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    DOSSIPENSAMENTO/

    LINGUAGEM

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    O PAPEL DO CORPO NA TRANSFORMAODA POLTICA EM BIOPOLTICA

    Helena Katz*

    Resumo O corpo em movimento a matriz da comunicao e da cognio. O movimento, a ao do corpo, vai corpori-

    ficando as trocas incessantes com os ambientes. Hoje, quando o corpo vem transformando a poltica em biopoltica, a

    proposta de entend-lo como um corpomdia (KATZ; GREINER, 2001) permite uma leitura crtica do que est em curso em

    nossa sociedade.

    Palavras-chave: corpomdia, biopoltica, comunicao, corpo e ambiente, contexto.

    The role of the body in the transformation of politics into biopolitics

    Abstract The moving body is the starting point of communication and cognition. Movement and body action materia-

    lize the constant changes between body and environment. Nowadays, when the body is turning politics into biopolitics,

    the understanding that each body is a bodymedia (KATZ; GREINER, 2001) guides us to a critical reading of our society.

    Keywords: bodymedia, biopolitics, communication, body and environment, context.

    Passaram-se mais de dois mil anos desde que o poeta romano Lucrcio, que viveu no sculo I a.C.,props, em De Rerum Natura(Sobre a Natureza das Coisas)1, que se buscassem as explicaes paraos fenmenos naturais dentro da prpria natureza, sem precisar atribuir o que acontece na Terra eno cu ao capricho de algum Deus (GLEISER, 2010). Todavia, ainda hoje, quando se diz no ser pos-svel conhecer tudo o que existe, aparece um piloto automtico que produz, na continuao dessaconversa, algo parecido com: Mas a cincia nunca esgotar o conhecimento querendo dizer que

    sempre existir o domnio do no explicvel.

    * Professora no curso de Comunicao das Artes do Corpo e no Programa em Comunicao e Semitica na Pontifcia Universidade Ca-tlica de So Paulo (PUC-SP), professora adjunta no Programa de Ps-graduao em Dana da Universidade Federal da Bahia (UFBA)e professora convidada no Programa de ps-graduao da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo (ECA-USP).Coordenadora do Centro de Estudos em Dana (CED).

    1- De Rerum Naturafoi traduzido para o portugus pelo latinista Agostinho da Silva e publicado no volume V da coleo Os pensadores,da Editora Abril Cultural.

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    O que sustenta essa linha de raciocnio a crena na existncia de uma oposio entre razo eemoo/sentimento, objetivo e subjetivo, dentro e fora, mesmo depois de tantas contribuies quenos ensinam o contrrio disso.

    Para abandonar o medo de que um mundo decifrvel perder seu encanto, o corpo funcionacomo uma referncia propcia, por intermdio da experincia, de reencantamento que brota dodesafio de desvend-lo. O importante no parar de perguntar nico antdoto eficiente contra ospreconceitos e a superstio que a ignorncia produz.

    No importa que continuem a existir fenmenos sem explicao, o que conta compreender queos conhecimentos so sempre parciais e que a tarefa que nos cabe a de aprender a aderir e a to-mar distncia ao mesmo tempo, como sugere o filsofo Giorgio Agamben (2009, p. 63-64), professorda Universidade de Verona, nascido em 1942, quando se refere ao contemporneo:

    Pode dizer-se contemporneo apenas quem no se deixa cegar pelas luzes do sculo e consegue

    entrever nessas a parte da sombra, a sua nfima obscuridade. Por que conseguir perceber as trevasque provm da poca deveria nos interessar? No talvez o escuro uma experincia annima e,

    por definio, impenetrvel, algo que no est direcionado para ns e no pode, por isso, nos dizer

    respeito? Ao contrrio, o contemporneo aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo

    que lhe concerne e no cessa de interpel-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e

    singularmente a ele. Contemporneo aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que

    provm do seu tempo.

    Devemos nos dispor a perceber no somente as luzes, que so to evidentes, mas tambm o es-curo que faz parte delas, e no identificamos de imediato. Neurofisiologistas explicam que a ausn-cia de luz desinibe as off-cells(clulas perifricas da retina), tornando-as ativas, e que elas produ-zem uma espcie particular de viso, que chamamos de escuro.

    O escuro, portanto, no a ausncia de luz, um espao onde no h nada para ser visto, uma noviso, mas sim um produto de nossa retina, tal como a luz, outro tipo de viso.

