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OS NOVOSR.UMOSDA LÍNGUAPORTUGUESA
Conferências Se nos encontrássemos hoje com D. Afonso Henriques,conseguiríamos compreender a sua língua? O professor luo Castro, autorde um novo curso realizado no CCB, explica porque sim. Págs. 10 e 11
por luo Castro
Ivo CastroPágina 10
Professor Catedrático da Fa-
culdade de Letras da Univer-sidade de Lisboa (FLUL),sendo atualmente diretor da
Área de Ciências da Lingua-gem da FLUL. É licenciadoem Filologia Românica edoutorado em LinguísticaPortuguesa.
METAMORFOSES DA LÍNGUA PORTUGUESA
História da língua,história da nação
por luo CastroA História da Língua Portuguesa ao longo dos seus nove séculos é o tema do novo curso que integra o Ciclode Literatura e Humanidades do Centro Cultural de Belém. O professor luo Castro, da Faculdade de Letrasda Universidade de Lisboa, profundo conhecedor do passado da nossa língua, explica os muitos e curiosos
episódios que marcaram decisivamente a forma como hoje falamos
ALARIA Afonso Henri-
quês um bom português?É de crer que sim, apesarde ser filho de um senhor
francês, que mal teve
tempo de conhecer, e
de uma senhora leonesa
com quem, segundo as
crónicas, se dava mal. De-terminante não foi a na-cionalidade dos pais, nemo local do nascimento
(Guimarães? Viseu?), mas o facto de ter sido
criado no seio de uma boa e ampla família do
condado portucalense, fosse ela a dos senho-res da Maia, ou dos de Ribadouro. Aí bebeu
ele, com o leite, a sua língua materna. Queseria, só poderia ser, um dos dialectos daárea inicial do galego-português, por isso
bem distinto por traços de pronúncia dos
dialetos falados a oriente, na corte leonesaonde reinava o seu avô, e por maioria de ra-zão distinto do árabe e dos restos de roman-ce moçarábico que, a sul, para os lados de
Coimbra, ocupavam a fronteira móvel da
Reconquista. Mas que, ao invés, permitia ao
jovem príncipe conversar com os de Vigo,Compostela, ou mesmo Corunha, que com-
partilhavam de dialectos nascidos do mesmo
tipo de latim, transformados pelos mesmos
processos. Essas afinidades linguísticas man-têm-se no terreno até aos dias de hoje, mas
para as reconhecer é necessária alguma apli-cação, porque vão contra a corrente da cons-
trução de um país em que Afonso Henriquese os seus descendentes se empenharam comsucesso.
Reconhecermos através das palavras cer-tas afinidades que não são óbvias entre espa-
ços e pessoas do passado, e entre elas e nós
que delas saímos, suspeitarmos que Afonso
Henriques talvez pudesse conversar connos-
co, sermos capazes de ler narrativas e versosmedievais sem necessitar de tradução, pres-sentirmos que fios evolutivos originados no
passado passam por nós e seguem seu cami-nho para um futuro que apenas consegui-mos entrever - estes são alguns efeitos e
proveitos que alcança quem estuda a histó-ria da sua comunidade através da língua em
que todos, antigos e modernos, comunica-
ram, em que são registados factos relevan-tes que não devem ser esquecidos, com quefoi elaborada a literatura que puxa para cima
os nossos níveis de civilização colectiva. O
passado, de tão íntimo que se torna, afinalacaba por se revelar bastante presente. Nelenos conhecemos e nos reconhecemos.
Para isto serve a história, para isto serve a
história da nossa língua, que não precisa de
muitas palavras para se deixar contar. Emresumo austero, temos o que segue. A lín-
gua portuguesa nasceu do latim falado pelaspopulações da Galiza, do Norte de Portugal edo ocidente das Astúrias - na prática, o can-to Noroeste da Península Ibérica. O peque-no grupo de dialectos galego-portuguesesoriginários não tardou a mudar de natureza,forma e ambições: cresceu para sul, cindiu--se em galego e português, tornou-se línguade uma nação e passou a veículo de um im-pério; hoje, é uma língua transnacionale transcontinental.
Pode situar-se no séc. VI o início do pro-cesso de criação da nova língua. Sistematica-
mente, mas apenas naquele canto, dois fe-nómenos de mudança fonética começarama afectar extensivamente o léxico: nas pala-vras latinas iniciadas pelos grupos PL, CL,FL, estes convergiram para um som palatal
que hoje representamos por CH (e que ain-da soa, em Trás-os-Montes, exactamentecomo na Idade Média soava em toda a na-
ção): plicare> chegar; clamare> chamar; fla-
grare> cheirar. Ao mesmo tempo, as con-soantes latinas N e L, quando se encontra-vam entre vogais, passaram a ser produzidascom pouca força e acabaram por se tornarinaudíveis, deixando as duas vogais em con-tacto (fonte de novos problemas para a fren-
te): lana> lãã> lã; bona> bõa> boa; mala>maa> má.
