Flon, semesconder sua surpresa.

    Eu esperava um visitante de Alexandria, de fato, o irmo de um dos benfeitores doTemplo.

    de mim que se trata, venervel Ezequias, ousou Flon, adiantando-se. Lamento meapresentar assim. Uma inacreditvel srie de circunstncias...

    Basta! intimou o legionrio. No estou aqui para escutar mais uma vez suas explicaes.A nica coisa que importa saber se Ezequias se responsabiliza por voc. E se oencontraremos em sua casa caso precisemos interrog-lo.

  • Tm minha palavra, respondeu Ezequias aps uma leve hesitao.Sua palavra devia ser o bastante, pois os dois soldados deram meia-volta imediatamente.

    O mais baixo at soltou um trilo alegre. Decerto a satisfao do dever cumprido...Assim que os legionrios partiram, Ezequias deu livre curso a sua estupefao: Meu rapaz, meu rapaz! Em que estado... Como possvel?Flon mergulhou as mos numa bacia cheia dgua e lavou o rosto. Ento fez o relato de

    sua aventura, sem explicitar, no entanto, a que ponto ajudara o rebelde. Afinal, no sabia quaiseram as opinies de seu anfitrio.

    inacreditvel, no estamos mais seguros em lugar nenhum! exclamou Ezequias quandoFlon terminou. Mas voc deve estar esgotado e vejo que tambm perdeu sua bagagem.Falaremos de seu irmo e desses acontecimentos mais tarde. Primeiro, Nertari o conduzir aseu quarto e sala de banhos.

    Nem terminara sua frase e a jovem escrava j surgia no vestbulo, precedendo um enormehomem todo vermelho, prestes a sufocar.

    Mestre! H um enviado do Sindrio que insistiu em...O gordo afastou a jovem e correu rebolando em direo a Ezequias. Meu amigo, meu amigo! Tem que vir imediatamente! monstruoso!Foi ento que percebeu Flon e ficou sem saber se devia prosseguir ou se calar. Esse jovem um dos nossos, tranquilizou-o Ezequias. Continue, Simeo, est me

    deixando preocupado. Jeft! Jeft foi assassinado esta noite! Jeft? Esta noite? Que o cu... Sim, que o cu nos proteja! Um crime horrvel! Descobriram-no agora h pouco em sua

    casa, banhado em seu prprio sangue. No o tinham aconselhado a deixar aquele bairro dosperfumistas? o pior de todos!

    Jeft... Assassinado...Ezequias pareceu vacilar e Simeo o segurou pelo brao. Infelizmente verdade! Como se j no tivssemos problemas suficientes! Mas temos

    que nos apressar: o Sindrio deve chegar l antes dos romanos. claro. O tempo de me preparar e...Flon se interps: Se permitir, Ezequias, gostaria de acompanh-los. O rebelde que me atacou esta manh...

    Os legionrios disseram t-lo surpreendido no bairro dos perfumistas. Talvez haja umarelao. Como sou o nico a t-lo visto de perto...

    Um rebelde o atacou? Aqui em Jerusalm? Definitivamente, em que sculo...Ezequias interrompeu Simeo: Deixemos esse assunto para depois, por favor.Ento, aps um momento de reflexo: J que o destino quis que estivesse envolvido nesse assunto, meu jovem, no me oporei a

    ele. Nertari lhe emprestar uma tnica de meu filho para que possa se trocar. Agora, temos quenos apressar, ou o tribuno Julius chegar antes de ns.

  • A casa de Jeft era de aparncia modesta, apenas um pouco maior e mais alta que as deseus vizinhos do bairro dos perfumistas. Durante o trajeto, Flon no conseguiu ficar sabendode muita coisa, a no ser que Jeft era um homem influente que dirigia uma espcie de partidoreligioso. Os dois membros do Sindrio andavam lado a lado, exprimindo-se em voz baixa,temendo que a notcia se espalhasse. Suas caras estavam, no entanto, suficientemente sriaspara que se pudesse perceber o quanto estavam preocupados.

    Um grande nbio de pele negra abriu a porta e os conduziu ao primeiro andar, onde ficavao quarto do morto. Seus olhos vermelhos revelavam sua mgoa.

    Foi voc que o descobriu, Mandu? Sim, mestre Ezequias. Ou melhor...Ele falava aramaico com o sotaque pronunciado dos povos do alto Nilo: Esta manh, mestre Jeft no se levantou como de costume. Bati na porta, ele no

    respondeu. Pensei: talvez esteja se sentindo mal. Sua chave estava virada na fechadura, entoempurrei com o ombro at que cedesse. E a...

    Ele desviou o olhar e os deixou entrar. O quarto media dez passos por cinco e pareciaestranhamente nu comparado aos ricos mosaicos do corredor: uma esteira de cnhamoenrolada no canto direito, uma mesinha de madeira com uma jarra e dois potes de pedra, umasimples abertura guisa de janela. A pele de cabra no cho estava manchada de um vermelhoprofundo. Um homem seminu estava estendido no meio de seu sangue. Devia ter a idade deEzequias, cerca de sessenta anos, mas sem sua imponncia. Era magro, tinha o rosto cavado,uma barba irregular e poucos cabelos. Seus olhos ainda abertos lanavam para o tetoestranhos reflexos de um intenso azul. Parecia at acordado, mas seu peito estava todomanchado de sangue seco. No entanto, a coisa mais inslita era outra: sua boca estava fechadapor um cadaro de couro que atravessava os dois lbios, formando uma fivela artisticamenteatada. Jeft esboava assim uma expresso de nojo que a dobra inabitual dos cantos da bocatornava francamente hedionda. Parecia um demnio da Babilnia dirigindo a seu redorsombrias recriminaes. Simeo no pde suportar mais e saiu precipitadamente para oterrao em busca de ar fresco.

    Tem certeza de que no mexeu em nada, Mandu? Em nada, garanto. Quando vi o pobre senhor Jeft, fui correndo avisar a ama. Ela

    ordenou que deixasse tudo como estava e fosse direto para o Sindrio. Foi l que falei commestre Simeo.

    E os romanos? Logo viro. Estavam esperando o retorno da patrulha ou algo assim. Bem, vejamos se at l...Ezequias inspecionou o quarto sem se aproximar do corpo. Para um bom judeu seria

    tornar-se impuro chegar perto de um cadver, impureza multiplicada pelo carter brbarodaquele crime. J Flon se considerava em situao diferente. Depois de sua luta com orebelde, de ter rolado no sangue, nos excrementos e na lama, teria que se purificar de qualquerforma. Se examinasse agora o morto, no mudaria muito as coisas...

    Sem se preocupar com Ezequias, que fez um gesto para ret-lo, atravessou o quarto e sedebruou sobre Jeft.

  • Com toda evidncia, constatou aps um momento, laceraram seu peito com uma lminaafiada. Os cortes so profundos, o que explica a abundncia de sangue. Formam tambm...sim, uma espcie de alinhamento ou de desenho paralelo, ligeiramente de vis da direita paraa esquerda. D para contar... dez. Dez cortes, sendo dois nitidamente mais curtos. Um poucocomo os arranhes de um animal. Como se... Como se uma fera tivesse se lanado sobre elecom todas as suas garras. No entanto...

    Virou-se para Ezequias que o fixava intensamente. No entanto, no foram esses cortes que causaram a morte. H marcas bem visveis no

    pescoo. Vermelhides e inchaos. Jeft deve ter sido primeiro estrangulado e depois feridocom a lmina. Eis porque, suponho, ningum o ouviu gritar.

    Certamente voc tem o dom de observar e deduzir! Mas se nosso infeliz amigo j estavamorto, por que se encarniar sobre ele dessa maneira? E por que esse cadaro ridculo emvolta da boca?

    No sei. Talvez... Acha que posso desat-lo antes da chegada dos romanos? No! replicou o velho. Meus poderes policiais no chegam a tanto e todos os

    assassinatos so da alada da autoridade imperial. Ora, o tribuno Julius bastante cioso desuas prerrogativas. Alm disso, no esquea que hoje iremos ao Templo. A poucos dias daPscoa, tocar assim esse pobre Jeft no seria conveniente.

    Desculpe, pensei que queria obter o mximo de informaes... De fato, importante que o Sindrio tenha uma viso clara dos acontecimentos, caso

    queiram nos esconder alguma coisa. Por outro lado, se Julius tiver a sensao de que estamosroubando sua investigao, a mesmo que nos afastar. O que seria pior. Sejamos portantodiplomatas, acima de tudo.

    Flon levantou-se contrariado. Provavelmente tem razo. Entretanto, estou curioso para saber o que os romanos diro

    desse enigma. Se o quarto estava fechado por dentro, como o assassino pde penetrar nele? Ecomo pde sair? Essa janela na parede demasiado estreita para...

    Estavam batendo na aldraba no andar de baixo. Mandu se precipitou. Deve ser Julius em pessoa, sussurrou Ezequias preocupado. Ele no confia a ningum

    esse tipo de caso... Ento melhor que no me veja aqui. Ele j suspeita que eu tenha ajudado o rebelde, se

    me vir com o cadver... Tem razo. H uma sala de recepo no trreo. Espere-me l embaixo, depois irei

    busc-lo.Flon correu para a escada e pulou o ltimo degrau no exato momento em que Mandu abria

    a porta para os romanos. Viu os capacetes brilharem na luz e saltou para a primeira porta queencontrou. Estava fechada.

    aqui a casa de Jeft? perguntou com seu timbre grave o tribuno militar Julius. Sim, senhor, gaguejou Mandu.Flon se jogou no recncavo da escada. Havia outra porta sua direita. Cuidadosamente,

    tirou o ferrolho e penetrou no que devia ser uma sala mergulhada na escurido. No chegou afechar completamente a porta, mantendo o ouvido colado abertura.

