PERRENOUD, Philippe - Construir as competências desde a escola

Embed Size (px)

Citation preview

CONSTRUIR AS COMPETNCIAS DESDE A ESCOLA Philippe Perrenoud Professeur L'Universit de Genve

Sumrio INTRODUO Primeira abordagem 7 Cabeas bem-cheias ou cabeas bem-feitas? 10 A irresistvel ascenso 12 Uma possvel resposta crise da escola? 14 Plano da obra 17 1. A NOO DE COMPETNCIA Trs pistas falsas 19 Mobilizar os recursos: uma estranha alquimia 21 Esquemas e competncias 23 Esquemas constitudos e condutas de pesquisa 25 Competncias, savoir-faire, recursos 27 Analogias e conjuntos de situaes 28 Exerccio e treinamento na formao de competncias 31 O que est em jogo na formao 32 2. PROGRAMAS ESCOLARES E COMPETNCIAS Competncias e prticas sociais 35 procura de competncias transversais 36 Prticas de referncia e de transposio 38 Competncias e disciplinas 40 Entre o "tudo disciplinar" e o "tudo transversal" 42 A transferncia e a integrao dos conhecimentos 44 As conseqncias para os programas 45 A idia de "bloco de competncias" 48 3. IMPLICAES DO OFCIO DE DOCENTE Abordar os conhecimentos como recursos a serem mobilizados 53 Trabalhar regularmente por problemas 57 Criar ou utilizar outros meios de ensino 61 Negociar e conduzir projetos com os alunos 62 Adotar um planejamento flexvel, improvisar 63 Estabelecer um novo contrato didtico 65 Praticar uma avaliao formativa 65 Rumo a uma menor compartimentao disciplinar 67

Convencer os alunos a mudar de ofcio 68 Uma outra formao, uma nova identidade 70 4. EFEITO DA MODA OU RESPOSTA DECISIVA AO FRACASSO ESCOLAR? Reconstruir a transposio didtica 73 Atenuar as divises disciplinares 75 Romper o crculo fechado 76 Criar novas formas de avaliar 77 Reconhecer o fracasso, no construir sobre a areia 79 Diferenciar o ensino 80 Transformar a formao dos docentes 82 CONCLUSO: A RESPEITO DAS ESTRATGIAS DE MUDANA Resistncias muito racionais 84 Assumir solidariamente uma aposta 85

IntroduoAfinal, vai-se escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver competncias? Essa pergunta oculta um mal-entendido e designa um verdadeiro dilema. O mal-entendido est em acreditar que, ao desenvolverem-se competncias, desiste-se de transmitir conhecimentos. Quase que a totalidade das aes humanas exige algum tipo de conhecimento, s vezes superficial, outras vezes aprofundado, oriundo da experincia pessoal, do senso comum, da cultura partilhada em um crculo de especialistas ou da pesquisa tecnolgica ou cientfica. Quanto mais complexas, abstratas, mediatizadas por tecnologias, apoiadas em modelos sistmicos da realidade forem consideradas as aes, mais conhecimentos aprofundados, avanados, organizados e confiveis elas exigem. A escola est, portanto, diante de um verdadeiro dilema: para construir competncias, esta precisa de tempo, que parte do tempo necessrio para distribuir o conhecimento profundo.

PRIMEIRA ABORDAGEMSo mltiplos os significados da noo de competncia. Eu a definirei aqui como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situao, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles. Para enfrentar uma situao da melhor maneira possvel, deve-se, via de regra, pr em ao e em sinergia vrios recursos cognitivos complementares, entre os quais esto os conhecimentos. No sentido comum da expresso, estes so representaes da realidade, que construmos e armazenamos ao sabor de nossa experincia e de nossa formao. Quase toda ao mobiliza alguns conhecimentos, algumas vezes elementares e esparsos, outras vezes complexos e organizados em redes. Assim , por exemplo, que conhecimentos bastante profundos so necessrios para: Analisar um texto e reconstituir as intenes do autor; Traduzir de uma lngua para outra; Argumentar com a finalidade de convencer algum ctico ou um oponente; Construir uma hiptese e verific-la; Identificar, enunciar e resolver um problema cientfico; Detectar uma falha no raciocnio de um interlocutor; negociar e conduzir um projeto coletivo. As competncias manifestadas por essas aes no so, em si, conhecimentos; elas utilizam hipteses, ou mobilizam tais conhecimentos. Embora conhecedor do Direito, a competncia do advogado ultrapassa essa erudio, pois no lhe basta conhecer todos os textos para levar a bom termo o assunto do momento. Sua competncia consiste em pr em relao seu conhecimento do direito, da jurisprudncia, dos processos e de uma representao do problema a resolver, fazendo uso de um raciocnio e de uma intuio propriamente jurdicos. Da mesma maneira, um bom mdico consegue identificar e mobilizar conhecimentos cientficos pertinentes no momento certo, em uma situao concreta que, evidentemente, no costuma apresentar-se como "um problema proposto em aula" para o qual bastaria encontrar a "pgina certa em um grande livro" e aplicar a soluo preconizada. Que o clnico disponha de amplos conhecimentos (em fsica, em biologia, em anatomia, em fisiologia, em patologia, em farmacologia, em radiologia, em tecnologia, etc.) no seno uma condio necessria de sua competncia. Se

estivesse reduzida a uma simples aplicao de conhecimentos memorizados para casos concretos, iria bastar-lhe, a partir dos sintomas tpicos, identificar uma patologia registrada e encontrar, em sua memria, em um tratado ou em um banco de dados, as indicaes teraputicas. As competncias clnicas de um mdico vo muito alm de uma memorizao precisa e de uma lembrana oportuna de teorias pertinentes. Nos casos em que a situao sair da rotina, o mdico exigido a fazer relacionamentos, interpretaes, interpolaes, inferncias, invenes, em suma, complexas operaes mentais cuja orquestrao s pode construir-se ao vivo, em funo tanto de seu saber e de sua percia quanto de sua viso da situao. Uma competncia nunca a implementao "racional" pura e simples de conhecimentos, de modelos de ao, de procedimentos. Formar em competncias no pode levar a dar as costas assimilao de conhecimentos, pois a apropriao de numerosos conhecimentos no permite, ipso facto, sua mobilizao em situaes de ao. O reconhecimento da prpria pertinncia da noo de competncia continua sendo um desafio nas cincias cognitivas, assim como na didtica. Alguns pesquisadores preferem ampliar a noo de conhecimento sem apelar para outros conceitos. Assim que as cincias cognitivas tm conseguido, progressivamente, distinguir trs tipos de conhecimentos: Os conhecimentos declarativos, os quais descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis, constantes ou regularidades; Os conhecimentos procedimentais, os quais descrevem o procedimento a aplicar para obter-se algum tipo de resultado (por exemplo, os conhecimentos metodolgicos); Os conhecimentos condicionais, os quais determinam as condies de validade dos conhecimentos procedimentais. A emergncia das duas ltimas categorias estaria a sugerir que qualquer ao pode reduzir-se a conhecimentos. Melhor seria, no meu entender, aceitar o fato de que, cedo ou tarde, chega o momento em que o especialista provido com os conhecimentos declarativos, procedimentais e condicionais mais confiveis e mais aprofundados deve julgar sua pertinncia em relao situao e mobiliz-los com discernimento. Ora, esse juzo ultrapassa a aplicao de uma regra ou de um conhecimento. Como lembra Pierre Bourdieu:

"Toda tentativa para apoiar uma prtica no que diz respeito a uma regra explicitamente formulada, seja no campo da arte, da moral, da poltica, da medicina ou at da cincia ( s pensar nas regras do mtodo), choca-se com a questo das regras que definem a maneira e o momento oportuno kairos, como diziam os Sofistas da aplicao das regras ou, como se diz to bem, a colocao em prtica de um repertrio de receitas ou tcnicas, em suma, da arte da execuo com a qual inevitavelmente reintroduzido o habitus (Bourdieu, 1972, p. 199-200). Essa arte da execuo ativa um conjunto de esquemas lgicos de um alto nvel de abstrao. Porm, se os especialistas no passassem de pessoas ao mesmo tempo inteligentes e eruditas, eles seriam mais lentos e, portanto, menos eficazes e menos teis. Diante de uma situao indita e complexa, eles desenvolvem determinada estratgia eficaz com rapidez e segurana maiores do que uma pessoa que contasse com os mesmos conhecimentos e tambm fosse "inteligente". A competncia do especialista baseia-se, alm da inteligncia operria, em esquemas heursticos ou analgicos prprios de seu campo, em processos intuitivos, procedimentos de identificao e resoluo de um certo tipo de problemas, que aceleram a mobilizao dos conhecimentos pertinentes e subentendem a procura e a elaborao de estratgias de ao apropriadas. Acrescentemos que a percia supe tambm atitudes e posturas mentais, curiosidade, paixo, busca de significado, desejo de tecer laos, relao com o tempo, maneira de unir intuio e razo, cautela e audcia, que nascem tanto da formao como da experincia. Qual a diferena entre um computador e um campeo de xadrez? O computador pode armazenar em sua memria um grande nmero de jogos, de situaes de jogo e de jogadas eficazes, de regras. Tambm pode calcular mais rapidamente do que um ser humano, o que lhe permite venc-lo em todas as situaes "clssicas", ou seja, repertoriadas. Em uma situao indita, entretanto, um grande campeo ainda pode superar a mquina, pois ele lana mo de esquemas heursticos mais econmicos e mais potentes do que os do computador, principalmente quando recorrem a um pensamento analgico. Da mesma maneira, temos a capacidade de reconhecer em um s olhar uma letra do alfabeto, por mais malformada que seja, tarefa essa para a qual um computador exige uma impressionante

potncia de clculo. O desenvolvimento da inteligncia artificial consiste precisamente em identificar, codificar os esquemas heursticos e analgicos dos especialistas humanos, de maneira a poder simular seu funcionamento. For isso, tornou-se cada vez mais difcil vencer o computador em um jogo de xadrez. A construo de competncias, pois, inseparvel da formao de esquemas de mobilizao dos conhecimentos com discernimento, em tempo real, ao servio de uma ao eficaz. Ora, os esquemas de mobilizao de diversos recursos cognitivos em uma situao de ao complexa desenvolvem-se e estabilizam-se ao sabor da prtica. No ser humano, com efeito, os esquemas no podem ser programados por uma interveno externa. No existe, a no ser nas novelas de fico cientfica, nenhum "transplante de esquemas". O sujeito no pode tampouco constru-los por simples interiorizao de um conhecimento procedimental. Os esquemas constroem-se ao sabor de um treinamento, de experincias renovadas, ao mesmo tempo redundantes e estruturantes, treinamento esse tanto mais eficaz quando associado a uma postura reflexiva.

