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  • O MARXISMO DE CHE GUEVARA E OO MARXISMO DE CHE GUEVARA E O

    SOCIALISMO NO SCULO XXISOCIALISMO NO SCULO XXI11

    O AUTOR

    CARLOS TABLADA (Havana, 1948).

    Licenciado em Sociologia e Filosofia, Doutor em Cincias Econmicas. Instrutor, Professor Assistente do Departamento de Filosofia da Universidade de Havana (1967-1971). Pesquisador do Vice-Decanato de Humanidades da Universidade de Havana (1971-1973). Professor Titular adjunto da Universidade de Havana desde 1988. Membro do Centro de Pesquisas de Economia Mundial (CIEM), Havana, desde 1991. Pesquisador Titular do Centro Tri-continental (CETRI) e redator (fevereiro de 1996 maro de 2004) de sua revista em francs Alternatives Sud, Louvain-la-Neuve, Blgica. Membro da direo da mesma revista na edio italiana, Milan. Fundador de El Outro Dvos e do Frum Mundial de Alternativas (FMA), responsvel pelas publicaes do mesmo. Membro do jri do Prmio Casa das Amricas, 1992.

    Como Professor convidado, tem ministrado cursos, seminrios, aulas e conferncias em 155 universidades de 31 pases da Amrica Latina, Amrica do Norte, Europa e frica.

    Tem escrito e publicado vrios livros e dezenas de artigos e ensaios em revistas especializadas. Trabalhou durante 17 anos como diretor econmico de uma empresa nacional cubana (EMPROVA) da Secretaria do Conselho de Estado da Repblica de Cuba.

    Carlos Tablada membro da Unio Nacional de Escritores e Artistas de Cuba (UNEAC). Foi vencedor do Prmio Casa das Amricas em 1987 com o livro El Pensamiento Econmico de Ernesto Che Guevara, do qual foram publicadas 32 edies e duas reimpresses em 13 pases e em 9 idiomas, com mais meio milho de exemplares publicados at esta data.

    1 Conferncia apresentada pelo Dr. Carlos Tablada Prez na Palestra Internacional Che Guevara, celebrada na Universidade de Pau, Frana.

  • Permitam-me agradecer ao Centro de Altos Estudos Fernando Ortiz,

    dirigido e fundado pelo Dr. Eduardo Torres Cuevas, e aos dirigentes e

    membros do Laboratoire de Recherches en Langues et Littratures Romaines,

    tudes Basques, Espace Caraibe de la Universit de Pau, pelo convite a este

    encontro acadmico e humano, e particularmente ao professor Jean Ortiz que

    possibilitou minha presena aos senhores; igualmente desejo tambm

    agradecer queles que tornaram possvel a magnfica organizao deste

    evento.

    Vrios companheiros tm solicitado que inicie esta palestra,

    contando a histria do meu livro O Pensamento Econmico de Ernesto Che

    Guevara, filho da alma, que, em vinte anos, desde que foi publicado pela

    primeira vez, supera as 32 edies e trs reimpresses em nove idiomas, com

    mais de 500 mil exemplares vendidos, sem contar as edies piratas em

    dezenas de pases.

    Aos dezenove anos, comecei a trabalhar como professor no

    Departamento de Filosofia da Universidade da Havana, em abril de 1967. No

    final desse ano, assisti a uma conferncia ditada por um professor sovitico na

    Escola de Cincias Polticas. O professor, em seu discurso, afirmou que a

    Revoluo Cubana de 1959 havia triunfado em funo da greve geral, que a

    luta armada na Serra e na plancie tinha sido irrelevante, que Che Guevara

    estava profundamente equivocado em todas suas crticas economia da

    URSS e dos pases do Leste.

    Como ningum se manifestou, pedi a palavra. Em sua primeira

    afirmao, consegui aportar argumentos convincentes, avalizados pelos fatos e

    reconhecidos at pelos inimigos da revoluo. Quando tentei rebater as crticas

    a Che, percebi que no conhecia suficientemente Che Guevara; amava-o,

    respeitava-o, mas no podia rebater nenhum dos argumentos expostos pelo

    professor sovitico.

