82
5/17/2018 Pascal-HubertoRohden-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 1/82 1  

Pascal - Huberto Rohden

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 1/82

1

 

Page 2: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 2/82

2

H U B E R T O R O H D E N

P A S C A LO HOMEM QUE APELOU DARAZÃO PARA O CORAÇÃOE DE ROMA PARA DEUS

SEGUNDA EDIÇÃO

UNIÃO CULTURAL EDITORA LTDA.S. PAULO

1956

Terceira EdiçãoAlvorada Editora e Livraria Ltda

1981

MEMÓRIA ROHDEN

Page 3: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 3/82

3

"Minhas Cartas foram condenadasem Roma, mas o que nelas condenei

está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor

 Jesus!"Pascal

Page 4: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 4/82

4

Índice

Advertência 05Vida e Obra de Huberto Rohden 06Prefácio para a Terceira Edição 08Tomando Perspectiva 10Tabela Cronológica dos Principais Fatos da Vida de Pascal 18Lampejos de Gênio 19Os Eremitas de Port-Royal 21Encontro Pessoal com Deus 23Conflito Entre Duas Humanidades 28Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 32Em Torno das "Lettres Provinciales" 34Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas 37Nas Trincheiras Inimigas. O que Ensinavam os Casuístas 40

Regulamentação Burocrática do Amor de Deus - Pró e Contra Pascal 49A Casuística em Nossos Dias 52"Meu Reino não é Deste Mundo" 55Pascal e a Humanidade — O Seu Livro "Pensées" 58As Razões do Coração que a Razão Ignora 63Tragédia Metafísica do Homem 65Cristianismo Político-Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual-Místico? 70Diluindo-se em Deus 74Texto da orelha da 2ª edição 80Relação das Obras de Huberto Rohden 81

Page 5: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 5/82

5

Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo modernocriar é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e

dispensa esforço mental — mas não é aceitável em nível de cultura superior, porquedeturpa o pensamento.Crear é a manifestação da Essência em forma de existência — criar é a

transição de uma existência para outra existência.O poder Infinito é o creador do Universo — um fazendeiro é um criador de

gado.Há entre os homens gênios creadores embora não sejam talvez criadores.A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se

aniquila, tudo se transforma”, se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, masse escrevermos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e clareza do pensamento a quaisquer

convenções acadêmicas.

Page 6: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 6/82

6

Huberto Rohden, Vida e Obra

Nasceu em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Fez estudos no Rio Grande doSul. Formou-se em Ciências, Filosofia e Teologia em Universidades da Europa —Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda) e Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.Publicou mais de 60 (sessenta) obras sobre ciência, filosofia e religião, editadas pelaEditora Vozes (Petrópolis), União Cultural (São Paulo), Editora Globo (Porto Alegre),Livraria Freitas Bastos (Rio de Janeiro), Fundação Alvorada e outras editoras. Várioslivros de Huberto Rohden foram traduzidos em outras línguas, inclusive o Esperanto;alguns existem em Braille, para institutos de cegos.

Um registro de suas brilhantes palestras foi preservado por alguns de seusalunos em forma de gravações – muitas delas estão à disposição na internet.

Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou edirigiu o movimento mundial Alvorada, com sede em São Paulo.

De 1945 a 1946 teve uma Bolsa de estudos para Pesquisas Científicas, naUniversidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com AlbertEinstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da FilosofiaUnivérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição dopróprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e Mística.

Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, deWashington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de ReligiõesComparadas, cargo esse que exerceu durante cinco anos.

Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-AmericanAffairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias deguerra, do inglês para português. Ainda na American University, de Washington,

fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbiocultural entre o Brasil e os Estados Unidos, sendo então, seu presidente honorário, osenhor Nereu Ramos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, oGolden Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya Yoga por Swami Premananda,diretor hindu desse ashram.

Pelo fim da sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foiconvidado para fazer parte do corpo docente da nova Universidade InternacionalChristian University (ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de FilosofiaUniversal e Religiões Comparadas; mas, devido à guerra na Coreia, a Universidade japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi

nomeado professor de filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual nãotomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,com a finalidade de manter cursos permanentes, em São Paulo, Rio de Janeiro eGoiânia, sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho. Dirigiu casas de RetiroEspiritual (ashrams) em diversos Estados do Brasil.

Em 1969, Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência espiritualpela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências com grupos deyoguis na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobreautoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro deAutorrealização Alvorada.

Page 7: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 7/82

7

Nos últimos anos de sua vida, Rohden residiu na capital de São Paulo, ondepermanecia alguns dias da semana, escrevendo e reescrevendo seus livros, nostextos definitivos. Três dias da semana costumava passá-los no ashram, em contatocom a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário modelo.

Quando estava na capital, ministrava palestras e horas de meditação

regularmente na sede da instituição Alvorada. Rohden frequentava, periodicamente,a editora Alvorada responsável pela editoração de seus livros, dando-lhe inspiraçãoe orientação cultural.

Fundamentalmente, toda a obra educacional e filosófica de Rohden divide-seem quatro grandes segmentos:

1) a sede central da Instituição (Centro de Autorrealização Alvorada), em SãoPaulo, com a finalidade de ministrar cursos e horas de meditação;

2) o ashram, situado a 70 quilômetros da capital, onde são dados,periodicamente, os Retiros Espirituais, de 3 dias completos;

3) a Editora Martin Claret, de São Paulo, que difunde, através de livros ecassetes, a Filosofia Univérsica;

4) um grupo de dedicados e fiéis amigos, alunos e discípulos, que trabalhamna consolidação e continuação da sua obra educacional.

A zero hora do dia 7 de outubro de 1981, após longa internação em umaclínica naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiudeste mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras, emestado consciente, foram: “Eu estou a serviço da Humanidade”. 

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo defé e trabalho, somente comparado aos dos grandes homens do nosso século.

Page 8: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 8/82

8

Prefácio para a Terceira Edição

Por longos anos esteve esgotado e fora de circulação este livro. Cogitava-semesmo de não mais reeditá-lo porque trata, em boa parte, de um assunto polêmico

que parece superado em nosso tempo.Trata-se de polêmicas satíricas que o grande gênio, Blaise Pascal, manteve

contra a poderosa ordem religiosa dos jesuítas, e dos teólogos em geral, no século 17.Pascal é universalmente considerado como um cristão genuíno e autêntico, um

católico de pura catolicidade, como poucos.E como se compreende que ele tenha combatido violentamente a poderosa

ordem eclesiástica da Companhia de Jesus? Como é que um católico autêntico - paranão dizer, um santo —, soube apelar de Roma para o tribunal de Jesus?

Como se depreende de todo o livro das Cartas Provinciais, Pascal não confundecatolicismo com catolicidade, isto é, não identifica a teologia eclesiástica e clerical

com o puro Evangelho do Cristo; ele é 100% Cristo-evangélico, mas nada católico-clerical. À primeira vista, a polêmica parece visar somente os jesuítas, quando narealidade gira em torno de toda a teologia eclesiástica, em que Pascal não vê acontinuação da mensagem do Cristo. E como ele tinha tido na noite de 23 denovembro de 1654 a sua misteriosa revelação da cristicidade genuína, Pascal defendeo seu grande ideal crístocêntrico contra todas as deturpações e falsificações desseideal pela teologia clerical.

Pascal, o exímio cientista e filósofo, viveu os melhores anos de sua vida naausteridade do mosteiro de Port-Royal, onde sua irmã Jacqueline era madresuperiora, e juntamente com ela, não admitia qualquer amesquinhamento damensagem do Cristo pelo laxismo moral da época. Seguia a orientação supostamenteascética do bispo herege Jansênio (jansenismo), que queria uma pura catolicidadecontra o catolicismo liberal que dominava a época.

Estranhamente, o livro das Cartas Provinciais foi condenado por Roma, mas a pessoa de seu autor nunca foi anatematizada, porque toda a França católica veneravaPascal como um santo, como ele era, de fato, embora não canonizado. Basta dizer queele deu a sua casa para hospital, num período em que os hospitais de França estavamrepletos de doentes, e ele mesmo levava uma vida de monge, num mosteiro.

Pascal não se revoltou, propriamente, contra a Ordem dos Jesuítas, mas viunos membros desta Ordem, a personificação da deturpação da pureza do Evangelhodo Cristo, a quem ele dava obediência e lealdade incondicional. Daí a veemência e asátira da sua luta...

Este fenômeno não se limita à França e ao século 17, mas repete-se e continuadesde o quarto século em que Constantino Magno contaminou com a política da

 Igreja Romana a pureza do Evangelho do Cristo... O  Mestre disse a Pilatos que oreino dele não é “deste mundo”, mas é o “reino da verdade” — e todos os que sãodiscípulos do Cristo não podem identificar a mensagem do Cristo com nenhumaespécie de doutrina teológica engendrada pelos homens; há uma diferença essencialentre o reino dos céus que não é deste mundo, embora esteja no mundo, e quaisquer outros reinos que se orientam por princípios humanos deste mundo, sobretudo pela

 política financeira de certa teologia.

Page 9: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 9/82

9

 De maneira que a polêmica de Pascal não é uma atitude anacrônica fora deépoca. Hoje, mais do que nunca, a mensagem do Cristo está ameaçada peladeturpação dos homens, na política, no cinema, na literatura, na arte, em toda a vidasocial da cristandade. Pode a maneira dessa deturpação ser mudada, mas adeturpação continua a ser a mesma e é cada vez mais perversa e sorrateira.

 Hoje o Cristo é mais atraiçoado pelo beijo de Judas do que pela violência das palavras — “Aquele a quem eu beijar, esse é o tal, prendei-o!”

Tornamos, pois, a reeditar este livro, na intenção de alertar os leitores sinceroscontra o perigo perene de falsificações da mensagem do Cristo — seja por Judas

 Iscariotes, seja por Caifás ou Pilatos. Todos os nossos livros, algumas dezenas, têm amesma finalidade, reconhecida ou combatida.

 Neste ocaso do século 20, em que vivemos, é de imperiosa necessidade distinguir otrigo do joio, por mais que eles se pareçam, externa-mente; a cinza de Babel da camuflagemse discrimina cada vez mais nitidamente, em puros brancos ou puros pretos.

Se for necessário apelar do intelecto para a razão, ou de Roma para Deus, façamo-lo

com a coragem e honestidade de Pascal.

Page 10: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 10/82

10

Tomando Perspectiva

O racionalismo agnóstico nunca perdoará a um dos maiores vultos da ciência o

"crime" de ter apelado da razão  para a fé; de ter declarado em público e raso a falência da filosofia intelectualista em face dos problemas centrais da vida humana.Se um espírito medíocre tivesse assumido semelhante atitude, lançá-la-iam os

agnósticos à conta de "fraqueza intelectual"; mas, quando essa atitude é a de umespírito que assombrou o mundo com a potência do seu gênio, é enorme a

 perplexidade dos que não crêem na existência de realidades espirituais. Na impossibilidade de negar a grandeza intelectual do autor dos "Pensées",

resolveram muitos dos seus inimigos tachá-lo de "anormal c patológico". É possívelque eles tenham razão; resta apenas saber o que é que se entende por "homemnormal". Mais ou menos todos os grandes gênios da humanidade foram considerados

loucos pelos "homens normais" do seu tempo; e o maior de todos foi por seuscontemporâneos chamado "louco", "aliado de Belzebu", "possesso do demônio"...Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por 

elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de outras terrasonde não reinavam esses costumes, andando normalmente com as duas pernas.Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse "homem anormal". E,quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o modo de andar dele eranatural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a vaia, porque, além de nãosaber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem anormal" deu-se pressa emabandonar a ilha dos "homens normais", porque tinha amor à sua vida...

Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal:aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único — ouaquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual?

(1)  Seguindo o costume geral, Pascal chama "razão" o que, em terminologia mais exata, chamamos"inteligência". A verdadeira razão nunca está em conflito com a fé.

*** 

"Pascal é uma vítima do Cristianismo", afirma Nietzsche, em tom dolente.É uma grande verdade: Pascal é uma vítima, do Cristianismo — não no sentido em

que o entendia o pretenso super-homem germânico, mas em outro sentido, bem mais heróico

e trágico do que Nietzsche queria. Depois da sua definitiva conversão, a tal ponto penetrouPascal no mistério do Cristo que teve a sua grande experiência religiosa, o seu encontro

 pessoal com Deus. Viu de relance o abismo da miséria humana e a infinita pureza e santidadede Deus. Viu que só Deus pode purificar o homem impuro. Desde então foi Pascal o grandedescrente da impotência humana e o grande crente da onipotência divina. E esta intuição

 profunda e intimamente vivida o levou a tremendos conflitos com outra orientação religiosada época. Desde então andou ele pelo mundo cristão do seu tempo como um enigma, um

 paradoxo ambulante, herege e santo ao mesmo tempo. Pascal, o abnegado asceta, o ardentediscípulo do Cristo, o entusiasta da fé, o fervoroso católico, o impávido defensor da Igreja —vê condenado em Roma o mais sincero documento da sua espiritualidade; mas ele,sobranceiro a todas as misérias humanas que possam enfear o corpo da Igreja, continua aamar ardentemente a alma divina da Igreja do Cristo. Quanto mais os homens reduzem oCristo vivo dos séculos a um esquálido Ecce-homo, tanto mais ama e adora Pascal esse

Page 11: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 11/82

11

Cristo maltratado na forma da sua Igreja imortal. A Igreja não são para ele, os homens quecasualmente a representam, neste ou naquele período histórico; a Igreja é para ele umarealidade infinitamente superior a todas as grandezas e a todas as misérias humanas. Elesabe que as potências do inferno não prevalecerão contra ela, ainda que os elementoshumanos do corpo da Igreja falhem deploravelmente. A Igreja de Deus subsiste e

subsistirá sempre, não por causa dos homens, mas a despeito dos homens. A realidadedivina da Igreja começa, para Pascal, lá onde terminam as realidades humanas, paraalém das entidades jurídicas e hierárquicas; para além da ordem das coisas visíveis eorganizáveis; para além de tudo quanto constitui o corpo humano da sociedadeeclesiástica — é lá que começa a alma divina da Igreja.

É neste sentido, com uma fé inabalável na divindade da Igreja, que Pascalescreve estas memoráveis palavras: "Roma condenou as minhas Cartas; mas o quenelas condenei está condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!"

O que da parte de outros seria um protesto, quase uma apostasia, nos lábios dePascal é uma sublime profissão de fé na alma divina e imortal da Igreja (1).

(1) Ver o livro do autor: "Problemas do Espírito", capítulos "Corpo e alma da Igreja" e "Harmonia espiritual dahumanidade". 

*** Pascal será sempre um dos maiores enigmas e paradoxos da história espiritual

da humanidade. É possível que os séculos futuros cheguem a compreendê-lo melhor do que nós.

Ele é, a bem dizer um crente descrente...

Um dogmático cético...Um homem que possui a Deus com grande plenitude — e não cessa de o procurar dia e noite, no deserto da sua enorme vacuidade... 

Um homem eminentemente racional — 'mas que crê mais nas razões docoração que a razão ignora do que nas razões que a razão conhece...Pascal sente-se feliz na posse da fé cristã — mas a sua vida espiritual é uma pereneagonia metafísica...

 Mártir da sua própria espiritualidade — vive ele o delicioso tormento do Infinito...

 Dono de uma poderosa inteligência — só encontra satisfação em imolar o

intelecto e a liberdade na ara da graça divina...Pascal é o grande e impávido paladino da onipotência da graça.

 Há homens que não chegam a uma fé integral e uma tranquilidade interior, porque as janelas de sua alma, obstruídas pelo orgulho ou pela luxúria, não permitema entrada da luz divina da fé. Mas a vida de Pascal é uma vida de grande pureza ehumildade, vida de sincera compaixão e caridade, vida de solitude e oração — e, noentanto, é o seu mundo espiritual uma grande noite, noite estrelada, é verdade, masuma treva imensa, ligeiramente iluminada pelos astros longínquos e silenciosos... Asbelezas espirituais de que estão repletas os "Pensées" de Pascal parecem antes ser aslongínquas visões do seu grande e doloroso ideal do que o reflexo de uma felicidade

 profundamente possuída. Pois, não é que o anseio de ideais inatingidos nos torna,muitas vezes, mais eloquentes do que a posse tranquila da realidade?

Page 12: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 12/82

12

 Discípulo devotado de Agostinho, herdou Pascal toda a inquietude metafísicado grande pensador e místico africano, mas não lhe herdou, na mesma medida, a pazde espírito que o filho de Mônica gozou depois da sua conversão.

Tão intensa era a sua fé que pediu a Deus dez anos de saúde para poder escrever uma grande apologia do Cristianismo; mas Deus como ele dizresignadamente, só lhe deu quatro anos de enfermidade; e, assim, só temos da

 planejada obra um esboço, que, mesmo nessa forma fragmentária, é um dos maioresmonumentos da literatura cristã de todos os séculos.

***  Muito se tem escrito sobre a estranha mentalidade religiosa de Pascal. Por que

andava a sua tão sincera fé cristã sempre enlutada de tristeza e dor? Por que nãochegou a desabrochar em esplêndida flor de jubilosa alegria e felicidade? 

 Não o sabemos — nem ele o sabia...

Queria ele, o insigne matemático e geômetra, ter das supremas realidades domundo espiritual uma demonstração física, uma clareza matemática, em vez de umacerteza espiritual?

"Crer" não passava, para ele, de um "querer-crer", de um sincero e ardentedesejo de fé. Quase que poderia dizer com aquele homem do Evangelho: "Creio,Senhor - ajuda a minha incredulidade!"

Crer é para Pascal uma doce e querida necessidade, mas não deixa, afinal decontas, de ser um jogo de azar, como ele o descreve nos "Pensées". É arriscar uma

 partida, que pode sair bem e pode sair mal. Em todo caso, acha ele, é melhor crer doque não crer. O homem que joga no "crer" arrisca (1), na pior das hipóteses, uns

 poucos anos ou decênios de vida terrestre - ao passo que o homem que joga no"descrer" expõe-se ao perigo de perder uma vida eterna. Ora, em qualquer hipótese, é  preferível expor-se à possibilidade de uma perda temporal a arriscar uma perdaeterna.

Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa ter  plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar o finito pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito, mas o coraçãoadivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora não são menosrazoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem irracionais ousuprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar por essas razões do

coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema instância nesse eternolitígio em torno dos problemas centrais da vida humana .

(1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo do homem que crê na vida eterna e vivecomo se vida eterna não houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma lógica retilínea quenão pactua com a política curvilínea de certos cristãos penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se épagão", diz ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé — ou então não crer! Essetotalitarismo espiritual o levou ao tremendo conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "LettresProvinciales".

O intelecto é um aspecto parcial do ser humano - o coração é a totalidade panorâmica do nosso ser. Como poderia Deus, a plenitude infinita, ser objeto de uma

 faculdade tão finita como é a nossa inteligência?

Page 13: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 13/82

13

 Menos finita que a inteligência, ainda que não infinita, é a faculdade compreensiva docoração, que é a razão espiritual. Verdade é que nem ele compreende a Deus, esse Deusincompreensível, mas adivinha-o, pressente-o, experimenta-o, vive-o, em quase imediata

 propinquidade. Entre o intelecto e Deus existe uma parede maciça, opaca — mas entre o coraçãoe Deus parece medeia apenas um tenuíssimo véu, quase transparente, que a cada momento pode

romper e revelar Deus face a face.Por isto, é o coração mais amigo da fé que a inteligência. A inteligência trilhaestradas e veredas multiformes para encontrar a Deus, no vasto cenário da Naturezaexterna e interna — o coração espera-o pacientemente na antecâmara do santuário,escutando, em profundo silêncio, o esvaído eco de vozes que julga perceber por detrásdo misterioso véu que lhe oculta o sancta-sanctorumt da Divindade...

 A fé é, para a inteligência, uma peregrina estranha; fala uma linguagem que ainteligência não entende, e, não raro, entende às avessas...

Para o coração, porém, é a fé amiga íntima, quase uma irmã; elas se entendem, porque falam uma linguagem, se não idêntica, ao menos muito parecida uma com a

outra. Verdade é que mesmo para o coração tem a fé as suas misteriosas reticências,os seus grandes enigmas, os seus profundos abismos, as sua excelsitudcs, cujos cumesse perdem para além das nuvens; mas, para o coração, não tem esses mistérios ocaráter hostil que sempre lhes descobre ou atribui a inteligência. Crer é, para ocoração, uma doce necessidade, um delicioso tormento, uma tormentosa delícia -delícia, por causa daquilo que existe para além do véu, tormento por causa destevéu...

 A inteligência, nos domínios do mundo espiritual, após longas jornadas, chegainvariavelmente a um "ponto morto", à beira de um abismo que não conseguetranspor, uma vez que ela é essencialmente "bandeirante a pé", que abre o seu

caminho andando, com o auxílio de penosos e complicados silogismos, saltando de pedra em pedra, da premissa maior para a menor, e daí para a conclusão paraatravessar a torrente dos fenômenos transitórios. A marcha da inteligência é ummovimento descontínuo, feito de passos sucessivos; é uma longa cadeia de elosconcatenados; se faltar um desses elos, não pode a inteligência prosseguir na marcha;chegou a um "ponto morto".

O coração, porém, tem movimento contínuo, não anda — voa, transpõe precipícios, sem necessidade de pontes silogísticas; de um jato está do outro lado, nãose sabe como... Nas jornadas do coração só se vê o ponto de partida e o termo dechegada, nada, porém, se sabe do trajeto intermediário, nada do modo como ele

realizou esse movimento. Consta o quê do fato, não consta o seu como... A inteligência é analítica — o coração é intuitivo... Aquela marcha — este voa...

 A inteligência sente-se nos domínios da ciência — o coração encontra seu clima nomundo da mística...

***

Entretanto, como dizíamos, por maior que seja a afinidade entre as razões docoração e visões da fé — um homem como Pascal, que possuía em altíssimo grau a

Page 14: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 14/82

14

ciência das matemáticas e um apuradíssimo senso da objetividade imediata, não podiadeixar de sofrer acerbamente a sua fé, preciosamente porque a vivia profundamente.

Uma grande realidade espiritual vivida é por força um grande sofrimento.Quem não sofre a sua fé não a vive.Só uma fé dolorosamente sofrida é uma fé realmente vivida.

 A fé não é um teorema matemático que possa ser integralmente demonstrado,sem deixar margem para o contrário. Se das coisas espirituais tivéssemos evidênciamatemática — que mérito haveria em crer? Por que teria Jesus dito: "Quem crer serásalvo — quem não crer será condenado"? Se do crer ao não crer vai um abismo tão

 profundo como a distância entre o céu e o inferno, não é isto prova de que a fé não pode ser um simples ato da inteligência, como as verdades da física ou matemática?

Para que haja fé é necessário que haja margem para o contrário. O crer supõea possibilidade do não-crer.

Eu não creio que duas vezes dois é igual a quatro - isto eu sei.O que, em última análise, leva o homem a crer, ou a não crer é a sua vontade, e

não a inteligência. Esta prepara apenas o caminho, mas não dá o passo último edecisivo para a fé.

Em última análise, o homem crê porque quer crer.Este seu querer não é ulteriormente analisável. O querer é, por assim dizer, um

ato hermeticamente fechado em si mesmo, indevassável, inescrutável. Não temexplicação fora de si mesmo. Gira sobre seu próprio eixo. É independente, autônomo.Quero —  porque quero! É certo que há motivos externos para esse querer, motivosque atuam sobre a minha decisão e escolha; mas não há motivos rigorosamentedeterminantes. Sejam quais e quantos forem os motivos externos que sobre mim

atuem, em última análise, nenhum deles, nem a soma de todos eles determina ocaráter do meu ato volitivo. E, em face de todos os motivos pró e contra, tenho aconsciência nítida de poder responder com um  sim  ou com um  não  a toda essaofensiva dos motivos externos. Eu é que sou o dono e árbitro único do meu atovolitivo. Sou o único possuidor da chave para abrir e fechar a porta da minhavontade.

E isto não é ilusão da minha parte, como querem os deterministas. Se aconsciência me ilude — quem me pode desiludir? A consciência é a última instância,o Supremo Tribunal; mia sentença é inapelável! Se não posso confiar na minhaconsciência — em quem é que hei de confiar? Se quisermos viver e pensar, temos de

 pensar, temos de admitir necessariamente que a nossa consciência seja condutora, enão sedutora — a não ser que queiramos arvorar a desordem, o caos e a mentira, emsupremos fatores do Universo e fazer de Deus o rei dos tira-nos e impostores!

 A minha consciência me diz que sou livre nos atos volitivos do Eu — logo, soulivre! Falou a suprema instância! Sentença inapelável!

O livre-arbítrio é a quintessência do ser humano. É o homem mesmo no mais profundo quê da sua natureza. A liberdade do querer nos faz propriamente homens;exime-nos, liberta-nos dessa mesma cadeia de casualidades férreas que entretecetodos os fenômenos do Universo, sem excetuar a nossa própria inteligência. No livre-arbítrio está a Carta-Magna da minha nobreza humana, a minha maior semelhança

com Deus.

Page 15: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 15/82

15

Pela inteligência sou apenas transformador — pela vontade sou creador. O atolivre produz algo do nada, algo que antes não existia, e agora existe.

Por isto, se um homem crê, quando tem a possibilidade de não crer, é ele oautor responsável por sua fé.

É absurdo afirmar "não posso crer". Querer crer é poder crer! Há no Cristianismo bastante luz, escreve Pascal, para que o homem de boa

vontade possa aceitar as trevas que nele existem — mas há também no Cristianismobastante trevas para que o homem de má vontade possa negar toda a luz que neleexiste.

Quem se decide pela luz, quando podia decidir-se pelas trevas (mistérios) doCristianismo, pratica um ato livre e bom — quem se decide pelas trevas, quando

 podia decidir-se pela luz, comete um ato livre e mau.Por isto, cada um é responsável pela sua escolha. A consciência lhe diz que é 

livre. Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas? Por que

o crer é bom, e o descrer é mau?É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela

 parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do coraçãoque da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao passo que odescrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito, unilateral. Sacrificar otodo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar as partes ao todo é ordem eretitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer são harmonia, justiça, bondade,caridade, paz felicidade - ao passo que os filhos do descrer são geralmente, injustiça,violência, crueldade, exploração, desassossego.

***

Quando as potências do Infinito empolgam o homem, torna-se ele ou poeta ousanto. Poeta, artista, cientista, pensador, orador, quando o Infinito consegue atingir-lhe apenas as  faculdades periféricas: a inteligência, a fantasia... O sentimento; santo,apóstolo, herói cristão, talvez mártir, quando o Infinito se apodera da zona central doseu Eu, do íntimo quê do seu espírito.