CABEAS BEM-CHEIAS OU CABEAS BEM-FEITAS?Tal treinamento s possvel se o sujeito tiver o tempo de viver as experincias e analis-las. Por essa razo impossvel, em um nmero limitado de anos de escolaridade, cobrir programas pletricos de conhecimentos, seno abrindo mo, em grande medida, da construo de competncias. Afinal de contas, conhecimentos e competncias so estreitamente complementares, mas pode haver entre eles um conflito de prioridade, em particular na diviso do tempo de trabalho na aula: "A construo de uma competncia depende do equilbrio da dosagem entre o trabalho isolado de seus diversos elementos e a integrao desses elementos em situao de operacionalizao. A dificuldade didtica est na gesto, de maneira dialtica, dessas duas abordagens. E uma utopia, porm, acreditar que o aprendizado seqencial de conhecimentos provoca espontaneamente sua integrao operacional em uma competncia" (tienne e Lerouge, 1997, p. 67).

Desenvolver uma competncia assunto da escola? Ou a escola deve limitar-se transmisso do conhecimento? O debate sobre as competncias reanima o eterno debate sobre cabeas bem-feitas ou cabeas bem-cheias. Desde que essa discusso existe, a escola procura seu caminho entre duas vises do currculo: uma consiste em percorrer o campo mais amplo possvel de conhecimentos, sem preocupar-se com sua mobilizao em determinada situao, o que equivale, mais ou menos abertamente, a confiar na formao profissionalizante ou na vida para garantir a construo de competncias; a outra aceita limitar, de maneira drstica, a quantidade de conhecimentos ensinados e exigidos para exercitar de maneira intensiva, no mbito escolar, sua mobilizao em situao complexa. A primeira viso parece dominar de modo constante a histria da escola obrigatria, em particular no ensino mdio, mas o equilbrio das tendncias est flutuando ao longo das dcadas. O dilema no pra de ser redescoberto, de ser aparentemente decidido, antes de renascer alguns anos depois, sob outros vocbulos. um dilema coletivo, na medida em que o sistema educacional vive, desde seu nascimento, em tenso entre essas duas lgicas, encarnadas por atores que ocupam posies ritualmente antagnicas no campo cultural, O dilema tambm pode envolver qualquer um que no se deixe levar por teses extremistas; para entender o mundo e agir sobre ele, no se deve, ao mesmo tempo, apropriar-se de conhecimentos profundos e construir competncias suscetveis de mobiliz-los corretamente? A figura do especialista o atesta: ele se define, simultaneamente, como um cientista, um erudito, algum que "leu todos os livros" e acumulou tesouros de conhecimentos por meio da experincia; algum que tem intuio, senso clnico, savoir-jaire e o conjunto das capacidades que permitem antecipar, correr riscos, decidir, em suma, agir em situao de incerteza. A pergunta: "Conhecimentos profundos ou percia na implementao?", gostaramos de responder: ambos! O dilema educativo , sobretudo, uma questo de prioridade: sendo impossvel fazer tudo, no tempo e no espao de uma formao profissionalizante inicial ou de uma escolaridade bsica, o que fazer de mais til? Quem, a longo prazo, poderia defender

conhecimentos absolutamente inteis para a ao, em seu sentido mais amplo? Inversamente, quem, hoje em dia, poderia continuar defendendo um utilitarismo estreito, limitado a alguns savoir-faire elementares? Agir em uma sociedade mutante e complexa , antes, entender, antecipar, avaliar, enfrentar a realidade com ferramentas intelectuais. "Nada to prtico corno uma boa teoria", dizia Kurt Lewin, um dos fundadores da psicologia social. Atualmente, o debate escolar deixou de opor os partidrios dos trabalhos manuais e os das lnguas mortas. Por isso, o enfrentamento sobre as prioridades est entre os mais ferrenhos. A discusso remete para concepes opostas da cultura, com mais nfase no modo pelo qual nos apropriamos dele! O debate est organizando-se, h alguns anos, em torno da noo de competncia e da sua pertinncia no ensino geral. A abordagem pelas competncias tem-se desenvolvido nos pases anglosaxes e est ganhando espao no mundo francfono. Na Blgica, o ensino fundamental e a primeira srie do ensino mdio referem-se doravante a blocos de competncias (Ministrio da Educao, 1994). Em Quebec, a abordagem pelas competncias norteou uma reforma completa dos programas dos Colgios de Ensino Geral e Profissionalizante (CEGEP), que esto situados, na organizao norte-americana, entre o liceu e a universidade, a exemplo dos college americanos. Ou seja, a abordagem pelas competncias no particular da frana, ainda que assuma uma postura hexagonal' em torno dos novos programas do colgio, na sua definio francesa. Na verdade, a questo das competncias e da relao conhecimentos-competncias esta no centro de um certo nmero de reformas curriculares em muitos pases, mais especialmente no ensino mdio. No ensino fundamental, a formao das competncias , em certo sentido, mais evidente e envolve os chamados "savoir-faire elementares: ler, escrever, etc. A partir dos oito anos, as disciplinas multiplicam-se, e a problemtica conhecimentos-competncias aproxima-se do ensino mdio.

A IRRESISTVEL ASCENSOAs competncias esto no fundamento da flexibilidade dos sistemas e das relaes sociais. Na maioria das sociedades animais, a programao das

condutas probe qualquer inveno, e a menor perturbao externa pode desorganizar uma colmia, pois ela organizada como uma mquina de preciso. As sociedades humanas, ao contrrio, so conjuntos vagos e ordens negociadas. No funcionam como relgios e admitem uma parte importante de desordem e incerteza, o que no fatal, pois os atores tm, ao mesmo tempo, o desejo e a capacidade de criar algo novo, conforme complexas transaes. Portanto, no anormal que os sistemas educacionais preocupem-se com o desenvolvimento das competncias correspondentes. Ainda assim, essa preocupao no domina constantemente as polticas educacionais e a reflexo sobre os programas. Por que ser que vemos atualmente o que Romainville (1996) chama de uma "irresistvel ascenso" da noo de competncia em educao escolar? Talvez, globalmente, porque as ameaas de desordem e desorganizao esto tornando-se cada vez mais vivas nas pocas de mudana e crise. A explicao mais evidente consiste em invocar uma espcie de contgio: como o mundo do trabalho apropriou-se da noo de competncia, a escola estaria seguindo seus passos, sob o pretexto de modernizar-se e de inserir-se na corrente dos valores da economia de mercado, como gesto dos recursos humanos, busca da qualidade total, valorizao da excelncia, exigncia de uma maior mobilidade dos trabalhadores e da organizao do trabalho. No campo profissional, ningum contesta que os empricos devam ser capazes de "fazer coisas difceis" e que passem por uma formao. A noo de qualificao tem permitido por muito tempo pensar as exigncias dos postos de trabalho e as disposies requeridas daqueles que os ocupam. As transformaes do trabalho - rumo a uma flexibilidade maior dos procedimentos, dos postos e das estruturas - e a anlise ergonmica mais fina dos gestos e das estratgias dos profissionais levaram a enfatizar, para qualificaes formais iguais, as competncias diferenciadas, evolutivas, ligadas histria de vida das pessoas. J no suficiente definir qualificaes-padro e, sobre essa base, alocar os indivduos nos postos de trabalho. O que se quer gerenciar competncias (Lvy-Leboyer, 1996), estabelecer tanto balanos individuais como "rvores" de conhecimentos ou competncias que representem o potencial coletivo de uma empresa (Authier e Lvy, 1996). No mundo do trabalho, a

mudana de vocabulrio reflete uma verdadeira mudana de perspectiva e at de paradigma Entende-se, ento, por que se fala, nas formaes profissionalizantes e de maneira cada vez mais banal, em "referenciais de competncias", uma linguagem bastante familiar entre as empresas e os profissionais do ramo. A formao dos docentes orienta-se por esses referenciais e manifesta, com a criao dos IUFIYI, seu ingresso progressivo - e inacabado - no mundo global das formaes profissionalizantes. As transformaes observveis no marcado de trabalho e nas formaes profissionalizantes exercem, provavelmente, certos efeitos sobre a escolaridade fundamental e sobre a concepo da cultura geral ali prevalecente. No entanto, isso no basta para explicar o uso crescente da noo de competncias no mbito da escola obrigatria. No to simples assim a realidade dos movimentos de idias. Essa moda simultnea da mesma palavra em campos variados esconde interesses parcialmente diferentes. O sistema educacional tem sido construdo sempre "a partir de cima": as universidades e as grandes escolas que definem o horizonte dos liceus, enquanto estes determinam as finalidades dos colgios, os quais, por sua vez, fixam as exigncias para a escola primria. Ora, embora no desprezem as competncias, em particular nos campos onde elas assumem abertamente uma misso de formao profissionalizante, as universidades no lhes conferem um estatuto dos mais prestigiosos. Ao contrrio, podese dizer que, mesmo quando formam competncias, elas tm o pudor de no design-las e preferem enfatizar o saber erudito, terico e metodolgico. Raramente se vem documentados os objetivos de uma formao universitria e, menos ainda, formulados na linguagem das competncias. Ou seja, no so em absoluto as universidades que incentivam o ensino mdio a reformular seus programas em termos de competncias. Ao contrrio, dos meios universitrios tradicionais que surgem as crticas mais categricas do que poderia desviar a escola obrigatria da transmisso intensiva do conhecimento. Mesmo quando a preocupao com a "formao da mente", prevalece a idia de que basta um comrcio intensivo e crtico dos conhecimentos e dos textos.

