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REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. IV Nº 8 FEVEREIRO/2013 Marcos C. P. Soares 152 PARANOIA E INTERPRETAÇÃO EM ANNIE HALL DE WOODY ALLEN Prof. Dr. Marcos C. P. Soares 1 http://lattes.cnpq.br/7249014007309888 RESUMO – Este ensaio traz uma análise do filme Annie Hall do cineasta Woody Allen, na qual se procura problematizar os argumentos da fortuna crítica para produzir uma visão do filme que enfatize os modos como o cineasta procurou refletir sobre a matéria histórica do momento em que o filme foi produzido. Desse modo, procurou-se mostrar como o texto fílmico é tanto uma resposta à ascensão da Nova-direita a partir do governo Nixon como a elaboração de estratégias de sobrevivência num contexto de censura à tradição da comédia política que havia surgido na década anterior. PALAVRAS-CHAVE – Woody Allen, Annie Hall, comédia, pós-modernismo. ABSTRACT – This essay brings an analysis of Annie Hall by Woody Allen in which there is an attempt to confront the main tenets of the criticism produced about the film so as to emphasize the ways in which the filmmaker sought to reflect upon key historical motifs of the period. The film is seen as both a reaction to the rise of the New Right after Nixon’s government as well as an attempt to create a series of strategies to deal with the censorship against a tradition of political comedy created in the previous decade. KEYWORDS – Woody Allen, Annie Hall, comedy, postmodernism. O filme Annie Hall (no Brasil, Noivo neurótico, noiva nervosa, 1977) é reconhecidamente um marco da comédia norte-americana e da carreira de Woody Allen. Praticamente a totalidade da crítica enfatizou seu caráter de ruptura em relação à produção anterior do cineasta tomando como base duas características centrais do filme: sua integração do quadro cômico (a “gag”) na armação dramática do enredo, evitando a fragmentação em quadros relativamente autônomos que marcava as obras anteriores, desde Take the Money and Run (Um assaltante bem trapalhão, 1969) até Love and Death (A última noite de Boris Grushenko, 1975); e o equilíbrio entre assuntos cômicos e sérios que, em princípio, dava uma dimensão mais profunda aos temas tratados e inseria o filme na tradição mais nobre da literatura séria do período, como aquela produzida por romancistas judeus consagrados como Philip Roth e Saul Bellow (POGEL, 1987; BAILEY, 2001; HIRSCH, 2001; GIRGUS, 2002; SILET, 2006). 1 Professor Doutor de Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, especialidade em “Literatura e cinema”.

PARANOIA E INTERPRETAÇÃO EM ANNIE HALL DE WOODY … E... · comparação entre, por exemplo, os curtas-metragens iniciais de Charles Chaplin e de Buster Keaton e suas obras-primas

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VOL. IV Nº 8 FEVEREIRO/2013

Marcos C. P. Soares

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PARANOIA E INTERPRETAÇÃO EM ANNIE HALL DE WOODY ALLEN

Prof. Dr. Marcos C. P. Soares1

http://lattes.cnpq.br/7249014007309888

RESUMO – Este ensaio traz uma análise do filme Annie Hall do cineasta Woody Allen, na qual

se procura problematizar os argumentos da fortuna crítica para produzir uma visão do filme que

enfatize os modos como o cineasta procurou refletir sobre a matéria histórica do momento em

que o filme foi produzido. Desse modo, procurou-se mostrar como o texto fílmico é tanto uma

resposta à ascensão da Nova-direita a partir do governo Nixon como a elaboração de estratégias

de sobrevivência num contexto de censura à tradição da comédia política que havia surgido na

década anterior.

PALAVRAS-CHAVE – Woody Allen, Annie Hall, comédia, pós-modernismo.

ABSTRACT – This essay brings an analysis of Annie Hall by Woody Allen in which there is an

attempt to confront the main tenets of the criticism produced about the film so as to emphasize

the ways in which the filmmaker sought to reflect upon key historical motifs of the period. The

film is seen as both a reaction to the rise of the New Right after Nixon’s government as well as

an attempt to create a series of strategies to deal with the censorship against a tradition of

political comedy created in the previous decade.

KEYWORDS – Woody Allen, Annie Hall, comedy, postmodernism.

O filme Annie Hall (no Brasil, Noivo neurótico, noiva nervosa, 1977) é

reconhecidamente um marco da comédia norte-americana e da carreira de Woody Allen.

Praticamente a totalidade da crítica enfatizou seu caráter de ruptura em relação à produção

anterior do cineasta tomando como base duas características centrais do filme: sua integração do

quadro cômico (a “gag”) na armação dramática do enredo, evitando a fragmentação em quadros

relativamente autônomos que marcava as obras anteriores, desde Take the Money and Run

(Um assaltante bem trapalhão, 1969) até Love and Death (A última noite de Boris

Grushenko, 1975); e o equilíbrio entre assuntos cômicos e sérios que, em princípio, dava uma

dimensão mais profunda aos temas tratados e inseria o filme na tradição mais nobre da literatura

séria do período, como aquela produzida por romancistas judeus consagrados como Philip Roth

e Saul Bellow (POGEL, 1987; BAILEY, 2001; HIRSCH, 2001; GIRGUS, 2002; SILET, 2006).

1 Professor Doutor de Literaturas Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, especialidade em “Literatura e cinema”.

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Embora as duas afirmações tenham sido enfaticamente repetidas pelo próprio cineasta em

diversas entrevistas (mas com que intenção?), ambas merecem qualificações importantes,

encorajadas em certa medida pelo próprio filme: afinal, não é do arrogante professor universitário

na fila do cinema o diagnóstico de que Fellini é um cineasta autoindulgente porque faz filmes

excessivamente fragmentados nos quais “falta uma estrutura coesiva”?

