O Diálogo Segundo Enunciadores Incertos

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    personagem teatral no escapouda desconana de nossa mo-dernidade. Aps a virada do s-culo XX, foi despojado progressi-

    vamente de tudo que contribua para fazerdele um indivduo possvel, no mnimoplausvel, tal como postulava a iluso mi-mtica burguesa (ancoragem referencial,conscincia estvel e intencional, compor-tamento interpretvel em termos de umaracionalidade psicolgica), para nalmen-te aparecer como um dado relativamenteacessrio, no mnimo contingente, dentrodas escritas dos ltimos trinta anos. Os au-tores, tomando posio acerca do estado dacrise diagnosticado por Robert Abirached3,acabaram por restringir-se unicamente aoteatro da palavra, e substituram a explo-rao potica da enunciao pelo funcio-namento teleolgico do dilogo absoluto.4A incerteza que estatuto do personagemest vinculada desagregao do modeloaristotlico: na medida em que a ao no mais a fora propulsora do drama; em quea palavra no dene mais necessariamen-

    te o caminho a seguir; em que o persona-gem se v de fato privado da continuidadesubstancial e actancial de sua identidade,e vice-versa. Enquanto os enunciadoresforem concebidos como agentes fabula-

    1 Publicado sob o ttulo Le dialogue aux nonciateurs incertains, in: Ryngaert, Jean-

    Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD

    2005, p.31-35. Traduo: Stephan Baumgrtel e Jos Ronaldo Faleiro.

    2 Julie Sermon docente e pesquisadora da Universidade Lyon 2. Seus interesses de

    pesquisa so dramaturgias modernas e contemporneas, textuais e cnicas; histria e

    esttica da encenao; a cena e as tecnologias, entre outros.

    3 Abirached, Robert. La Crise du personnage dans le thtre modern. Paris:

    Grasset, 1978.

    4 Ryngaert, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporneo. So Paulo: Martins Fontes.

    1999.

    res5, sero donos de sua palavra e forma-ro uma unidade com ela: imagem de suaidentidade; armao de sua conscincia eexpresso de seus sentimentos, ela pre-

    cisamente aquilo que os constri comoprotagonistas. Dentro dos teatros no-instrumentalizados6 aqueles que no soa prioridirecionados perseguio de umaintriga ou ao agenciamento de uma narra-tiva os personagens, ao contrario, pare-cem [muitas vezes] ser muito mais atraves-sados pela palavra do que a carregarem oudo que serem a sua origem. No so maisa condio necessria dos enunciados, quese desenvolvem segundo sua prpria l-

    gica, inventando suas prprias dramatur-gias. O dilogo se constri na margem, nacontramo, s expensas dos interlocutores,cuja individualidade e autonomia tendema se anular simultaneamente.

    Dentro da continuidade das escritas donouveau roman, certos autores abrem modaqui para a frente de identidades ctciosdenidas, para s se dedicar ao desao dofalar e da voz: os enunciadores ento se

    veem investidos no papel mnimo de ser opolo de emisso, sem que as palavras queeles expem construssem algo da ordemde uma subjetividade. Esta exposio doabandono da suposta individualidade dosenunciadores cria espao para uma duplacongurao.

    A primeira consiste em expulsar a

    5 No original fabulaires, um neologismo que combina fable, fabuleux e o suxo

    aire, no sentido de denir uma qualidade: so pertentes ao mundo das fabulas, da

    co. [Nota do tradutor].6 Parto da oposio estabelecida por Michel Vinaver nas quais a palavra instrumento

    da ao e aquelas nas quais a palavra ao. In: VINAVER, Michel. Ecritures

    dramatiques. Essais danalyse de textes de thtre, Actes Sud, coll. Babel,

    2000.

