13
�� | 1 | Originalmente publicado em: SILVA, Sara Reis da (2006) “O Capuchinho Vermelho revisitado: leituras de História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso, de Manuel António Pina”, in A Criança, a Língua, o Imaginário e o Texto Literário. Centro e Margens na Literatura para Crianças e Jovens. Actas do II Congresso Internacional, Braga: Universidade do Minho – Instituto de Estudos da Criança (sem paginação). O Capuchinho Vermelho revisitado: leituras de História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso, de Manuel António Pina Sara Reis da Silva | 1 | RESUMO História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso, narrativa escrita por Manuel António Pina a partir de pinturas a pastel da artista plástica Paula Rego (2005), constitui o cerne deste estudo. Famoso conto da tradição oral, escrito, pela primeira vez, pelo francês C. Perrault (1697), foi, já no século XIX, que, com a assinatura dos irmãos Grimm (1812), surgiu a versão que tem servido de base às inúmeras adaptações desta narrativa incontornável da experiência literária colectiva, bem como da memória pessoal. No universo literário português, prevalecendo a reescrita – ora imitativa, ora subversiva, por vezes, até, paródica – de O Capuchinho Vermelho segundo o paradigma tranquilizador alemão, são de destacar, por exemplo, e apenas para citar alguns, os trabalhos de Guerra Junqueiro («O chapelinho encarnado», Contos para a Infância, 1877) e, ainda, as adaptações dramáticas de Maria Paula Azevedo (Theatro para Crianças, 1923) e Alice Gomes (A Nau Catrineta e a Outra História do Capuchinho Vermelho, 1967). Textos contemporâneos de preferencial recepção infanto-juvenil como O Gorro Vermelho, de Ana Saldanha (2002), O Capuchinho Vermelho (na versão que as crianças mais gostam), de Richard Câmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento, de Matilde Rosa Araújo (2005), denunciam também a pervivência dos efeitos intertextuais do conto clássico em questão na actividade de escritores da actualidade. Ao contrário do habitual, a obra de Manuel António Pina que analisaremos possui, porém, em certa medida, como hipotexto a versão francesa, opção que, aliás, se afigura consentânea com a criação artística de Paula Rego, operando, ambos os autores, uma espécie de presentificação dos seus discursos ou de reciclagem de uma “velha história” de acordo com o mundo de hoje. Palavras-chave: Literatura Infantil Portuguesa, O Capuchinho Vermelho, intertextualidade ABSTRACT This article focuses on História do Capuchinho Vermelho contada a crianças e nem por isso, written by Manuel António Pina from works in pastel by artist Paula Rego (2005). A famous tale in the oral tradition, Little Red Riding Hood was first committed to paper by the French writer Charles Perrault in 1697. However, in the 19th century the brothers Grimm’s version (1812) became the one that would inspire numerous rewritings of the tale. Within the Portuguese literary context, the rewritings of Red Riding Hood – either imitatively, subversively or parodically – have mostly followed the reassuring German model, as in, for example, Guerra Junqueiro’s “O chapelinho encarnado” in Contos para a Infância (1877), or the dramatic adaptations by Maria Paula Azevedo (Theatro para Crianças, 1923) and Alice Gomes (A Nau Catrineta e a Outra História do Capuchinho Vermelho 1967). Contemporary children’s books such as Ana Saldanha’s O Gorro Vermelho (2002), Richard Câmara’s O Capuchinho Vermelho (na versão que as crianças mais gostam) (2003) or Matilde Rosa Araújo’s O Capuchinho Cinzento (2005) testify to the survival of intertextual effects derived from the tale in the work of present-day writers. Contrary to this trend, Manuel António Pina’s version of this story uses, to a certain extent, Perrault’s French version as ur-text, in keeping with the work of Paula Rego. In this process, both authors enact a type of updating of their discourses, recycling the story in terms of the world of the present-day. Key words: Portuguese Children’s Literature, Little Red Riding Hood, intertextuality

O Capuchinho Vermelho revisitado:

  • Upload
    dotu

  • View
    238

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O Capuchinho Vermelho revisitado:

| 1 |

Originalmente publicado em SILVA Sara Reis da (2006) ldquoO Capuchinho Vermelho revisitado leituras de Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso de Manuel Antoacutenio Pinardquo in A Crianccedila a Liacutengua o Imaginaacuterio e o Texto Literaacuterio Centro e Margens na Literatura para Crianccedilas e Jovens Actas do II Congresso Internacional Braga Universidade do Minho ndash Instituto de Estudos da Crianccedila (sem paginaccedilatildeo)

O Capuchinho Vermelho revisitadoleituras de Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso

de Manuel Antoacutenio Pina

Sara Reis da Silva

| 1 |

RESUMO

Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem

por isso narrativa escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir

de pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005)

constitui o cerne deste estudo

Famoso conto da tradiccedilatildeo oral escrito pela primeira vez

pelo francecircs C Perrault (1697) foi jaacute no seacuteculo XIX que com

a assinatura dos irmatildeos Grimm (1812) surgiu a versatildeo que

tem servido de base agraves inuacutemeras adaptaccedilotildees desta narrativa

incontornaacutevel da experiecircncia literaacuteria colectiva bem como

da memoacuteria pessoal No universo literaacuterio portuguecircs

prevalecendo a reescrita ndash ora imitativa ora subversiva por

vezes ateacute paroacutedica ndash de O Capuchinho Vermelho segundo

o paradigma tranquilizador alematildeo satildeo de destacar

por exemplo e apenas para citar alguns os trabalhos de

Guerra Junqueiro (laquoO chapelinho encarnadoraquo Contos para

a Infacircncia 1877) e ainda as adaptaccedilotildees dramaacuteticas de

Maria Paula Azevedo (Theatro para Crianccedilas 1923) e Alice

Gomes (A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho

Vermelho 1967) Textos contemporacircneos de preferencial

recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana

Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que

as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou

O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005)

denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais

do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores

da actualidade

Ao contraacuterio do habitual a obra de Manuel Antoacutenio

Pina que analisaremos possui poreacutem em certa medida

como hipotexto a versatildeo francesa opccedilatildeo que aliaacutes se

afigura consentacircnea com a criaccedilatildeo artiacutestica de Paula

Rego operando ambos os autores uma espeacutecie de

presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma

ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Palavras-chave Literatura Infantil Portuguesa

O Capuchinho Vermelho intertextualidade

ABSTRACT

This article focuses on Histoacuteria do Capuchinho Vermelho

contada a crianccedilas e nem por isso written by Manuel

Antoacutenio Pina from works in pastel by artist Paula Rego

(2005)

A famous tale in the oral tradition Little Red Riding

Hood was first committed to paper by the French writer

Charles Perrault in 1697 However in the 19th century

the brothers Grimmrsquos version (1812) became the one that

would inspire numerous rewritings of the tale Within the

Portuguese literary context the rewritings of Red Riding

Hood ndash either imitatively subversively or parodically ndash have

mostly followed the reassuring German model as in for

example Guerra Junqueirorsquos ldquoO chapelinho encarnadordquo in

Contos para a Infacircncia (1877) or the dramatic adaptations

by Maria Paula Azevedo (Theatro para Crianccedilas 1923)

and Alice Gomes (A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do

Capuchinho Vermelho 1967) Contemporary childrenrsquos

books such as Ana Saldanharsquos O Gorro Vermelho (2002)

Richard Cacircmararsquos O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que

as crianccedilas mais gostam) (2003) or Matilde Rosa Arauacutejorsquos

O Capuchinho Cinzento (2005) testify to the survival of

intertextual effects derived from the tale in the work of

present-day writers

Contrary to this trend Manuel Antoacutenio Pinarsquos version of

this story uses to a certain extent Perraultrsquos French version

as ur-text in keeping with the work of Paula Rego In this

process both authors enact a type of updating of their

discourses recycling the story in terms of the world of the

present-day

Key words Portuguese Childrenrsquos Literature Little Red

Riding Hood intertextuality

1 Introduccedilatildeo

Sobressaindo como um dos mais conhecidos contos da tradiccedilatildeo O Capuchinho Vermelho viajou desde um indefiniacutevel lugar de origem1 ateacute aos dias de hoje Fixado pela escrita pela primeira vez pelo francecircs C Perrault (1697) foi jaacute no seacuteculo XIX que com a assinatura dos irmatildeos Grimm (1812) surgiu a matriz deste conto da tradiccedilatildeo oral que veio a solidificar o referente colectivo (Colomer 1996) e que com mais frequecircncia tem servido de base feacutertil a inuacutemeras traduccedilotildees reinterpretaccedilotildees adaptaccedilotildees e versotildees que possuem na maioria dos casos a crianccedila como destinataacuterio preferencial Provado parece estar o facto de O Capuchinho Vermelho se distinguir como uma narrativa incontornaacutevel da experiecircncia literaacuteria colectiva bem como do espaccedilo da infacircncia guardado na memoacuteria pessoal de muitos adultos como atesta a pluralidade de referecircncias directas e indirectas a este texto que atravessam a literatura Ocidental de vaacuterios geacuteneros e de destinataacuterio variado ao niacutevel etaacuterio (Beckett 2002) O fenoacutemeno de divulgaccedilatildeo inerente ao conto em questatildeo prova que efectivamente a intertextualidade se afigura como laquoum dos princiacutepios maiores da constituiccedilatildeo do espaccedilo literaacuterioraquo (Samoyault 2001 111) na medida em que nas suas sucessivas versotildees se congregam processos variados de reproduccedilatildeo-reelaboraccedilatildeo ou de transformaccedilatildeo de modelos e referentes construindo-se assim um universo literaacuterio vivo em constante expansatildeo muito inovador criativo e aberto a um incessante jogo de elementos cruzados que prevecirc como uacutenica regra um conjunto de condicionantes de iacutendole epocal Eacute neste contexto que ao analisarmos a narrativa Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis desenhos de Paula Rego teremos como pilar teoacuterico-metodoloacutegico a noccedilatildeo de que um texto interage com a tradiccedilatildeo com essa espeacutecie de ldquobiblioteca colectivardquo que o leitor guarda em si e que lhe possibilita a identificaccedilatildeo e a colocaccedilatildeo em diaacutelogo de referentes literaacuterios variados Porque no processo de cooperaccedilatildeo interpretativa em que a leitura literaacuteria mergulha o leitor consideramos ser potencialmente fomentador de uma competecircncia literaacuteria o reconhecimento das vozes plurais que guarda o texto reactivando-se deste modo sentidos optaacutemos por centrar previamente a nossa atenccedilatildeo ainda que de um modo sucinto num reduzido corpus2 no qual se pressente a presenccedila do famoso conto claacutessico enquanto hipotexto

2 Revisitaccedilotildees portuguesas de O Capuchinho Vermelho alguns exemplos

Em Portugal - e sem intentar neste breve estudo efectuar nem um levantamento exaustivo de tiacutetulos publicados nem uma anaacutelise sistemaacutetica tanto ao niacutevel da recepccedilatildeo como da perspectiva intertextual - facilmente se conclui acerca do elevado nuacutemero de

| 2 |

1 Alguns investigadores apontam como antecessores do texto perraultiano narrativas gregas contadas por Pausanias (seacutec II aC) Caliacutemaco (seacutec III aC) e por Antonio Liberal (seacutec II aC) bem como um curto texto medieval escrito por Egberto de Lieja (Fecunda Ratis) Sobre este assunto vide Gonzaacutelez Marin 2003 2 A selecccedilatildeo dos textos que enformam este corpus norteou-se pelos seguintes criteacuterios alteraccedilatildeo de modo literaacuterio (por exemplo narrativo para dramaacutetico) presenccedila de elementos denunciadores de um contexto histoacuterico-cultural particular (por exemplo forte caraacutecter moralizante) inovaccedilatildeo das teacutecnicas de presentificaccedilatildeoactualizaccedilatildeo do texto-matriz

ediccedilotildees dos textos atribuiacutedos a Perrault3 e aos irmatildeos Grimm que desde a segunda metade do seacuteculo XIX viram uma notoacuteria divulgaccedilatildeo Inserem-se neste quadro por exemplo a colectacircnea Contos para os nossos filhos (1882) de Maria Amaacutelia Vaz de Carvalho e Gonccedilalves Crespo uma selecccedilatildeo de vinte e cinco contos dezanove dos Grimm os dois livros da colecccedilatildeo Contos de Grimm (1883) que foram lanccedilados por Salomatildeo Saragga e figuram como a publicaccedilatildeo inaugural da recolha de contos grimmiana em traduccedilatildeo portuguesa4 e ainda as traduccedilotildees de Henrique Marques Juacutenior para a laquoBiblioteca das Crianccedilasraquo (1898-1910) colecccedilatildeo composta por treze volumes cujo primeiro intitulado Contos de Fadas (1898 2ordf ed 1905) inclui o texto laquoO Chapelinho Encarnadoraquo Deste ponto de vista o da recepccedilatildeo portuguesa em particular deste ceacutelebre conto conforme esclarece Maria Teresa Cortez no seacuteculo XIX e mesmo na primeira deacutecada do seacutec XX verificou-se a presenccedila esporaacutedica em perioacutedicos de recriaccedilotildees diversas dedicadas ao receptor infantil como aliaacutes satildeo os casos da peccedila de teatro infantil de Hilda Dawdson publicada na revista Serotildees (nordm 18 Dez de 1906) e ainda da versatildeo anoacutenima Capuz Vermelho incluiacuteda na rubrica laquoPara as Crianccedilasraquo do jornal A Croacutenica Tambeacutem Pierre Erny daacute conta de um conto portuguecircs que surgiu na laquoRevue hispanique 14 1906 p 189 et ssraquo (Erny 2003 52-53) do qual ressumam alguns modelos da narrativa claacutessica em questatildeo Neste acircmbito refira-se ainda o texto O Chapelinho Encarnado que J Leite de Vasconcelos insere em Contos Populares Portugueses (Cortez 2001 416-417)