    Se a escurido faz parte, pertence luz, para reconhec-la, precisamos desenvolver a habilidadeparticular de impedir que o que est na luz nos distraia da necessidade de buscar o que no estnela aparente. Sobretudo com relao ao corpo, esta a tarefa que se impe: aprender a ver o que j

    est naquilo que dele se fala, mas ainda no escuro dessa fala. Assim, os pilotos automticos de certosdiscursos podero ser desativados, porque discursos proliferam sem o controle de quem os emite.

    Alguns discursos se dizem e passam com o ato que os pronunciou, e outros so retomados cons-tantemente. Mas, como so os discursos que vo se autorregulando, pode-se for-los a tomarposio sobre questes sobre as quais estavam desatentos. E, para fazer falar a ns o que no es-tava audvel, h que enfrentar situaes, comportando-se de modo diferente ao das borboletas,que no sobrevivem ao momento em que um alfinete lhes atravessa o corpo para fix-los no lugar(BAUMAN, 1999, p. 12).

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    Quando o assunto o corpo, no parece haver outra sada a no ser comear a acordar mundosque continuam adormecidos, parecendo sem sentido (BAUMAN, 1999). O corpo do qual a medicinatratava at o sculo XVIII sofria de lquidos esquentados (inflamao) e slidos ressecados (dege-nerescncia dos tecidos). De l para c, no foi somente uma troca terminolgica que ocorreu, mas

    tambm uma ao fruto da relao de codependncia entre certo contexto e certo tipo de inquietao.O semioticista Thomas Sebeok (1991) salienta a importncia do contexto e, diferindo do quehabitualmente se pensa, afirma que o onde tudo ocorre nunca passivo. O ambiente no qual umainformao produzida, transmitida e interpretada nunca esttico, mas uma espcie de contexto-sensitivo por isso, as trocas entre corpos e ambientes so possveis, e o corpo, que est sempretransitando por vrios ambientes/contextos, vai trocando informaes que tanto o modificam co-mo modificam os ambientes. Evidentemente, h uma taxa de preservao que garante a unidade ea sobrevivncia de cada ser vivo nesse processo de cotransformaes que no estanca entre corpoe ambiente.

    Talvez a clula seja um bom exemplo para pensar esse tipo de relao:

    Muitas molculas entram e saem da clula, em contrapartida, outras no podem faz-lo. Mas a

    clula no um recipiente contenedor. Ao contrrio, ao entrar uma molcula dentro dela, passa

    a fazer parte da organizao celular. As molculas no recebem vida porque a vida no uma

    propriedadedas molculas em si. A vida se relaciona com a organizao, com a rede de relaes e

    as propriedades emergentes da interao. No entanto, atravessar uma membrana implica em uma

    transformao da rede de relaes e gera uma transformao da identidade (que j no pode ser

    pensada em si e por si mesma, mas em um emaranhado relacional co-evolutivo) (NAJMANOVICH,2001, p. 24-25, grifo nosso).

    A noo de contexto varia. Sebeok (1991) define contexto como o reconhecimento que um orga-nismo faz das condies e maneiras de poder lidar efetivamente com as informaes. Contextoinclui, portanto, sistema cognitivo (mente), mensagens que fluem paralelamente, a memria demensagens prvias que foram experienciadas e, sem dvida, a antecipao de futuras mensagens,que ainda sero trazidas ao e que existem como possibilidade.

    Processos coevolutivos entre corpo e ambiente produzem uma rede de predisposies percep-

    tuais, motoras, de aprendizado e emocionais, e sua implicao no meio inevitvel e fundamentalpara o que da surge como linguagem, especialmente quando nos lembramos de que a linguagemnasce da segregao.

    Identificar algo implica separ-lo do que ele no , ou seja, a prtica de nomear depende daeficincia do ato de classificar. O nomear desenha topologias e tem uma durao que lhe indepen-de, pois tudo o que se pe no mundo segue um percurso que a mistura de acaso e causalidade vaiconfigurando.

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    O contexto no um recipiente povoado por coisas que o conformam; o contexto est sempremudando, porque o conjunto de coisas que o forma tambm se transforma. As atualizaes socontnuas, articulatrias e descentradas, uma vez que o trnsito permanente instabiliza as noesde dentro e fora. Assim, o contexto e tudo o que o forma passam a ser lidos como estados transi-trios, em um fluxo permanente de mudanas.