O poeta impressiona pelo que diz — o santo impressiona pelo que é. A influência daquele é verbal — a influência deste é existencial.O poeta, quanto mais arrebatado pelo Infinito, tanto mais eloqüente se torna —

o santo, quanto mais identificado com o Infinito, tanto mais silencioso se faz. Não sedistrai com fogos de artifício. Não lhe apraz produzir e contemplar na câmara escuraas cores fantásticas do espetro solar. Tem só um desejo, profundo, sublime, veemente:viver integralmente o seu ideal, submergir no Infinito, perder-se em Deus. Nada maiso interessa. Todo o mais são sombras vagas, longínquas, quase irreais. E como elesabe de experiência pessoal que os grandes obstáculos dessa integração em Deus sãoo culto da matéria e o culto unilateral do intelecto, torna-se ele antimaterialista eanti-intelectualista, reprimindo os excessos da matéria pela ascese e os demandos dointelecto pela mística.

Page 16: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 16/82

16

Pascal passou por todas estas alturas e profundezas. E, quanto mais vazio se tornavaele do Eu, tanto mais se enchia de Deus. Na razão direta dessa "desegoficação" e dessa"cristificação" corre o crescimento do silêncio interior. Silenciosas são as grandes

 profundezas do mar, silenciosas as grandes alturas das montanhas. Silencioso é o homem queempreendeu a grande jornada da periferia para o centro do próprio Eu...

 A vida de Pascal acabou em grande silêncio. Poucos homens da história terão tidovida mis solitária e sem grandes eventos externos do que o eremita de Port-Royal. "Fugi domundo - escreve ele — e espero que o mundo fugirá de mim." Mas é este o estranho paradoxodas coisas humanas: quando fugimos da sociedade; das honras e glórias, estas coisas corremao nosso encalço, como se tivessem confiança em nós — mas, quando as procuramos, elasnos abandonam, porque não creem em nós. .

Onde quer que exista um grande foco de espiritualidade, para lá se voltam osespíritos, mesmo que esse poderoso astro se oculte por detrás de espessas nuvens - oheliotropismo das almas adivinha o sol a qualquer distância e através de qualquer obstáculo...

***

Tão pouco interessava a Pascal a celebridade, que nem mesmo sistematizou,nem deu nome à estupenda obra que os pósteros, depois de sua morte, compilaram demais de um miIheiro de farrapos de papel, a que puseram o nome de "Pensées".

Essa obra fragmentária é um alimento e uma medicina para os incrédulos ecépticos do nome espiritual. No fundo, tanto os "Pensées" como as "LettresProvidenciales" são uma tremenda ofensiva do homem-cristal contra o homem-argila,

 possivelmente uma ofensiva do "Pascal convertido" contra o "Pascal não convertido". Nada combatemos tanto nos outros como aquilo que nós mesmos fomos um dia e cujainfelicidade sentimos dolorosamente. Nos casuístas e nos incrédulos vê Pascal o seu

 próprio Eu antigo, profano, amorfo, sua falta de forma de atitude espiritual definida -e vibrou tremendos golpes contra seu pseudo-Eu, que, nesse tempo, felizmente, já eraum ex-Eu...

Pascal não tolera em si nem nos outros o homem-argila, o homem-molusco, ohomem-mingau, o homem-furtacor, penumbrista, acomodatício, político, esses seresneutros e incolores que Dante descreveu no 3º cântico do "Inferno" e dos quais diz oseu mentor Virgílio: "Não são anjos nem demônios esses homens; não os acolheu o

céu, para que não lhe empanassem o brilho, e não os engoliu o inferno, por que nãoeram dignos dele"...Por esta mesma razão também se revoltou Pascal contra toda e qualquer 

espécie de autorredenção pelagiana, por mais bem camuflada que ela se apresentassee por mais poderosos que fossem os seus "piedosos" defensores... Para Pascal sóexiste uma teorredenção, uma Cristo-redenção.

***

Eram inevitáveis os sofrimentos da vida de Pascal. Não são senão a sombra

que todo o ser creador projeta atrás de si, quando se aproxima da Luz increada,sombra que tanto mais se avoluma e tanto mais negra se torna, quanto mais perto de

Page 17: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 17/82

17

 Deus se acha a alma. Os homens que estão relativamente longe de Deus têm sombras pequenas e difusas; e os que se acham a distância enorme, lá onde mal chega a luzdivina, esses nem percebem as sombras da sua humana imperfeição e insuficiência,não porque as sombras sejam insignificantes, mas porque grande é a distância a quese acham e fraquíssima a luz que os atinge...

Quanto mais perto da Luz, tanto maior e espessa é a sombra...Só quando o homem submergir plenamente no oceano da Luz divina, acabarão

todas as sombras... Nesta vida, porém, é inevitável que a alma sofra na razão direta da sua

 proximidade de Deus. Essas sombras são, muitas vezes, a dúvida de si mesmo, adescrença da sua missão, a náusea da própria vida espiritual — supremo e últimotormento dos santos...

 Na vida de Pascal assumiu essa dúvida e essa náusea a forma de um dolorosocepticismo, cujo único alívio era a consciência de um grande amor de Deus. Amar é 

 para Pascal a melhor forma de crer. É, em última análise, a tal "razão do coração quea razão ignora". Ele não pode crer num Deus a quem não possa amar sinceramente.Para ele, como para seu grande mestre Agostinho, Deus é, antes de tudo, o "Summum

 Bonum", o Sumo Bem, o alvo do amor, e não tanto a "Verdade Eterna". Para ele, sóse conhece cabalmente o que se ama com ardor. Não importa que a filosofia afirmeque o querer segue ao conhecer; pode isto valer para as coisas naturais, onde ointelecto é soberano absoluto; mas no reino de Deus há outras leis; a intuição docoração já está no termo da jornada, em pleno querer, quando a filosofia do intelecto,a meio caminho, ainda está ocupada na construção da ponte silogística do conhecer.

Só quem ama conhece cabalmente. O coração é o chaveiro da inteligência.

Pascal tem uma grande mensagem para a humanidade de hoje, para osmelhores homens do nosso século — uma mensagem equidistante do materialismodeprimente e do intelectualismo esterilizante, uma grande mensagem de vasta,

 profunda e panorâmica espiritualidade cristã. A espiritualidade que brilha em todas as páginas do Evangelho. A espiritualidade do próprio Cristo.

Page 18: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 18/82

18

 Tabela Cronológica dos 

Principais Fatos da Vidade Pascal

1623 - 19 de junho — Nascimento de Blaise Pascal.1633 — Pascal, aos 10 anos, estuda geometria por conta própria e escreve "Traité des sons" (tratado sobre os sons).1638/39 — Aos 15 e 16 anos, Pascal elabora o "Traité dês sections coniques" (tratado sobre as secções cênicas) e publica,com espanto do mundo científico, os "Essais pour lês coniques" (ensaios para os cones).1640/42 — Pascal trabalha na construção da sua máquina aritmética. Primeiro abalo grave de sua saúde.1644 — Pascal faz presente de um exemplar da sua máquina aritmética ao "Grande Conde" (Luiz II).1646 — Primeira "conversão" de Pascal pelos jansenistas, La Bouteillerie e Deslandes. Pascal "converte" sua genial irmãJacqueline.1647- 23 de setembro — Pascal tem, em Paris, uma entrevista com o célebre filósofo Descartes.1647 - 4 de outubro — Pascal publica o seu tratado sobre o vácuo "Nouvelles éxperiences touchant lê vide".1647 — Polêmica com o Jesuíta Noel sobre a teoria do vácuo.1647/51 — Pascal elabora o "Tratado sobre o vácuo".1648 - janeiro - Primeiras relações diretas de Pascal com Port-Royal.

1648 - setembro — Pascal publica o célebre esboço sobre o equilíbrio dos líquidos "Récit de Ia grande éxperience de1'équilibre dês liqueurs".1649 - 22 de maio — É concedida a Pascal patente de invenção para sua máquina aritmética.1651 — Princípio das relações de amizade de Pascal com o duque Roannez.1651 - 24 de setembro — Morte do pai de Pascal.1651 - 17 de setembro — Pascal escreve a célebre "Lettre sur Ia mort".1652 - 14 de março — Pascal oferece à rainha Cristina da Suécia um exemplar da sua máquina de somar, acompanhado deuma carta dedicatória.1652, - 8 de julho — Pascal fabrica o modelo definitivo da sua máquina aritmética, que se acha atualmente no Conservatóriode Artes e Ofícios, de Paris.1652 ou 1653 — Pascal escreve os célebres pensamentos sobre o amor "Discours sur les passions de 1'amour".1653 - 6 de junho — Pascal escreve os tratados sobre os líquidos e sobre o peso da massa atmosférica, "Traité dês liqueurs","Traité de Ia pesanteur de Ia masse de l'air".1654 — Pascal escreve os tratados sobre o triângulo aritmético e sobre a ordem numérica, "Traité du triangle arithmetique","Traité dês ordres numériques". Escreveu ao mesmo tempo uma série de pequenos trabalhos matemáticos e geométricos, emlatim.1654 - junho-outubro — Correspondência de Pascal com o célebre físico Fermat.1654 — Acidente na ponte de Neuilly.1654 - 23 a 24 de novembro — Profunda experiência religiosa de Pascal, início da sua "conversão" definitiva à vidaespiritual.1654/55 — Pascal escreve um tratado sobre o espírito da geometria, "Traité de 1'esprit géometrique".1655 — Pascal associa-se aos eremitas de Port-Royal dês Champs.1655 - 19 de janeiro — Carta de Jacqueline a seu irmão Blaise sobre a conversão dele.1655 - dezembro — Pascal em Paris.1655 — Pascal entretém-se com o grande M. de Sacy sobre a vida cristã 22 de maio — É concedida a Pascal patente deinvenção para sua máquina aritmética.1656 - 23 de janeiro — Pascal publica a primeira das suas famosas "lettres Provinciales".1656 — Correspondência de Pascal com Mlle. Roannez, irmã do duque Roannez, sobre a vida espiritual.1657 - 24 de março — Pascal publica a sua última (18ª) "Lettre Provinciale".

1657 - 6 de setembro — A Congregação Romana do Index condena as "Lettres Provinciales".1657/62 — Pascal trabalha na sua Apologia da Religião, intitulada, mais tarde, pelos editores, "Pensées".1658 - 11 de junho — Pascal institui o concurso sobre a "roulette" ou a ciclóide (1).1658 - 25 de novembro — Apuração do concurso sobre a ciclóide.1658/59 — Diversos trabalhos de Pascal sobre matemática e geometria. '1658 ou 1659 — Pascal expõe, numa conferência, o plano da sua Apologia da Religião ("Pensées").1656, fevereiro — Expulsão das monjas e dos eremitas de Port-Royal.1661 - 6 de outubro — Morte de Jaqueline, irmã e conselheira espiritual de Pascal.1662 - janeiro — Pascal estabelece a primeira empresa de omnibus em Paris e obtém para a mesma carta patente daautoridade pública.1662 - 3 de agosto — Testamento espiritual de Pascal.1662 - 19 de agosto — Morte piedosa de Blaise Pascal, com 39 anos de idade.

(1)  Tratava-se, neste célebre concurso científico, de precisar matematicamente a trajetória descrita por uma roda de

carro em movimento. Sendo que essa trajetória se compõe do movimento rotativo da roda e do seu avançoprogressivo em sentido horizontal, era sumamente difícil precisar a chamada "roulette" - ou "ciclóide". A soluçãofinal do problema foi dada pelo próprio Pascal, com admiração de todo o mundo profissional.

Page 19: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 19/82

19

Lampejos de Gênio 

Um menino de 10 anos, por nome Blaise Pascal (1), bate com uma colhernum prato e escuta atentamente o som que, por algum tempo, continua a vibrar,cessando, porém, assim que o pequeno põe a mão sobre o prato.

Milhares de meninos terão observado o mesmo fenômeno trivial, mas sóeste, estranha-mente intrigado com o fato, resolveu investigar o mistério — eescreveu um tratado sobre o som, "Traté des sons".

_________

(1)  Blaise (Braz) Pascal nasceu em Clermont (Auvergue), aos 19 de junho de 1623, filho de Etienne (Estevão)Pascal e Antoinette Begon. Sua irmã mais velha, Gilberte, nasceu em 1620, e sua irmã mais nova, Jacqueline,em 1625. Faleceu aos 19 de agosto de 1662, com 39 anos de idade. Suas últimas palavras foram: "Não medesampare, Senhor!"

Certo dia, encontrou o pai ao pequeno Blaise sentado no soalho do quarto ariscar com um pedaço do giz "rodas e barras" (ronds et barres),como ele chamava, lána sua linguagem infantil, os círculos e as linhas retas da geometria; e passou aexplicar ao pai estupefato as relações que descobrira entre essas "rodas" e asrespectivas "barras".

Estranho divertimento para uma criança!...Por esse mesmo tempo, provou Blaise que a soma dos ângulos de um triângulo

perfaz dois retos, solvendo assim, por passatempo, o 32º teorema de Euclides, cujonome ignorava.

Adolescente de 16 anos, escreveu um tratado sobre as secções dos cones, "Traté des sections coniques", problema de alta geometria, que assombrou o mundoprofissional da época. Descartes, o grande filósofo, recusou-se por muito tempo a crerque semelhante trabalho fosse feito por um jovem dessa idade.

***

De resto, não era Blaise o único "prodígio" da família Pascal. Sua irmãzinhaJacqueline, dois anos mais nova que ele, escrevia, aos 11 anos, poesias que excediam a

capacidade normal de uma criança. Aos 13 anos, compôs uma poesia sobre um assuntoque ninguém podia esperar de uma menina dessa idade — a gravidez da rainha Ana daÁustria. Aos cépticos, que a supunham plagiária, provou-lhes Jacqueline a suacapacidade, improvisando diante deles uma poesia de notável perfeição. Esse talentoprecoce da menina contribuiu pouco para o melhoramento da situação econômica dafamília Pascal, e isto de um modo singular. Quando em 1633, o poderoso Ministro deEstado, Cardeal Richelieu, fez representar em seu palácio a tragédia "L'Amourtyrannique", de G. de Scudéry, foi confiado um dos papéis a Jacqueline, que seconduziu com tanto brilho que o Ministro manifestou o desejo de conhecer o pai e afamília da pequena atriz, que contava então 8 anos. Etienne Pascal havia perdido as

boas graças de Richelieu por causa de um incidente relativo às apólices do Estado, e,para não ser preso, se refugiara a Clermont, na Auvergne. Por causa da talentosa

Page 20: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 20/82

20

filhinha, foi chamado a Paris, onde Richelieu o nomeou Prefeito de Rouen,prometendo, outrossim, interessar-se pela carreira dos jovens Pascal. Não foinecessária esta proteção do Ministro. Os jovens Pascal, sobretudo Blaise, fizeram a suagrandeza, independente de favores públicos, graças aos extraordinários cabedais que aDivina Providência lhes outorgara.

***

Em Rouen excogitou e construiu o jovem matemático, aos 18 anos, umamáquina de contar a fim de aliviar os complicados cálculos de seu pai, lidar com asfinanças do Município. Esse aparelho, de que mais tarde, foram feitos numerososexemplares, prestou grandes serviços aos que se ocupavam com os mistérios daaritmética, nesse tempo em que ainda não estavam aperfeiçoadas as tábuaslogarítmicas. Mais tarde, ofereceu Blaise Pascal uma dessas máquinas ao célebre

Condé, e outra à Rainha Cristina da Suécia, que então se achava na França.  Nacarta, que acompanhava o original presente à jovem soberana, revelou-se o genialmatemático e mecânico, pela primeira vez, insigne estilista, embora essa epístolanão refletisse ainda a incomparável beleza e diáfana simplicidade que encontramosnas "Pensées".

De 1646 a 1648, entre 23 e 25 anos, andou Pascal engolfado em estudos deFísica, escrevendo um tratado sobre o "espaço vazio" "Nouvelles experiencestouchant lê vide". Tão excessivos foram os esforços desse tempo que o corpo nãoresistiu à sobrecarga do espírito. O jovem cientista caiu enfermo, e nunca mais serestabeleceu completamente.

Inesperadamente, entrou em violenta polêmica científica com um jesuíta, pornome Noel, polêmica em que se revela pela primeira vez a sutil ironia e candentesátira que, mais tarde, fizeram das famosas "Lettres Provinciales" uma das maioressensações literárias do século, lidas nos palácios e nos tugúrios da França e, logodepois, traduzidas em todas as línguas.

Uma força estranha, uma como energia cósmica parecia trabalhar nosmeandros desse cérebro juvenil — e Pascal deixou-se empolgar, consciente ouinconscientemente, por esse sopro anônimo que tangia sua alma para mundosignotos...

Ignotos, mas pressentidos como soberanamente grandes e divinamentebelos...

Page 21: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 21/82

21

Os Eremitas de Port-Royal 

Em 1646, quando Blaise contava 23 anos, sofreu seu pai um acidente que porlargo tempo o reteve de cama. 

Dois piedosos irmãos, fervorosos discípulos de Cornélio Jansênio, bispo deYpres (+1638), ofereceram-se como enfermeiros, e, além da saúde corpórea querestituíram a Etienne Pascal, procuraram elevar-lhe também o espírito para asalturas da Divindade. Falavam com grande unção e fervor das maravilhas dagraça divina. 

Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansêniointitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade deSaint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo. Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas

cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre ossilenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do Jansenismotão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro, mantendo, por muito tempo,em suspensão o catolicismo da França'? Não caísse a mensagem rigorista do bispode Ypres no meio de uma França profundamente anarquizada e espiritualmentedepauperada, talvez que não despertasse tão vasta ressonância em milhares dealmas sinceramente cristãs que não se conformavam com o laxismo reinante,suspirando por uma espiritualidade mais profunda e uma regeneração moraldentro do seio da Igreja. 

Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se organizassemdiversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco de espiritualidade

cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as grandes idéias deJansênio. O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um

verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o insistentebrado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade profana do seutempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma reforma era o hábilMinistro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha apenas a veste talar. Nointuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe sucessivamente de cincoBispados, iscas que o abade recusou sucessivamente com toda a firmeza e polidez,continuando a clamar pela reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.

Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patronoHerodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade pública, e

ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem Paris. Saint-Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por meio de uma vastacorrespondência com grande número de pessoas desejosas de espiritualidadecristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram estabelecer-se fora da capital, novelho convento de Chevreuse, que, daí por diante, passou a chamar-se "Port-Royaldês Champs". 

Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o célebreAntoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes defensores dasideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus", fez como quecristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do movimento, que,em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos tempos apostólicos, à

simplicidade da vida pobre e à concretização do Evangelho na vida quotidiana.Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos realizar de acordo com a hierarquia eas tradições da Igreja Católica; não pretendiam de forma alguma fundar uma seita,

Page 22: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 22/82

22

mas trabalhar por uma reforma religiosa e moral da vida católica e do clero. Elesmesmos, os Jansenistas, davam, por meio de uma vida de grande austeridade eprolongadas meditações, exemplo vivo do que ensinavam. 

O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era olaxismo  da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas".

Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da Companhia deJesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem dos Jesus. 

Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa"casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na alma dopovo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o próprioespírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o leitordepreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de algunsdesses livros impugnados. 

Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terrenopropriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço doque prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado deprincípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadececom a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem que,na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do homem. Maisamigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha intelectual Aristóteles-Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um "predestinado", ou então um"condenado", por conta da graça divina, sem papel decisivo da parte daliberdade humana. 

Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será sempreinsondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a liberdadehumana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa harmoniaentre dois fatores aparentemente antagônicos.

***

Enquanto os dois piedosos samaritanos pensavam os ferimentos de EtiennePascal, escutava o jovem Blaise com grande atenção o que eles diziam domisterioso poder da graça de Deus. E a mensagem divina calou fundo na alma docientista, cuja sede espiritual era muito maior que sua fome de ciência.

Terminada a cura do acidentado, despediram-se os dois Jansenistas, deixandotoda a família Pascal profundamente impressionada com o ideal religioso. Na alma do jovem Blaise estava lançada a semente, que, todavia, só mais tarde,

ia brotar, Não estava ainda preparado o terreno. Pascal cria ainda por demais nopoder da vontade humana. Teria de passar primeiro por uma série de dolorosasexperiências e derrotas íntimas para descrer de sua amiga "vontade" e capitularincondicionalmente ante a graça de Deus... 

Que um homem como Pascal, de extraordinária potência intelectiva e volitiva,acabasse, dentro de poucos anos, por apelar da razão para a f é — isto é um dos maisimpressionantes mistérios do poder de Deus, que derrota a vontade, sem lhe ofendera liberdade. A mesma força divina que dum Saulo fariseu fez um Paulo apóstolo,e do estudante pagão de Cartago fez o grande místico cristão de Hipona, faria

também do exímio cultor da ciência um devotado discípulo da "loucura dacruz"...

Page 23: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 23/82

23

 

Encontro Pessoal com Deus 

A impressão que as doutrinas dos dois enfermeiros Jansenistas causaram naalma de Blaise Pascal levou-o ao que ele chama a sua "primeira conversão".Começou a se ocupar seriamente com assuntos religiosos, quando, até essa data, seinteressava, de preferência, pelas ciências naturais. Não se compara, todavia, estaprimeira conversão com a segunda e definitiva, que ocorreu anos mais tarde e fezdo grande matemático um ardente discípulo do Cristo e apóstolo do Evangelho. 

Mudança mais radical que no espírito de Blaise havia as doutrinas dos doisenfermeiros produzido na alma de Jacqueline, mudança que lhe cortou cerce abrilhante carreira literária iniciada — com grande pesar de seu amigo e admirador,

o célebre poeta Corneille, que vivia em Rouen. A jovem poetisa, que teria sidoprovavelmente, uma das maiores glórias literárias da França, resolveu renunciar atudo que o mundo lhe prometia e entregar-se inteiramente às humildes grandezasda vida espiritual. E com isto começou o seu longo Calvário, como acontecesempre àqueles que entram numa zona de intensa espiritualidade. Existeindissolúvel vínculo, ou talvez uma misteriosa afinidade e interdependênciaentre o amor e o sofrimento, como, aliás, prova a vida do próprio Cristo e de todosos seus verdadeiros discípulos. E este sofrimento nos é causado, em geral, poraqueles que mais de perto deviam acompanhar o nosso caminho ascensional. 

Numa viagem a Paris, entrou Jacqueline em contato com as religiosas de

Port-Royal — e convenceu-se de que só na solidão do mosteiro é que poderiarealizar o seu grande desejo de vida intensamente espiritual. O pai, todavia, seopôs terminantemente aos planos da talentosa filha. Também Blaise procuroudissuadi-la do seu intento, e isto por uma espécie de egoísmo espiritual.Jacqueline era, nesse tempo, a única alma que compreendia os anseios íntimosdo irmão. Com ela se abria Pascal e dela recebia grandes luzes. A ideia de terde separar-se da irmã afigurava-se-lhe como que um eclipse religioso em plenaalvorada. 

Entrementes, casara Gilbert, a irmã mais velha, com um senhor por nomePérier. Em 1649 visitaram os três Pascal, Etienne, Blaise e Jacqueline, a MadameGilbert Périer, em cuja casa se demoraram algum tempo. Querem alguns biógrafos

que Blaise se tenha, nesta ocasião, enamorado de uma jovem da Auvergneapelidada "Safo". Parece, todavia, tratar-se de outro cavalheiro com o sobrenomePascal. O certo é que o nosso matemático, que contava então 26 anos, frequentousociedade e se tornou grande amigo de alguns homens de destaque, entre eles oduque de Roannez, como também de um cavalheiro elegante por nome JorgeMéré. Este, apesar de espírito medíocre e apaixonado jogador, veio a ter notávelinfluência sobre Pascal, não tanto sobre o seu caráter como sobre sua vida externa eseu traque j o social. Pascal vivera até então para a sua querida matemática e física esabia melhor como resolver cálculos infinitesimais do que como portar-se em umsalão elegante no meio de damas e cavalheiros. Méré julgou de seu dever fazer dosolitário pensador um autêntico homem da sociedade, um "honnête homme", comose dizia naquele tempo. E, por alguns anos, pareceu ter sorte com a sua tentativacivilizadora. 

Page 24: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 24/82

24

Quem leu os "Pensées" conhece a célebre exposição que Pascal faz em tornode uma espécie de aposta ou jogo de azar, que poderíamos chamar "cara ou coroa".O fim dessa exposição é fazer ver ao cético ou incrédulo o fraco e absurdo da suaatitude em face dos problemas eternos. É bem possível que esse pensamentoremonte ao tempo em que Méré arrastava seu inteligente amigo aos salões de jogo

da haute-volée contemporânea. Em 1651 faleceu Etienne Pascal, e no ano seguinte ingressou Jacqueline nomosteiro cisterciense de Port-Royal, apesar da oposição de Blaise, que não queriaver-se privado da companhia dessa alma congenial à sua.

Para encher ou esquecer o doloroso vácuo que a morte do pai e a despedida dadileta irmã abriram em sua vida, voltou Pascal, com todo o ardor, às lucubraçõescientíficas, e, nas horas vagas, procurava distração e derivativo na sociedade. Levouvida mundana e fútil, sem todavia, comprometer a sua dignidade de homem nemabismar-se nos vícios tão próprios de jovens da sua idade.  

Os biógrafos de Pascal discordam no tocante aos amores, reais ou supostos, do jovem cientista. O que o autor dos "Pensées" diz sobre os problemas do coração e o

que consta do fragmento "Discours sur les passions de l'amour", publicado porCousin, não deixam a menor dúvida de que o grande pensador tenha sentidoprofundamente o que os romancistas chamam "deliciosa tortura". Mas, se essa sen-sação imanente se tenha tornado transitivo e encontrado objeto correspondente —isto é uma questão aberta na vida desse homem mais que todos misterioso eenigmático. 

Querem alguns que tenha mantido correspondência amorosa com a irmã doduque Roannez; mas as cartas que escreveu a essa jovem tratam de assuntosessencialmente espirituais e não dão margem a conclusões de ordem romântica.Amor tão eminentemente platônico como esse deixaria de ser amor — e Pascal erahomem não menos afetivo que intelectivo.

***

Em outubro de 1654, aos 31 anos, viu-se Pascal a um passo da morte. Passando, nacarruagem do duque de Roannez, pela ponte de Neuilly, cujo peitoril estavaquebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaram rumo à beirada da ponte; doisdeles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponte abaixo, ao passo que os outroscom a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo, salvando assim a vida docientista. 

Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitosatribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. 

Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autor revelaum profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrarinteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que oconvertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria, nessanoite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grande

acontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que oagraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,

Page 25: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 25/82

25

confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lampejoda graça divina e o sobre-humano vigor n i agem do duque de Roannez, pela pontede Neuilly, cujo peitoril estava quebrado, assustaram-se os cavalos e desembestaramrumo à beirada da ponte; dois deles, rompendo os arreios, precipitaram-se ponteabaixo, ao passo que os outros com a carruagem ficaram suspensos sobre o abismo,salvando assim a vida do cientista. 

Seguiu-se a este incidente a "segunda conversão" de Pascal, que muitosatribuem ao violento abalo que o fato produziu em sua alma. Sua irmã, porém,madame Périer, contesta essa relação causai, afirmando ter sido Jacqueline que,com sua intensa espiritualidade, transformou a mente do irmão. 