Na verdade com configuraccedilotildees graacuteficas e mesmo com uma gramaacutetica narrativa bastante diversas (ateacute do ponto de vista da qualidade literaacuteria) no universo literaacuterio portuguecircs tem prevalecido com maior recorrecircncia a reescrita de O Capuchinho Vermelho segundo o paradigma tranquilizador alematildeo5 De facto na Literatura Portuguesa que tem na crianccedila o seu destinataacuterio preferencial laquoLittle Red Riding Hood is generally un unmistakable intertextual referent for even the youngest readerraquo (Beckett 2002 1) como sustenta Sandra L Beckett e como provam textos como os que a seguir mencionaremos que acompanharam distintas geraccedilotildees de jovens leitores

Neste sentido (e nomeadamente pelos criteacuterios enunciados na nota de rodapeacute nordm 2) destaca-se a versatildeo incluiacuteda por Guerra Junqueiro em Contos para a infacircncia (1877) um texto que intitulou como laquoO Chapelinho Encarnadoraquo6 e no qual se projectam de forma evidente alguns dos eixos ideoloacutegicos que sustentam a perspectiva didactizante ou educativa preconizada pelo autor relativamente agrave literatura a ser recebida pelas crianccedilas7

| 3 |

3 Conforme assinala Gloacuteria Bastos relativamente agraves traduccedilotildees de contos da tradiccedilatildeo oral Perrault eacute o primeiro a ser traduzido laquordquoO Gato das Botasrdquo aparece em 1820 e no ano seguinte ldquoPele de Burrordquoraquo (Bastos 1997 p 24) 4 Sobre este assunto vide Cortez 2001 234-2425 Observa-se de facto na literatura portuguesa de recepccedilatildeo infantil agrave semelhanccedila do que parece notar-se na generalidade das obras ocidentais para crianccedilas (Colomer 2000 80) a tendecircncia sistemaacutetica para preferir como preacute-texto a matriz do Irmatildeos Grimm6 Num artigo dedicado agrave literatura para crianccedilas de Guerra Junqueiro Luiacutesa Ducla Soares sublinha o pioneirismo do autor tambeacutem de Trageacutedia Infantil (1877) ao apresentar as suas versotildees de alguns textos dos irmatildeos Grimm ainda que descurando a identificaccedilatildeo da proveniecircncia dos textos parafraseados seis anos antes destes terem sido dados a conhecer de forma expliacutecita em dois volumes impressos e editados em Paris por Salomatildeo Saragga (Soares 2001) Maria Teresa Cortez esclarece que a versatildeo do Capuchinho Vermelho que G Junqueiro inclui na sua colectacircnea teve como base um texto recolhido por Ludwig Bechstein (1801-1860) (Cortez 2001 203) 7 Cf Prefaacutecio laquoDuas Palavrasraquo (Junqueiro 1978 6-7) Veja-se ainda a este propoacutesito e a tiacutetulo exemplificativo a recorrecircncia de estrateacutegias discursivas como as formas diminutivas em laquorapariguinharaquo laquoavoacutezinharaquo e laquopequenitaraquo

Em 1923 Maria Paula Azevedo8 abre a colectacircnea Theatro para a Creanccedilas9 com o texto dramaacutetico laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo10 Se quer a acccedilatildeo quer a configuraccedilatildeo espaacutecio-temporal quer ainda o proacuteprio desenho de figuras como a matildee11 satildeo intrinsecamente similares agrave da matriz alematilde jaacute a forma como a jovem protagonista encara o Lobo se apresenta algo distinta pois a menina inocentemente confunde-o com um catildeo o que acaba por suscitar o riso por parte do proacuteprio vilatildeo12 Tambeacutem no desfecho desta peccedila se regista uma nota dissonante em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grimmiana visto que a intervenccedilatildeo do Caccedilador motiva o resgate apenas de Capuchinho Vermelho natildeo se revestindo assim do habitual intocaacutevel caraacutecter heroacuteico13

Em O Capuchinho Encarnado Novela infantil contada agraves crianccedilas (1967) de Leyguarda Ferreira podemos ler uma narrativa constituiacuteda por sete capiacutetulos14 que principia com a referecircncia a uma famiacutelia feliz composta por um cavador a sua esposa e uma filha a quem uma fidalga ofereceu um rico tecido para fazer um capucho15 Esta obra surge igualmente pontuada por uma forte intencionalidade educativa espelhada no tom sentencioso que o narrador imprime a diversos segmentos do discurso16

Tambeacutem datada de 1967 eacute a primeira ediccedilatildeo de A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho de Alice Gomes obra que reuacutene dois textos dramaacuteticos para a infacircncia Nesta a narrativa laquoHistoacuteria do Capuchinho Vermelho e do Lobo Ferozraquo ocorre encaixada no nuacutecleo actancial em que contracenam Paulo e a Matildee funcionando como meio de transposiccedilatildeo para o oniacuterico um espaccedilo em que a personagem Capuchinho se desprende do livro fala com o rapaz leitor da sua histoacuteria e em que de certa forma se

| 4 |

bem como o cariz elogioso (originado por exemplo pela adjectivaccedilatildeo) de expressotildees como laquomuito bonita cheia de bondade a quem a matildee e a avoacute adoravam extremosamente A santa avoacutezinha (hellip)raquo (idem ibidem 193) que pontuam os primeiros paraacutegrafos do conto reescrito por G Junqueiro A proacutepria resposta do laquoChapelinho Encarnadoraquo agrave solicitaccedilatildeo e agraves advertecircncias da matildee sugere uma obediecircncia que se pretende exemplar para o leitor infantil laquo-Sim mamatilde respondeu ela hei-de fazer tudo como desejaraquo (idem ibidem 194) 8 Pseudoacutenimo de Joana Taacutevora Folque do Souto 9 Na folha de rosto desta obra lecirc-se imediatamente a seguir ao tiacutetulo e com uma funccedilatildeo proacutexima de um subtiacutetulo a inscriccedilatildeo laquoContos de Fadas por Maria Paula de Azevedoraquo Esta colectacircnea conteacutem quatro peccedilas laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo laquoA Gata Borralheiraraquo laquoA Bela e a Feraraquo e laquoA Princesa Adormecidaraquo 10 Peccedila em dois actos na qual interagem as personagens menina ndash a quem a dramaturga atribui a idade de 5 anos - a matildee o lobo o caccedilador e a avoacute11 A figura materna surge tambeacutem marcada pela preocupaccedilatildeo e pelas advertecircncias que faz agrave filha antes da sua saiacuteda de casa12 Cf laquoMenina confidencial - A matildee prohibiu que eu vaacute prsquolos atalhoshellip Mas tu que eacutes um catildeo vaes a cocircrrer saltas vallados e podes fugir se o lobo apparecerraquo O lobo rindo ndash Quem eacute esse lobo de quem tu tens medoraquo (Azevedo 1923 9)13 Cf laquoO caccedilador junto aacute cama de costas para o publico rodeado de todos ndash Vou retalhar o malvado com a faca vou-lhe tirar a menina do buxo (hellip) Aqui tens tu agora oh Matildee felicissima a filhinha qursquorida do teu coraccedilatildeo A Avoacute coitadinha morreu (hellip) A Menina gravemente ndash Drsquoora em deante Matildeesinha prometto nunca mais hei-de desobedececircr (A Matildee abraccedila-a enquanto cahe o panno)raquo (idem ibidem 15-16) 14 Os tiacutetulos atribuiacutedos aos capiacutetulos (I ndash Uma famiacutelia feliz II ndash Desobediecircncia III ndash O lobo aparece IV ndash O lobo ficou sem almoccedilo V ndash A esperteza da avoacute VI ndash Uma ideia de compadre lobo VII ndash Era uma vez um lobo) evidenciam o papel crucial do lobo no conflito que domina a diegese A estrutura externa sugerida pelos capiacutetulos mencionados corresponde na verdade a um alargamento da extensatildeo da obra original 15 Note-se que quer na versatildeo de Perrault quer na dos irmatildeos Grimm o capuchinho de tecido vermelho foi oferecido agrave menina pela avoacute16 Cf laquoQuase sempre as crianccedilas fazem como o Capuchinho Encarnado Datildeo ouvidos aos maus conselhos e voltam costas a quem lhes quer bem e lhes aponta o bom caminho Depois muitas vezes quando jaacute eacute tarde vem o arrependimentoraquo (Ferreira 1967 16-17) laquoO lobo morrera mas posso garantir-lhes que a pequena natildeo voltou ao atalho da floresta pois nunca esqueceu o perigo corrido e aquele que por sua causa correra a avoacuteraquo (idem ibidem 30)

aproveita para questionar a actualidade ou a importacircncia no presente dos ensinamentos originais do texto tradicional17

Outros textos contemporacircneos de preferencial recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005) denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores portugueses da actualidade18 atestando a forccedila da tradiccedilatildeo oral na literatura e da sua heranccedila primordial

Na novela juvenil O Gorro Vermelho fazendo passar pelo filtro da actualizaccedilatildeo epocal o conto claacutessico e num discurso que se distingue pelo fino humor e por uma invulgar mestria na recriaccedilatildeo de um microcosmos social que com facilidade o leitor actual reconheceraacute Ana Saldanha19 textualiza temaacuteticas que se encontram na ordem do dia a inseguranccedila nas cidades a pedofilia ou a terceira idade Nesta narrativa breve ganha especial relevo como base do processo de transformaccedilatildeo a individualizaccedilatildeo por exemplo da personagem chamada Sofia que representa a Capuchinho da tradiccedilatildeo

A narrativa visual (Banda Desenhada) assinada por Richard Cacircmara eacute de facto uma das que mais se afasta dos hipotextos originais especialmente pela forccedila da sua componente pictoacuterica Sendo construiacuteda a partir da conjugaccedilatildeo equitativa sequenciada das diferentes perspectivas vivenciais20 das personagens Capuchinho Lobo Mau Caccedilador e Avoacutezinha este texto presentifica os espaccedilos e os impulsos que levam as diversas personagens a agir propondo que o leitor siga vinheta a vinheta estas figuras numa viagem em paralelo desde o bosque ou a selva naturais ateacute agrave mais dura selva a cidade Com um humor subtil na histoacuteria recriada Richard Cacircmara acaba assim por lanccedilar algumas criacuteticas sociais

Jaacute a prosa poeacutetica de Matilde Rosa Arauacutejo em O Capuchinho Cinzento propotildee em nosso entender uma reflexatildeo profunda sobre a condiccedilatildeo humana e sobre a transitoriedade da vida um quadro semacircntico que talvez natildeo seja facilmente apreendido pelo destinataacuterio inscrito na dedicatoacuteria laquoPara todas as crianccedilas com ternura imensahellipraquo O diaacutelogo com o

17 Cf laquoMenina ndash Mas eu defendo-me matildee Levo a raqueta levo os patins se aparecer algum ladratildeo bato-lhes com eles Eu natildeo tenho medo nenhumhellip Nunca fui medrosahellip E depois eu hoje natildeo vou para o bosque vou para o jardim zooloacutegico e laacute as feras estatildeo presas (hellip) Este capuz soacute serve para atrapalhar (hellip) A Menina do Capuchinho Vermelho tatildeo ingeacutenua tatildeo patetinha que confundiu a cara da avoacute com o focinho de um lobo Quem poderaacute acreditar nisto (hellip) nunca mais irei ao bosque apanhar flores E para quecirc Chego agrave florista e compro-as que eacute mais praacutetico Levar o cesto da merenda agrave avoacutehellip nada disso levo antes a avoacute agrave pastelaria e ofereccedilo-lhe um sorveteraquo (Gomes 1967 75-76)18 Integra este conjunto de autores Maacuterio Castrim com a peccedila laquoCapuchinho Vermelhoraquo incluiacuteda em Contar e Cardar obra que reuacutene cinco textos ineacuteditos escritos expressamente para o Centro Experimental de Teatro de Aveiro levados agrave cena em 1990 Jaacute em 2003 a obra foi editada pelo CETA (sobre esta obra vide httpwwwprof2000ptusershjcocetapg020100htm) 19 Em termos particulares estes ecos tecircm vindo a materializar-se ainda na ocorrecircncia pontual de personagens resgatadas ao texto-matriz de O Capuchinho Vermelho adquirindo assim muitas vezes em textos diversos contornos proacuteximos aos das personagens-tipo e revestindo-se ateacute de um certo simbolismo Veja-se a este propoacutesito o conto Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal de Ana Saldanha uma narrativa em que a par de outras figuras tornadas imortais pela literatura de raiz oral como o Joatildeo Ratatildeo e uma raposa interagem de forma cordial a Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau retratado como belo atencioso e cordial20 laquoAs peripeacutecias deste conto sobre ldquoO Capuchinho Vermelhordquo desvendam-se ao longo de 62 paacuteginas agraves quais correspondem um igual nuacutemero de momentos para cada personagem Cada uma dessas paacuteginas estaacute dividida em quatro vinhetas (quadrados) que fixam a nossa atenccedilatildeo no que estatildeo a fazer num mesmo e preciso momento da histoacuteria o Capuchinho o Lobo Mau o Caccedilador e a Avoacutezinha Todas as personagens podem desta maneira ser visionadas em simultacircneo pelo leitor Datildeo-se assim a conhecer as implicaccedilotildees que as acccedilotildees de umas tecircm nas restantes e de que forma isto afecta o nosso entendimento da histoacuteriaraquo (laquoGuia de leituraraquo da autoria de Richard Cacircmara)

| 5 |

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 2: O Capuchinho Vermelho revisitado:

1 Introduccedilatildeo

Sobressaindo como um dos mais conhecidos contos da tradiccedilatildeo O Capuchinho Vermelho viajou desde um indefiniacutevel lugar de origem1 ateacute aos dias de hoje Fixado pela escrita pela primeira vez pelo francecircs C Perrault (1697) foi jaacute no seacuteculo XIX que com a assinatura dos irmatildeos Grimm (1812) surgiu a matriz deste conto da tradiccedilatildeo oral que veio a solidificar o referente colectivo (Colomer 1996) e que com mais frequecircncia tem servido de base feacutertil a inuacutemeras traduccedilotildees reinterpretaccedilotildees adaptaccedilotildees e versotildees que possuem na maioria dos casos a crianccedila como destinataacuterio preferencial Provado parece estar o facto de O Capuchinho Vermelho se distinguir como uma narrativa incontornaacutevel da experiecircncia literaacuteria colectiva bem como do espaccedilo da infacircncia guardado na memoacuteria pessoal de muitos adultos como atesta a pluralidade de referecircncias directas e indirectas a este texto que atravessam a literatura Ocidental de vaacuterios geacuteneros e de destinataacuterio variado ao niacutevel etaacuterio (Beckett 2002) O fenoacutemeno de divulgaccedilatildeo inerente ao conto em questatildeo prova que efectivamente a intertextualidade se afigura como laquoum dos princiacutepios maiores da constituiccedilatildeo do espaccedilo literaacuterioraquo (Samoyault 2001 111) na medida em que nas suas sucessivas versotildees se congregam processos variados de reproduccedilatildeo-reelaboraccedilatildeo ou de transformaccedilatildeo de modelos e referentes construindo-se assim um universo literaacuterio vivo em constante expansatildeo muito inovador criativo e aberto a um incessante jogo de elementos cruzados que prevecirc como uacutenica regra um conjunto de condicionantes de iacutendole epocal Eacute neste contexto que ao analisarmos a narrativa Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis desenhos de Paula Rego teremos como pilar teoacuterico-metodoloacutegico a noccedilatildeo de que um texto interage com a tradiccedilatildeo com essa espeacutecie de ldquobiblioteca colectivardquo que o leitor guarda em si e que lhe possibilita a identificaccedilatildeo e a colocaccedilatildeo em diaacutelogo de referentes literaacuterios variados Porque no processo de cooperaccedilatildeo interpretativa em que a leitura literaacuteria mergulha o leitor consideramos ser potencialmente fomentador de uma competecircncia literaacuteria o reconhecimento das vozes plurais que guarda o texto reactivando-se deste modo sentidos optaacutemos por centrar previamente a nossa atenccedilatildeo ainda que de um modo sucinto num reduzido corpus2 no qual se pressente a presenccedila do famoso conto claacutessico enquanto hipotexto

2 Revisitaccedilotildees portuguesas de O Capuchinho Vermelho alguns exemplos

Em Portugal - e sem intentar neste breve estudo efectuar nem um levantamento exaustivo de tiacutetulos publicados nem uma anaacutelise sistemaacutetica tanto ao niacutevel da recepccedilatildeo como da perspectiva intertextual - facilmente se conclui acerca do elevado nuacutemero de

| 2 |

1 Alguns investigadores apontam como antecessores do texto perraultiano narrativas gregas contadas por Pausanias (seacutec II aC) Caliacutemaco (seacutec III aC) e por Antonio Liberal (seacutec II aC) bem como um curto texto medieval escrito por Egberto de Lieja (Fecunda Ratis) Sobre este assunto vide Gonzaacutelez Marin 2003 2 A selecccedilatildeo dos textos que enformam este corpus norteou-se pelos seguintes criteacuterios alteraccedilatildeo de modo literaacuterio (por exemplo narrativo para dramaacutetico) presenccedila de elementos denunciadores de um contexto histoacuterico-cultural particular (por exemplo forte caraacutecter moralizante) inovaccedilatildeo das teacutecnicas de presentificaccedilatildeoactualizaccedilatildeo do texto-matriz

ediccedilotildees dos textos atribuiacutedos a Perrault3 e aos irmatildeos Grimm que desde a segunda metade do seacuteculo XIX viram uma notoacuteria divulgaccedilatildeo Inserem-se neste quadro por exemplo a colectacircnea Contos para os nossos filhos (1882) de Maria Amaacutelia Vaz de Carvalho e Gonccedilalves Crespo uma selecccedilatildeo de vinte e cinco contos dezanove dos Grimm os dois livros da colecccedilatildeo Contos de Grimm (1883) que foram lanccedilados por Salomatildeo Saragga e figuram como a publicaccedilatildeo inaugural da recolha de contos grimmiana em traduccedilatildeo portuguesa4 e ainda as traduccedilotildees de Henrique Marques Juacutenior para a laquoBiblioteca das Crianccedilasraquo (1898-1910) colecccedilatildeo composta por treze volumes cujo primeiro intitulado Contos de Fadas (1898 2ordf ed 1905) inclui o texto laquoO Chapelinho Encarnadoraquo Deste ponto de vista o da recepccedilatildeo portuguesa em particular deste ceacutelebre conto conforme esclarece Maria Teresa Cortez no seacuteculo XIX e mesmo na primeira deacutecada do seacutec XX verificou-se a presenccedila esporaacutedica em perioacutedicos de recriaccedilotildees diversas dedicadas ao receptor infantil como aliaacutes satildeo os casos da peccedila de teatro infantil de Hilda Dawdson publicada na revista Serotildees (nordm 18 Dez de 1906) e ainda da versatildeo anoacutenima Capuz Vermelho incluiacuteda na rubrica laquoPara as Crianccedilasraquo do jornal A Croacutenica Tambeacutem Pierre Erny daacute conta de um conto portuguecircs que surgiu na laquoRevue hispanique 14 1906 p 189 et ssraquo (Erny 2003 52-53) do qual ressumam alguns modelos da narrativa claacutessica em questatildeo Neste acircmbito refira-se ainda o texto O Chapelinho Encarnado que J Leite de Vasconcelos insere em Contos Populares Portugueses (Cortez 2001 416-417)

Na verdade com configuraccedilotildees graacuteficas e mesmo com uma gramaacutetica narrativa bastante diversas (ateacute do ponto de vista da qualidade literaacuteria) no universo literaacuterio portuguecircs tem prevalecido com maior recorrecircncia a reescrita de O Capuchinho Vermelho segundo o paradigma tranquilizador alematildeo5 De facto na Literatura Portuguesa que tem na crianccedila o seu destinataacuterio preferencial laquoLittle Red Riding Hood is generally un unmistakable intertextual referent for even the youngest readerraquo (Beckett 2002 1) como sustenta Sandra L Beckett e como provam textos como os que a seguir mencionaremos que acompanharam distintas geraccedilotildees de jovens leitores

Neste sentido (e nomeadamente pelos criteacuterios enunciados na nota de rodapeacute nordm 2) destaca-se a versatildeo incluiacuteda por Guerra Junqueiro em Contos para a infacircncia (1877) um texto que intitulou como laquoO Chapelinho Encarnadoraquo6 e no qual se projectam de forma evidente alguns dos eixos ideoloacutegicos que sustentam a perspectiva didactizante ou educativa preconizada pelo autor relativamente agrave literatura a ser recebida pelas crianccedilas7

| 3 |

3 Conforme assinala Gloacuteria Bastos relativamente agraves traduccedilotildees de contos da tradiccedilatildeo oral Perrault eacute o primeiro a ser traduzido laquordquoO Gato das Botasrdquo aparece em 1820 e no ano seguinte ldquoPele de Burrordquoraquo (Bastos 1997 p 24) 4 Sobre este assunto vide Cortez 2001 234-2425 Observa-se de facto na literatura portuguesa de recepccedilatildeo infantil agrave semelhanccedila do que parece notar-se na generalidade das obras ocidentais para crianccedilas (Colomer 2000 80) a tendecircncia sistemaacutetica para preferir como preacute-texto a matriz do Irmatildeos Grimm6 Num artigo dedicado agrave literatura para crianccedilas de Guerra Junqueiro Luiacutesa Ducla Soares sublinha o pioneirismo do autor tambeacutem de Trageacutedia Infantil (1877) ao apresentar as suas versotildees de alguns textos dos irmatildeos Grimm ainda que descurando a identificaccedilatildeo da proveniecircncia dos textos parafraseados seis anos antes destes terem sido dados a conhecer de forma expliacutecita em dois volumes impressos e editados em Paris por Salomatildeo Saragga (Soares 2001) Maria Teresa Cortez esclarece que a versatildeo do Capuchinho Vermelho que G Junqueiro inclui na sua colectacircnea teve como base um texto recolhido por Ludwig Bechstein (1801-1860) (Cortez 2001 203) 7 Cf Prefaacutecio laquoDuas Palavrasraquo (Junqueiro 1978 6-7) Veja-se ainda a este propoacutesito e a tiacutetulo exemplificativo a recorrecircncia de estrateacutegias discursivas como as formas diminutivas em laquorapariguinharaquo laquoavoacutezinharaquo e laquopequenitaraquo

Em 1923 Maria Paula Azevedo8 abre a colectacircnea Theatro para a Creanccedilas9 com o texto dramaacutetico laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo10 Se quer a acccedilatildeo quer a configuraccedilatildeo espaacutecio-temporal quer ainda o proacuteprio desenho de figuras como a matildee11 satildeo intrinsecamente similares agrave da matriz alematilde jaacute a forma como a jovem protagonista encara o Lobo se apresenta algo distinta pois a menina inocentemente confunde-o com um catildeo o que acaba por suscitar o riso por parte do proacuteprio vilatildeo12 Tambeacutem no desfecho desta peccedila se regista uma nota dissonante em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grimmiana visto que a intervenccedilatildeo do Caccedilador motiva o resgate apenas de Capuchinho Vermelho natildeo se revestindo assim do habitual intocaacutevel caraacutecter heroacuteico13

Em O Capuchinho Encarnado Novela infantil contada agraves crianccedilas (1967) de Leyguarda Ferreira podemos ler uma narrativa constituiacuteda por sete capiacutetulos14 que principia com a referecircncia a uma famiacutelia feliz composta por um cavador a sua esposa e uma filha a quem uma fidalga ofereceu um rico tecido para fazer um capucho15 Esta obra surge igualmente pontuada por uma forte intencionalidade educativa espelhada no tom sentencioso que o narrador imprime a diversos segmentos do discurso16

Tambeacutem datada de 1967 eacute a primeira ediccedilatildeo de A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho de Alice Gomes obra que reuacutene dois textos dramaacuteticos para a infacircncia Nesta a narrativa laquoHistoacuteria do Capuchinho Vermelho e do Lobo Ferozraquo ocorre encaixada no nuacutecleo actancial em que contracenam Paulo e a Matildee funcionando como meio de transposiccedilatildeo para o oniacuterico um espaccedilo em que a personagem Capuchinho se desprende do livro fala com o rapaz leitor da sua histoacuteria e em que de certa forma se

| 4 |

bem como o cariz elogioso (originado por exemplo pela adjectivaccedilatildeo) de expressotildees como laquomuito bonita cheia de bondade a quem a matildee e a avoacute adoravam extremosamente A santa avoacutezinha (hellip)raquo (idem ibidem 193) que pontuam os primeiros paraacutegrafos do conto reescrito por G Junqueiro A proacutepria resposta do laquoChapelinho Encarnadoraquo agrave solicitaccedilatildeo e agraves advertecircncias da matildee sugere uma obediecircncia que se pretende exemplar para o leitor infantil laquo-Sim mamatilde respondeu ela hei-de fazer tudo como desejaraquo (idem ibidem 194) 8 Pseudoacutenimo de Joana Taacutevora Folque do Souto 9 Na folha de rosto desta obra lecirc-se imediatamente a seguir ao tiacutetulo e com uma funccedilatildeo proacutexima de um subtiacutetulo a inscriccedilatildeo laquoContos de Fadas por Maria Paula de Azevedoraquo Esta colectacircnea conteacutem quatro peccedilas laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo laquoA Gata Borralheiraraquo laquoA Bela e a Feraraquo e laquoA Princesa Adormecidaraquo 10 Peccedila em dois actos na qual interagem as personagens menina ndash a quem a dramaturga atribui a idade de 5 anos - a matildee o lobo o caccedilador e a avoacute11 A figura materna surge tambeacutem marcada pela preocupaccedilatildeo e pelas advertecircncias que faz agrave filha antes da sua saiacuteda de casa12 Cf laquoMenina confidencial - A matildee prohibiu que eu vaacute prsquolos atalhoshellip Mas tu que eacutes um catildeo vaes a cocircrrer saltas vallados e podes fugir se o lobo apparecerraquo O lobo rindo ndash Quem eacute esse lobo de quem tu tens medoraquo (Azevedo 1923 9)13 Cf laquoO caccedilador junto aacute cama de costas para o publico rodeado de todos ndash Vou retalhar o malvado com a faca vou-lhe tirar a menina do buxo (hellip) Aqui tens tu agora oh Matildee felicissima a filhinha qursquorida do teu coraccedilatildeo A Avoacute coitadinha morreu (hellip) A Menina gravemente ndash Drsquoora em deante Matildeesinha prometto nunca mais hei-de desobedececircr (A Matildee abraccedila-a enquanto cahe o panno)raquo (idem ibidem 15-16) 14 Os tiacutetulos atribuiacutedos aos capiacutetulos (I ndash Uma famiacutelia feliz II ndash Desobediecircncia III ndash O lobo aparece IV ndash O lobo ficou sem almoccedilo V ndash A esperteza da avoacute VI ndash Uma ideia de compadre lobo VII ndash Era uma vez um lobo) evidenciam o papel crucial do lobo no conflito que domina a diegese A estrutura externa sugerida pelos capiacutetulos mencionados corresponde na verdade a um alargamento da extensatildeo da obra original 15 Note-se que quer na versatildeo de Perrault quer na dos irmatildeos Grimm o capuchinho de tecido vermelho foi oferecido agrave menina pela avoacute16 Cf laquoQuase sempre as crianccedilas fazem como o Capuchinho Encarnado Datildeo ouvidos aos maus conselhos e voltam costas a quem lhes quer bem e lhes aponta o bom caminho Depois muitas vezes quando jaacute eacute tarde vem o arrependimentoraquo (Ferreira 1967 16-17) laquoO lobo morrera mas posso garantir-lhes que a pequena natildeo voltou ao atalho da floresta pois nunca esqueceu o perigo corrido e aquele que por sua causa correra a avoacuteraquo (idem ibidem 30)

aproveita para questionar a actualidade ou a importacircncia no presente dos ensinamentos originais do texto tradicional17