    Sa da conferncia aborrecido comigo mesmo e fui direto comprar

    livros escritos por Che. Apesar de percorrer vrias livrarias, no encontrei

  • nenhum. Tampouco achei livros escritos sobre Che. Acabei parando na

    Biblioteca Nacional de Cuba e revisando revistas e jornais.

    As idias de Che Guevara, principalmente seu modelo alternativo ao

    socialismo real, no estavam expostas ordenadamente em livros, em uma obra

    metodolgica, mas espalhadas em dezenas de artigos polmicos, cartas,

    gravaes e na obra viva do funcionamento de 152 empresas industriais, com

    2.200 unidades de produo e com mais de 200 mil trabalhadores ao longo de

    toda a ilha.

    Propus-me, em 1969, ao desafio de recopilar, estudar e apresentar,

    em um livro, a essncia das idias econmicas, sociais, polticas, ticas e

    filosficas de Ernesto Che Guevara. Em julho de 1984, quinze anos depois,

    alcancei meu objetivo. Trs anos mais tarde, meu livro tornou-se conhecido por

    ter conquistado o Prmio Casa das Amricas de 1987.

    Voltando a 1968. Nesse ano solicitei s autoridades do

    Departamento de Filosofia da Universidade de Havana um ano sabtico para ir

    trabalhar de boiadeiro, o que me foi concedido. Entre vacas, terneiros e pasto,

    concebi um plano que abarcaria cinco pesquisas. Hoje estou culminando a

    segunda, iniciada h dezenove anos, em 1988.

    Em maio de 1969, regressei ao Departamento de Filosofia e, em 1

    de junho, enquanto nascia minha primeira filha, Johanna Ruth, comecei a

    escrever O Pensamento Econmico de Ernesto Che Guevara.

    No final de 1971 meu centro de trabalho foi fechado, e, com isso, a

    proibio de seguir sendo professor. Continuei por minha conta (durante o

    tempo livre, depois de trabalhar em outra coisa para manter a famlia) a

    pesquisa sobre o pensamento de Che. Ainda que no estivesse na moda e

    fosse tabu durante os anos de cpia do modelo sovitico, no abandonei os

    estudos do Che.

    Aprendi com Che que devia me aprofundar no pensamento e na obra

    de Fidel Castro e retomar os estudos que anteriormente fizera sobre Jose Marti

    para poder sentir-me capacitado a comear a trabalhar com os trs pensadores

  • simultaneamente. Em 1975, nas vsperas do 1 Congresso do Partido

    Comunista de Cuba, quando se comeava a assumir o modelo sovitico,

    entreguei direo do pas uma das primeiras verses do livro, que teve um

    total de 27. Nela eu discrepava do dogmatismo em que vivamos e do que nos

    avizinhvamos na economia.

    O livro no teria chegado a termo se no houvesse trabalhado no

    sistema empresarial econmico cubano. Fui diretor econmico e de servios

    dos Planos Especiais de Educao (1973- 1975) e, a partir de 1976, da

    EMPROVA, uma empresa nacional de produo e servios da Secretaria do

    Conselho de Estado da Repblica de Cuba que contava com 2.823

    trabalhadores e 52 fbricas e unidades de servios.

    Trabalhar na produo e nos servios permitiu-me, em primeiro

    lugar, pr prova, com bons resultados, o sistema econmico criado e

    desenvolvido por Che e, a partir de 1977, aplicar o modelo sovitico; por isso

    consegui analisar, como cubano, dirigente empresarial e pesquisador, o efeito

    de ambas as concepes na economia e na viso de mundo das pessoas.

    Muitos amigos aconselharam-me, de boa f, l pelos fins dos anos

    1970, que deixasse a pesquisa sobre o pensamento de Che, porque estava

    desperdiando minha vida e meu tempo em um tema em que no havia

    interesse oficial. No o fiz; continuei contra a corrente. Amvamos Che, Che e

    as crianas, Che ntegro, Che guerrilheiro, Che e os idosos, mas no tnhamos

    um conhecimento slido de seu pensamento.