Não é pouca coisa. Nos quatro parágrafosque este artigo já leva, contam-se 575 pala-vras, descontando os exemplos. Dessas pala-vras, 35 sofreram a perda de N etimológico(entre elas: seio, boa, razão) e 14 a perda de
L (português, vogais, etc), o que equivalequase à décima parte do texto. Isto dá umaboa ideia da visibilidade (melhor dito, audi-
bilidade) destas transformações, que fize-ram que a língua falada no Noroeste penin-sular se tornasse claramente diferente tantodo latim antes aí falado, como das outras lín-
guas que ao lado começavam as suas pró-prias histórias.
Assim se iniciou o primeiro grande ciclo
que reconhecemos na história do português:o ciclo da Formação da Língua. Até ao séc. XV,a par da conquista do território aos árabes e
da constituição do reino de Portugal, os dia-lectos dos povos do Norte transplantam-separa o Sul, onde se mesclam entre si, e como árabe, e se tornam base para a língua da
corte, uma norma culta de características
meridionais, que seria acolhida como línguanacional nos séculos seguintes. Na mesmalinha, o galego-português que os trovadoresmedievais tinham usado, língua em certamedida convencional, é substituído poruma moderna língua literária, vitalizada
pela leitura de clássicos latinos e de huma-nistas castelhanos. Assim se fecha a IdadeMédia durante um séc. XV de grandes mu-tações nacionais.
Segue-se o ciclo da Expansão da Língua:o período do séc. XV a inícios do séc. XVI é
aquele em que a língua mais radicalmentese transfigura. O léxico enriquece-se pelocontacto com línguas exóticas, a importaçãode cultismos clássicos e a adopção do caste-lhano como segunda língua literária. A par-tir do XVI, tenta afirmar-se uma norma lin-
guística, regulada por gramáticos. Os dialec-tos do continente distribuem-se segundoum mapa muito semelhante ao moderno:conservadores e nítidos a norte, esbatidos
a sul. O som do português europeu vai-sefixando até ao séc. XVIII, após o que não
regista alterações significativas até ao XX.Enquanto assim se reestruturava e conso-
lidava dentro de portas, a língua portuguesaacompanha o movimento das Descobertase expande-se para fora da Europa, semprepara sul, com dois tipos específicos de actua-
ção, logo a partir do séc. XVI:a) ao longo do litoral africano e asiático,
associa-se a línguas locais para produzir pid-gins e crioulos, que deram, como resultados
modernos, a situação linguística de Cabo
Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e certasáreas do Índico e Oceania, onde predomi-nam crioulos de base portuguesa, línguasautónomas que deixam ao português o pa-pel de língua oficial.
b) para territórios como o Brasil, a Áfricae a Ásia, transplanta dialectos de Portugalque aí alcançam desenvolvimentos pró-prios em aliança com outras línguas, che-
gando aos nossos dias com plena vitalidade
nos dois primeiros espaços e em estado de
relíquia no asiático. No Brasil, em combina-
ção com as línguas índias e principalmentecom os crioulos trazidos com os escravos
africanos, formou-se uma variedade nacio-nal do português com história e caracterís-ticas próprias. Hoje, qualquer descriçãoda nossa língua precisa de especificar se se
aplica à variedade europeia (PE) ou à varie-dade brasileira (PB). Ou, na mesma onda, se
se aplica às variedades africanas que estão
em gestação: o PM em Moçambique e o PA
em Angola.Significa isso que a língua portuguesa está
em vias de se fragmentar? Muitos séculos
decorrerão antes de sabermos se essa hipó-tese se concretizará: entretanto, o que se
disser a esse respeito depende muito dos
receios e dos desejos de quem fala. O papelhistórico do português europeu não pareceameaçado, mas as comunidades que cres-
cem e se desenvolvem com maior dinamis-
mo, e falando português como língua ma-
terna, não se encontram em Portugal, massim no Brasil e em África. Importa que todosnos sintamos em casa, confortavelmente,na casa comum da nossa língua.
Abordo mais desenvolvidamente estes te-mas, e outros igualmente relacionados coma história da língua portuguesa, num ciclode cinco lições semanais, a decorrer entre13 deste mês e 13 de Março no Centro Cul-tural de Belém (ler caixa), e numa extensaentrevista que o programa Páginas de Portu-
guês, da Antena 2, transmitirá nos dias 16
e 23 deste mês, às 17.00.Por decisão do autor, o texto não segue o novoMordo Ortográfico
Curso Históriada LínguaPortuguesaCENTRO CULTURAL DE BELÉM
13 FevereiroQUANTOS ANOS TERÁ A LÍNGUA POR-TUGUESA?A origem da língua portuguesa não pode ser
datada com precisão. Os mais antigos docu-mentos conhecidos são do tempo de Afon-so Henriques, mas a língua começou a serfalada bastante mais cedo.
20 FevereiroA PÁGINA DE PORTUGALComo se formaram, no terreno, as principaislínguas da Europa? O que poderia ter sido o
mapa linguístico da Península Ibérica? O
mapa de Portugalfoi escrito como umapáginade texto. Aparentemente, em verso.
27 FevereiroNARRATIVAS MEDIEVAISUm dos primeiros documentos portugue-ses pode ser lido como uma narrativa de
aventuras. Mas, primeiro, há que lê-10.
6 de MarçoO ANO DE 1415O que muda, na línguaportuguesa, durante a
primeira metade do século XV.
13 de MarçoHISTÓRIA DO FUTUROE agora, português?