Se a universidade no induz a uma abordagem pelas competncias no ensino mdio, ser que podemos dizer que, nessa matria, a escola obrigatria sofre antes a influncia das formaes profissionalizantes que a seguem? Talvez a ateno dada s competncias possa levar os meios econmicos a encorajarem a escola obrigatria a dirigir sua ao na mesma direo. Sua influncia, porm, no recente, nem absoluta. Ela no basta para explicar a moda da noo da competncia no campo pedaggico. E ento, o que est ocorrendo? Absolutamente nada de novo: em uma linguagem mais moderna, a atual problemtica das competncias est reanimando um debate to antigo como a escola, que ope os defensores de uma cultura gratuita e os partidrios do utilitarismo, seja este de esquerda ou de direita. Entre os adultos que aderem idia de que a escola serve para aprender coisas diretamente teis vida, encontram-se, sem surpresa, os fortemente engajados na indstria e nos negcios, enquanto os que trabalham e encontram suas identidades em atividade para o ser humano (na funo pblica, na arte ou na pesquisa) defendem uma viso mais ampla da escolaridade. No se pode, no entanto, reduzir o campo dos "militaristas" queles que se preocupam com o trabalho e com as foras produtivas. Os movimentos de escola nova e pedagogia ativa (por exemplo, o Grupo Francs de Educao Nova, 1996) juntam-se ao mundo do trabalho na defesa de uma escolaridade que permita a apreenso da realidade. Apesar das diferenas ideolgicas, eles esto unidos por uma tese: para que serve ir escola, se no se adquire nela os meios para agir no e sobre o mundo. Essa inslita aliana pra a: enquanto h aqueles que falam na necessidade de adaptao concorrncia econmica e modernizao do aparelho de produo, outros falam em autonomia e democracia. Ainda assim, o sistema de ensino est preso, desde o surgimento da forma escolar, a uma tenso entre os que querem transmitir a cultura e os conhecimentos por si e os que querem, nem que seja em vises contraditrias, lig-los muito rapidamente a prticas sociais. Conservadores e inovadores, defensores das elites ou da democracia: nenhum desses "campos" totalmente homogneo. Pode-se imaginar dois professores com a mesma idade, com a mesma origem social, ministrando

a mesma disciplina em salas de aulas vizinhas, igualmente engajados na luta democrtica, em que um pensa, com toda boa-f, que a liberao do homem passa pela cultura mais desinteressada, e o outro, que ela exige ferramentas para a luta diria no trabalho e na cidade. Sendo professores de francs, um trabalhar com textos clssicos, e o outro, com textos publicitrios, contratos ou panfletos. Sendo bilogos, um se interessar pela origem da vida e das espcies, e o outro tratar da Aids ou das manipulaes genticas. Seria muito restritivo fazer do interesse do mundo escolar pelas competncias o simples sinal de sua dependncia em relao poltica econmica. H antes uma juno entre um movimento a partir dentro e um apelo de fora. Um e outro nutrem-se de uma forma de dvida sobre a capacidade do sistema educacional para tornar as novas geraes aptas a enfrentarem o mundo de hoje e o de amanh.

UMA POSSVEL RESPOSTA CRISE DA ESCOLA?Dentro do sistema educacional, est-se tomando conscincia do fato de que a exploso dos oramentos e a inflao dos programas no foram acompanhados por uma elevao proporcional dos nveis reais de formao. A procura pela escola est crescendo, mas a formao no evolui no mesmo ritmo. O nvel est subindo (Baudelot e Establet, 1989), mas ser que est subindo com a velocidade necessria? As esperanas suscitadas pela democratizao do ensino foram decepcionantes: um nmero cada vez maior de jovens adquire maior escolaridade, mas eles sero mais tolerantes, mais responsveis, mais capazes do que seus predecessores para agir e para viver em sociedade? E o que dizer dos que, apesar das polticas ambiciosas, ainda saem da escola sem nenhuma qualificao, quando no analfabetos (Baudelot, 1996), dos que o fracasso escolar convenceu de sua indignidade cultural e prometeu misria do mundo, ao desemprego ou aos subempregos, em uma sociedade dual? Em cada sociedade desenvolvida, a opinio pbica e a classe poltica no esto mais dispostas a somente apoiar o crescimento sem fim dos oramentos da educao, mas tambm exigem a prestao de contas,

querem uma escola mais eficaz, que prepare melhor para a vida sem, por isso, custar mais caro. A corrida aos diplomas perde sua pertinncia junto com a desvalorizao dos ttulos e a rarefao dos empregos, mas abandon-la levaria a correr riscos ainda maiores. A armadilha escolar (Berthelot, 1983) fechou-se sobre quase todas as famlias. Os adultos exercem uma presso constante sobre os jovens, os quais acreditam cada vez menos que o sucesso escolar ir proteg-los das dificuldades da existncia. Assim, pede-se escola que instrua uma juventude cuja adeso ao projeto de escolarizao no est mais garantida. O desenvolvimento mais metdico de competncias desde a escola pode parecei uma via para sair da crise do sistema educacional. Entretanto, seria absurdo agir como se esse conceito e o problema fossem novos. Na escola, ao menos nas carreiras nobres, tratou-se sempre de desenvolver as "faculdades gerais" ou o "pensamento", alm da assimilao dos conhecimentos. A abordagem dita "por competncias" no faz seno acentuar essa orientao. Se tal preocupao tornou-se uma palavra de ordem para os sistemas educacionais na ltima dcada do sculo XX, isso no se deve a uma nova utopia: a evoluo do mundo, das fronteiras, das tecnologias, dos estilos de vida requer uma flexibilidade e criatividade crescentes dos seres humanos, no trabalho e na cidade. Nessa perspectiva, confere-se ocasionalmente escola a misso prioritria de desenvolver a inteligncia como capacidade multiforme de adaptao s diferenas e s mudanas. O acento dado s competncias no chega to longe. No uma extenso furtiva dos programas de educao cognitiva que se interessam pelos alunos com grande dificuldade de desenvolvimento intelectual e de aprendizado. A abordagem por competncias no rejeita nem os contedos, nem as disciplinas, mas sim acentua sua implementao. Aceitar uma abordagem por competncias , portanto, uma questo ao mesmo tempo de continuidade - pois a escola jamais pretendeu querer outra coisa - e de mudana, de ruptura at, pois as rotinas pedaggicas e didticas, as compartimentaes disciplinares, a segmentao do currculo, o peso da avaliao c da seleo, as imposies da organizao escolar, a necessidade de tornar rotineiros o ofcio de professor e o ofcio de aluno tm levado a pedagogias e didticas que, s vezes, no contribuem muito

para construir competncias, mas apenas para obter aprovao em exames... Desse modo, a inovao consistiria no em fazer emergir a idia de competncia na escola, mas sim em aceitar "todo programa orientado pelo desenvolvimento de competncias, as quais tm um poder de gerenciamento sobre os conhecimentos disciplinares" (Tardif, 1996, p. 45). Citando Pierre Gillet, Tardif prope que a competncia seja "o mestre de obra no planejamento e na organizao da formao ou afirma que "a competncia deve constituir-se em um dos princpios organizadores da formao. Deveriam tambm, para no usar palavras vazias, ser a fonte de uma formao dirigida para a aquisio de competncias desde a escola e o colgio. Essa orientao vai revelar-se fundada ou no passar de mais uma miragem? difcil diz-lo. A historia da escola est marcada por momentos de "'pensamento mgico em que cada um quer acreditar que, mudando-se as palavras, a vida tambm muda. Por ora, a abordagem por competncias agita, antes de tudo, o mundo dos que concebem ou debatem programas. S preocupar os professores, se os textos oficiais impuseremlhes uma abordagem por competncias de maneira precisa o bastante para tornar-se incontornvel e obrigarem para a sua prtica de ensino e avaliao na sala de aula. Essa abordagem corre o risco de uma vigorosa rejeio por parte dos docentes, que no vero seus fundamentos e seu interesse ou, quando apreenderem suas intenes e conseqncias, no aderiro a ela, por boas ou ms razes. Como de costume, os que defendem uma nova orientao dos programas no tm como demonstrar o valor incontestvel da mudana que esto propondo. Quando a pesquisa em cincias humanas estiver mais avanada, as coisas ficaro mas claras. Atualmente, no se pode afirmar que estamos trabalhando em bases firmes. No confortvel, mas pior ainda seria neg-lo e agir como se soubssemos como se formam as mentes e as competncias fundamentais. A reforma do ensino e o atual debate sobre a escola levam a questes tericas de fundo, notadamente sobre a natureza e a gnese da capacidade do ser humano de enfrentar situaes inditas, para dar-lhes um significado e para agir com discernimento. Nada mais normal, ento, que se enfrentem concepes diversas e divergentes do aprendizado

e da cultura, sendo que nenhuma delas dispe dos meios para impor-se de maneira puramente racional, no estgio atual da pesquisa. Paralelamente a esse debate de fundo, convm medir as implicaes de uma abordagem por competncias para a totalidade do funcionamento pedaggico e didtico. Esse debate leva-nos ao centro das contradies da escola, que oscila entre dois paradigmas - ensinar conhecimentos ou desenvolver competncias , entre uma abordagem "clssica", que privilegia aulas e temas, manuais e provas, e uma abordagem mais inspirada nas novas pedagogias e nas formaes de adultos. Tentei anteriormente demonstrar que: a escola continua pensando os aprendizados em termos de conhecimentos por ser o que melhor domina; a escola teme a abordagem por competncias por causa dos questionamentos a respeito da transposio, do planejamento, dos contratos didticos tais como costumam funcionar; mais fcil avaliar os conhecimentos de um aluno do que suas competncias, pois, para apreend-las, deve-se observ-lo lidando com tarefas complexas, o que exige tempo e abre o caminho contestao; sempre existem muitos "conformistas" para atacar, em nome da cultura, toda e qualquer tentativa de distanciar-se das pedagogias do saber; a implementao de dispositivos construtores de competncias apresentada como a garantia de uma "queda do nvel"; as didticas das disciplinas mal-entendidas podem reforar o estatuto dominante dos conhecimentos eruditos no imaginrio pedaggico, pois os trabalhos concernem, essencialmente, aos saberes. Este livro estende tal reflexo s ambivalncias da escola, em vrios captulos curtos, que fazem outras tantas interrogaes.