    CORPO

    Desde sempre, ns vamos construindo o mundo, pegando coisas daqui e dali, em prticas quevo estreitando as trocas entre a qumica da vida e o ambiente. Em nossas construes de mundo,os entendimentos de corpo esto submetidos aos regimes de produo de sentidos que vo sendoengendrados ao longo do tempo. Mas, como a percepo do corpo ocorre de acordo com o conhe-

    cimento que se tem a seu respeito, o nome corpo vai variando, identificando referncias distintas,ao longo da histria.

    Hoje, tornou-se o protagonista da transformao da poltica em biopoltica, com o Estado pas-sando a regular a sociedade, a partir da reduo do corpo sua vida biolgica.

    Se voltamos Marx (apud GHIRALDELLI JR., 2007, p. 64), em O capital, leremos:

    No s o trabalho dividido e suas diferentes fraes distribudas entre os indivduos, mas o

    prprio indivduo mutilado e transformado no aparelho automtico de um trabalho parcial,

    tornando-se, assim, realidade a fbula absurda de Menennius Agripa2que representa um ser hu-

    mano como simples fragmento de seu prprio corpo.

    O corpo do mundo desse tipo de trabalho fica reduzido s suas partes, maquinificado nas linhasde montagem das fbricas, materializando o taylorismo3- modelo de corpo que, mais tarde, CharlieChaplin apresentou em Tempos modernos(1936) e que se popularizaria como a imagem de corpoaceita como capaz de promover desenvolvimento social.

    Quando a diviso do trabalho produzida dentro da fbrica, juntamente com a disciplina que aregula, escorre para a sociedade e passa a constituir seu modelo de administrao, seu padro dis-

    ciplinar, essa a imagem de corpo que l se implanta. No o corpo da excitao, da dor, do prazer mas o corpo docilizado que deve desempenhar bem suas tarefas, porque pode ser submetido,utilizado, transformado e aperfeioado (FOUCAULT, 1983).

    2 - Menennius Agripa, senador romano que usou, em um de seus discursos, a fbula sobre membros do corpo humano que se revoltavamcontra a barriga.

    3 - Frederick Taylor, engenheiro, escreveu O princpio da administrao cientfica,em 1891, livro no qual disciplinou o trabalho nas fbri-cas por um tipo de organizao que controla os tempos e os movimentos dos operrios, ou seja, de seus corpos.

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    Foucault (1983) vai fazer uma leitura crtica desse corpo, voltando a Nietzsche (1998), via Mer-leau-Ponty, na qual se entende o corpo como carne, sendo carne uma interligao de estruturas eforas que interagem sem dominncia entre elas e sem existncia de um centro controlador. ParaNietzsche (1998), o corpo era uma superfcie na qual um conjunto de foras subterrneas eramreprimidas e transmutadas por um mecanismo de construo cultural, externo a ele. Tal mecanismo apresentado como sendo a histria, o que significa ser a histria o instrumento que produz sig-nificaes culturais ou seja, linguagem em um corpo tbula rasa.

    O conceito de corpo como um organismo biolgico no qual a cultura inscreve seus traos sercontestado pelo conceito de corpomdia (KATZ; GREINER, 2001), que invalida o entendimento deque primeiro o corpo se forma e depois comea a lidar com os traos sociais do entorno.

    O que est fora adentra e as noes de dentro e fora deixam de designar espaos no conectos para

    identificar situaes geogrficas propcias ao intercmbio de informao. As informaes do meio

    se instalam no corpo; o corpo, alterado por elas, continua a se relacionar com o meio, mas agorade outra maneira, o que o leva a propor novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam perma-

    nentemente num fluxo inestancvel de transformaes e mudanas (KATZ; GREINER, 2001, p. 71).

    a prpria ideia de inscrio que carrega embutida a possibilidade de pensar a existncia de umcorpo sem ela; um corpo natural antes do corpo cultural. Afinal, o que se inscreve (histria, cultura)implica um local (corpo) para ser inscrito. Uma construo lgica dessa natureza desgua na pos-sibilidade de pensar em um corpo ontologicamente distinto desse corpo culturalmente construdo.