Depois da morte de Pascal foi encontrado, cosido no forro da sua vestimenta,um bilhete datado da noite de 23 a 24 de novembro de 1654, em que seu autorrevela um profundo arrebatamento religioso e um ardente desejo de se consagrarinteiramente às coisas divinas. O fato de levar Pascal consigo, dia e noite, esse cha-mado "Memorial" deu azo a que muitos o considerassem como um amuleto a que oconvertido atribuísse virtudes mágicas. Afirma-se também que Pascal teria,

nessa noite, tido uma visão. Como se a extraordinária significação de um grandeacontecimento interior não fosse bastante para justificar o carinho com que oagraciado levava consigo esse memorial de sua definitiva iniciação espiritual!Pascal nunca se referiu a essa suposta visão, nem mesmo com Jacqueline,confidente de sua vida interior. De resto, que é uma visão? Um intenso lam-pejo da graça divina e o sobre-humano vigor por ela comunicado é umarealidade muito superior a todas as chamadas visões.  

Esse misterioso acontecimento íntimo, que exerceu decisiva influência sobre avida ulterior de Pascal, deixou no referido "Memorial" apenas as seguintespalavras, do punho do agraciado:

"L'an de grâce 1654. Lundi, 23 novembre, jour de saint Clé-ment, pape et martyr et autres aumartyrologe, veille de sant Chryso-gone, martyr., et autres.

 Depuis envirou dix et demie du soir, jus-ques environ minuit et demie.  Feu.  Dieu d'Abraham, Dieu d'Isaac, Dieu  de Jacob, non dês philosophes et dês  savants. Certitude. Certitude. Sentiment. Joie. Paix. 

 Deum meum et Deum vestrum.Ton Dieu será mon Dieu."

Tradução: "Ano da graça de 1654. Segunda-feira, 23 de novembro, dia deSão Clemente, papa e mártir, e outros no martirológio, vigília de SãoCrisógono, mártir, e outros. Desde pelas dez e meia da noite até pelas doze e meia. Fogo. Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus 

De Jacó, não dos filósofos e dos cientistas.Certeza. Certeza. Sentimento. Alegria. Paz.

Page 26: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 26/82

26

Deum meum et Deum vestrum.Teu Deus será meu Deus."

Pode-se dizer que estas duas horas de intensíssima experiência religiosa, das10h30 até 12h30 da referida noite, marcam o nascimento espiritual do grande

pensador. Nessa memorável noite cristalizou-se definitivamente a alma cristã dePascal, assumindo aquela forma religiosa que nunca mais perdeu até a hora damorte. 

Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senãopálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos eremitas láestabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã do célebreJansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que o mundo fugiráde mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois correr atrás dele portodos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério de todas as coisas creadas:quando as procuramos, fogem de nós; mas, quando as abandonamos por amor deDeus, correm ao nosso encalço e prendem-se a nós, como se estivessem convencidas

de que um homem desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas.A natureza só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardandoabsoluta liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar aDeus a natureza.

Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a suacristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nosfragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores deram onome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a Epicteto eMontaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que esses filósofos,um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico frisa a grandeza dohomem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre os dois está oCristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o homem, mas

soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse satânico serafim ouseráfico satã, invocando o dualismo interno do homem introduzido pelodespertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do Logos ou Cristo. 

Em torno dessa estranha dualidade do homem irredento é que giram os maisluminosos pensamentos de Pascal. Que é o homem'? Em que consiste sua queda?Sua redenção? Há uma ântroporredenção ou necessitamos de uma Teo-redenção? 

M. de Sacy introduziu Pascal na vasta selva de grandiosos pensamentos quesão as obras de Agostinho. E a alma do grande pensador gaulês fundiu-se com oespírito congenial do grande místico africano. Todos os futuros triunfos, comotambém os seus violentos conflitos espirituais, têm raiz na ideologia agostiniana.

Não há, aliás, em toda a história do Cristianismo homem algum que tenha dadoocasião a maior número de ideologias várias e desencontradas do que o célebrefilho de Mônica. Quem entra nessa selva tropical de pensamentos com o intuitode fazer a sua coleção de ideias ou provar a sua tese predileta, encontraabundantíssimo material para seu  jardim ou seu museu espiritual — tãopanorâmico é o espírito de Agostinho. Com as obras do Bispo de Hiponapodem-se provar, mais ou menos, todas as ideologias espirituais; bastacolecionar pensamentos de certo colorido e deixar de parte os de outroscoloridos — assim como também se pode provar que a luz do sol é verde,vermelha ou azul, conforme a afirmação exclusiva que se faça desta oudaquela faixa do prisma produzido pelos raios solares. Os grandes homens,porém, não são exclusivistas, mas, sim, eminentemente inclusivistas, e só umespírito de vasto e panorâmico inclusivismo é que pode compreender einterpretar corretamente os gênios de horizontes universais. O Evangelho de

Page 27: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 27/82

27

Jesus Cristo é o que há de mais inclusivista e panorâmico que se possaimaginar — e dele precisamente têm os espíritos estreitos e exclusivistas feitoa mais horripilante caricatura que já apareceu na face da terra. Todas as po-lêmicas teológicas e todas as guerras de religião nasceram desseexclusivismo, destruindo a harmonia espiritual da humanidade que o vasto

inclusivismo de Jesus estabeleceu entre os homens. Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino,conquistou Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidadepanorâmica e integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Reiimortal dos séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãosdos nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conoscotodos os dias até a consumação dos séculos. 

Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus"Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado pelatempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As perseguições de que aIgreja é alvo oferecem esta satisfação." 

A exemplo de sua grande patrícia, Joana d'Arc, tão cristã quão analfabeta,não identifica o genial filósofo a Igreja de Cristo com esta ou aquela organizaçãoeclesiástica, menos ainda com os homens que, neste ou naquele período, representamcasualmente a Igreja. Se assim fosse, seria tão mal-segura a sua fé como falíveis sãoos homens. Daí a pouco, teria ele ensejo para ver a enorme diferença que vaientre a alma divina da Igreja, que ele amava apaixonadamente, e o corpo humanodessa mesma Igreja, que nem sempre espelha a pureza e perfeição da alma.Católicos menos esclarecidos em sua fé se têm escandalizado com a atitude dePascal no meio do conflito religioso do seu tempo — e esquecem-se de que ele foiobrigado a essa atitude precisamente pela fé firme e pelo ardente amor que votavaà Igreja de Cristo. Outra atitude não podia Pascal assumir, depois da sua grandeexperiência espiritual de 23 a 24 de novembro de 1654, em que ele se encontrou,como diz, não com o "deus dos cientistas e dos filósofos, mas com o Deus de Abraão,Isaac e Jacó".

Page 28: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 28/82

28

 

Conflito Entre Duas Humanidades 

Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelosproblemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim, pelasdireções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a humanidadede todos os tempos. Se solveram algum problema ou definiram algum pensamento,é isto precisamente o limite da sua grandeza e o princípio da sua pequenez. A suaverdadeira grandeza está nas orientações que deram, porque essas orientações vãopara o Infinito. 

Quanto menos diferenciado é um ser tanto mais susceptível de evolução, tantomais fecundo de direções várias, de possibilidades vitais e evolutivas. Um ser

altamente diferenciado tem poucas possibilidades evolutivas: está colocado sobretrilhos fixos, rigorosamente determinados, e daí não pode sair; só pode correr nadireção desses trilhos, e não enveredar pelas mil e uma estradas do ser nãodiferenciado. 

É o que se dá também no mundo dos pensamentos e das ideias. Poderosamatéria-prima repleta de energias vitais são as ideias dos grandes homens.Matéria-prima cósmica — e não artefato humano! Milhares e milhões depensamentos podem ser plasmados dessa enorme idéia cósmica, fundamental,prenhe de ilimitada fecundidade. Lançar ao mundo dos homens essas ideiasfundamentais é obra do gênio, não do simples talento, menos ainda do homemerudito. Destacar desse gigantesco bloco partículas maiores ou menores, modelá-las

em pensamentos, fazer desse minério geral pequenas moedas correntes para ocomércio espiritual da humanidade — é tarefa dos pequenos operários dainteligência. 

O gênio não fabrica pensamentos — crea ideias. Arranca das profundezas docosmos enormes blocos amorfos, verdadeiras montanhas de minério bruto — e segueo seu caminho. O gênio é um estranho emissário do cosmos superconsciente. Causaterror, estupefação. É geralmente combatido pelos pequenos mercadores dainteligência e da moral, como algo de absurdo e monstruoso, como um ser de outrosmundos que venha perturbar o tépido sossego do nosso planeta. E têm razão essesmercadores — lá do seu ponto de vista. Tempestades e terremotos são fenômenosque incutem pavor... 

Segundo a concepção do citado filósofo germânico não parece Pascalpertencer aos grandes gênios da humanidade. A sua obra imortal, "Pensées",são um escrínio de pensamentos de diáfana clareza e precisão, verdadeirospensamentos-cristais. Não é possível tirar nem acrescentar uma só palavra a essesaforismos sem os destruir, assim como não se pode alterar os ângulos e as faces deum cristal, sem o adulterar e desvalorizar. 

E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espíritogenuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas énecessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. Énecessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram essesmaravilhosos imortal, "Pensées", são um escrínio de pensamentos de diáfanaclareza e precisão, verdadeiros pensamentos-cristais. Não é possível tirar nem

Page 29: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 29/82

29

acrescentar uma só palavra a esses aforismos sem os destruir, assim como não sepode alterar os ângulos e as faces de um cristal, sem o adulterar e desvalorizar. 

E, no entanto, é Pascal um dos grandes gênios da humanidade, espíritogenuinamente cósmico, como os mais poderosos dentre os filhos dos homens. Mas énecessário que o leitor enxergue para além desses cristais de pensamentos. É

necessário que tenha olhos para ver, ou antes, sentimento para sentir o fundo cós-mico desses pensamentos, a vasta ideia fundamental da qual nasceram essesmaravilhosos cristais de pensamentos rigorosamente delineados. 

Quem lê Pascal, longe de ver solvidos os eternos problemas da humanidade,mais inebriado se sente desses problemas. Sente-se por eles empolgado e já nãopode viver sem eles. Não é possível continuar a vegetar no marasmo habitual dasua indiferença... Entra-lhe no sangue uma febre metafísica, um fogo sagrado quenão o deixa em paz. Pois, o que forma o fundo, o background, de toda a atividadeliterária, polêmica e espiritual do eremita de Port-Royal é o que há de mais vasto,antigo e obscuro no seio da humanidade. 

Pascal não vale pelos problemas que, porventura, tenha solvido - vale pelainquietude metafísica que lançou nos espíritos estagnados e pela sede deespiritualidade que acendeu. 

E isto vale também das "Lettres Provinciales" do grande pensador. Em Pascal e nos "casuístas" que ele impugna, defrontam-se dois mundos tão

antigos como a própria humanidade. Entram em conflito duas humanidades — ahumanidade da superconsciência intuitiva e a humanidade da consciênciaintelectiva. 

Que é o homem? É o homem apenas aquilo que ele faz intelectual, livre econscientemente — ou também aquilo que ele é no vasto subsolo da suaindividualidade inconsciente e involuntária? É o homem apenas o seu ser

consciente - ou é ele também o seu ser superconsciente? Em torno desse tremendo dilema gira, em última análise, toda a luta de Pascal

e dos seus adversários. Pascal entende o homem na sua totalidade, consciente esuperconsciente — ao passo que seus impugnadores consideram o homem apenassegundo a sua zona consciente e livre. 

A França tem sido, desde tempos remotos, a terra clássica dessas duasideologias contrárias e insolúveis, ideologias que se concretizam em dois dos seusmaiores poetas: Racine e Corneille. Racine pinta o homem assim como ele é, defato, em sua generalidade, com todos os seus claros e escuros, e não assim comopoderia ou deveria ser. Corneille descreve os seus heróis assim como deviam ser à

luz da consciência cristã, mas como os homens não são geralmente.Para os moralistas intelectualistas que Pascal combate, só é moralmenteimputável ao homem o que ele pensa, diz e faz na zona diurna da sua consciênciavígil, e não o que acontece na zona noturna da sua sub ou superconsciênciaincontrolável. 

Para Pascal e seus amigos de Port-Royal, de orientação platôníca-intuitiva, é o homem responsável, não só pela parte diurna, mas, até certoponto, também pela parte noturna do seu ser e agir. O homem é um indivíduo,sim, mas é também uma síntese da humanidade, e os pecados da humanidadesão, em certo sentido, os pecados do homem. Há um "pecado original" que éda humanidade e é do homem, porque houve uma "queda" do homem na

"queda" da humanidade. Como poderia a célula ficar indene da contaminaçãodo organismo? Como poderia o indivíduo ser puro, quando impura é a

Page 30: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 30/82

30

espécie? Do homem é a culpa consciente que ele contraiu, do homem é também aculpa inconsciente que a humanidade nele contraiu. Se da culpa conscientehouvesse ego-redenção, para a culpa inconsciente só basta unia teo-redenção.Só a Divindade é que pode cancelar a culpa da humanidade (1). 

É certo que a teologia dá razão aos moralistas, e não a Pascal — mas resta

saber se a nossa teologia intelectualista é a expressão da verdade integral. Pascal éum grande visionário que adivinha ou pressente o que nenhum silogismo podeprovar; ele não reconhece a inteligência como suprema instância da vidahumana. 

(1) Sobre a natureza dessa "queda", ver "Metafísica do Cristianismo" do au tor.

Em última análise, os dois mundos que nesta luta se defrontam são a  filosofiaindividualista e a intuição universalista. Aqueles apregoam uma ântropo-redenção- - estes ensinam uma teo-redenção. Aqueles crêem na potência redentora dainteligência humana -- estes descreem da impotência do pequeno Eu humano eclamam pela onipotência do grande Tu divino. 

Inteligência humana - - ou sapiência divina? É este o sentido último dessa tremenda conflagração de espíritos, no século 17.Os séculos subseqüentes tentaram uma conciliação desses paradoxos. Em Deusdeve ser possível harmonizá-los; mas os homens não o conseguiram — e a questãocontinua aberta sem solução... 

***

Se seguirmos, rumo acima, o fio da corrente e investigarmos a última origem

desse dualismo de concepção, toparemos com as primeiras páginas do Gênesis, ondese fala de uma "queda" do homem e da promessa de um "redentor". 

Em que consiste essa "queda"? Discordam os homens. Jesus Cristo, que poderia dar solução plena do enigma secular, nunca se

referiu a uma "queda" da humanidade. Parece supor a bondade natural do homem,não só do homem do Éden, mas do homem de hoje. Mais de uma vez propõe eleuma criança - isto é, um homem plenamente natural - como modelo de pureza ede retitude espiritual, alvo da complacência divina; exige de seus discípulos quesejam puros e bons como as crianças; diz que os anjos do céu são protetoresdesses pequenos; identifica-se com as crianças, considerando feito a ele o que aelas fizermos; comina terrível castigo ao homem que, pelo pecado, destruir, na

alma da criança a natural bondade e pureza. Nem uma palavra sobre "pecadooriginal", sobre uma "culpa hereditária" saiu dos lábios do Nazareno. Nenhumareferência à necessidade de redenção para essas almas naturalmente puras e boasencontramos nos ensinos de Jesus. A redenção de que o Nazareno fala pareceser necessária unicamente para os que, pessoal e livremente, abandonaram oscaminhos de Deus.

Do outro lado, porém, temos o apóstolo Paulo, que é o grande confessor dopecado original, e afirma ter recebido diretamente de Jesus o seu Evangelho.Ensina ele, com grande insistência, que por um só homem, Adão, entrou opecado no mundo e passou a todos os homens - e por um só homem, Cristo,entrou no mundo a redenção do pecado. Num só chefe humano pecaram todos oshomens, e nenhum só chefe divino são justificados todos os homens. 

Mais tarde, Agostinho, calcando os vestígios de Paulo de Tarso, constituiu-seestrênuo defensor da culpa original da humanidade. Desde então, é a teologia cristã

Page 31: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 31/82

31

essencialmente paulino-agostiniana. O homem, em consequência da queda, setornou tão fraco que não se pode levantar, só pode ser levantado, como aquelemalferido viajor à beira da estrada Jerusalém-Jericó. 

Em todos os tempos houve, no seio da humanidade cristã, adeptos da ideologiapaulino-agostiniana em sua forma mais rígida, e houve adeptos de uma concepção

mais suave, mais evangélica que teológica, mais de Jesus que de Paulo, se assim sepode dizer. Os Jansenistas de Port-Royal e seu grande porta-voz, Pascal,professam uma ideologia nitidamente paulino-agostiniana — ao passo que seusadversários dizem advogar a mentalidade de Jesus Cristo, assim como aparece naspáginas lapidares do Evangelho. É inegável que tanto uns como outros tenhamlevado ao extremo as suas idéias, uns em defesa da graça divina, outros a favor daliberdade humana. Resta saber em que extremo está o maior dos males, para ohomem cristão - e quem o poderia dizer? 

A única atitude razoável é a da humildade e da caridade. Ninguém, se arvoreem único sábio entre ignorantes, em único ortodoxo entre heterodoxos.  

Praticamente, faça cada um da sua liberdade um uso tal que a graça de Deus

possa nele trabalhar com toda a plenitude. E siga cada qual a esplêndida máxima de Agostinho: “ In dubüs libertas, in

necessariis unitas - in omnibus charitas”- “Haja nas coisas duvidosasliberdade, nas necessárias, unidade — e em todas, caridade!"

Page 32: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 32/82

32

 

Defendendo Jesus Contra os Jesuítas 

As famosas "Lettres Provinciales" fazem, hoje em dia, parte da literaturamundial, tanto pelo espírito que as ditou como pela forma literária que revestem.Raras vezes terá um homem defendido, com tamanho ardor, com tão arrasadorasátira e com tão ofuscante brilho intelectual, as suas convicções religiosas como oautor dessas 18 cartas. 

Ao lê-las, é necessário ter sempre presente que, por detrás de tudo aquilo, estáa vastíssima zona noturna do subconsciente (1) pascalino. Não é, em última análise,

contra os Jesuítas que Pascal se revolta, mas, sim, contra um elementovisceralmente contrário às profundas experiências religiosas do solitário eremitade Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, em diversos casuístas daCompanhia de Jesus. Port-Royal, elemento personificado, nesse tempo, emdiversos casuístas da Companhia de Jesus. As "Lettres Provinciales" são, na suaessência, o brado de uma ingente paixão religiosa. Pascal luta pela supremarazão-de-ser da sua existência, luta pela sua fé cristã, luta por seu Deus e pelaEternidade. Pascal luta, a bem dizer contra um pseudo — ou ex-Pascal, isto é,contra aquilo que ele mesmo fora, contra uma ideologia, que ele mesmo, em temposidos, já professara, em parte, e da qual se libertara definitivamente, na memorávelnoite do seu encontro pessoal com Deus. 

(1) O que, por via de regra, se chama subconsciente espiritual é, na realidade, um superconsciente.

Nunca luta o homem com maior convicção e veemência do que quando toma aofensiva de um Eu contra um ex-Eu. 

Os adversários de Pascal, percebendo o fraco da sua defensiva, passaramtambém à ofensiva, cobrindo-o seu agressor de impropérios, atribuindo-lhe asintenções mais infames, acusando-o de falsário, ridicularizando-o como palhaço,tachando-o de herege, mas sem conseguirem destruir o ponto central da controvér-sia. Pascal servia-se de armas forjadas pelos seus próprios adversários, de livrosdeles estampados em dezenas de edições, e ainda que, na tradução do latim para ofrancês, incorresse em uma ou outra inexatidão insignificante, qualquer pessoa

sincera poderá verificar, à luz dos próprios originais latinos, que o verdadeiro alvodas acusações não é afetado por nenhuma dessas pequenas divergências de traduçãoe citação. Mesmo que coássemos os "mosquitos", sempre ficariam os "camelos".. . 

Pode um homem mudar de ideias puramente intelectuais, mas não podediscordar da  sua íntima experiência. Essa experiência íntima é, para ele, oSupremo Tribunal, a última instância, da qual não há apelação. O que o homemviveu e sofreu nas mais profundas profundezas do seu Eu espiritual, isto a talponto se consubstanciou e identificou com ele que chega a ser ele mesmo, o seupróprio Ser personal. E, como ninguém pode divorciar-se de si mesmo, assimtambém não pode o homem renunciar à sua íntima experiência espiritual. Umhomem desses está disposto a sacrificar tudo - forças, tempo, mocidade, carreira,amigos, saúde, seu bom nome, a própria vida - em defesa do seu supremo ideal.

Tudo o mais lhe parece secundário; a própria morte se lhe afigura sem im-portância em face da estupenda realidade interior que domina a sua vida. 

Page 33: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 33/82

33

Pascal, como foi dito, passou por essa grande experiência interior. Viveua Deus. Teve o seu Damasco, o seu encontro pessoal com Cristo. Viu a malícia dopecado. Viveu a grandeza da redenção. Sentiu o terremoto da santidade de Deus.Viu-se colocado na linha divisória entre a grande treva e a grande luz. Por istolhe parecia horripilante blasfêmia e sacrilégio qualquer compromisso covarde

entre a luz e as trevas, entre a santidade de Deus e a miséria do pecador, comotentavam fazer os moralistas contra os quais ele vibrou o flamejante gládio do seugrande espírito e da sua arrasadora dialética. 

Nas "Lettres Provinciales" revela Pascal uma face do seu caráter queninguém lhe conhecia e que também não aparece nos "Pensées": serve-se de umestilo irônico, esfuziante de chiste e genialidade, que, por vezes, faz lembrar odeslumbrante chispar de uma esguia chama de oxigênio a derreter duros metais.O seu gênio era antes melancólico do que colérico ou sanguíneo. O seu estilo é, porvia de regra, calmo, ponderado, algumas vezes épico e trágico. 

Por que, pois, se serve Pascal, em sua polêmica, de um modo de escrever queparece não condizer com o seu caráter? 

Estamos aqui diante de um fenômeno psíquico dos mais notáveis. Por vezes éuma sonora risada a manifestação de uma profunda tristeza. Pode a maiorcomicidade revelar a mais sangrenta tragicidade de uma alma. Pessoas há quetrazem a alma em chaga viva, dia e noite, mas que são tidas na sociedade porcreaturas felizes e despreocupadas; o público ignora que essa aparenteserenidade é a única defesa e válvula de segurança para conter e disfarçar ocandente vulcão que estua nas ignotas profundezas dessas almas torturadas. Seum desses mártires é interrogado a respeito do seu bem-estar, afirmainvariavelmente que vai às mil maravilhas, porque essa afirmação categórica énecessária para manter o status quo e impedir o impetuoso transbordamento da lavaígnea que arde nas profundezas dessa alma... Pois a sociedade, em geral, nãopermite ao homem ser o que é. . .  

Foi o que se deu com Pascal. O fundo melancólico e trágico de sua almaexplodiu numa verdadeira tempestade de ironia e sátira, quando viu que homenstidos por muito religiosos desacreditavam o que para ele havia de mais  querido esagrado: o seu Cristianismo. E Pascal, o grande asceta que, apesar de fraco edoentio, cingia duro cilício sobre as carnes nuas; ele, o grande amigo da pobrezaque se privava de tudo para acudir aos indigentes; ele, o solitário eremita queamava o silêncio e detestava o ruído — Pascal desce a mais ruidosa liça da épocae desfere a seus adversários golpes tais que até ao presente dia não lhescicatrizaram as chagas. 

Se se tratasse de uma ofensa pessoal, não teria o grande asceta escrito uma sópalavra contra seus ofensores. Mas aqui estava em jogo a pureza da doutrina do

Cristo, o Evangelho de seu divino Senhor e Mestre, pelo qual havia o eremitarenunciado a todas as grandezas do mundo e escolhido a vida de solicitude e me-ditação. 

Quando, pouco antes da sua morte, perguntaram a Pascal se se arrependia dehaver escrito as "Lettres Provinciales", respondeu que não, e que, se mais umavez tivesse de escrevê-las, escrevê-las-ia com maior rigor ainda. Prova isto que asescreveu por convicção íntima, e não por algum sentimento de rancor ou inimizade. 

Escreveu-as com os lábios transbordantes de sátira - e com o coração afogadoem lágrimas. Irrompeu o vulcão da sua grande dor em uma tempestade derisadas irônicas... 

Tão enigmático é esse homem secular...

Page 34: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 34/82

34

 

Em Torno das "Lettres Provinciales" 

Tão árido e de tão limitado interesse para o grande público é o tema dessapolêmica entre Pascal e os Jesuítas, que é deveras para admirar levantassetamanha celeuma na França, e muito além das suas fronteiras. Não fosse o grandetalento do solitário eremita, provavelmente morreria o caso, circunscrito à esferapuramente escolástica e teológica da época. 

Conforme foi dito, agitava-se então entre os teólogos católicos a questãoobscura, como a graça de Deus se compadece com a liberdade humana. Nenhum

dos contendores negava a ação da graça divina nem a existência da liberdadehumana, mas discutiam a maneira como harmonizavam entre si esses dois fatoresaparentemente inconciliáveis. 

Formaram-se dois partidos, aliás, já existentes, frisando um, com grandeenergia a atividade da graça, realçando o outro, com fervor, o papel da liberdadehumana. Dessas concepções diversas nasceram, naturalmente, dois modosdiferentes de encarar a vida humana e, sobretudo, a questão central da nossasalvação; numa palavra, duas modalidades de moral cristã. 

No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuosadvogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a liberdade.E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a questão a seu favor, atal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas que podiam andar demãos dadas. 

Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" — eramadeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do mundo, dando atoda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência, abnegação. E nãoparavam em simples palavras e bons conselhos para os outros; eles mesmos davamcom a pureza e austeridade da sua vida exemplo concreto da possibilidade de suadoutrina. Mère Angélique; a abadessa do mosteiro de Port-Royal, conseguirarestabelecer entre as monjas cistercienses o antigo rigor do espírito do grandemístico Bernardo de Clairvaux. E os eremitas que viviam a certa distância doconvento, levavam a mesma vida de oração e austeridade. Neste ponto mostraram-seos Jansenistas irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de nãolevarem a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrinasobre a graça e a predestinação. 

Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie deCristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da Judeia,do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e igualando-se aosoutros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam eles que o Cristianismonão era apenas para um grupo de homens piedosos segregados do mundo, maspara toda e qualquer pessoa da sociedade que quisesse seguir a Cristo. E, naintenção paulina de "ganhar a todos para Cristo", reduziam ao mínimo as exi-gências da moral cristã, porque só assim lhes parecia possível a cristianização domundo, pela qual trabalhavam incessantemente. Não queriam criar mosteiros

cheios de ascetas, mas, sim, um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal eoutros tenham dito contra os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de

Page 35: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 35/82

35

reta consciência, negará que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!),estivessem animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo,muito dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciênciaintensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo doespírito de Jesus Cristo. 

Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés doCristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral queveio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os  livros decasuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e dire-tores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes e asalmas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e circunstâncias davida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados que os homenscometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou diretor de almas de teruma norma que salvaguarde os princípios eternos da moral cristã, por um lado, e,por outro, respeite a liberdade do penitente e não o repila da igreja. Navegarentre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa para o piloto espiritual...Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas. Cravam-se as balizas ou muitopara a direita, ou muito para a esquerda, provocando colisão com uma de duas coisasque devem ser, ambas, intangíveis... 

Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo doscristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos deles,praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião dosadversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os pecadores,negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios de um dos amigosde Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens que tiram os pecados domundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando conhecido texto evangélico,reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora não sejam da sua descoberta. 

Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhoresintenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada cristãs.  

***

O mundo católico da época não conhecia, geralmente, os livros de casuísticaescritos em latim; eram uma literatura quase privativa do clero; mas, como porestes princípios dirigia o clero os seus penitentes, compreende-se a indignaçãode Pascal, ao ter conhecimento de semelhantes normas de vida cristã. E, para

prevenir do perigo o mundo leigo católico, resolveu divulgar em vernáculo o quehavia de mais "escandaloso" nessa casuística. E com tanta eficiência sedesincumbiu da tarefa que as "Lettres Provinciales" provocaram inaudita sensaçãoem todas as camadas sociais, o que prova que a sociedade leiga não estava alheiaaos princípios exarados nesses livros. 

Para que os nossos leitores possam julgar por si mesmos o caráter desseslivros, passaremos a dar um resumo de alguns dos mais conhecidos. É fora dedúvida que os casuístas forjaram contra si mesmos armas terríveis, e não admiraque um homem da tempera ética de Pascal, tomado de profunda indignação,levasse ao pelourinho do desprezo público certos moralistas do seu tempo. 

Acresce a agravante que não se tratava de opiniões pessoais e particulares

deste ou daquele religioso, uma vez que todos esses livros vinham com permissãodo Superior Provincial dos Jesuítas e de outras autoridades, recaindo, assim, esse

Page 36: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 36/82

36

laxismo moral não apenas sobre o autor do livro, mas sobre o próprio espírito daOrdem que tais coisas aprovava como sendo expressão do espírito do Cristo — oumelhor, esse laxismo ético afetava a própria igreja de que essa Ordem era parteintegrante e que se mostrava solidária com essa orientação. Pascal, pois,combate, indiretamente, o espírito da própria hierarquia da igreja de Roma.

Page 37: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 37/82

37

 Início da Polêmica Entre Pascal e os Jesuítas  

Em 1649 extraiu a Faculdade Teológica da Universidade de Paris, do livro"Augustinus", de Cornélio Jansênio, falecido Bispo de Ypres, cinco proposiçõesque estariam em contradição com a doutrina da Igreja e enviou as mesmas àRoma. Os jansenistas reconheceram o caráter herético dessas sentenças,condenadas, em 1653, pelo Papa Inocêncio X, reconhecendo também à Santa Séo direito de as reprovar, mas negaram que as ditas sentenças se encontrassemno livro"Augustinus". 

Pelo que, em 1654, o Papa declarou expressamente que essas proposições seencontravam no dito livro. 

Em consequência, Antônio Arnauld, lente da Faculdade e destemidoJansenista, foi demitido da sua cadeira. Estava assim o Jansenismo condenado emRoma e pelos Teólogos da Sorbonne. 

Arnauld, porém, não se conformou com a decisão pontifícia e teológica, eapelou para o bom senso do povo católico, para a "anima naturaliter christiana",como diria Tertuliano. Era necessário que alguém explicasse ao público, emlíngua vernácula e estilo acessível ao público, o ponto de controvérsia, para quetodo o mundo visse até que ponto os teólogos adulteravam a doutrina do Cristo.Arnauld tinha certeza de que a alma cristã do povo não faria causa comum com osteólogos e jesuítas, mas defenderia a causa do Evangelho que os Jansenistas diziamensinar em toda a pureza. 

É característico, nessa polêmica, o apelo do tribunal da aristocraciateológica para o da democracia popular, apelo esse que inclui a suposição tácita deque o catolicismo se encontra mais puro e incontaminado entre o simples povocristão do que entre os eruditos profissionais da teologia. Mais tarde, Pascal foialém e "apelou de Roma para Deus", na certeza de que Roma, dando razão aosJesuítas, não representava, nesse particular, o verdadeiro catolicismo, do qual nãoqueria ele separar-se de forma alguma, nem jamais se separou.  

Tem-se dito que Pascal estava imbuído de ideias protestantes, tanto pelo fatode não ver nessa decisão do Papa a expressão pura do Cristianismo, como tambémpor dar excessiva importância à Sagrada Escritura. Mais exato seria, talvez,compará-lo com um católico ortodoxo, como os da igreja grega, que não queremsaber nem Romanismo nem Protestantismo, mas tão somente de Catolicismo, comtodos os Sacramentos e todos os esplendores litúrgicos. Já dissemos em outra

parte que Pascal, apesar de ser um homem inteligente e intelectual, é contudo, o tipoclássico do homem intuitivo — e a intuição das supremas realidades ultrapassa tudoque a filosofia ou teologia especulativa possam descobrir e ensinar. O apelo deArnauld, da inteligência dos teólogos para a alma do povo, e o apelo que Pascal faz,da inteligência dos teólogos e do Papa para "o Senhor Jesus", simbolizam, emúltima linha, um apelo do intelecto para a intuição, do consciente intelectual para osuperconsciente intuitivo. Por detrás dessa aparente rebeldia está a grande idéiacósmica — não o pensamento individual - de que o espírito da doutrina do Cristoé algo infinitamente além de tudo que a humana teologia possa atingir.

***

Page 38: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 38/82

38

Arnauld exigia, pois, que a decisão fosse entregue ao povo católico. Mas quemhavia de elaborar essa exposição popular que vazasse em linguagem simples ediáfana as complicadas controvérsias dos teólogos da Sorbonne? 

Ninguém se sentiu com suficiente capacidade para essa empresa, pois éincomparavelmente mais fácil escrever de um modo obscuro e complicado do que

de um modo simples e claro. Por fim, Pascal prometeu querer "tentar" umaexposição em vernáculo; ia dar apenas um ligeiro esboço que servisse de diretrizpara outro homem mais competente. No dia seguinte apresentou esse esboço, emforma de urna carta, que leu diante da assembléia. Foi unânime a aprovação, egrandes os aplausos e entusiasmos que essa exposição mereceu.  

No dia 23 de janeiro de 1656, apareceu, impressa, essa carta com o título"Lettre à un Provincial par un de sés amis" (Carta a um homem da Província, porum de seus amigos). Vinha assinada com o pseudônimo "Louis de Montalte". Esseanonimato, que a um leitor dos nossos dias, talvez, cause estranheza, era medida deprudência naquele tempo, em que a Inquisição levava ao cárcere ou à fogueira mi-lhares de "hereges". Se o autor tivesse dado o seu verdadeiro nome, é certo que as

restantes dezessete cartas não teriam aparecido, nem mesmo a segunda. Por amor àcausa sagrada em questão convinha, pois usar da máxima prudência. As 10 primeiras cartas são dirigidas a esse tal "homem da Província"; as 6

subsequentes, aos Jesuítas; e as duas últimas, ao Jesuíta P. Annat, confessor dorei de França. 

Apenas estava na rua a primeira carta, quando foi fechada, por ordemsuperior, a oficina gráfica em que fora impressa. Mas nem por isto deixaram deaparecer os outros números, estampados em oficinas clandestinas, que ninguémconseguiu localizar. De um a outro número cresciam a curiosidade e sensação des-pertadas por esses panfletos originais. 

Logo depois de publicar a primeira carta, deixou Pascal Port-Royal, onde,

naturalmente, se suspeitava estar o autor da mesma, e retirou-se para Paris. Nametrópole montou o seu quartel-general no hotel "Rói David", por detrás daSorbonne, bem defronte ao colégio dos Jesuítas. Ali, no coração da zona inimiga,ninguém o viria procurar, e Pascal teria todo o sossego para forjar as suasterríveis armas. Dezenas de homens foram detidos como sendo os autores dasfulminantes "Lettres". Quase ninguém pensava em Pascal, que nesse tempo, nãoera conhecido como polemista nem como escritor tão brilhante e popular qual serevelava "Louis de Montalte". Por fim, condensaram-se quase todas as suspeitasna pessoa do abade de Haute-Fontaine, por nome Lê Rói, como também, da partede alguns, no romancista Gomberville. Ambos, porém, negaram a sua paternidadeliterária, ainda que por motivos e de modos diversos: Gomberville queixou-se

amargamente do mau juízo que dele formavam; Le Roi lamentou sinceramentenão ser o au tor.. .  Depois da impressão da 6ª carta fora Pascal por um triz descoberto como

autor dos panfletos, como ele mesmo insinua, com a devida cautela e discrição, noprincípio da 8ª_carta. Nesse comenos viera a Paris seu cunhado Périer e sehospedara no mesmo hotel. Um jesuíta, amigo dele, veio visitá-lo e pediu-lheprevenisse Pascal, porque as suspeitas se concentravam cada vez mais na pessoadele como sendo o autor das "Lettres Provinciales". Périer estava sobre brasasdurante essa visita, porque, na mesma ocasião, se achava sua cama coberta deexemplares da 7ª_ carta, que acabavam de chegar das oficinas gráficas; felizmen-te, porém, estavam corridas as cortinas diante da cama - e assim saiu o Jesuítada caverna do leão sem nada suspeitar. 

E as terríveis folhas volantes continuaram a sair regularmente. No fim da17ª_ carta, dirigindo-se aos Jesuítas, diz o autor: "É sabido que enganastes o Papa;mas isto já não causa escândalo porque agora todos vos conheceu."  

Page 39: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 39/82

39

Os Jesuítas, como é natural, replicaram a essas cartas, procurandodesmoralizar como falsário e herege o autor das mesmas. Citaram diversos textosdos moralistas de sua Ordem que Louis de Montalte teria falsificado no intuitode atacar o "laxismo moral" dos Jesuítas. Mas, em breve, essa arma foi provadaineficaz, porque ao menos 99% dos textos citados estavam rigorosamente certos;apenas uma ou outra citação é ligeiramente inexata, e isto por tê-las o autordas Cartas traduzido do latim para o francês. Nunca foi provada falsificaçãoacintosa ou de importância substancial que mudasse o sentido. 

Queixaram-se ainda os Jesuítas do fato de citar Montalte exclusivamentetextos em desabono deles, quando havia livros inteiros de doutrina evidentementeboa e sã. Qualquer pessoa vê que semelhante resposta não tem' cabimento. Pascalnunca afirmou que esses religiosos só ensinavam moral ambígua; mas, sendo os"casuístas" diretores de numerosas almas, uma única doutrina moralmenteperniciosa redundava num mal enorme e seria capaz de contaminar geraçõesinteiras, quando considerada como genuína doutrina do Cristo, sobretudo porquevinha amparada pelo prestígio de uma grande Ordem religiosa.

Page 40: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 40/82

40

 

Nas Trincheiras Inimigas.O que Ensinavam os Casuístas

Sendo que as acusações mais veementes de Pascal se dirigem contra o"laxismo moral" dos casuístas Jesuítas, passaremos a transcrever desses livrosuma série de textos impugnados pelo indignado autor de "Lettres Provinciales". Oleitor que quiser inteirar-se da razão ou sem-razão de Pascal ou dos seusadversários, poderá consultar por si mesmo as respectivas fontes, que passaremosa indicar. 

O livro mais violentamente impugnado por Pascal é um exaustivo tratado deTeologia Moral, da autoria do Jesuíta espanhol, Antônio de Escobar y Mendoza, deValladolid, obra cujo título latino completo é o seguinte:  Liber theologiae moralis,viginti-quatuor Societatis Jesu doctoribus reseratus: quem E. P. Antoinus Escobar et Mendoza, Vallisoletanus, ejusdem  Societatis theologus, in examenconfessariorum digessit. Post 32 editiones hispânicas et 3 lugdu-nenses editionovíssima auctior et correctior, additionobus illustrata. Bruxellae. 1651. 

Diz, pois, o subtítulo do citado livro que o mesmo é uma compilação dadoutrina de 24 teólogos Jesuítas, para o uso dos confessores; que desta obra jáforam feitas 32, edições na Espanha e 3 em Lyon, França, sendo esta 36ª impressaem Bruxelas, Bélgica, aumentada e melhorada, e acrescida de aditamentos. Ano dapresente edição, 1651. No título diz que foi publicada a obra com as respectivaslicenças dos Superiores da Ordem, etc.  

Este livro foi por Pascal submetido à mais terrível vivissecção por que jápassou um livro da parte de um dos grandes gênios da humanidade.

***

Vejamos alguns tópicos impugnados. No "Segundo Exame", que trata do primeiro mandamento do Decálogo e da

obrigação de amar a Deus, estabelece o autor diversos períodos em que parece serde obrigação grave amar a Deus positivamente. Alguns moralistas, diz Escobar,

 julgam necessário amar a Deus expressamente em cada dia festivo; outros, uma vez

por ano; um dos citados doutores da Companhia de Jesus acha que é permitidodeixar de amar a Deus por mais de 3 a 4 anos.  

Quem conhece o caráter do célebre autor da frase "o coração tem razões deque a razão nada sabe", bem pode imaginar a revolta íntima que semelhanteburocratismo teológico provocou na alma de Pascal; pois, para ele, o amor de Deusnão era apenas o maior de todos os mandamentos, mas a mais querida necessidadede toda a alma cristã. 

No mesmo capítulo, tratando do culto prestado aos santos, diz Escobar, deacordo com seus patronos, que "homens santos, enquanto não foremcanonizados, podem ser venerados e adorados com um culto privado, mas nãopúblico". 

Page 41: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 41/82

41

Diz ainda que "Agnus Dei feitos de cera devem ser adorados da mesma formaque a imagem de Jesus; mas é proibido, sob pena de excomunhão, pintá-los comalvaiade, ouro ou outras tintas." 

Pascal, como católico, admitia a veneração dos santos, mas não a adoração;muito menos a adoração de uma figura de cera, uma vez que a adoração é devida

a Deus somente. Escobar e seus patronos teológicos não vêem pecado na adoraçãode uma figura de cera, mas pecado gravíssimo, crime horrendo, em pintar essesídolos, porque, neste caso, podia ser que fosse adorado o alvaiade, o ouro ou outratinta profana, e não a cera sagrada.

***Entretanto, a posição inimiga contra a qual o austero eremita assestou a

artilharia pesada da sua arrasadora dialética e tremenda sátira foi a famosa"restrição mental" ensinada por quase todos os moralistas, e que equivale

praticamente a uma verdadeira mentira; e, mesmo que não fosse pecado, seriaem todo o caso o sepulcro da sinceridade e o assassino do caráter. "Seja o vossofalar um simples sim, um simples não, diz o divino Mestre, o que passa daí vem domal." Escobar e seus 24 doutores da Companhia de Jesus arvoraram-se em estrênuospaladinos da "restrição mental", que é na realidade uma engenhosa iniciação na"arte de mentir". Para comprovação, vejamos alguns espécimes dos produtos dessafábrica: 

l — No "Exame Terceiro" do referido livro, tratando do juramento e dablasfêmia, escreve o douto compilador das opiniões de duas dúzias de eminentesteólogos da Companhia de Jesus: 

"No juramento, não é mau em si mesmo dar às palavras um sentido diferente

daquele que elas têm em si mesmas; muitas vezes, porém, pode ser pecado. Épermitido, quando as palavras são ambíguas. Se a ambiguidade não está naspalavras, mas apenas no pensamento de quem jura, é sentença provável ser ilícitoesse juramento; mas é sentença mais provável que seja lícito."  

Será isto Cristianismo'? "Ê permitido induzir alguém a jurar falso, quando ele, por ignorância, julga

ser verdadeiro? O P. Hurtado (um dos 24 Jesuítas) responde que sim, porque oque jura não peca, ao passo que a matéria do juramento em si é, neste caso, antesboa que má; pois o juramento é um ato de religião pela glória de Deus." 

Não é fácil descobrir com que artes mágicas conseguiram Escobar e Hurtadoharmonizar essa liceidade do juramento com aquilo que Jesus diz em MT. 5,22 ss:

"Ouvistes que foi dito: Não jurarás falso!. .. Eu, porém, vos digo: Não jureis deforma alguma! seja o vosso modo de falar um simples sim, um simples não — o quepassa daí vem do mal." 

"Sanchez (um dos 24 moralistas) afirma que se pode fazer um juramento quepelos circunstantes seja entendido no sentido comum, mas pelo que jura tenhasecretamente outro sentido". E exemplifica: "Se o vendedor, segundo sentençaprovável, acha que o preço de uma mercadoria é injusto, pode vendê-la com pesofalso, ou de outro modo conservar-se indene dessa injustiça; e se for sobre istointerrogado pelo juiz, pode negar tudo com juramento, pensando lá consigo mesmoque não agiu injustamente." 

"Uma mulher adúltera interrogada por seu marido se adulterou, pode negá-lo com juramento, subentendendo consigo mesma, por exemplo, que não o fez numdia diferente daquele que seus acusadores supõem." 

Page 42: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 42/82

42

"Alguém que vem de um lugar tido como pestoso pode jurar que não vem desselugar, subentendendo como sendo um lugar pestoso." 

Assim ensinaram Sanchez e outros — e chamam isto "moral cristã".. . Pergunta-se se é pecado mortal jurar, por justa causa e com palavras

ambíguas, por exemplo: "o príncipe está na corte", subentendendo consigo mesmo"em pintura”? O Jesuíta Lessius, citado por Escobar, acha que é ilícito; o JesuítaSanchez acha mais provável não ser pecado mortal, a não ser que daí resulte graveprejuízo para terceiros, ou o juramento seja exigido oficialmente pelo juiz;porquanto, 'diz Sanchez, "trata-se apenas de um erro de distinção; mas um

 juramento assim, onde há apenas um erro de distinção, não passa de pecadovenial". 

2 — No "Exame Sétimo" trata Escobar das leis, sobretudo em relação com oquinto mandamento e o pecado do homicídio. 

Pergunta: "Sabendo eu que uma falsa testemunha ou um acusador injustopretende publicar, de encontro à justiça legal, um crime verdadeiro, mas oculto, é-

me lícito 'matá-lo, se da acusação receio sentença de morte ou grande prejuízomaterial?”  

Opina o Jesuíta Banez "que é lícito, no caso que o acusador, previamenteadmoestado, não desista do seu intento, e se para o culpado não há outrapossibilidade de escapar ao castigo". 

Pergunta: "Posso matar alguém que quer apoderar-se dos meus bens?" 

Resposta: "Pode, com o fim de evitar notável prejuízo, uma vez que os bensmateriais são meios para a conservação da vida, da honra e do estado de vida."  

O Jesuíta Molina estende esta permissão de matar também aos clérigos.Tanner inclui também os monges, embora estes não possuam propriedade senão em

comum. Entretanto, não é lícito matar o ladrão por uma coisa de pouco valor, porexemplo, um florim, segundo diz Molina (Vol. I pg. 122, § 43, 44). Prossegue Escobar: 

"Uma vez que é permitida a todo homem, em defesa de sua honra e com adevida moderação, matar a outrem, pergunta-se se é lícito ao monge matar ocaluniador que contra sua Ordem espalha graves acusações? Amicus, cujos oitovolumes De Cursu Theologico só nos últimos tempos me chegaram às mãos — dizEscobar — não ousa aderir à sentença afirmativa, para não contrariar a opiniãocomum, mas reforça aquela com um argumento, dizendo: "Se a um leigo, parasalvaguardar a sua honra e seu bom nome, é lícito matar, por maioria de razão

parece ser lícito a um clérigo e monge; porquanto, os votos, a sabedoria e virtude,de que nasce a honra do clérigo, são bens maiores do que a habilidade no manejodas armas, em que se baseia a honra do leigo. De resto, uma vez que aos clérigos emonges, em defesa de sua fortuna, é lícito matar o ladrão, se não houver outromeio, o mesmo também será lícito em defesa da sua honra." (§ 46). 

"Quando um homem da nobreza recebe de alguém uma bofetada, pode mataro ofensor? O Jesuíta Lessius responde que sim, porque para algumas classes éconsiderado suprema vergonha receber bofetadas ou pauladas sem se vingar."  

"Entretanto — diz Escobar — eu por mim limito esta sentença aos nobres,porquanto, para os burgueses não é grande vergonha receberem bofetadas epauladas."

E acrescenta: "Muitos afirmam que é lícito perseguir e matar o homem que,depois de dar bofetada, foge, a não ser que disto se receie, para o Estado, excessivo

Page 43: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 43/82

43

derramamento de sangue. A honra, à guisa de um bem roubado, não pode serrecuperada, se o desonrado não der prova de maior excelência, e assim reconquis-tar o respeito perante os homens; pois, não é que um homem esbofeteado é tidopor um homem sem honra, enquanto não matar a seu adversário ?" 

Será que Escobar e seus 24 Jesuítas leram alguma vez o que Jesus disse,segundo o Evangelho de São Mateus, 5,38 ss: "Tendes ouvido que foi dito, olhopor olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: Não vos oponhais ao malévolo! Mas,quando alguém te ferir na face direita, apresenta-lhe também a outra... Sealguém pleitear contigo em juízo para te roubar a túnica, cede-lhe também acapa... Amai os vossos inimigos, e fazei bem aos que vos fazem mal, paraserdes filhos do vosso Pai celeste"... Esses moralistas ensinamdiametralmente o contrário, e fazem crer a seus penitentes que isto é "moralcristã". Se um homem "nobre", depois de ofendido, tem de provar a sua "maiorexcelência" vingando a injúria, ao ponto de matar o ofensor, não estará abolidoradicalmente todo o espírito do Cristianismo? Não equivale isto a uma recaída aostempos da primitiva ética de Israel, quando vigorava a "moral": "Olho porolho, dente por dente"? Que é "honra"? Que é "desonra'"? É o conceito variávele incerto que os homens têm de nós? — ou é aquilo que nós somos diante deDeus e da nossa própria consciência l.. Compreende-se a indignação de umintransigente discípulo do Evangelho como Pascal em face dessa imoralidade dosmoralistas arvorados em mentores do povo católico. "Eis aí os homens que tiramos pecados do mundo!" 

Se Pascal, sabendo de tudo isto, sabendo que livros dessa natureza, aprovadospela competente autoridade eclesiástica, inundavam o país em dezenas de edições eserviam de guias espirituais para as almas, não abandonou o catolicismo nem serevoltou contra a Igreja como tal, é sinal de que ele tinha de Catolicismo e Igrejaconceito incomparavelmente mais alto e puro do que o comum dos católicos, queidentifica a Igreja com os seus eventuais representantes humanos.

***Continuaremos a ler a grande obra do P. Antônio Escobar y Mendoza "Liber 

Theologiae Moralis". Onde ele trata do quinto mandamento e do homicídio,escreve:

"Uma mulher está para cometer suicídio a fim de escapar à desonra dagravidez; é permitido sugerir-lhe o aborto? O cardeal De Lugo responde que sim, se

de outra forma não for possível dissuadi-la do seu intento; pois isto não éinduzi-la ao mal, mas apenas dar-lhe a escolha de um mal menor." Quer dizer que,segundo o conhecido teólogo cardeal De Lugo, pode-se aconselhar aborto einfanticídio para evitar suicídio — fantástica essa "moral"! Prossegue Escobar:

"É permitido declarar guerra a um povo pagão, ou em geral, não-cristão,sobretudo quando este obsta à pregação do Evangelho." Foi o que Mussolini fezcom a Etiópia, a fim de evangelizá-la — à força de canhões e metralhadoras, emboraesse país não fosse pagão. Esse senhor Benito Mussolini deve ter sido um fervorosocatólico, segundo Escobar e companhia. 

"É permitido ao nobre aceitar duelo para defender a sua nobreza e suasdignidades, como também para salvar bens materiais."  

3 — "Exame Undécimo". Sobre as leis em particular, com relação ao primeiromandamento da Igreja, de ouvir Missa. 

Page 44: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 44/82

44

Neste capítulo ensina Escobar e seus patronos o seguinte: Para satisfazer àobrigação de ouvir Missa é necessária a presença corporal do sujeito, moralmenteconsiderada, assim que ele possa ver o que acontece, e que tenha ao menos a intençãovirtual de ouvir Missa. Não obsta que com esta intenção coexista outra, como seja,por exemplo, a de "olhar libidinosamente para as mulheres" (sic) contanto que

não exclua a intenção dirigida para as coisas e atos sagrados. "A presença corporal é necessária, mas aconselha-se também a presençaespiritual. Hurtado e Coninck afirmam que a presença corporal é suficiente, parasatisfazer a obrigação de ouvir Missa, ainda que se esteja espiritualmentedistraído." 

No intuito de facilitar o mais possível a "vida espiritual", dão esses moralistasas seguintes diretivas:

"É permitido, para satisfazer essa obrigação, ouvir ao mesmo tempo duasmetades de duas Missas, contanto que essas metades não sejam iguais; isto é, porexemplo, quando uma Missa está em princípio, e a outra está no meio. Se alguémtem obrigação de ouvir três Missas, pode ouvi-las todas ao mesmo tempo se três

sacerdotes celebrarem simultaneamente." O Deus desses moralistas, como se vê, é muito camarada. Resta apenassaber se esse Deus é o Deus de que Jesus Cristo nos fala no Evangelho. . . Se esseDeus-camarada aceita duas metades de Missa diversas, para não debitar pecadomortal ao católico domingueiro, porque não aceitaria também três terços, quatroquartos, dez décimos, e outros inteiros fracionados — ele, que é perfeitomatemático? Desconfio, porém, que a esse mesquinho regateio e a essa moralfragmentária corresponda também um céu em prestações fracionadas — se é que hácéu para semelhante traficância... 

Continua Escobar, apoiando seu colega Filufius: 

"Se um sacerdote é pago por alguém para celebrar Missa, pode, contudo ceder aum terceiro, por dinheiro, a parte do sacrifício e seus méritos que tocaria aocelebrante; não pode, porém, ceder-lha como sacrifício inteiro, mas cerca de umterço." O mérito ex opere operato - diz alhures — pertence sempre integralmenteàquele que pagou a Missa. 

Para que o leitor não formado em teologia compreenda essa traficânciasagrada, patrocinada por Escobar e seus 24 insignes doutores, convém saber que,segundo a doutrina católica romana, há na celebração da Missa um méritochamado ex opere operato, e outro denominado ex opere operantis. O primeiro,dizem os moralistas, cabe sempre, integralmente, ao dono da Missa (para usar delinguagem pitoresca e intuitiva do nosso povo), àquele que a encomendou e pagou;

este valor é considerado como algo inteiriço e indivisível, razão por que deve sercedido inteiramente a quem adquiriu direito sobre a Missa mediante pagamento.Do outro valor, porém, pode o celebrante dispor livremente, pode ficar com ele epode também cedê-lo a outrem, gratuitamente, ou contra pagamento, isto é, podevender esse quinhão sagrado que lhe toca. Para ilustrar e concretizar a idéia deEscobar e seus exímios moralistas, diríamos que eles consideram a Missa comoconstante de duas partes distintas: uma espécie de medula ou caroço (ex opereoperato), e uma espécie de polpa ou casca (ex opere operantis). O caroço é sempreindivisível, ao passo que a casca pode ser dividida à vontade, e podem os seusfragmentos ser vendidos a fregueses diversos. Se lá em cima, no reino de Deus, ératificada semelhante diplomacia comercial — isto é outra questão! Em todo ocaso, cá embaixo ela é válida — e é o que interessa aos ditos moralistas.  