    H consenso que meu livro O Pensamento Econmico de Ernesto

    Che Guevara resgata esse outro Che e abriu a possibilidade em Cuba de

    pesquisar, sem temor, seu pensamento econmico, poltico, social, e filosfico.

    A partir da publicao dessa obra, para o bem de todos, comearam aparecer

    dezenas, centenas de artigos e livros e at de ctedras sobre Che, e essa foi a

    minha maior satisfao.

  • Todo o dinheiro recebido pelos direitos autorais tenho-o doado

    sade de meu povo, atravs do organismo a que perteno h trinta anos, a

    Secretaria do Conselho de Estado da Repblica de Cuba.

    Na pesquisa, segui o mtodo de no ler nada que no fosse escrito

    por Che. No li livros nem artigos sobre Che nesses quinze anos dedicados a

    pesquisar e escrever.

    Em Moscou, em 1986, dois anos depois de terminar de escrever,

    enquanto mexia na Biblioteca do Instituto de Amrica Latina da Academia de

    Cincias da Unio Sovitica, no qual me encontrava para defender o Grau de

    Doutor em Cincias Econmicas, encontrei a obra O Pensamento de Che de

    Michael Lwy, a quem conheci no Departamento de Filosofia no incio dos anos

    1970, quando nos visitou. um magnfico livro que recomendo a leitura e que

    hoje lhe rendo homenagem. Nestor Kohan, no prlogo edio 29 de O

    Pensamento Econmico de Ernesto Che Guevara refere-se justamente obra

    de Lwy.

    Desejo agradecer s pessoas de Luis Alvarez Rom, ministro da

    Fazenda nos anos em que Che foi ministro da Indstria, Fajid Ali Cordov,

    Orlando Borrego, Hayde Santamara, Elena Gil, Ral Roa Garcia, Clia

    Sanchez Manduley, Dr. Jos M. Miyar Barrueco, Dr. Osvaldo Martinez, Dr.

    Jos Luis Rodriguez, Efrn Daz Acosta, Dr. Oscar Pino Santos, Maria Julia

    Garaitonandia, Ricardo Alarcn de Quesada e a Fidel Castro Ruz. A alguns por

    terem me facilitado textos inditos do Che e a outros por suas crticas s

    diferentes verses e pelo apoio efetivo com que me brindaram, particularmente

    Efrn, Osvaldo, Dr. Miyar e Fidel.

    II

    O pensamento, os sentimentos e a ao de Ernesto Che Guevara

    surgiram, expressaram-se e realizaram-se no centro do processo

  • revolucionrio mais destacado e hertico da segunda metade do sculo XX, a

    Revoluo Cubana. Che Guevara pde assumi-la criativamente porque teve

    trs componentes em sua formao que o predispuseram a isto:

    A formao cultural, tica e social progressista (dada

    pela famlia e pelo meio social), colocou sua

    disposio o mais positivo da cultura ocidental

    acumulada.

    A histria da Argentina (pas onde nasceu e cresceu)

    e da Repblica Espanhola e suas lutas.

    Sua experincia em quase todos os pases da

    Amrica Latina (do Caribe e do sul dos Estados

    Unidos) em seus primeiros 23 anos de vida.

    Por outra parte, a Revoluo Cubana contava com todos os

    ingredientes necessrios para impactar o jovem Che:

    Um pensamento revolucionrio autctone de razes

    profundas, nutrido do melhor da cultura mundial e que

    tinha colocado a tica como pedra fundamental para

    toda a ao e para todo o pensamento.

    Um pensamento revolucionrio autctone que sempre

    tinha acompanhado a palavra, a idia, a iluso, a

    esperana, o sonho, com a ao manifestada ao

    longo de quatro revolues desatadas em menos de

    85 anos, de onde haviam surgido duas obras pilares:

    uma escola militar insurgente, cuja principal arma a

    tica, que hoje em dia ainda estudamos e usamos

    com efetividade para defender-nos do imperialismo

    estadunidense e as obras de muitos pensadores

    revolucionrios, tendo seu maior expoente em Jose

    Marti. Sem Marti e sem o esprito de Antonio Maceo e

    sua famlia no se pode compreender por que Cuba

    no se desmoronou como o resto do bloco sovitico,

  • por que sobreviveu guerra fria e tem sobrevivido ao

    bloqueio mais desumano e criminoso aplicado a um

    povo na histria da humanidade pela potncia mais

    poderosa nos anais da histria.