  • Voc o escravo de Jeft, isso? continuava Julius em tom de interrogatrio. E, peloque me disseram, a ltima pessoa a t-lo visto vivo. Leve-me at ele e trate de no mentir.No seria o primeiro escravo a matar seu amo.

    Passos pesados soaram sobre os degraus: Julius estava acompanhado de ao menos trslegionrios. Chegando ao andar de cima, Ezequias e Simeo deviam t-lo saudado, pois otribuno ironizou:

    Ora, ora! O Sindrio mais gil em encontrar seus mortos do que seus inimigos! O caso importante, retorquiu Ezequias. Sabe quem era Jeft e as consequncias que sua

    morte pode ter para ns. Sei disso, Ezequias, claro que sei. Mas vocs tinham mais sangue frio antigamente.

    Alis, h outro assunto sobre o qual gostaria de lhe falar. Um egpcio que detivemos agora hpouco. Pelo que ele disse...

    Afastaram-se no corredor em meio aos estalidos das lanas e seu dilogo se tornouinaudvel. Flon quis sair de seu esconderijo para ouvir melhor, mas foi ento que percebeuum movimento atrs de si. Algum o observava pelas costas. Deu meia-volta, pronto para sedefender:

    Quem est a?Na penumbra, distinguiu uma forma vaga sobre um dos bancos. O que no lhe falta atrevimento, respondeu uma voz marcada pela mgoa. No tem

    nenhum respeito? Entra aqui como um ladro e ainda vem me pedir satisfaes!Uma mulher... Flon percebeu a extenso de seu engano. A viva de Jeft, decerto. Ele

    realmente no tinha nenhuma desculpa. Lamento muito minha imperdovel atitude, senhora, a escurido me enganou. O que... o

    que quer que possa pensar nesse dia de luto e recolhimento, sou seu humilde servidor.Colocou um joelho no cho e recitou baixinho algumas palavras. Amm... concluiu ela quando ele terminou.Flon se levantou. Ela estava apoiada numa espcie de travesseiro e envolta num vu que

    cobria seus cabelos. Ele mal distinguia seus traos, mas sentia com fora a violncia contidaem sua voz:

    Quem quer que seja, no uma simples prece que o salvar. Quero saber primeiro quemo autorizou a entrar aqui. E bom que seja convincente, seno avisarei aqueles que oprocuram.

    Eu... me chamo Flon, senhora, e acabo de chegar de Alexandria. Acompanhei Ezequiasat sua casa e...

    Ela o interrompeu: Ezequias, hein? E quais so suas relaes com ele? Conheo-o h apenas algumas horas: ele que est me hospedando em Jerusalm. Estive

    envolvido esta manh num incidente que talvez tenha a ver com o assassinato e... Que tipo de incidente? Um rebelde que os romanos perseguiram neste bairro. Imaginei que pudesse haver

    alguma ligao. Um rebelde, em nosso bairro, ora...

  • Fui o nico a v-lo e foi por esta razo que Ezequias me autorizou a acompanh-lo. Como ele era? O rebelde? Um homem jovem, barba e cabelo quase ruivos, nariz muito fino. Isso no me diz nada. Ao menos no o vi pelas redondezas. Mas e voc, qual seu

    interesse em tudo isso? Meu interesse? Nenhum. Vim para Jerusalm em nome de meu irmo que enviou dinheiro

    para a decorao do Templo. S isso.Se Flon esperava amansar sua interlocutora com aquilo, estava muito enganado: pelo

    contrrio, sentiu-a tornar-se ainda mais rspida. Ento voc est com os do Templo, como Ezequias? Os do Templo? Os sacerdotes, os levitas2, todos esses capachos dos romanos? Puxa, no sei bem o que est querendo dizer. Mas, se me escondi quando o tribuno Julius

    chegou, foi porque desejava evit-lo. Tivemos uma altercao a respeito do rebelde.Houve um longo silncio, durante o qual Flon no ousou se mexer, por medo de que a

    viva comeasse a gritar. Ela parecia perdida em seus pensamentos. Alexandria, murmurou... Afinal, por que no?Ento, mais alto: Bom, acho que no tenho escolha, terei que confiar em voc. Puxe a cortina, preciso v-

    lo.Sem entender muito bem, Flon arredou os vegetais tranados que obstruam as janelas. O

    sol invadiu a pea, refletindo-se no mosaico branco e vermelho do cho, iluminando um a umos bas de madeira clara, a pequena mesa oval com seus vasos de alabastro, o tapete felpudoestendido na parede do fundo. Deitada sobre um dos dois bancos, a mulher de Jeft o encaravacomo se quisesse ver seu interior. Era incrivelmente bela e muito mais jovem do que eleimaginara. Seus olhos repuxados eram de um negro muito puro, seus lbios carnudos pareciamdesenhados com tinta violeta e sua pele bronzeada resplandecia sob a brancura do vu.Seguindo a tradio, ela rasgara sua roupa direita do corao em sinal de aflio. O rasgodeixava entrever a sombra de sua pele e o jovem teve um arrepio. Obrigou-se a olh-la defrente.

    Preciso de sua ajuda, declarou ela finalmente. Esse crime... no um crime como osoutros. Tenho certeza. E no apenas por se tratar de meu pai.

    Flon no escondeu sua surpresa: De seu pai? Sim, de meu pai.Ela esboou um plido sorriso: Percebi seu engano agora h pouco. Isso no tem a

    menor importncia. Meu nome Betsabel, sou a filha de Jeft. Minha me morreu h muitotempo e ns vivamos aqui sozinhos com Mandu. Para voltar a esse horrvel acontecimento...No vimos nem escutamos nada. O assassino entrou e depois saiu como por magia. Nenhumrastro. Apenas esse crime abominvel. Meu pobre pai, to bom...

    Enxugou uma lgrima e retomou em tom inflamado: Quero ving-lo, entende? Custe o que custar. Leve o tempo que levar, sejam quais forem

  • os obstculos, encontrarei o homem que fez isso. E ele pagar com sua vida, juro! Os romanos e o Sindrio esto aqui, tentou apazigu-la Flon. Faro todo o possvel para

    pegar o culpado e castig-lo. No acredite nisso. Cada um persegue seus prprios desgnios e suas manobras no tm

    nada a ver com a verdade. Quando compreenderem o que realmente aconteceu, ser tardedemais. Ah! Se eu no fosse mulher... E se no fossem estas malditas pernas!

    Ela bateu nas coxas, deixando Flon desamparado.Naquele instante, a silhueta de Ezequias apareceu na porta. preciso partir, rpido! Os romanos vo revistar a casa. Simeo est atrasando-os, mas

    temos muito pouco tempo!

    2 Sacerdotes de categoria inferior, encarregados das tarefas subalternas no Templo.

  • 3Depois de se lavar cuidadosamente na primeira piscina, Flon desceu os degraus quelevavam ao banho ritual. O tanque, de forma retangular, fora talhado sob uma abbada depedra e era alimentado com gua da fonte atravs de um custoso sistema de canalizao. Erade fato o privilgio dos ricos ter seu prprio miqveh: a maioria dos habitantes de Jerusalmtinha que se contentar com os banhos pblicos perto do Templo. O jovem pronunciou algumaspalavras de beno, avanou para o meio do miqveh e imergiu trs vezes no frescor da guaclara. Imediatamente, experimentou uma sensao de plenitude. Depois das perturbaes damanh, tinha a impresso de reencontrar aquilo que era no mais profundo de si mesmo, a partefeliz e confiante de sua alma, purificada do impuro e a nica digna de comparecer ao olhar doTodo-Poderoso. Enquanto se secava e vestia a tnica que Nertari preparara para ele, sentiu-seat invadido pela euforia. Dali a pouco finalmente veria o Templo!

    Assim que terminou de se vestir, atravessou o jardim em busca de Ezequias. Este oesperava sombra de amendoeiras cujas flores brancas e rosa comeavam a desabrochar. Amesa fora posta romana e Flon sentou num dos bancos diante de uma profuso de iguariasfrias: perdiz ao endro fatiada em sua prpria geleia, peixes brancos numa crosta de sal,diversas saladas de gro de bico e de lentilha enfeitadas com passas e figos, temperos de purde alho ou de pepino e biscoitos de centeio com mel. Ezequias mergulhou seus dedos numalarga jarra, derramou gua sobre sua mo direita e depois sobre a esquerda, recitou a meia-voz o Bendito sejas, Eterno, que fazes nascer o po da terra. Pegou a seguir uma nfora debronze de asa elegantemente trabalhada e serviu dois copos cheios de um vinho bord,convidando seu hspede a beber.

    Beba, beba, deve estar com sede! Simeo acaba de me deixar: os romanos noprogrediram nem uma polegada. Revistaram a casa, inspecionaram cada pea, exploraram ojardim. Nenhum vestgio do assassino. Impossvel saber como entrou e como saiu.

    Eles examinaram o cadver? Ainda no. Um mdico da fortaleza Antnia dever se encarregar disso esta tarde. Se

    entendi bem, o tribuno Julius no queria fazer isso ele prprio. Felizmente, autorizou um dosnossos a permanecer no local. Ao menos assim sabemos que o corpo no ser profanado. Oque quer que acontea, disse a Simeo que estaramos no Templo. Ele nos avisar se houveralguma novidade.