Pascal, como fervoroso católico, desencadeou sobre essa caricatura decatolicismo as vagas salgadas da mais tremenda sátira do seu grande Espírito. 

Page 45: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 45/82

45

Prossegue Escobar: "Se a hóstia for devorada por um animal, deve ela, possivelmente, ser extraída

do corpo dele e conservada; o animal, porém, deve ser queimado, e suas cinzasser lançadas à piscina." 

4 -"Décimo Terceiro Exame Sobre o quarto mandamento da igrejaconcernente ao jejum". 

"Tudo que é bebida não quebra o jejum, nem o vinho, mesmo quandocondimentado com especiarias da índia. Quando tomado em excesso, é pecadocontra a temperança (mas não quebra o jejum)."  

Chocolate, segundo Escobar, é bebida, podendo, pois, sem escrúpulos, sertomado em qualquer quantidade pelo devoto jejuador, bem como vinho; nãoquebram o jejum  (1). Assim, corno o leitor vê, é uma delícia jejuar, por tempoindefinido, sem possuir os segredos de Gandhi, e passar, ainda por cima, por umgrande asceta. 

5 — "Décimo Sexto Exame. Sobre a dispensa como privilégio". 

Segundo Hurtado, pode o Papa, por justo motivo, permitir o matrimônioentre irmão e irmã, embora seja isto proibido por lei divina. Assim por exemplo —expõe Escobar — se o rei da Espanha não tivesse possibilidade de contrairmatrimônio digno dele senão com uma herege ou pessoa suspeita de heresia, deque resultasse perigo que o reino fosse contaminado, poderia o Papa conceder-lhe adevida dispensa para casar com sua própria irmã, sobretudo se ela não fosse filhada mesma mãe (Exame 16, § 44, pág. 238). 

(1)   Trata-se aqui do jejum quaresmal, e não eucarístico.

Segundo todos os moralistas da época é o cristão proibido de comprarmantimentos ou outras mercadorias aos turcos ou infiéis; só é permitido emtempo de grave carestia. 

Jesus Cristo, que comia "com publicanos e pecadores", como diz o Evangelho,e aceitava sem escrúpulos alimento dos pagãos da Decápole e dos hereges daSamaria, evidentemente ignorava a moral cristã que seus futuros discípulos iamdescobrir, abolindo ao mesmo tempo uma boa dezena de pecados reais e gravíssi-mos... 

6 — "Sexto Tratado. Exame quinto. Das indulgências". "Quem dá esmola à qual esteja anexa uma indulgência — diz Escobar — mesmo

que o faça parcialmente por vangloria, não deixa por isso de lucrar a indulgência." 

"Quem morre imediatamente depois de lucrar penitência (indulgência)plenária, vai direto ao céu." 

"O purgatório é um lugar nas entranhas da terra. Também o inferno estásituado no interior da terra. É esta a opinião geral dos doutores, e mesmo doutrinacerta da Igreja, de maneira que é temerário negá-la. O lugar do purgatório ficaacima do inferno, e o fogo é o mesmo que o do inferno."  

É pena que esses doutores não tenham sido convidados para chefiar umaexpedição científica para o interior da terra - tanto mais que sua grande santidadeos teria imunizado contra quaisquer surpresas diabólicas!... Semelhante teologiade jardim de infância é um dos melhores meios para atrair o ridículo sobre areligião c afugentar da Igreja todos os homens pensantes e sérios. 

"Para aplicar uma indulgência a um defunto, por meio de certa obra, não énecessário que se esteja em estado de graça, porque o efeito das indulgências vem

Page 46: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 46/82

46

das satisfações de Jesus Cristo e dos Santos; as obras impostas são apenasnecessárias como condição. Por isto não importa que sejam feitas em estado depecado. Lucra-se a indulgência, ainda que as boas obras a que estão anexas sejamobras más no respectivo indivíduo." (pág 849-50). 

7 — "Tratado sexto. Exame nono. Do Matrimônio". 

"O pagão que se torna cristão pode abandonar sua esposa, se esta se negar afazer o mesmo; e pode casar com outra. Se alguém se converte em Madrid e lhe édifícil buscar sua mulher na África ou na América, pode calar o fato e casar denovo." 

"Benigno, grande senhor feudal, casou com Isabel, filha de um dos seus colonose vassalos, segundo o rito da Igreja, mas com intenção fraudulenta, isto é, semconsentimento interno. Depois de viver alguns dias maritalmente com Isabel,declara ao pároco que não teve intenção de a tomar por esposa, provando-o peloconteúdo de uma carta que, em vésperas do casamento, entregara, fechada, aopároco. Que deve fazer o pároco ? 

Resposta: Ainda que Benigno seja culpado diante de Deus pelo fato de terenganado a Isabel e haver cometido sacrilégio, concordam contudo os teólogos emque, num caso desses, um homem de tão desigual posição e de tão superior condiçãosocial à da jovem, não pode em absoluto ser obrigado a renovar o seu consentimentoe reparar a injustiça que lhe causou com o seu casamento fictício. Pois, não sepode dizer propriamente que Isabel tenha sido enganada, uma vez que ela conheciaessa desigualdade; mas que ela quis enganar-se a si mesma. Cabe apenas a Benignodeclarar judicialmente a invalidade do matrimônio, fazer penitência e despedir Isa-bel com dinheiro, para que possa casar em outra parte. (Pontas, doutor em DireitoCanônico na Faculdade Teológica de Paris, no "Dictionaire de cas deconscience", artigo Mariage, III, cas 5, 1724). 

Quem admira que, em face de semelhante imoralidade estampada comodoutrina do Cristo, tenha Pascal invocado a divina pureza do Evangelho eexclamado: "Minhas Cartas foram condenadas em Roma, mas o que nelas condeneiestá condenado no céu — apelo para o teu tribunal, Senhor Jesus!" 

Juan de Alloza, outro Jesuíta espanhol, em sua obra latina "FloresSummarum, seu Alphabetum Morale", publicada em Lyon, França, 166, Vol. L,escreve, com a competente aprovação eclesiástica, o seguinte: 

. "O homem que vir outro, inocente, punido pelo que ele (o primeiro) fez, e seconservar calado, não tem obrigação de compensar o prejudicado." 

"Um homem honesto que acharia demasiado duro mendigar, mas de outro modonão tem com que ganhar o necessário sustento, pode apoderar-se dele às ocultas." 

Isto é, em bom português, pode roubar! "Fulano, que abre cartas escritas de Roma a Sicrano, e chega a saber assim que

vagou em Roma uma prebenda eclesiástica, e consegue para si essa prebenda, nãotem obrigação de indenizar a Sicrano, pois não lhe tirou direito algum que estepossuísse de fato." 

"É permitido a um homem da nobreza matar outrem para defender a suahonra. Doutores há que afirmam que ele não pode perseguir o ofensor, se estefugir. Outros, porém, afirmam, com não menor probabilidade, que ele o podeperseguir e matar, não no intuito de se vingar, mas na intenção de recuperar suahonra. Assim segundo Henriquez." 

Como se depreende claramente de diversos tópicos que extraímos dessasinsignes obras teológicas, há dois padrões de moral, dois códigos éticos para as ações

Page 47: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 47/82

47

humanas: um para uso dos  plebeus, e outro para uso (ou abuso) dos nobres.Fatalmente, deve haver também dois Cristos e dois Deuses para essas duas classes dehomens e de cristãos católicos. O que para o nobre é  virtude pode ser pecadogravíssimo para o plebeu. Sobre a base deste princípio, será fácil construir tantasespécies de moral ou ética quantos os indivíduos humanos dispostos a fugir ao

espírito divino do Evangelho e entregar-se como escravos às suas paixões. "Pode ser até obra de caridade da minha parte matar alguém - é o exímioteólogo que fala — se este atacar a honra de um inocente; ruas não há obrigaçãopara isto, se nisto houver perigo para meus próprios bens." 

Ó Nazareno! Que é feito do teu Evangelho de justiça, pureza e amor?... "O homicida, sabendo que outro, inocente, está no cárcere por causa dele, não

tem obrigação de se denunciar a si mesmo com perigo da própria vida (Navarrez)".É claro que é preferível para esse cristão que o inocente morra em lugar do culpado— qualquer pagão faria o mesmo... 

Resumindo questões diversas, sintetiza Alloza a sua moral cristã nasseguintes frases: 

"Não está obrigado a indenização aquele que mata um ladrão para salvar osseus bens, ainda que pudesse reaver estes por meio do juiz; nem aquele que mataem defesa própria, ainda que, como clérigo, pudesse fugir sem desonra; nem oadúltero que, defendendo a si mesmo matar o marido da outra." (Ver "Homicidium"Sectio II).

***

Com a reprodução desses tópicos, não temos a intenção de ofender a alguém

ou desmoralizar unia classe de homens ou Ordem religiosa. Se há desmoralização, éuma autodesmoralização, uma vez que essas obras foram impressas em dezenas deedições, com expressa permissão de seus autores e das respectivas autoridades.Queremos apenas fazer ver como é perigoso e fatal afastar-se o homem das normasdivinas e imutáveis do Evangelho de Jesus Cristo, e guiar-se por princípios deoutra origem, por melhores que esses princípios pareçam à razão humana, ou anteao coração do homem. 

Por outro lado, queremos também mostrar que a atitude de Pascal não nasceude nenhum espírito de insubmissão ou revolta, mas, sim, da pureza e da sacralidadedo seu Cristianismo. Como católico, foi Pascal de uma conduta exemplar e degrande fervor religioso, amigo da pobreza, da penitência, da caridade, da oração. Efoi precisamente essa sua acendrada Catolicidade cristã que o lançou a tão tremendoconflito com numerosos representantes do Catolicismo romano. 

Pascal sofreu cruel perseguição por causa da sua atitude desassombrada, masnunca revogou o que dissera nem modificou sua tempera espiritual. Muitas vezes serepetiu, através da história, essa tragédia espiritual dos grandes gênios religiososda humanidade, postos em face do doloroso dilema: ou serem infiéis à própriaconsciência — ou incompatibilizar-se com a religiosidade da época!  

Pode Pascal ter exagerado as suas ideias no tocante à predestinação e àatividade da graça divina, mas na defesa dos princípios intangíveis da moralcristã, qualquer homem sério estaria disposto a lutar sob sua bandeira. Por vezes, manda Deus um Paulo para dizer a Pedro, como daquela vez emAntioquia: "Aberraste da verdade do Evangelho" (Gl. 2-14). E ainda que nem

Page 48: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 48/82

48

sempre os Pedros tenham a humildade de Simão Pedro, a voz dos   Paulos nuncadeixa de ser de grande utilidade para reavivar a consciência cristã do gênerohumano. De resto, nem Pedro nem Paulo são a Igreja do Cristo. 

Para explicar a sua atitude, escreveu Pascal: "Se eu vivesse em uma cidadeonde houvesse 12 fontes de água, e se eu soubesse com certeza que uma delas está

envenenada, teria obrigação de prevenir todo O povo para não beber dessa água; ese alguém visse nisto apenas idiotice minha, teria eu obrigação de denunciaraquele que envenenou a fonte, a fim de não expor a cidade toda ao perigo deenvenenamento." 

O abade Maynard(l) deu-se ao trabalho de querer "refutar" as "LettresProvinciales", mas não se pode afirmar que tenha logrado algo de positivo, uma vezque os livros denunciados por Pascal existem realmente e o espírito que a elespreside é, em numerosos pontos, incompatível com o verdadeiro Cristianismo. O erro dos casuístas está em que eles considerem essas delicadas questões morais doponto de vista puramente legal e jurídico, quando é certo que só a perspectivaespiritual e evangélica é que lhes pode dar solução satisfatória. Pascal é

intransigente defensor dessa atitude espiritual-evangélica, ao passo que Escobar è' seus patronos desertaram evidentemente para os arraiais de um burocratismo jurídico-legal, como se as relações entre o homem e Deus pudessem ser aferidaspela bitola profana dos nossos códigos civis. 

(1)  Lês Lettres Provinciales de Louís de Montalte et leur rétufafion, par 1'abbé Maynard. Paris, 1851.

Queixaram-se amargamente os casuístas de ter Louis de Montalte(pseudônimo adotado por Pascal), em sua "Lettres", assoalhado na praça da mais

larga publicidade certas diretivas morais destinadas exclusivamente ao uso dossacerdotes e diretores espirituais, sendo por isto esses livros escritos em língualatina. 

A essa censura respondeu Pascal que diversos desses livros, ou derivadosdos mesmos, já existiam em língua francesa e andavam nas mãos do povo(l). Deresto, se tais idéias serviam de norma aos confessores e diretores espirituais,naturalmente orientavam a vida espiritual de milhares de católicos, contaminandoas almas, solapando o verdadeiro espírito do Cristianismo e acarretando, assim, ummal imenso à sociedade. 

De fato, esse "laxismo moral" dos casuístas era largamente conhecido, e emparte também praticado em certas camadas religiosas do povo, com detrimento doverdadeiro espírito do Cristianismo.

***

Em 1700 condenou o célebre Bossuet, em nome da Igreja Galicana, a moralcasuística dos Jesuítas e de outros moralistas como atentatória ao espírito doverdadeiro Cristianismo. Também em Roma foram, mais tarde, condenados diversosprincípios ensinados por Escobar e seus amigos. Outros continuam em vigor.  

Entretanto, só Deus sabe quantas almas, por espaço de mais de um século,obediente a esses "diretores espirituais", foram ludibriados nos seus anseiosespirituais e afastados do Cristo.

Page 49: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 49/82

49

RegulamentaçãoBurocrática do Amor de Deus —

Pró e Contra Pascal

O que, acima de tudo, parece ter disposto os ânimos, dentro e fora dos arraiaiscatólicos, contra certos teólogos e moralistas da Companhia de Jesus, foi a opinião quemuitos destes tinham sobre o dever que temos de amar a Deus. Ninguém nega que, deum modo geral, vago, implícito, se deva sempre amar a Deus; mas o que esses"mestres da vida espiritual" escreveram sobre o amor explícito e consciente que ocristão deve ter para com o Bem Supremo — isto é sumamente vergonhoso. Paulo,Agostinho, Francisco de Assis, Mahatma Gandhi e todos os outros espíritos abrasadosno amor de Deus, se tais opiniões tivessem lido, ter-se-iam levantado com santaindignação contra semelhante deturpação do Cristianismo. O cristão sincero, não

contaminado de certa burocracia e sofisticação escolástica, não compreende que sepossam estabelecer determinados períodos, certas horas de "expediente", em que aalma tenha "obrigação" de "amar a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda amente e com todas as suas forças". Não compreende que esse "mandamento máximo"do Mestre, possa sofrer qualquer diminuição ou cerceamento da parte daqueles que,deviam ser os primeiros a afirmar o amor de Deus em todas as circunstâncias da vida.

Acha Escobar, de acordo com Hurtado de Mendoza e outros moralistas, que háobrigação de amar expressamente a Deus uma vez por ano. Outro teólogo, Coninck, é deparecer que basta cada 3 ou 4 anos. Henriquez, mais liberal, estabelece o período de 5 anoscomo obrigatório para fazer um ato explícito de amor a Deus. Filutius, porém, não concordacom isto; acha que não se pode obrigar nenhum cristão a amar a Deus de 5 em 5 anos. OJesuíta Antônio Sirmond escreveu um manual de piedade intitulado "Défense de Ia vertue".Sob este belo título, "defesa da virtude", espera o leitor encontrar páginas edificantes sobre avida cristã. Mas não é assim. "Tomás de Aquino - expõe o autor - acha que se deve amar aDeus, logo que se chegue ao uso da razão." Em vez de concordar com esta ideia, que é quefaz o autor? Procura outros teólogos que o libertem desse dever ingrato de amar a Deus logoao despontar da razão. "Isto parece muito cedo — diz ele, e prossegue: — Scotus opina quese deve amar a Deus cada domingo. Outros dizem, na hora da morte - e isto me parece meiotarde! Eu, por mim, nem creio que se deva amar a Deus por ocasião de cada recepção dossacramentos; porquanto, para essa recepção, basta a contrição imperfeita em uniãocom a confissão, no caso que esta seja possível. Suarez diz que se deve amar aDeus em determinados tempos — mas em que tempo? Deixa-o à escolha de cada

um; ele não o sabe; mas, o que esse teólogo não sabe, quem o poderia saber?" E assim é que, de tanto burocratismo teológico, esses "chefes espirituais"

chegam, finalmente, à conclusão de que não há obrigação real de o homem amar aDeus, sacrificando assim o "primeiro e maior de todos os mandamentos" e a almado Cristianismo ao arbítrio de uma infeliz teologia. 

E isto é impingido ao povo católico como "catolicismo", e até como"cristianismo"... 

É este, talvez, o maior e mais funesto dos males de certas épocas: apregoarem-se como cristianismo doutrinas e ideias que de cristianismo têm apenas o nome,mas não a alma e realidade. É este um dos maiores crimes que se cometem contra o

maior tesouro que o homem possui aqui na terra — o tesouro do Evangelho genuínoe integral. 

Page 50: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 50/82

50

 Não há meio mais seguro para perder a fé no Cristo do que ler as obras ououvir as doutrinas de cer tos teólogos e moralistas ... 

***Em carta de 15 de janeiro de 1690 narra a escritora Madame de Sévigné que o

poeta Boileau, convidado à casa de Lamoignon, onde também se achava o JesuítaBourdaloue, mostrara dar preferência aos escritores antigos sobre os modernos,excetuando apenas um desses últimos. O Jesuíta quis saber quem era esse únicoexceto. Boileau recusou-se a nomeá-lo. O reverendo insistiu. Ora, respondeu opoeta, vossa Reverência de certo o leu mais de uma vez. O Jesuíta não se contentoucom essa evasiva, ao que Boileau lhe disse à queima-roupa": "Já que faz questão deo saber — é Pascal." "Pascal? — exclama Bourdaloue, furioso - Pascal é tão lindocomo a mentira!”-"Como a mentira? — replica Boileau — acaso não é verdade queos vossos padres escreveram que não somos obrigados a amar a Deus?”- "Por favor,Senhor! — acode o Jesuíta - é necessário distinguir!"-"Como? — replica o poeta —Distinguir? Mas, por Deus, distinguir se temos de amar a Deus ou não?”Fora desi, o Jesuíta deixou a sala. 

É provável que esta cena tenha levado Boileau a escrever a sua 12ª_epístola.

***

O historiador Crétineau-Joly, amigos dos Jesuítas, na sua "Histoire de IaCompagnie de Jesus, 1845, escreve: "Pascal tornou Deus inacessível, a fim deimpossibilitar os Jesuítas. Estes, por seu turno, tentaram popularizar a religião,procurando conciliar a infinita perfeição (de Deus) com os vícios dos homens,adaptando certos pontos da moral, aos caprichos do mundo. Desde o inícioqueixara-se o mundo do rigor de certos preceitos; os Jesuítas quiseram atender aessas queixas." 

O que o próprio Pascal pensa dessa tentativa de compromisso entre as trevas ea luz resume-o ele mesmo nas seguintes palavras: 

"Saibam todos que não é intenção dos Jesuítas corromper os costumes; tal nãoé o seu propósito. Por outro lado, também não têm por fim único o melhoramentodos costumes, o que seria péssima política. O seu pensamento é antes o seguinte:Eles têm de si mesmos tão boa opinião que se julgam, por assim dizer, necessáriospara o bem da religião; querem que sua influência abranja tudo e que possamdominar todas as consciências. 

Ora, uma vez que os princípios severos do Evangelho são próprios para dirigircerta classe de pessoas, servem-se eles desses princípios quando favorecem suasintenções. Mas como, por outro lado, esses princípios não agradam à maior partedos homens, sacrificam os Jesuítas esses princípios em atenção a esses tais, a fimde contentar a todos, uma vez que têm de lidar com gente de todas as classes e de

nações diversas. Necessitam, por isto, de casuístas que saibam adaptar-seinteiramente a essa massa heterogênea. Se eles tivessem apenas casuístas laxos,

Page 51: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 51/82

51

como é fácil de entender, faltariam à sua máxima fundamental de abranger todos oshomens, uma vez que pessoas piedosas procuram direção espiritual rigorosa. Como,porém, são poucas as pessoas desta categoria, não necessitam os Jesuítas, paradireção delas, de muitos diretores rigoristas. Têm poucos desses, para dirigir aesses poucos, ao passo que têm uma multidão de casuístas laxos, que estão à dispo-

sição dos muitos que amam a laxidão moral. Por meio dessa branduracondescendente, como diz Petau, estendem a mão a todos; pois, quando alguém vaiter com eles firmemente resolvido a restituir bens injustamente adquiridos, não éde recear que eles o impeçam de o fazer; pelo contrário, louvam-no e confirmam-noem seu santo propósito. Mas, quando vai ter com eles outro homem não disposto arestituir, muito mal andariam as coisas se os Jesuítas não tivessem meios e modospara esta alternativa, assumindo eles mesmos a responsabilidade do caso. Destarte,conseguem segurar seus amigos e defender-se contra seus inimigos. Pois, quandoalguém lhes lança em rosto o seu laxismo, logo apontam ao público os seus curasde almas, rigorosos e alguns livros que estes escreveram sobre o rigor da lei cristã.E os homens simples, como todos os que não penetram mais profundamente a coisa,contentam-se com estas provas."

Page 52: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 52/82

52

 

A Casuística em Nossos Dias 

Tem-se dito que a casuística ensinada no século 17, e tão tremendamenteimpugnada por Pascal, desapareceu dos tratados de teologia moral dos nossosdias. É fácil o leitor convencer-se da inverdade desta asserção. Basta abrir qualquertratado, de teologia moral, de Génicot, Noldin, Gury, Ferreres, ou outros autores denomeada, para verificar que mudou apenas o rótulo, mas não o conteúdo dessadoutrina. 

Em comprovação, passaremos a citar como pano de amostra, algunsexemplos que casualmente temos à mão, extraídos da conhecida obra de Gury "Casus

conscientiae", Paris 1892, 8ª_ edição, vol. I, pág. 183. O caso em apreço étextualmente o seguinte: "Ana cometeu adultério. A princípio, interrogada por seu marido desconfiado,

ela, responde a todas as perguntas que não violou o vínculo matrimonial.Interrogada pela segunda vez, e depois de ser absolvida do seu pecado (emconfissão), diz:  Não sou culpada desse crime! Quando interrogada pela terceiravez pelo marido, que continua a insistir, ela nega redondamente que tenha cometidoadultério, dizendo:  Não o cometi! subentendendo consigo mesma: um adultério quetenha obrigação de revelar a você." 

Pergunta Gury se Ana é condenável neste seu procedimento, e responde: "Ana pode ser absolvida de falsidade em todos os três casos acima mencionados.

Porque, no primeiro caso, podia afirmar que não violou o vínculo matrimonial,porquanto este continuava ainda a subsistir. No segundo caso, podia afirmar que erainocente de adultério, uma vez que sua consciência estava livre do fardo, depois dese ter confessado e recebido absolvição; pois tinha a certeza moral de ter sidoperdoada. Podia até fazer esta declaração sob juramento, consoante opinião geraldos teólogos, especialmente a de Santo Afonso de Ligório, Lessius, osSalmanticenses e Suarez. No terceiro caso podia, segundo opinião provável, negarainda ter cometido adultério no sentido em que tivesse obrigação de o revelar aomarido." 

É esta a "moral cristã" que, segundo Gury, merece a aprovação de todos osmoralistas católicos, e que foi devidamente aprovada pela competente autoridade

eclesiástica. Poderão semelhantes doutrinas promover a grandeza moral e social de um

povo?

A respeito dessa perversidade moral escreve o conhecido teólogo católicoJohann Adam Moehler: "A casuística é o atomismo da moral cristã... e temexercido efeito venenoso sobre a íntima essência da vida cristã. Profundezareligiosa, austera e santa moralidade, disciplina eclesiástica — tudo isto foi por elasolapado. Era característico dos Jesuítas transformarem a íntima essência emmeras aparências externas, de maneira que chegaram ao ponto de conceber a Igrejade preferência como um Estado." (Moehler: Symbolik).

O abade Rancé, fundador da Ordem dos Trapistas, escreve no seu livro"Lettres", pág. 358: "A moral dos Jesuítas é tão corrupta, os seus princípios sãotão contrários à santidade do Evangelho, que nada há mais doloroso para mim do

Page 53: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 53/82

53

que ver o meu nome usado para patrocinar semelhantes opiniões, que detesto detodo o coração." 

Com esses autores católicos concordam os escritores protestantes. AdolfoHarnack, então reitor da Universidade de Berlim, escreve, em seu livro"Dogmengeschichte": 

"Com a ajuda do Probabilismo, conseguiu a Ordem dos Jesuítastransformarem em pecado venial quase todos os pecados mortais. Por ele seaprende como revolver-se na lama, como desorientar a consciência, e, noconfessionário, varrer um pecado com outro pecado. Os extensos manuais da éticados Jesuítas são, em parte, monstruosidades de abominação e repositórios deexecráveis pecados e hábitos imundos, descrições e tratados que provocam gritosde revolta. As coisas mais chocantes são neles tratadas com cara de bronze, e istopor padres solteiros... bastante vezes com o propósito de representar as coisas maisinfames como perdoáveis, e para mostrar aos mais empedernidos prevaricadoresum caminho para viverem em paz com a igreja. 

Aparece aqui a influência deletéria de um sistema religioso do qual esses

homens são servidores, uma vez que esse sistema é capaz de produzir tão sutislicenciosidades e tão perversa avaliação dos princípios morais... E tudo isto emnome do Cristo... O interesse que preside a tudo isto está em manter e robustecera força e o prestígio externo do eclesisticismo”(l). 

Essa mesma doutrina deletéria, explanada nos tratados de teologia moral, econtra a qual tanto se revoltou Pascal, aparece também nos Catecismos populares,embora em forma menos positiva. Tenho casualmente sobre a mesa um exemplar do"Catholic Manual of Christian Doctrine", usado nas escolas católicas dos EstadosUnidos e devidamente aprovado pela autoridade diocesana. Na pergunta 41 vemexplicado que uma pessoa convencida de que recebe de menos por seu trabalho oumercadoria, pode, sem pecar, praticar "compensação oculta", isto é, em bom

português, furtar o resto a que julga ter direito. Onde o empregado ou a empregadaque não esteja convencido de receber de menos1? 