O debate sobre a integração ou a independência entre a gag e a armação dramática

constitui um dos mais antigos pontos de contenção da crítica a respeito da comédia

cinematográfica. As interpretações mais correntes desde os anos 30 têm insistido, a partir da

comparação entre, por exemplo, os curtas-metragens iniciais de Charles Chaplin e de Buster

Keaton e suas obras-primas posteriores (como Luzes da cidade ou A General), no caráter

“primitivo” dos primeiros filmes e de sua superação através da integração da gag na tessitura

narrativa, de modo a torná-la funcional da perspectiva do desenvolvimento do enredo e não

apenas uma interrupção desnecessária. Desse ponto de vista, os valores centrais são aqueles

emprestados do drama burguês do século XIX, já amplamente superados na cena teatral pela

tradição que vai de Ibsen a Brecht (SZONDI, 2003), ou seja, tanto a construção meticulosa do

roteiro a partir de uma relação de causa e efeito entre os diversos eventos da narrativa quanto a

ênfase na evolução psicológica do protagonista. Por outro, se adotarmos uma perspectiva épica

no lugar da estritamente dramática, os elementos relevantes são justamente aqueles ligados à

autonomização do quadro como instrumento de quebra da linearidade da peça bem feita e do

filme convencional. Dessa perspectiva, os valores centrais são os saltos entre quadros; a quebra

das relações dadas de bandeja para um espectador passivo; a des-psicologização que dá a ver os

efeitos de padronização da vida moderna sobre a subjetividade; a mimese dos choques e dos

ritmos modernos da grande cidade na própria estrutura narrativa; o emprego das categorias do

surrealismo e da montagem rítmica para pulverizar a ideia do filme como “recorte fiel e

transparente da realidade”. Já a separação entre assuntos sérios (aptos a serem tratados pelo

drama) e assuntos leves (a serem tratados no âmbito da comédia) depende de uma operação

francamente ideológica que não corresponde ao poder de fogo e complexidade do emprego da

comédia na história do teatro, da literatura e do cinema, inclusive, ou principalmente, na arte

política mais consequente e exigente do século XX. Se as duas explicações para a importância do

filme são, portanto, problemáticas, elas podem configurar um movimento de recuo real, com

motivações possivelmente de caráter histórico, cujo alcance deve ser aferido através da análise do

filme.

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Creio que a crítica Nancy Pogel tenha sido a primeira a introduzir um novo elemento

nessa discussão ao ventilar a suspeita de que as mudanças efetuadas em Annie Hall possam ter

alguma relação com a participação de Woody Allen como ator no filme de Martin Ritt, The

Front, apenas um ano antes do início da escrita do roteiro de seu novo filme:

The Front, filme realizado por escritores e atores que haviam sido incluídos na

lista negra da era McCarthy, é uma comédia séria que lida com questões de

engajamento e integridade pessoal no período de caça aos comunistas na

década de 50. No roteiro de Walter Bernstein, Allen atua como um homem

comum sem interesse pelo engajamento político, que serve de “testa de ferro”,

vendendo em seu nome o trabalho de escritores que são impedidos de trabalhar

devido às suas filiações de esquerda. Inicialmente, como o homem comum dos

primeiros filmes de Allen, ele prefere ficar fora da controvérsia, mas quando é

chamado para depor diante do Comitê de Atividades Antiamericanas, ele

finalmente toma partido. “Não reconheço o direito deste comitê de fazer esses

tipos de perguntas”, ele afirma e em seguida continua: “Além disso, vocês todos

podem se f...”. Embora o filme de Ritt tenha uma conclusão feliz – o homem

comum reafirma sua integridade e conquista a heroína – as dificuldades

envolvidas no momento de adotar uma posição clara em circunstâncias menos

extremas deve ter sugerido a Allen uma série de possibilidades. Seu interesse em

comédias sérias que lidam com a necessidade de engajamento e integridade

pessoal, assim como com os desastres humanos causados por posições de

engajamento muito claras, anuncia seu trabalho futuro. (POGEL, 1987, p. 81-

2).

O diagnóstico faz sentido, mas merece algumas especificações históricas. Um dos atores

principais do filme de Ritt é Zero Mostel, o comediante judeu que se tornou um dos mais

importantes artistas modernos da comédia política no teatro e no cinema norte-americanos, ele

próprio vítima da lista negra nos anos 50. No momento mais dramático do filme, o personagem

de Mostel, impossibilitado de conseguir trabalho devido à perseguição política, comete suicídio

pulando de uma janela de hotel (a sequência é uma homenagem clara àquela do suicídio do

trabalhador berlinense desempregado no filme Kuhle Wampe, escrito por Brecht em 1932). A

centralidade da cena na estrutura geral do filme (pois ela marca um momento de inflexão do

enredo a partir do qual o personagem de Woody Allen se politiza) indica a importância da

questão do desemprego causado por perseguições políticas não apenas nos anos 50, mas também

no processo de pesada censura contra a comédia política no momento da filmagem. Nesse caso,

o alvo foi a geração de comediantes posterior à de Mostel, atuante na comédia stand-up relegada

ao circuito off-off-Broadway dos bares e clubes de jazz do Greenwich Village devido à intensa

mercantilização do circuito teatral nova-iorquino (esse também é um período de desemprego em

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massa de músicos de jazz, tipo de música ultrapassada pelas linguagens mais modernas). A

leitura conjunta das biografias de alguns dos principais artistas do período – Zero Mostel

(SAINER, 1998), Lenny Bruce (SKOVER, 2002) e Mort Sahl (SAHL, 1977) – fornece pistas

importantes para a compreensão do processo a partir da reiteração de motivos: em todos os

casos repete-se o caminho que leva da filiação de esquerda, passa pela comédia centrada na sátira

política e leva à lista negra (Mostel), aos inúmeros processos, prisões e à morte trágica (Bruce) e

ao desemprego crônico (Sahl). Em diversas entrevistas, Woody Allen cita o mais abertamente

político dos três, Mort Sahl, cujo repertório de temas variava da discussão sobre o assassinato de

