168
Universidade de Aveiro 2007 Secção Autónoma de Ciências Sociais, Jurídicas e Políticas MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA O SISTEMA DAS SANÇÕES E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

o Sistema de Sanções

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Sistema de sanções administrativas

Citation preview

  • Universidade de Aveiro 2007

    Seco Autnoma de Cincias Sociais, Jurdicas e Polticas

    MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA

    O SISTEMA DAS SANES E OS PRINCPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

  • Universidade de Aveiro 2007

    Seco Autnoma de Cincias Sociais, Jurdicas e Polticas

    MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA

    O SISTEMA DAS SANES E OS PRINCPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

    dissertao apresentada Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Mestre em Gesto Pblica, realizada sob a orientao cientfica do Doutor Jos Carlos Vieira de Andrade, Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e co-orientao cientfica do Doutor Jos Manuel Moreira, Professor Catedrtico da Seco Autnoma de Cincias Sociais, Jurdicas e Polticas da Universidade de Aveiro

  • o jri

    presidente

    Doutor Artur da Rosa Pires, Professor Catedrtico da Universidade de Aveiro Doutor Jos Carlos Vieira Andrade, Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (orientador) Doutor Jos Manuel Lopes Dias Moreira, Professor Catedrtico da Universidade de Aveiro (co-orientador) Doutor Pedro Antnio Pimenta da Costa Gonalves, Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

  • agradecimentos

    Os meus agradecimentos ao meu orientador, Professor Vieira de Andrade, pelos ensinamentos e sugestes, pela disponibilidade e confiana e ao meu co-orientador, Professor Jos Manuel Moreira. Aos meus filhos, pela alegria de viver. Ao meu marido, sem ele nunca teria conseguido.

  • palavras-chave

    sano administrativa, contra-ordenaes, direito administrativo, princpios constitucionais.

    resumo

    Neste trabalho caracterizado o sistema sancionador portugus na sua diversidade, apresentando os diversos tipos de sano administrativa, incluindo a contra-ordenacional, e sua delimitao face a outro tipo de sanes e a outras medidas administrativas sem carcter punitivo. Uma vez que, por regra so aplicveis os mesmos princpios a todas as expresses do poder sancionador do estado, neste estudo so apresentadas as especificidades da aplicao dos princpios de origem constitucional, tanto materiais como procedimentais, ao direito sancionador administrativo.

  • keywords

    administrative sanction, contra-ordenaes, administrattive law, constitucional principles.

    abstract

    In this work the Portuguese sanctionatory system in its diversity is characterized, presenting the diverse types of administrative sanction, includingthe contra-ordenacional, and its delimitation face to another type of sanctions and other administrative measures without punitive character. Once, for rule the same principles are applied to all the expressions of the states sanctionatory power, in this study the specificities concerning the application of the constitutional principles are presented, both material and procedural, in the sanctionatory administrative law.

  • i

    ndice

    1. Introduo ......................................................................................................................... 1

    2. Sano Administrativa ...................................................................................................... 3

    2.1. Noo e Justificao ..................................................................................................... 3

    2.2. Poder sancionatrio da Administrao Pblica e o princpio da diviso de poderes .. 12

    2.3. Factores de desenvolvimento do Direito Sancionador Administrativo ...................... 17

    2.3.1. O Estado Social e o Estado Regulador .................................................................... 18

    2.3.2. Descriminalizao ................................................................................................... 25

    2.4. Sanes administrativas em sentido estrito (ou de autotutela) e em sentido amplo (ou

    de heterotutela) ...................................................................................................................... 29

    3. Distino entre sanes administrativas e outras figuras afins....................................... 33

    3.1. Distino entre penas propriamente ditas e sanes administrativas .......................... 34

    3.2. Distino entre sanes administrativas e medidas de segurana .............................. 46

    3.3. Distino entre sano administrativa e medidas de polcia ....................................... 47

    4. Tipos de Sanes Administrativas .................................................................................. 51

    4.1. Contra-ordenaes ...................................................................................................... 52

    4.2. Sanes Disciplinares ................................................................................................. 58

    4.3. Sanes administrativas inominadas........................................................................... 60

    5. Princpios a aplicar ......................................................................................................... 65

    5.1. Princpio da prossecuo do interesse pblico............................................................ 67

    5.2. Princpios da igualdade, proporcionalidade e boa f .................................................. 68

    5.3. Princpio da legalidade ................................................................................................ 78

  • ii

    5.3.1. Reserva de lei .......................................................................................................... 81

    5.3.2. Tipicidade ............................................................................................................... 85

    5.3.2.1. Proibio da analogia .......................................................................................... 87

    5.3.3. Princpio da no retroactividade ............................................................................. 88

    5.3.3.1. Princpio da aplicao retroactiva da lei mais favorvel ..................................... 89

    5.4. Princpio do respeito pelos direitos e interesses legtimos dos particulares ............... 91

    5.5. Princpio da justia e da imparcialidade ..................................................................... 92

    5.5.1. O princpio da oficialidade ou obrigatoriedade na fase de iniciativa ...................... 93

    5.5.2. Princpio do inquisitrio ......................................................................................... 96

    5.5.3. Princpio da garantia de defesa perante os tribunais ............................................... 97

    5.6. Garantia de acesso ao direito e aos tribunais ............................................................ 100

    5.7. Direitos de audincia e defesa .................................................................................. 107

    5.7.1. Direito assistncia de um defensor ..................................................................... 110

    5.8. Princpio do direito a um processo clere ou sem dilaes indevidas ...................... 112

    5.8.1. Prescrio .............................................................................................................. 113

    5.9. Princpio da responsabilidade e da culpa .................................................................. 115

    5.9.1. A responsabilidade das pessoas colectivas ........................................................... 129

    6. Concluses ................................................................................................................... 145

    Bibliografia Citada .............................................................................................................. 153

  • iii

    Lista de Acrnimos

    Ac.: Acrdo

    CE: Constituio espanhola

    CP: Cdigo Penal

    CPA: Cdigo de Procedimento Administrativo

    CPP: Cdigo do Processo Penal

    CPTA: Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos, Lei n. 13/2002 de 19 de Fevereiro

    CRP: Constituio da Repblica Portuguesa

    DL: Decreto-Lei

    LRJAPYPAC: Lei espanhola n. 20/1992 de 26 de Novembro, instituidora do Regime Jurdico

    das Administraes Pblicas e do Procedimento Administrativo Comum

    OWIG: Gesetz ber Ordnungswidrigeiten de 24 de Maio de 1968

    RGCO regime geral das contra-ordenaes, institudo pelo Decreto-Lei n. 433/82 de 27 de

    Outubro, com as alteraes introduzidas pelo Decreto-Lei n. 356/89 de 17 de Outubro, pelo

    Decreto-Lei n. 244/95 de 14 de Setembro e pela Lei n. 109/2001 de 24 de Dezembro

    RGIT: Regime Geral das Infraces Tributrias

    STA: Supremo Tribunal Administrativo

    TC: Tribunal Constitucional

  • iv

    (esta pgina foi deixada em branco intencionalmente)

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 1

    1. Introduo

    O maior intervencionismo caracterstico do Estado providncia e o advento do Estado

    regulador trouxeram uma expanso da actividade administrativa. Este facto, aliado

    necessidade de reforma do Direito Penal levaram ao desenvolvimento do Direito Sancionador

    Administrativo, no mbito do qual a sano administrativa surge como instrumento ao servio

    da eficcia da actuao prestadora e reguladora da Administrao.

    Neste mbito, o sistema sancionador administrativo portugus, resultado das opes poltico-

    legislativas das ltimas dcadas, apresenta-se complexo e disperso, identificando-se vrios

    tipos de sanes e zonas de interseco comuns com outros tipos de sano e at com outras

    medidas administrativas.

    Com este trabalho pretendemos enunciar os principais aspectos e problemas que se colocam a

    fim de alcanar uma compreenso geral do conceito de sano administrativa, delimitando-a

    de outros fenmenos sancionadores que com ela se confundem e que originam na doutrina

    alguma controvrsia, de modo a permitir a sua autonomizao enquanto ncleo constitutivo de

    um ramo de direito pblico-administrativo em permanente expanso o Direito

    Administrativo Sancionador.

    Concebida como expresso do poder sancionador estadual unitrio, a aplicao de sanes

    administrativas deve reger-se por princpios constitucionais, substanciais e procedimentais,

    tanto de origem especificamente administrativa como de natureza penal.

    Assim, na medida em que a sano administrativa surge como meio repressivo que pode

    afectar de modo relevante direitos e interesses dos administrados, devero ser concedidas

    garantias aos cidados, semelhana do que acontece noutros domnios sancionadores, face s

    pretenses punitivas do estado, em nome da igualdade e liberdade dos cidados.

    No entanto, a aplicao de determinados princpios garantsticos, nomeadamente os de origem

    jurdico-penal, assume determinadas especificidades, derivadas da distinta natureza dos ramos

    de direito aos quais resultam aplicveis, pelo que, neste estudo, no enunciaremos apenas os

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 2

    princpios de maior relevncia, analisaremos tambm o significado e alcance que assumem

    relativamente aos diversos tipos de sanes administrativas.

    Para fazer face tarefa que nos propomos, recorremos bibliografia, legislao e

    jurisprudncia existentes na matria, apoiando-nos embora na experincia adquirida ao longo

    de alguns anos enquanto instrutora de processos de contra-ordenao.

    Esta dissertao encontra-se organizada da seguinte forma:

    No captulo 2, apresentamos uma noo de sano administrativa, enunciando os principais

    factores de desenvolvimento do direito sancionador administrativo e enquadrando o mesmo

    face aos demais poderes sancionatrios estaduais.

    A distino entre a sano administrativa e outras figuras relativamente s quais se possam

    colocar problemas de delimitao conceptual exposta no captulo 3.

    No captulo 4 enunciamos os tipos de sanes administrativas existentes no sistema

    sancionador administrativo portugus.

    O captulo 5 dedicado exposio e desenvolvimento dogmtico dos princpios garantsticos

    que devem reger a actuao administrativa sancionadora.