    Acha que o tribuno Julius ser capaz de esclarecer esse crime? Se aprouver aos cus! um homem inteligente, sabe adivinhar aquilo que escondem

    dele. Embora seu desprezo o cegue s vezes. Alm disso, estamos na Judeia, sua tarefa no fcil.

    Refere-se aos rebeldes?

  • Os rebeldes? Ah!Ezequias pegou o pedao mais carnudo da perdiz e o cobriu generosamente de pur de

    alho. No so apenas os rebeldes... Ou melhor, logo no haver seno rebeldes. Faz trs

    meses que os romanos esto em Jerusalm e a regio inteira est beira da revolta. No entanto, h mais de meio sculo a Palestina est conquistada. Oficialmente sim. Mas por todos esses anos, conservamos nossos costumes e mesmo um

    pouco de nossos reis. Herodes3 talvez devesse seu trono ao imperador e, sem dvida, era umtirano, mas ao menos era meio judeu. Alis, no foi ele que resolveu reconstruir o Templo? E,em certo sentido, o mesmo se deu com seu filho, Arquelau4.

    No entanto... Foi o Sindrio que obteve a destituio de Arquelau, no foi? E portantograas ao Sindrio que os prprios romanos administram a provncia, no ?

    Ezequias esvaziou sua taa antes de responder: O que diz no falso. Sabe, fiz parte da embaixada que foi a Roma um ano atrs. Para

    encontrar Augusto5 e lhe expor nossas queixas. Arquelau era mau e ganancioso, os romanossabiam disso. Ns que fomos ingnuos. Pensvamos que Augusto teria sabedoria suficientepara designar um soberano que fosse mais de nosso agrado. Na verdade, o que fizemos foi lhefornecer o pretexto de que precisava. Deps Arquelau, mas colocou suas legies em seu lugar.

    Ficaram ressentidos com vocs aqui? Pois ento! Na prpria embaixada estvamos bastante divididos. Alguns...Hesitou. Alguns perceberam que o remdio seria pior do que a doena. Na noite da primeira

    conversa com Augusto, alguns quiseram at partir. Eu e alguns outros desejvamos continuar enegociar tudo o que fosse possvel. O nmero de soldados na Cidade Santa, por exemplo.Penso estar com a verdade se lhe disser que foi graas a ns que a maior parte das tropasencontra-se hoje em Cesareia e no em Jerusalm. Dir que uma vitria bem modesta, mascontinuo achando que Augusto j tomara sua deciso antes de nossa chegada. A presenaromana era inelutvel.

    Flon teve ento uma intuio: Ser que... por acaso Jeft fazia parte dessa embaixada?Ezequias soltou o bocado que se preparava para pr na boca. Sim... ele fazia parte. E era um daqueles que queriam romper com o imperador? O mais convicto deles, certamente. Se tivesse conhecido Jeft... Ah! Talvez seja melhor

    retomarmos as coisas desde o princpio.Enxugou a faca e se endireitou no banco, como se fosse iniciar um longo discurso. Veja bem, Jeft era algum importante em nossa comunidade. No que fosse

    particularmente rico ou ativo no Sindrio. No, era mais do que isso. Era um dos chefes dopartido fariseu. Decerto ouviu falar dos fariseus?

    De reputao, sim. Mas ignoro o essencial. Ento tratarei de ser simples. H mais de um sculo, dois partidos importantes disputam

    o poder em Jerusalm, os saduceus e os fariseus. Os saduceus so de certa forma os

  • partidrios do Templo: os sacerdotes, os levitas, as famlias ricas que ocupam posiesinfluentes aqui. Sempre se preocuparam com a ordem, o que os levou a apoiar aqueles que nosdominam hoje. Enquanto os romanos no entravarem o bom funcionamento do Templo, adinmica dos sacrifcios ou a coleta dos dzimos, podero contar com o apoio dos saduceus.

    Situao frequente nas provncias do imprio. Sem dvida. Mas, no nosso caso, somam-se a isso rivalidades religiosas. Em oposio

    aos saduceus, que velam ciosamente pela autoridade do Templo, os fariseus afirmam que oculto deve ser aberto a todos. Que cada um pode se aproximar da pureza dos sacerdotes,desde que siga letra as regras da Tor. E que, se o Templo o corao sagrado de nossadevoo, nem por isso deve ser seu local exclusivo... Semelhantes afirmaes irritaram ospoderosos, mas angariaram a simpatia do povo mido que escuta e respeita os fariseus. Semfalar que estes organizam escolas onde, alm do ensinamento das Escrituras, oferecem milconselhos para a vida prtica. Sua influncia se tornou to grande que os saduceus foramobrigados a lhes conceder espao no Sindrio e nas embaixadas. A contragosto, como podeimaginar...

    E esses fariseus se opem ocupao romana? No abertamente. Mas para eles evidente que pagos armados na Cidade Santa

    constituem um odioso sacrilgio. J era esta a opinio de Jeft quando estvamos em Roma:mais valia um mau soberano judeu do que um imperador mpio e blasfemo. De certa maneira,os acontecimentos lhe deram razo.

    Pode-se imaginar que esse crime tem a ver com todas essas querelas?Ezequias baixou os olhos e seu tom se tornou menos seguro: Espero que no. Um assassinato to cruel no pode ser... s pode ser obra de um

    demente. Mas o que devemos temer acima de tudo que o povo se inflame. De todos os sbiosfariseus, Jeft era um dos mais amados. Ora, a quem o rumor vai atribuir esse assassinato. Aosromanos? Aos saduceus? Em ambos os casos h risco de derramamento de sangue.

    O que significa, por ricochete, que a morte de Jeft tambm serve aos rebeldes. Sedesejam o levante de Jerusalm, esse assassinato pode ajud-los.

    outra hiptese, admitiu ele visivelmente incomodado. Mas os rebeldes olham maislonge do que Jerusalm. A Judeia, a Samaria, a Galileia, a Decpolis... toda Palestina quequerem arrastar para a guerra. E, desse ponto de vista, os romanos os ajudaram bastante:decretaram um censo dos judeus nas prximas semanas. Ora, quem diz censo diz novosimpostos... O imperador conta seus sditos antes de faz-los pagar. algo que realmenteesquenta os nimos.

    Ento uma insurreio lhe parece possvel? Infelizmente! H semanas me esforo por convencer o Sindrio de que precisamos nos

    unir e mostrar ao povo que trabalhamos para ele. Que uma revolta em face de um inimigo topoderoso s faria causar uma represso ainda mais terrvel. E que Jerusalm poderia vir aperder tudo.

    Serviu-se outra taa. Suas mos tremiam. Ningum quis me escutar, evidentemente. A ocupao elevou as barreiras e aprofundou

    os fossos. Saduceus, fariseus, buscam acima de tudo se opor uns aos outros. Mas ainda resta

  • uma esperana. Amanh irei para Cesareia perorar uma ltima vez diante do procurador6. Seele aceitar adiar o censo, talvez possamos evitar o pior. Caso contrrio...

    Houve um longo silncio que Flon aproveitou para voltar a seu prato. Misturou a carnetenra do pssaro com os sabores sutis da lentilha e do figo e regou tudo com o vinho frutadodas colinas de Hebron. O ar estava quente, o cu luminoso, uma leve brisa agitava a folhagem.No fosse a expresso desconcertada do velho, aquilo pareceria um desses momentos simplese perfeitos que alegram o corao dos homens. Mas, para alm do horizonte, a tempestade seanunciava.

    Perdoe-me, caro Ezequias. Posso lhe perguntar... O senhor conhecia bem Jeft? Digo,afora suas divergncias?

    A pergunta tirou o interlocutor de suas meditaes: Jeft? Oh! sim. ramos amigos quando jovens. Costumvamos ir juntos sinagoga.

    Infelizmente, ele mudou aps a morte de sua mulher. O que devia ter nos aproximado eu jera vivo nos afastou, sem que eu possa explicar por qu. Ele se tornou mais frio, maisdistante. Mais exigente tambm, no que concerne obedincia e f. Juntou-se aos fariseus eadotou suas prticas. At se tornar um de seus membros mais eminentes e levantar a espadacontra aqueles do Templo. Mas tambm sabia falar aos humildes e lhes consagrava uma boaparte de seu tempo. Destacava-se, entre outras coisas, na interpretao das Escrituras, tendo aarte de torn-las acessveis aos ignorantes. Sua morte causar uma verdadeira mgoa no povo.

    E... sua filha? Betsabel? No sei muito bem o que pensar sobre ela. O infortnio a atingiu, isso

    incontestvel. Apesar disso, sempre senti nela uma espcie de desconfiana. Acho que nogosta muito de mim.

    O infortnio? Que tipo de infortnio?Flon pronunciou essas palavras com o maior desinteresse possvel. A resposta, no

    entanto, o interessava mais do que devia. Houve primeiro aquele acidente que a privou de suas pernas. Depois, a morte de sua

    me quando ainda era menina. Tudo isso deve ter infludo sobre seu carter. Ela no pode mais caminhar, isso? Algum tem de carreg-la em todos seus deslocamentos. Mandu, em geral. De minha

    parte, confesso que evito ficar em sua presena. Todos esses dramas, todas essas lgrimas... Eagora a morte de seu pai. Quem sabe? No se pode excluir a hiptese de que ela atraia a msorte.

    Quebrou um pedacinho de biscoito de mel e se levantou bruscamente. Vamos, a tarde avana! Temos que chegar ao Templo antes da hora dos sacrifcios. Gad,

    o sumo sacerdote, est impaciente para v-lo!