PLANO DA OBRAO Captulo 1 procura delinear a prpria noo de competncia, esse estranho atrativo, segundo a expresso de Le Boterf (1994). Tal expresso designa um importante componente do capital que permite enfrentar a realidade; porm, h uma certa dificuldade para concebermos a exata natureza do processo de mobilizao de nossos recursos cognitivos. O Captulo 2 examina a espinhosa questo da formao de competncias na escolaridade geral. Embora seja evidente que competncias so

construdas na formao profissionalizante, pois refere-se a um ofcio, quais so as situaes e as prticas referenciais na escola primria, no colgio e no liceu? Como formular programas e objetivos em termos de competncias? Em que pontos ambos podem articular-se com as disciplinas e os conhecimentos? O Captulo 3 volta-se para os professores e procura explicitar as incidncias de uma abordagem por competncias sobre seu ofcio e suas prprias competncias profissionais. Com efeito, tal abordagem convidaos a considerar os conhecimentos como ferramentas a serem mobilizadas conforme as necessidades, a trabalhar regularmente com situaesproblema, a criar ou utilizar outros meios de ensino, a negociar e conduzir projetos com seus alunos, a adotar um planejamento flexvel e indicativo, a improvisar, a implementar e explicitar um novo contrato didtico, a praticar uma avaliao formadora, em uma situao de trabalho, a alcanar uma compartimentao disciplinar menor. Aborda, ainda, outros tantos passos rumo a um "ofcio novo" (Meirieu, 1990b; tienne e Lerouge, 1997; Altet, 1994; Paquay et al, 1996; Perrenoud, 1994, 1996c). Essa perspectiva assusta, com razo, todos aqueles que acreditam que ensinar consiste, antes de tudo, em transmitir, de modo ordenado, conhecimentos eruditos bem-dominados. Tambm importante levar em considerao as resistncias dos alunos diante de qualquer transformao considervel de setrofcio. Para desenvolver suas competncias, o aluno deve trabalhar mais, correr novos riscos, cooperar, projetar-se e questionar-se. Os alunos e seus pais resistem, s vezes, tanto quanto os professores. O Captulo 4 estabelece uma conexo entre a abordagem por competncias e a luta contra as desigualdades por meio de pedagogias diferenciadas. Procurarei mostrar a inutilidade de criarem-se grandes esperanas sobre uma abordagem por competncias se, paralelamente a isso, no se mudar a relao com a cultura geral, se no houver a reconstruo de uma transposio didtica, ao mesmo tempo realista e visionria, se persistir a expectativa de que um ciclo de estudo prepare, antes de tudo, para o ciclo seguinte, se no forem inventados novos modos de avaliao, se o fracasso for negado para construir a seqncia do currculo sobre a areia, se a ao pedaggica no for diferenciada, se a formao dos professores no for

modificada, em suma, se o modo de ensinar e fazer aprender no for radicalmente alterado. Fica clara a dimenso da mutao a ser empreendida. A concluso gera, inevitavelmente, o problema das estratgias de mudana. No existe uma definio clara e partilhada das competncias. A palavra tem muitos significados, e ningum pode pretender dar a definio. O que fazer, ento? Resignar-se Torre de Babel? Procurar identificar o significado mais comum em uma instituio ou em um meio profissional? Avanar e conservar unia definio explcita? Adotarei esta ltima posio, sem, por isso, afastar-me de um dos significados vigentes.

TRS PISTAS FALSASPrimeiro, afastarei trs verses aceitveis da noo de competncia, mas que no acrescentam muito para a compreenso dos problemas. Fala-se, s vezes, em competncias apenas para insistir na necessidade de expressar os objetivos de um ensino em termos de condutas ou prticas observveis; ou seja, retoma-se a "tradio" da pedagogia do domnio ou das diversas formas de pedagogia por objetivos. Essas abordagens no esto em absoluto superadas, desde que sejam dominados seus conhecidos excessos: behaviorismo sumrio, taxionomias interminveis, excessivo fracionamento dos objetivos, organizao do ensino objetivo por objetivo, etc. (Hameline, 1979; Saint-Onge, 1995). Conhecidos esses limites, hoje no se deveria mais ousar ensinar sem perseguir metas explcitas, comunicveis aos estudantes, e sem que se avaliem, regularmente, os aprendizes e seu grau de realizao. Inicialmente, essa avaliao deve ser feita para fins de regulao (avaliao formativa) e, a seguir, quando no h mais tempo para o ensino-aprendizado, para fins de certificao. Falar a respeito de competncia, porm, no acrescenta muita coisa idia de objetivo. Podese, alis, ensinar e avaliar por objetivos sem preocupar-se com a transferncia dos conhecimentos e, menos ainda, com sua mobilizao diante de situaes complexas. A assimilao de uma competncia a um simples objetivo de aprendizado confunde as coisas e sugere, erradamente, que cada aquisio escolar verificvel uma competncia, quando na

verdade a pedagogia por objetivos perfeitamente compatvel com um ensino centrado exclusivamente nos conhecimentos. Outro significado comum a oposio existente entre a noo de competncia e de desempenho: o desempenho observado seria um indicador mais ou menos confivel de uma competncia, supostamente mais estvel, que medido indiretamente. E uma acepo desenvolvida tanto na lingstica quanto na psicometria. Sua nica virtude que ope disposies virtuais sua atualizao, sem nada dizer de sua natureza "ontolgica". E salutar no debate sobre a avaliao que se fundamente uma crtica dos exames que julgam o nvel de uma pessoa com base em um desempenho pontual, exigido em condies muito particulares. Ningum se arriscaria a defender uma escola que visasse a desempenhos sem futuro, embora o aprender de cor, rejeitado pela doutrina, seja encorajado na prtica. O fato de que a competncia, invisvel, s possa ser abordada atravs de desempenhos observveis no acaba com a questo de sua conceitualizao. verdade que se poderia descrever um conjunto de aes que remetesse para a competncia subjacente, sem perguntar como ela funciona. Talvez assim fosse possvel nomear, classificar, repertoriar as competncias ao acrescentar o verbo "saber" a um verbo que caracterize um conjunto de aes semelhantes: saber filmar uma seqncia de vdeo, resolver um conflito, fazer uma partilha eqitativa, reconhecer um erro, negociar um acordo, descrever um incidente, pr fim a um relacionamento, preparar uma refeio, etc. Porm, essa forma de tautologia no suficiente, quando se quer formar em tais competncias. Precisa-se, ento, de um inventrio dos recursos mobilizados e de um modelo terico da mobilizao. Para isso, preciso formar uma idia do que ocorre na caixa-preta das operaes mentais, mesmo com o risco de que no passem de representaes metafricas no estgio das cincias da mente. A terceira concepo clssica considera a competncia uma faculdade genrica, uma potencialidade de qualquer mente humana. Para Chomsky (1977), a competncia lingstica "uma capacidade de produo infinita", isto , pronunciar um nmero infinito de frases diferentes. Se generalizarmos, pode-se dizer que uma competncia permite produzir um nmero infinito de aes no-programadas. Em uma conversa, ningum

sabe, via de regra, que frase enunciar um minuto mais tarde, nem que gesto far. O indivduo no tirar nem suas palavras, nem seus atos, de algum repertrio predefinido no qual tais elementos poderiam ser procurados. Ele no precisa conservar dentro de si um grande livro contendo todas as frases que talvez precise utilizar "algum dia". Sua imensa capacidade de inveno torna esse repertrio intil. A competncia, tal como Chomsky a concebe, seria essa capacidade de continuamente improvisar e inventar algo novo, sem lanar mo de uma lista preestabelecida. Nessa perspectiva, a competncia seria uma caracterstica da espcie humana, constituindo-se na capacidade de criar respostas sem tir-las de um repertrio. Existe aqui, no meu entender, uma confuso nos nveis de anlise. Os seres humanos certamente tm a faculdade, ancorada em seu patrimnio gentico, de construir competncias. Contudo, nenhuma competncia estimulada desde o incio. As potencialidades do sujeito s se transformam em competncias efetivas por meio de aprendizados que no intervm espontaneamente, por exemplo, junto com a maturao do sistema nervoso, e que tambm no se realizam da mesma maneira em cada indivduo. Cada um deve aprender a falar, mesmo sendo geneticamente capaz disso. As competncias, no sentido que ser aqui utilizado, so aquisies, aprendizados construdos, e no virtualidades da espcie.

MOBILIZAR OS RECURSOS: UMA ESTRANHA ALQUIMIAConforme Le Boterf (1994, p. 43), pode-se reconhecer que a alquimia existente na mobilizao ainda continua amplamente sendo uma terra incgnita. Quem aprendeu uma lngua estrangeira na escola, por exemplo, tem a experincia da distncia entre os conhecimentos lingsticos acumulados na sala de aula e sua capacidade para mobiliz-los em uma situao de comunicao escrita ou oral. Na escola, passa-se muito tempo aprendendo uma ou mais lnguas estrangeiras. Entretanto, o que resta desses esforos, quando um turista perdido interpela-nos ou quando estamos em outro pas? E no ser por falta de sofrimento com listas de vocabulrios, de verses e de tradues. Isso significaria que no se

aprendeu nada? Ou que se esqueceu de tudo? Ou, mais simplesmente, que no se exercitou de verdade a conversa em uma lngua estrangeira, no sentido de um treinamento intensivo na mobilizao oportuna do lxico e da sintaxe, de forma correta e em tempo real? O ensino das lnguas estrangeiras tem evoludo para mtodos orais, precisamente para superar a conhecida contradio entre o estudo e a prtica. Ningum pode negar que isso seja um progresso. Porm, essa evoluo j chegou ao nvel do necessrio, para desenvolver em todos os alunos competncias reais de comunicao em uma lngua estrangeira? Oito anos de estudo de ingls razo de quatro horas semanais, 35 semanas por ano, so 140 horas por ano, e um total de 1.120 horas. E um perodo enorme, diro os professores de msica, que no dispem sequer da metade desse tempo para iniciar os mesmos alunos sua arte. Contudo, o que representam 1.120 horas, to descontnuas e divididas, quando aprendemos a nossa lngua materna por um imerso diria, desde o nascimento, em um "banho de lngua" tanto mais eficaz que devemos comunicar-nos para obter o que queremos, de preferncia imediatamente. Uma criana com dois anos de idade, razo de trs a quatro horas de intercmbios verbais por dia, sete dias por semana, acumula em menos de um ano de sua vida tanto tempo de conversa em sua lngua materna quanto um estudante do ensino mdio na lngua inglesa durante oito anos de escolaridade. O problema foi claramente enunciado para o aprendizado das lnguas estrangeiras e tem-se considerado, s vezes, alternativas radicais, por exemplo, estadas lingsticas intensivas em vez das horas de ensino espalhadas em quase uma dcada, ou ainda um ensino bilnge, em que certas disciplinas cientficas ou literrias so ministradas em uma lngua estrangeira. A competncia constri-se com a prtica de uma lngua estrangeira, na qual se multiplicam as situaes de interao em uma conjugao feliz, portanto aleatria, da repetio e da variao, graas a um engajamento pessoal em seguidos intercmbios e um forte desejo de entender e fazer-se entender. Esse exerccio enriquece e consolida os conhecimentos sintticos e lexicais dos falantes. Sobretudo, desenvolve esquemas que permitem contextualiz-los com base no nvel de lngua, no