Outros textos contemporacircneos de preferencial recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005) denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores portugueses da actualidade18 atestando a forccedila da tradiccedilatildeo oral na literatura e da sua heranccedila primordial

Na novela juvenil O Gorro Vermelho fazendo passar pelo filtro da actualizaccedilatildeo epocal o conto claacutessico e num discurso que se distingue pelo fino humor e por uma invulgar mestria na recriaccedilatildeo de um microcosmos social que com facilidade o leitor actual reconheceraacute Ana Saldanha19 textualiza temaacuteticas que se encontram na ordem do dia a inseguranccedila nas cidades a pedofilia ou a terceira idade Nesta narrativa breve ganha especial relevo como base do processo de transformaccedilatildeo a individualizaccedilatildeo por exemplo da personagem chamada Sofia que representa a Capuchinho da tradiccedilatildeo

A narrativa visual (Banda Desenhada) assinada por Richard Cacircmara eacute de facto uma das que mais se afasta dos hipotextos originais especialmente pela forccedila da sua componente pictoacuterica Sendo construiacuteda a partir da conjugaccedilatildeo equitativa sequenciada das diferentes perspectivas vivenciais20 das personagens Capuchinho Lobo Mau Caccedilador e Avoacutezinha este texto presentifica os espaccedilos e os impulsos que levam as diversas personagens a agir propondo que o leitor siga vinheta a vinheta estas figuras numa viagem em paralelo desde o bosque ou a selva naturais ateacute agrave mais dura selva a cidade Com um humor subtil na histoacuteria recriada Richard Cacircmara acaba assim por lanccedilar algumas criacuteticas sociais

Jaacute a prosa poeacutetica de Matilde Rosa Arauacutejo em O Capuchinho Cinzento propotildee em nosso entender uma reflexatildeo profunda sobre a condiccedilatildeo humana e sobre a transitoriedade da vida um quadro semacircntico que talvez natildeo seja facilmente apreendido pelo destinataacuterio inscrito na dedicatoacuteria laquoPara todas as crianccedilas com ternura imensahellipraquo O diaacutelogo com o

17 Cf laquoMenina ndash Mas eu defendo-me matildee Levo a raqueta levo os patins se aparecer algum ladratildeo bato-lhes com eles Eu natildeo tenho medo nenhumhellip Nunca fui medrosahellip E depois eu hoje natildeo vou para o bosque vou para o jardim zooloacutegico e laacute as feras estatildeo presas (hellip) Este capuz soacute serve para atrapalhar (hellip) A Menina do Capuchinho Vermelho tatildeo ingeacutenua tatildeo patetinha que confundiu a cara da avoacute com o focinho de um lobo Quem poderaacute acreditar nisto (hellip) nunca mais irei ao bosque apanhar flores E para quecirc Chego agrave florista e compro-as que eacute mais praacutetico Levar o cesto da merenda agrave avoacutehellip nada disso levo antes a avoacute agrave pastelaria e ofereccedilo-lhe um sorveteraquo (Gomes 1967 75-76)18 Integra este conjunto de autores Maacuterio Castrim com a peccedila laquoCapuchinho Vermelhoraquo incluiacuteda em Contar e Cardar obra que reuacutene cinco textos ineacuteditos escritos expressamente para o Centro Experimental de Teatro de Aveiro levados agrave cena em 1990 Jaacute em 2003 a obra foi editada pelo CETA (sobre esta obra vide httpwwwprof2000ptusershjcocetapg020100htm) 19 Em termos particulares estes ecos tecircm vindo a materializar-se ainda na ocorrecircncia pontual de personagens resgatadas ao texto-matriz de O Capuchinho Vermelho adquirindo assim muitas vezes em textos diversos contornos proacuteximos aos das personagens-tipo e revestindo-se ateacute de um certo simbolismo Veja-se a este propoacutesito o conto Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal de Ana Saldanha uma narrativa em que a par de outras figuras tornadas imortais pela literatura de raiz oral como o Joatildeo Ratatildeo e uma raposa interagem de forma cordial a Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau retratado como belo atencioso e cordial20 laquoAs peripeacutecias deste conto sobre ldquoO Capuchinho Vermelhordquo desvendam-se ao longo de 62 paacuteginas agraves quais correspondem um igual nuacutemero de momentos para cada personagem Cada uma dessas paacuteginas estaacute dividida em quatro vinhetas (quadrados) que fixam a nossa atenccedilatildeo no que estatildeo a fazer num mesmo e preciso momento da histoacuteria o Capuchinho o Lobo Mau o Caccedilador e a Avoacutezinha Todas as personagens podem desta maneira ser visionadas em simultacircneo pelo leitor Datildeo-se assim a conhecer as implicaccedilotildees que as acccedilotildees de umas tecircm nas restantes e de que forma isto afecta o nosso entendimento da histoacuteriaraquo (laquoGuia de leituraraquo da autoria de Richard Cacircmara)

| 5 |

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 3: O Capuchinho Vermelho revisitado:

ediccedilotildees dos textos atribuiacutedos a Perrault3 e aos irmatildeos Grimm que desde a segunda metade do seacuteculo XIX viram uma notoacuteria divulgaccedilatildeo Inserem-se neste quadro por exemplo a colectacircnea Contos para os nossos filhos (1882) de Maria Amaacutelia Vaz de Carvalho e Gonccedilalves Crespo uma selecccedilatildeo de vinte e cinco contos dezanove dos Grimm os dois livros da colecccedilatildeo Contos de Grimm (1883) que foram lanccedilados por Salomatildeo Saragga e figuram como a publicaccedilatildeo inaugural da recolha de contos grimmiana em traduccedilatildeo portuguesa4 e ainda as traduccedilotildees de Henrique Marques Juacutenior para a laquoBiblioteca das Crianccedilasraquo (1898-1910) colecccedilatildeo composta por treze volumes cujo primeiro intitulado Contos de Fadas (1898 2ordf ed 1905) inclui o texto laquoO Chapelinho Encarnadoraquo Deste ponto de vista o da recepccedilatildeo portuguesa em particular deste ceacutelebre conto conforme esclarece Maria Teresa Cortez no seacuteculo XIX e mesmo na primeira deacutecada do seacutec XX verificou-se a presenccedila esporaacutedica em perioacutedicos de recriaccedilotildees diversas dedicadas ao receptor infantil como aliaacutes satildeo os casos da peccedila de teatro infantil de Hilda Dawdson publicada na revista Serotildees (nordm 18 Dez de 1906) e ainda da versatildeo anoacutenima Capuz Vermelho incluiacuteda na rubrica laquoPara as Crianccedilasraquo do jornal A Croacutenica Tambeacutem Pierre Erny daacute conta de um conto portuguecircs que surgiu na laquoRevue hispanique 14 1906 p 189 et ssraquo (Erny 2003 52-53) do qual ressumam alguns modelos da narrativa claacutessica em questatildeo Neste acircmbito refira-se ainda o texto O Chapelinho Encarnado que J Leite de Vasconcelos insere em Contos Populares Portugueses (Cortez 2001 416-417)

Na verdade com configuraccedilotildees graacuteficas e mesmo com uma gramaacutetica narrativa bastante diversas (ateacute do ponto de vista da qualidade literaacuteria) no universo literaacuterio portuguecircs tem prevalecido com maior recorrecircncia a reescrita de O Capuchinho Vermelho segundo o paradigma tranquilizador alematildeo5 De facto na Literatura Portuguesa que tem na crianccedila o seu destinataacuterio preferencial laquoLittle Red Riding Hood is generally un unmistakable intertextual referent for even the youngest readerraquo (Beckett 2002 1) como sustenta Sandra L Beckett e como provam textos como os que a seguir mencionaremos que acompanharam distintas geraccedilotildees de jovens leitores

Neste sentido (e nomeadamente pelos criteacuterios enunciados na nota de rodapeacute nordm 2) destaca-se a versatildeo incluiacuteda por Guerra Junqueiro em Contos para a infacircncia (1877) um texto que intitulou como laquoO Chapelinho Encarnadoraquo6 e no qual se projectam de forma evidente alguns dos eixos ideoloacutegicos que sustentam a perspectiva didactizante ou educativa preconizada pelo autor relativamente agrave literatura a ser recebida pelas crianccedilas7

| 3 |

3 Conforme assinala Gloacuteria Bastos relativamente agraves traduccedilotildees de contos da tradiccedilatildeo oral Perrault eacute o primeiro a ser traduzido laquordquoO Gato das Botasrdquo aparece em 1820 e no ano seguinte ldquoPele de Burrordquoraquo (Bastos 1997 p 24) 4 Sobre este assunto vide Cortez 2001 234-2425 Observa-se de facto na literatura portuguesa de recepccedilatildeo infantil agrave semelhanccedila do que parece notar-se na generalidade das obras ocidentais para crianccedilas (Colomer 2000 80) a tendecircncia sistemaacutetica para preferir como preacute-texto a matriz do Irmatildeos Grimm6 Num artigo dedicado agrave literatura para crianccedilas de Guerra Junqueiro Luiacutesa Ducla Soares sublinha o pioneirismo do autor tambeacutem de Trageacutedia Infantil (1877) ao apresentar as suas versotildees de alguns textos dos irmatildeos Grimm ainda que descurando a identificaccedilatildeo da proveniecircncia dos textos parafraseados seis anos antes destes terem sido dados a conhecer de forma expliacutecita em dois volumes impressos e editados em Paris por Salomatildeo Saragga (Soares 2001) Maria Teresa Cortez esclarece que a versatildeo do Capuchinho Vermelho que G Junqueiro inclui na sua colectacircnea teve como base um texto recolhido por Ludwig Bechstein (1801-1860) (Cortez 2001 203) 7 Cf Prefaacutecio laquoDuas Palavrasraquo (Junqueiro 1978 6-7) Veja-se ainda a este propoacutesito e a tiacutetulo exemplificativo a recorrecircncia de estrateacutegias discursivas como as formas diminutivas em laquorapariguinharaquo laquoavoacutezinharaquo e laquopequenitaraquo

Em 1923 Maria Paula Azevedo8 abre a colectacircnea Theatro para a Creanccedilas9 com o texto dramaacutetico laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo10 Se quer a acccedilatildeo quer a configuraccedilatildeo espaacutecio-temporal quer ainda o proacuteprio desenho de figuras como a matildee11 satildeo intrinsecamente similares agrave da matriz alematilde jaacute a forma como a jovem protagonista encara o Lobo se apresenta algo distinta pois a menina inocentemente confunde-o com um catildeo o que acaba por suscitar o riso por parte do proacuteprio vilatildeo12 Tambeacutem no desfecho desta peccedila se regista uma nota dissonante em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grimmiana visto que a intervenccedilatildeo do Caccedilador motiva o resgate apenas de Capuchinho Vermelho natildeo se revestindo assim do habitual intocaacutevel caraacutecter heroacuteico13

Em O Capuchinho Encarnado Novela infantil contada agraves crianccedilas (1967) de Leyguarda Ferreira podemos ler uma narrativa constituiacuteda por sete capiacutetulos14 que principia com a referecircncia a uma famiacutelia feliz composta por um cavador a sua esposa e uma filha a quem uma fidalga ofereceu um rico tecido para fazer um capucho15 Esta obra surge igualmente pontuada por uma forte intencionalidade educativa espelhada no tom sentencioso que o narrador imprime a diversos segmentos do discurso16