    3 Herodes, o Grande, rei da Judeia de 37 a.C a 4 a.C.

    4 Filho mais velho de Herodes, o Grande, governa a Judeia de 4 a.C. a 6 d.C.

    5 Imperador romano de 27 a.C. a 14 d.C.

    6 Representante do imperador romano nas provncias conquistadas.

  • 4Jerusalm, Jerusalm inteira era um milagre!Quanto mais a descobria, mais Flon se dava conta daquilo que a cidade do Altssimo

    tinha de nico. Longe do mar e dos cursos de gua, perdida no meio de terras desoladas,montada em morros de difcil acesso, fora das rotas comerciais, Jerusalm nunca deveria tersurgido. E, no entanto, que fora, que vida! Milhares e milhares de peregrinos andavam porali, de cabelos soltos ou presos em tranas, de grandes barbas ou de queixo imberbe, braosnus ou cobertos de braceletes, peles leitosas ou tezes escuras, bocas que misturavam oaramaico e o hebreu, o latim e o grego, os dialetos de Idumeia ou de Samaria: os judeus domundo inteiro afluam para a Pscoa!

    Para tomar o caminho do Templo, Ezequias contornou o palcio de Herodes, residnciafastuosa e fortificada onde o procurador de Roma morava quando estava na cidade. Herodesera um tirano sanguinrio que mandara assassinar metade de seus familiares e queimar vivosseus oponentes, mas o esplendor de seus jardins e a beleza dos ptios de mrmorecontinuavam a atrair muitos curiosos. A seguir, os dois homens transpuseram a porta quelevava aos bairros comerciais do Tiropeon. Fora l que Ezequias construra sua fortuna. Seuav era um rico campons de Gamala, no norte da regio, e seu pai foi quem teve a ideia de seinstalar em Jerusalm para vender o trigo da famlia. Ezequias o sucedeu, estendendo seucomrcio a diversos outros produtos: prpura do Tiro, vidros de Sido, vinhos de Ascalo ede Lida, papiros e blsamo de Jeric, peixes secos de Genesar, bois gordos da Pereia...Hoje, possua grandes depsitos atrs do mercado e evocava com orgulho as enormes jarrasde leo marcadas com seu selo que seriam entregues no Templo. Falou tambm de seu ltimoempreendimento, uma padaria edificada perto da porta das guas, capaz de fornecer a cadadia pes redondos ou tranados para mais de mil pessoas. Quando Flon perguntou se seu filhomanifestava o mesmo tino comercial, a expresso de alegria do velho se desfez: seu filho noquisera permanecer em Jerusalm e resolvera voltar para o norte, para a terra de seusantepassados. Flon julgou o assunto delicado e preferiu no insistir.

    Atravessaram assim o mercado, sombra dos vastos prticos que protegiam os transeuntese as mercadorias do sol. A manh era consagrada aos produtos alimentcios e, depois dapassagem dos varredores a cidade do Eterno tinha que se distinguir por sua impecvellimpeza , instalavam-se, tarde, os mais diversos artesos: oleiros, ceramistas, vendedoresde ferramentas e talheres, teceles, peleteiros, fabricantes de unguentos e herboristas, mais detrinta estandes entre os quais se apertava uma multido barulhenta. De repente, no extremo dapraa, um homem de idade incerta subiu sobre a borda de uma fonte para arengar os passantes:

    Ele vir, meus amigos, crede, Ele vir! No percais a esperana, elevai vossas preces!Ele surgir em breve do Oeste e o mar dos descrentes se abrir diante Dele! Brandir o gldio

  • de fogo e Jerusalm ser libertada! Sim, libertada! Pscoa, meus amigos, a Pscoa doSalvador!

    No pde dizer mais nada, pois os seis legionrios que vigiavam discretamente o local seprecipitaram sobre ele. Fizeram-no descer sem grande violncia intil provocar revolta eo conduziram para longe enquanto ele continuava a gritar:

    A Pscoa do Salvador, meus amigos, a Pscoa do Salvador!A maior parte dos fregueses no acompanhou a cena e apenas alguns protestaram. Flon

    virou-se para Ezequias: Quem era? Oh! Um desses iluminados que ficam anunciando por a a vinda do Messias. So cada

    vez mais numerosos desde a chegada dos romanos. O povo os escuta? Aqui, no mercado, no tm nenhuma chance, o lugar vigiado demais. Mas quando nos

    afastamos do centro, encontramo-los frequentemente nas esquinas das ruazinhas, pregandodiante de pequenos grupos de exaltados. Muitos querem crer que a ocupao romana altima prova infligida pelo Altssimo e que nossas dores so as dores do parto do Salvador. Odia do Juzo e da revanche!

    No partilha sua esperana? Acho que esto soprando perigosamente as brasas. E que talvez se tornem cmplices

    de um grande massacre. O Rei de todos os reis, bendito seja, no est nem a para essesagitadores vestidos de trapos.

    Desembocaram no viaduto que permitia passar sobre o vale do Tiropeon e Flon se detevebruscamente, tomado pela emoo. Diante dele erguia-se o Templo do Todo-Poderoso em suaincrvel majestade. Tinha cerca de quarenta cvados7 de altura e outros mil de comprimento.Um pedao da Jerusalm celeste cado na terra. Seus gigantescos blocos de pedra branca,ornados com lminas de ouro, brilhavam ao sol a ponto de obrigar o peregrino a desviar osolhos. Embaixo, dezenas, centenas de homens trabalhavam reforando as fundaes e asparedes. Diante de cada entrada, uma longa fila de fiis esperava, ao lado de animais trazidospor seus donos.

    Nunca vi nada igual, murmurou Flon. a casa do Eterno...Avanaram at a porta principal, que atravessava o muro oeste e dava para o ptio dos

    Gentios. Tratava-se de uma esplanada gigantesca, capaz de acolher vrias vezes a populaode Jerusalm. Sete ou oito mil pessoas circulavam ali em todas as direes, esperando ossacrifcios, enquanto os varredores lutavam contra a poeira que subia das obras. As nicascolunas terminadas eram aquelas do prtico Real que fechava o lado sul e mostrava naquelemomento uma intensa atividade. Flon foi ali pagar o imposto dos judeus um siclo de pratapara ele e seu irmo e ficou quase chocado com a confuso reinante:

    ... sempre assim? Hoje no nada, divertiu-se Ezequias. Vai ver s na Pscoa!De fato, o conjunto evocava mais os bazares da Prsia do que um estabelecimento

    religioso. Havia em primeiro lugar o cantinho do cmbio, onde se convertiam as moedas de

  • todo Imprio em dinheiro do Templo, o nico aceito nas oferendas a Iav. Como nenhumanorma precisa regulava essas trocas, frequentemente estouravam brigas entre cambistas eperegrinos. Seus gritos eram, no entanto, cobertos por balidos sonoros e mugidos inquietos:bem ao lado, um vasto espao acolhia os animais destinados aos sacrifcios. Bastava, aps terescolhido um bezerro, cabra, carneiro, rolinha ou pomba em sua gaiola de madeira ,negociar com os sacerdotes que dirigiam a venda e mandar conduzir o animal at o altar. Paraterminar, o prtico abrigava uma srie de lojinhas onde se podia comprar vinho, incenso, florde farinha para as oblaes, assim como todo tipo de badulaques: colarzinhos, tornozeleiras,caixinhas de temperos, tiaras e anis mais ou menos preciosos, objetos esculpidos em madeiraou marfim, etc. Essas lojas no eram pouco frequentadas, pois a Lei impunha ao fiel gastar emJerusalm um dcimo de seus bens. O que dava uma ideia das somas considerveis quecirculavam ali.

    Sabe a quem pertence a maior parte dessas lojas? sussurrou Ezequias no ouvido deFlon. A Gad, o sumo sacerdote, e a seus prximos. E exatamente esse o tipo de privilgioque os saduceus querem conservar. Venha, est na hora de irmos ao encontro dele, agora.

    Pegou o jovem pelo brao e o conduziu at o centro do trio, onde erguia-se, imponente, osanturio do verdadeiro Deus. Sua reconstruo, ordenada por Herodes, exigira o trabalho demil sacerdotes formados especialmente para isso nos ofcios da pedra. Elevava-se agoracomo um gigantesco cubo de mrmore e de ouro de mais de cem cvados de altura, cingidopor uma muralha fortificada que impedia seu acesso aos pagos. Flon gostaria de seguir opercurso dos simples fiis, cruzar a primeira balaustrada, atravessar o ptio das Mulheres,depois o dos Homens, aproximar-se gradativamente do lugar dos sacrifcios e da Presena,mas Ezequias decidiu outra coisa. Cortou por uma porta lateral da muralha e o conduziu aointerior de uma das seis torres que protegiam o edifcio. Ali, o comandante do Templo os fezesperar um pouco antes de introduzi-los numa pequena pea mobiliada com poltronas etapearias, que costumava servir para as reunies fechadas do Sindrio. No fundo da sala,iluminado por dois imensos candelabros, o sumo sacerdote imperava sobre uma poltrona debronze com franjas azuis. Era um homem na fora da idade, quarenta anos talvez, traos firmese autoritrios, barba fina, cabelos escondidos debaixo de uma grande touca. Vestia sobre atnica de linho o fode ornado com doze pedras preciosas que simbolizavam as doze tribos deIsrael.

    Ento este o nosso visitante do Egito... Avance um pouco para que eu o veja.Flon deu um passo adiante sob o olhar inquisidor do sumo sacerdote. uma honra para ns receber em Jerusalm o irmo de to generoso benfeitor.