assunto da conversa, nos interlocutores presentes, na situao de comunicao. Vejamos outro exemplo. Os novos programas para o ciclo central do ensino mdio prescrevem, por exemplo, no captulo dedicado s cincias da vida e da natureza, o ensino dos seguintes conhecimentos: "Os rgos efetuam com o sangue, trocas que respondem s suas necessidades. Os msculos, ricamente irrigados, retiram do sangue, nutrientes e oxignio e rejeitam dixido de carbono. As mesmas trocas so efetuadas por todos os rgos do corpo. O consumo de nutrientes e oxignio, bem como a rejeio de dixido de carbono pelos msculos, variam conforme sua atividade" (Direo dos liceus e colgios, 1997, p. 56-57). Diante desse conhecimento, os programas situam uma competncia: "Ligar o aumento das conseqncias cardacas e respiratrias ao aumento das necessidades dos msculos durante um esforo fsico". Tal formulao ilustra toda a ambigidade da noo de competncia nesses programas. Conforme a maneira de entend-la, pode-se ver um simples corolrio da teoria principal, um conhecimento declarativo a ser ensinado como tal. Assim que Michel Develay prope que os alunos, a partir do desenvolvimento de uma atividade esportiva, sejam solicitados a explicar a acelerao do ritmo cardaco e respiratrio, o que deveria (se assimilaram os conhecimentos pertinentes) lev-los a ligar essa acelerao ao aumento das necessidades dos msculos durante um esforo fsico. Alm da explicao, seriam convidados em seguida, por exemplo, a conceber e realizar uma manipulao que evidenciasse a absoro maior de oxignio e a rejeio maior de dixido de carbono por um msculo em plena atividade. Observa-se, ento, a articulao conhecimentoscompetncias, sendo que os primeiros so indispensveis para a inteligibilidade das observaes e para a construo de hipteses. Porm, sua mobilizao no espontnea e nasce de um treinamento to intensivo como a comunicao em uma lngua estrangeira, embora seja, nas cincias, de outra natureza e mais limitado por mtodos experimentais. Observa-se, tambm, que a escola sempre tende a organizar os programas por campos nocionais ou tericos, o que, inevitavelmente, confere s competncias propostas diante dos conhecimentos um estatuto prximo

dos exemplos e das ilustraes mais ligados tradio pedaggica. Construir uma competncia significa aprender a identificar e a encontrar os conhecimentos pertinentes. Estando j presentes, organizados e designados pelo contexto, fica escamoteada essa parte essencial da transferncia e da mobilizao. H um outro exemplo, dessa vez em francs. Os programas da primeira srie do ensino mdio prescrevem o ensino de elementos de gramtica da frase, do texto e do discurso enunciados: "Conhecer a funo dos sinais de pontuao, estudar as formas de conetivos espao-temporais, definir os componentes de uma situao de enunciao". Novamente, esses conhecimentos, indispensveis para a construo de competncias, no podem ser mobilizados de maneira automtica. Para torn-los, de alguma maneira, "operatrios", o ensino deveria propor mltiplas situaes nas quais sero recursos, em primeiro lugar, necessrios para o sucesso da tarefa e que, em segundo lugar, no so designados pelas instrues. Por exemplo, a partir de um corpo de breves trechos (alguns pargrafos) fora de seu contexto e sem nenhuma indicao sobre seu autor, ttulo, destinatrio, tipo de texto (narrativo, terico, etc.), a tarefa consistiria em elaborar e justificar hipteses sobre o estatuto do enunciado. O que, ento, era um conhecimento declarativo, por exemplo, a correlao entre um tipo de texto e certos conetivos ou organizadores textuais, iria tornar-se uma ferramenta, permitindo identificar as diferenas significativas e guiar uma classificao. Se tais atividades multiplicarem-se, contribuiro para implementar verdadeiros esquemas de mobilizao dos conhecimentos. Se forem mais ocasionais, permitiro ver um modo possvel de mobilizao, sem formar realmente competncias, talvez induzindo uma outra relao com o saber, ao incitar os alunos a adotarem uma postura ativa, a considerarem os conhecimentos como chaves para fechaduras desconhecidas, cuja descoberta pode ser esperada um dia ou outro.

ESQUEMAS E COMPETNCIASS h competncia estabilizada quando a mobilizao dos conhecimentos supera o tatear reflexivo ao alcance de cada um e aciona esquemas constitudos. Examinemos, pois, essa noo, ao mesmo tempo intuitiva e complexa, onipresente na obra de Jean Piaget, retomada atualmente tanto na pesquisa sobre as competncias como na didtica, por exemplo, por Vergnaud (1990, 1994) a respeito dos campos conceituais. Ocasionalmente, associam-se os esquemas a simples hbitos. De fato, os hbitos so esquemas, simples e rgidos, porm nem todo esquema um hbito. Em sua concepo piagetiana, o esquema, como estrutura invariante de uma operao ou de uma ao, no condena a uma repetio idntica. Ao contrrio, permite, por meio de acomodaes menores, enfrentar uma variedade de situaes de estrutura igual. E, em certo sentido, uma trama da qual nos afastamos para levar em conta a singularidade de cada situao. Assim, um esquema elementar, tal como "beber em um copo", ajusta-se a copos de formas, pesos, volumes e contedos diferentes. Dois exemplos menos elementares mostram que o esquema uma ferramenta flexvel: Estando identificados dois nmeros, o sujeito que deseja, por alguma razo, calcular a diferena entre eles ativa o esquema da subtrao; observa-se claramente que esse esquema pressupe a construo de um conceito e sucede raciocnios que tornam pertinente uma subtrao. "Desmarcar-se", em um campo de futebol, um esquema no qual, independentemente da configurao do jogo e do campo, o jogador consegue fazer-se esquecer pelos designados para "marc-lo" e achar a falha no dispositivo do adversrio. Tais esquemas so adquiridos pela prtica, o que no quer dizer que no se apiem em nenhuma teoria. Conservam-se, assim como todos os outros, no estado pratico, sem que o sujeito que o carrega tenha, necessariamente, uma conscincia precisa de sua existncia e, menos ainda, de seu funcionamento ou de sua gnese. Ao nascermos, dispomos de alguns poucos esquemas hereditrios e, a partir destes, construmos outros de maneira contnua. O conjunto dos esquemas constitudos em dado momento de nossa vida forma o que os

socilogos, como Bourdieu, chamam de habitas, definido como um "pequeno lote de esquemas que permitem gerar uma infinidade de prticas adaptadas a situaes sempre renovadas, sem jamais se constituir em princpios explcitos" (Rourdieu, 197?-, p. 209) ou, ainda, um "sistema de disposies durveis e transponveis que, integrando todas as experincias passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepes, apreciaes e aes e torna possvel a execuo de tarefas infinitamente diferenciadas, graas s transferncias analgicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma" (ibid, p. 178-179). Esses esquemas permitem-nos mobilizar conhecimentos, mtodos, informaes e regras para enfrentar uma situao, pois tal mobilizao exige uma srie de operaes mentais de alto nvel. Uma competncia seria, ento, um simples esquema? Eu diria que antes ela orquestra um conjunto de esquemas. Um esquema uma totalidade constituda, que sustenta uma ao ou operao nica, enquanto uma competncia com uma certa complexidade envolve diversos esquemas de percepo, pensamento, avaliao e ao, que suportam inferncias, antecipaes, transposies analgicas, generalizaes, apreciao de probabilidades, estabelecimento de um diagnstico a partir de um conjunto de ndices, busca da informaes pertinentes, formao de uma deciso, etc. No futebol, a competncia do centroavante que imobiliza um contraataque est em desmarcar-se e tambm em pedir para que lhe passem a bola, em antecipar os movimentos da defesa, em ter cuidado com o impedimento, em ver a posio dos parceiros, em observar a atitude do goleiro adversrio, em avaliar a distncia at o gol, em imaginar uma estratgia para passar pela defesa, em localizar o rbitro, etc. Outros tantos esquemas podem ser trabalhados separadamente, no treino, mas um ataque eficaz depender da sua orquestrao. No estgio de sua gnese, uma competncia passa por raciocnios explcitos, decises conscientes, inferncias e hesitaes, ensaios e erros. Esse funcionamento pode automatizar-se gradativamente e constituir-se, por sua vez, em um esquema complexo, em um novo componente estvel desse "inconsciente prtico" do qual fala Jean Piaget. Jean-Yves Rochex mostra como esses encadeamentos sucessivos funcionam:

"Somente aps terem sido aprendidos e serem formados e exercitados como uma ao submetida a sua prpria meta que os modos operatrios podem entrar em aes mais complexas, servir metas mais amplas, das quais se tornam meios. Ao rotinizarem-se e automatizarem-se, as aes tornam-se operaes, savoir-faire e hbitos, saindo da espera dos processos conscientizados, porm, ao mesmo tempo, suscetveis de tornarem-se novamente o objeto de processos conscientes, em particular quando a ao na qual entram tais operaes e savoir-faire rotinizados depara-se com dificuldades ou obstculos imprevistos. O domnio dos procedimentos operatrios, a transformao da ao em operaes e savoir-faire rotinizados, ampliando o campo das possveis, permitem o desenvolvimento da atividade, e n sujeita torna-se, ento, apto para traarse novas metas, de um grau superior. Assim, a meia da ao inicial tornase uma das condies, um dos meios requeridos pela realizao dessas nova metas" (Rochex, 1995). Desse modo, os esquemas complexos podem ser montagens de esquemas mais simples, e assim por diante, em um sistema de bonecas russas. Para chegar tamanha automatizao de funcionamentos cognitivos complexos, preciso uma fortssima redundncia de situaes semelhantes. Embora compatveis com uma automatizao total ou parcial, as competncias no a tornam obrigatria.