Kennedy até a corrupção do governo Nixon, como a mais fundamental influência sobre sua

carreira. Além de ser o mais combativo dos cômicos dessa geração, Sahl também atualizava uma

tradição que os interessados pela história do teatro norte-americano reconhecerão como aquela

do Living Newspaper, que encontrou seu ápice no teatro engajado dos anos 30: pois os números de

Sahl eram encenações, em grande parte improvisadas, de notícias de jornal que ele lia em voz alta

no palco. Aliava-se a isso a seriedade da pesquisa histórica: no período imediatamente após o

assassinato de Kennedy, o comediante era reconhecido como um dos maiores estudiosos do

Warren Report, o relatório produzido pelo Estado americano a partir das investigações do caso (em

Annie Hall Allen faz uma homenagem a Sahl na menção à obsessão de Alvy Singer pelo

assunto). Digamos, para encurtar a história, que a conjunção entre a ascensão da Nova Direita a

partir de Nixon, a atuação da censura na mercantilização do circuito teatral em torno da

Broadway e, no campo do cinema, o fim da carreira, em alguns casos a morte, de diversos

cineastas associados à Renascença Americana desde 1969 (para não falar da adesão abjeta de

diversos desses cineastas à produção mainstream), assim como a consolidação da estética e dos

métodos de produção dos blockbusters de Steven Spielberg e George Lucas não serviram

exatamente como encorajamento para a continuação das experiências culturais na esquerda,

embora fornecessem uma série de assuntos para os artistas interessados e tornassem sua atuação

mais necessária do que nunca.

Este preâmbulo pode parecer estranho como introdução a um filme cujo assunto

explícito é a dificuldade das relações amorosas, mas logo de saída é preciso lembrar que o enredo

coloca em confronto pelo menos quatro linhas paralelas que têm em comum o mapeamento de

trajetórias de derrota: na primeira, a mais evidentemente autobiográfica, a ênfase recai sobre os

conflitos amorosos entre Annie Hall (Diane Keaton) e Alvy Singer (Woody Allen) e o fim

inexplicável de seu relacionamento; a segunda desenha a trajetória profissional de Alvy, que vai da

participação em campanhas de arrecadação de fundos para a candidatura de Adlai Stevenson

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(opositor de Nixon), passa pelas apresentações diante de plateias universitárias (desde o final dos

anos 60 um dos centros da agitação política da contracultura) e acaba no teatro comercial (a peça

que vemos sendo ensaiada no fim do filme); a terceira é a história da decadência da cidade de

Nova York, assunto ao qual Alvy se refere mais de uma vez, principalmente quando comenta a

onda de crimes que assolou a cidade; e, finalmente a quarta é a história de um retrocesso político,

a ascensão da Nova Direita, resumida tanto nas excelentes piadas sobre Lyndon Johnson e

Eisenhower, mas também de modo bastante econômico na coleção de buttons de Alvy, que

pedem o impeachment de Eisenhower, Nixon, Lyndon Johnson e Ronald Reagan. É o convívio

conflituoso entre essas linhas, que em certa medida se comentam e se determinam mutuamente,

que constitui o centro do filme, como veremos. Já a relativa sobreposição da primeira sobre as

demais (“Eu não sou essencialmente um comediante político”, diz Alvy no comício de

Stevenson) constitui um problema que exige análise.

Essa série de deslocamentos ou sobreposições tem início já no confronto entre o título

do filme e as primeiras sequências: embora o título Annie Hall nos leve a crer que a personagem

feminina será o centro do enredo, as cenas iniciais nos mostram Alvy tomando o centro das

atenções, conversando com a câmera e o telespectador, de quem exige atenção incondicional, e

passando do tom confessional introdutório para as primeiras rememorações autobiográficas. A

plateia terá que esperar ainda bastante tempo para que a personagem de Diane Keaton apareça

em cena. O fato de que sua presença nesse início surja mediada pelo monólogo de Alvy indica o

método de apresentação do conjunto de eventos e personagens do filme, aos quais só teremos

acesso na medida em que eles interagem com o protagonista, mediador que submete a tudo e a

todos aos imperativos de sua memória. Tampouco deve escapar à nossa atenção o fato de que a

aparição do personagem de Woody Allen logo nas primeiras cenas corresponde às expectativas

encorajadas pela indústria cultural e pelo cinema industrial, que pautam suas escolhas e ênfases a

partir da hierarquia das estrelas e celebridades (afinal, trata-se de um filme de Woody Allen): a

adesão narcisista de Alvy a tais parâmetros – ele de fato domina a cena com sua atuação, seus

problemas e lembranças – enquadra o foco narrativo e em parte lhe determina a natureza. Já as

semelhanças (mas também as diferenças) entre Alvy e Woody Allen constituirão matéria sobre a

qual o filme vai se debruçar.

A relação entre o espectador e a matéria exposta pelo filme se complica quando a

confiabilidade de nosso narrador é colocada em xeque desde logo. Mas ao contrário dos casos

mais importantes da literatura moderna mais avançada, onde o narrador não confiável simula

objetividade e busca algum grau de universalidade, aqui o próprio detentor do foco narrativo

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admite seu estatuto (o formato de comédia stand-up coloca Alvy como narrador literal) e suas

imperfeições (ele tende a “exagerar suas memórias, tem uma imaginação hiperativa, gosta de

misturar eventos e tem dificuldade de distinguir entre fantasia e realidade”). Tudo isso dito em

meio a referencias às suas obsessões (a idade, a morte, o sexo, etc.) e a Freud, num

aproveitamento da imagem do intelectual judeu, nova-iorquino e neurótico que Allen havia

desenvolvido desde as apresentações no Greenwich Village. Adicionem-se a isso a honestidade

do relato; o tom confessional que aproxima espectador e personagem; as referências eruditas; a

graça com que confissão e memórias são encenadas (as piadas, as cenas de infância com a mãe e

os alunos da escola); e a ênfase no homem comum (feio, desajeitado, inseguro, a própria antítese

da estrela de cinema) e temos um quadro no qual a afirmação de que não há nada a esconder

pode fazer parte de uma série de estratégias através das quais o narrador procuraria garantir nossa

adesão. Por outro lado, a inclusão dos procedimentos estilísticos antirrealistas que pontuam o

filme (a interação do Alvy adulto com as cenas da infância e mais adiante o emprego do split-screen

e de legendas explicativas, as conversas com transeuntes nas ruas sobre problemas pessoais, a

não-linearidade no tratamento do tempo e do espaço, etc.) solapa qualquer pretensão à

objetividade e nos coloca inteiramente a mercê dos devaneios do personagem. Já as referências a