Tambeacutem datada de 1967 eacute a primeira ediccedilatildeo de A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho de Alice Gomes obra que reuacutene dois textos dramaacuteticos para a infacircncia Nesta a narrativa laquoHistoacuteria do Capuchinho Vermelho e do Lobo Ferozraquo ocorre encaixada no nuacutecleo actancial em que contracenam Paulo e a Matildee funcionando como meio de transposiccedilatildeo para o oniacuterico um espaccedilo em que a personagem Capuchinho se desprende do livro fala com o rapaz leitor da sua histoacuteria e em que de certa forma se

| 4 |

bem como o cariz elogioso (originado por exemplo pela adjectivaccedilatildeo) de expressotildees como laquomuito bonita cheia de bondade a quem a matildee e a avoacute adoravam extremosamente A santa avoacutezinha (hellip)raquo (idem ibidem 193) que pontuam os primeiros paraacutegrafos do conto reescrito por G Junqueiro A proacutepria resposta do laquoChapelinho Encarnadoraquo agrave solicitaccedilatildeo e agraves advertecircncias da matildee sugere uma obediecircncia que se pretende exemplar para o leitor infantil laquo-Sim mamatilde respondeu ela hei-de fazer tudo como desejaraquo (idem ibidem 194) 8 Pseudoacutenimo de Joana Taacutevora Folque do Souto 9 Na folha de rosto desta obra lecirc-se imediatamente a seguir ao tiacutetulo e com uma funccedilatildeo proacutexima de um subtiacutetulo a inscriccedilatildeo laquoContos de Fadas por Maria Paula de Azevedoraquo Esta colectacircnea conteacutem quatro peccedilas laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo laquoA Gata Borralheiraraquo laquoA Bela e a Feraraquo e laquoA Princesa Adormecidaraquo 10 Peccedila em dois actos na qual interagem as personagens menina ndash a quem a dramaturga atribui a idade de 5 anos - a matildee o lobo o caccedilador e a avoacute11 A figura materna surge tambeacutem marcada pela preocupaccedilatildeo e pelas advertecircncias que faz agrave filha antes da sua saiacuteda de casa12 Cf laquoMenina confidencial - A matildee prohibiu que eu vaacute prsquolos atalhoshellip Mas tu que eacutes um catildeo vaes a cocircrrer saltas vallados e podes fugir se o lobo apparecerraquo O lobo rindo ndash Quem eacute esse lobo de quem tu tens medoraquo (Azevedo 1923 9)13 Cf laquoO caccedilador junto aacute cama de costas para o publico rodeado de todos ndash Vou retalhar o malvado com a faca vou-lhe tirar a menina do buxo (hellip) Aqui tens tu agora oh Matildee felicissima a filhinha qursquorida do teu coraccedilatildeo A Avoacute coitadinha morreu (hellip) A Menina gravemente ndash Drsquoora em deante Matildeesinha prometto nunca mais hei-de desobedececircr (A Matildee abraccedila-a enquanto cahe o panno)raquo (idem ibidem 15-16) 14 Os tiacutetulos atribuiacutedos aos capiacutetulos (I ndash Uma famiacutelia feliz II ndash Desobediecircncia III ndash O lobo aparece IV ndash O lobo ficou sem almoccedilo V ndash A esperteza da avoacute VI ndash Uma ideia de compadre lobo VII ndash Era uma vez um lobo) evidenciam o papel crucial do lobo no conflito que domina a diegese A estrutura externa sugerida pelos capiacutetulos mencionados corresponde na verdade a um alargamento da extensatildeo da obra original 15 Note-se que quer na versatildeo de Perrault quer na dos irmatildeos Grimm o capuchinho de tecido vermelho foi oferecido agrave menina pela avoacute16 Cf laquoQuase sempre as crianccedilas fazem como o Capuchinho Encarnado Datildeo ouvidos aos maus conselhos e voltam costas a quem lhes quer bem e lhes aponta o bom caminho Depois muitas vezes quando jaacute eacute tarde vem o arrependimentoraquo (Ferreira 1967 16-17) laquoO lobo morrera mas posso garantir-lhes que a pequena natildeo voltou ao atalho da floresta pois nunca esqueceu o perigo corrido e aquele que por sua causa correra a avoacuteraquo (idem ibidem 30)

aproveita para questionar a actualidade ou a importacircncia no presente dos ensinamentos originais do texto tradicional17

Outros textos contemporacircneos de preferencial recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005) denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores portugueses da actualidade18 atestando a forccedila da tradiccedilatildeo oral na literatura e da sua heranccedila primordial

Na novela juvenil O Gorro Vermelho fazendo passar pelo filtro da actualizaccedilatildeo epocal o conto claacutessico e num discurso que se distingue pelo fino humor e por uma invulgar mestria na recriaccedilatildeo de um microcosmos social que com facilidade o leitor actual reconheceraacute Ana Saldanha19 textualiza temaacuteticas que se encontram na ordem do dia a inseguranccedila nas cidades a pedofilia ou a terceira idade Nesta narrativa breve ganha especial relevo como base do processo de transformaccedilatildeo a individualizaccedilatildeo por exemplo da personagem chamada Sofia que representa a Capuchinho da tradiccedilatildeo

A narrativa visual (Banda Desenhada) assinada por Richard Cacircmara eacute de facto uma das que mais se afasta dos hipotextos originais especialmente pela forccedila da sua componente pictoacuterica Sendo construiacuteda a partir da conjugaccedilatildeo equitativa sequenciada das diferentes perspectivas vivenciais20 das personagens Capuchinho Lobo Mau Caccedilador e Avoacutezinha este texto presentifica os espaccedilos e os impulsos que levam as diversas personagens a agir propondo que o leitor siga vinheta a vinheta estas figuras numa viagem em paralelo desde o bosque ou a selva naturais ateacute agrave mais dura selva a cidade Com um humor subtil na histoacuteria recriada Richard Cacircmara acaba assim por lanccedilar algumas criacuteticas sociais

Jaacute a prosa poeacutetica de Matilde Rosa Arauacutejo em O Capuchinho Cinzento propotildee em nosso entender uma reflexatildeo profunda sobre a condiccedilatildeo humana e sobre a transitoriedade da vida um quadro semacircntico que talvez natildeo seja facilmente apreendido pelo destinataacuterio inscrito na dedicatoacuteria laquoPara todas as crianccedilas com ternura imensahellipraquo O diaacutelogo com o

17 Cf laquoMenina ndash Mas eu defendo-me matildee Levo a raqueta levo os patins se aparecer algum ladratildeo bato-lhes com eles Eu natildeo tenho medo nenhumhellip Nunca fui medrosahellip E depois eu hoje natildeo vou para o bosque vou para o jardim zooloacutegico e laacute as feras estatildeo presas (hellip) Este capuz soacute serve para atrapalhar (hellip) A Menina do Capuchinho Vermelho tatildeo ingeacutenua tatildeo patetinha que confundiu a cara da avoacute com o focinho de um lobo Quem poderaacute acreditar nisto (hellip) nunca mais irei ao bosque apanhar flores E para quecirc Chego agrave florista e compro-as que eacute mais praacutetico Levar o cesto da merenda agrave avoacutehellip nada disso levo antes a avoacute agrave pastelaria e ofereccedilo-lhe um sorveteraquo (Gomes 1967 75-76)18 Integra este conjunto de autores Maacuterio Castrim com a peccedila laquoCapuchinho Vermelhoraquo incluiacuteda em Contar e Cardar obra que reuacutene cinco textos ineacuteditos escritos expressamente para o Centro Experimental de Teatro de Aveiro levados agrave cena em 1990 Jaacute em 2003 a obra foi editada pelo CETA (sobre esta obra vide httpwwwprof2000ptusershjcocetapg020100htm) 19 Em termos particulares estes ecos tecircm vindo a materializar-se ainda na ocorrecircncia pontual de personagens resgatadas ao texto-matriz de O Capuchinho Vermelho adquirindo assim muitas vezes em textos diversos contornos proacuteximos aos das personagens-tipo e revestindo-se ateacute de um certo simbolismo Veja-se a este propoacutesito o conto Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal de Ana Saldanha uma narrativa em que a par de outras figuras tornadas imortais pela literatura de raiz oral como o Joatildeo Ratatildeo e uma raposa interagem de forma cordial a Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau retratado como belo atencioso e cordial20 laquoAs peripeacutecias deste conto sobre ldquoO Capuchinho Vermelhordquo desvendam-se ao longo de 62 paacuteginas agraves quais correspondem um igual nuacutemero de momentos para cada personagem Cada uma dessas paacuteginas estaacute dividida em quatro vinhetas (quadrados) que fixam a nossa atenccedilatildeo no que estatildeo a fazer num mesmo e preciso momento da histoacuteria o Capuchinho o Lobo Mau o Caccedilador e a Avoacutezinha Todas as personagens podem desta maneira ser visionadas em simultacircneo pelo leitor Datildeo-se assim a conhecer as implicaccedilotildees que as acccedilotildees de umas tecircm nas restantes e de que forma isto afecta o nosso entendimento da histoacuteriaraquo (laquoGuia de leituraraquo da autoria de Richard Cacircmara)

| 5 |

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 4: O Capuchinho Vermelho revisitado:

Em 1923 Maria Paula Azevedo8 abre a colectacircnea Theatro para a Creanccedilas9 com o texto dramaacutetico laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo10 Se quer a acccedilatildeo quer a configuraccedilatildeo espaacutecio-temporal quer ainda o proacuteprio desenho de figuras como a matildee11 satildeo intrinsecamente similares agrave da matriz alematilde jaacute a forma como a jovem protagonista encara o Lobo se apresenta algo distinta pois a menina inocentemente confunde-o com um catildeo o que acaba por suscitar o riso por parte do proacuteprio vilatildeo12 Tambeacutem no desfecho desta peccedila se regista uma nota dissonante em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo grimmiana visto que a intervenccedilatildeo do Caccedilador motiva o resgate apenas de Capuchinho Vermelho natildeo se revestindo assim do habitual intocaacutevel caraacutecter heroacuteico13

Em O Capuchinho Encarnado Novela infantil contada agraves crianccedilas (1967) de Leyguarda Ferreira podemos ler uma narrativa constituiacuteda por sete capiacutetulos14 que principia com a referecircncia a uma famiacutelia feliz composta por um cavador a sua esposa e uma filha a quem uma fidalga ofereceu um rico tecido para fazer um capucho15 Esta obra surge igualmente pontuada por uma forte intencionalidade educativa espelhada no tom sentencioso que o narrador imprime a diversos segmentos do discurso16

Tambeacutem datada de 1967 eacute a primeira ediccedilatildeo de A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho de Alice Gomes obra que reuacutene dois textos dramaacuteticos para a infacircncia Nesta a narrativa laquoHistoacuteria do Capuchinho Vermelho e do Lobo Ferozraquo ocorre encaixada no nuacutecleo actancial em que contracenam Paulo e a Matildee funcionando como meio de transposiccedilatildeo para o oniacuterico um espaccedilo em que a personagem Capuchinho se desprende do livro fala com o rapaz leitor da sua histoacuteria e em que de certa forma se

| 4 |

bem como o cariz elogioso (originado por exemplo pela adjectivaccedilatildeo) de expressotildees como laquomuito bonita cheia de bondade a quem a matildee e a avoacute adoravam extremosamente A santa avoacutezinha (hellip)raquo (idem ibidem 193) que pontuam os primeiros paraacutegrafos do conto reescrito por G Junqueiro A proacutepria resposta do laquoChapelinho Encarnadoraquo agrave solicitaccedilatildeo e agraves advertecircncias da matildee sugere uma obediecircncia que se pretende exemplar para o leitor infantil laquo-Sim mamatilde respondeu ela hei-de fazer tudo como desejaraquo (idem ibidem 194) 8 Pseudoacutenimo de Joana Taacutevora Folque do Souto 9 Na folha de rosto desta obra lecirc-se imediatamente a seguir ao tiacutetulo e com uma funccedilatildeo proacutexima de um subtiacutetulo a inscriccedilatildeo laquoContos de Fadas por Maria Paula de Azevedoraquo Esta colectacircnea conteacutem quatro peccedilas laquoA Menina do Capuchinho Vermelhoraquo laquoA Gata Borralheiraraquo laquoA Bela e a Feraraquo e laquoA Princesa Adormecidaraquo 10 Peccedila em dois actos na qual interagem as personagens menina ndash a quem a dramaturga atribui a idade de 5 anos - a matildee o lobo o caccedilador e a avoacute11 A figura materna surge tambeacutem marcada pela preocupaccedilatildeo e pelas advertecircncias que faz agrave filha antes da sua saiacuteda de casa12 Cf laquoMenina confidencial - A matildee prohibiu que eu vaacute prsquolos atalhoshellip Mas tu que eacutes um catildeo vaes a cocircrrer saltas vallados e podes fugir se o lobo apparecerraquo O lobo rindo ndash Quem eacute esse lobo de quem tu tens medoraquo (Azevedo 1923 9)13 Cf laquoO caccedilador junto aacute cama de costas para o publico rodeado de todos ndash Vou retalhar o malvado com a faca vou-lhe tirar a menina do buxo (hellip) Aqui tens tu agora oh Matildee felicissima a filhinha qursquorida do teu coraccedilatildeo A Avoacute coitadinha morreu (hellip) A Menina gravemente ndash Drsquoora em deante Matildeesinha prometto nunca mais hei-de desobedececircr (A Matildee abraccedila-a enquanto cahe o panno)raquo (idem ibidem 15-16) 14 Os tiacutetulos atribuiacutedos aos capiacutetulos (I ndash Uma famiacutelia feliz II ndash Desobediecircncia III ndash O lobo aparece IV ndash O lobo ficou sem almoccedilo V ndash A esperteza da avoacute VI ndash Uma ideia de compadre lobo VII ndash Era uma vez um lobo) evidenciam o papel crucial do lobo no conflito que domina a diegese A estrutura externa sugerida pelos capiacutetulos mencionados corresponde na verdade a um alargamento da extensatildeo da obra original 15 Note-se que quer na versatildeo de Perrault quer na dos irmatildeos Grimm o capuchinho de tecido vermelho foi oferecido agrave menina pela avoacute16 Cf laquoQuase sempre as crianccedilas fazem como o Capuchinho Encarnado Datildeo ouvidos aos maus conselhos e voltam costas a quem lhes quer bem e lhes aponta o bom caminho Depois muitas vezes quando jaacute eacute tarde vem o arrependimentoraquo (Ferreira 1967 16-17) laquoO lobo morrera mas posso garantir-lhes que a pequena natildeo voltou ao atalho da floresta pois nunca esqueceu o perigo corrido e aquele que por sua causa correra a avoacuteraquo (idem ibidem 30)

aproveita para questionar a actualidade ou a importacircncia no presente dos ensinamentos originais do texto tradicional17

Outros textos contemporacircneos de preferencial recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005) denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores portugueses da actualidade18 atestando a forccedila da tradiccedilatildeo oral na literatura e da sua heranccedila primordial