ESQUEMAS CONSTITUDOS E CONDUTAS DE PESQUISALigar o desconhecido ao conhecido, o indito ao j visto, est na base de nossa relao cognitiva com o mundo; porm, a diferena est em que, s vezes, a assimilao ocorre instantaneamente, a ponto de parecer confundir-se com a prpria percepo da situao e, outras vezes, precisase de tempo e de esforos, ou seja, de um trabalho mental, para apreender uma nova realidade e reduzi-la, ao menos em certos aspectos e de maneira aproximativa, a problemas que se sabe resolver. til distinguir: por um lado, casos nos quais no observada quase nenhuma defasagem entre o momento em que se apresenta a situao e o momento em que o sujeito reage; isso no significa que no haja nenhuma

mobilizao, mas sim que ela quase instantnea; a competncia assume, portanto, a aparncia de um complexo esquema estabilizado; Por outro lado, situaes nas quais essa mobilizao no evidente, no rotinizada, requerem uma reflexo, uma deliberao interna, uma consulta at de referncia ou de pessoas-reclusos. Pode-se, claro, detectar situaes intermedirias, cuja deliberao rpida e segura permanece perceptvel tanto pelo ator como pelo observador: " interessante o conceito de esquema para uma ou outra classes de situaes, porm ele no funciona da mesma maneira nos dois casos. No primeiro, observa-se uma mesma classe de situaes, condutas largamente automatizadas, organizadas por um esquema nico: no segundo, observase a ativao sucessiva de vrios esquemas, que podem entrar em competio e que, para checar soluo procurada, devem ser acomodados, descombinados e recombinados; esse processo necessariamente acompanhado por descobertas". Um especialista (Bastien, 1997) competente porque simultaneamente: domina, com muita rapidez e segurana, as situaes mais comuns, por ter sua disposies esquemas complexos que podem entrar imediata e automaticamente em ao, sem vacilao ou reflexo real; capaz de, com um esforo razovel de reflexo, coordenar e diferenciar rapidamente seus esquemas de ao e seus conhecimentos para enfrentar situaes inditas. De que modo um sujeito desenvolve respostas originais e eficazes para problemas novos? O habitus permite enfrentar variaes menores com uma certa eficcia, custa de uma acomodao integrada ao, sem tomada de conscincia nem reflexo. Isso ocorre com um simples ajuste prtico do esquema singularidade da situao. Quando esta ltima afasta-se por demais do que for dominvel, com a simples acomodao dos esquemas constitudos, h uma tomada de conscincia, ao mesmo tempo, do obstculo e dos limites dos conhecimentos e dos esquemas disponveis, ou seja, a passagem para um funcionamento reflexivo. Nasce, ento, um processo de procura que culmina, na melhor das hipteses, em uma ao original por sucessivas aproximaes, recorrendo-se at teoria e ao clculo formal. Esse trabalho de reflexo, que est no centro das competncias mais valorizadas, tambm depende do habitas, na medida em que o controle

reflexivo da ao, a conscientizao e o pensamento formal passam pela implementao de esquemas de pensamento, avaliao e julgamento. Trata-se, portanto, dos esquemas mais gerais do sujeito, que permitem a abstrao, o relacionamento, a comparao, o raciocnio, a conceitualizao; em outras palavras, os esquemas que constituem a inteligncia do sujeito. Existe a tentao de reservar a noo de competncia para as aes que exigem um funcionamento reflexivo mnimo, que so ativadas somente quando o ator pergunta a si mesmo, com uma maior ou menor confuso: O que est ocorrendo? Por que estou em situao de fracasso? O que fazer? J vivi uma situao comparvel? O que eu fiz naquela ocasio e por qu? A mesma resposta seria adequada hoje? Em que pontos deverei adaptar minha ao? A partir do momento em que ele fizer "o que deve ser feito" sem sequer pensar, pois j o fez, no se fala mais em competncias, mas sim em habilidade ou hbitos. No meu entender, estes ltimos jazem parte da competncia. Um comandante de bordo no se torna menos competente, quando passa para o "piloto automtico". Basta surgir um evento imprevisto para que ele retome o controle e o funcionamento reflexivo volte ao primeiro plano. O piloto automtico nem sempre um dispositivo tecnolgico. Um equivalente est presente em toda prtica especializada. Por ser muito competente que um especialista pode resolver rapidamente certos problemas simples, sem precisar pensar, integrando de forma gil uma impressionante srie de parmetros. Sena paradoxal que a competncia aparentasse desaparecer no momento exato em que alcana sua mxima eficcia. Para convencer-se disso, basta substituir na mesma situao o especialista por um novato: "Quanto mais especialista, menor o raciocnio e maior o apelo para conhecimentos pertinentes e funcionalmente estruturados" (Bastien, 1997, p. 8).

COMPETNCIAS, SAVOIR-FAIRE, RECURSOSEm contextos diversos, competncia c savoir-faire parecem ser noes intercambiveis. A noo de savoir-faire bastante ambgua. Conforme o locutor e o texto, ela designa: ora uma representao procedimental, um

esquema da ordem da representao, um "saber-fazer"; ora um savoirfaire, um esquema com uma certa complexidade, existindo no estado prtico, que procede em geral de um treinamento intensivo, maneira do patinador, do virtuoso, do arteso, cujos gestos tornaram-se "uma segunda natureza" e fundiram-se no habitus; ora uma competncia elementar, ou uma parte da ao manual. Um savoir-faire j existe no estado prtico, sem estar sempre ou imediatamente associado a um conhecimento procedimental. No entanto, se corresponder a um conhecimento procedimental, poder gerar, por automatizao, uma simplificao e um enriquecimento progressivos. Inversamente, um procedimento pode resultar da codificao de um saberfazer preexistente no estado prtico. Todo savoir-faire uma competncia; porm, uma competncia pode ser mais complexa, aberta, flexvel do que um saber-fazer e estar mais articulada com conhecimentos tericos. Um savoir-faire pode funcionar como recurso mobilizvel por uma ou mais competncias de nvel mais alto. Le Boterf (1994, 1997), que desenvolveu a idia fundamental de mobilizao, arrisca confundir todas as cartas ao definir a competncia como um "'saber-mobilizar". uma bela imagem, que alimenta, entretanto, um risco de confuso, na medida em que a mobilizao de recursos cognitivos no a expresso de um saber-fazer especfico, que seria chamado de "saber-mobilizar", e, menos ainda, de um procedimento de mobilizao" codificado. No processamento de uma situao complexa, talvez a mobilizao de diversos recursos cognitivos no seja uma inveno totalmente espontnea e original, pois ela passa por uma srie de operaes mentais que atualizam esquemas e, s vezes, aplicam mtodos. A "gesto mental", a "programao neurolingstica" (PNL) e os diversos mtodos de educao pretendem, justamente, ajudar o sujeito a tomar conscincia de seus mecanismos de pensamento, para domin-los melhor. Contudo, no existe nenhum "saber-fazer" universal, que operaria em toda situao e que poderia ser aplicado a quaisquer recursos cognitivos, ou, ento, ele se confunde com a inteligncia do sujeito e sua busca de significado. Uma competncia pressupe a existncia de recursos

mobilizveis, mas no se confunde com eles, pois acrescenta-se aos mesmos ao assumir sua postura em sinergia com vistas a uma ao eficaz em determinada situao complexa. Lia acrescenta o valor de uso dos recursos mobilizados, assim como uma receita culinria engrandece seus ingredientes, pois ordena-os, relaciona-os, funde-os em uma totalidade mais rica do que sua simples unio aditiva. Nenhum recurso pertence, com exclusividade, a uma competncia, na medida em que pode ser mobilizado por outras. Dessa forma, a maioria de nossos conceitos utilizvel em muitos contextos e est a servio de muitas intenes diferentes. Ocorre o mesmo com parte de nossos conhecimentos, nossos esquemas de percepo, de avaliao e de raciocnio. Uma competncia pode funcionar como um recurso, mobilizvel por competncias mais amplas. Assim, para chegarmos a um meio-termo, identificarmos uma expectativa, encontrarmos um ponto de entrada no sistema de pensamento de um interlocutor ou percebermos suas intenes, mobilizamos uma competncia mais "estreita", que pode ser chamada de "saber escutar um interlocutor ativamente e com empatia". Por sua vez, essa competncia mobiliza outras ainda mais especficas, por exemplo, "saber colocar uma boa pergunta". Esse encaixe de bonecas russas dificulta particularmente a construo de listas fechadas - ou "blocos" - de competncias, obstculo esse que voltaremos a encontrar a propsito dos programas escolares. Por ora, insistamos nessa dupla face com toda competncia, que pode, conforme o momento, mobilizar recursos ou funcionar como recurso em proveito de uma competncia mais ampla. Resta representar, com maior preciso, a maneira pela qual a mente mobiliza os recursos, aqui entendidos como recursos cognitivos internos, e no como meios materiais ou institucionais.

ANALOGIAS E CONJUNTOS DE SITUAESExistiriam, ento, tantas competncias quantas situaes? A vida colocanos, com maior ou menor freqncia, conforme nossa idade e condio e, tambm, em virtude de nossas escolhas, frente a situaes novas, que procuramos dominar sem reinventar completamente a plvora, lanando

mo de nossas aquisies e experincia, entre a inovao e a repetio. Boa parte de nossas condies de existncia desse tipo. Com efeito, nossa vida no to estereotipada para que, a cada dia, tenhamos exatamente os mesmos gestos para fazer, as mesmas decises para tomar, os mesmos problemas para resolver. Ao mesmo tempo, no to anrquica ou mutante que devamos, constantemente, reinventar tudo. A vida humana encontra um equilbrio, o qual varia de uma pessoa ou fase do ciclo de vida para outra, entre as respostas rotineiras para situaes semelhantes e as respostas a serem construdas para enfrentar obstculos novos. Rey (1996) prope uma sntese da literatura e dos conceitos ligados s competncias transversais, para concluir que toda competncia transversal. Na verdade, ele converge para mltiplas situaes analgicas, porm no idnticas. Associo-me a essa ltima tese: as competncias so interessantes, pois permitem enfrentar conjuntos de situaes. Ser que podemos imaginar uma competncia desenvolvida para responder a uma situao nica? Num primeiro instante, no parece fazer sentido. De que serviria uma competncia que funcionasse apenas uma vez, maneira de um barbeador ou lenos descartveis? Acontece, porm, que encontramos na vida situaes to originais para ns! que no fazem parte de nenhum conjunto conhecido, nem de perto, nem de longe. Ficamos condenados, ento, ora a construir, o quanto antes, uma nova competncia, ora a desistir de dominar a situao. Se podemos construir uma competncia a partir de uma situao nica, por que ela crucial c impe um aprendizado acelerado. Ora, as situaes extremas - crise, acidente, luto, dor, conflito violento, felicidade intensa ou mergulhada em um mundo totalmente desconhecido , por definio, fogem ao comum e no se reproduzem necessariamente. A maioria de nossas competncias construda em circunstncias menos dramticas, mais lentamente, por meio de situaes semelhantes o bastante para que cada uma possa contribuir na construo progressiva de uma competncia esboada. Assim, desde o nascimento, deparamo-nos com situaes de estresse, frustrao, incerteza, diviso, expectativa que, para alm das diferenas, formam, pouco a pouco, certos conjuntos, os quais intumos. Um conjunto de situaes esboa-se de maneira emprica e