Fellini (a cena da escola é uma clara citação de uma cena semelhante em Amarcord) demonstra que

nosso narrador é escolado na cultura cinéfila europeia, embora passe à sua sanitização a partir

da retirada de qualquer referência aos motivos históricos discutidos no filme original (nesse caso

a adesão do aparato escolar ao receituário fascista) em nome da violência pessoal (mas

engraçada) contra colegas e professores (são todos incompetentes e imbecis). Essa tensão, em

parte amenizada tanto pelo tom cômico do registro quanto pela proximidade com os estereótipos

associados à figura do próprio cineasta (que, em princípio, também gosta de psicanálise, Fellini,

Bergman, etc.), entre a honestidade quase singela do narrador, cujas manias neuróticas não

devemos levar muito a sério, e seus atos de megalomania, que degradam todos à mobília de suas

rememorações e mitologias pessoais, será desenvolvida ao longo do filme.

No entanto, além de enfatizar o caráter problemático do protagonista-narrador, é

preciso assinalar o potencial progressista e desmistificador que diversas de suas intervenções

sugerem: afinal, a recusa do realismo pode ser encarada como uma tentativa de dissolver o peso

das derrotas das diversas experiências libertárias que surgiram nos anos 60; os procedimentos

antirrealistas como ampliação do repertório expressivo e estratégia de confronto com a

linearidade do cinema industrial (de fato, esses procedimentos são responsáveis pelos melhores

momentos do filme); a referência a Fellini como o estabelecimento de um diálogo com um dos

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mais importantes artistas do cinema exigente europeu e uma tentativa de quebra do

provincianismo da cultura norte-americana; e a sátira à escola como ataque desejável à repressão

dos métodos de educação convencionais que rebaixam todas as suas vítimas. Em resumo, esse

movimento simultâneo de adesão e crítica ao personagem de Woody Allen, que pode ser adorável

ou detestável dependendo da situação ou do ponto de vista, encapsula aquele que talvez seja o

tema central do filme: o confronto entre as novas possibilidades proporcionadas pelo período e

as forças de repressão, objetivas e subjetivas, que agem para conter seu avanço.

A menção a Fellini também começa a delinear um tipo de relação com o espectador que

ultrapassa a consciência de Alvy: embora a citação explícita seja a Amarcord, o conjunto de fatores

descritos acima (que ocupam os primeiros minutos do filme) aponta para uma relação

possivelmente frutífera com 8 ½, filme de Fellini sobre um cineasta que submete o conjunto de

trabalhadores do set de filmagem à tirania de suas memórias, contratando, subjugando ou

demitindo atores conforme eles se adequem ou não às lembranças de sua infância. O filme

aponta para um “descompasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo que as

rege, [de modo que] crueldades e fraquezas de si pequenas são monumentalizadas pela posse

privada da engrenagem social” (SCHWARZ, 1981). Entretanto, mas do que assinalar as

semelhanças entre os dois filmes, é importante marcar as diferenças: pois Alvy não detém a posse

dos meios de produção cultural e, portanto, não ocupa a mesma posição de destaque na indústria

cultural que o cineasta de Fellini. A situação fica clara numa sequência em que Alvy é abordado

por caçadores de autógrafos na porta de um cinema que exibe um filme de Bergman (o contraste

não poderia ser mais exasperante): o reconhecimento é hesitante, pois Alvy participou de apenas

alguns programas de televisão, de modo que sua imagem ainda não se fixou no imaginário do

público. Ainda assim, a admissão relutante de que ele orbita no espaço das celebridades

televisivas provoca uma reação frenética dos dois fãs, que mal lembram o nome do artista, e dão

início a um pseudoevento midiático no qual Alvy se torna momentaneamente famoso por ser

famoso. Entretanto, num movimento dialético da narração que o filme desenvolverá, é

precisamente esse apequenamento das perspectivas de Alvy, cujo controle sobre o mundo é

tênue, que vai garantir a (relativa e contraditória) emancipação de Annie Hall, que escapa das

limitações impostas por seu benfeitor, mas em parte por tirar proveito das oportunidades

oferecidas por ele. Alvy, ao contrário de Annie, no final do filme buscará uma solução escapista

na nostalgia, na perplexidade diante da vida e na adesão parcial aos imperativos do teatro

comercial.

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A introdução do tema da adesão às demandas do circuito cultural mainstream pode causar

estranhamento se relacionado à figura de Alvy, pois ele é cuidadoso na construção de uma

dicotomia clara entre duas posições antagônicas em relação ao assunto, colocando de um lado o

universo de Nova York e, de outro, o mundo pós-moderno de Los Angeles, com suas misturas

descabidas de enlatados televisivos, igrejas evangélicas, restaurantes de fast food, celebridades

hollywoodianas, estilos arquitetônicos, etc. Em tudo transparece o comercialismo mais

escancarado e a suspeita é que o estilo relax da Califórnia resida justamente no fato de que o

gosto pelos modismos mercantis é adotado sem peso na consciência. O restaurante de comida

natural, por exemplo, cenário do desfecho da relação entre Alvy e Annie, remete de modo

inequívoco aos critérios de classes das novas modas contraculturais, pois, como todos sabem,

até hoje o selo orgânico no mercado de alimentos serve como diferencial (a produção em

princípio caseira, artesanal, etc.) que multiplica seus preços. Rob, o amigo que migra de