    A finalizar, no captulo 6, enumeram-se as principais concluses resultantes deste trabalho.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 3

    2. Sano Administrativa

    2.1. Noo e Justificao

    Com o intuito de uma melhor compreenso do conceito Sano Administrativa, principiamos

    pela decomposio dos dois elementos que o informam:

    Sano: No mbito deste trabalho ocupamo-nos apenas da sano jurdica e esta pode definir-

    se, em termos gerais, como toda a consequncia desfavorvel imposta pelo Direito no caso de

    violao de uma norma jurdica. A Sano constitui, assim, uma reaco da ordem jurdica

    face a comportamentos que se no conformam com o modelo definido pelas suas normas e

    que, como tal, constituem uma infraco a um dever por ela imposto. .1

    A sano jurdica assume especificidade na medida em que existem meios que visam a sua

    efectiva aplicao ao transgressor, garantes da observncia das normas jurdicas.

    Administrativa: o qualificativo jurdico aplica-se ao que prprio da Administrao, sendo

    que se entende esta tanto no sentido subjectivo2 (rgos e agentes da administrao pblica,

    incluindo administrao autnoma e associaes pblicas) como no sentido objectivo (toda a

    actividade desenvolvida pela Administrao Pblica em sentido orgnico em nome do

    interesse pblico).3

    1 Enciclopdia Polis, tomo V, pg. 598 ss. 2 Na definio de Diogo Freitas do AMARAL corresponde ao sistema de rgos, servios e agentes do Estado, bem como das demais pessoas colectivas pblicas, que asseguram em nome da colectividade a satisfao regular e contnua das necessidades colectivas de segurana, cultura e bem-estar, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, pgs. 36-37. 3 Marcelo Madureira PRATES, Sano Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, Coimbra: Almedina, 2005, pg. 61 ss, exclui da noo de administrao competente no mbito sancionador o Governo, cujo poder sancionador administrativo se restringe ao mbito disciplinar, de organizao hierrquico-funcional e controlo administrativo interno e tambm 1) as empresas pblicas, que apesar de terem origem pblica, esto sujeitas a regime predominantemente privado (cf. Vital MOREIRA, Administrao Autnoma e Associaes Pblicas, Coimbra Editora, 1997, pg. 104 ss); 2) a administrao autnoma no-territorial ou funcional: as associaes ou corporaes pblicas exercem auto-administrao de interesses pblicos especficos de determinadas colectividades (de natureza cultural, desportiva ou profissional, por ex.) sob responsabilidade prpria, sem sujeio a poder de direco ou superintendncia do Estado (apesar de serem ainda administrao pblica, cf. Vital MOREIRA, ob. cit., pg. 84 ss); 3) entidades privadas, no exerccio de actividades pblicas, como os concessionrios ou outros particulares beneficirios de delegaes de servios pblico-administrativos especficos..

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 4

    As competncias sancionatrias da Administrao Pblica, nas diversas formas que assume

    actualmente4, tm como limite e fundamento o expressamente previsto na lei.5

    No silncio da lei, em consonncia com o princpio da especialidade administrativa (de

    acordo com o qual o interesse pblico delimita a capacidade de actuao da Administrao),

    sero competentes as entidades administrativas responsveis pela tutela dos interesses

    protegidos ou promovidos pela norma sancionadora, conforme expressamente dispe o artigo

    34. n. 2 do Decreto-Lei n. 433/82 de 27 de Outubro6.

    O poder sancionador destas entidades ter, inevitavelmente, a natureza de poder administrativo sancionador especial, uma vez que decorre de relaes hierrquicas, contratuais ou sectoriais. O autor d particular ateno ao caso das autoridades ou entidades administrativas independentes, as quais visam, em geral, regular as atividades desenvolvidas em certos setores sensveis ou estratgicos da vida social (informao e comunicao, mercado financeiro, concorrncia comercial, seguros, servios pblicos bsicos, entre outros), de maneira estvel, profissional, especializada e, especialmente, independente e neutral tanto em relao tutela estadual e aos interesses polticos do poder governamental, como em relao aos interesses privados presentes no setor regulado.. A regulao pode abranger funes normativas (que se devem circunscrever ao espao tcnico-cientfico aberto por legislao delegante), executivas, consultivas, decisrias (para-jurisdicionais ou arbitrais), controladoras e at sancionadoras. Apesar de o carcter administrativo destas entidades no ser unanimemente reconhecido pela doutrina, por no estarem sujeitas ao poder executivo, o autor acha que no lhe retira a ndole administrativa pois, alm de serem responsveis pelo exerccio de funes tipicamente administrativas com autoridade (jus imperii), elas geralmente tm natureza pblica e esto submetidas, ainda que de forma parcial, a regime jurdico de direito pblico.. Estas entidades acumulam, frequentemente as funes de regulao e a de disciplina, com a funo de apurar os ilcitos cometidos e de impor as sanes administrativas devidas, subvertendo a tradicional separao entre autoridade legisladora, autoridade controladora e autoridade sancionadora. Conclui que o poder sancionador administrativo geral aparece como a derradeira reserva administrativa do Estado, no se concebendo, por agora, a atribuio de parte significativa do jus puniendi, dizer, de parte do cerne da soberania estatal, a entidades administrativas de natureza predominantemente privada.. 4 Cf. Vital MOREIRA, ob. cit., pg. 255 ss e Lus S, Introduo ao Direito Administrativo, Universidade Aberta, 1999, pg. 27 ss. 5 A competncia para o processamento das contra-ordenaes e aplicao das coimas e sanes acessrias correspondentes , em regra, atribuda s autoridades administrativas, conforme o disposto no artigo 33. do Regime Geral das Contra-Ordenaes. Este princpio comporta, no entanto, as excepes previstas nos artigos 20., 38. e 39. do mesmo diploma, relativas aos casos de concurso entre crime e contra-ordenao. No caso de a mesma conduta do infractor consubstanciar simultaneamente a prtica de crime e contra-ordenao (concurso ideal), este ser punido a ttulo de crime, sem prejuzo de lhe vir a ser aplicada pela autoridade judiciria competente para o procedimento criminal sano acessria prevista para a contra-ordenao (artigo 20. do RGCO). O poder judicial ser competente para processar a contra-ordenao e decidir da aplicao de coima e/ou sano acessria quando exista concurso (real) entre contra-ordenao e crime ou quando, pelo mesmo facto, uma pessoa deva responder a ttulo de crime e outra a ttulo de contra-ordenao (artigo 38. RGCO). 6 Com as alteraes introduzidas pelo Decreto-Lei n. 356/89 de 17 de Outubro, pelo Decreto-Lei n. 244/95 de 14 de Setembro e pela Lei n. 109/2001 de 24 de Dezembro.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 5

    Garca de ENTERRA entende por sano administrativa um mal infligido pela Administrao

    a um administrado como consequncia de uma conduta ilegal7.

    Para Pasquale CERBO, a sano uma medida de carcter aflitivo imposta no exerccio de um

    poder administrativo como consequncia de um comportamento de um sujeito em violao de

    uma norma ou de um procedimento administrativo. A sano surge como pena em sentido

    tcnico (dirigida preveno geral e especial), por ser resultado de um ilcito, compreendido

    como violao de um preceito imputado a um sujeito. 8

    Mais recentemente, Marcelo PRATES props a seguinte definio sano administrativa a

    medida punitiva prevista em ato normativo, que pode ser aplicada diretamente pela

    Administrao no mbito das suas relaes jurdicas gerais, a quem, sem justificao, deixe

    de cumprir um dever administrativo certo e determinado normativamente imposto..9 Acentua

    a sua natureza de pena em sentido tcnico, enquadrando-a no conceito de sano jurdica.

    Juntamente com a generalidade da doutrina, julgamos necessrio delimitar o conceito de

    sano administrativa do conceito de medida administrativa de polcia, esta ltima sem

    carcter punitivo, ou de outras medidas derivadas de efeitos automticos da lei, como as

    resultantes de actos administrativos invlidos, que no necessitam da interveno da

    Administrao.10

    7 El Problema Jurdico de las Sanciones Administrativas, in Revista Espaola de Derecho Administrativo, n. 10, Madrid: Civitas, Julho/Agosto 1976, pg. 399-430. 8 Le Sanzioni Amministrative, Sez. IV 51 Diritto Amministrativo, Giuffr Editore, 1999. 9 Itlico do autor, ob. cit., pg. 54 ss: Medida punitiva porque pena, castigo, privao imposta por autoridade sancionadora e no uma mera consequncia desfavorvel imposta normativamente como so as nulidades, por exemplo, nem tampouco uma qualquer medida administrativa desfavorvel, como o so as medidas administrativas de preveno, repressivas ou reparadoras. Adopta o conceito de sano para as medidas de natureza verdadeiramente punitiva, aquelas que implicam a imposio de uma privao ao responsvel pela prtica de um ilcito. O autor enuncia outras definies doutrinais como a de ZANOBINI, que define sanes administrativas como penas em sentido tcnico, cuja aplicao constitui, para a administrao relacionada aos deveres que essas penas asseguram, um direito subjectivo ou a de Suay RINCN: qualquer mal infligido a um administrado como consequncia de uma conduta ilegal, resultante de um procedimento administrativo e com finalidade puramente repressora. (pg. 52).

    10 Embora o Cdigo de Procedimento Administrativo, no artigo 51., apelide de sano a anulabilidade dos actos ou contratos celebrados por rgo ou agente impedido.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 6

    A distino entre sano administrativa e medidas de polcia ser efectuada infra.