Na novela juvenil O Gorro Vermelho fazendo passar pelo filtro da actualizaccedilatildeo epocal o conto claacutessico e num discurso que se distingue pelo fino humor e por uma invulgar mestria na recriaccedilatildeo de um microcosmos social que com facilidade o leitor actual reconheceraacute Ana Saldanha19 textualiza temaacuteticas que se encontram na ordem do dia a inseguranccedila nas cidades a pedofilia ou a terceira idade Nesta narrativa breve ganha especial relevo como base do processo de transformaccedilatildeo a individualizaccedilatildeo por exemplo da personagem chamada Sofia que representa a Capuchinho da tradiccedilatildeo

A narrativa visual (Banda Desenhada) assinada por Richard Cacircmara eacute de facto uma das que mais se afasta dos hipotextos originais especialmente pela forccedila da sua componente pictoacuterica Sendo construiacuteda a partir da conjugaccedilatildeo equitativa sequenciada das diferentes perspectivas vivenciais20 das personagens Capuchinho Lobo Mau Caccedilador e Avoacutezinha este texto presentifica os espaccedilos e os impulsos que levam as diversas personagens a agir propondo que o leitor siga vinheta a vinheta estas figuras numa viagem em paralelo desde o bosque ou a selva naturais ateacute agrave mais dura selva a cidade Com um humor subtil na histoacuteria recriada Richard Cacircmara acaba assim por lanccedilar algumas criacuteticas sociais

Jaacute a prosa poeacutetica de Matilde Rosa Arauacutejo em O Capuchinho Cinzento propotildee em nosso entender uma reflexatildeo profunda sobre a condiccedilatildeo humana e sobre a transitoriedade da vida um quadro semacircntico que talvez natildeo seja facilmente apreendido pelo destinataacuterio inscrito na dedicatoacuteria laquoPara todas as crianccedilas com ternura imensahellipraquo O diaacutelogo com o

17 Cf laquoMenina ndash Mas eu defendo-me matildee Levo a raqueta levo os patins se aparecer algum ladratildeo bato-lhes com eles Eu natildeo tenho medo nenhumhellip Nunca fui medrosahellip E depois eu hoje natildeo vou para o bosque vou para o jardim zooloacutegico e laacute as feras estatildeo presas (hellip) Este capuz soacute serve para atrapalhar (hellip) A Menina do Capuchinho Vermelho tatildeo ingeacutenua tatildeo patetinha que confundiu a cara da avoacute com o focinho de um lobo Quem poderaacute acreditar nisto (hellip) nunca mais irei ao bosque apanhar flores E para quecirc Chego agrave florista e compro-as que eacute mais praacutetico Levar o cesto da merenda agrave avoacutehellip nada disso levo antes a avoacute agrave pastelaria e ofereccedilo-lhe um sorveteraquo (Gomes 1967 75-76)18 Integra este conjunto de autores Maacuterio Castrim com a peccedila laquoCapuchinho Vermelhoraquo incluiacuteda em Contar e Cardar obra que reuacutene cinco textos ineacuteditos escritos expressamente para o Centro Experimental de Teatro de Aveiro levados agrave cena em 1990 Jaacute em 2003 a obra foi editada pelo CETA (sobre esta obra vide httpwwwprof2000ptusershjcocetapg020100htm) 19 Em termos particulares estes ecos tecircm vindo a materializar-se ainda na ocorrecircncia pontual de personagens resgatadas ao texto-matriz de O Capuchinho Vermelho adquirindo assim muitas vezes em textos diversos contornos proacuteximos aos das personagens-tipo e revestindo-se ateacute de um certo simbolismo Veja-se a este propoacutesito o conto Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal de Ana Saldanha uma narrativa em que a par de outras figuras tornadas imortais pela literatura de raiz oral como o Joatildeo Ratatildeo e uma raposa interagem de forma cordial a Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau retratado como belo atencioso e cordial20 laquoAs peripeacutecias deste conto sobre ldquoO Capuchinho Vermelhordquo desvendam-se ao longo de 62 paacuteginas agraves quais correspondem um igual nuacutemero de momentos para cada personagem Cada uma dessas paacuteginas estaacute dividida em quatro vinhetas (quadrados) que fixam a nossa atenccedilatildeo no que estatildeo a fazer num mesmo e preciso momento da histoacuteria o Capuchinho o Lobo Mau o Caccedilador e a Avoacutezinha Todas as personagens podem desta maneira ser visionadas em simultacircneo pelo leitor Datildeo-se assim a conhecer as implicaccedilotildees que as acccedilotildees de umas tecircm nas restantes e de que forma isto afecta o nosso entendimento da histoacuteriaraquo (laquoGuia de leituraraquo da autoria de Richard Cacircmara)

| 5 |

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 5: O Capuchinho Vermelho revisitado:

aproveita para questionar a actualidade ou a importacircncia no presente dos ensinamentos originais do texto tradicional17

Outros textos contemporacircneos de preferencial recepccedilatildeo infanto-juvenil como O Gorro Vermelho de Ana Saldanha (2002) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) de Richard Cacircmara (2003) ou O Capuchinho Cinzento de Matilde Rosa Arauacutejo (2005) denunciam tambeacutem a pervivecircncia dos efeitos intertextuais do conto claacutessico em questatildeo na actividade de escritores portugueses da actualidade18 atestando a forccedila da tradiccedilatildeo oral na literatura e da sua heranccedila primordial

Na novela juvenil O Gorro Vermelho fazendo passar pelo filtro da actualizaccedilatildeo epocal o conto claacutessico e num discurso que se distingue pelo fino humor e por uma invulgar mestria na recriaccedilatildeo de um microcosmos social que com facilidade o leitor actual reconheceraacute Ana Saldanha19 textualiza temaacuteticas que se encontram na ordem do dia a inseguranccedila nas cidades a pedofilia ou a terceira idade Nesta narrativa breve ganha especial relevo como base do processo de transformaccedilatildeo a individualizaccedilatildeo por exemplo da personagem chamada Sofia que representa a Capuchinho da tradiccedilatildeo

A narrativa visual (Banda Desenhada) assinada por Richard Cacircmara eacute de facto uma das que mais se afasta dos hipotextos originais especialmente pela forccedila da sua componente pictoacuterica Sendo construiacuteda a partir da conjugaccedilatildeo equitativa sequenciada das diferentes perspectivas vivenciais20 das personagens Capuchinho Lobo Mau Caccedilador e Avoacutezinha este texto presentifica os espaccedilos e os impulsos que levam as diversas personagens a agir propondo que o leitor siga vinheta a vinheta estas figuras numa viagem em paralelo desde o bosque ou a selva naturais ateacute agrave mais dura selva a cidade Com um humor subtil na histoacuteria recriada Richard Cacircmara acaba assim por lanccedilar algumas criacuteticas sociais

Jaacute a prosa poeacutetica de Matilde Rosa Arauacutejo em O Capuchinho Cinzento propotildee em nosso entender uma reflexatildeo profunda sobre a condiccedilatildeo humana e sobre a transitoriedade da vida um quadro semacircntico que talvez natildeo seja facilmente apreendido pelo destinataacuterio inscrito na dedicatoacuteria laquoPara todas as crianccedilas com ternura imensahellipraquo O diaacutelogo com o

17 Cf laquoMenina ndash Mas eu defendo-me matildee Levo a raqueta levo os patins se aparecer algum ladratildeo bato-lhes com eles Eu natildeo tenho medo nenhumhellip Nunca fui medrosahellip E depois eu hoje natildeo vou para o bosque vou para o jardim zooloacutegico e laacute as feras estatildeo presas (hellip) Este capuz soacute serve para atrapalhar (hellip) A Menina do Capuchinho Vermelho tatildeo ingeacutenua tatildeo patetinha que confundiu a cara da avoacute com o focinho de um lobo Quem poderaacute acreditar nisto (hellip) nunca mais irei ao bosque apanhar flores E para quecirc Chego agrave florista e compro-as que eacute mais praacutetico Levar o cesto da merenda agrave avoacutehellip nada disso levo antes a avoacute agrave pastelaria e ofereccedilo-lhe um sorveteraquo (Gomes 1967 75-76)18 Integra este conjunto de autores Maacuterio Castrim com a peccedila laquoCapuchinho Vermelhoraquo incluiacuteda em Contar e Cardar obra que reuacutene cinco textos ineacuteditos escritos expressamente para o Centro Experimental de Teatro de Aveiro levados agrave cena em 1990 Jaacute em 2003 a obra foi editada pelo CETA (sobre esta obra vide httpwwwprof2000ptusershjcocetapg020100htm) 19 Em termos particulares estes ecos tecircm vindo a materializar-se ainda na ocorrecircncia pontual de personagens resgatadas ao texto-matriz de O Capuchinho Vermelho adquirindo assim muitas vezes em textos diversos contornos proacuteximos aos das personagens-tipo e revestindo-se ateacute de um certo simbolismo Veja-se a este propoacutesito o conto Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal de Ana Saldanha uma narrativa em que a par de outras figuras tornadas imortais pela literatura de raiz oral como o Joatildeo Ratatildeo e uma raposa interagem de forma cordial a Menina do Capuchinho Vermelho e o Lobo Mau retratado como belo atencioso e cordial20 laquoAs peripeacutecias deste conto sobre ldquoO Capuchinho Vermelhordquo desvendam-se ao longo de 62 paacuteginas agraves quais correspondem um igual nuacutemero de momentos para cada personagem Cada uma dessas paacuteginas estaacute dividida em quatro vinhetas (quadrados) que fixam a nossa atenccedilatildeo no que estatildeo a fazer num mesmo e preciso momento da histoacuteria o Capuchinho o Lobo Mau o Caccedilador e a Avoacutezinha Todas as personagens podem desta maneira ser visionadas em simultacircneo pelo leitor Datildeo-se assim a conhecer as implicaccedilotildees que as acccedilotildees de umas tecircm nas restantes e de que forma isto afecta o nosso entendimento da histoacuteriaraquo (laquoGuia de leituraraquo da autoria de Richard Cacircmara)

| 5 |

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 6: O Capuchinho Vermelho revisitado:

texto claacutessico pressente-se desde o iniacutecio no proacuteprio tiacutetulo que instaura a diferenccedila do ponto de vista das implicaccedilotildees simboacutelicas pela substituiccedilatildeo da cor vermelha pela cinzenta bem como nas evocaccedilotildees intratextuais da histoacuteria do laquocapuchinho vermelho da menina que levava uma merendinha agrave avoacute e encontrou o lobo mauraquo (Arauacutejo 2005 12) que eacute agora a histoacuteria da Velha do Capuchinho Cinzento Tambeacutem a presenccedila aparentemente ameaccediladora do Lobo eacute neste texto alicerccedilante ao niacutevel diegeacutetico21 Retomando alguns elementos da narrativa claacutessica ndash como as figuras do Capuchinho Vermelho e do Lobo e os toacutepicos da infacircncia e do medo ndash Matilde Rosa Arauacutejo metaforiza assim a temaacutetica da velhice e dos diferentes medos que esta encerra

As trecircs narrativas a que por uacuteltimo nos referimos parecem testemunhar o facto de ter sido com a esteacutetica poacutes-moderna22 que se comeccedilou a assistir a uma libertaccedilatildeo notoacuteria relativamente a alguns arqueacutetipos da matriz do Capuchinho Vermelho desafiando-se o leitor infanto-juvenil a partir de textos renovados a olhar critica e criativamente para o mundo que o rodeia e a pensar por si proacuteprio (Malarte-Feldman 2003-2004)

3 Manuel Antoacutenio Pina e Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso tradiccedilatildeo e inovaccedilatildeo

Ao contraacuterio do habitual Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso escrita por Manuel Antoacutenio Pina a partir de seis pinturas a pastel da artista plaacutestica Paula Rego (2005) narrativa que constitui o cerne deste estudo possui em certa medida como hipotexto a matriz francesa23 opccedilatildeo que aliaacutes se afigura consentacircnea com a componente visual operando ambos os autores uma espeacutecie de presentificaccedilatildeo dos seus discursos ou de reciclagem de uma ldquovelha histoacuteriardquo de acordo com o mundo de hoje

Eacute o tiacutetulo que inaugura essa espeacutecie de compromisso entre a liberdade e a memoacuteria que na perspectiva de R Barthes faz nascer a escrita (Barthes 1989) Este elemento paratextual sobressai agrave partida do ponto de vista do lucro semacircntico-estiliacutestico que encerra visto que natildeo ocultando intencionalmente nem o referente nem a sua base de reelaboraccedilatildeo (Mendoza Fillola 2003) motiva a criaccedilatildeo de expectativas e situa o proacuteprio destinataacuterio num contexto literaacuterio especiacutefico convidando agrave aceitaccedilatildeo do pacto literaacuterio proposto Aleacutem disso acaba tambeacutem por estipular uma espeacutecie de potencial duplicidadeambivalecircncia receptiva aspecto que se reveste em certa medida de um cariz inovador e que representa tambeacutem uma pista fornecida ao leitor no que agrave iacutendole do tratamento temaacutetico diz respeito Parece assim M A Pina fazer regressar este conto agrave intenccedilatildeo original do seu hipotexto mais especificamente ao alvo da escrita de Perrault no sentido em que

| 6 |

21 laquoE o lobo devagar devagarinho chega-se Mais agrave pedra ndash o Lobo com botas de espinheiros os olhos de luzeiros uma bocarra enorme mostrando alguns dentes agudos ameaccediladoresraquo (Arauacutejo 2005 37)22 Sobre as estrateacutegias literaacuterias do poacutes-modernismo vide Fokkema 199623 Note-se poreacutem que em nota final de autoria indefinida se explicita que esta narrativa laquosegue de perto (embora talvez nem sempre com a recomendaacutevel fidelidade) quer ldquoLe Petit Chaperon Rougerdquo de Charles Perrault quer a versatildeo do mesmo conto feita mais tarde por Jacob e Wilhelm Grimmraquo (Pina 2005) O proacuteprio desfecho traacutegico do texto de M A Pina corrobora quanto a noacutes a influecircncia mais notoacuteria da matriz perraultiana