    Contaram-me que ele est doente, verdade? Meu irmo contraiu uma febre maligna durante uma de suas viagens pelo Nilo. Para a coleta dos impostos, imagino? De fato. Ele encarregado de receber as taxas desde Alexandria at Elefantina. E

    quando a estao est mida nessas paragens... A gua sempre um dom do cu, mas nem sempre o homem sabe receb-lo. Sabemos um

    pouco sobre isso aqui, ns a quem a chuva fez cruelmente falta este ano. Eu o associarei anossas preces daqui a pouco. Ao menos j conseguiu ver as portas douradas?

  • No, ainda no. Viemos assim que possvel e... So esplndidas. Nossos ourives souberam lhes dar o brilho da luz divina. Tenho certeza

    de que seu irmo ficaria muito feliz com o resultado, talvez to feliz quanto ficamos com opresente dele. Para agradec-lo...

    Levantou e foi at uma mesinha onde havia um bauzinho prateado. Abriu-o e tirou dali umobjeto brilhante que estendeu a Flon:

    Aqui est uma rplica da chave da porta superior. Entregar para ele em sinal de nossagratido. Com o reconhecimento eterno do Templo.

    Flon devia se sentir imensamente honrado com tal presente, no entanto, alguma coisa nosolhos do sumo sacerdote o vexava. Apressou-se em guardar a chave na dobra interior de suatnica, onde se juntou sua bolsa e a um pouco de dinheiro.

    Afora isso, prosseguiu Gad, voltando a sua poltrona, gostaria tambm de alert-lo.Chegou aos meus ouvidos que voc teve algumas dificuldades esta manh com a autoridaderomana. A propsito de um rebelde... E que o viram saindo da casa de Jeft. Ficar chateadocom meu conselho? Aproveite esta semana de festa, encha seu corao de luz, volte sua almapara o Senhor. No este o melhor momento para faz-lo? Portanto, no entulhe seu espritocom essas questes de polcia. H certo descontentamento entre o povo, verdade. E ascondies em que Jeft morreu entristecem a todos. Mas o que voc diria se ns da Judeiafssemos perseguir os assassinos de Tebas ou de Alexandria? No concorda, Ezequias?

    Este assentiu, com uma expresso sombria, e Flon se perguntou se aquele discurso no sedirigia mais ao velho do que a ele prprio.

    Alis, temo que Ezequias tenha muito que fazer at a Pscoa para que possa se ocupardessas coisas. Vai para Cesareia amanh, isso?

    O interessado fez novamente que sim com a cabea. Eis uma misso importante. Espero que tenha xito, pois o censo no nos trar nada de

    bom... E lembre-se de transmitir as amizades do Templo ao procurador Coponius. Agora, seme perdoam, tenho que me preparar para os sacrifcios.

    Agitou ligeiramente o punho como sinal de que a conversa acabara. No momento em quese virava para ir embora, Flon pensou distinguir um movimento por trs das tapearias.

    Uma corrente de ar ou o roar de uma silhueta? Quis se aproximar para tirar aquilo alimpo, mas Ezequias o apressou a partir.

    Uma vez do lado de fora, e antes que pudessem trocar uma palavra, o comandante doTemplo se precipitou para eles:

    Estava espreita de sua sada: o tribuno Julius quer v-los na fortaleza Antnia. Agora? Agora, sim, vocs dois. a hora dos sacrifcios e queramos... As instrues so categricas: devo conduzi-los imediatamente.

    7 Um cvado equivale a cerca de 66 cm.

  • 5O tribuno militar Julius andava de um lado para o outro, passando diante da janela quedominava a esplanada do Templo. Da pea que lhe servia de quartel general, a vista eraimpagvel sobre o santurio e quase se podia, forando um pouco os olhos, distinguir os fiisque se amontoavam para as cerimnias. Flon estava se perguntando o que fazia ali, de p,enquanto Ezequias fora convidado a se sentar e um estranho personagem vestido de preto oobservava acintosamente do banco oposto.

    Flon, assim que se chama, no?O tom de Julius no pressagiava nada de bom. Flon de Alexandria... Flon do Egito! Espantoso! Diga-me, egpcio, sabe o que

    aconteceu aqui h dez anos?O legionrio apontava para o lugar da Presena e o jovem levantou os ombros em sinal de

    que ignorava. Houve uma grande revolta em Jerusalm. Sob no sei que rei de vocs. O que sei, em

    contrapartida, que os amotinados se refugiaram naquele trio e resistiram por vrios diasaos soldados que os sitiavam. Vrios dias! Graas espessura das muralhas e das torres queprotegem esse... esse... ah! No compreendo nem que chamem isso de templo. Uma casa vazia,na verdade, construda para um Deus sem rosto nem esttua. Um Deus que vocs afirmam estarem toda parte e em nenhuma mas cujo nome probem-se pronunciar! E, apesar disso, centenasde milhares de pessoas em breve estaro aqui para ador-lo! Confessem que no fcilcompreender vocs judeus...

    Ningum obriga os romanos a ocuparem...Julius explodiu: Eu sei! Sei o que pensa! Ningum obriga Roma a ser o maior imprio do mundo.

    Ningum obriga Roma a ocupar a Palestina! Vocs s sabem dizer isso, todos vocs! Sem verque, se no estivssemos aqui, continuariam guerreando entre si, com todos os seus reis, seuschefes de cls, seus partidos religiosos e no sei mais o qu... Sem ver que Roma lhes oferecea paz, o comrcio, a prosperidade. A ordem! Sim, a ordem!

    A ordem no a liberdade.Por um instante, Flon pensou que o tribuno ia estape-lo. Este conseguiu se controlar e

    retomou em tom mais calmo: No a liberdade de se revoltar, realmente, isso no. E, a esse propsito, no conte

    comigo para lhes entregar Jerusalm. Obtive o reforo de trs mil homens que estaro aqui emdois dias. Mesmo que tenha que derrubar as muralhas do santurio, manterei esta cidade.

    Olhou Flon bem nos olhos: Pode dizer isso a seus amigos.

  • Meus amigos? No banque o inocente. Esperava realmente me enganar com suas patranhas? Esse

    rebelde que o atacou por trs e sobre o qual nada sabe? No entanto, foi com seu cavalo queele fugiu. E, por um extraordinrio acaso, voc se encontra duas horas depois na casa daquelefariseu assassinado.

    Ezequias levantou-se de um salto: Sou o nico culpado disso, tribuno Julius. Nunca deveria ter levado este jovem comigo,

    reconheo. Mas a notcia desse crime me deixou aturdido e... No se canse toa, Ezequias. No acredito muito em coincidncias. Esse assassinato,

    em minha opinio, obra dos rebeldes, que pretendem utiliz-lo para sublevar o povo. Ora,eles precisam de apoio, e esse jovem veio bem a calhar.

    Apontou para Flon um indicador acusador: Alis, egpcio, no haveria em sua famlia um Davi ou um Jacob?Flon ficou sem saber o que responder: No entendo... Davi ou Jacob. Um pai, um tio, um primo? Fale! No... entre meus parentes prximos no. Perdoe-me ainda uma vez, interveio Ezequias. Esse interrogatrio... Tribuno, est se

    dirigindo ao filho de uma das melhores famlias de Alexandria e suas perguntas so nomnimo estranhas.

    Estranhas, sim, a palavra certa. Emilius, explique-lhes o que descobriu.O homenzinho de preto, calado at ento, deixou seu banco e tomou a palavra: Meu nome Emilius, sou o mdico desta guarnio. O tribuno militar me pediu para

    examinar esta tarde o cadver desse tal de Jeft. Para comear, devo esclarecer que j vimuitas guerras e combates sangrentos. Pensava conhecer tudo sobre a ferocidade dos homens esobre o prazer que alguns sentem em matar seus semelhantes. Entretanto, jamais me depareicom um caso como esse. Minha impresso... Minha impresso de que a vtima foiassassinada por outras razes que no sua simples morte. Quero dizer que no desejavamapenas que ela morresse, mas fazer de sua morte uma espcie... uma espcie de exemplo. Oumelhor, de advertncia. Que tipo de advertncia, para quem e por qu, eis o que ignoro.

    Fez uma curta pausa para enxugar suas tmporas, como se a lembrana do cadver ainda operturbasse.

    O criminoso primeiro o estrangulou, quebrando-lhe o pescoo de maneira que nopudesse gritar nem se debater. Isso no deve ter sido difcil, pois o homem era bastante fraco eidoso. A seguir... a seguir ele o matou uma segunda vez, por assim dizer, lacerando seu peitocom uma faca. Poderia se tratar de um ato de vingana, evidentemente, uma forma de dio oude loucura. Mas a maneira como o assassino executou seu gesto d a entender, ao contrrio,que ele estava em plena posse de suas faculdades. Vocs devem ter reparado no cadaro quecosturava os lbios de Jeft. Pois bem, quando o soltei para abrir sua boca, encontrei isto sobsua lngua...

    Tirou de seu bolso um minsculo estojo de couro da grossura de um mindinho, eapresentou-o a Ezequias.

  • um tefilin, comentou este. Os mais pios dentre ns costumam at-los ao braoesquerdo, o mais perto possvel do corao. Esses saquinhos contm, na maior parte dasvezes, versculos da Bblia. Do xodo ou do Deuteronmio, em geral. uma forma de levarconsigo a sabedoria do Altssimo, pois os livros dizem: Colocai estas minhas palavras novosso corao e na vossa alma, atai-as como um sinal em vossa mo Mas...