    Marcelo PRATES distingue diversas categorias de medidas administrativas desfavorveis (uma

    vez que afectam direitos dos administrados), cujo procedimento de aplicao normalmente

    mais simplificado e menos garantstico para os administrados, impugnveis perante os

    tribunais administrativos e no perante os tribunais judiciais11:

    1- as que visam interromper os efeitos nocivos da infraco cometida (medidas

    administrativas repressivas, que aparecem para livrar os interesses pblicos de

    perigos eminentes ou de ofensas actuais e que podem ser utilizadas para afastar

    qualquer espcie de leso ou ameaa de leso ordem pblico-administrativa, de

    forma a evitar prejuzo maior do que j efectivado);

    2- as que visam recompor ou restabelecer a parte da ordem e da legalidade

    administrativa atingida pela infraco: medidas reparatrias, compensatrias (visam

    compensar ou remediar os danos causados) ou repristinatrias (visam repor as

    circunstncias existentes antes da prtica da infraco);

    3- as que no sucedem da prtica de um ilcito administrativo, procurando antes prevenir

    a sua realizao:

    a) medidas preventivas (medidas administrativas de polcia com objectivo de

    evitar condutas ilcitas);

    b) medidas de controle prvio (recusa de um direito ou vantagem no domnio

    administrativo, que no implica a restrio de direitos j existentes, antes a sua

    recusa);

    c) medidas de controle permanente, as quais resultam da fiscalizao

    contnua que deve ser empreendida pela Administrao acerca do

    preenchimento das condies de fato e de direito exigidas dos administrados

    beneficiados por determinados atos administrativos permissivos; 11 Ob. cit., pg. 175 ss.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 7

    d) medidas extintivas, que implicam a extino total ou parcial dos efeitos

    jurdicos de um acto administrativo anteriormente existente;

    e) medidas de invalidao de actos administrativos nulos ou anulveis;

    f) medidas revogatrias stricto sensu (decises da Administrao que,

    essencialmente por razes de convenincia e de oportunidade, retiram total ou

    parcialmente os efeitos jurdicos de um ato administrativo existente,

    normalmente licenas ou subvenes);

    g) medidas prudenciais (comandos positivos ou negativos dirigidos pela

    Administrao aos administrados com o intuito de evitar ou, pelo menos, de

    diminuir o risco de ocorrncia de infraes administrativas e de leses a

    interesses pblico-administrativos no necessariamente relacionadas prtica

    de um ilcito. Podem ser valiosas em sectores como o da sade e da higiene

    (ex: vacinao de animais ou desinfectao de instalaes) dos servios

    pblicos bsicos (medidas renovadoras das redes de gs, gs ou energia, para

    assegurar o seu fornecimento contnuo) e do urbanismo (conservao de

    imveis, para evitar a sua demolio compulsria);

    h) medidas cautelares, que consistem na imposio de nus ou restries

    enquanto antecipaes da condenao12;

    i) medidas persuasivas: procuram convencer o administrado de que a

    colaborao com a actividade administrativa benfica, impede o prejuzo de

    ambos. Constituem exemplos os actos informativos da Administrao:

    comunicaes dirigidas aos administrados a recomendarem a adopo de

    determinadas condutas.

    12 De acordo com o Acrdo n. 123/92, Acrdos do Tribunal Constitucional, 21. Vol., 1992, pgs. 457-466: o princpio in dubio pro reo no probe a antecipao de certas medidas cautelares e de investigao ou, no caso da instaurao de processo disciplinar, a suspenso do exerccio de funes e a suspenso do vencimento do exerccio. Medidas cautelares desta natureza no colidem com o princpio da proporcionalidade..

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 8

    Este autor qualifica ainda como hbridos dois tipos de sanes: as sanes administrativas

    persuasivas13, que embora sejam sanes, infligidas aps a realizao do ilcito, possuem

    inegvel componente persuasivo, dado que visam, de primeiro, obter do administrado o

    cumprimento de deveres que j foram por ele descumpridos, seja por meio da reduo

    posterior da sano administrativa concretamente aplicada, seja por meio da manuteno de

    um pena pendente sobre os seus interesses durante certo tempo e as sanes administrativas

    cautelares14, que visam adiantar a punio, por flagrante infraco, sendo a culpa do infractor

    presumida, presuno que parece aceitvel desde que juris tantum, admitindo prova em

    contrrio. Envolve antecipao da condenao, sendo provisria na medida em que s

    passar a definitiva se o administrado no exercer o seu direito de defesa dentro prazo ou se

    esta for improcedente.

    a aplicao imediata de sanes administrativas de se admitir unicamente quando em

    causa sanes de efeitos leves, como as sanes pecunirias de pequeno valor, destinadas a

    punir infraces administrativas de baixa gravidade.

    Discordamos da caracterizao destas sanes enquanto hbridas, na medida em que

    constituem inequivocamente sanes administrativas.

    As primeiras traduzem apenas previses legais de atenuao, suspenso ou mesmo dispensa da

    sano administrativa aplicada, tanto a ttulo principal como acessrio.

    O exemplo citado pelo autor relativo ao condutor que circulava em excesso de velocidade

    trata-se inequivocamente de uma sano administrativa, qualificada no ordenamento jurdico

    portugus como contra-ordenao, e no de nenhuma figura hbrida. Apenas sucede que a

    sano acessria de inibio de conduzir prevista no caso de infraces por excesso de

    velocidade qualificadas pelo Cdigo da Estrada de graves ou muito graves pode ser suspensa

    na sua execuo por um perodo mnimo de seis meses, nos termos e mediante a verificao

    dos pressupostos previstos no artigo 141. do mesmo diploma. Afirma o autor citado que se

    13 Ob. cit. pg. 191 ss. 14 Ob. cit., pgs. 203 e 204.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 9

    esse condutor no voltar a cometer infraes administrativas de trnsito durante esse perodo,

    ele no ter que arcar com a sano pecuniria inicialmente imposta e ficar absolutamente

    ilibado nesse setor administrativo quanto infrao cometida15. Ora tal no se aplica no

    sistema normativo portugus, uma vez que a suspenso da sano acessria de inibio de

    conduzir no iliba o administrado do cumprimento da sano principal pecuniria antes

    depende mesmo desse cumprimento, no libertando totalmente o agente da infraco

    cometida, uma vez que a contra-ordenao cuja sano acessria suspensa ficar averbada

    no seu registo individual do condutor e contar para efeitos de reincidncia face a futuras

    infraces de igual ou maior gravidade.

    Concordamos, isso assim, com o autor, quando afirma que a suspenso dos efeitos da sano

    administrativa ser particularmente til nos casos em que o administrado esteja continuamente

    sob a ordenao das mesmas normas administrativas, tendo que cumprir os mesmos deveres

    administrativos amide..

    As segundas sanes invocadas por Marcelo PRATES, as sanes administrativas cautelares,

    constituem igualmente sanes administrativas, na medida em que todos os pressupostos para

    a sua aplicao esto presentes: o seu objectivo claramente punir uma conduta tpica ilcita e

    culposa, ainda que essa culpa seja, tal como referido pelo autor, presumida, iuris tantum, de

    modo a no colidir com o princpio da presuno de inocncia.

    Apesar de no julgarmos necessrio o apelo a figuras hbridas, incontestvel que o carcter

    punitivo de certas medidas administrativas resulta difcil de apurar nalguns casos, uma vez que

    existem, por um lado, medidas administrativas com diversas finalidades16 e, por outro lado,

    15 Ob. cit., pg. 193.

    16 Marcelo PRATES, ob. cit., pg. 169, refere como exemplo de medida administrativa que pode assumir diversas funes e finalidades a medida de interdio do exerccio de uma actividade, a qual pode surgir como medida revogatria, repressiva ou sancionatria ou, na nossa opinio, assumir finalidades preventivas e punitivas simultaneamente. Segundo o autor, a aplicao, face a um nico incumprimento, de medidas sucessivas de natureza repressiva, reparatria e punitiva ou a inflio simultnea de medidas reparatrias e punitivas, so no apenas de se aceitar

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 10

    medidas administrativas sancionatrias que implicam os mesmos efeitos que determinadas

    medidas administrativas sem carcter punitivo.17

    A doutrina refere ainda outras situaes equvocas e difceis de delimitar conceptualmente

    como a medida de expulso de estrangeiros em situao irregular, uma vez que a permanncia

    em territrio nacional sem reunir as condies legalmente exigveis constitui infraco

    administrativa punvel com sano pecuniria. normalmente qualificada pela doutrina e

    jurisprudncia como medida de segurana administrativa18 sujeita ao mesmo regime das

    sanes administrativas.

    nossa opinio que, sempre que a natureza ou finalidade da medida administrativa prevista

    normativamente seja dbia, podendo no entanto, aps uma apurada interpretao do elemento

    teleolgico ou finalstico presente na norma, vislumbrar-se na mesma uma inteno punitiva

    por parte do legislador, ainda que secundria ou residual, devero ser concedidas ao

    administrado todas as garantias concedidas ao sujeito passivo de um processo sancionatrio

    administrativo, no seio do qual regem os princpios que elucidaremos infra, principalmente

    quando a medida administrativa em causa afecte os seus direitos.19

    como at de exigir em alguns casos, visto que cada qual possui condies e finalidades diversas, no havendo motivo para se impor a regra do non bis in idem no direito administrativo sancionador, a no ser que alguma lei expressamente o imponha. 17 Temos como exemplo a retirada ou apreenso da carta de conduo, sano administrativa extintiva, na qualificao de Marcelo PRATES, quando resultante da prtica de uma contra-ordenao grave ou muito grave ao Cdigo da Estrada ou medida administrativa de polcia preventiva (que Marcelo PRATES chama de controle permanente, por resultar da perda das condies exigidas para a manuteno de determinado benefcio do administrado), quando consequncia da caducidade do ttulo de conduo a partir do disposto no artigo 129. do Cdigo da Estrada ou, ainda, medida cautelar ou compulsria inserida num procedimento sancionatrio como o previsto no artigo 173. do Cdigo da Estrada, por falta de pagamento da coima no momento da autuao, a qual no visa verdadeiramente punir, mas garantir e impelir ao pagamento da coima. 18 Rosendo Dias JOS, Sanes Administrativas, in Revista de Direito Pblico Ano 5, n. 9 (1991), pg. 47. Veja-se, a propsito, o relatrio anual do SOS Racismo 2002, em www.sosracismo.pt, no qual se afirma: Ora, uma anlise jurdica no pode isentar-se do direito positivo, e as prticas administrativas indicam-nos claramente que a expulso, medida administrativa, afastada do seu objectivo e transforma-se numa verdadeira sano administrativa, uma segunda condenao.. 19 Neste sentido parece orientar-se Marcelo PRATES quando responde seguinte interrogao: No caso de o licenciado ou subvencionado cometer uma infraco punvel com sano administrativa de perda da licena ou subveno, poder a Administrao optar por aplicar medida revogatria do acto permissivo em causa? (...) A administrao somente poder se decidir pela medida revogatria se o interesse pblico fundamentador da retirada da licena ou da subveno disser respeito a uma coletividade de administrados na mesma condio do administrador infrator (). Em todos os outros casos, a prol da maior garantia dos administrados, a Administrao dever valer-se da sano administrativa geral, abrindo o respectivo procedimento administrativo

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 11

    Assim, na dvida acerca da natureza sancionatria de uma medida administrativa que afecte

    direitos dos administrados, dever considerar-se a mesma como sano administrativa.