Manhattan para Beverly Hills, surge como a figura do artista que vendeu a alma ao demônio e

aderiu às modas e ao narcisismo adolescente típicos de Hollywood. Além disso, sua trajetória

pessoal exemplifica um processo que ajudou a devastar o cenário da comédia stand-up nova-

iorquina em medos dos anos 70. Como mostra um estudioso do assunto:

A televisão atraiu os melhores e mais inteligentes dos jovens cômicos. O

processo se inicia em meados dos anos 70, quando artistas como Freddie

Prinze e Jimmie Walker se tornaram astros de programas de televisão, e se

acelera na década de 80 com o sucesso de The Cosby Show. A partir de então,

produtores e executivos das principais redes passaram a vasculhar os clubes em

busca de comediantes cujos materiais e personas pudessem ser adaptados para a

TV. Alguns deles, como Roseanne Barr e Tim Allen, se tornaram astros

importantes. Outros foram rapidamente descartados. De qualquer modo, o

resultado foi uma drenagem que provocou um curto-circuito na carreira de

muitos comediantes jovens, que passaram a considerar o circuito de “stand-up”

não como um fim em si, mas como um modo de chegar às redes de televisão.

(ZOGLINa, 2008, p. 3)

De fato, o mapeamento da cretinice cultural californiana, com sua combinação entre a

produção de lixo cultural com um misticismo neo-ecólogico de butique constitui um dos pontos

altos do filme. O rebaixamento geral fica claro tanto na sequência do estúdio de televisão, onde

risadas enlatadas são introduzidas num programa cômico como reação padronizada da plateia

(numa tentativa do espetáculo de fingir que ele ainda admite réplica, para parafrasear Guy

Debord), quanto na festa na casa onde Chaplin havia morado antes de “seus probleminhas com o

Comitê de Atividades Antiamericanas” (o problema já era antigo), onde candidatos a estrelas se

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mesclam com empresários do show business enquanto entoam mantras e marcam reuniões de

negócios.

No entanto, o processo de imbecilização generalizada já atingiu Nova York: as plateias

dos clubes de música podem ser desatentas; caçadores de autógrafos parecidos com o elenco de

O poderoso chefão assediam artistas nas ruas; agentes da indústria de música pop rondam os

clubes de jazz à caça de talentos; escritores talentosos são forçados a escrever para comediantes

de quinta categoria; jornalistas fazem a apologia da mistura entre o rock dos Rolling Stones e as

apresentações de divindades hindus. Tampouco os intelectuais escapam: eles não apenas

declamam solenemente bobagens inacreditáveis sobre Fellini nas filas do cinema, mas levam uma

vida excessivamente cerebral (como nos casos das duas primeiras esposas de Alvy) que acaba

por sufocar os instintos vitais. Além disso, como mostra a festa onde a segunda mulher de Alvy

identifica figurões do mundo acadêmico de Nova York, os intelectuais se comportam como

celebridades e a festa nada mais é do que a busca por contatos influentes no mundo das editoras

e universidades. A resposta de Alvy, que enfatiza as atividades físicas (o esporte e o sexo) em

oposição às mentais, surge como reação a esse intelectualismo de fachada. Em suma, a avaliação

de Alvy sobre o mundo das ideias contemporâneas descarta tanto o universo da alta cultura

quanto da cultura de massas produzida industrialmente. Para o espectador fica a impressão da

justeza da sátira selvagem levada a cabo.

Ao contrário das mulheres hiperintelectualizadas que cruzam o caminho de Alvy, Annie

Hall surge num posição intermediária entre o interesse pelas artes (teatro, música, fotografia,

poesia) e uma espontaneidade ou uma simplicidade simpáticas cifradas inicialmente na sua

falta de articulação. Quando conversam pela primeira vez num clube de tênis (ou seja, na prática

de uma atividade física), o diálogo é marcado pelas suas hesitações, frases inconclusas, interjeições

desajeitadas e contradições amalucadas. Sua falta de habilidade linguística é frequentemente

assunto da conversa entre os dois, com Alvy vez ou outra fazendo comentários depreciativos

sobre suas escolhas de vocabulário. Além disso, sua relação com as artes é instintiva, pois, como

ela mesma diz, ela aprendeu a cantar sem ter aulas e procura “não pensar demais sobre sua

abordagem” quando tira fotografias. Seus conhecimentos de poesia são rudimentares, mas ela

acha Silvia Plath legal (neat). Após a sequência com as legendas explicativas denunciando o

ridículo da tentativa de simular uma conversa intelectual sobre fotografia, a cena na casa de

praia, longe da cidade, em que os dois protagonistas se veem às voltas com algumas lagostas,

surge como o único momento verdadeiramente autêntico do filme em sua regressão a certo

infantilismo ingênuo e despreocupado, mas nem por isso avesso às atividades artísticas, pois

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Annie aproveita a situação para tirar fotografias do evento. Nesse momento do filme tudo indica

um universo de possibilidades amplas e de novos recomeços nesse paraíso reencontrado, numa

integração entre o afeto pessoal e uma atividade artística livre das restrições intelectuais ou

comerciais registradas no resto do filme. A importância da cena, a primeira a ser filmada de

acordo com as entrevistas de Woody Allen, é reforçada pela inclusão mais adiante de seu

negativo, agora com nova protagonista feminina, mas já em chave de derrota e nostalgia.

No entanto, como gosta de lembrar Terry Eagleton, qualquer futuro deve

necessariamente ser o futuro deste presente e, de volta em Nova York, inicia-se o processo de

educação sentimental de Annie. Alvy se torna assim um tipo de Pigmaleão moderno que

procura inserir sua discípula em seu universo middlebrow, ou seja, um mundo situado entre, de um

lado, uma intelectualidade “excessiva” e estéril e, de outro, a mercantilização que marca os

produtos mais banais da indústria cultural. A caracterização desse campo de referências culturais

pontua todo o filme: elas cobrem uma ampla área que inclui Freud e a psicanálise, Groucho

Marx, Balzac, Silvia Plath, Fellini, Marcel Ophüls, James Joyce, Billie Holiday, Truman Capote,

Branca de Neve, Bergman, O poderoso chefão, etc. Os livros sobre seu assunto favorito, a

morte, podem ir desde manuais de segunda categoria até Morte em Veneza.