    Abriu delicadamente o estojo: Aparentemente, esse tefilin est vazio. Quando o soltei, havia dentro um pedao de pergaminho, enrolado vrias vezes em si

    mesmo e amarrado com um cabelo. Um cabelo... De fato, a tradio. E esse pergaminho, onde est agora?O tribuno Julius avanou agitando uma folha amarela, do tamanho da palma da mo e um

    tanto amassada: Est aqui. Tivemos dificuldade, Emilius e eu, em interpretar seus caracteres e

    solicitamos ajuda. para isso tambm que os chamamos aqui: o conjunto dessas palavras nofaz nenhum sentido para ns.

    Entregou a folha a Ezequias que, aps t-la percorrido rapidamente com os olhos, leu seucontedo em voz alta8:

    Mas, no dia do Nazireno,ltimo rebento de Davi vindo do pas do Egito,se o sangue de Jacob verter seu prprio sangue,se ele pecar de novo face a seu Deus,ento Eu farei o Belial subir dos abismose, com ele, a tropa de Assur no seio de Israel!Houve um momento de estupor. Flon aproveitou-o para decifrar o texto por sua vez: Est mesmo escrito em hebreu, confirmou, mas o desenho das letras bastante arcaico.

    Hebreu antigo, provavelmente, talvez mesmo de antes do Exlio9. Quer dizer que conhece a histria das lnguas, egpcio? Ao contrrio do que imagina, tribuno, estou longe de ser um soldado ou um guerreiro.

    aos estudos que consagro a melhor parte de meu tempo. Estudos, retorquiu o romano, aquele que escreveu essas linhas tambm deve t-los

    feito...Ezequias alisava nervosamente sua barba: Foi por causa desse pergaminho que nos interrogou agora h pouco sobre um Davi ou um

    Jacob, no mesmo? Certamente! A semelhana no salta aos olhos? Detenho esse rapaz hoje de manh,

    ocorre um assassinato, e eis que descobrimos na boca do morto uma mensagem obscura sobreum desconhecido vindo do Egito que derramaria o sangue de Jacob. mais do que o suficientepara...

    Est no caminho errado, Julius, garanto-lhe. Para mim, esse pergaminho s pode ser umaprofecia.

    Uma profecia?

  • Sim. Sobre a chegada do Messias.O tribuno deu uma grande gargalhada: O Messias! No vai dizer que acredita nessas balelas! Que como um desses imbecis

    que recolhemos nas ruas enquanto... O importante no aquilo em que acredito. E tampouco estou afirmando que esse texto

    seja autntico. Alis, salvo engano de minha parte, ele no foi tirado diretamente dos Livros.Interrogou Flon com o olhar. Essas frases no evocam nada de preciso para mim, admitiu o jovem. Nem nos escritos

    hebreus, nem na traduo grega que utilizam no Egito... Se so citaes, provavelmente noesto exatas.

    Nesse caso, por que falar de profecias? inquiriu Emilius. Por causa de todos esses termos, respondeu o velho. O dia do Nazireno, em primeiro

    lugar. Um nazireno algum importante entre ns, algum muito crente, que devota suaexistncia ao Todo-Poderoso. No um sacerdote, pois no serve no Templo, mas deve viverem meio aos homens numa piedade constante at o cumprimento de seus votos. Alguns veemprofetas nos nazirenos, outros acreditam que ser entre eles que, um dia, se erguer oSalvador. O dia do Nazireno significaria que esse momento se aproxima...

    Ao menos, os rebeldes tm todo interesse em fazer com que se acredite nisso... Tambm penso assim. Mas no s isso. H muito tempo, diz-se entre o povo que o

    Messias ser da linhagem de Davi, o maior rei que j tivemos. Essa ascendncia atribuda aoNazireno, ltimo rebento de Davi, corroboraria a ideia de que ele tenha sido escolhido peloSenhor...

    E quem esse Jacob? Esse Jacob, como diz, era o neto de Abrao. Foi dele que nasceram as doze tribos que

    formam hoje Israel. Assim, o sangue de Jacob designa, na verdade, o conjunto dos judeus.Trata-se portanto de um alerta a todos os judeus: se continuarem a viver no pecado, o Todo-Poderoso enviar o Belial para puni-los: ... se pecar de novo face a seu Deus, ento Eufarei o Belial subir dos abismos... O Belial, ou seja, o demnio. Esse tipo de advertncia muito comum nas profecias.

    Pela janela, Julius considerou por um momento o Templo, de onde subiam as primeirasfumaas dos sacrifcios. Parecia estar seguindo uma reflexo interior, e seu tom era distante:

    Aceitar a presena romana constitui um pecado aos olhos desse tipo de profecia?Ezequias no hesitou: Para um judeu, a presena de soldados estrangeiros em Jerusalm necessariamente uma

    mcula. De certa maneira, o texto chega a fazer aluso a isso: Assur era outrora a capital dosconquistadores assrios e a tropa de Assur representa os invasores. Invasoresfrequentemente associados ao demnio...

    Invasores assrios ou romanos, isso no faz muita diferena, suponho...Ento, como se a resposta pouco lhe importasse, concluiu ele prprio: Sim, acredito que ele seja bem capaz de inventar semelhante estratagema. Vamos, Julius! arrebatou-se Ezequias. No pensa seriamente que nosso jovem amigo,

    recm-chegado de Alexandria...

  • O tribuno militar se virou. No havia mais nele o menor vestgio de indeciso: No do egpcio que estou falando. Embora ainda no saiba at que ponto esteve

    envolvido nesse caso e o desaconselhe a se colocar de novo em meu caminho. No, era aochefe dos rebeldes que estava aludindo. Judas, o Galileu. Certamente j ouviram esse nome...

    H... h murmrios aqui e ali. ele que est federando os insurgentes. inteligente e astuto, e esse pergaminho pode

    muito bem ser uma manobra sua. Primeiro, assassina o fariseu para provocar a clera dopovo, a seguir, inflama-o com essa histria de profecia... Tudo isso conjugado festa daPscoa e multido dos peregrinos... Estou quase certo de que tentaro alguma coisa. Porestes dias. Mas saberei lhes dar as boas-vindas, podem acreditar.

    Isso no explica como ele pde ter entrado e sado da casa de Jeft, objetou Ezequias. Talvez Judas no o tenha matado com suas prprias mos. mesmo provvel que o

    culpado seja o rebelde que desentocamos no bairro dos perfumistas. Quanto maneira comoprocedeu...

    Coou a testa. Pode ter contado com um cmplice dentro da casa. O escravo, por exemplo. Mandu? Era apegado a seu amo como a seu prprio pai! No seja tolo, Ezequias! Um escravo sempre antes de tudo um escravo!Depois de vacilar por um instante, Flon arriscou: Se me permite, tribuno. No estou muito a par do que se passa aqui, mas... Parece-me

    que, se quisessem sublevar Jerusalm, teria sido mais simples escrever esse texto emaramaico. a lngua utilizada pelo povo, aquela que ele fala e l mais correntemente,inclusive aqui em Jerusalm. J o hebreu dos antigos conhecido apenas por um pequenonmero de escribas e letrados. Da mesma forma, essa aluso tropa de Assur... provvelque a maioria dos fiis no a compreenda. Acusar o atual... o atual ocupante teria sido mais...mais seguro e mais lgico.

    Julius o mediu com os olhos: exatamente o tipo de defesa que Judas, o Galileu, utilizaria. Sutil e hipcrita. Mas

    continue, egpcio, aonde quer chegar? Puxa, nem eu mesmo sei. Parece-me, no entanto, que o mesmo se aplica a esse pobre

    Jeft. No vejo em qu esses cortes e a maneira como mutilaram seu corpo poderiamfavorecer a causa dos rebeldes. Alm disso... e se o pergaminho no tivesse sido encontrado? um desvio bastante complexo para lev-lo ao conhecimento do povo!

    Nesse caso, por que essa morte e essa mensagem, pode me dizer? Por que essa dennciados invasores? Por que to perto da Pscoa e justamente no momento em que os rebeldespreparam suas armas? O que um deles estava fazendo justamente esta manh no bairro dosperfumistas? Voc dedica sua vida aos estudos, meu rapaz; eu sou responsvel pela ordemnesta cidade. Ora, tudo me faz pensar que alguns de seus amigos decidiram perturb-la.

    Quando finalmente puderam deixar a fortaleza Antnia, a hora dos sacrifcios j passara e

    o Templo se esvaziava de seus fiis. Ezequias props irem admirar as portas douradas, masFlon se sentia esgotado pela viagem e pelos tumultos do dia. Preferiu voltar para casa e

  • deitar um pouco, enquanto Ezequias terminava de preparar sua entrevista com o procurador deRoma.

    Em matria de descanso, o jovem dormiu seis horas seguidas.Ao despertar, a noite j cara e seu anfitrio permanecia incomunicvel. Saiu para o

    jardim e encontrou sob as amendoeiras com o que matar sua sede e saciar sua fome. O arestava morno, a claridade da lua fazia a sombra das rvores brincar na gua cristalina dotanque, e toda uma famlia de grilos cantava ruidosamente.

    Logo seus pensamentos o reconduziram aos acontecimentos do dia. A agresso, oassassinato, as suspeitas do tribuno. Aquela estranha profecia, escrita maneira dos antigos.Os rebeldes? Julius estava convicto de serem eles os culpados. Esquecia-se de que combatiamem nome do Todo-Poderoso e que o assassinato de Jeft, homem de sabedoria e de f, ofendiagravemente o cu. Judas, o Galileu, podia ignorar isso? E assim fundar a guerra santa numpecado abominvel? Nesse caso, a pureza de Jerusalm no seria mais do que um subterfgiopara tomar o poder.