    Aps o reconhecimento da dificuldade de caracterizao de certas medidas da Administrao,

    no resultando sempre claro o seu carcter sancionatrio, avanamos com uma definio de

    sano administrativa como uma medida punitiva imposta pela Administrao no caso

    de violao de uma norma jurdico-administrativa. Atravs dela, a Administrao visa

    punir o cidado pela prtica de um ilcito administrativo, necessariamente culposo.20

    A sano administrativa corresponde assim ao resultado do exerccio do poder sancionatrio

    da Administrao sobre os administrados, estando estes ou no em relao de supremacia

    especial, constituindo um importante meio da Administrao assegurar o seu regular

    funcionamento, no sentido de conseguir atingir os objectivos a que constitucionalmente se

    encontra adstrita.

    punitivo, de maneira a possibilitar ao administrado o indispensvel direito de audincia e de defesa de forma plena. (Ob. cit., pgs. 186 e 187). Semelhante tambm se pode considerar a situao francesa enunciada por Georges DELLIS, (Droit Penal et Droit Administratif LInfluence des Prncipes du Droit Penal sur le Droit Administratif Rpressif, Paris, in LGDJ, 1997, pgs. 155-190), em que o carcter punitivo da medida administrativa tem sido exigido para a admissibilidade da aplicao de garantias como o direito de audincia, pelo que h doutrina que procura equiparar o maior nmero possvel dessas medidas s sanes administrativas de modo a estender a aplicao desses princpios que deveriam ser indiscutveis. 20 Podemos indicar como pressupostos da sano administrativa os seguintes elementos: o comportamento humano, por aco ou omisso; a tipicidade desse comportamento, enquanto subsumvel na hiptese prevista pela norma legal sancionatria, preenchendo todos os elementos de facto nela prevista; a ilicitude, entendida enquanto antijuridicidade, como desconformidade ao direito e s normas administrativas; e a culpa, enquanto elemento subjectivo caracterizado pela vontade do agente de infringir a lei e a censurabilidade desse comportamento. Refira-se, ainda, neste contexto, o esquema proposto por Marcelo PRATES, elucidativo do caminho a percorrer at imposio da sano administrativa geral: Imposio por ato normativo, direta ou indiretamente, de um dever administrativo certo e determinado (exigncia de ao positiva ou negativa) previso, igualmente por ato normativo, de que o descumprimento a esse dever ser sancionado (criao da figura da infrao administrativa) no cumprimento desse dever (realizao do ilcito administrativo) ausncia de justificao (apreciao da espontaneidade da ao do administrado infrator no curso do procedimento administrativo sancionador, garantindo-se-lhe direitos de audincia e de defesa) aplicao da sano administrativa geral, por meio de ato administrativo expresso e fundamentado (ob. cit., pg. 105).

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 12

    2.2. Poder sancionatrio da Administrao Pblica e o princpio da diviso

    de poderes

    Ao lado do ius puniendi estadual de carcter administrativo que identificmos, coexiste o

    poder judicial, ao qual cabe a aplicao da justia, nos termos da Constituio da Repblica

    Portuguesa (CRP).

    Esta coexistncia parece fazer perigar o princpio da separao de poderes, essencialmente

    quando a Administrao exerce o seu poder sancionatrio em nome da proteco de interesses

    de ordem geral e no em autotutela.

    Com efeito, a relao entre a capacidade sancionadora da Administrao e as competncias do

    poder judicial potencialmente geradora de tenses.

    O princpio da separao de poderes um princpio informador do Estado de Direito e

    constitui uma conquista da Revoluo Liberal. A Administrao passou ento a prosseguir

    essencialmente uma funo preventiva, enquanto que o poder judicial detinha o monoplio do

    poder repressivo estatal.21

    Com a passagem do Estado liberal para o Estado social, a Administrao voltou 22 a deter

    poder sancionatrio, face ao crescente nmero de infraces resultado do intervencionismo

    estatal nas diversas reas da vida social e aos movimentos generalizados de descriminalizao

    21 Segundo Blanca LOZANO, Panormica General de la Potestad Sancionadora da la Administracion en Europa: Despenalizacion y Garantia, in Revista de Administracin Pblica, n. 121, Enero-Abril (1990), pgs. 393-397, a passagem do Estado Absoluto ao Estado Liberal ocorrido no sculo XIX deu origem, na maioria dos estados europeus, a uma progressiva abolio do poder geral da Administrao pblica mediante a jurisdicionalizao dos ilcitos administrativos. Constituem excepes a este movimento de jurisdicionalizao a ustria e a Sua. Na ustria, a manuteno do poder punitivo da administrao desde o absolutismo radica na concepo particular e meramente formal do princpio da diviso de poderes neste pas: a distino entre jurisdio e administrao no substancial e rgida mas somente formal-organizativa, sendo os juzes considerados funcionrios providos das garantias constitucionais de independncia, insubstituveis e inamovveis no desempenho das suas funes judiciais, enquanto os funcionrios dos restantes rgos administrativos no possuem aquelas garantias. A esta manuteno do poder sancionador da administrao incidiu tambm de modo importante a insuficincia do sistema para assumir a represso das contravenes de polcia (tribunais territoriais sobrecarregados). Na Sua, a estrutura federal e a independncia dos cantes favoreceram a perpetuao de sistemas sancionatrios independentes, confiados competncia administrativa. 22 Marcelo PRATES fala no retorno da Administrao ao poder punitivo e no no ingresso: ob. cit., pg. 26.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 13

    de certas infraces de menor repercusso tica.23

    Alguma doutrina chegou mesmo a colocar problemas de constitucionalidade: Como conciliar

    esta competncia com o princpio de separao dos poderes e com a atribuio aos tribunais

    do monoplio da funo jurisdicional?.24

    Miguel Pedrosa MACHADO25 questiona se as contra-ordenaes no constituiro um

    verdadeiro atentado ao princpio da jurisdicionalidade e ao princpio de separao de poderes,

    considerando necessrio saber se o facto de se infringir o princpio da jurisdicionalidade em

    relao a infraces que, por muito que o seu nomen juris seja modificado, no deixam de ser

    materialmente penais, ou no conforme Constituio, considerando a referncia expressa

    da Constituio existncia de um direito de mera ordenao social demasiado vaga e de

    difcil delimitao.26

    23 Antnio Domnguez VILA, Constituicin y Derecho Sancionador Administrativo, Madrid, Marcial Pons, 1997, pg. 106: a influncia das doutrinas alem e italiana na constituio do Direito Sancionador Administrativo foi determinante a partir da entrada do sc. XX. Esta jurisdicionalizao operada com a Revoluo Liberal quebrou depois da segunda guerra mundial, altura em que cresceu o mbito das sanes administrativas nos pases onde tal poder era admitido e se observa uma proliferao da legislao penal especial em outros, produzindo uma necessidade de despenalizao de condutas delitivas de pouca relevncia social. Isto levou a doutrina alem a tentar demonstrar a existncia de um mbito sancionador especificamente administrativo. Tambm em Itlia, a doutrina tentou delimitar um mbito sancionador substancialmente administrativo. 24 Manuel da Costa ANDRADE, Contributo para o conceito de contra-ordenao (A experincia alem), in RDE (1980/1981), pg. 118. 25 Elementos para o estudo da legislao portuguesa sobre contra-ordenaes, Lisboa, UCP, 1984, in Scientia Ivridica, 1986, pgs. 71, 106 e 114. 26 O mesmo autor refere, a propsito, a opinio do Dr. Maia Gonalves, aquando da discusso do projecto na generalidade, a 5 de Dezembro de 1963, criticando a autonomizao do ilcito administrativo por insuficincia do critrio do mnimo tico (limite fludo) e inconstitucionalidade pelo facto de se subtrair aos tribunais comuns a apreciao do ilcito administrativo. Na mesma ocasio, o Prof. Gomes da Silva referiu tambm que pode tornar-se uma porta aberta aos maiores abusos, desrespeitando a defesa da pessoa humana. Eduardo Correia objectou com a necessidade de limitao do ilcito criminal administrativo pelo prprio legislador, e no pelo intrprete ou aplicador do direito. Rejeitou a considerao de inconstitucionalidade, por no estar em causa a criao de tribunais especiais, mas a atribuio s autoridades administrativas do poder de imposio das penas. Em relao s objeces do Prof. Gomes da Silva, o Autor do Projecto afirmou a vigncia de princpios de defesa da pessoa humana tambm em matria de contravenes (pg. 71). Aps ter sido posta em causa a constitucionalidade orgnica do DL n. 232/79, publicado sem prvia autorizao da Assembleia da Repblica, a mesma matria foi publicada atravs do Decreto-Lei n. 433/82, em 27 de Outubro de 1982, operando, segundo o autor, uma substituio de uma lei-quadro por outra de idnticas caractersticas. (pg. 69). O autor reconhece, no entanto, a existncia de multiplicidade de sanes em resposta extrema variedade de violaes dos comandos normativos estaduais. Qualquer que seja a construo conceptual que justifique a

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 14

    Costa ANDRADE27 responde, a propsito das contra-ordenaes, que apesar de tudo, tem-se

    entendido que a referncia especificidade das sanes possui virtualidades para continuar a

    extremar o direito penal e o direito das contra-ordenaes como experincias jurdicas

    distintas, e a salvaguardar a constitucionalidade da competncia deferida Administrao..