Na conhecida revista católica "The Ecclesiastical Review", publicada pelaUniversidade Católica de Washington. D. C., Estados Unidos escreve o Padre J.Francis Connel, C. SS. R. (isto é, da Congregação do Santíssimo Redentor), àspáginas 68-9, número de janeiro de 1945, o seguinte:

(1)  Ver: Harnack: História do dogma, Vol. VIII pg. 102, Oxford 1899.

“Question: What would be regarded now-days as the absolute sum for grave

theft?  Answer: To lay down a genral norm, in view of actual conditions and thevalue of money, it would seem that the absolute sum for grave theft would be about$ 40." 

Em tradução: "Pergunta: Qual seria, hoje em dia, considerada como somaabsoluta para constituir roubo grave? 

Resposta: Para estatuir norma geral, atentas as condições reais e o valor dodinheiro, parece que a soma absoluta para constituir roubo grave seria cerca de40 dólares." 

Quarenta dólares equivalem mais ou menos a Cr$ 4.500,00 cruzeiros (ou 80

reais hoje) nossos. Quer dizer que, segundo as normas morais do padre Connel,aprovadas pela competente autoridade eclesiástica e reconhecidas pelos

Page 54: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 54/82

54

responsáveis da "Ecclesistical Review" da Universidade Católica de Washington,quem rouba menos de Cr$ 4.500,00 (80 reais hoje) não comete pecado mortal. Quempor exemplo, rouba Cr$ 500,00, certamente não incorre em culpa grave. E como,segundo a Teologia Moral, a soma dos pecados veniais, por mais numerosos quesejam, não chega nunca a perfazer pecado mortal, pode o adepto de semelhante

moral rouba sucessivamente centenas de cruzeiros, sem cometer pecado mortal.Como se vê, persiste em nossos dias a mesma casuística funesta e anticristãcontra a qual o autor das "Lettres Provinciales" vibrou a tremenda clava da suaesmagadora dialética.

Page 55: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 55/82

55

 

"Meu Reino não é Deste Mundo" 

O Cristianismo saiu da forja divina do Evangelho em estado incandescente,na mais intensa ignição espiritual. E esta divina incandescência continuou ainda pordiversos séculos. O que os primeiros discípulos do Cristo praticavam, ou antes,viviam, era Cristianismo em estado puro, essência cristã — e isto os levou atremendos conflitos com o mundo profano, porque "o seu reino não era destemundo", assim como deste mundo não era o reino de seu divino Senhor e Mestre. 

Expulsos da sociedade, varridos da superfície da terra — onde, aliás, viviamapenas os seus corpos — refugiaram-se esses heróis para baixo da terra, enquantoseus espíritos viviam nas alturas do céu, onde era o seu verdadeiro reino, seu climadivino. 

Em princípios do 4º_ século apareceu um imperador que veio a tornar-separa o jovem cristianismo pavoroso desastre, desastre incomparavelmente maiordo que haviam sido os Nero e Diocleciano, porque estes, alimentando atempestade da perseguição, aumentavam cada vez mais a divina incandescência dosdiscípulos do Nazareno — assim como impetuosa rajada de vento faz redobrar ofogo de um vasto incêndio e comunicar maior ignição ao ferro lançado na forja. 

Apareceu no cenário, depois desses inimigos manifestos, um inimigo oculto,incomparavelmente pior que aqueles Constantino Magno. 

Quem apenas leu compêndios de história eclesiástica e livros com "Imprimatur"do clero, ficará espantado em face desta minha afirmação, porquanto estáhabituado a ver em Constantino Magno o "primeiro imperador cristão", o insignebenfeitor do Cristianismo primevo. Nem eu tenho intenção de negar ao filho de

Santa Helena certo verniz de religiosidade — embora seja ele, aliás o tipo dopolítico sagaz e do diplomata solerte que até com a protelação do batismo procurafazer negócios. Das suas intenções íntimas julgará Deus. Nós tratamos apenas dosfatos objetivos, históricos - - e é inegável que com as medidas governamentais deConstantino Magno começou a decadência do Cristianismo. 

Saiu da forja divina dos sofrimentos o ferro em brasa — e arrefeceu por faltade fogo... O "imperador cristão" concedeu ao Cristianismo plena liberdade,cumulou de honras os chefes espirituais da jovem igreja, confiou-lhes elevadoscargos na política e na administração do império, entregou-lhes as chaves paragrandes fortunas — e estava lançado o germe da corrupção interna, não doCristianismo em si mesmo, que é incorruptível porque divino, mas de numerosos

cristãos que tinham nas mãos os destinos históricos do Evangelho do Cristo. Os chefes da igreja trocaram a força do espírito pelo espírito da força. Diluíram em águas humanas a essência divina do Nazareno servindo ao

mundo um cristianismo falsificado, afirmando ser aquilo o Cristianismo puro eintegral... 

Há um grande mistério no seio do Cristianismo: quando tomado em estadopuro, incompatibiliza o homem com o mundo profano e pecador. Por quê? Porque"o seu reino não é deste mundo"... Jesus Cristo foi de todos os homens o maisincompatível com o mundo, e, quanto mais cristão é um homem, tanto mais omundo o considera corpo estranho e quisto inassimilável no meio do seu organismoprofano. 

Bem sabemos que certos apologistas modernos, tentam provar, em livros econferências, a perfeita compatibilidade entre Cristianismo e mundo; provam,

Page 56: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 56/82

56

com impecáveis silogismos, que o reino divino do Nazareno é, ou pelo menospode ser "deste mundo". 

Têm razão, esses paladinos dum Cristianismo moderno, chique, granfino,aristocrático, elegante, up-to-date — lá do seu ponto de vista — tanta razão têmeles quanta aquele que tenta realizar um consórcio entre o fogo e a água. É

possível esse consórcio, pois não — mas o que desaparece é o fogo, e o que ficaé a água... Água morna...  É o que provam os séculos, desde o tempo de Constantino Magno, esse solerte

político e hábil congraçador do fogo do Evangelho e das águas do mundo... Quando o diabo, no deserto, mostrou a Jesus "todos os reinos do mundo e sua

glória", afirmando que tudo aquilo era dele, não mentiu, por exceção, porque tudoaquilo era de fato dele, ele era o "príncipe do mundo", como Jesus reconheceexplicitamente. O mundo sem o Cristo pertencia a Satanás — e pertence-lhe aindaonde o Cristo não domina. E esse mundo satanizado não é, sem mais nem menos,cristificável, se assim se pode dizer. Só um mundo "dessatanizado" é que pode sercristificado, e só ele é compatível com o Cristo. 

Com o advento do Cristo tem o homem a possibilidade de se "dessatanizar" ecristificar. "Eu venci o mundo — diz Jesus — chegou a hora em que será expulsoo príncipe deste mundo"... 

Essa "dessatanização" foi realizada solenemente entre Belém e o Gólgota, etodo o homem que viver o Cristo, em sua vida, morte e ressurreição, será"dessatanizado" e cristificado. 

Mas, viver o Cristo é nutrir-se de cristianismo puro, alimentar-se de puríssimaessência cristã. Qualquer diluição, qualquer enfraquecimento desse divino elixir dasuprema espiritualidade é ato de traição, beijo de Judas, porque assassínio daalma divina do Cristianismo. 

É este o crime máximo que certas igrejas cristãs estão cometendo, desde osprimórdios do 4º_ século, quando Constantino Magno elaborou a fórmula diabólicade um consórcio entre Cristo e Satanás, um compromisso covarde entre o reino deDeus, que não é este mundo, e o reino deste mundo, que não é de Deus. 

Constantino e seus auxiliares conseguiram em poucos anos de paz o que Nero,Diocleciano e seus comparsas não haviam conseguido em três séculos de guerra:tirar da forja divina do Evangelho o ferro candente da alma cristã e fazê-laarrefecer ao contato das auras frígidas do mundo circunjacente. 

Desde esse tempo, a igreja cristã, livre e respeitada, ganhou imenso emorganização jurídica e hierárquica, tornou-se uma potência política, diplomática,financeira e militar — ela, filha daquele homem que era mais pobre que as avesdo céu e as raposas da terra, — a igreja do pobre Nazareno — acabou milionária!

Na Idade Média chegou a igreja a ser a maior e quase a única potência mundial,nomeando reis, depondo monarcas, marchando à frente de formidáveis exércitos.Hoje em dia, é a hierarquia romana a maior potência financeira e política doglobo. 

Dizem então os homens ignaros, deslumbrados com essa pasmosa organizaçãopolítica, diplomática e financeira da igreja, que o reino de Deus vai de triunfo emtriunfo. Como se o espírito do Cristo fosse susceptível de organização burocrática!Como se catálogos, estatísticas e bitolas padronizadas pudessem dizer algo dagrandeza espiritual, que é essencialmente anônima! Como se a essência divina doEvangelho pudesse ser rubricada, carimbada, manipulada à guisa de qualquermercadoria venal do comércio ou da indústria humana! 

Nunca foi o cristianismo tão glorioso e tão ele mesmo como naquele momentotragicamente sublime em que o Cristo, chaga viva, ludíbrio do mundo inteiro,

Page 57: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 57/82

57

suspenso entre o céu e a terra, gemia: "Pai, em tuas mãos encomendo o meuespírito"... Nunca foi a igreja tão divinamente bela e vitoriosa como naqueles 300anos em que vivia em extrema pobreza e suprema espiritualidade, no fundo dascatacumbas ou ensangüentava a arena do Coliseu...  

"Estão por dentro todas as magnificências da filha do rei"... 

"O reino de Deus está dentro de vós"... Quem considera as organizações eclesiásticas como bitola do espírito do Cristo

mostra que é analfabeto e tábua-rasa precisamente naquilo que é a essência doEvangelho. Leia o Sermão da Montanha, leia o colóquio noturno de Jesus comNicodemos, e procure retificar o seu erro à luz desses relâmpagos divinos. 

Pode a organização eclesiástica atingir ao infinito — e o espírito do Cristoestar a zero. Pode a parte humana da igreja subir ao supremo zênite — e o elementodivino descer ao mais profundo nadir". .. 

"Quem não renascer pelo espírito não pode ver o reino de Deus"... "O meu reino não é deste mundo"... É necessário que a Divina Providência, para contrabalançar a obra nefasta dos

Constantinos, nos mande alguns Neros, a fim de que a benéfica inimizade destesreconstrua o que a maléfica amizade daqueles destruiu, a fim de arrasar aorgulhosa torre de Babel do nosso cristianismo político-diplomático-financeiro elevantar o divino santuário dum cristianismo espiritual como o dos primeirostempos... 

Uma vez que, segundo Tertuliano, toda alma é cristã por natureza, é certoque as almas sinceras se voltarão sempre, como plantas heliotrópicas, para lá ondesentem irradiar a "luz do mundo"... 

Foi por este Cristianismo que Pascal lutou a vida inteira, desde a suaconversão definitiva, defendendo-o contra todas as tentativas de adulteração oumescla com elementos profanos. Está provado, através de quase vinte séculos,que só um Cristianismo puro, 100% genuíno e integral, é que possui a força dearrancar os homens da Sodoma da sua luxúria ou da Babel do seu orgulho. 

Os que advogam um cristianismo político, diplomático, moderno, elegante, tiposalão, ou outra espécie qualquer de cristianismo "condicionado" - são pioresinimigos do Cristianismo do que os hereges e ateus manifestos. 

Ou aceitamos um Cristianismo em estado puro, assim como brotou dos lábiosdo Nazareno — ou não somos cristãos de forma alguma!... 

O reino de Deus está no mundo — mas "não é deste mundo"...  

E precisamente por não ser deste mundo é que pode salvar o mundo.

Page 58: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 58/82

58

 

Pascal e a Humanidade 

— O seu Livro "Pensées"

Pascal é uma das poucas celebridades mundiais que não publicou livros. Ver-dade é que escreveu tratados sobre matemática e geometria; mas essas conquistas,há tempo, se divorciaram do nome do seu autor e se perderam no vasto anonimatoda ciência como bem comum da humanidade. 

As "Lettres Provinciales", que escreveu quase por acaso, tornaram-no temidoe admirado, mas não fizeram de seu autor, propriamente, uma celebridademundial. 

O livro central e eterno a que esse homem, que morreu com 39 anos de idade,deve a sua imortalidade sobre a face da terra, não foi por ele publicado; deleforam encontrados, após sua morte, apenas os tijolos do edifício, ou antes asesplêndidas peças de alvenaria, mas o edifício mesmo, em sua forma atual, é deoutros. E, no entanto, bastaram essas mil e tantas "pedras" para dar a Pascal umdos primeiros lugares na galeria dos grandes gênios da humanidade e doCristianismo. 

Assim como Colombo morreu sem saber que descobrira um novo continentecheio de maravilhas e grandezas, assim deixou também Pascal este mundo semsuspeitar que aquele punhado de fragmentos de papel que deixara nas gavetasviria a ser para a humanidade do futuro uma verdadeira América demagnificências espirituais. 

O Pascal que a humanidade cristã conhece, admira e ama, não é o autor do"Essai sur les coniques", nem o hábil experimentador das "Experiences nouvellestouchant le vide", nem o Pascal do "Traité de l'équilibre dês liqueurs", emboratenham esses estudos rasgado novos horizontes à aerostática e hidrostática. Nem tãopouco nos curvamos ante o vibrante polemista das "Lettres Provinciales", aindaque essas 18 cartas sejam um dos maiores monumentos da literatura francesa e o

atestado de uma grande sinceridade cristã. O Pascal que atravessa os séculos e empolga as almas de todos os tempos é oPascal dos "Pensées", porque, por menos que os materialistas ou os intelectualistasqueiram, o escol da humanidade é essencialmente espiritualista, e os melhoresdentre os filhos dos homens têm os olhos voltados para os horizontes eternos daDivindade. Depois que o homem pensou, viveu, lutou e sofreu muito, está maisdo que nunca disposto a crer num mundo sobre-material e ultraintelectual; ou,como dizia Pascal, "o último passo da razão (inteligência) está em admitir que háinfinitas coisas que ultrapassar o seu alcance; se a isto não chegar, dá prova degrande fraqueza." 

É por causa dessa inextinguível sede do sobrenatural e por causa desse

veemente heliotropismo metafísico que os "Pensées" são um livro sempre novo,atual e querido, e serão lidos e meditados, enquanto as "Confessiones" de Agostinhofizerem parte integrante da literatura cristã da humanidade.

Page 59: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 59/82

59

***Mas, afinal de contas, que são os "Pensées”? 

O leitor comum e superficial não vê, talvez, neste livro senão algumas centenasde lindos cristais de pensamentos, idéias filosóficas, metafísicas, místicas, sobre avida humana e o Cristianismo. Há tantos homens que coligiram belos pensamentos

- Sêneca, Marco Aurélio, Rousseau; nem faltam entre os escritores cristãoscoletâneas de lampejos altamente espirituais... Fossem os "Pensées" célebresapenas na França, atribuí-lo-íamos, talvez, à clássica beleza e diafaneidade deestilo, mas esse livro se tornou patrimônio espiritual da humanidade, como a"Imitação do Cristo" e as "Confessiones". Na última guerra mundial foi este livroencontrado, freqüentemente, na bagagem de soldados franceses mortos no campo debatalha. 

Não é possível solvermos o mistério dos "Pensées", sem remontarmos a umazona que, possivelmente, é terra incógnita para muitos dos nossos leitores. 

Pascal é o grande representante de uma faculdade humana que poderíamoschamar ultraintelectiva, como já foi lembrado no início deste livro. E como, no

fundo, essa faculdade existe e atua em todos os homens, por isto milhares de homensintrospectivos encontram nos pensamentos claros e explícitos de Pascal o seupróprio pensar e sentir, embora esse seu sentir e pensar lhes seja apenas obscura eimplicitamente consciente. Quando um livro nos diz o que nós mesmos quiséramosdizer, mas dizer não sabemos, então esse livro se nos torna amigo querido,confidente e conselheiro nas horas incertas e angustiosas da vida. Um livrorealmente bom não tem que dizer coisas novas; tem que dizer as coisas mais antigasque existem, tão antigas como a humanidade, quase tão antigas como o próprioDeus, uma vez que todas essas coisas antigas e eternas estão dentro de nós, emestado dormente e potencial; o livro, quando realmente bom, é o misterioso condão,a varinha mágica, o divino talitha-cumi que do longo sono tia potencialidade

inconsciente suscita esses elementos eternos para a luminosa vigília de umaatualidade consciente. 

Pascal é o locutor consciente do subconsciente da humanidade. Há certas realidades que o homem atinge, não com um dos cinco sentidos, nem coma inteligência, mas com uma faculdade que, por ignota, não tem nome próprio;uns lhe chamam "coração"; outros, "intuição" ou "razão"; Bérgson fala num certo"élan vital". No fundo, todas estas palavras tentam exprimir a mesma faculdadeanônima e inominável que preside aos mais profundos conhecimentos do homem(1). 

O que se pode provar matemática ou analiticamente, por meio de cálculos ousilogismos, são realidades relativamente simples e primitivas, mais próximas do

 jardim de infância ou da escola primária do que da Universidade do nosso

verdadeiro Eu humano. As mais altas realidades estão para a inteligência, assimcomo a luz solar está para o cego ou as vibrações sonoras estão para o surdo. O homem comum considera a inteligência consciente como o mais perfeito

estado do ser humano, o que é, certamente, um grande erro, ou então umafilosofia fartamente infantil. Há um estado superconsciente, que éincomparavelmente mais perfeito do que o estado comumente chamado consciente. Ogênio, nos seus momentos mais fecundos e dinâmicos, não age de um modoplenamente consciente; está "inspirado", dizemos, isto é, tomado de um "espírito",de uma força cósmica, que não coincide simplesmente com o Eu histórico dessehomem, é algo que ultrapassa todas as barreiras da sua consciência intelectual. Overdadeiro gênio é antes "atuado" do que "atuante"; é empolgado e arrebatado por

uma potência superconsciente e, quiçá, ultrapersonal. 

Page 60: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 60/82

60

(1) Pascal toma o termo “raison" (razão) como idêntico a "inteligência". Na realidade, a "Razão", o Logos dos pensadoreshelênicos, é o espírito. O 4° Evangelho identifica o Logos com Deus, a Razão cósmica, o Espírito Eterno.

Também o místico, nas suas visões e nos seus arroubos, é superconsciente. Apalavra "êxtase" é uma das mais felizes e precisas que a língua humana possui.

"Ec" ou "ex" quer dizer "fora"; "stasis" significa o "ato de estar". De maneira que"êxtase" diz literalmente o estado de um homem posto fora de si mesmo. Todohomem superconsciente acha-se "fora de si mesmo", porque seu verdadeiro Euultrapassou o âmbito dos sentidos e do intelecto consciente, e entrou numa zonaignota, anônima, vedada a essas faculdades diurnas; entrou na zona noturna quesão o domínio da faculdade superconsciente. De per si, é essa zona noturna muitomais diurna e clara do que a zona diurna dos sentidos e do intelecto, mas paraestas faculdades inferiores é ela noturna - assim como a luminosa claridade do diaé escuridão para as aves noturnas, ao passo que as trevas lhes parecem luminosas. 

A alma ou espírito humano, superando os sentidos e o intelecto, entra no reinoda superconsciência. Devido ao caráter misterioso desse estado superconsciente,

muitos o confundem com a subconsciência ou inconsciência — como se uma luzexcessivamente forte fosse idêntica à treva, pelo simples fato de ultrapassar os li-mites da penumbra. 

A nossa atual consciência intelectiva é comparável à penumbra, ao passo que asuperconsciência é luz integral.

***

Há aqui no mundo homens altamente superconscientes, ou, como se dizgeralmente, intuitivos, visionários, videntes. Quase todos nós, em certos momentosda vida, somo videntes ou intuitivos. Atingimos, então, realidades inacessíveis àfaculdade puramente intelectiva, ou aos sentidos corpóreos. O sofrimento contribuipoderosamente para a intensificação da vidência ou intuição. Também o jejum e aoração dispõem a alma para esse estado superior, libertando-a, por assim dizer datirania da matéria, que lhe veda ou cerceia o poder intuitivo. 

A intuição é como que uma antena ou um aparelho receptor dotado de extremasensibilidade; apanha vibrações que não afetam o aparelho grosseiro da consciênciapuramente intelectiva. É fora de dúvida que a faculdade intuitiva é de uma finurae receptividade muito superior à faculdade intelectiva.  

Ora, sendo Deus e as coisas divinas algo essencialmente ultraintelectivo esuperconsciente, é natural que essas supremas realidades sejam mais facilmenteatingíveis por uma faculdade superconsciente, como é a intuição, do que por umafaculdade consciente, como é a inteligência. 

Pascal é um dos homens mais superconscientes da humanidade, no que revelagrande afinidade com seu mestre Agostinho. E tanto mais estranho é isto, àprimeira vista, quanto maior era o seu potencial consciente e intelectivo. De fato,porém, não há antagonismo entre o poder intelectivo e o poder intuitivo. Esseaparente antagonismo é devido à fragilidade da nossa compreensão. Deus éinfinitamente inteligente e infinitamente intuitivo ou racional. 

Os "Pensées" movem-se essencialmente nesse ambiente superconsciente, por

mais intelectualmente conscientes que pareçam. São de fato "um apelo da razão

Page 61: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 61/82

61

(inteligência) para o coração; um recurso do tribunal da inteligência para oSupremo Tribunal da intuição. 

Aliás, quem lê os Evangelhos verifica que estes se acham no mesmo plano. Ohomem puramente intelectual não compreende os Evangelhos, ou, como diz Paulo,"o homem intelectual não compreende as coisas que são do espírito de Deus, até lhe

parecem estultícia; pois devem ser entendidas em sentido espiritual". Só numambiente de intuição espiritual é que os livros divinos podem ser compreendidos.Toda teologia ou exegese puramente intelectual acaba em apostasia doCristianismo. 

Os melhores dentre os homens creem mais na super-consciência do coração doque na consciência do intelecto - e por isto os "pensamentos" de Pascal lhes dãoresposta clara ao que obscuramente lhes ia na alma. É este o segredo do fascíniode Pascal a través dos séculos.

***

Pedira Pascal a Deus que lhe concedesse dez anos de saúde, a fim de escreveruma apologia do Cristianismo; Deus, porém, como ele diz, lhe deu apenas quatroanos de enfermidade. E, assim, não pôde terminar sua obra.

O que dessa obra existe como dissemos, são mais de mil pensamentos avulsos,que, depois da morte de Pascal, foram encontrados no seu quarto, escritos embilhetes de tamanhos diversos e enfiados em cordéis. 

Os testamenteiros espirituais do autor empreenderam o trabalho árduo desistematizar esses pensamentos e reduzi-los, quanto possível, a um todo uniforme elógico, o que só em parte conseguiram. 

Ao darmos crédito ao editor Léon Brunschvieg, tencionava o autor dialogar oseu livro, suposição esta que explica certas frases que parecem contradizer às idéiase convicções que Pascal tinha em matéria de religião; provavelmente,representavam esses tópicos ideias e objeções do adversário. 

As primeiras edições dos "Pensées" apareceram "expurgadas", isto é, comfrases truncadas ou parcialmente modificadas, a fim de as tornar mais assimiláveispara certos leitores. Mais tarde, porém, prevaleceu o bom senso, e apareceramedições genuínas e autênticas, que reproduzem fielmente as idéias de Pascal.

***

Através de todo esse livro frisa o autor duas coisas: a grandeza e a  pequenezdo homem. Em face da imanência de Deus no homem, é este divinamentegrande; em face da transcendência de Deus, é o homem indizivelmente pequeno. Aido homem que só experimentar em si o Deus imanente! Acabará num panteísmoamorfo, em que pecado e santidade não o mesmo. Ai do homem que só crer no Deustranscendente! Acabará na frialdade polar do desânimo ou desespero.  

Feliz do homem que se sentir divinamente grande e humanamente pequeno! Atensão dinâmica entre esses dois polos lhe dará força e arrojo para se elevar àsalturas do Cristo, do Deus-homem, do homem-Deus.

Page 62: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 62/82

62

 ***

Pascal pretende convencer os cépticos e ateus da verdade da revelação cristã e

mostrar-lhes o absurdo da sua incredulidade. Embora nem sempre pareçam de todoconvincentes os argumentos que aduz, a extraordinária firmeza e convicção doautor é, por vezes, argumento mais poderoso a favor da verdade do que ossilogismos que forja.

Pascal é, antes de tudo, um filho da graça divina, e como tal se sente ele, comtoda a humildade e alegria. Esta sua disposição fundamental transparece de todasas palavras de sua obra, comunicando ao leitor incrédulo ou céptico algo dafirmeza do autor. 

Tem-se dito — e não sem alguma razão — que falta ao autor dos "Penses"certo senso empírico, certa noção das realidades da vida, o que não admira,quando se conhece a vida eremítica que Pascal levou. As suas deduções são

rigorosamente lógicas, cativando nas malhas de uma impecável coerência ointelecto do leitor; mas há também, uma "lógica da vida", quem nem semprecoincide com as conclusões retilíneas de um silogismo impecável. A lógica da vidareal é, por vezes, tremendamente "ilógica". Quem leu "O Gênio do Cristianismo",de Chateaubriand, sabe com que "ignorância genial" desenvolve o autor certasverdades teóricas que, no plano da vida prática, assumem colorido bem diverso.Por vezes encontramos nos "Pensées" frases magníficas que lembram o idealismoabstrato de Chateaubriand. Mas... Quem deixaria de se deliciar aos raios benéficosdo sol por saber, pelas aulas de física ou astronomia, que o grande astro temsuas manchas?... 

No meio de um mundo corroído de materialismo, indiferentismo ou cepticismo

religioso, atua a obra de Pascal como um poderoso ímã que em sua misteriosacorrente empolga nossa alma e polariza todos os átomos do nosso ser, norteando-osrumo a Deus e às coisas divinas. E isto é de imensa necessidade, no meio destahumanidade rasgada de desarmonias.

Page 63: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 63/82

63

 

As Razões do Coração que a Razão Ignora  

Como dizíamos a princípio, à primeira vista não parece Pascal pertenceràqueles homens seculares a que Keyserling adjudica imortalidade, homens queenunciam idéias cósmicas, obscuras e amorfas, porém prenhes de fecundidades eilimitadas perspectivas; pois as ideias de Pascal são de uma clareza diáfana,verdadeiros cristais de pensamentos, de uma precisão geométrica. 