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 7: O Capuchinho Vermelho revisitado:

este natildeo o destinando em primeira instacircncia ao puacuteblico infantil tencionava advertir metaforicamente as jovens do tempo de Luiacutes XIV relativamente aos perigos masculinos24 Eacute o tiacutetulo que sugere igualmente desde o iniacutecio que a leitura desta (re)novada narrativa reclama da parte do leitor um conhecimento preacutevio da versatildeo original para que desta feita o contacto com o texto moderno seja potenciado laquoa partir da distacircncia e da tensatildeo intertextual criada entre ambosraquo (Colomer 1996 17)

Esta ligaccedilatildeo de caraacutecter intertextual ao texto claacutessico surge ainda reiterada de modo expliacutecito jaacute no incipit da narrativa apoacutes a foacutermula canoacutenica de abertura (laquoEra uma vezhellipraquo25) atraveacutes da referecircncia agrave aproximaccedilatildeo entre a protagonista desta narrativa e a de um conto com o mesmo nome proacuteprio ndash Capuchinho Vermelho - que a sua avoacute lhe contava quando ela era pequena Atraveacutes do procedimento de representaccedilatildeo narrativa designado como mise en abyme este conto da tradiccedilatildeo domina aliaacutes o primeiro diaacutelogo entre a avoacute e a neta um segmento que eacute introduzido analepticamente e que parece prenunciar o desenvolvimento e o desenlace da diegese A alusatildeo ao texto-matriz neste renovado conto consubstancia-se tambeacutem de forma directa quer na recitaccedilatildeo por parte da avoacute dos versos laquoCuidado meninas que os lobos de bons modos satildeo os mais perigosos de todosraquo (Pina 2005 5) uma evocaccedilatildeo expliacutecita ndash com alteraccedilotildees discursivas - do terminus original da moralidade que Perrault regista apoacutes o desenlace da sua histoacuteria26 e que parece testemunhar a necessidade de cumprir uma funccedilatildeo educativa ou instrutiva quer atraveacutes das referecircncias tanto ao conflito patente neste texto como ao proacuteprio lobo enquanto argumento de autoridade por parte da avoacute27

Mas a opccedilatildeo criativa materializada tanto no acircmbito verbal por M A Pina como visual por P Rego consubstanciando-se fortemente do ponto de vista ideotemaacutetico acaba por polarizar implicaccedilotildees no plano diegeacutetico ao niacutevel do enquadramento espaacutecio-temporal e tambeacutem relativamente agraves personagens

Ainda que ao niacutevel da arquitectura textual eou da sequencializaccedilatildeo narrativa se detectem vaacuterias semelhanccedilas com os textos-matriz designadamente nos momentos da exposiccedilatildeo (explicaccedilatildeo do nome da protagonista e referecircncia ao amor da matildee e da avoacute) do encontro do lobo com a Capuchinho (interpelaccedilatildeo e distracccedilatildeo ndash como na versatildeo germacircnica) com a avoacute (antropofagia ldquotravestimentordquo e espera) e novamente com a personagem principal (imitaccedilatildeo da avoacute referecircncia gradual agraves partes do corpo ndash braccedilos olhos orelhas e boca28 - e degluticcedilatildeo) e por fim a morte do lobo da avoacute e da menina (como na versatildeo francesa)29 verificam-se desvios por exemplo quanto ao motivo da saiacuteda solitaacuteria de casa da pequena heroiacutena - que aqui sem ser incumbida de qualquer tarefa

| 7 |

24 Se o texto que Perrault escreveu natildeo se destinava exclusivamente agraves crianccedilas foi a versatildeo grimmiana que remeteu definitivamente a narrativa O Capuchinho Vermelho para o universo da recepccedilatildeo infantil Cf Zipes 1986 72 e ss25 Um dos estilemas tiacutepicos da narrativa tradicional e dos textos-matriz do Capuchinho Vermelho26 Cf laquoMas ai de noacutes quem natildeo sabe que esses lobos dengosos Satildeo de todos os lobos os mais perigososraquo (Perrault sd 72) Note-se que a moralidade versificada da matriz de Perrault colocada em apecircndice e sendo tipograficamente destacada do corpo textual propotildee um significado a atribuir agrave narrativa 27 Cf laquondash ldquoLembra-te da histoacuteria do Capuchinho Vermelhordquo interveio inquieta a avoacute ldquoLembra-te do lobohellipraquo (Pina 2005 6)28 Repetindo o modelo matricial do diaacutelogo final Lobo-Capuchinho em que gradativamente se mencionam as partes do corpo sugere-se a eminecircncia da intensa aproximaccedilatildeo fiacutesica que redunda em trageacutedia29 Sobre os momentos do conto nas versotildees de Perrault e de Grimm vide Vandendorpe in wwwlettresvottawacavandenPetit20chaperon20rougepdf30 No caso do texto de M A Pina natildeo se observa a transgressatildeo das ldquoregrasrdquo impostas a Capuchinho pela matildee visto que a protagonista ao conversar com o lobo estaacute a falar com uma pessoa conhecida e natildeo com um desconhecido Cf

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 8: O Capuchinho Vermelho revisitado:

apenas se ausenta para ir para a escola - da sua atitude de certa maneira obediente30 no regresso a casa bem como na proacutepria resoluccedilatildeo do noacute problemaacutetico singular da narrativa

Quanto ao enquadramento espaacutecio-temporal nesta obra Capuchinho natildeo encontra o Lobo no bosque ou na floresta mas num jardim espaccedilo que para aleacutem de poder indiciar um cenaacuterio citadino aspecto corroborado por outras unidades proacuteximas do informante presentes no texto31 possui um simbolismo que diverge do habitualmente atribuiacutedo aos espaccedilos naturais tiacutepicos dos textos-matriz32 O facto de o espaccedilo fiacutesico de origem da protagonista ndash a casa onde habita ndash coincidir com o espaccedilo da trageacutedia generalizada (ocorrem aqui trecircs mortes a da avoacute a da proacutepria Capuchinho e por fim a do lobo) ao contraacuterio do que se constata no texto claacutessico em que a casa da avoacute eacute o cenaacuterio da desgraccedila afigura-se-nos igualmente denunciador de uma provaacutevel criacutetica dissimulada agrave inseguranccedila que vivem hoje as crianccedilas

A natureza e a configuraccedilatildeo das personagens bem como a proacutepria relaccedilatildeo entre estas acabam por evidenciar contornos relativamente distintos A este niacutevel importa sublinhar o facto de no texto de Pina longe da tradiccedilatildeo grimmiana apenas intervir uma personagem masculina33 a do Sr Lobo figura retratada inicialmente como humana no seu posicionamento social mas que se revela como animalesca Note-se que a selecccedilatildeo do nome proacuteprio laquoLoboraquo parece sugerir a ldquoconfianccedilardquo que o autor possui em relaccedilatildeo ao receptor e agrave sua capacidade de percepccedilatildeo do sentido impliacutecito deste nome e do proacuteprio jogo semacircntico originado pela oscilaccedilatildeo Lobo (nome proacuteprio) vs lobo (nome comum) um recurso intertextual que mesmo pela crianccedila-leitora naturalmente com uma limitada competecircncia literaacuteria poderaacute ser reconhecido com eficaacutecia

Outra nota dissonante em relaccedilatildeo agraves matrizes francesa e germacircnica reside no facto de neste texto Capuchinho e a sua famiacutelia conhecerem e manterem uma relaccedilatildeo de cordialidade com o vilatildeo dissimulado34 que eacute aliaacutes passado pelo filtro da contemporaneidade35 nesta narrativa Conforme ressalta M A Pina laquoo Lobo eacute amigo da avoacute de Capuchinho Vermelho eacute conhecido dela eacute algueacutem em quem ela tem confianccedila Eacute aliaacutes uma pessoa por assim dizer respeitaacutevel engenheiro e tudohellipraquo (Gomes 2005 55) As atitudes do Sr Lobo (mais adiante na narrativa apenas laquoloboraquo) quando ocorre o encontro casual com Capuchinho ndash arfando a olhaacute-la de alto a baixo e a acariciar-lhe

30 (cont) laquoE tanto Capuchinho Vermelho insistiu tanto pediu que a matildee acabou por ceder - Estaacute bem estaacute bem deixo-te ir sozinha Mas promete-me que tens muito cuidado que atravessas as ruas na passadeira e que natildeo falas com estranhoshellipraquo (Pina 2005 7) 31 Incluem-se neste acircmbito as referecircncias agrave casa onde vivia a famiacutelia de Capuchinho ndash uma casa com um laquogrande quintal cheio de aacutervores de fruta num bairro limpo e tranquiloraquo (Pina 2005 6) ndash agraves ruas com passadeira e ao escritoacuterio onde trabalhava a matildee da protagonista 32 A habitual simbologia positiva do jardim conotado por exemplo com um espaccedilo organizado lugar de crescimento e enriquecimento interior parece natildeo ser totalmente aplicaacutevel agrave situaccedilatildeo recriada na obra em anaacutelise33 No diaacutelogo inicial entre Capuchinho e a avoacute constata-se a alusatildeo a uma figura paterna ausente da diegese porque laquotalvez os pais dela [da Capuchinho da narrativa claacutessica] como os teus [da Capuchinho deste texto de Pina] estivessem separados ou talvez o pai tivesse morridohellipraquo (idem ibidem 5)34 O toacutepico da dissimulaccedilatildeo ou do fingimento ndash que aliaacutes tambeacutem surge reflectido na atitude amistosa do lobo nos textos-matriz (Flor Rebanal 199712) - eacute neste conto recorrente evidenciando-se quer denotativa quer conotativamente Veja-se por exemplo que o vizinho conhecido da famiacutelia de Capuchinho era afinal laquoum lobo disfarccediladoraquo (Pina 2005 9) ndash expressatildeo aqui usada no sentido denotativo - que o lobo se disfarccedilou com as roupas da avoacute e que a proacutepria matildee apoacutes a trageacutedia dissimula com vaidade a crueldade do acto praticado (e talvez a sua dor) usando laquouma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (idem ibidem 16) 35 Vide por exemplo laquoNo jardim encontrou um vizinho que fazia jogginghellipraquo (idem ibidem 9)

| 8 |

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 9: O Capuchinho Vermelho revisitado:

a cabeccedila ndash revestem-se de uma funccedilatildeo indicial relativamente ao sentido conotativo do acto de degluticcedilatildeo repetida por parte desta figura masculina ou agraves implicaccedilotildees sexuais36 (muito raras na escrita de potencial recepccedilatildeo infantil) que o desfecho disfoacuterico dominado pela tragicidade parece prever agrave semelhanccedila do que se observa na matriz perraultiana37 Neste desenlace do qual natildeo se encontra alheia uma certa ambiguidade provocada em larga medida tambeacutem pela leitura cruzada texto verbal-texto pictoacuterico aleacutem da violecircncia e da frieza com que a matildee mata o lobo decorrentes da agnorisis perscruta-se uma parcial inversatildeo do topos do amor maternal38 ou do sofrimento perante a perda de uma filha39

Das versotildees francesa e germacircnica permaneceram na obra em anaacutelise alguns elementos nos quais se detecta uma forte dimensatildeo simboacutelica Referimo-nos por exemplo agrave cor vermelha40 cuja presenccedila reiterada se constata quer no texto verbal na referecircncia ao laquocasaco vermelho de latilde com capuzraquo (Pina 2005 5) oferecido pela avoacute a Capuchinho Vermelho quer na menccedilatildeo agrave cor do vestido da matildee41 apoacutes o desfecho traacutegico quer tambeacutem nas representaccedilotildees visuais desta personagem criadas por P Rego Esta incidecircncia cromaacutetica comunica-se ainda aos proacuteprios caracteres graacuteficos que compotildeem diversos segmentos textuais42 Tambeacutem a presenccedila do lobo como explicitaacutemos persiste no conto de Pina e ainda que apresentado agrave partida como um respeitaacutevel ser humano acaba por in extremis se (tra)vestir em definitivo na pele do animal43 e portanto manter a tradicional carga temiacutevel e maleacutefica perpetuando-se como laquoemblema da voracidaderaquo (Ferber 1999 241) da hipocrisia e mantendo igualmente neste caso o seu papel de predador sexual masculino