Nesse sentido, a acusação feita por Annie no final do filme de que Alvy é como Nova

York faz sentido, pois “a capital do século XX” é, de fato, um lugar marcado por uma

hiperinflação do consumo de arte mundial (galerias, museus, livrarias, cinemas, salas de concerto,

etc.) que constitui uma das principais atividades econômicas da cidade (depois das atividades do

mercado financeiro e do turismo, com as quais o mundo da arte tem parentescos muito

próximos). Pois o desmonte do parque industrial da cidade a partir do final dos anos 60, assim

como o ataque do governo federal a uma das redes de bem-estar social mais eficazes do país,

responsável pela bancarrota econômica da cidade, (BERKOWITZ, 2006), marcam um processo

de decadência de Nova York que atingiu seu clímax em 1975, quando a cidade esteve prestes a

declarar falência. David Harvey argumenta que junto com o Chile, onde o golpe de Estado em

1973 forneceu a possibilidade de que o país se tornasse um local privilegiado para o teste das

novas medidas econômicas neoliberais, Nova York se tornou uma cidade-laboratório importante

em que as novas medidas de desregulamentação e de aumento do setor de serviço ligado ao

capital financeiro foram implementadas e aferidas. (HARVEY, 2007, p. 63). O primeiro

resultado, ao qual Alvy se refere mais de uma vez no filme, foi a degradação e abandono de

partes inteiras da cidade (mais de 10% da população da cidade migrou para outros lugares), assim

como o aumento vertiginoso da violência urbana. A economia da cidade só se recuperaria com

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cortes radicais do orçamento do Estado de Bem Social (Harvey assinala que o processo de

“disciplinar poderosos sindicatos municipais” se intensifica no período entre 1975 e 1977)

(HARVEY, 2007, p. 52) e com o aumento do setor de serviços impulsionado pelo investimento

inicialmente na rede de museus (liderado pelas verbas milionárias destinadas ao MoMA, ao

Guggenheim e ao Metropolitan). Em seguida, deu-se início a uma das campanhas publicitárias de

turismo mais agressivas da história do país, em que a ênfase recaia tanto nas novas obras de arte

da nova arquitetura de arranha-céus pós-modernos (o World Trade Center, por exemplo, foi

inaugurado em 1973) quanto no amplo parque cultural oferecido pela cidade. Assim, o ecletismo

de Alvy tem um substrato objetivo na circulação de mercadorias culturais que movimenta a vida

na cidade (e, em certa medida, garante o relativo sucesso de bilheteria dos filmes de Woody Allen,

o mais nova-iorquino dos cineastas).

Num certo sentido, Annie Hall é um mapeamento da qualidade desse campo de

referências culturais. Novamente aqui se abrem inúmeras possibilidades centradas no acesso aos

bens culturais, elemento fundamental numa cultura anti-intelectual e provinciana como a norte-

americana, o que acabou por manter a cidade de Nova York como o centro nervoso e principal

produtor da cultura de qualidade no país. A própria cinematografia de Woody Allen é testemunha

eloquente do que se pode realizar a partir dessa variedade e facilidade de acesso. Por outro lado,

as relações arbitrárias entre objetos de cultura estabelecidas nos setores de circulação e consumo

de mercadorias, que encorajam a troca rápida entre produtos igualmente válidos, reduzidos a seu

valor de troca, e a proliferação acelerada de ofertas para a manutenção de um mercado

hiperaquecido, ajudaram a transformar Nova York num laboratório da cultura pós-moderna, cuja

superficialidade eclética foi frequentemente encoberta pelas qualidades híbridas e multiculturais

que lhe foram atribuídas.

O descompasso entre as formulações interpretativas oferecidas por Alvy e o teste da

realidade já se introduz nas primeiras falas do filme: pois as duas piadas que abrem seu

monólogo, junto com a terceira que fecha a narrativa, apesar da evidente graça e da autoridade

conferida a uma delas por sua origem intelectual, com direito à nota de rodapé (Freud),

claramente são demasiadamente gerais para dar conta da totalidade de materiais mobilizados pelo

filme. Em outras palavras, sua insistência em temas abstratos tais como a impossibilidade da

comunicação ou a fragilidade das relações humanas entra em claro confronto com a

concretude dos eventos e informações que constituem o enredo (creio que o mesmo argumento

possa ser utilizado para comparar os filmes de Bergman e Allen). As questões ligadas à batalha

pela emancipação feminina ou às diferenças de classe, por exemplo, que animam diversos dos

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episódios do filme, produzem diversos tipos de excesso que não são contemplados pelas

generalizações intelectuais. A cena do jantar na família de Annie, por exemplo, ponto de

inflexão do enredo a partir do qual a relação entre os dois amantes se deteriora, tem como base

evidente não apenas diferenças “culturais” (judeus e protestantes), mas claramente questões de

classe: o falso diálogo entre os dois núcleos intensifica o tema da incomunicabilidade, enquanto

lhe dá contornos históricos mais precisos.

As lacunas entre as ideias e a vida real são tematizadas em diversos episódios: num deles

o Alvy criança rechaça a teoria do período de latência de Freud ao afirmar que nunca passou

por ele, mas é violentamente repreendido por não se adequar ao modelo teórico. Diversas vezes,

as citações eruditas são francamente postiças ou simplesmente ridículas: a desculpa dada pela

segunda mulher de Alvy para evitar sexo é que sua dor de cabeça é igual à de Oswald,

personagem de Os espectros (peça de Ibsen de 1881), enquanto que a atividade sexual bem

sucedida pode ser comparada à finalização de um romance de Balzac ou a uma “experiência

kafkiana”. O adensamento desses procedimentos os transforma numa matriz formal do filme,

que se estrutura a partir da utilização de dois elementos centrais: um deles é a introdução do

contraste entre aquilo que os personagens falam (“somos duas pessoas maduras”, “os cursos de

extensão universitária são ótimos”, etc.) e a ação efetiva (as brigas, perseguições, etc.), numa série

de justaposições baseadas em cortes rápidos que demonstram a ineficácia das racionalizações

apresentadas. Digamos que o filme encena de maneira cômica o velho conselho de Brecht de que

devemos prestar atenção ao que as pessoas fazem e não ao que dizem se quisermos desvendar

suas verdadeiras intenções.