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    enunciadores incertos

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    Julie Sermon2

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    prpria noo do dilogo: os autores nopropem nada alm de um tecido de vozesalternadamente justapostas, sincopizadas,entrelaadas, que prosseguem essencial-mente por meio de declinaes, repetiese variaes. Esse modelo privilegia a di-

    menso musical e rtmica da palavra e ter-mina na maioria das vezes em uma formade coralidade: todos os enunciadores par-ticipam de um mesmo movimento; contri-buem para compor uma narrativa em for-ma de partitura, cujos efeitos de eco e derupturas se referem somente atividadepotica de enunciao. O jogo e a virtuo-sidade tcnica do ator tm a tendncia dese sobrepor, parcial ou completamente, aos

    efeitos de co.O segundo modelo no rejeita de modoto radical a narrao, mas j no torna osenunciadores responsveis por isso: os au-tores inventam espcies de metadilogosque fazem uso de elementos implcitos daenunciao e criam conitos que so nadaalm de metalingusticos. Os enunciadoresse apresentam ao espectador menos comoindivduos do que como a encarnao depequenas ilhas de palavras, de tropis-mos, deixando-se seduzir pelo que Ar-naud Rykner nomeia logodrama.7

    Outra tendncia de escrita contempo-rnea, que se inscreve sobretudo dentro deuma lgica de conversao, esvazia menosa noo de personagem do que inverteseus pressupostos tradicionais. No incioda escrita, os autores se contentam com umtipo de grau zero do personagem: ele umfalador, um ser somente tranado pelas pa-

    lavras que pronuncia e no uma identida-de tirada da prpria realidade pelo tempode uma representao. Se o personagemtradicional fala conforme aquilo que po-demos esperar de seu perl (psicolgico,sociolgico), as identidades assim postasem jogo se armam ao contrrio cruamen-te, em sua essncia teatral mnima: des-providas de seus atributos substanciaisilusionistas, no so mais as avalistas, mas

    o efeito do dilogo que elas expem di-

    7 RYKNER, Arnaud. Thtres du nouveau roman. Sarraute, Pinget, Duras. Paris:

    Jos Corti, 1988.

    logo que obedece somente a sua prprialgica de gestao, a suas prprias neces-sidades poticas, frequentemente contrriasaos pressupostos realistas, sem que seja,em todo caso, subordinado s intenes ou vontade daqueles que o emitem. Termi-

    namos em um tipo de inverso logonto-lgica: os enunciadores s se armam nodecorrer e ao sabor das trocas [verbais]. unicamente a singularidade de suas voltase de sua construo que permite deni-las,mais ou menos exatamente/com exatido,por um/num tempo mais ou menos longo.

    Com isso, evidente que a integrida-de ccional dos enunciadores se encontraprofundamente abalada: eles existem sem

    espessura e sem continuidade, pois tudo seus estados, seus humores, suas rea-es submetido aos uxos e reuxosda palavra, sem outra justicativa. Simul-taneamente, as exploraes na enunciaos quais as escritas se entregam tambmas fazem adquirir uma densidade e umaopacidade novas: se os enunciadores nose aparentam mais com simulacros de in-divduos que dividem um pedao de exis-tncia ilusria, eles se impem como seresde palavras, com singularidade irredut-vel, ao mesmo tempo barqueiro e parte in-teressada, em um universo que no existeantes de sua enunciao. Ao entregar aossitcomse a outros reality shows o privilgiode uma incessante dramatizao das rela-es humanas (segundo esquemas cadavez mais formatados e dilogos cada vezmais gastos), bem como as identicaesexperimentadas que tal fato supe e gera,

    os autores, por sua parte, preferem explo-rar a capacidade que a lngua possui de de-nir e de ocasionar outras percepes doreal. A emancipao do dilogo no que dizrespeito a seus enunciadores confronta oespectador com mundos onde tanto o sen-tido quanto as identidades no so maisdados, mas precisam ser construdos, den-tro da interao verbal e dos espaos de in-determinao causada pelas escritas. Neste

    sentido, o estado de carncia do persona-gem sobretudo um apelo participaodo espectador no processo de [construir]

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    sentido: abre um espao dialgico que oenvolve na constituio de outros crculosde referncias, e lembra a ele que a pes-soa, longe de ser algo pronto, sempre umdado em potencial.