    Sobre tal questo se pronunciou o Tribunal Constitucional28, a propsito dos artigos 33. e 34.

    n. 1 do j citado RGCO, considerando-os constitucionais, desde que esteja assegurada a

    possibilidade de impugnao judicial (prevista no artigo 59. do mesmo diploma):

    Garantido com efectividade e permanncia o direito de impugnao judicial das decises das

    autoridades administrativas aplicadoras de uma coima, h-de concluir-se no sentido de as

    normas agora sob anlise no atentarem por qualquer forma contra o princpio da reserva da

    funo jurisdicional aos tribunais consagrado no artigo 205. da Constituio.

    E, do mesmo modo, tais normas, tambm no afectam o disposto no artigo 211. do texto

    constitucional, uma vez que aquelas autoridades administrativas no dispem, em caso algum,

    de uma competncia criminal especializada, limitando-se a efectuar o processamento das

    contra-ordenaes por forma a tornar-se possvel a imposio das respectivas coimas que,

    como j se viu, detm natureza distinta da dos ilcitos criminais..

    Ainda que se admita uma invaso inter poderes, como defende alguma doutrina, esta no pe

    em causa o princpio da separao de poderes, nem as suas virtudes.

    Para cumprir os objectivos aos quais se determinou (controlo estadual, diviso de poderes em

    nome de uma maior imparcialidade e maior controlo, maiores garantias dos cidados,

    autonomizao dos ilcitos, no se esgotam no direito penal os mecanismos sancionatrios do sistema jurdico (pg. 88). S existe uma contra-ordenao quando a lei formalmente a preveja, pelo que, segundo o autor, aquando da entrada em vigor do DL n. 433/82, nenhuma contra-ordenao existia, remetendo para a posterior legislao especial os juzos crticos sobre a conformidade das contra-ordenaes com as exigncias constitucionais: quando muito, a lei-quadro merecer uma censura poltico-legislativa, por permitir que a esses problemas se chegue com facilidade. (pgs. 113-115). 27 Costa ANDRADE, Contributo para o conceito de contra-ordenao, , cit., pg. 118. 28 Acrdo do Tribunal Constitucional n. 158/92 de 23/4/92, publicado no Dirio da Repblica, II srie, de 02/09/1992.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 15

    prossecuo do interesse pblico) o princpio da separao dos poderes no necessita de existir

    na sua forma mais pura, desde que a possibilidade de impugnar judicialmente esteja sempre

    salvaguardada.

    A distino entre funo legislativa, funo executiva e funo judicial no surgiu

    originariamente marcada pela pretenso de compreender e descrever exaustivamente as

    funes do Estado, mas com um intuito claramente prescritivo e garantstico: a separao

    orgnico-pessoal daquelas funes era imposta em nome da liberdade e da segurana

    individuais..29

    Alis, a invaso do poder administrativo sancionatrio no mbito do poder sancionatrio

    judicial constitui uma opo clara do sistema, no sentido de uma melhor delimitao de

    competncias, de modo a permitir que a Administrao Pblica possua meios para tornar a sua

    actuao eficaz e efectiva, ao mesmo tempo que liberta os tribunais da sobrecarga de trabalho.

    At a doutrina crtica do sistema institudo pelo Decreto-Lei n. 433/82, como o Prof.

    Cavaleiro FERREIRA, apontando restries ao princpio da jurisdicionalidade e aumento de

    casos de responsabilidade objectiva, reconhece que a sano administrativa punitiva de ilcitos

    de mera ordenao social (contra-ordenaes) so, no momento que corre, tidas por

    instrumentos adequados resposta a dar pelo aparelho punitivo do Estado celeridade da vida

    econmica e social e hipertrofia da justia formal..30

    Seguindo PALIERO, o Direito Sancionador Administrativo constitui, assim, um elemento de

    controlo social alternativo ao Direito Penal e destinado a complementar a tutela dos bens

    jurdicos mediante a represso dos ilcitos de menor relevncia social. Esta funo de

    colaborar com a justia na preveno e punio dos ilcitos menores justifica o

    estabelecimento e manuteno do poder sancionador da Administrao.31

    29 Nuno PIARRA, A Separao dos poderes como Doutrina e Princpio Constitucional, um contributo para o estudo das suas origens e evoluo, Coimbra Editora, 1989, pg. 247. 30 Miguel Nuno Pedrosa MACHADO, Anteprojecto de Reviso do Decreto-Lei n. 433/82, de 27 de Outubro (Lei-Quadro do Ilcito de Mera Ordenao Social), nos Limites da Lei n. 4/89 de 3 de Maro, in Separata da Revista Portuguesa de Cincia Criminal, 2, 1992, pg. 297. 31 Blanca LOZANO, Panormica General, cit., pg. 413.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 16

    Aliado a esta ideia da existncia de um poder sancionador fora da esfera judicial que no

    colide com o princpio da diviso de poderes, est o reconhecimento, no direito comparado e

    por parte de certa doutrina, da unidade deste poder sancionador administrativo com o poder

    judicial, constituindo duas faces do mesmo ius puniendi do Estado, que , assim, unitrio.32

    Consideramos que existe uma certa unicidade do ius puniendi do Estado, que nunca chegou

    verdadeiramente a ser monoplio nem da Administrao nem do Juiz.

    No entanto, ocorre um fraccionamento do mesmo, tanto em relao aos diversos poderes

    (poder judicial e Administrao Pblica), como dentro da prpria Administrao, decorrente

    no apenas da pluralidade das administraes33, mas tambm das diferentes relaes jurdicas

    que se estabelecem entre administrao sancionadora e administrado infractor.

    32 A Constituio Espanhola consagra esta homogeneizao do poder punitivo do Estado, submetendo as vrias vertentes aos mesmos princpios informadores, cf. Domnguez VILA, ob. cit., pgs. 27 e 28: nas palavras deste autor, na Constituio Espanhola, fica claro que se consolida com carcter definitivo o modelo de ius puniendi do Estado, dividido em dois ordenamentos, o penal e o sancionador administrativo, o primeiro reservado ao poder judicial e aplicado por meio de penas e o segundo por meio de sanes administrativas.. Mas esta coexistncia no perfeita nem equivalente, j que do prprio artigo 25., nos seus pontos 2 e 3 se depreende a distinta funo e organizao punitiva de ambos, baseada fundamentalmente no carcter definitivo das sentenas e na atribuio em exclusivo ordem penal e organizao judicial das penas mais aflitivas, como a privao do direito fundamental da liberdade. No entanto, a equivalncia parece dar-se enquanto se deixa liberdade do legislador ordinrio a atribuio a uma ou outra ordem do ius puniendi das condutas que socialmente se entendam ilcitas ou punveis. Concordamos com o autor, por isso sublinhmos, quando este afirma que () para a sua adaptao ao marco constitucional e evitar o desordenado e hipertrofiado sistema normativo sancionador existente, necessrio convert-lo num sistema normativo, coerente, com a adopo de um mtodo triplo, como : definir o enquadramento e delimitao do sistema, dar-lhe contedo normativo e lev-lo prtica.. Torna-se preciso definir e plasmar numa lei, bsica para todas as administraes pblicas, os princpios garantsticos, substantivos e procedimentais. Acto seguido, determinar que condutas esto reservadas ao sistema judicial punitivo e quais podem passar a ser penalizadas por sano administrativa, devendo essas opes vincular moralmente os futuros legisladores, para evitar que se efectuem pontuais mas infinitas excepes regra geral. E por ltimo, deve-se abordar a configurao de um procedimento sancionador com exaustiva regulao das suas fases e iter processual. 33 Marcelo PRATES, ob. cit., pg. 26: Essa maior participao da Administrao no exerccio do jus puniendi, especialmente notada na generalidade dos Estados ocidentais da segunda metade do sculo XX, ainda que por caminhos variados, implicou a expanso do poder sancionador para alm da fronteira estatal, j que as autoridades administrativas, ao contrrio das autoridades judiciais, desenvolvem as suas actividades e, por consequncia, fazem uso dos seus poderes, tambm no plano infra-estatal (entidades autnomas, regionais ou locais), no plano supra-estatal (entidades comunitrias), e at mesmo no plano extra-estatal (entidades corporativas), para os quais foram inevitavelmente levadas as sanes administrativas.. O autor reconhece que o ius puniendi estatal assume diversas formas, desde o poder jurisdicionalizado ao poder administrativo, falando de poder punitivo pblico, embora consideremos o mesmo como poder partilhado, independente e com diferentes contornos.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 17

    Por isso a Administrao, ao impor sanes a particulares com os quais no mantm nenhuma

    relao jurdica especial, faz uso de um verdadeiro poder administrativo, poder administrativo

    sancionador geral.34

    2.3. Factores de desenvolvimento do Direito Sancionador Administrativo

    Em Portugal, o diploma legislativo que instituiu o ilcito de mera ordenao social, o Decreto-

    Lei n. 232/79 de 24 de Julho, expe no seu prembulo os factores que levaram sua criao:

    a superao definitiva do modelo do Estado liberal, por um lado, e o conhecido movimento

    de descriminalizao, por outro.

    A crescente interveno do Estado nos domnios da economia, sade, habitao, cultura,

    ambiente, etc., juntamente com as novas tarefas de planificao, propulso e conformao

    da vida econmica e social geraram a necessidade de uma aparelhagem de ordenao social

    a que corresponde um ilcito e sanes prprias.