    Estes so elementos essenciais para ter-se presente neste sculo

    XXI. O pensamento martiano e uma corrente do pensamento marxista posterior

    a Jose Marti, desenvolvida nos anos vinte do sculo passado e cujo expoente

    mais brilhante Julio Antonio Mella em Cuba, permitiram a elaborao de um

    marxismo da subverso e no da obedincia, um pensamento de

    questionamento total s verdades eternas do capital, dos regimes do bloco

    sovitico e de seus partidos comunistas que se dedicaram mais a interpretar

    que a transformar a realidade.

    Marti estudou Marx, rendeu-lhe tributo, mas tambm o criticou. Mella,

    de forma precoce em 1925, ao fundar o Partido Comunista em Cuba, no

    momento do ato de fundao, enfrentou as primeiras manifestaes de

    dominao, obedincia e distoro do ideal libertrio da Revoluo Russa de

    1917.

    O outro eixo a levar em conta para entender Ernesto Che Guevara

    a figura, o intelecto, a tica e a ao conseqente de seu mestre, Fidel Castro

    Ruz. A amizade e a comunidade intelectual que ambos estabeleceram,

    marcaram em boa medida a histria e a sorte de nossa Revoluo Cubana.

    A Revoluo de 1959 foi contra todo o saber e as verdades

    estabelecidas no Ocidente, na esquerda e na academia. Cuba era o nico pas

    do mundo onde era impensvel que se desse, triunfasse e se desenvolvesse

    uma revoluo antiimperialista que conquistasse a independncia, a soberania

    e onde se fundassem e crescessem instituies populares inditas de

    verdadeira participao popular, tanto na defesa como na distribuio do

    produto social nos anos de 1960.

    Um dos princpios da Revoluo Cubana foi que no teria sentido

    algum realizar ao, organizao, processo produtivo ou poltico se no fossem

  • dirigidos ao melhoramento humano e superao da alienao. Essas so as

    premissas indispensveis, ao meu modo de ver, para compreender as

    contribuies de Ernesto Guevara de la Serna ao Socialismo do sculo XXI.

    Ernesto, convertido em Che por seus companheiros cubanos, retoma

    o princpio da dvida como mtodo na teoria revolucionria. A teoria e o

    marxismo como movimentos e no como dogmas. A teoria marxista como base

    til de ferramentas para pensar e atuar e no para colocar a realidade numa

    camisa de fora, num sistema rgido inaltervel. A teoria e a prtica para

    subverterem, criarem e no para estabelecerem um sistema de obedincia e

    dominao com base no discurso de que o partido pensou por ti e tu deves

    engolir.

    No campo da teoria marxista estabelecida pela existncia da Unio

    Sovitica (refiro-me economia poltica e seus manuais, seu socialismo e

    comunismo cientfico), Che foi taxativo, afirmou que tudo ainda estava por

    fazer.

    Da mesma forma que Fidel, Che vaticinou que a URSS e os pases

    do leste europeu marchariam irremediavelmente rumo ao capitalismo e exps

    algumas das causas que originaram esse processo. Percebeu que o sistema

    sovitico estava permeado dos princpios ticos, econmicos e ideolgicos do

    capitalismo, mas no se limitou crtica, desenvolvendo um pensamento e

    uma prtica alternativos desde o incio da Revoluo Cubana.

    Che deu-se conta de que, para o socialismo, h que se criar uma

    cultura alternativa capitalista, e isso Che buscou nos revolucionrios cubanos

    que, desde o sculo XIX, tinham presente que no se poderia construir um pas

    independente e soberano sem bases ticas distintas da metrpole espanhola,

    primeiro, e do imperialismo norte-americano, depois. Quando produzimos uma

    bicicleta, por exemplo, no s obtemos um bem material, mas tambm a

    produo e reproduo das relaes econmicas, sociais, ideolgicas, jurdicas

    e ticas existentes. Che rechaou a poltica cultural oficial que foi imposta,

    comprometida com o realismo socialista que desgraadamente acabou sendo

  • aplicado por longos perodos em nosso processo revolucionrio cubano e que

    ainda no est totalmente superado.