A outra é a introdução do tema da paranoia. A produtividade do procedimento é

anunciada no momento em que o assunto é apresentado na forma de um exercício de

interpretação: Alvy lê tanto a referência a Wagner feita por um vendedor numa loja de discos

quanto o emprego de “did you?” (que em inglês oral americano pode ser contraído para didju,

homônimo de jew, judeu) por diversas pessoas como atos claros de antissemitismo. Mais adiante

o assunto ressurgirá no momento em que Alvy fica obcecado pela teoria conspiratória contra

Kennedy e ainda quando interpreta a crise da cidade de Nova York como nova investida

antissemita. A relação entre a paranoia e o ato interpretativo aparece de modo central na

teorização freudiana: para Freud, a paranoia seria uma condição em que tudo parece ser

opressivamente significativo e na qual todos os significados compõem um sistema totalmente

integrado. Para o paranoico, que descobre correspondências secretas entre pessoas e eventos

aparentemente diversos, não há espaço para a contingência, pois nada parece ser acidental. É

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nesse sentido que devemos entender a aproximação que Freud faz entre a paranoia e a filosofia,

mas também com a ficção, cujo papel é justamente de construir padrões e estruturas a partir da

junção de materiais heterogêneos (FREUD, 1979). De certo modo, o próprio filme, como

expressão das memórias de Alvy e de suas tentativas de fazer sentido das coisas, é um ato

explícito de interpretação que procura responder a pergunta do prólogo: como algo que parecia

tão promissor pôde dar errado? Além disso, a estrutura em flashback não é mero malabarismo

formal, mas uma tentativa de enfatizar o fato de que os eventos são descritos a posteriori,

concatenados, em princípio, numa ordem que procura desvendar o segredo de tamanha variedade

de informações e materiais. Entretanto, como enfatizamos acima, todas as hipóteses e

formulações gerais carecem de acuidade, surgindo mais como floreio retórico (Balzac, Ibsen) do

que como explicação do mundo. O filme demonstra, assim, a lacuna existente no pensamento

“interpretativo” do paranoico: o fato de que a mobilização de elementos concretos da realidade

(o antissemitismo) serve a um propósito totalizante cuja chave é inteiramente arbitrária (o

vendedor de discos de Wagner, a pergunta “Did you eat?”).

Mas o filme vai além e procura localizar a origem dessa abstração: pois a obsessão de

Alvy pelo tema do antissemitismo, por exemplo, é alimentada por doses maciças e contínuas do

filme de Marcel Ophüls – Le chagrin et la pitié (1969) – sobre a presença dos nazistas na

França. A generalização do processo é encenada na sequência em que Alvy e Annie sentam no

Central Park e tecem comentários sobre os transeuntes, comparando-os aos estereótipos da

cultura do período (um grupo de mafiosos, um casal gay, um sósia de Truman Capote, etc.). Há

certa dose de acerto nesses usos dos objetos de cultura: de fato, um dos papeis da arte é

justamente a de organizar e potencializar nosso entendimento de materiais que podem estar

dispersos na vida real. Por outro lado, pode haver um potencial analítico grande no emprego de

estereótipos numa sociedade em que tantas pessoas aderem a processos de padronização

pautados pela imitação dos clichês e modismos da cultura de massas. Entretanto, a aplicação

generalizada desse tipo de comparação, como reclama a primeira mulher de Alvy, é

necessariamente redutora, pois se cola nas aparências do mundo sem examinar suas causas

profundas. Ou, em outras palavras, em que pese o potencial revelador e emancipatório da cultura,

ela pode se transformar num fetiche e inverter a direção do movimento da análise: ao invés da

observação do mundo pautar o ato interpretativo e a formulação teórica, é essa última que se

autonomiza, subjugando o mundo e o reduzindo a uma exemplificação de seus desideratos

abstratos. A demonstração mais cabal do ato de falsificação em curso nesse processo é o caráter

compensatório da peça escrita por Alvy no final do filme, que conserta a relação entre Alvy e

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Annie, com direito a I love you no final. No entanto, tampouco esse ponto também livre de suas

contradições, pois esse final feliz pode ser visto tanto como atendimento às demandas do teatro

comercial quanto como tentativa de manter vivo o desejo e a visão de outro mundo, num

momento de derrota generalizada, nos âmbitos pessoal e político. É na interação desses dois

vetores que reside o aspecto mais propriamente auto-reflexivo do filme.

Para Alvy, a série de derrotas que o filme mapeia conflui na história do fracasso de seu

relacionamento, que ele procura em vão compreender. Se a perplexidade diante de tantos

retrocessos no campo histórico deixou apenas o campo das relações pessoais como último

refúgio, o filme mostra que a hiperinflação da intimidade, que deve compensar pelo desastre em

outras frentes, transforma a vida amorosa num fetiche e coloca nela uma responsabilidade que ela

jamais poderá atender. Falha também a tentativa de juntar as peças para descobrir, quem sabe,

sua chave secreta. Resta o “texto” composto pelo tecido das memórias. Mas a vida reduzida a um

“discurso”, como gostam de dizer os pós-estruturalistas, também é uma abstração se romper os

fios que a unem à vida. Nesse momento é útil lembrar aquilo que Frederic Jameson disse sobre a

cultura pós-moderna:

Se você insistir nos conteúdos culturais [das novas formas de comunicação

global], penso que chegará logo à celebração pós-moderna da diferença e da

diferenciação: de repente, todas as culturas do mundo estão em contato

simpático umas com as outras em uma espécie de imenso pluralismo de que é

muito difícil não gostar. Mas além dessa celebração da diferença cultural, e em

geral intimamente relacionada com ela, está a celebração do aparecimento, na

esfera pública, das vozes de uma imensa gama de grupos, raças, gêneros, etnias,

constituindo uma quebra das estruturas que condenavam segmentos inteiros da

população mundial ao silêncio e à subalternidade, e um crescimento mundial da

democratização [...] Se, por outro lado, seus pensamentos se voltarem para a

economia e o conceito de globalização tingir-se desses códigos e significados,

você verá que o conceito torna-se mais obscuro e opaco. O que vem agora à

tona é, mais do que uma diferença, uma crescente identidade: a rápida

assimilação de mercados nacionais até então autônomos e de zonas produtivas

a uma só esfera, o desaparecimento da autossuficiência nacional, a integração

forçada de nações do mundo inteiro à nova divisão global de trabalho, [num]

quadro de padronização em nova escala inédita de integração forçada em um

sistema mundial [e a] padronização ou americanização da cultura mundial, a

destruição das diferenças locais, a massificação de todos os povos do planeta.

(JAMESON, 2001, p. 46-7)

Em outras palavras, esse é o momento em que a tensão dialética entre, de um lado, a

atenção da cultura à realidade de seu tempo e, de outro, sua tentativa de ver de outro modo e

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apontar para aquilo que pode vir a ser se dissolve e produz no campo da cultura uma série de

miragens, numa ampliação da visão do paranoico, em flagrante descompasso com a vida real. O

filme de Woody Allen procura mapear esse processo de falência do pensamento diante do teste

imposto pela matéria histórica. Se o diagnóstico de Annie Hall estiver correto, a quase totalidade

dos artistas e intelectuais do período estava dividida entre a perplexidade diante dos eventos

(presos entre o horrível e o terrível como diria Alvy) e a adesão irrestrita ao “movimento

inevitável” do mundo, inclusive no campo da esquerda. Um dos diálogos do filme registra em

chave cômica a generalidade desse processo: na festa de intelectuais da segunda esposa, ela fica

interessada nos figurões da revista Commentary, que Alvy ridiculariza ao insistir que ela deveria

se chamar Dysentery a partir de sua fusão com a revista Dissent. O episódio parece uma

diabrura de Alvy e mais um capítulo da trajetória descendente de sua relação com as mulheres,

mas na verdade a anedota tem papel simbólico importante dentro desse quadro geral, pois ambas

as revistas foram fundadas no período do pós-guerra em Nova York para dar voz aos intelectuais

da esquerda anti-Stalinista, passando do ataque ao comunismo à defesa dos valores da direita

conservadora em meados dos anos 70.

Mas a entrada na batalha discursiva em torno da definição e usos da cultura ainda não

estava decidida. O crítico inglês Raymond Williams insistia no fato de que a alfabetização da

classe operária inglesa para a leitura da bíblia não impedia que essas pessoas, uma vez de posse do

conhecimento, passassem a ler jornais radicais. No filme a figura de Annie Hall surge como

índice apequenado e contraditório, mas ainda assim com algum vigor, da resistência aos

movimentos de enquadramento a que a cultura submete a vida social. Não se trata de vitória (ela

tenta uma mal sucedida carreira na música pop) – os meados dos anos 70 não pareciam encorajar

tantas esperanças – mas de um descompasso entre aquilo que está sendo planejado (por Alvy

neste caso) e as possibilidades que se criam efetivamente (a relativa independência, determinação

ou segurança intelectual). Nesse sentido, Annie Hall é Woody Allen: nada está garantido, mas

nem tampouco inteiramente determinado. Pois, o novo nível global de integração do mercado

cultural abriu algumas possibilidades: no caso do cinema americano no momento da filmagem de

Annie Hall, ele criou tanto a adoção cosmética de formas e temas do cinema de qualidade

mundial, descontextualizados e reduzidos a floreios retóricos, como uma internacionalização da

inteligência e uma possibilidade da avalição crítica e criteriosa do repertório artístico desenvolvido

pelos movimentos revolucionários dos anos 60. São essas lacunas e contradições da indústria

cultural que animam o cinema de Woody Allen.

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Já a ênfase nas relações amorosas que o filme efetua pode ser vista tanto como crítica à

figura do intelectual, que abandona tudo para se concentrar em sua intimidade, como estratégia

de sobrevivência dentro de um quadro periclitante de censura ideológica e avanço da

padronização industrial da cultura. Nesse sentido, o filme mapeia outro descompasso, desta vez

mais produtivo: pois a ênfase na curva dramática em torno do romance entre os protagonistas

desloca para as margens, mas não apaga, uma variedade de materiais que não se submetem à sua

dominação. Dessa perspectiva, Annie Hall também faz um aproveitamento da nova tradição de

humor à qual Woody Allen se filiou. O contraexemplo aparece no próprio filme, no momento

em que Alvy visita o escritório de um agente e é obrigado a assistir a um patético comediante da

velha escola para quem ele deveria escrever piadas: enquanto a antiga tradição se pauta tanto pelo

emprego de estereótipos (sogras, amantes francesas, maridos traídos, etc.) quanto pelo uso de one-

liners (uma única linha final que resume em si o conteúdo geral da anedota), a nova geração iria

“aproximar a comédia da vida” (ZOGLIN b, 2008, p. 5) ao construí-la a partir de uma série de

observações a respeito de eventos cotidianos e notícias de todos os tipos, ampliando

enormemente o escopo e alcance da análise. Além disso, a posição relativamente periférica em

relação ao principal circuito teatral (em torno da Broadway) permitiu que os jovens comediantes

tivessem mais liberdade criativa e passassem a escrever seus próprios materiais, o que possibilitou

uma enorme expansão dos meios de expressão. Na qualidade de filme-síntese desses

desenvolvimentos, Annie Hall surge como ele próprio um índice de resistência estratégica, em

que exigências comerciais e cognitivas disputam espaço para manter vivo, ainda mais uma vez, o

espírito crítico.

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