    34 Trata-se de conceito usado por grande parte da doutrina e tambm por Marcelo PRATES. Por isso no podemos deixar de discordar quando este autor considera este poder extrnseco e potencial, por depender de prvia e expressa autorizao e regulao normativa, considerando que apenas o poder disciplinar se poderia considerar intrnseco por ser necessrio ao bom funcionamento dos servios. Consideramos que extrnseco, no sentido de funcionar por determinao e nos limites da lei, tambm o o poder judicial, embora haja realmente uma diferena essencial: o poder judicial ficaria vazio de contedo se no possusse poder sancionador. A funo repressiva ou sancionadora no constitui objectivo principal nem nico da Administrao embora com a descriminalizao e administrativizao de certas infraces ela assuma essa tarefa como prpria (logo, intrnseca) e que, reconhecidamente, contribui para o bom funcionamento da actividade administrativa e para a prossecuo do interesse pblico que ela visa. O autor corrige ao dizer que apesar de extrnseco e potencial no deve ser visto como acessrio ou subpoder, constituindo um poder administrativo autnomo, distinto do poder administrativo de polcia, contradizendo-se mesmo ao afirmar que o fato de o poder punitivo geral exercido pela Administrao ser tomado como verdadeiro e autnomo poder administrativo, para l de ser uma expresso do poder punitivo estatal, envolve o reconhecimento de que a actividade sancionadora desenvolvida pela Administrao no mbito das suas relaes gerais goza de prerrogativas de autoridade, carrega a finalidade e est sujeita aos limites genericamente impostos s diversas manifestaes dos poderes administrativos. Trata-se, pois de atividade que persegue a realizao de interesses pblicos, e no a realizao abstrata de justia, e que , tambm por isso, regulada pelo direito administrativo, sendo apenas subsidiariamente influenciada por princpios e regras penais a bem dizer, por princpios e por regras decorrentes do direito pblico sancionador. (pg. 39, itlico nosso). Acrescenta infra, a propsito do papel regulador do Estado, que a sano administrativa torna-se cada vez mais um instrumento de auxlio funo reguladora estadual. Assim, podemos afirmar que, se a Administrao assume cada vez mais um papel regulador, o poder sancionador administrativo torna-se cada vez mais intrnseco sua actividade, permitindo executar com eficcia as suas funes.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 18

    O movimento de descriminalizao liga-se ao fenmeno de hipertrofia do direito criminal

    face a uma inflao de incriminaes.

    A criao de um ordenamento sancionatrio novo e distinto do Direito Penal visou, segundo o

    legislador de 1979, libertar o Direito Penal do nmero inflacionrio e incontrolvel de

    infraces destinadas a assegurar a eficcia dos comandos normativos da Administrao, cuja

    desobedincia se no reveste da ressonncia moral caracterstica do direito penal, reservando

    a sua interveno para a tutela dos valores tico-sociais fundamentais e salvaguardar a sua

    plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficcia a onda crescente de criminalidade,

    nomeadamente, da criminalidade violenta.

    O ordenamento institudo por este Decreto-Lei visou igualmente munir os rgos legislativos e

    executivos de uma gama diferenciada de sanes ajustada natureza e gravidade dos ilcitos

    a reprimir ou prevenir alm de encurtar a distncia que, a este propsito, separa a ordem

    jurdica portuguesa do direito contemporneo vigente noutros Estados.35

    Assim, na senda do legislador portugus em referncia ao ilcito de mera ordenao social,

    podemos distinguir dois factores que levaram ao desenvolvimento do Direito Sancionador

    Administrativo:

    2.3.1. O Estado Social e o Estado Regulador

    A emergncia do Estado de welfare, influenciada pela crise econmica do ps-guerra e pelo

    pensamento keynesiano, significou uma expanso da actividade administrativa, tendo em vista

    a prestao de servios sociais reclamada pelos cidados.

    35 A propsito do caso espanhol, poderia justificar-se o crescimento do poder sancionador na existncia, durante todo o sc. XIX, de uma enorme desordem judicial e na falta de um Estado-de-Polcia ou Estado-Administrao, pois em Espanha nunca se produziu uma Revoluo Burguesa sem retorno, ao estilo europeu, nem se criou at finais do sc. XIX um aparato administrativo generalizado, independente do militar ou do poltico. Foi decisiva a tradicional ineficcia dos Tribunais penais que fizeram o legislador hispnico desconfiar do sistema judicial, uma vez que o juzo de faltas (tipo penal por donde haviam de se regular as infraces administrativas e o seu procedimento de imposio) no responde aos princpios de coordenao, eficcia, agilidade e rapidez que caracteriza, ou deve caracterizar, a actividade administrativa. Para uma compreenso da evoluo do direito sancionador administrativo espanhol, vide obra citada de Antnio Domnguez VILA, pg. 19 ss.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 19

    O Estado, especialmente a partir da segunda guerra mundial, expandiu a sua interveno a

    sectores como a promoo do bem-estar e da qualidade de vida, a efectivao dos direitos

    econmicos, sociais e culturais, a valorizao e proteco do patrimnio cultural, a defesa da

    natureza e do ambiente, a preservao dos recursos naturais, o ensino e o desenvolvimento

    harmonioso do territrio (tarefas fundamentais do Estado plasmadas no artigo 9. da CRP) e

    assumiu como suas tarefas que antes cabiam a entidades privadas.

    Esta expanso da actividade administrativa face concepo de Estado-Providncia, levou

    proliferao de legislao especial nas diversas reas de interveno social do Estado, com

    consequente aumento de condutas consideradas antijurdicas ou ilcitas.

    Esta mar de leis influencia profundamente os sistemas normativos tradicionais, incluindo o

    sistema sancionador.36

    Ordenamentos como o austraco e o suo ampliaram o mbito do poder sancionador j

    reconhecido Administrao naqueles pases, procurando modernizar o sistema

    administrativo e incrementar as garantias dos cidados.

    Nos restantes ordenamentos, o sistema sancionador penal mostrou-se insuficiente face a esta

    responsabilizao estatal pelo cumprimento dos mais variados objectivos de carcter social,

    econmico ou ambiental, consubstanciados na proliferao de condutas consideradas ilcitas,

    pelo se tornou inevitvel devolver Administrao o poder sancionador. A Administrao

    passou a ter de sancionar no apenas os ilcitos tidos por tipicamente administrativos como

    outros da mais variada natureza.37

    36 Blanca LOZANO, Panormica General , cit., pg. 398. 37 Constituindo excepo a esta tendncia, cf. Blanca LOZANO, Panormica General , cit., pg. 405 ss, a administrao activa em Frana s conservou poder repressivo no mbito das sanes disciplinares, s quais se pode acrescentar determinadas sanes interditivas, como o encerramento provisrio de um estabelecimento ou a privao do ttulo de conduo. Mas em Frana, como no resto dos pases europeus, a multiplicao dos ilcitos de menor gravidade fez sentir a necessidade de acelerar os trmites para a sua represso, a fim de evitar um bloqueio por excesso de trabalho dos rgos de justia. Esta finalidade no foi prosseguida, como em Itlia, na Alemanha ou em Portugal, mediante um processo despenalizador destinado a trasladar ilcitos penais de menor importncia para o mbito administrativo. A busca de um processo repressivo mais eficaz para os ilcitos menores foi alcanada atravs de uma srie de modificaes introduzidas dentro do prprio processo penal das contravenes, criando-se um subsistema penal especial para os referidos ilcitos. Entre estas inovaes distinguem-se:

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 20

    Blanca LOZANO declara a insuficincia do sistema sancionador penal ante a publicizao do

    Direito.38

    Eduardo CORREIA afirmava que o mbito do ilcito administrativo tem vindo

    progressivamente a enriquecer-se: comeando por abranger apenas algumas infraces

    policiais e contra a ordem administrativa stricto sensu, pretende hoje abarcar todas as

    infraces de interesses, da mais variada ordem, da administrao e mesmo algumas que

    como as contravenes tradicionalmente se consideravam englobadas no mbito do direito

    1- a no exigncia do princpio de reserva de lei no campo das contravenes (podem ser fixadas por via

    regulamentar). 2- a ampliao do mbito das penas contravencionais, com a incluso de factos que at ento constituam

    delitos menos graves. Ao mesmo tempo, atenuou-se a exigncia de culpa neste tipo de ilcitos, de tal maneira que frequentemente no se requer o elemento psicolgico, fundando-se a imputao no critrio da responsabilidade objectiva.

    3- no mbito processual, onde mais se sentiu esta tendncia de simplificao, estabeleceu-se, junto ao processo normal das contravenes, de um simplificado, o procedimento por ordonnance pnale, introduzido no Cdigo de Processo Penal francs de 1972 tendant simplifier la procdure en matire de contraventions:

    Deste modo, as medidas de simplificao e agilizao do procedimento sancionador para os ilcitos de menor gravidade tomaram-se no interior do sistema penal, no existindo um autntico direito sancionador administrativo. A administrao francesa est, no entanto, presente no processo penal, pois pode, a ttulo excepcional e em condies particulares, exercer a aco pblica para a prossecuo das contravenes que lesionam interesses a seu cargo. E, noutros casos, pode intervir no processo, tanto como parte civil, tanto porque deve ser escutada obrigatoriamente. Alm disso, o exerccio de determinadas funes jurisdicionais est a cargo de rgos da administrao. A administrao pode, em determinados supostos e sempre que o infractor o aceite voluntariamente, aplicar por si mesma as sanes penais e extinguir assim a aco pblica por meio das instituies da transaction e da multa a forfait. A transaction , conforme o nome indica, uma forma de transaco reconhecida a certas administraes fiscais, administrao das guas e bosques contravenes de grande voirie; administrao de Correios e radioteleviso; administrao da competncia e consumo, etc., em que a administrao concede ao contraventor uma atenuao das sanes que lhe foram impostas ou que lhe corresponderiam pela infraco cometida e renuncia a levar o assunto aos tribunais. Por seu lado, o contraventor beneficirio da transaco, se a aceita, compromete-se a pagar ao tesouro, a ttulo de sano, alm das custas eventualmente exigveis, a soma determinada pela administrao e renuncia iniciao ou prossecuo de todo o procedimento contencioso relativo s penalidades objecto de transaco e aos direitos a elas concernentes. (apesar da denominao desta figura, o contraventor no pode, na realidade, fazer mais que aderir ou recusar a proposta e as suas possibilidades de incidir sobre a mesma so mnimas). Relativamente s amende forfataire, denominada tambm oblation volontaire, uma instituio que permite ao contraventor evitar o procedimento simplificado de ordonnance pnale pagando uma multa aos agentes da administrao calculada segundo tarifas variveis segundo a natureza da infraco: foi introduzida em 1926 para infraces de circulao e estendeu-se a outras contravenes leves (transportes pblicos, etc.). 38 Panormica General , cit., pg. 397.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 21

    criminal de justia. De tal maneira que, hoje, o ilcito criminal administrativo abarca

    infraces que, ao menos aparentemente, nos sugerem ser da mais heterognea natureza..