    Foucault (1983) declara recusar tal possibilidade, mas, quando emprega metforas como o cor-po a superfcie inscrita de eventos, acaba por reforar tal entendimento.Para Nietzsche (1998), os valores culturais emergem como inscries no corpo. A teoria corpo-

    mdia prope a inexistncia do corpo fora da cultura; corpo e ambiente se codeterminam.

    CORPOMDIA: O MOVIMENTO COMO MATRIZ DA COMUNICAO

    Em 1987, o filsofo norte-americano Mark Johnson, professor de Cincia Cognitiva e Lingustica

    e tambm de Cincia da Computao na Brown University, reprops a relao entre corpo, movi-mento e cognio. Mostrou que a cognio tem origem na motricidade e explicou que a ideia deque existe um dentro, um fora e um fluxo de movimento entre eles se apoia no conceito de corpocomo recipiente; um entendimento que se popularizou, mas que no se sustenta mais.

    Talvez nossas aes mais bsicas sejam ingerir e excretar, inspirar e expirar (que, evidentemente,dizem respeito a algo que entra e a algo que sai). Curiosamente, a comunicao tambm tem a vercom um entrar e sair, seja de lugares, recipientes, situaes, espaos, tempos, de si mesmo, do outro,do grupo e assim por diante. O que a perspectiva evolucionista aqui pleiteada agrega a possibili-

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    dade de lidar com o binmio dentro/fora como complementaridade aberta, e no como exteriorida-de mtua.

    Como a comunicao se baseia no mesmo sistema conceitual que usamos para pensar e agir, alinguagem verbal se torna uma fonte importante de evidncia do funcionamento do sistema; im-portante, porm no a nica.

    Nosso sistema conceitual, que encarnado e de raiz metafrica, ocupa um papel central, defi-nindo as realidades cotidianas. No h nada que esteja em um pensamento que no tenha estadotambm no sistema sensrio-motor do corpo, ou seja, quem d incio ao processo de comunicao o movimento. Por isso, tambm se torna indispensvel saber como o corpo funciona.

    Segundo Lakoff e Johnson (1999), conceitos no so apenas matria do intelecto. Conceitos es-truturam o que percebemos, como nos relacionamos com o mundo e com as outras pessoas, comonos comunicamos. De acordo com Lakoff e Johnson (1999, p. 16), o modo como pensamos e agi-mos, o que experimentamos e o que fazemos em nosso cotidiano, tudo isso est sempre corporifi-

    cado: Qualquer raciocnio que voc faa usando um conceito exige que estruturas neurais do c-rebro realizem esse raciocnio. Ento, a arquitetura de suas redes neurais determina os conceitosque voc tem e, portanto, o tipo de raciocnio que voc pode ter4.

    Como os conceitos estruturas neurais nos permitem categorizar e raciocinar, tais atividades dei-xam de ser somente mentais e passam a ser entendidas como corporificadas. E as primeiras impli-caes epistemolgicas dessa proposio dizem respeito a compreender que o raciocinar, o perce-ber e o funcionar motoramente passam a estar profundamente ligados. A razo passa a ser tratadana perspectiva do movimento, ou seja, corporificada.

    Em termos cognitivos, o conceito configura-se como uma metfora. Ao comunicar algo, h sem-pre deslocamentos (movimento com mudana de posio): de dentro para fora, de fora para dentro,entre diferentes contextos, de um para o outro, da ao para a palavra, da palavra para a ao eassim por diante.

    A sistematicidade que nos permite entender um aspecto de um conceito em termos de outro (achave da metfora5) vai necessariamente esconder outros aspectos do conceito e da experincia.Por isso, os conceitos so sempre parciais, sem capacidade para abarcar a totalidade dos fenmenosaos quais se referem.

    O conceito, portanto, sempre fruto de um procedimento metafrico de nosso corpo, pois repre-

    senta um modo de estruturar parcialmente uma experincia em termos da outra. A pergunta : Oque faz parte do domnio bsico de uma experincia?. As experincias so fruto de nossos corpos(aparato motor e perceptual, capacidades mentais, fluxo emocional etc.), de nossas interaes com

    4 - Any reasoning you do using a concept requires that the neural structures of the brain carry out that reasoning. Accordingly, the archi-tecture of your brains neural networks determines what concepts you have and hence the kind of reasoning you can do.