pragmtica. Esse conjunto no fechado, mas enriquece-se conforme as peripcias da vida. Em relao a isso, as competncias profissionais so privilegiadas, na medida em que as situaes de trabalho sofrem as fortes exigncias do posto, da diviso das tarefas e, portanto, reproduzem-se dia aps dia, enquanto em outros campos ele ao so maiores os intervalos entre situaes semelhantes. Assim, comunicar com delicadeza uma notcia grave para algum torna-se uma rotina na vida de certas especialidades mdicas ou de policiais, ao passo que uma experincia mais tara na vida privada. Ou seja, no registro profissional, as competncias constroem-se a uma velocidade maior. Pode-se representar a evoluo de uma pessoa como a construo pragmtica e intuitiva de tipologias de situaes, sendo que cada tipo ou conjunto apela para competncias especficas. As competncias de uma pessoa constroem-se em funo das situaes que enfrenta com maior freqncia. Ser necessrio? Por que no podemos enfrentar todas as situaes do mundo com um pequeno nmero de capacidades mais gerais? No seriam suficientes a inteligncia, como faculdade universal de adaptao, as capacidades de representao, de comunicao, de soluo de problemas, para sair de todos os maus momentos e resolver todas as dificuldades? Hiptese sedutora: se estivssemos aptos a enfrentar tudo com algumas capacidades bsicas, bastaria identific-las, desenvolv-las, sem perder tempo, trabalhando mltiplas competncias mais especficas. Infelizmente, tudo leva a crer que essa hiptese no tem fundamento e que os especialistas possuem, alm das capacidades gerais, mltiplas cordas em seus arcos. Isso no quer dizer que todas as situaes da vida requerem competncias especializadas. Entre as situaes inditas vividas por um ser humano, muitas so simples o bastante para serem enfrentadas sem competncias particulares, por intermdio da simples observao, da ateno e da "inteligncia". Portanto, o sucesso depende de uma capacidade geral de adaptao e discernimento, comumente considerada como a inteligncia natural do sujeito. Nem todas as situaes so to simples assim. E verdade que uma pessoa com grandes meios de observao, de informao, de anlise e de experimentao conseguir livrar-se,

honrosamente, de um grande nmero de situaes inditas, porm no ser suficiente para fundar uma ao especializada, em particular, rpida e econmica. Nenhuma empresa contrataria algum com a capacidade de resolver todos os problemas, desde que tivesse tempo para adquirir todos os conhecimentos teis e desde que realizasse todas as reflexes necessrias para fazer, pouco a pouco, emergir uma soluo. Em muitos registros de especialidade, as competncias dependem de uma forma de inteligncia situada, especfica. As situaes novas so bastante ricas, diversas e complexas para que o sujeito domine-as com o seu senso comum e com a sua lgica natural. S pode process-las tendo sua disposio no s recursos especficos (procedimentos, esquemas, hipteses, modelos, conceitos, informaes, conhecimentos e mtodos), mas tambm maneiras especficas e treinadas de mobiliz-los e coloc-los em sinergia. Em um certo sentido, a habilidade uma "inteligncia capitalizada", uma seqncia de modos operatrios, de analogias, de intuies, de indues, de dedues, de transposies dominadas, de funcionamentos heursticos rotinizados que se tornaram esquemas mentais de alto nvel ou tramas que ganham tempo, que "inserem" a deciso. A ligao de uma situao com um "conjunto lgico" permite, at certo ponto, enfrentar o desconhecido, associando-o ao conhecido, desde que uma forma de intuio analgica permita uma transferncia a partir de experincias anteriores ou de conhecimentos gerais (Gineste, 1997). Conforme mostram os estudos de psicologia cognitiva sobre a formao dos conceitos, a assimilao de um objeto singular de uma classe lgica no evidente e j constitui o esboo de uma competncia. Deve-se, portanto, dissociar duas fases, sendo uma de assimilao de uma situao a um conjunto, e a outra de implementao do "programa de processamento" correspondente? As coisas raramente ocorrem assim: existindo um esquema constitudo, a identificao e o processamento da situao fazem parte de um esquema global; no h nenhum esquema de percepo seguido por um esquema de ao; no havendo nenhum esquema constitudo apropriado, ativado um processo de resoluo de um problema indito que requer analogias e permite associar, progressivamente, a situao a um conjunto.

Longe de serem evidentes e instantneas, as analogias resultantes de uma colaborao e de uma basca. A analogia fica evidente e instantnea somente nos casos mais simples, que dependem de esquemas quase automatizados. A competncia consiste mais notadamente em detectar, pouco a pouco, analogias que no se mostram primeira vista. As analogias operadas e os recursos que elas permitem mobilizar no levam, em geral, a construir imediatamente uma resposta adequada a uma situao nova, mas sim lanam um trabalho de transferncia (Mendelsohn, 1996; Perrenoud, 1997a, 1997b). Esse funcionamento cognitivo pertence tanto ordem da repetio como ordem da criatividade, pois a competncia, ao mesmo tempo em que mobiliza a lembrana das experincias passadas, livra-se delas para sair da repetio, para inventar solues parcialmente originais, que respondem, na medida do possvel, singularidade da situao presente. A ao competente uma "inveno bem-temperada", uma variao sobre temas parcialmente conhecidos, uma maneira de reinvestir o j vivenciado, o j visto, o j entendido ou o j dominado, a fim de enfrentar situaes inditas o bastante para que a mera e simples repetio seja inadequada. As situaes tornam-se familiares o bastante para que o sujeito no se sinta totalmente desprovido.

EXERCCIO E TREINAMENTO NA FORMAO DE COMPETNCIASO treinamento poderia ser associado a um "aprendizado no campo" relativamente incompressvel, quaisquer que sejam a durao e a qualidade da formao anterior. Nenhum engenheiro adapta-se imediatamente a um determinado posto de trabalho em uma determinada empresa; ele se torna "operacional" somente aps ter assimilado o que h de singular em seu novo ambiente de trabalho: a organizao do local e das atividades, as tecnologias, a cultura da empresa, as relaes profissionais. Existe at a tentao, nessa perspectiva, de reduzir a competncia aquisio de "conhecimentos locais" que completam os conhecimentos gerais assimilados durante a formao de base. Isso equivaleria a ignorar o fato de que, mais alm dessa aquisio indispensvel, a competncia situa-se alm dos conhecimentos. No se

forma com a assimilao de conhecimentos suplementares, gerais ou locais, mas sim com construo de um conjunto de disposies e esquemas que permitem mobilizar os conhecimentos na situao, no momento certo e com discernimento. Na escola, os alunos aprendem formas de conjugao, fatos histricos ou geogrficos, regras gramaticais, leis fsicas, processos, algoritmos para, por exemplo, efetuar uma diviso por escrito ou resolver uma equao do segundo grau. Mesmo de posse desses conhecimentos, eles sabero em que circunstncias e em que momento aplic-los? na possibilidade de relacionar, pertinentemente, os conhecimentos prvios e os problemas que se reconhece uma competncia. As observaes didticas mostram que a maioria dos alunos extrai da forma e do contedo das instrues recebidas ndices suficientes para saber o que fazer, ou seja, parecem competentes. E eles o so, se considerarmos, imediatamente, que essa competncia limitase a situaes bastante estereotipadas de exerccio e de avaliao escolares e que a escolha, por exemplo, de uma operao aritmtica decorre, com freqncia, mais de uma transposio analgica, a partir de problemas com a mesma forma, do que de uma compreenso intrnseca do problema. Quando um enunciado sugere uma perda, um gasto, uma degradao, uma desacelerao ou um resfriamento, o aluno imagina que se trata de subtrair; procura, ento, dois nmeros adequados, coloca o mais alto frente, o menor a seguir, efetua a operao e anuncia o resultado, normalmente sem interrogar-se por um segundo sobre sua verossimilhana. Assim, o enunciado "Tenho 220 reais, perdi 150. Quanto eu tinha no comeo? Leva freqentemente a subtrair 150 de 220, ou seja, um resultado aberrante. Um ensino mais exigente e um treinamento mais intensivo permitiro superar esse estgio e entender que um problema do tipo subtrativo pode pedir uma adio e vice-versa. Observa-se, no entanto, que a explorao metdica das hipteses tem seus limites (tempo, memria, cansao). Tanto assim que, na vida, no se confrontado com um enunciado, mas sim com uma situao que deve primeiro ser transformada em problema, ou seja, de uma certa maneira deve ser "matematizada". Embora se possa, eventualmente, percorrer a totalidade dos problemas matemticos tpicos, tais como encontrados nos manuais, no se pode, certamente, explorar todas as situaes reais ou possveis que

requerem operaes matemticas. Ou seja, chega um momento em que os conhecimentos acumulados no so mais suficientes, em que no se pode dominar uma situao nova graas a simples conhecimentos aplicados.

O QUE EST EM JOGO NA FORMAOConcebidas dessa maneira, as competncias so importantes metas da formao. Elas podem responder a uma demanda social dirigida para a adaptao ao mercado e s mudanas e tambm podem fornecer os meios para apreender a realidade e no ficar indefeso nas relaes sociais. Procuremos aqui nos equilibrar entre um otimismo beato e um negativismo de princpio. Para diz-lo em duas teses: 1. A evoluo do sistema educacional rumo ao desenvolvimento de competncias uma hiptese digna da maior ateno. Talvez seja essa a nica maneira de "dar um sentido escola" (Develay, 1996; De Vecchi e Carmona-Magnaldi, 1996; Perrenoud, 1996a; Rochex, 1995; Vellas, 1996), para salvar uma forma escolar que est esgotando-se sem que seja percebida, de imediato, alguma alternativa visvel. 2. Essa evoluo difcil, pois ela exige importantes transformaes dos programas, das didticas, da avaliao, do funcionamento das classes e dos estabelecimentos, do ofcio de professor e do ofcio de aluno. Essas transformaes suscitam a resistncia passiva ou ativa por parte dos interessados, de todos aqueles a quem a ordem gerencial, a continuidade das prticas ou a preservao das vantagens adquiridas importam muito mais do que a eficcia da formao. A abordagem pelas competncias no se ope cultura geral, a no ser que esta ltima receba uma orientao enciclopdica. Ao reduzir-se a cultura geral a uma acumulao de conhecimentos, por mais ricos e organizados que sejam, delega-se sua transferncia e a construo de competncias s formaes profissionalizantes, com a exceo de certas competncias disciplinares consideradas fundamentais. Essa no a nica concepo possvel. A prpria essncia de uma cultura geral no ser preparar os jovens para entender e transformar o mundo em que vivem?