    Che Guevara no acreditava que o desenvolvimento econmico

    fosse um fim em si mesmo: o desenvolvimento econmico de uma sociedade

    tem sentido se servir para transformar a pessoa, se lhe multiplicar a

    capacidade criadora, se a levar para alm do egosmo. E essa viagem do eu ao

    ns, do desenvolvimento da individualidade e da liberdade, no pode ser feita

    com os instrumentos, as categorias e a tica capitalista. No significa renunciar

    mercadoria, significa simplesmente produzir pelo valor de uso e no pelo

    valor de troca; produzir para satisfazer as necessidades da comunidade, da

    populao, no pelo af de riqueza material, esquecendo a riqueza espiritual e

    as necessidades materiais de toda a populao e no s de uma minoria.

    As novas relaes socialistas de produo tm sentido se diminurem

    a alienao dos trabalhadores e tenderem a elimin-la paulatina e

    definitivamente, alheias s relaes econmicas e a um aparato empresarial e

    estatal que declaram que a propriedade de todo o povo, porm no permitem

    a participao popular nas decises, que vo desde eleger seus dirigentes at

    discutir e incidir nas propores em que se distribui a renda nacional: quanto

    destinado ao consumo e quanto ao investimento, acumulao.

    Che retomou as teses centrais do marxismo referidas ao

    desenvolvimento integral do processo revolucionrio: a transformao da

    sociedade no s um fato econmico e material, mas simultaneamente

    ideal, humano, de conscincia, do subjetivo; , antes de tudo, um processo de

    conscientizao e de criao de uma nova tica cotidiana.

    No pode haver socialismo se a economia no se submeter a uma

    tica, desde suas razes, diferente da tica capitalista. Valor de uso e

    conscincia, criao de valores de uso para satisfazer as necessidades,

    acompanhadas da fundao de uma nova tica e de uma conscincia alheia

    aos valores que imperam nas sociedades capitalistas. A conscincia como

    elemento ativo, como fora material com energia prpria, Che aprendeu com o

  • povo cubano, com Fidel e a Revoluo que o povo cubano materializou nos

    anos cinqenta contra a ditadura de Batista.

    Che levou este conhecimento real (vivido em parte por ele prprio junto

    ao povo cubano) elaborao de fundamentos tericos e prticos para criar

    um sistema econmico que respondesse ao sonho de uma nova sociedade

    socialista e a certeza da impossibilidade de desconectar a economia dos ideais

    que se perseguem. Che percebeu que, se forem estabelecidos mecanismos

    capitalistas, no ser possvel aspirar, ainda que se faa muito trabalho

    poltico, a que as pessoas vivam, trabalhem e atuem, assumindo uma moral

    no capitalista.

    Che encontrou em Cuba tcnicas de direo administrativa, sistemas

    de contabilidade, custos, auditoria e os primeiros computadores IBM aplicados

    contabilidade (os mais avanados do mundo ento, em algumas

    multinacionais) no em Washington D.C., nem em Roma, nem em Paris, nem

    em Londres, mas em Havana em 1959. Na URSS e nos pases do leste

    europeu, em troca, Che encontrou o baco, a contabilidade capitalista pr-

    monopolista do fim do sculo XIX e incio do XX.

    Che conheceu das transnacionais todas as tcnicas administrativas,

    contbeis e de custos, mas negou-se a tomar da Unio Sovitica seu sistema,

    chamado clculo econmico, que empregava tcnicas antiquadas referidas

    anteriormente e que funcionava com o sistema de categorias e a lgica que

    movem a economia capitalista. No interessa somente a quantidade e a

    qualidade dos bens materiais elaborados, mas o modo como que se produzem

    as relaes sociais que se desprendem dessa produo e distribuio.