    A partir da dcada de setenta, o Estado Positivo, produtor e prestador directo de bens e

    servios, entra em declnio, surgindo as teorias que provam o falhano do Estado (tal como

    antes tinham aparecido as que identificaram os falhanos do mercado).39

    Esta crtica do Estado Social surge associada, a nvel interno, ao aumento da despesa pblica e

    lentido e ineficincia da estrutura administrativa burocrtica, encaradas como obstculos

    iniciativa e criatividade e, a nvel externo, pelas exigncias econmicas e monetrias da

    integrao europeia, no sentido de evitar um dfice excessivo, aliada a uma maior competio

    internacional.

    39 A propsito, Giandomenico MAJONE, From de Positive to the Regulatory State: Causes and Consequences of Changes in the Mode of Governance, in Journal of Public Policy, Vol. 17, n. 2, May-August, 1997 e Lus de S, Traio dos Funcionrios? Sobre a Administrao Pblica Portuguesa, 1. edio, Porto, Campo das Letras, 2000.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 22

    Comea ento a delinear-se um novo paradigma de Estado40, o Estado Regulador, cujas

    caractersticas se reflectiram na Administrao Pblica atravs, nomeadamente, da adopo

    das seguintes medidas41:

    privatizao do sector pblico; uso de mecanismos de mercado; descentralizao; desenvolvimento de indicadores de performance; orientao para o consumidor.

    Estas iniciativas, associadas a novos modelos de gesto pblica, como o New Public

    Management, consistiram numa resposta premente necessidade de introduzir na

    Administrao Pblica mecanismos de eficincia e de qualidade, que se comeou a sentir

    aquando da crise do Estado de welfare e se agudizou com o processo de globalizao e de 40 MAJONE, From the Positive to the Regulatory State, cit., pg. 94, define assim os dois modelos de Estado:

    Positive State Regulatory State Main Functions Redistribution, macroeconomics

    stabilization Correcting market failures

    Instruments Taxing (or borrowing) and spending

    Rule Making

    Main Arena of Political Conflict Budgetary allocations Review and control of rule making

    Characteristic Institutions Parliament, ministerial departments, nationalised firms, welfare services

    Parliament committees, independent agencies and commission, tribunals

    Key Actors Political parties, civil servants, corporate groups

    Single issue movements, regulators, experts, judges

    Policy Style Discretionary Rule-bound, legalistic

    Policy Culture Corporativist Pluralist

    Political Accountability Direct Indirect

    41 J. A. Oliveira ROCHA, Gesto Pblica e Modernizao Administrativa, INA Instituto Nacional de Administrao, 2001, pg. 92.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 23

    integrao europeia, fazendo com que as prprias administraes sejam comparveis e os

    Estados concorrenciais no fornecimento de bens e servios pblicos: No momento actual,

    tambm a Administrao Pblica deve aderir tendncia de que a maior produtividade,

    eficincia e eficcia na prestao de servios ao cidado no pode ser uma questo de

    diferenciao, mas de padronizao, no uma questo de opo, mas de sobrevivncia..42

    No entanto, o Estado continua comprometido com o interesse pblico, por exigncias

    constitucionais e dos prprios cidados.

    O crescimento do Estado Regulador no significa um regresso ao laisser faire laisser passer,

    mas antes uma combinao entre uma desregulamentao e uma re-regulao (a onda ultra-

    liberal que defendia a concepo de Estado-mnimo, eliminando os direitos sociais, no teve

    apoio poltico).43

    O Estado44 deixa de ser prestador directo e passa a regular, controlar e fiscalizar os

    particulares que assumem a prossecuo das tarefas pblicas.

    A doutrina fala em fuga para o direito privado, para a liberdade do direito privado, mais

    eficiente e flexvel, combinando-o com os valores comunitrios e os controlos pblicos que a

    doutrina do direito administrativo tem agora de formular.45

    42 Graa POMBEIRO, O Dirigente Perante os Desafios da Modernizao e da Qualidade, in AA.VV., Moderna Gesto Pblica: dos meios aos resultados, Oeiras, INA Instituto Nacional de Administrao, 2000, pgs. 271-286. 43 BRESSER-PEREIRA, Uma Nova Gesto para um Novo Estado: Liberal, Social e Republicano, in Revista do Servio Pblico (The 2001 John L. Manion Lecture, Ottawa, Canad), 52(1), Janeiro 2001, pgs. 5-24, apelida o novo estado sucessor do Estado-Providncia como de social-liberal, social porque assegura os direitos sociais e civis dos cidados e liberal porque acredita no mercado e na concorrncia. 44 A regulao tambm assumida a nvel da Unio Europeia, embora sejam negados s agncias europeias de regulao os poderes atribudos s nacionais, sendo que as primeiras assumem mais uma regulation by information, cuja eficcia depende da credibilidade e reputao que adquirem, cf. Giandomenico MAJONE, The New European Agencies: Regulation by Information, in Journal of European Public Policy, Vol. 4, n. 2, June 1, 1997. 45 Vieira de ANDRADE, Os Caminhos da Privatizao da Administrao Pblica (IV Colquio Luso-Espanhol de Direito Administrativo), in Col. Studia Iuridica, n. 61, Coimbra Editora, 2001, pg. 12. Gomes CANOTILHO, Paradigmas de Estado e Paradigmas de Administrao Pblica, in AA.VV., Moderna Gesto Pblica: dos meios aos resultados, Oeiras, INA Instituto Nacional de Administrao, 2000, pgs. 21-34, aponta problemas que advm da interveno reguladora do Estado, tais como:

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 24

    A concepo liberal de separao absoluta entre Administrao e administrados, entre o

    pblico e o privado, fica afastada quando se passa a aceitar que os cidados participem das

    mais variadas formas na actividade administrativa.

    tradicional atividade imperativa soma-se a atividade consensual, isto , a Administrao

    passa a desenvolver as suas atividades antes pela via da coordenao, seja com outros entes

    pblicos (cooperao), seja com os particulares (colaborao), do que por aquela da

    subordinao. Mesmo porque em vrios setores existe substancial coincidncia entre os

    interesses da Administrao e os interesses dos cidados46.

    A privatizao dos servios pblicos, o exerccio dos direitos civis e polticos dos cidados

    (expresso da proclamada democracia participativa) e a necessidade legitimao e controlo da

    actuao do Estado atravs da accountability47, so aspectos que levam a uma maior

    responsabilizao, tanto do Estado como da sociedade civil, pelos resultados obtidos na

    prossecuo eficaz do interesse pblico.

    As repercusses da transio para um Estado Regulador no Direito Sancionador

    Administrativo so importantes: a sano administrativa mostra-se um instrumento

    indispensvel funo reguladora do Estado.

    problemas de assimetria informativa: o ente controlado sabe mais que o regulador; problemas de harmonizao da concorrncia com o fim dos servios pblicos (ex: preos de bens

    essenciais); problemas de articulao entre o poder regulador e a distribuio de competncias: resistncia de outros

    poderes constitucionalmente legitimados (ex.: regulao de guas e resduos pelos Municpios); problemas de controlo: os reguladores so politicamente independentes, mas num Estado de direito

    democrtico no se pode dispensar o controlo dos controladores; problemas de justia e equidade: questes de justia redistributiva, social e poltica.

    Refere a necessria compatibilizao entre uma regulao de primeira ordem: manter os mercados concorrenciais e uma regulao de segunda ordem ou regulao poltica e social: correco das injustias do mercado no campo dos direitos fundamentais dos cidados: acesso a servios essenciais a um preo acessvel. 46 Marcelo PRATES, ob. cit., pg. 43. 47 O conceito de accountability deve ser interpretado no sentido de obrigao de responder pelos resultados, cuja importncia no pode visar apenas a eficincia das polticas, mas tambm o tipo de orientao prevalecente numa sociedade democrtica (Juan MOZZICAFREDDO, A responsabilidade e a cidadania na Administrao Pblica, in Sociologia, Problemas e Prticas, n. 40, 2002, pg. 9 ss).

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 25

    Regulao, fiscalizao e punio fazem parte de uma cadeia de elos sucessivos

    indissociveis, dentro da qual o aumento do primeiro elo, a regulao, implica o

    robustecimento dos elos seguintes, escreve Marcelo PRATES48, que cita Nieto GARCIA, se se

    aceita a regulao pblica, h que aceitar a sano pelo seu descumprimento..

    Costa ANDRADE afirma que no moderno sozial Rechtsstaat, a interveno do Estado

    deixou de apelar para transcendentes raisons d tat, passando a responder s reivindicaes

    da prpria sociedade e a legitimar-se nelas. O homem, recorda FORSTHOFF, vive no s no

    Estado mas tambm do Estado, fundamento para uma actuao conformadora e, por isso

    mesmo, potencialmente repressiva do Estado.49

    No Estado Regulador, podemos dizer que, se os cidados assumem certas actividades sob

    regulamentao e controlo pblicos, tm de aceitar como legtima a imposio administrativa

    de sanes face ao no acatamento das regras (deveres positivos ou negativos) a que aceitaram

    sujeitar-se.

    2.3.2. Descriminalizao

    O desenvolvimento do Direito Administrativo Sancionatrio indivisvel do fenmeno da

    descriminalizao50, iniciado em Portugal com o Cdigo Penal de 1982 e sob influncia

    alem.