    5 - Aqui, a metfora no entendida como um recurso lingustico de imaginao potica, mas como o que nosso corpo faz para existir,que o procedimento de experienciar uma coisa em termos da outra. Nosso sistema conceitual metaforicamente estruturado.

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    os ambientes por meio das aes de se mover, manipular objetos, comer e de nossas interaescom outras pessoas, em termos sociais, polticos, psicolgicos, econmicos, religiosos etc.

    Nietzsche (1998) j chamava a ateno para o fato de o corpo agir como um tipo de razo, tan-to que se permitiu cham-lo de grande razo, uma razo maior do que aquela que os filsofoscostumavam associar mente separada do corpo. A razo pela qual a fala no nasce de uma uni-dade chamada corpo, mas o que aparece quando o corpo passa a comandar os processos sociais,est ligada ao fato de que, nesse mundo em que tudo precisa se tornar objeto da comunicao, nomais se pode pensar a realidade como sendo ordenada racionalmente, tendo como base um funda-mento. Afinal, isso que se chama de realidade est a todo o momento mudando, mesmo que noconsigamos perceber a olho nu o que vai se passando.

    Sendo o corpo e a realidade frutos sempre provisrios das trocas permanentes que fazem6, osnomeares sobre o corpo se ajustam e se desajustam em relao aos contextos que vo sendo pro-duzidos nessa relao, ao longo do tempo. Nos de agora, ocorre a hipertrofia da visibilidade do

    corpo e como as sociedades se tornam cada vez mais transparentes (VATTIMO, 1992), porque nelasas formas de comunicao no param de se expandir; justamente o corpo que nos remete bio-poltica.

    O CORPO CONDUZ (BIO)POLTICA

    A associao nascimento/lugar, que estrutura o nacional-socialismo, com seu Blut und Boden(solo e sangue) e a vinculao entre o lugar onde se nasce (ius soli) e de quem se nasce (ius sanguinis),forma um claro ponto de partida para o que vem acontecendo. Nos dois casos, o puro fato donascimento que assegura os direitos, ou seja, o corpo vale como vida nua 7, o tipo de vida que oEstado regula cada vez com mais eficincia. A associao entre:

    A vida que, com as declaraes dos direitos humanos tinha se tornado o fundamento da soberania,

    torna-se agora o sujeito-objeto da poltica estatal (que se apresenta, portanto, sempre mais como

    polcia); mas somente um Estado fundado sobre a prpria vida da nao podia identificar como sua

    vocao dominante a formao e tutela do corpo popular (AGAMBEN, 2004, p. 155).

    6 - Esse o conceito de corpomdia (KATZ; GREINER, 2001).

    7 - Benveniste vai ao antigo direito romano para buscar a figura da vida nua, que, depois, Giorgio Agamben retoma de Walter Benjamin:o homo sacer, ou homem sacro, aquele que comete um crime hediondo, mas no pode ser sacrificado segundo os ritos da punio,porque no possui cidadania. Se for morto, seu executante no ser punido. Ele indesejado pelos deuses e pelos homens, porque estfora da jurisdio de ambos. O plano de Agamben para investigar o homo saceriniciou-se com a publicao do volume I, Homo Sacer. Opoder soberano e a vida nua. Em 1998, escreveu o volume III, O que resta de Auschwitz. A primeira parte do que ser o segundo volumesaiu em 2003, com o ttulo Estado de exceo. Ainda h um volume IV, que vai encerrar a srie.

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    Foucault, especialmente a partir de seu livro Vontade de saber (1993), relacionar, cada vez maisintensamente, poder/sade/corpo/vida. Em 1974, inaugurou o conceito de biopoltica, em uma pa-lestra dada no Rio de Janeiro, com o ttulo O nascimento da medicina social8. Vai demonstrar quea racionalizao da vida se transformou em dispositivo de dominao. No ser difcil perceber que,para operar o tipo de administrao dos corpos que est em curso, a vida precisou ser reduzida sua condio biolgica.

    Trata-se de uma inverso do que vinha sucedendo, de acordo com Nietzsche (1998), que chamaa ateno para o fato de Scrates seduzir a todos, apesar de sua feiura. Salienta que o que estavaem curso era uma prtica apoiada no desprezo pela vida biolgica, pela valorizao do que as ideiaspodiam promover. Ideias tinham poder de encantamento e apagavam a feiura do corpo. Marca-sea o que viria a se tornar uma supremacia da mente sobre o corpo e que se manteve vigente porquase toda a histria da filosofia.