    Quanto ao contedo do pergaminho... De memria, Flon passou em revista os profetas doLivro, buscando aquele a que o texto poderia melhor corresponder. Conhecia bem asEscrituras por t-las lido desde muito jovem tanto em hebreu quanto em grego; depois, por t-las estudado profundamente na sinagoga. A Bblia conservara a predicao de cerca de vintedaqueles conhecidos tambm como nabis ou inspirados: Samuel, Elias, Eliseu, Isaas,Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Ams, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias,Ageu, Zacarias, Malaquias e Daniel. O pergaminho encontrado na boca de Jeft era de umestilo que evocava a escrita de antes do Exlio, o que permitia eliminar todos os profetas queviveram e professaram depois da deportao para a Babilnia. Ou seja, Abdias, Jeremias,Ezequiel, Ageu, Joel, Zacarias, Jonas, Malaquias e Daniel.

    Alm disso, a mensagem fazia referncia aos conquistadores de Assur, o que queria dizerque seu autor no vivera antes das invases assrias. Os nabis mais antigos, Samuel, Elias eEliseu, tampouco podiam, portanto, ter servido de modelo. Restavam sete profetas,contemporneos do imprio assrio, aos quais a mensagem podia fazer referncia: Ams,Oseias, Isaias, Miqueias, Naum, Habacuc e Sofonias. O jovem no sabia de cor o detalhe desuas prdicas e prometeu para si mesmo que voltaria a mergulhar nelas assim que possvel.Com a esperana de encontrar o qu? No tinha a mnima ideia. Estava certo apenas de nuncater lido aquela passagem em nenhum dos livros sagrados.

    Estava se perguntando se seu anfitrio no teria em casa os rolos dos profetas quandopercebeu como que um passo abafado e um estalido de galhos vindo da direita. Foi ento quese deu conta do silncio que o envolvia. Nada se mexia. Nem os grilos cantavam mais... Teveapenas o tempo de se aperceber de um reflexo escuro e deformado na gua do tanque e sejogou instintivamente para o lado, arrastando o banco em sua queda. Com um forte zunido, umobjeto brilhante passou a meia polegada de seu rosto. Ento, ouviu um barulho de corridadesenfreada. Levantou a cabea e viu uma forma escura fugindo para o fundo do jardim. Foiatrs dela, mas logo tropeou numa jarra repleta de flores. At que voltasse a levantar, a formaj desaparecera.

    Correu mesmo assim na direo em que tinha seguido at chegar ao muro da propriedade.

  • Ningum... Naquele ponto, o muro media bem sete ou oito cvados de altura e, sem umaescada, no havia como... Seus olhos comearam a se acostumar com a escurido e distinguiuento uma portinhola, nem bem do tamanho de um homem. Empurrou-a: aberta. Dava para umaespcie de ruela que servia a parte de trs de vrias belas casas. Um caminho para osjardineiros e domsticos, talvez. Entrou ao acaso na ruela e teve que se render evidncia:estava deserta.

    O homem conseguira escapar...De volta ao jardim. Flon inspecionou os arredores do tanque e acabou descobrindo,

    cravada na terra, a faca que fora lanada nele. Teve, de incio, um movimento de surpresa. Almina era ligeiramente curva e afiada, mas sobretudo o cabo de marfim era esculpido commotivos geomtricos que reconheceu imediatamente. Era um punhal idntico quele quetomara do rebelde aquela mesma manh no estbulo de Aceldama! O punhal... A arma dosrebeldes! Era a segunda vez que o atacavam! O tribuno Julius talvez no estivesse enganadoimputando-lhes o assassinato de Jeft.

    Voltou s pressas para a casa a fim de informar Ezequias do que acabava de acontecer. Apenumbra reinava nos corredores e teve um pouco de dificuldade para encontrar a ala oesteonde ficavam os aposentos do membro do Sindrio. Suado, arquejante, presa de uma vivaexcitao, no viu a princpio Nertari que se dirigia a ele com uma tocha na mo. Estavavestida apenas com uma leve tnica que mal lhe cobria o joelho:

    O que houve? sussurrou ela. Est perdido? Preciso falar com Ezequias, respondeu Flon, urgente. Lamento, meu amo acaba de dormir. Trabalhou at tarde e partir amanh na primeira

    hora para Cesareia. Pediu para no ser incomodado. Preciso lhe contar uma coisa, muito importante! Mais importante do que sua misso junto ao procurador de Roma? Uma questo de paz

    ou de guerra, pelo que ele disse. Talvez, mas... No o deixarei acord-lo, tenho ordens. Se quiser conversar com ele, ter que esperar

    at amanh.Diante do olhar determinado da jovem, Flon hesitou em empurr-la contra a parede e

    forar a passagem. Ou seno gritar o nome de Ezequias at que este aparecesse. No final,preferiu no insistir. Esperaria at o amanhecer. Simplesmente, antes de dar meia-volta, dissepara a escrava:

    Acorde-me antes da partida dele, preciso falar com ele sem falta. E mande algumverificar as portas do jardim: a do fundo ficou aberta.

    Chegando a seu quarto, Flon pegou debaixo da cama a sacola onde escondera a primeirafaca de cabo de marfim. Queria compar-la com aquela que acabava de encontrar.

    Foi ento que compreendeu: a sacola estava vazia. Havia apenas uma nica e mesma arma.Algum entrara em seu quarto e roubara o punhal antes de utiliz-lo contra ele.8 Originalmente, o hebreu era escrito apenas com consoantes. S a leitura em voz alta permitia restituir suas vogais.

    9 Em 587 a.C., Nabucodonosor se apodera de Jerusalm e deporta uma parte de sua populao para a Babilnia: o Exlio.

  • 6A noite foi agitada. Flon lutou contra o sono para garantir que no perderia a partida deEzequias, mas acabou adormecendo. Quando finalmente abriu os olhos, o sol j ia alto. Vestiu-se s pressas, atou o punhal do rebelde no interior de sua tnica e partiu furioso procura deNertari. Vrios domsticos estavam trabalhando na casa e ele vagou por algum tempo atencontrar a jovem escrava na cozinha, onde estava dando ordens.

    Por que no me acordou?Ele a segurou pelo punho, ela se soltou com um gesto brusco: No toque em mim! Foi meu amo que no quis que incomodassem voc. Disse que

    estava precisando descansar e que estaria de volta no mais tardar em trs dias. E que at lpodia ficar aqui como se estivesse em sua casa. Disse tambm que o enterro de Jeftaconteceria duas horas antes do meio-dia no cemitrio da porta dos Carneiros. Que vocpodia ir se assim desejasse.

    Mas era indispensvel que eu falasse com ele! Um homem me atacou ontem noite nojardim, com uma faca! Uma faca que furtou em meu prprio quarto.

    Ela sequer baixou os olhos, como se a notcia no a surpreendesse nem um pouco. De fato, um ladro entrou na casa. Cometeu vrios furtos, entre os quais o de um broche

    de ouro que meu amo me deu. Acho que voc tinha razo: um dos criados que cuida do jardimdeixou uma porta aberta. Foi provavelmente por ali que...

    Mas ento por que ele lanou esse punhal contra mim? No sei o que lhe dizer. Com toda a violncia destes ltimos dias... Talvez tenha

    pensado ter sido descoberto e ficou com medo?Sua voz tremia ligeiramente e Flon intuiu que ela estava mentindo. Mesmo assim, ela

    sustentou seu olhar com um ar desafiador e o jovem compreendeu que no obteria nada delaat o retorno de Ezequias. Dali em diante, deveria ficar com o p atrs. Mesmo assim, pediu aela que lhe indicasse a sinagoga dos alexandrinos, na cidade velha, e o caminho da porta dosCarneiros. Ento se retirou para seu quarto e fez uma leve refeio de frutas, coalhada ebiscoitos de pistache.

    O dia prometia ser quente... Duas horas antes do meio-dia. Flon atravessou a cidade em direo ao norte. Nas ruelas,

    a algazarra era cada vez maior e o mercado de produtos frescos transbordava de gritos e deagitao. Os vendedores de roms ou de vinagre diludo faziam fortunas com os peregrinossedentos, enquanto os legionrios tentavam controlar a confuso, especialmente as crianasque corriam para todos os lados e jogavam pedrinhas furtivamente.

    Flon deixou o Templo sua direita, contornou a fortaleza Antnia e se juntou procisso

  • fnebre depois de ter passado a fonte dos Carneiros, para alm dos muros. S mais tarde veioa saber que a comunidade dos fariseus comprara uma das grotas da vertente do Cdron paraali sepultar aqueles de seus membros que o desejassem. Normalmente, Jeft deveria ter sidoenterrado no mesmo dia de sua morte, mas o carter excepcional dos acontecimentos atrasaraa cerimnia. O que no impediu que mais de quinhentas pessoas acompanhassem a liteirasobre a qual repousava o cadver, simplesmente envolto num sudrio branco. Segundo atradio, o defunto devia ser colocado assim no interior da grota at que suas carnes secasseme seus ossos pudessem ser postos dentro de um sarcfago de pedra. Em meio s lamentaesdas carpideiras e s flautas dos msicos, era difcil adivinhar o que cada um sabia sobre ascircunstncias da morte. Aparentemente, a mgoa e a dor prevaleciam sobre a clera e arevolta: a maior parte das pessoas devia ignorar a verdade. Alguns membros da famlia tinhamrasgado suas roupas. Alguns homens tinham esfregado o rosto com terra ou cinzas. Muitosdeles levavam os signos distintivos dos fariseus: uma fita azul prolongada por franjas na partede baixo de suas tnicas.