Mas importa de igual forma ressaltar que a novidade deste conto de M A Pina surge ainda solidamente corporizada na inversatildeo do processo habitual de produccedilatildeo de uma obra literaacuteria e das suas proacuteprias ilustraccedilotildees conforme destaca o autor em resposta a uma entrevista que anuncia a publicaccedilatildeo do conto em anaacutelise laquoa ilustraccedilatildeo costuma ser posterior agrave escrita e neste caso escrevi uma histoacuteria natildeo soacute a partir de uma obra plaacutestica existente como ainda a partir de uma narraccedilatildeo tambeacutem ela preacute-existenteraquo (Gomes 2005 55) A proacutepria presenccedila matricial do discurso plaacutestico de P Rego como explicita M A Pina

| 9 |

36 Cf laquo(hellip) o lobo pondo-se de peacute saltando sobre Capuchinho Vermelho e comendo-a Quando acabou de comer Capuchinho Vermelho o lobo lambendo os beiccedilos exausto e satisfeito achou que era melhor ficar por ali e dormir um pouco enquanto fazia a digestatildeo (hellip) A matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passadoraquo (Pina 2005 14) 37 Este final infeliz contraacuterio aos modelos comuns da literatura oral representa para alguns estudiosos um dos elementos que levantam a duacutevida quanto agrave ligaccedilatildeo genesiacuteaca agrave tradiccedilatildeo do texto de Perrault (Shavit 2003 33-34) 38 Podemos no entanto interpretar tambeacutem esta atitude profundamente violenta da matildee como um reflexo da revolta perante as consequecircncias que a sua falta de tempo para acompanhar a filha tiveram39 Cf laquoA matildee voltou entatildeo do trabalho e deu com o lobo a dormir na sala e as roupas de Capuchinho Vermelho espalhadas pelo chatildeo Em grande afliccedilatildeo percebeu logo o que se tinha passado Cheia de raiva correu ao anexo do quintal trouxe uma forquilha e espetou-a no lobo com toda a forccedila matando-o Seguidamente pegou numa grande faca e tirou-lhe cuidadosamente a pele ldquoAssim como assimrdquo disse a matildee ldquosempre fico com uma estolahelliprdquo Nos dias seguintes a toilette da matildee foi objecto de grande admiraccedilatildeo entre as colegas do escritoacuterio um vestido vermelho rubro que lhe ficava muito muito bem e uma beliacutessima pele de lobo ao pescoccediloraquo (Pina 2005 16)40 Sobre a ambivalecircncia simboacutelica desta cor vide Erny 2003 230-23141 O facto de matildee e filha ostentarem atraveacutes da indumentaacuteria uma forte ligaccedilatildeo agrave cor vermelha acaba por aproximaacute-las de modo significativo42 A estrateacutegia da alternacircncia entre o negro e o vermelho na impressatildeo dos segmentos textuais poderaacute indiciar um certo fatalismo que desde o iniacutecio parece marcar a narrativa 43 Cf laquoO vizinho [Sr Lobo] (que sem que ningueacutem soubesse era um lobo disfarccedilado) disse-lhe entatildeo (hellip)raquo (Pina 2005 9) A informaccedilatildeo que o narrador coloca entre parecircntesis sinaliza a potencial cumplicidade entre o emissor e o receptor conformando uma importante pista interpretativa para a descodificaccedilatildeo do ldquoterminusrdquo da narrativa 44 A este propoacutesito vide Torres 2003

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 10: O Capuchinho Vermelho revisitado:

rompe com os modelos tradicionais de ilustraccedilatildeo do conto O Capuchinho Vermelho44 Os seis desenhos45 que enformam a componente pictoacuterica do conto em anaacutelise todos datados de 2003 e compostos a partir da mesma teacutecnica ndash pastel sobre papel ndash satildeo dominados por figuras humanas quase todas grosseiras (com a excepccedilatildeo da Capuchinho) a tocar por vezes o grotesco ndash que eacute aqui o belo46 ndash e das quais sobressaem a dureza a secura e a violecircncia das expressotildees faciais e corporais Trata-se pois de um subversivo relato visual que tem como leitmotiv o conto claacutessico e que eacute tecido em torno da famiacutelia das relaccedilotildees entre os seus elementos (todos femininos) e da perturbaccedilatildeo vinda de um elemento externo masculino pintado disforicamente enquanto ser que suscita a agressividade por parte da figura materna

4 Reflexotildees finais

Em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso detecta-se portanto a co-presenccedila transparente de dois preacute-textos que embora de iacutendole distinta e absorvidos de modo tambeacutem distinto ndash um verbal coincidente com o conto claacutessico e outro pictoacuterico ndash antecedem igualmente a sua produccedilatildeo No primeiro caso o da absorccedilatildeo da narrativa tradicional importa sublinhar que a relaccedilatildeo entre ambos os objectos literaacuterios se pode classificar do ponto de vista intertextual como laquointegraccedilatildeo-instalaccedilatildeoraquo e laquointegraccedilatildeo-sugestatildeoraquo a partir de referecircncias precisas e simples (Samoyault 2001 43-44) que laquotrocando as voltas agrave histoacuteria que o leitor traz engatilhadaraquo (Gomes 2005 55) acordam nele uma valiosa memoacuteria e em uacuteltima instacircncia concretizam uma espeacutecie de reactivaccedilatildeo do sentido ou de ldquoreciclagemrdquo de uma componente semacircntica que se pretende manter viva Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso situando-se assim num vasto universo literaacuterio colectivo no qual Capuchinho Vermelho tem vivido muacuteltiplas vidas (como sugerimos atraveacutes das obras de que demos notiacutecia) resultantes da transfiguraccedilatildeo de motivos tradicionais com o propoacutesito de veicular novas ideias alcanccedilar novos leitores e espelhar novos contextos culturais demarca-se pelas razotildees enunciadas do conjunto de textos portugueses em que se pressentem alusotildees ou reminiscecircncias da narrativa claacutessica

Questotildeesinquietaccedilotildees tatildeo actuais como a inseguranccedila nas cidades o perigo o medo a pedofilia a sexualidade a desagregaccedilatildeo familiar o caraacutecter absorvente da carreira profissional uma certa banalizaccedilatildeo da morte a vaidade e a tensatildeo permanente entre a essecircncia e a aparecircncia (ser vs parecer) isotopia aqui em nosso entender inequivocamente alicerccedilante satildeo em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso laquoa mesma e uma outra histoacuteriaraquo (Gomes 2005 55) como sustenta o seu autor ficcionalizadas de forma criativa e inovadora quer por M A Pina quer por P Rego

| 10 |

45 As seis obras de Paula Rego intitulam-se Little Red Riding Hood on the Edge Happy Family ndash Mother Red Riding Hood and Grandmother The Wolf The Wolf chats up Red Riding Hood Mother Takes Revenge e Mother Wears the Wolfrsquos Pelt Note-se que a incursatildeo artiacutestica de Paula Rego na literatura preferencialmente recebida por crianccedilas se pode observar em outras obras recreativas como as que possuem como ponto de partida Peter Pan Pinoacutequio e Branca de Neve46 Cf Paula Rego - laquoO grotesco eacute belo (hellip) O grotesco vem da gruta do profundo coisas caacute de dentrohellipraquo (Ferreira 2003 61)

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 11: O Capuchinho Vermelho revisitado:

Assumido desde o iniacutecio o diaacutelogo desta obra de Pina com o texto claacutessico enquanto referente socialmente partilhado - um jogo de caraacutecter intertextual que aliaacutes corresponde a uma das constantes artiacutesticas contemporacircneas (Colomer1996) e que se afigura potencialmente feacutertil na promoccedilatildeo de uma competecircncia literaacuteria - produz-se explicitamente eacute inegavelmente fundacional parcialmente desviante mas aberto a uma laquoleitura actual das eternas e atemporais preocupaccedilotildees do ser humanoraquo (Perera Santana 2002 22) E eacute neste sentido que pensamos poder afirmar que no reencontro com o texto miacutetico drsquo O Capuchinho Vermelho que as artes harmonizadas de M A Pina e P Rego em Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso proporcionam se esboccedila com qualidade literaacuteria uma dimensatildeo eacutetica ensaiando-se uma reflexatildeo sobre a actual condiccedilatildeo humana um apelo contra a alienaccedilatildeo e a favor da limpidez do olhar e do ser

Referecircncias Bibliograacuteficas

ARAUacuteJO Matilde (2005) O Capuchinho Cinzento Prior Velho Paulinas Editora (ilustraccedil Andreacute Letria)

AZEVEDO Maria Paula (1923) Theatro para Creanccedilas Lisboa Libanio da Silva (ilustraccedil Milly Possoz)

BASTOS Gloacuteria (1997) A Escrita para Crianccedilas em Portugal no seacuteculo XIX Lisboa Caminho

BARTHES Roland (1989) O Grau Zero da Escrita Colec laquoSignosraquo Lisboa Ediccedilotildees 70

BECKETT Sandra L (2002) Recycling Red Riding Hood NY Routledge

BECKETT Sandra L (2004) laquoRecycling Red Riding Hood in a Comic Moderaquo (retirado de wwwsacbforgza200420paperssandra20beckettrtf no dia 031005)

CAcircMARA Richard (2003) O Capuchinho Vermelho (na versatildeo que as crianccedilas mais gostam) Lisboa Ediccedilotildees Polvo

COLOMER Teresa (1996) laquoEterna Caperucita La renovacioacuten del imaginario colectivoraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 87 Out de 1996 pp 7-19

COLOMER Teresa (2000) laquoLa formacioacute i renovacioacute de lrsquoimaginari cultural lrsquoexemple de la Caputxeta Vermellaraquo in LLUCH Gemma (ed) De la narrativa oral a la literatura per a infants Invencioacute drsquouna tradicioacute literagraveria Alzira Ediciones Bromera pp 55-93

CORTEZ Maria Teresa (2001) Os Contos de Grimm em Portugal A recepccedilatildeo dos Kinder-undHausmarchen entre 1837 e 1910 Coimbra MinervaCoimbraCentro Interuniversitaacuterio de Estudos GermaniacutesticosUniversidade de Aveiro

ERNY Pierre (2003) Sur les Traces du Petit Chaperon Rouge Paris LrsquoHarmattan

| 11 |

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 12: O Capuchinho Vermelho revisitado:

FERBER Michael (1999) A Dictionary of Literary Symbols Cambrigde Cambridge University Press

FERREIRA Aline (2003) laquoO grotesco eacute belo (entrevista a Paula Rego)raquo in Ler Primavera 2003 Nordm 58 pp 56-67

FERREIRA Leyguarda (1967) O Capuchinho Encarnado novela Infantil contada agraves crianccedilas Colec laquoManecas Nova Seacuterieraquo Lisboa Romano Torres (ilustraccedil Amorim)

FLOR REBANAL Javier (1997) laquoCaperucita Roja cumple 300 antildeos (hellipy todaviacutea estaacute como una jovencita)raquo in Peonza (Revista de Literatura Infantil e Juvenil) Nordms 42-43 Dez de 1997 pp 11-18

FOKKEMA Douwe (1996) laquoStrategies and Devices in Postmodernist Literature (or Why Stanley Fish Was Wrong or Wasnrsquot He)raquo in LOSA Margarida L et alii (orgs) (1996) Literatura Comparada Os Novos Paradigmas Porto Associaccedilatildeo Portuguesa de Literatura Comparada pp 423-432

GOMES Alice (1967) A Nau Catrineta e a Outra Histoacuteria do Capuchinho Vermelho Lisboa Portugaacutelia Editores (2ordf ed - 1972) (ilustraccedil Cacircmara Leme)

GOMES Sara (2005) laquoQuem ainda tem medo do lobo mauraquo in Puacuteblico 11 de Marccedilo de 2005 p 55 (entrevista a Manuel Antoacutenio Pina)

GONZAacuteLEZ MARIacuteN Susana (2003) laquoExistiacutea Caperucita Roja antes de Perraultraquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 158 Marccedilo de 2003 pp 17-22

GRIMM (1992) laquoCapuchinho Vermelhoraquo in Os mais belos contos de Grimm Porto Civilizaccedilatildeo pp 3-8 (traduccedilatildeo Maria Joseacute Costa ilustraccedil Alexander Koshkin)

JUNQUEIRO Guerra (1978) laquoO Chapelinho Encarnadoraquo in Contos para a Infacircncia Porto Lello amp Irmatildeo pp 193-199 (ilustraccedil Laura Costa)

MALARTE-FELDMAN Claire (2003-2004) laquoFolk Materials Re-Visions and Narrative Images The Intertextual Games They Playraquo in Childrenrsquos Literature Association Quaterly Inverno 2003-2004 Vol 28 Nordm 4 pp 210-218

MENDOZA FILLOLA (2003) laquoLos intertextos del discurso a la recepcioacutenraquo in MENDOZA FILLOLA A e CERRILLO P Intertextos Aspectos sobre la recepcioacuten del discurso artiacutestico Cuenca Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha pp 17-60

PERERA SANTANA Aacutengeles (2002) laquoCaperucita Roja en la LIJ contemporaacutenearaquo in CLIJ (Cuadernos de Literatura Infantil y Juvenil) Nordm 151 Julho-Agosto 2002 pp 15-22

PERRAULT C (sd) laquoO Capuchinho Vermelhoraquo in Contos ou Histoacuterias de Tempos Idos Lisboa Publicaccedilotildees Europa-Ameacuterica pp 69-72 (traduccedilatildeo Mordf Teresa Cardoso ilustraccedil Gustave Doreacute)

PINA Manuel Antoacutenio (2005) A Histoacuteria do Capuchinho Vermelho contada a crianccedilas e nem por isso PuacuteblicoFundaccedilatildeo de Serralves (ilustraccedil Paula Rego)

| 12 |

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |

Page 13: O Capuchinho Vermelho revisitado:

SALDANHA Ana (2002) Ningueacutem daacute Prendas ao Pai Natal Porto Campo das Letras (2ordf ed) (ilustraccedil Joana Quental)

SALDANHA Ana (2002) O Gorro Vermelho Colec laquoEra uma vezhellip Outra Vez2raquo Lisboa Caminho

SAMOYAULT Tiphaine (2001) Lrsquo Intertextualiteacute Meacutemoire de la litteacuterature Paris Eacuteditions Nathan

SHAVIT Zohar (2003) Poeacutetica da Literatura para Crianccedilas Lisboa Caminho

SOARES Luiacutesa Ducla (2001) laquoGuerra Junqueiro e a Literatura para Crianccedilasraquo in GOMES Joseacute Antoacutenio (dir) (2001) Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infacircncia e a Juventude] Nordm 9 pp 7-16

TORRES Maria Goreti (2003) A Arte de Contar Histoacuterias com Palavras e Imagens ndash O Capuchinho Vermelho Braga Ediccedilotildees APPACDM

VANDENDORPE Christian laquoDrsquoun conte agrave sa parodie Le Petit Chaperon Rouge de Jacques Ferronraquo (retirado de wwwlettresvottawacaVandenPetitchaperon20rougepdf no dia 101005)

ZIPES Jack (1986) Les Contes de Feacutees et lrsquo Art de la Subversion Paris Payot

| 13 |