    Para entender essa relao, vale recorrer novamente a Agamben (2002, p. 16), que lembra que os

    gregos falavam da vida com duas palavras distintas:zo(a vida natural que os homens comparti-lham com tudo o que vivo) e bos(a vida socialmente formalizada de um indivduo ou um grupo):

    A dupla categorial fundamental da poltica ocidental no aquela amigo-inimigo, mas vida nua-

    existncia poltica, zo-bos, excluso-incluso. A poltica existe porque o homem o vivente que,

    na linguagem, separa e ope a si a prpria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantm em relao

    com ela numa excluso inclusiva.

    A vida nua (zo) foi dominando o espao poltico. Nada mais escapa regulao que atua em

    nossa subjetividade, em nosso inconsciente, em nossa sexualidade, nossos sonhos, desejos, amo-res, nossas percepes. Trata-se de uma atuao difusa, em rede, sem centro. No mais vem defora, como no tempo em que Foucault (1983) escrevia sobre os corpos disciplinados pelas institui-es, pois agora somos ns e no mais somente as instituies os agentes dessa docilizao.

    Estado, cincia, capital e mdia se materializam em ns, dissimulados no hedonismo, no consumodesenfreado que nos guia e tambm na crescente medicalizao de nossa existncia; empreendi-mentos que j esto opacos no seu miolo e pudos nas suas beiradas (BAUMAN, 1999, p. 6), masno percebemos.

    Prevalece, ainda e sempre, a vida nua tomada agora na sua modalidade biolgica , forma domi-

    nante da vida por toda parte. Toda a discusso sobre a biotica, hoje em dia, estaria atravessada por

    uma tal concepo biolgica da vida. A medicalizaco das esferas da existncia, as representaes

    pseudocientficas do corpo, da doena, da sade seriam expresses desse domnio da vida nua e

    sobretudo da reduo das formas de vidaao fato da vida(PELBART, 2003, p. 61, grifo nosso).

    8 - Em 1979, essa palestra foi publicada por Roberto Machado, em Microfsica do poder, de Foucault.

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    Hedonismo e hiperconsumismo se fortalecem em torno da biopoltica, essa poltica que s reco-nhece valor vida nua e que torna zoe bosindistintas, uma vez que no se concebe a vida nuacomo um puro estado biolgico que ser, mais tarde, levada para a ordem jurdica. Em nossa socie-dade, a vida nua sempre pertence s polticas de natalidade, alimentao, moradia, educao esade que estiverem em curso onde ela existir. A vida nua seria a vida como um fato: em nomedela o poder se exerce, quando, para proteg-la, a coloca no centro de suas aes. Bosseria a for-maque esse fato toma. Agora, pensando-a com o apagamento da diferena entre pblico e privadoque os meios de comunicao vm intensificando, fica ainda mais clara a inadequao dos concei-tos gregos de zoe bospara pensar o corpo hoje.

    A vida nua e animal no est despida daquilo que a cerca e de tudo o que a antecedeu. Todo ocorpo sempre um corpomdia, isto , um estado transitrio das trocas que faz com os ambientes.Assim, a vida nua, essa fora produtora das formas de vida que podem surgir, age nesse trnsito detrocas que promove mestiagens entre natureza e cultura.

    Se lembrarmos que o capital uma forma de realizar a produo, e no se refere somente aoacmulo de recursos e mercadoria, vamos reconhecer que no mais vivemos em um mundo pauta-do somente pela linha de montagem da produo industrial. O corpo a ela ajustado vive modifica-es intensas em uma transnacionalizao que ecoa a do prprio capitalismo. Iado a uma condi-o em si mesma, permite que descobertas a seu respeito sejam universalizadas, ignorandocondies e necessidades locais. Todos os humanos devem tomar vitamina C; a vitamina C notem o efeito desejado, a no ser quando administrada em certa dose; o sal perigoso; o acar nocivo; recomenda-se tomar uma taa de vinho por dia; exerccios so indispensveis; no

    se deve comer noite; preciso comear o dia tomando um copo de gua etc.O Tratado da Sade Perfeita, que garantiria a extenso da juventude, continua sendo revisto ereescrito, produzindo comportamentos sociais. Juntas, zoe bosdesenham a biopoltica da qualsomos agora corposmdia.

    REFERNCIAS

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