    Na generalidade dos pases europeus, o fenmeno de proliferao da legislao penal especial

    resultante do crescente intervencionismo estadual conduziu a uma hipertrofia do Direito

    Penal (a inflao legislativa levou desvalorizao da eficcia das normas e da sua

    funo de preveno com um efeito anlogo inflao monetria)51 e incapacidade dos

    tribunais para julgar com eficincia e rapidez todos os delitos, face sobrecarga de trabalho

    que sobre eles passou a recair. 48 Ob. cit., pg. 47. 49 Contributo para o conceito de contra-ordenao, cit., pg. 83. 50 E no despenalizao, na medida em que a conduta no deixa de ser ilcita e punvel: apenas deixa de o ser criminalmente, passando para o mbito administrativo, sendo que concebemos a sano administrativa como pena em sentido tcnico. 51 Blanca LOZANO, Panormica General, cit., pg. 399.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 26

    Os movimentos descriminalizadores caracterizaram-se, por um lado, por uma passagem para o

    mbito do poder administrativo de condutas delitivas consideradas menores, atravs da criao

    de um sistema punitivo conciliador dos princpios de eficcia e de respeito das garantias

    individuais, reservando ao poder judicial a punio dos ilcitos merecedores de maior

    reprovao, e, por outro, numa repenalizao de outras condutas que foram adquirindo

    maior relevncia social, especialmente face ao fenmeno da globalizao, em reas como a

    proteco do meio ambiente ou a economia.

    Esta redistribuio dos ilcitos entre a esfera criminal e a esfera administrativa coloca a

    questo da j referida dificuldade de diferenciao material entre os ilcitos, reflectindo o

    carcter mutvel e histrico dos bens jurdicos e a natureza poltico-legislativa que subjaz

    escolha da proteco que estes merecem por parte do sistema (seja ela administrativa ou

    criminal).52

    Em Portugal, a onda de descriminalizao levou afirmao das contra-ordenaes, no

    apenas enquanto consequncia do intervencionismo crescente do Estado na vida econmica e

    social, mas tambm enquanto instrumento para a reforma do Direito Penal. Neste contexto, as

    contravenes qualificadas como bagatelas foram convertidas em ilcitos contra-

    ordenacionais e as restantes em crimes.

    TIEDEMANN considera que esta descriminalizao de extensas zonas da vida social fez com

    que, no curto espao de pouco mais de quinze anos, o direito das contra-ordenaes se tivesse

    convertido num reservatrio de escolha de infraces de provenincia muito dspar. Ao lado

    dos casos originrios de autnticas infraces administrativas (v.g. violao de deveres de

    informao, registo, contabilidade, preenchimento de formulrios, etc.) apareceu por fora

    52 Domnguez VILA, ob. cit. pg. 26, refere que a delimitao ordenamental operada em Itlia entre sanes administrativas e penas propriamente ditas, assim como os ilcitos submetidos a uma ou outra ordem, plasmou-se num novo corpo normativo, com carcter de Directriz, para os rgos administrativos preparadores de propostas de novas normas jurdicas que possam no futuro possuir um contedo sancionador. Atravs de uma Circular da Presidncia da Repblica, datada de 19 de Dezembro de 1983, foram estabelecidos critrios orientadores para a eleio entre sanes penais e administrativas.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 27

    da converso de numerosas contravenes em contra-ordenaes em especial, a extensa rea

    de pequena criminalidade. Nem faltam no mais recente direito das contra-ordenaes os

    delitos de perigo abstracto orientados para a tutela de bens individuais ou supra-individuais,

    acrescentando que esta pluralidade tem perturbado muito mais a teoria do que a praxis.53

    Considerando a opinio de Carlo Enrico PALIERO e Aldo TRAVI54, podemos apontar como

    objectivos da descriminalizao:

    reduzir o n. de processos nos tribunais sobrecarregados, incapazes de solucionar os conflitos resultantes do crescente intervencionismo estadual;

    distinguir a tutela de bens considerados primrios de outros com menor valor tico, consagrando a sano penal como ltimo recurso de punio;

    interesse poltico: munir a Administrao de poderes para poder realizar os seus objectivos.

    A sano administrativa pode efectivamente mostrar-se mais adequada em termos de eficcia,

    pelo menos em relao a condutas relativas a actividades especficas e em termos de punio.

    No entanto, como referem PALIERO e TRAVI, no h dados estatsticos relativos eficincia do

    sistema sancionador administrativo, ou h falta deles.

    Ora o sucesso da descriminalizao est relacionado com a capacidade da Administrao

    realizar uma funo punitiva, porque o sistema, ao descriminalizar, no pretende deixar certos

    interesses (mesmo menores) sem proteco, antes delega a sua defesa na Administrao.

    53 Citao de Costa ANDRADE, Contributo para o conceito de contra-ordenao, cit., pg. 108. 54 Administrative Law in Practice: General Aspects, in revue internacionale de Droit Penal, Vol. 59, pg. 495 ss.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 28

    A expanso da actividade sancionadora da Administrao tem obrigado ao crescimento das

    Administraes Pblicas e criao de novas entidades (especialmente as reguladoras), s

    quais se afecta um cada vez maior volume de trabalho, semelhana do que aconteceu no

    passado com os tribunais judiciais, que tm sido objecto das mais variadas reformas.

    Relativamente ao objectivo de aliviar os tribunais, pelos menos os comuns, este fica

    comprometido pela possibilidade concedida aos administrados sancionados no mbito dos

    processos contra-ordenacionais de recorrerem judicialmente das decises administrativas,

    embora no possamos afirmar, com Marcelo PRATES, at porque falta o mencionado suporte

    estatstico, que a utilizao do recurso jurisdicional tende a perder o carcter de exceo para

    passar a ser a regra..55

    Para PALIERO e TRAVI o objectivo de minorar a sobrecarga dos tribunais s atingido em

    infraces punveis com coimas ou sanes pouco rgidas (punidas mais levemente), uma vez

    que tal facto constituiu um factor inibidor dos recursos judiciais.

    55 Ob. cit., pg. 233.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 29

    2.4. Sanes administrativas em sentido estrito (ou de autotutela) e em sentido amplo (ou de heterotutela)

    Pasquale CERBO distingue duas noes que representam dois estdios de evoluo da sano

    administrativa, primeiro como instrumento da Administrao com mltiplas funes at figura

    assimilvel, na estrutura e finalidade, s sanes penais.

    Este autor engloba no conceito de sano administrativa em sentido amplo, todas as medidas

    adoptadas pela Administrao como consequncia de uma violao de um preceito jurdico-

    administrativo, prescindindo de consideraes acerca da finalidade de tais reaces.

    Ao limitarmos o conceito de sano administrativa a medidas com carcter punitivo da

    administrao destinadas a punir a prtica de um ilcito administrativo, exclumos do conceito

    de sano administrativa determinadas medidas adoptadas pela Administrao, com intuito

    meramente preventivo (medidas de polcia referidas supra) ou destinadas a repristinar a

    situao de legalidade material, desprovidas de qualquer inteno penalizadora, pelo que a

    noo exposta no coincide com a noo de sano administrativa adoptada neste estudo.

    A noo de sano administrativa em sentido amplo enunciada por Pasquale CERBO aparece,

    essencialmente, caracterizada por dois elementos, baseados no binmio violao-consequncia

    desfavorvel:

    a) a incidncia desfavorvel respeitante a um interesse do destinatrio;

    b) a relao com a violao de um preceito por parte do cidado.

    A esta noo vaga e pouco coincidente com a previso legal, contraps este autor a noo

    de sano administrativa em sentido estrito, adoptada pela lei italiana n. 689/1981, qual

    pena em sentido tcnico, de modo a diferenci-la das outras medidas que a Administrao

    possa adoptar, ainda que resultado de violao de um preceito. Assim, a sano administrativa

    destina-se a castigar o responsvel da violao, com o escopo de dissuadir seja o sujeito

    (preveno especial), seja outros conscios (preveno geral) de cometer futuras violaes do

    preceito de tutela do interesse geral.

  • O Sistema das Sanes e os Princpios do Direito Administrativo Sancionador 30

    As sanes disciplinares consideram-se como sanes administrativas que, no entanto,

    representam uma tipologia com caractersticas autnomas.

    Ao conceito de sano administrativa que Pasquale CERBO define como estrito, Marcelo

    PRATES considera-o como amplo ou geral, distinto do conceito de sano administrativa

    especial, diferena baseada no tipo de relao jurdica estabelecida entre Administrao

    sancionadora e administrado: o exame indistinto das sanes administrativas gerais e das

    sanes administrativas especiais tende a apagar a atual complexidade da atividade

    administrativa sancionadora, no revelando as especificidades de cada uma dessas sanes e,

    pior, confundindo fenmenos jurdico-administrativos que, a despeito de conduzirem a

    conseqncias similares, possuem antecedentes, regime jurdico e finalidade distintos..56

    Garca de ENTERRA distingue no conceito de sano administrativa em sentido amplo duas

    categorias de sanes administrativas (distino tambm adoptada pela generalidade da

    doutrina): as sanes administrativas de autoproteco57 e sanes administrativas de

    proteco da ordem geral.

    Quanto s primeiras, o seu objectivo proteger o bem ordem administrativa, tratando-se de

    uma tutela primria declarativa (mediante a qual a Administrao define as posies jurdicas

    dos particulares, unilateralmente) e executiva (poder de execuo prvia das decises

    administrativas, isto , sem necessidade de recurso prvio aos tribunais).

    Trata-se de um poder vocacionado proteco da prpria Administrao, com efeitos sobre

    aqueles que com ela esto relacionados e no contra os cidados em geral, impondo o

    respeito de uma disciplina que a instituio administrativa deve garantir mediante o uso de um

    poder que lhe inerente, como toda a instituio (MURGEON). 56 Ob. cit., pg. 55. 57 O autor distingue quatro manifestaes caractersticas deste poder sancionatrio de auto proteco da Administrao: sanes disciplinares, sanes rescisrias d