    Che no idealizava o ser humano. Numa reunio em seu Conselho

    de Direo do Ministrio da Indstria, ele refletia:

    O problema que as pessoas no so perfeitas, da porque h de se aperfeioar os sistemas de controle para detectar a primeira infrao que se cometa, porque esta a que conduz a todas as demais. As pessoas podem ser muito boas; a primeira vez, porm, quando baseadas na indisciplina, cometerem atos de furtos de tipo pessoal para repor em dois ou trs dias, depois vo se envolvendo nisso e se convertem

  • em ladres, traidores e vo se afundando cada vez mais no delito2.

    Che desenvolveu um modelo econmico que pude colocar em

    prtica por quatro anos, com muito bons resultados: na criao de atitudes

    comunistas, fez possvel que nos sentssemos, na empresa, mais livres, mais

    ntegros, mais dignos, mais pessoas. Che aspirava a uma economia que

    estivesse em funo das pessoas e no as pessoas em funo da economia.

    O socialismo real do sculo XX no conseguiu gerar um sistema

    econmico que produzisse novas relaes econmicas de produo e novas

    relaes sociais. A construo socialista deve conjugar produo, organizao

    e conscincia como fenmenos simultneos que tm como elemento central o

    ser humano e, como fim, sua liberdade.

    O socialismo de Che mais prximo do comunismo das

    comunidades indgenas dos Andes que do socialismo real do bloco sovitico.

    Che props-se a apostar nos trs desafios ante os quais o socialismo real do

    sculo XX fracassou:

    1. Um sistema econmico sem usar categorias

    capitalistas para seu funcionamento e uma economia

    eficiente em funo do ser humano.

    2. Um sistema ideolgico-cultural alternativo ao

    capitalista.

    3. Uma participao real e consciente da

    populao na tomada de decises, uma sociedade

    participativa.

    O socialismo no um sistema mais humano que o capitalista

    porque uma nova classe ou casta dominante e iluminada distribui com sentido

    mais justo e paternalista as riquezas produzidas, mas porque se trata de um

    regime de genuno poder popular. Che Guevara tratou de aplicar ao prprio 2 Guevara: Consejos de direccin: Informe de la Empresa Consolidada de Equipos Elctricos, 11 de maio de 1964, El Che en la Revolucin Cubana, ed. cit., tomo VI, pgs. 106-107.

  • marxismo e sua experincia a concepo da historicidade de todo o

    pensamento, de resgatar sua essncia, de abolir os dogmas marxistas que

    prevaleceram ao longo do sculo XX e que prefiguravam nos resultados

    obtidos.

    Acredito que estamos na etapa do despertar, da procura, do retorno

    a potencializar individual e coletivamente a imaginao criativa para afrontar

    todos os grandes desafios, para preservar o planeta e todas as espcies

    viventes.

    O capitalismo no tem nada humano a oferecer aos nossos povos,

    seno o neoliberalismo; o capitalismo marcha rumo morte, mas ainda est

    vivo, muito vivo. Temos que criar muitas experincias alternativas fora dos

    princpios e da lgica do capital.

    O conhecimento da obra de Ernesto Che Guevara pode reforar o

    pensar consciente de cada comunidade, de cada etnia, gnero, povo, nao e

    ir criando, coletiva e individualmente, distintos modelos que respeitem a

    natureza, a terra e tambm o ser humano em sua dignidade.

    Cuba, apesar dos erros que temos cometido, est de p diante do

    imperialismo estadunidense, buscando ainda como apoiar este processo

    mundial e regional latino-americano e como encontrar nosso prprio caminho

    rumo sociedade como a sonharam para toda a humanidade Marx, Engels,

    Lnin e, para a nossa especificamente, Cspedes, Agramonte, Maceo, Marti,

    Mella, Abel, Frank Pas, Che e tantas dezenas de milhares de cubanos

    annimos que deixaram seus ossos no caminho para alcanar o sonho utpico

    de uma sociedade sem explorao do homem pelo homem, com liberdade,

    poder popular real e participativo. Estamos seguros de que o alcanaremos,

    embora tenhamos que realizar nossa sexta revoluo.

    Muito obrigado.

    Prof. Carlos Tablada Prez

    Pau, Frana, 5 de abril de 2007.