E, no entanto, é o autor dos "Pensées" um dos grandes gênios da humanidadee pertence à categoria dos homens cósmicos descritos por Keyserling. É que, pordetrás daquela cristalina nitidez de pensamentos, se alargam mundos de infinitagrandeza e amplitude, universos em evolução, realidades ainda não plenamente di-ferenciadas e que, como células primitivas, têm as portas abertas para todos os

lados, para todas as possibilidades evolutivas, para todos os horizontes de tempoe do espaço. Há homens cuja linguagem é obscura por falta de ideias claras — e há

homens que usam palavras enigmáticas por excesso de ideias. O vocabuláriocomum da língua humana é instrumento paupérrimo, que, de forma alguma, podeatingir as culminâncias das supremas realidades do universo. Há homens quesabem exprimir com meridiana clareza as suas ideias, precisamente por serempoucas e quotidianas essas ideias; definido esse pouco, nada resta a definir. Sãocomo fachadas de casas sem fundo, esses homens; tudo que neles há está nofrontispício, claramente visível à luz das lâmpadas da inteligência. São homensque, com palavras claras e precisas, partejam a totalidade do seu Eu, e por isto

vivem satisfeitos com o que dizem e escrevem, uma vez que suas palavras e seuslivros são, de fato, a manifestação cabal do que eles pensam e sentem. Por istotambém estão satisfeitos com suas produções literárias e acariciam-nas com aafetuosa volúpia com que uma mãe afaga seu filhinho dileto, em que vê o seu Euem miniatura. Há, porém, outra classe de homens, tipo agostiniano-pascalino, que,depois de darem à luz, em termos claros e nítidos, o que neles havia de dizível,continuam a gestar no seio da alma o indizível, prole eternamente nascitura; e estemundo vastíssimo, inédito, indito e indizível, é-lhes fonte perene de sofrimentosanônimos e projeta estranhos clarões de mistério e magia sobre as pobres palavrasque esses homens souberam balbuciar em linguagem humana. A imensa reserva depalavras indizíveis exerce irresistível fascinação sobre as poucas palavras dizíveis.

Onde há apenas fachada sem fundo, ali não há atração magnética. As palavras dos homens cósmicos não valem pelo que dizem — valem pelo que

silenciam e fazem adivinhar. As suas reticências fazem suspeitar muito mais doque a sua eloqüência. O panorama que eles descortinam é belo e vasto — masos ouvintes ou leitores sabem ou sentem que, para além da extrema linha dohorizonte, se alargam mundos e universos incomparavelmente maiores e maisbelos. O homem cósmico empolga e fascina mil vezes mais pelas invisíveisperspectivas que insinua do que pelos visíveis panoramas que descortina. 

É natural que o homem cósmico esteja sempre insatisfeito consigo mesmo,com suas palavras, com seus pobres escritos, com seus magros "triunfes". Também,como poderia ele estar contente com esses "triunfos" quando o que, por dizível,

foi dito, não é a milésima parte daquilo que, por indizível, não foi dito. Nasceu a

Page 64: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 64/82

64

pequena realidade dizível, — continua em gestação a grande realidadeindizível... 

A chamada "humildade" que nimba sempre os homens verdadeiramentegrandes, não é senão o reflexo da realidade e o esplendor da verdade. Do seusaber pode o homem experiente duvidar — mas do seu não-saber tem ele plena

certeza. O homem cósmico é "humilde" porque é sincero, conhece e reconhece a rea-lidade objetiva. Só pode celebrar a plenitude da sua sapiência quem ignora avacuidade da sua insipiência. A confissão da ignorância é porta aberta para asabedoria. .. O homem genial mentiria a si mesmo se alardeasse sapiência. 

Pascal é o grande advogado do coração, porque sente intensamente oshorizontes infinitos que se alargam para além das extremas barreiras dainteligência. Sabe que inteligência alguma, por mais poderosa e audaz, conseguirá

 jamais transpor certas fronteiras. Por isto, proclama ele a hegemonia do coraçãosobre o império do intelecto. O coração, em seu sentido mais panorâmico e integral,é o misterioso órgão pelo qual o Infinito se manifesta ao finito; é o "porto deinvasão" da Divindade na vida humana; é a antena que apanha as ondas

espirituais que percorrem o universo invisível. A inteligência é como a nossa visão natural, que percebe apenas determinada

escala de vibrações etéreas, as que ficam entre o violeta e o vermelho; ao passoque o coração é comparável a uma faculdade visual que percebe as vibrações sutis einfinitesimais que ficam além da zona ultravioleta. 

Por essa razão proclama Pascal o coração como a mais alta faculdadecognoscitiva, como a síntese e quintessência de todo o conhecimento que o homempossa ter no mundo supra-sensível e ultraintelectivo. O coração é, para ele, o"organum Dei", o aparelho que revela a existência de Deus — e isto não por um talou qual ato de fé intelectual, mas mediante o amor que é a f é na mais altapotência. 

Os "Pensées" são o Cântico dos Cânticos da fé que se manifesta pelo amor.A serviço dessa fé e desse amor coloca Pascal todos os fulgores da sua poderosainteligência, toda a dinâmica da sua dialética e todos os deslumbramentos da sualinguagem de beleza e harmonia. Nada mais comovente e encantador do que esseespetáculo, de ver um dos príncipes intelectuais da humanidade integrar o seuintelecto no x mundo do coração, a fim de encontrar a Deus, o Deus das suasgrandes saudades... 

Se houve jamais cristão sincero que com todas as veras do seu ser procurasseconhecer e possuir a Deus, através do seu Cristo - então foi Blaise Pascal. Ointelectualismo unilateral não lhe perdoará jamais haver proclamando a soberaniado coração sobre o imperativo do intelecto; o dogmatismo teológico não lhe per-doará nunca ter apelado de Roma para Deus — mas todo cristão sincero vê emPascal o arauto de um Cristianismo, que, nos séculos vindouros, como esperamos,virá a ser bem comum da humanidade espiritual. Os grandes gênios antecedem, porséculos e milênios, a história do grosso da humanidade; são como os excelsospíncaros das montanhas que apanham e refletem os raios solares muito antes que aclaridade diurna se difunda pelos vales e pelas baixadas. É que "o coração temrazões de que a razão nada sabe".. . 

Cremos que os "Pensées" serão lidos com maior gosto ainda pelos cristãos dosséculos futuros do que o são pelos homens do tempo presente.

Page 65: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 65/82

65

 Tragédia Metafísica do Homem

Três grandes lutas têm de sustentar o homem normal até chegar a umarelativa quietação interior: l — a luta entre a matéria e o espírito; 2 — a lutaentre liberdade e autoridade; 3 — a luta entre o intelecto e a fé. 

A primeira dessas guerras é de duração limitada; atinge a sua maiorveemência na juventude, quando as potências do corpo, em rápido avanço,pretendem tomar de assalto o espírito e proclamar sobre ele a sua tirânicaditadura. Mais tarde, equilibradas as duas forças e devidamente subordinadasuma à outra, estabelece-se, geralmente, uma paz relativa, ou, pelo menos um estadode "não-beligerância", como se diria modernamente, dando novo sentido a estapalavra. 

Muito mais intensa e prolongada é a segunda guerra, onde se digladiam aliberdade e a autoridade, ou seja, o princípio de autonomia individual e o daharmonia social. É inerente a todo ser vivo e, sobretudo, ao ser racional, atendência de querer afirmar ao extremo o seu Eu individual. Esse amor-próprio,esse instinto egocêntrico é, de per si, necessário. É uma lei natural, e, por istomesmo, a vontade do autor na natureza. Nenhum ser se realizaria devidamente a simesmo, se não tivesse dentro de si esse veemente anseio de auto-afirmação. Odesejo de progressivo aperfeiçoamento leva todo ser a empolgar e centralizardentro de si tudo o que de valioso encontre em derredor. É o amor-próprio vital eexistencial de todos os seres em evolução. 

Mas, como o indivíduo "A" não é o único ser da sua espécie, deve respeitaros direitos do indivíduo "B", como se fossem seus próprios. Na esfera humana,deve o Eu conceder ao não-Eu, ao Tu, ao Nós, o mesmo que reclama para si, ou,

como diz o divino Mestre, deve "amar o próximo como a si mesmo". Afirmar o Eu à custa do Tu, é o grande pecado contra a ordem sagrada doUniverso. É um delito cósmico. Respeitar os, direitos do Tu, segundo a bitola doEu, é estabelecer a harmonia cósmica. 

"Amar a Deus sobre todas as coisas, e o próximo como a si mesmo — nistoconsistem toda a lei e os profetas." (Jesus). 

O amor que o Eu deve a Deus vai, por assim dizer, na vertical. O amor que oEu deve ao Tu vai na horizontal. Fazer isto é respeitar a ordem e harmonia domundo, é "praticar o bem", é ser "homem bom".

O homem bom traça a sua vontade paralela à de Deus manifestada na ordemnatural. O homem mau traça a sua vontade em linha oblíqua à de Deus, acabando

assim, fatalmente, por colidir com a reta eterna, num ângulo maior ou menor — eesse desajustamento de linhas é injustiça, é desordem, é pecado. Ora, a legítima autoridade humana tem por fim zelar por essa geometria

vertical-horizontal; impedir que se desloquem estas linhas essenciais da vidahumana: a linha do amor do Eu e a linha do amor do Tu e do Nós.  

Mas o indivíduo de Ego hipertrofiado não aceita de bom grado essa limitação àsua tendência, essa coação anti-egoística exercida pelo fator "autoridade". Procura,por isto, eliminar a autoridade, ou furtar-se à sua ação, a fim de poder invadirdesimpedidamente a zona do Tu, cercear-lhe os direitos em benefício próprio,eliminá-lo por completo, se necessário for, para o completo triunfo do Eu.Nenhum Cain tolera de bom grado um Abel. A incorporação do Eu no plano do

cosmos, divino e humano, exige notável potencial de compreensão e virtude.

Page 66: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 66/82

66

***

Entretanto, a luta suprema do homem chegado à sua maturidade espiritualé outra. É a luta titânica de harmonizar o intelecto com a fé. 

 A luta entre matéria e espírito é individual.A luta entre liberdade e autoridade é social. A luta entre o intelecto e fé é metafísica. Atinge as últimas e mais profundas

raízes do ser humano, lá onde corre a linha divisória entre Deus e o homem,entre o finito e o Infinito. 

Não sei se na vida presente, é possível um definitivo tratado de paz entre essasduas potências beligerantes. O único homem que até hoje, ao que sabemos, viveunum ambiente de perfeita paz entre o intelecto e a f é foi Jesus, o Cristo. Nele nãoaparece nenhum sintoma de angústia espiritual, de dolorosa problemática interior,de conflito entre o mundo visível e invisível. E isto pela simples razão de não existirnele a fé em sua forma especificamente humana, mas, sim, na forma sobre-humanaou divina da visão. Isto nos dá esperança, e até certeza, de que, um dia, também nósproclamaremos em nosso Eu a harmonia do intelecto e da fé. E esta visãolongínqua de paz nos preserva do desespero no meio da luta atual. 

Para estabelecer unia relativa harmonia entre o intelecto e a f é, já na vidapresente, não basta provar que a fé não é contrária ao intelecto, como fazem osbons apologistas. É uma tese verdadeira, porém negativa — e o homem não sesatisfaz com teses negativas. 

Quanto mais o homem procura transformar em intuição o seu intelecto, tantomais diminui ele a distância entre o intelecto e a fé; porque, sendo a fé uma espéciede botão ou germe da visão futura, tanto mais diminui a tensão hostil entre ointelecto e a fé, quanto mais aquele se assemelhar à intuição, e quanto mais estase aproximar da visão. 

O homem primitivo passou do Éden do inconsciente para o mundo do semi-inconsciente intelectual; o homem cristificado passa dessa semiconsciênciaintelectual para a pleniconsciência espiritual. A inteligência traça ziguezague,serpentinas, meandros, mil e mil caminhos labirínticos, rumo à verdade - ao passoque a fé não conhece propriamente caminho algum, só conhece o termo da

 jornada, atinge esse termo, sem nenhum espaço intermediário; não calcula, nãoanalisa, não forja silogismos, não pondera argumentos pró e contra — a f é atinge oseu alvo de um jacto, pela simples, ingênua e corajosa reafirmação vital daquiloque Deus afirmou. A fé é por essência um ato de suprema audácia, quase umatemeridade metafísica. O herói da fé joga-se às ondas bravias do mar, de um marignoto e infinito. Não usa flutuadores nem salva-vidas. Não nada ao longo da

praia, prudentemente agarrado aos arbustos, como fazem os nadadores incipientese medrosos; perde de vista todos os litorais do continente dos sentidos e dointelecto, e tanto maior é o arrojo do herói da fé, quanto mais veementes são astempestuosas vagas do oceano divino que o empolgam com sua irresistívelsedução. 

Devido a essa sublime audácia é que a fé nos parece algo de irracional e anti-intelectual. E ela é, de fato, o mais radical e veemente protesto contra certoburguesismo pseudo-espiritual cuja virtude máxima é a "prudência". A fé é, à luzdessa "prudência" burguesa, a maior "imprudência" que imaginar se possa. Poristo agradecia Jesus ao Pai eterno o fato de ter revelado essas coisas divinas ao"simples e pequeninos" e ocultado aos "doutos e entendidos". Estes últimos, por viade regra, obstruem a tal ponto o caminho que nada mais enxergam do termo da

 jornada; as montanhas dos seus argumentos intelectualistas lhes ocultam toda e

Page 67: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 67/82

67

qualquer realidade divina. O excesso do seu intelectualismo envolve em espessosnevoeiros o objetivo da intuição espiritual. 

Para que esses "doutos e entendidos" possam crer, é necessário que primeirose desintoxiquem da sua filosofia intelectualista; que reduzam a uma ingênua enatural simplicidade o complexo artificialismo da sua vida interior; que se tornem

como crianças, porque, segundo as palavras do Mestre, só assim é que entrarão noreino dos céus... O presente século, unilateralmente intelectualizado, tem de ser por força um

século distanciado da fé. Há, todavia, alviçareiros indícios de que estamos preludiando um período de

conquista espiritual. A intuição está ganhando terreno. O pleni-homem éintuitivo, e por isto nada sabe desse doloroso conflito metafísico entre o intelecto eo coração; o "segundo Adão” é o homem intuitivo por excelência. 

***

O homem que consegue harmonizar o intelecto e o coração, aproximando-osda intuição e da visão das supremas realidades, adquire um novo modo de conhecer,que não é nem ciência nem fé. 

Que é, então? É uma vivência, espécie de experiência íntima, profundamente vital, não

científica nem religiosa (no sentido comum do termo), mas intensamente real,essencial, cósmica, divina. Temos, inegavelmente, dentro de nós, como já foi dito, uma faculdade com a

qual aprendemos as supremas realidades, faculdade cuja íntima natureza émisteriosa. Essa faculdade é o reflexo do cosmos divino dentro do Eu, umaespécie de consciência cósmica, universal, divina. É uma base infinitamente ampla.Tudo que sobre ela construímos — a ciência, a fé, etc. — é sempre menos largo queessa base.

Por meio dessa base profunda e vasta está o homem ligado ao cosmos, isto é,a todas as demais realidades, quer materiais, quer espirituais e divinas.

***

O homem, na vida presente, depois de harmonizar o intelecto e a f é pelavivência, chega a um ponto em que a "ex-sistência" (existência) (1) das coisasespirituais e divinas lhe parece antes uma "in-sistência". O que o convence dessassupremas realidades não é tanto aquilo que está "ex" (fora), mas, sim, aquilo queestá "in" (dentro). Para esse homem, a "in-sistência" ou "imanência" é o fatorprimário e decisivo, ao passo que a "ex-sistência" (existência) ou "emanência"(transcendência) lhe é secundária e acidental.

(1) A palavra "existência", ou primitivamente "exsistência", é formada da partícula "ec" ou "ex" (fora), e"sistere" (colocar) — isto é, "aquilo que está colocado para fora", ou seja, o que é visível ecognoscívelmente acessível. Sendo que o homem intuitivo se guia de preferência pela realidade interna

Page 68: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 68/82

68

das coisas ou de seu próprio Eu, poderíamos designar esse modo de ser e conhecer pela palavra "in-sistência", no sentido de "realidade interna".

É este, aliás, o curso de toda a cultura superior da humanidade: do "ex" parao "in", de fora para dentro, da periferia para o centro, da transcendência para

imanência. Se fosse possível, na vida presente, uma perfeita sintonização entre a ciência ea fé, ou seja, uma perfeita sublimação da ciência em intuição, e da fé em visão —estaria solucionada a tragédia metafísica do homem. Mas essa perfeitasintonização não é possível, por ora, porque é assaz precária a nossa potênciaintuitiva, e a visão, quando existe, se restringe a uns poucos momentos de vidênciasobre-humana. 

Por isto, continua a tragédia metafísica do homem pensante que queira crer. Pascal dá a entender que o seu crer se resume num "querer-crer", o que é

perfeitamente compreensível em um homem como ele, que possuía em alto grau ainteligência das matemáticas e um apurado senso de objetividade. 

Esse "querer-crer", esse sincero desejo de fé, é talvez a única modalidade decrer para muitos homens do presente século. E, como Deus é um Deus de bondadee indulgência, que "não quebra a cena fendida nem apaga a me dia fumegante", éde esperar que ele diga também a esses mártires da tragédia da fé o que disseàquele doutor da lei, que também era um desses crentes descrentes: 

"Não estás longe do reino de Deus"... Pensam os inexperientes que esse "querer-crer" seja falta de fé, ou uma fé

vacilante, uma espécie de cepticismo ou dubitação universal de Deus e das coisasdivinas. Estão muito enganados. Esse "querer-crer" é uma grande fé; mas, para ohomem de intensa intuição espiritual, toda fé, por mais pujante, é tão deficienteque chega a parecer-lhe quase o contrário. Quem viu um foco de 1.000 graus, etem nas mãos apenas uma lâmpada de 100 graus, quase que se arreceia de chamar"luz" a essa pobre lanterna, que, para outros, de experiência menos luminosa,representa, possivelmente, o mais deslumbrante foco que eles possam conceber. 

Provavelmente, esse modesto e doloroso "querer-crer" de Pascal é, narealidade, um "crer" mais firme e convicto do que o "crer" de muitos outros quenunca passaram por essas dores  espirituais, e isto, não por terem uma fé maisfirme, mas por não saberem avaliar a, enorme distância que vai da pequenarealidade ao grande ideal.

Quem crava à distância de mil metros a extrema baliza do seu ideal, sente-semuito satisfeito e seguro de si, quando atinge a oitocentos metros; a sua satisfaçãoé, por assim dizer, quatro vezes maior do que a sua insatisfação (800 para 200!)

— mas quem cravou a meta a um milhão de metros, mesmo que percorra mil, dezmil ou cem mil metros, tem sempre a dolorosa impressão de estar muito longe doseu ideal, uma vez que o espaço não percorrido é muito maior do que o caminhovencido. 

A distância que vai da realidade ao ideal é a bitola da nossa infelicidade! O "querer-crer" de um espírito penetrante e de uma alma vasta como Pascal só

poderá ser ideal em toda a plenitude. Esta última hipótese é impossível na vidapresente, ao passo que a primeira supõe um espírito medíocre e obtuso, incapaz deenxergar algo para além das acanhadas fronteiras de sua vida quotidiana. Demaneira que não há, para o espírito clarividente, outra alternativa senão a desofrer o martírio da sua própria espiritualidade, a incompreensão e,

possivelmente, a pecha de incrédulo ou herege, por parte de outros homens maissatisfeitos com o pouco que enxergam e ignorantes de muito que ignoram. 

Page 69: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 69/82

69

O "querer-crer" de um espírito penetrante de uma alma vasta como Pascal sópoderá ser entendido e devidamente aquilatado por um homem de igualpotencialidade e dinamismo espiritual. 

O tacteante "cepticismo" de muitos homens, aparentemente incrédulos ouindiferentes em matéria de religião carimbada, revela, não raro, maior potencial

de fé do que o farto e intolerante dogmatismo de muitos outros que nuncaadivinharam mundos de infinita grandeza, para além do horizonte do seu compla-cente burguesismo espiritual. 

Há muitos "descrentes" mais crentes que certos "crentes"...

Page 70: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 70/82

70

 

Cristianismo Político- 

Hierárquico — Ou Cristianismo Espiritual 

Místico?

Na pessoa e obra de Pascal reviveu a humanidade dramaticamente o maiorproblema da sua história espiritual. O silencioso eremita de Port-Royal colocou ahumanidade mais uma vez em face desse dilema secular e milenar: Cristianismopolítico-hierárquico — ou cristianismo espiritual-místico?

Pascal nunca teve intenção de combater a igreja católica ou seus legítimoschefes. Se houve jamais, repetimos, um católico sincero, convicto, fervoroso,humilde, caridoso e desinteressado, então foi Pascal. Mas para ele, a verdadeiracatolicidade, que é cristianismo, é algo infinitamente superior à forma externa ehumana que a igreja possa assumir, neste ou naquele período, na pessoa deste oudaquele chefe hierárquico, nesta ou naquela orientação teológica ou exegética. Paraalém de todos os fenômenos religiosos existe a RELIGIÃO. Acima de todas asvicissitudes temporárias das igrejas cristãs existe o CRISTIANISMO. Pascal crênuma Catolicidade Cósmica, Eterna, Divina. Por amor a essa Igreja, que ele viveunuma profunda experiência pessoal, está disposto a trabalhar e sofrer, e, se

necessário, entrar em luta, com todo e qualquer elemento que ouse amesquinhar agrandeza e formosura dessa Igreja de Deus. O título que encima esta página é o problema máximo que, durante séculos,

agitou a igreja de Israel, culminando, no tempo de Jesus Cristo, na vitória daorientação político-hierárquica, que assinala a maior calamidade espiritual de Israele marcou a ruína definitiva da sinagoga. 

Quem conhece a história espiritual de Israel sabe que vão através dela duascorrentes paralelas, que poderíamos chamar o sacerdotismo e o profetismo (1}. 

O sacerdote concretiza o elemento hierárquico — o profeta, o elementoespiritual. 

Os sacerdotes clamavam, ante de tudo, por uma poderosa organização

hierárquica, social, política, jurídica; e nesta organização, externa e humana, viameles a salvação da religião. Era necessário que a religião impressionasse o mundocom a exibição de seu poder, com os esplendores do seu culto, da sua liturgia. Eratambém esta a principal forma "missionária" da religião sacerdotalista: impres-sionar os goim, os de fora, que visitassem Jerusalém, com o deslumbrante fenômenodo templo, dos sacrifícios e de um sacerdócio admiravelmente organizado. 

(1) Tomamos a palavra "profeta" em sua acepção primitiva de "intérprete" ou "locutor" de Deus — enão no sentido posterior, de alguém que prediz eventos futuros. O papel essencial dos vates de Israel era receberas mensagens divinas e transmiti-las ao povo, interpretando-as ao mesmo tempo, segundo o espírito de seuAutor. 

Page 71: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 71/82

71

Os profetas, porém, esses incompreensíveis videntes e intransigentes arautos daDivindade, tinham outra idéia da religião. Verdade é que nem sempreimpugnavam os esplendores externos da religião; reconheciam que a religião deviadesentranhar-se também em atos externos e possuir a sua organização hierárquica,política e social — mas nenhum deles via nisto a alma e essência da religião. Parao profeta, religião era algo essencialmente espiritual, interno, divino; uma como quedefinitiva e incondicional rendição da creatura a seu Creador, uma completa,absoluta e irrestrita entrega do homem a Deus, entrega essa que se manifestava navida quotidiana em forma de uma ética universal, no culto da justiça, da verdade,da sinceridade, da pureza, do amor sem limites. 

Os sacerdotes insistiam, antes de tudo, na teologia, liturgia e hierarquia — oprofeta clamava por uma vida espiritual, por um renascimento em Deus. 

Por isto, muitos dos profetas da lei antiga foram hostilizados e mortos pelosadeptos do sacerdotismo. Quase todos os profetas, como, mais tarde, o maior deles,João Batista, eram homens espiritualmente solitários, que, na sua imensa solitude,"clamavam no deserto", ainda que ninguém os ouvisse, ou seus clamores des-

pertassem eco apenas em uma ou outra alma receptiva; eram como estranhos blocoserráticos, arrancados por mão invisível das montanhas eternas e arremessados àvasta planície da vida, muitas vezes ao meio de espíritos rasteiros e medíocres. 

Foram os profetas, e não os sacerdotes de Israel, que conservaram acesa naalma da nação as grandes revelações de Jeová e a suprema expectativa de umMessias vindouro. Quando, com Malaquias, expirou o último dos profetas da leiantiga, 400 anos antes da vinda do Cristo — começou a grande noite. .. OSacerdócio, sem o contrapeso espiritual dos profetas, começou a dominar comirrestrito poder, e durante esses quatro séculos desabou sobre Israel a maiorcatástrofe espiritual da sua história: perdeu a noção de um Messias espiritual queviesse libertar o homem da escravidão do pecado, e começou a suspirar por um

Messias político que restabelecesse o esplendor político de Israel e expulsasse oinvasor estrangeiro. No tempo de Cristo, como sabemos pelos Evangelhos, essadecadência espiritual atingira o auge, e por isto, não realizando Jesus Cristo as aspi-rações políticas de Israel, a sinagoga em peso o rejeitou como não sendo overdadeiro Messias que eles esperavam. João Batista, que tentou reatar a idéiaespiritual dos profetas antigos, proclamando um redentor espiritual, foi per-seguido pelos sacerdotes de Israel, que, como diz Jesus, "não quiseram andar aosfulgores da sua luz", que acabou por se extinguir no cárcere de Maqueronte.

A rejeição e morte do Messias foram a consequência final do predomínio dosacerdotismo sobre o profetismo, a derrota do elemento espiritual e místico, e avitória do elemento político e hierárquico.

Os nossos dias revivem, em grande parte, os tempos trágicos da sinagogadecadente. Ninguém que tenha olhos para ver pode deixar de verificar que grandeparte do catolicismo romano de hoje segue o mesmo caminho que levou à ruína aigreja de Israel: hipertrofia do elemento político-hierárquico - - e atrofia doelemento espiritual-místico. 

Por outro lado, temos o cristianismo evangélico cujo empenho máximo éfornecer ao homem um conhecimento completo do corpo da Bíblia, considerando ohomem tanto mais religioso e cristão, quanto mais perfeito conhecedor for dos fatosda revelação do Antigo e do Novo Testamento. 

É bem verdade que o conhecimento das grandes revelações que Deus fez àhumanidade através dos séculos é, em geral, um grande adjutório para uma vidaprofundamente cristã e espiritual, mas não é ainda essa vida. Pode alguém saberde cor a Bíblia toda e, contudo não ser um homem espiritual e cristão — como, por

Page 72: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 72/82

72

outro lado, também pode alguém cultivar com absoluta perfeição toda a liturgia daigreja católica, e não ser bom cristão. 

Cristianismo não é simplesmente ética, nem liturgia. O Cristianismo é antes e acima de tudo, uma grande realidade sacral, um

fenômeno essencialmente divino que se projetou para dentro deste mundo, atravésda pessoa de Jesus Cristo. Este caráter ontológico e metafísico do Cristianismo eessencial à sua definição. Não é uma idéia, não é um símbolo, não é um sistemaético, não é um complexo litúrgico — é uma estupenda REALIDADE, uma infinitae divina SACRALIDADE.  