    Flon seguiu na contracorrente do cortejo at perceber Betsabel. A jovem estava sendocarregada em outra liteira, um pouco mais baixa, e, do vu que cobria seu rosto, emergiamapenas duas pupilas de um preto flamejante. Ele no sabia se ela o notara ou no. Durante acelebrao, observou atentamente as reaes de seus vizinhos, procurando na multido umasilhueta que recordasse a de seu agressor da vspera, ou qualquer outro indcio que ocolocasse na pista do assassino. Seno, por que Ezequias o teria aconselhado a assistir aofuneral? Mas todos pareciam sinceramente tristes, exceto os quatro legionrios que enxugavamseu suor constantemente entre dois suspiros exaustos.

    Finalmente, aps uma ltima salva de cantos e preces, rolaram uma enorme pedra redondapara obstruir a entrada da grota. A procisso comeou ento a se desfazer.

    Flon se preparava para tambm voltar cidade quando viu Mandu se aproximar lanandoolhares preocupados a seu redor:

    Minha ama pede que venha casa dela esta tarde. Ela precisa do senhor. Esta tarde? E seu luto? Eu no queria... Ela vai dar um jeito de estar sozinha. Conta com o senhor. que...O escravo j se afastava.Flon julgou aquele pedido um tanto surpreendente. Por outro lado, no ficava triste em

    rever a jovem. E quem sabe poderia descobrir coisas teis para sua investigao? A sinagoga dos alexandrinos ficava na cidade baixa, perto do hipdromo que o rei

    Herodes mandara construir ao sul do Templo. Ocupava um pequeno prdio onde os peregrinosda cidade egpcia podiam se reunir para estudar a Tor e mesmo residir ali durante suaestadia. Por sorte, Flon foi logo recebido por aquele que vinha procurar:

    Abydelios, meu mestre! Estou to feliz em rev-lo! Flon? Flon, mesmo voc? Que a felicidade ilumine este dia! Disseram-me que viria a

    Jerusalm, mas no esperava...Abraaram-se e o velho rabino enxugou uma lgrima. Por vinte e cinco anos, fora

  • responsvel pala sinagoga de Alexandria, e fora ele que ensinara a Flon quase tudo que estesabia das Escrituras. Depois, com a idade, desejara se instalar em Jerusalm para terminar suavida perto do Templo. Hoje, encarregava-se de receber seus compatriotas em peregrinao, depresidir s leituras santas e, uma vez por semana, de dar aulas s crianas do bairro.

    um homem agora. Um adulto e um bom judeu, que o Senhor me oua! E seu irmo,como anda?

    Est doente h algumas semanas, mas me fez prometer que o cumprimentaria. Aquilo era uma peste! Incapaz de ficar quieto! Gentil no fundo, um bom rapaz. Menos

    dotado do que voc para o estudo e o comentrio, isso certo. E seu pai?O assunto era delicado, Abydelios o sabia. Bom, vemo-nos o mnimo possvel... Ele no mudou, hein? Quer que voc assuma os negcios dele ou se coloque a servio

    dos romanos, isso? Os pais sempre acreditam saber o que melhor para seus filhos. Noentanto, h apenas um juiz aqui embaixo. Mas, e voc, o que decidiu?

    Eu... ainda no sei bem... Segui os cursos de Arius Didymus estes dois ltimos anos.Gramtica, retrica, dialtica, geometria... Mas foi a filosofia que mais me interessou.Sobretudo Plato e Aristteles...

    As mil rugas do velho sbio compuseram uma expresso de censura: Desconfie de todos esses pagos, Flon. No fim das contas, afastam-nos da verdade. No sei, rabino. Parece-me que seu pensamento se inspira muitas vezes nos mesmos

    princpios que... Quero dizer que a Bblia no est to afastada de uma parte de seu sistema.Que eles puderam extrair dele fundamentos para...

    Ah! No quero nem escutar mais. E seu amigo Memnos que afirmava ano passado quevoc iria viver com os terapeutas10. Que belo religioso voc seria com as ideias de seuPlato!

    Cheguei a pensar em me retirar junto aos terapeutas, verdade. Mas no estavasuficiente seguro para faz-lo.

    Ento agiu bem. Aquele que se volta para o Todo-Poderoso s deve apresentar a ele suamelhor parte. Mas estou entediando voc com todas essas perguntas. Conte-me sobre estaviagem? O que acha de Jerusalm? Viu as portas douradas do Templo?

    Para ser franco, ainda no tive tempo desde que cheguei aqui. O acaso quis que meenvolvesse em toda essa confuso em torno da morte de Jeft. O senhor o conhecia?

    Jeft? Um alto dignitrio fariseu. Conversamos uma ou duas vezes, s isso. Parecia umhomem honesto e de uma f escrupulosa. O que lhe valeu algumas brigas com os do Templo.Ele e o sumo sacerdote Gad no se bicavam...

    A velha rivalidade entre fariseus e saduceus? Estou aqui h apenas trs anos, voc sabe. Mas, para alm disso, acho que suas

    personalidades no combinavam. Ele... ele foi morto por um louco furioso, ao que dizem? Ele foi morto selvagemente, sim. O assassino conseguiu fugir e no se sabe muita coisa.

    Exceto...Flon hesitou antes de continuar. Mas no tinha toda a confiana no velho rabino? Descobriram um pedao de pergaminho em seu corpo. Uma espcie de profecia.

  • Recitou:Mas, no dia do Nazireno,ltimo rebento de Davi vindo do pas do Egito,se o sangue de Jacob verter seu prprio sangue,se ele pecar de novo face a seu Deus,ento Eu farei o Belial subir dos abismose, com ele, a tropa de Assur no seio de Israel! Pude ver o pergaminho. Estava em hebreu antigo. Acha que pode corresponder a uma

    passagem das Escrituras?Abydelios fechou os olhos como sempre fazia ao recorrer a sua imensa memria dos

    textos. No, acabou por responder. No so versculos do Livro. Embora certos aspectos... Uma

    profecia? De fato, lembra os rolos dos profetas. Em todo caso, o que mais se aproxima. por isso tambm que vim visit-lo, rabino. Gostaria de consultar os rolos.

    Principalmente os de Ams, Isaas, Oseias, Miqueias, Naum, Habacuc e Sofonias.Abydelios apreciou como bom conhecedor: Os sete profetas do perodo assrio, no ? Por causa da cidade de Assur? Bela

    deduo. Fico feliz que continue tendo a mente to alerta! Venha, vou lhe dar o que quer.Atravessaram a grande sala de reunies, com suas duas fileiras de colunas e seus bancos

    encostados nas paredes, onde meia dzia de homens meditava em silncio sob seus xales deorao. Bem na ponta, um nicho na parede permitira instalar um belo ba esculpido, de duastampas, que encerrava os exemplares do Livro. direita em hebreu, esquerda em grego.Abydelios escolheu sete rolos na parte direita e conduziu Flon a uma pea contgua,mobiliada com uma mesa inclinada para facilitar a leitura.

    Fique vontade, h vrios hspedes de que devo me ocupar.Flon ps-se ao trabalho. Comeou pelo rolo mais grosso, o de Isaas, que era tambm seu

    nabi preferido. A fora de sua predicao era tamanha, seu verbo to poderoso e sua poesiato rude que se tinha a sensao de ouvi-lo trovejar atravs dos sculos contra os judeusinfiis ou os chefes incapazes. Depois releu o livro de Ams, que se indignava contra acorrupo dos ricos e a misria dos pobres; o de Oseias, que comparava Israel a uma mulheradltera; o de Miqueias, que processava seu povo em nome do Todo-Poderoso; o de Sofonias,que anunciava a destruio de Jerusalm antes de sua restaurao futura; o de Habacuc, queinterrogava o cu sobre as causas do castigo divino; e o de Naum, finalmente, cujas folhas decouro enroladas tinham sido recosturadas vrias vezes, e que predizia a queda do Imprioassrio.

    Ao terminar esse primeiro inventrio, Flon observou que, dos sete inspirados, apenascinco evocavam nominalmente a cidade de Assur: Oseias, Isaas, Miqueias, Naum e Sofonias.Devia, portanto, ter sido um desses cinco nabis que o autor do pergaminho tomara comomodelo. Mas no era fcil levar adiante esse raciocnio: Isaas aludia descendncia do reiDavi; Oseias via subir do Egito o filho de Deus; Miqueias mencionava o crime de Jacob;Naum alertava contra o Belial; e Sofonias implorava pelo dia do Juzo... A menos que o

  • assassino tivesse tentado imitar os cinco profetas ao mesmo tempo!Alm disso, se Flon sentia como que uma familiaridade entre o pergaminho e esses textos,

    era incapaz de ver em qu isso esclarecia o assassinato de Jeft.De maneira que, quando deixou a salinha para devolver os rolos, foi com uma expresso

    de frustrao que Abydelios o encontrou. No obteve o que procurava, meu filho? Algumas confirmaes, rabino, mas nenhuma certeza. Essa mensagem est em estreita

    relao com os profetas, disso estou certo. Provavelmente Isaas, Miqueias, Naum, Oseias ouSofonias... Ou os cinco juntos! No por acaso que...

    Percebeu ento, na sala das colunas, um ltimo fiel que ficara sozinho sob seu xale deorao. O jovem retomou, bem mais baixo:

    No por acaso que o assassino deixou esse pergaminho em sua vtima. Tampouco poracaso que essas palavra