O que Jesus disse a Nicodemos naquela memorável noite em Jerusalém é aalma do Cristianismo: uma VIDA DIVINA. E o caminho para alcançarmos estavida divina chama-se RENASCIMENTO PELO ESPIRITO. Nascer quer dizerreceber a vida. Renascer significa nascer de novo, receber uma nova vida,diferente da vida natural que o homem recebeu através de seus pais. "O que nasceda carne é carne — mas o que nasce do espírito é espírito." O autor e a causaeficiente dessa vida nova é, pois, o espírito de Deus, Deus mesmo. O Espírito de

Deus não pode dar senão vida espiritual e divina. Receber essa vida divina e desenvolvê-la - isto é que é Cristianismo. Assim como a criança nascitura nada pode contribuir para o seu nascimento,

dependendo inteiramente dos pais — assim também não pode o homem dar a simesmo essa vida espiritual e divina, que lhe é dada gratuitamente por Deus, comoautor, causa e doador único dessa vida. O homem pode, porém, aumentar essavida divina, assim como a criança, depois de nascer, pode aperfeiçoar a vida que ospais lhe deram. O homem não deve praticar "boas obras", para receber essa vidadivina — que é  absurdo - mas deve praticá-las,  porque recebeu essa vida,gratuitamente. 

O Verbo eterno, Jesus Cristo, "veio ao mundo, e a todos os que o receberamdeu-lhes ele o poder de se tornarem filhos de Deus, os que nasceram, não dosangue, nem do desejo da carne, nem do desejo do varão, mas de Deus".  

Essa vida dada por Deus, vivida em Deus e para Deus - - é o que se chamaCristianismo. 

Pascal teve dessa vida divina uma profunda e inexplicável experiência pessoal,naquela noite de 23 a 24 de novembro de 1654, quando escreveu numa folha depapel, que levou consigo até a hora da morte, estas palavras: "Desde as dez emeia até cerca da meia-noite... FOGO... Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus deJacó... Não o Deus dos filósofos e dos cientistas... Certeza... Certeza...Emoção... Alegria... Paz... Teu Deus será meu Deus". 

Nunca revelou à pessoa alguma o que lhe aconteceu nessa noite luminosa, masfoi a noite da sua definitiva conversão ao Cristianismo. Nessa noite nasceu o Pascalcristão, quando o Pascal humano e intelectual já contava trinta anos. Desde então viveu Pascal unicamente para esta grande realidade espiritual, paraesta infinita sacralidade divina. Desde então se tornou ele intransigente e nãotolerava nenhuma outra concepção do Cristianismo, por mais bela que parecesse epor mais célebre que fossem os seus defensores. Para ele, ser cristão era ternascido de Deus e viver essa nova vida em Deus. Por este seu cristianismotrabalhou, lutou e sofreu Pascal. Por amor dele arrostou os ódios de umapoderosa Ordem religiosa e aceitou todos os anátemas que lhe lançaram os quetinham outra ideia do cristianismo. 

Bem sabia Pascal que não podia comunicar a sua experiência íntima a quemnão tivesse tido experiência igual; sabia que, teológica e hierarquicamente, seria

Page 73: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 73/82

73

derrotado — mas sabia também que da firme e sincera afirmação de uma grandeexperiência cristã resultaria maior benefício espiritual para a humanidade do queda elaboração de eruditas teses sobre Cristo e o Cristianismo. 

Experiência cristã — é disto que o mundo de hoje precisa. Não é a teologia queo pode cristianizar. Ninguém se converte, ninguém se cristianiza intimamente,

ninguém renasce em Deus, pelo fato de ouvir belos sermões ou ler esplêndidoslivros sobre as coisas divinas. Se o homem não tiver um encontro pessoal comDeus, uma experiência religiosa individual, íntima, profunda, incomunicável,mística — não é cristão, nem religioso, ainda que recite os mais ardentes atos defé e acompanhe todos os atos culturais da sua religião. Não renasceu do espírito epara o espírito. 

A cristianização da humanidade é, em última análise, a cristificação dohomem, e esta é uma questão de experiência individual. Não há conversão demassas — só há conversão de indivíduos. Mas um indivíduo realmente cristificadoarrasta consigo milhões de outros; basta que possua suficiente "voltagem"espiritual. 

A maior energia do Universo não está na veemência da tempestade ou dosterremotos, não está em erupções vulcânicas ou na violência do raio — a maiorenergia do Universo está dentro de um átomo invisível. Quem conseguir penetrardentro desse Nada infinito terá nas mãos a energia atômica, que excede toda equalquer outra forma de energia. 

Quando o homem vive o seu encontro pessoal com Deus, quando Deus penetrano íntimo centro do Ego humano — então se dá a grande "explosão", uma espéciede "desintegração atômica". Então abre-se o homem, desfaz-se de si mesmo,"desegofica-se", diviniza-se, integra-se em Deus...E nesse processo de"desegoficação" e divinização libertam-se todas as energias latentes do homem. E,uma vez que esse homem deixou de pertencer ao Eu, passando a ser de Deus, passa aser também de todos os filhos de Deus, e o mundo inteiro recebe das energias

libertadas por essa explosão do átomo humano...  Pascal é um excelente modelo para todo homem que queira, de fato, viver o

seu cristianismo e encontrar-se pessoalmente com Deus...

Page 74: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 74/82

74

 

Diluindo-se em Deus...

O analfabeto ou principiante na espiritualidade considera a Deus como umser longínquo, transcendente, que habita para além das nuvens e das estrelas dofirmamento. A esse Deus longínquo envia ele, sobretudo quando em apuros, os seusclamores, as suas preces, que — não se sabe de que modo -chegam ao conhecimentodesse Ser Misterioso e sempre distante, se é que chegam... E daí, desse ignotoalém, vem auxílio, em alguns casos, ao passo que em outros casos está "perdidotodo o trabalho". 

Assim pensa e age o homem inexperiente. E que admira, afinal de contas, quedestarte proceda a maior parte dos homens? Da ideia de um Deus transcendente à experiência do Deus imanente vai tão

enorme distância, medeiam tão profundos abismos, que milhares e milhões dehomens não conseguem jamais realizar essa jornada da longínqua transcendênciaà propínqua imanência. E a principal dificuldade não vem da Religião, mas simdas religiões. 

Essa viagem, da periferia para o centro, parece mais difícil que uma subidaao Himalaia, um vôo estratosférico, uma expedição ao coração do Saara ou aocentro da terra. É verdade que Jesus disse, com absoluta clareza: "O reino deDeus está dentro de vós" — mas o homem, de tão desorientado, não cessa de

buscar o seu Deus fora de si e fora do mundo. E, o que é mais estranho, muitos têm medo de admitir um Deus que estejadentro deles. Não lhes parece bastante divino esse Deus. Receiam que seja umpseudo-deus por demais humano, talvez um Eu mascarado em Divindade... 

Outros, mais felizes, regressando de exaustivas peregrinações periféricas,encontram, enfim, no centro do Eu, o Deus imanente de que Jesus falava. E, pormaior que seja a sua fome de divinização, julgam cometer um como que suicídio doseu Eu individual, se integrarem o seu Eu no oceano imenso da divindade, comouma pequena gota de água se desfaz e perde na imensidade do oceano... Fartos enauseados do seu Ego, que tanta infelicidade lhes trouxe, anseiam por se"desegoficar" o mais depressa e o mais radicalmente possível. 

E esses sinceros bandeirantes da divindade, depois de convertidos daperiferia para o centro, receiam que a vida espiritual, que é o início da visãobeatífica e da eterna fruição de Deus, seja uma completa e irrevogável absorçãodo Eu por Deus, uma total despersonalização do próprio ser.  

Essa despersonalização, é claro, consistiria na extinção da consciênciaindividual. O ser humano deixaria de existir como tal, como um indivíduoespecificamente humano, consciente do seu Ego, embora continuassem a existir assuas partes integrantes, dissolvidas e dispersas na intérmina vastidão daconsciência divina. 

O nirvana do Budismo parece (1) equivaler a essa desintegração daconsciência humana. Só nessa integração do Eu em Deus é que o brâmane encontra

paz, sossego e definitiva solução de todos os angustiantes problemas da vidaterrestre. 

Page 75: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 75/82

75

E, no entanto, essa integração em Deus não é uma extinção do Eu. Quem lê as obras dos grandes místicos do Cristianismo, encontra a cada passo

expressões que parecem insinuar essa integração da consciência em Deus, emboraos seus autores não tenham, certamente, propugnado ideias panteísticas. Mas, oque eles experimentam é um inefável "panenteísmo" — Deus em tudo e tudo em

Deus...  O certo é que a eterna e perfeita felicidade do homem não pode consistir nadefinitiva destruição daquilo que é precisamente o característico do seu ser, a suaconsciência individual.

(1) Dizemos "parece", porque a mais exata interpretação de "nirvana" não é extinção do indivíduo mas sim

sua integração no Todo.  Esse foco do Eu não pode jamais desfocalizar-se, nem mesmo a favor do mais

poderoso Tu que existe, o Tu divino. Uma alma inconsciente não seria, em casoalgum, uma alma feliz, porquanto seria uma não-alma, um não-Eu humano. Orapara que um ser possa ser feliz, é necessário que exista especificamente com esseser. O homem, essencialmente consciente, só pode ser feliz na suprema perfeição da

sua consciência individual. Por outro lado, é realmente difícil ao nosso fraco intelecto conceber comopossa o Eu humano entregar-se sem reserva ao Tu divino, "perder-se em Deus"sem perder o seu Eu. 

De fato, devemos "perder-nos em Deus". "Quem perder a sua alma por minha causa salvá-la-á — mas quem a quiser

salvar perdê-la-á" — não foi assim que disse o Mestre dos mestres l O mais alto grau de salvação e beatitude humana consiste, pois, na sua

"perdição em Deus". Oh, deliciosa e bendita — essa perdição!... Oh, morte querida - esse afogamento em Deus!...  Oh, dulcíssima embriaguez — essa, da alma inebriada da Divindade!...  

Deve, pois, haver compatibilidade entre a retenção da consciência individual e suaintegração em Deus. O que ao intelecto parece paradoxal e impossível, deve serpossível numa zona que ultrapassa as especulações da nossa matemática analítica.Assim como é possível um "corpo espiritual", conforme prova o fato daressurreição do Cristo, assim deve ser possível também o espírito humano integrar-se completamente na divindade sem perder a sua consciência individual,potencializando-a antes e elevando-a a uma verdadeira superconsciência.

***Quando o homeopata dilui um grama de essência vegetal em dezenas, centenas

ou milhares de litros de água ou outro líquido — que é que fica da primitivaseiva vegetal? Será possível afirmar que, numa determinada grama de água tiradadesse enorme reservatório ainda exista algo da primitiva essência terapêutica? 

Praticamente, diríamos nada existe. Nem uma molécula, nem um átomo sequer.E, no entanto, é sabido que essa solução exerce poderosos efeitos. Existe mesmo oprincípio: quanto mais se diluir a primeira essência vegetal, tanto mais poderosoé o seu efeito. O que nos faz suspeitar que não é propriamente a matéria que produzefeito curativo, mas algo imaterial, digamos, a energia, o elemento dinâmico quena matéria existe, ou que é, possivelmente a própria essência da chamada matéria.  

O que cura é a energia, dizem os homeopatas. 

Page 76: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 76/82

76

Nem isto é bem exato. O que cura o corpo é unicamente a alma. Só podereconstruir o corpo quem o construiu. Ora, desde o momento da concepção, é aalma que constrói o seu corpo. Nenhum outro fator é capaz disto. Por isto, écerto que também é a alma o único fator capaz de reconstruir o seu corpo, quandoparcialmente destruído pela moléstia, ou mesmo quando totalmente destruído pela

chamada morte. A ressurreição da carne, de que as religiões fazem um dogma — ede que os analfabetos do espírito fazem escárneo — é um simples postulado daharmonia do universo. Seria absurdo negar à alma, essencialmente construtora, opoder reconstrutor. Entretanto, não vamos tratar aqui desse assunto tãoimportante e sedutor. Limitemo-nos a encarar o fato inegável de que é a alma, enão o "remédio" que cura o corpo. O "remédio", é certo, tem a sua função, que é ade desobstruir o caminho para que a alma possa passar e desempenhar a suaatividade reconstrutora; pois, não raro, a insipiência do homo sapiens obstrui essecaminho, impedindo o livre trânsito da alma e provocando, assim, distúrbiosorgânicos. 

Quanto menos material for o "remédio", quanto mais energético e dinâmico,tanto mais se aproxima ele da natureza da alma, e tanto mais seguramente podeagir e desempenhar o seu trabalho de precursor e desobstruidor.  

Mas, a que vem essa digressão terapêutica? Perdoe-se-nos essa alegoria, um tanto grosseira e ingênua, destinada a

ilustrar tão elevado assunto como o que estamos versando. A essência duma seiva vegetal, diluindo-se num meio absorvente, não perde

as suas propriedades características; pelo contrário, mais ainda acentua, peladiluição, essas propriedades. De modo análogo, não produz a diluição dopequeno Eu humano no oceano imenso do Tu divino uma destruição daconsciência individual. Antes potencializa a consciência humana pela imersão naconsciência divina. Quanto mais profunda e intensamente a alma se "perder" emDeus, tanto mais salvará e aumentará a sua consciência individual. Se assim nãofosse, se o ingresso e a submersão na atmosfera divina não aumentasse esuperpotencializasse a natural capacidade da alma consciente, como poderia o serhumano resistir a essa tempestade divina, sem sucumbir e ser aniquilada?  

Praticamente, não deve a alma humana, na sua contemplação espiritual,recear, de modo algum, que possa exceder dos limites, que possa diluir-se de fatoe afogar-se em Deus, ao ponto de se tornar inconsciente e, portanto, inexistentecomo indivíduo humano. É impossível que tal coisa aconteça. Consciência serásempre consciência, e não chegará nunca a ser inconsciência. Onde começa aconsciência começa a indissolubilidade, a imortalidade do ser. Ser que uma vez sefocalizou em consciência nunca mais poderá desfocalizar-se em inconsciência. 

O estado do espírito humano integrado em Deus, longe de ser inconsciência, éantes superconsciente, representando um estado consciente na mais alta potência.Na vida atual, devido à nossa fraqueza de compreensão, o estado de consciênciaintelectual nos parece ser o estado mais perfeito do ser humano. Asuperconsciência, porém, se revelará, mais tarde, como o mais perfeito grau daconsciência humana. Um Ego despersonalizado seria um não-Ego; mas um Egodivinizado ou integrado em Deus, bem merece o nome de super-Ego.

***

Page 77: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 77/82

77

Para que essa misteriosa integração em Deus atinja o máximo grau da suaintensidade, na vida presente, uma coisa é necessária e absolutamente indispensável:que a alma se reduza à expressão mais simples, que solva todos os seus complexose todas as suas complicações mundanas e egoísticas; que revogue, neutralize e anuletodas essas mil e uma ramificações através do mundo profano e antidivino; que

desnasça, por assim dizer; que estabeleça dentro de si um grande e silenciosovácuo. Assim como aquela essência vegetal sã se integra plenamente na águacircunfusa, depois de se dissolver e como que neutralizar a si mesma, parecendoaniquilar-se, assim também só poderá a alma fluir livremente para dentro dooceano divino depois de se "desegoficar" e revogar todos os seus compromissosegoísticos, uma vez que essa integração na divindade é uma espécie derecosmificação e um regresso à primei ra fonte de todas as coisas.

Sem amor não há redenção, porque sem amor não há integração em Deus.Todo egoísmo é desamor e antiamor — portanto, irredenção. 

O homem que atingiu o seu centro espiritual e ali encontrou a Deus e o reinodos céus, é o único homem que pode realmente fazer bem a seus semelhantes.

Da periferia não se pode atuar eficazmente sobre a periferia; só do centro épossível uma atuação eficiente sobre a zona periférica. E assim resulta o estranhoparadoxo, que o homem que se isolou temporariamente de seus semelhantes poramor a Deus é o único que pode realmente ajudar a seus semelhantes —porque age de dentro para fora , do centro para a peri feri a...  

Se é possível, entre o homem e Deus, uma união íntima só é ela possível, comodizíamos, sobre a base de uma absoluta vacuidade da parte do homem. Onde nãoexiste essa vacuidade, não existe a necessária polaridade, sem a qual não é possívelunião alguma. Só se pode unir o que é unível; uníveis, porém, só são dois seresheterogêneos, se existe essa polaridade ou potencialidade complementar. 

Entretanto, não basta uma vacuidade puramente passiva ou negativa. Esta é

apenas condição indispensável para uma vacuidade ativa e positiva, umamisteriosa "sucção" entre a vacuidade e a plenitude. Com outras palavras, énecessário que o homem, evacuado do Eu, sinta o desejo da plenitude de Deus. Aconsciência de uma grande vacuidade, sem a possibilidade e esperança de umagrande plenitude, seria um desastre para o homem, um envenenamento da suapersonalidade, uma verdadeira catástrofe metafísica. O "horror vacui", de que falaa ciência antiga, seria aqui um fato, e seria um vácuo literalmente mortífero.  

Em todo homem normal, a consciência do seu vácuo gera ao mesmo tempouma grande receptividade, que não é senão a capacidade e o desejo dumaplenitude. Esse delicioso tormento, essa angustiosa inquietude metafísica, essa felizinfelicidade que todo homem pensante percebe dentro de si, nos melhores e mais

sinceros momentos da sua vida - que é isto senão a sensação duma grandevacuidade e a consciência duma plenitude possível e em vias de realização? 

Digo, "em vias de realização", porque, na vida presente, talvez nunca venha aser de todo real a divina plenitude a derramar-se na humana vacuidade. Nahipótese mais feliz, é um contínuo fluir e refluir, um enchimento parcial efragmentário, sem nunca chegar a um termo definitivo. A capacidade espiritualda alma é, de per si, ilimitada. Por outro lado, a abundância das torrentes divinastambém é sem limite. Possivelmente, quando a alma estiver liberta do corpo,chegará essa torrente divina a encher toda a potencialidade receptiva do espíritohumano, comunicando-lhe beatitude perfeita e absoluta. No estado presente, apesarda ilimitada capacidade potencial do espírito, não é ainda possível esse enchimentocabal e — coisa estranha! — em vez duma progressiva beatitude que o crescentefluir da divina torrente deveria produzir no homem espiritual, aumenta nele osofrimento na razão direta da sua abundância. Esse sofrimento não é,

Page 78: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 78/82

78

propriamente, produzido pela torrente divina considerada em si mesma, masresulta da crescente pressão que as impetuosas águas da divindade exercem sobreo leito humano em que se lançam e que, por mais largo que seja, é sempreestreito demais para conter em sua humana finitude a infinitude de Deus. 

Na confluência do divino e do humano reside a dor...  

Mas esse sofrimento espiritual, como dissemos, é estranhamente delicioso esuperior a todo e qualquer prazer não espiritual. O que esse sofrimento tem deamargo vem da estreiteza humana, o que ele tem de suave vem da largueza divina.Para que essa experiência íntima fosse integralmente deliciosa e beatífica, serianecessário que o leito do nosso rio fosse suficientemente amplo para conter semdificuldade a divina plenitude — o que é simplesmente impossível na vidapresente. 

Dentre os homens que este planeta habitaram existiu, provavelmente, um sóque não sentiu a dolorosa incapacidade de abranger em si a abundância da divinaplenitude — e esse homem era um homem divino, nele "habitava substancialmentetoda a plenitude da divindade".

***

A alma, uma vez liberta da ilusão do pseudo-Eu, alargará quase ao infinito oslimites da sua capacidade receptiva. Por vezes, já na vida presente, é tão grande aabundância divina que a alma humana se sente como que fora do corpo; "êxtase"lançasse com tamanha veemência para dentro do leito da alma humanadevidamente evacuada que transbordasse, impetuosa, por todos os lados, alagandoas margens e arrastando consigo tudo quanto encontra em sua passagem. Êxtase!

Posto fora de si mesmo...

***

Pascal tinha uma noção extraordinariamente clara da necessidade dessaevacuação do Eu como condição indispensável para o advento da plenitude deDeus. A tal extremo chegou a sua "humildade" - nome comum que se dá a essavacuidade — que não admitia homenagens da parte de quem quer que fosse.Qualquer homenagem lhe parecia mentira e insinceridade para consigo mesmo.

Se os escritos de Pascal não revelam arroubos místicos, os últimos anos dasua vida são uma grande mística. Chega a dizer que o estado natural do cristão é aenfermidade. Os últimos dois anos de sua vida, de 37 a 39 anos, são de uma quasecompleta inatividade; não lhe permitia a saúde precária o menor esforço físico ouintelectual. Só Deus sabe o que esse homem, dotado de uma extraordinária dinâ-mica natural, sofreu com essa forçada passividade! Entretanto, ninguém se lembrade ter ouvido dos lábios de Pascal a menor queixa ou o mais ligeiro assomo deimpaciência. 

Estabelecido o grande vácuo do Eu, integrou-se esse homem em Deus, epoderia em verdade dizer com o apóstolo Paulo: "Já não sou eu que vivo - - oCristo é que vive em mim" ...  

Esse fundo místico da vida de Pascal, vai pelas entrelinhas da sua grande obra, e oleitor que saiba de experiência própria o que significa "integrar-se em Deus"

Page 79: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 79/82

79

compreenderá que o mais profundo segredo da fascinação desse livro fragmentário é aintensa potencialidade mística de seu autor. Livro verdadeiramente imortal não é aquele quefoi inteligentemente excogitado e elaborado por um homem douto ou erudito, mas aqueleque foi vivido e sofrido por uma alma integrada em Deus e identifi cada com o Infin ito.

 Nota:

O epílogo da 2ª edição foi retirado pelo autor.

 A antologia contendo 100 pensamentos de Pascal da 3ª edição não foiincluída no presente trabalho. Caso o leitor se interesse contate com Iris Helena

Gomes que será enviado um opúsculo com o referido texto.

 Não foram incluídas as ilustrações contidas na 3ª edição. É óbvio: elas

 dificultariam a impressão.

Email: [email protected]

Page 80: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 80/82

80

 

Texto da orelha da 2ª edição

PASCAL

Blaise Pascal é um dos fenômenos mais estranhos na literatura religiosa mundial.Exímio matemático e físico, converte-se para um cristianismo austeramente ascético e místico- e entra em conflito com a mais poderosa Ordem da sua igreja, os Jesuítas, sem contudoabandonar sua igreja nem ser por ela excomungado.

Porque esse conflito, que não só existe nas célebres "Cartas Provinciais” de Pascal,mas também, embora veladamente, nos seus esplêndidos "Pensamentos"?

E' porque Pascal, após a sua misteriosa iluminação do alto, rejeita certos padrões deética praticados cá embaixo. Repete-se nele o eterno antagonismo entre o  profetismo místico eo sacerdotismo eclesiástico, que já encontramos nas páginas do Antigo Testamento. Aquele éintuitivo-platônico, este é intelectivo-aristotélico. Pascal condensa a sua intuição mística naconhecida frase: “O coração tem razões de que a razão nada sabe". O que ele, segundo aterminologia usual, chama "razão" é o intelecto, essa faculdade analítica unilateral, que seria a"razão pura", de Kant, e não a "razão prática", isto é, a faculdade sintética, onilateral, cósmica,que em linguagem filosófica mais exata chamamos "razão", mas que Pascal denomina"Coração".

De maneira que em. Pascal ressuscita o profundo critério profétíco-platônico-místico-evangélico da certeza imediata do mundo divino, oriunda duma intuição interna claríssima e

insofismável. Por melhor que seja, talvez, o escolasticismo sacerdotal-aristotélico-teológico-tomista para preparar e aplainar os caminhos do reino de Deus, ele não está em condições dedar certeza definitiva e jubilosa, nem pode introduzir o homem nesse misterioso reino daDivindade; o escolasticismo intelectual faz apenas obra de “Virgílio", conduzindo o homemdo Inferno através do Purgatório, mas não faz nem pode fazer obra de” Beatriz", conduzindoo homem para dentro do "Paraíso" — para nos servirmos da maravilhosa alegoria de Dante.

Pascal descobriu em si a "Beatriz" da sua alma cristã e divina, e se incompatibilizoucom os eruditos "Virgílios" da teologia casuística da época, que confiavam nos expedientes daescolástica intelectual e do eclesiastícismo burocrático.

Pode o austero ascetismo do solitário eremita de Port-Royal não representar doCristianismo integral do Evangelho, o certo é que o seu corajoso apelo "de Roma para Deus",e do intelecto para a intuição marcam uma grande etapa no caminho da evolução espiritual dahumanidade.

Page 81: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 81/82

81

Relação das obras do Prof. HUBERTO ROHDEN:

COLEÇÃO; FILOSOFIA UNIVERSALO Pensamento Filosófico da AntigüidadeA Filosofia Contemporânea

O Espírito da Filosofia Oriental

COLEÇÃO; FILOSOFIA DO EVANGELHOFilosofia Cósmica do EvangelhoO Sermão da MontanhaAssim Dizia o MestreO Triunfo da Vida sobre a MorteNosso MestreO Quinto Evangelho - Tomé (tradução e comentários)

COLEÇÃO; FILOSOFIA DA VIDA

De Alma para AlmaÍdolos ou Ideal?Escalando o HimalaiaO Caminho da FelicidadeNovos Rumos para a EducaçãoDeusEm Espírito e VerdadeEm Comunhão com DeusCosmoramaPorque SofremosProblemas do Espírito

Lampejos EvangélicosPanorama do CristianismoLúcifer e LogosEvangelho ou Teologia?A Grande LibertaçãoPelo Prestígio da BíbliaNovo Testamento (tradução do texto grego)Bhagavad Gita (tradução e comentários)Setas na EncruzilhadaEntre dois MundosMinhas Vivências na Palestina, no Egito e na índiaFilosofia da Arte

A Arte de Curar pelo Espírito – de Joel Goldsmith (tradução)OrientandoQue vos Parece do Cristo?Educação do Homem IntegralDias de Grande Paz de Mouni Sadhu (tradução)O Drama Milenar do Cristo e do AnticristoLuzes e Sombras da AlvoradaRoteiro CósmicoImperativos da VidaMetafísica do CristianismoProfanos e IniciadosA Voz do Silêncio

Tão Te King (tradução e comentários)Sabedoria das Parábolas

Page 82: Pascal - Huberto Rohden

5/17/2018 Pascal - Huberto Rohden - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/pascal-huberto-rohden 82/82

82

 COLEÇÃO: BIOGRAFIASPaulo de TarsoAgostinhoPor Um Ideal - 2 vols. (autobiografia)Mahatma Gandhi

PascalJesus Nazareno - 2 vols.MyriamEinstein, o Enigma da MatemáticaO Profeta das Selvas - Vida e Obra de Albert Schweitzer (Prefácio e coordenação)

COLEÇÃO; MISTÉRIOS DA NATUREZAMaravilhas do UniversoAlegoriasÍsisPor Mundos Ignotos

OPÚSCULOSAconteceu entre 2000 e 3000Ciência, Milagre e OraçãoRumo à Consciência CósmicaSaúde e Felicidade pela Cosmo-Meditação