Por que a cultura iria tornar-se menos geral, se a formao no passasse apenas pela familiarizao com as obras clssicas ou a pela assimilao de conhecimentos cientficos bsicos, mas tambm pela construo de competncias que permitem enfrentar com dignidade, com senso crtico, com inteligncia, com autonomia e com respeito pelos outros as diversas situaes da vida? Por que a cultura geral no prepararia para enfrentar os problemas da existncia? Essa orientao no est ausente dos longos estudos, freqentemente creditados com virtudes globais de formao da mente, por meio das lnguas mortas, da anlise gramatical, da explicao de textos, do aprendizado do processo experimental, da matemtica ou da informtica. Ser que esse credo, consagrado pela tradio tanto humanista como cientfica, por exemplo, a corrente de Bachelard, no remete para o que chamamos aqui de competncias?

COMPETNCIAS E PRTICAS SOCIAISToda competncia est, fundamentalmente, ligada a uma prtica social de certa complexidade. No a um gesto dado, mas sim a um conjunto de gestos, posturas e palavras inscritos na prtica que lhes confere sentido e continuidade. Uma competncia no remete, necessariamente, a uma prtica profissional e exige ainda menos que quem a ela se dedique seja um profissional completo. Assim, como amador, pode-se dar um concerto, organizar viagens, animar uma associao, cuidar de uma criana, plantar tulipas, aplicar dinheiro, jogar uma partida de xadrez ou preparar uma refeio. Tais prticas, entretanto, admitem uma forma profissional. No via nada de estranho nisso: os novos ofcios, de maneira geral, representam o trmino de um processo de gradativa profissionalizao de uma prtica social inicialmente difusa e benvola. perfeitamente normal, pois toda competncia amplamente reconhecida evoca uma prtica profissional instituda, emergente ou virtual. Pretende-se, nas formaes profissionalizantes, preparar para um oficio que confrontar a prtica com situaes de trabalho que, a despeito da singularidade de cada um, podero ser dominadas graas a competncias de uma certa generalidade. Um controlador de trfego areo ou um mdico

devem saber enfrentar uma situao de emergncia; um delegado, uma tomada de refns; um engenheiro, uma falha imprevisvel; um advogado, uma testemunha inesperada; um negociador ou jogador de tnis, tticas inditas de seus adversrios, etc. A implementao de uma formao profissionalizante consiste primeiro na correta identificao das situaes pertinentes, considerando-se, ao mesmo tempo, as situaes relativamente banais, mas que, nem por isso, pedem um tratamento de rotina, e das situaes excepcionais, que requerem a totalidade da percia, da criatividade e do sangue-frio do prtico. Sem ser simples, esse trabalho uni princpio da transposio didtica na formao profissionalizante (Arsac et ai, 1994; Perrenoud, 1994). Nesse campo, nunca faltam as situaes concretas que servem de ponto de partida para a reflexo. O problema no se perder em sua diversidade, agrup-las e hierarquiz-las para identificar um nmero restrito de competncias a serem desenvolvidas e os recursos que elas mobilizam. A questo muito diferente no mbito das formaes escolares gerais, na medida em que elas no levam a nenhuma profisso em particular, nem sequer a um conjunto de profisses. Qual ser, ento, o princpio de identificao das situaes a partir das quais poderiam ser detectadas competncias? Diante desse problema, pode-se distinguir duas estratgias: a primeira consiste em enfatizar competncias transversais, uma vez que sua prpria existncia est sendo contestada (Rey, 1996), e a segunda a de "fazer como se" as disciplinas j formassem para competncias, cujo exerccio na aula prefiguraria a implementao na vida profissional ou na extraprofissional.

PROCURA DE COMPETNCIAS TRANSVERSAISPara escrever programas escolares que visem explicitamente ao desenvolvimento de competncias, pode-se tirar, de diversas prticas sociais, situaes problemticas das quais sero "extradas" competncias ditas transversais. Basta tentar o exerccio por um instante e nota-se que o leque muito amplo, para no dizer inesgotvel. Para reduzi-la, para chegar a listas de razovel tamanho, procura-se elevar o nvel de abstrao, compor conjuntos muito grandes de situaes.

O que encontraremos, ento? Em geral, as caractersticas gerais da ao humana, quer dependam do "agir comunicacional", quer da ao tcnica: ler, escrever, observar, comparar, calcular, antecipar, planejar, julgar, avaliar, decidir, comunicar, informar, explicar, argumentar, convencer, negociar, adaptar, imaginar, analisar, entender, etc. Para tornar comparveis as mais diversas das situaes, basta despoj-las de seu contexto. Encontram-se, dessa forma, as caractersticas universais da ao humana, interativa, simblica, no-programada e, portanto, objeto de decises e de transaes. Em um certo nvel de abstrao, pode-se definila independentemente de seu contedo e contexto. Assim, perfeitamente possvel e legtimo dar sentido a verbos como argumentar, prever ou analisar. Argumentar: "Discutir, recorrendo a argumentos, provar ou contestar algo por meio de argumentos". Argumento: "Raciocnio destinado a provar ou refutar uma proposio e, por extenso, prova para apoiar ou rejeitar uma proposio". Prever: "Conhecer e anunciar (algo futuro) como havendo de ser, havendo de produzir". Previso: Ato de prever, conhecimento do futuro. Analisar. "Fazer a anlise de...". Anlise: "Operao intelectual que consiste em decompor um texto em seus elementos essenciais, para apreender suas relaes e dar ura esquema do conjunto" ou "ato de decompor uma mistura para separar seus constituintes". O dicionrio de francs Le Roberto atesta: pode-se encontrar um significado para esses trs conceitos em total independncia dos contextos e cometidos da ao visada, conservando-se apenas o que h de comum em uma multiplicidade de aes ou de operaes, na verdade, muito diferentes. Isso significa que tais aes, reunidas logicamente, apelam para uma nica e mesma competncia? No h nada menos seguro. Tomemos o exemplo da anlise. Pode-se defender a idia de que uma pessoa dominaria um processo analtico geral, aplicvel a todos os contedos, nos contextos mais variados. Pode-se afirmar, ao contrrio, que em cada tipo de contexto e para cada tipo de contedo deve-se construir unia competncia especfica. Essa segunda tese parece mais prxima do que tanto as cincias humanas como a experincia diria ensinam-nos: quem sabe analisar um texto no sabe, ipso jacto, analisar um produto

qumico e vice-versa. O dicionrio Le Robert, alis, distingue explicitamente dois sentidos, fazendo da anlise qumica uma prtica especfica. Porm, os outros processos de anlise tm uma maior unidade? Podemos considerar a anlise de um nmero, de uma constelao estelar, de uma paisagem, de um quadro clnico, estatstico ou artstico, de um sonho, de uma radiografia ou de uma partitura musical como as manifestaes de uma nica e mesma competncia? Em todos os casos, h uma anlise, no sentido de separao de componentes, mas a unidade do conceito na mente do observador, e at na do sujeito implicado, no comanda a unidade da competncia. Ainda que exista um improvvel ator que desenvolveu uma competncia de anlise de realidades to diversas para, mais alm da pluralidade dos contextos, dos contedos, dos riscos e das finalidades da anlise, pode-se simplesmente avanar na hiptese de que sua "competncia analtica" no se constituiu de uma vez s, mas construiu-se por generalizao, posta em relao ou transferncia de competncias mais especficas. Afinal de contas, cabe a cada um, diante da realidade, constituir a sua maneira conjuntos de situaes. Se for capaz de agrupar todas as situaes que pedem uma anlise e de mobilizar uma nica e mesma "competncia analtica" para enfrentadas, muito bem. Contudo, isso no autoriza nem a postular uma competncia to ampla em outros atores, nem sequer prev-la ou desejar seu progressivo desenvolvimento em cada um, como se houvesse um inegvel benefcio em saber analisar algo a partir de uma nica competncia. Algum pode atingir a excelncia em diversos processos de anlises, desenvolvendo, para cada um deles, uma competncia especfica. No h nada que diga que isso seria menos eficaz, pelo contrrio.

PRTICAS DE REFERNCIA E DE TRANSPOSIOEssa problemtica embaraosa para quem deseja elaborar um referencial de competncias transversais. Por definio, tal referencial padro, pois convida os que o utilizam a aceitarem os conjuntos de situaes escolhidos pelos autores do referencial, ou seja, sua viso do mundo. Essa maneira de agir parcialmente defensvel no campo das profisses, devido

referncia comum a uma cultura profissional que prope uma tipologia das situaes de trabalho. Nada existe de equivalente para as situaes da vida. As aes e as operaes repertoriadas no dicionrio imaginar, raciocinar, analisar, antecipar, etc. no correspondem a situaes identificveis, to abstrato seu nvel de formulao e a ausncia de referncia a um certo contexto, a um desafio, a uma prtica social. Tal problema no existe apenas para competncias metodolgicas ou transdisciplinares, mas surge em cada disciplina: na lngua francesa, por exemplo, resumir designa prticas muito diversas, assim como argumentar, interrogar, narrar ou explicar. Os textos de mesma caracterstica tm uma unidade sinttica ao nvel da "gramtica textual", mas seu sentido pragmtico pode ser muito variado. Resumir para encontrar uma informao, para dar uma viso geral, para incitar a ler, para dispensar de ler, para apoiar um argumento crtico, para facilitar as pesquisas em uma base de dados so prticas distintas, que remetem, geralmente, a competncias diferenciadas, mesmo que haja sempre uma "contrao de texto", ou seja, algumas operaes textuais comuns. Um plano de estudo no pode permitir que os professores, os quais utilizaro um conjunto de disciplinas e nveis, afastem-se por conta de uma mirade de situaes particulares. Estas ltimas poderiam gerar, no momento de sua enunciao, difceis problemas ticos ou ideolgicos. Inscrever "saber argumentar" em um referencial de competncias para a escola bsica s incomoda quem acredita - uma minoria hoje, provavelmente - que melhor no ensinar a argumentao a um maior nmero de alunos sob pena de ameaar a ordem social. Em contrapartida, se as situaes e prticas argumentativas de referncia forem especificadas, surgem inmeros dilemas polticos e ticos. Na vida, com efeito, argumenta-se no s para defender causas nobres, para fazer ouvir o direito ou a razo, mas tambm para influenciar os outros para fins menos nobres, para ganhar uma deciso, para fazer calar um adversrio, para desculpar-se, para escapar de uma sano, para ocultar um engano, para desviar a ateno, para pedir um favor, para brilhar na sociedade, para deixar o outro em dificuldade, para vencer uma eleio, para ser contratado, para obter uma autorizao, para barganhar ou vender, para ganhar tempo. Quem admitiria que a escola prepare abertamente para

situaes "moralmente ambguas"? Enquanto argumentar parece ser, in abstracto, uma competncia "nobre", qualquer referncia a um risco realista poderia suscitar um vivo debate tico e ideolgico. Pode-se tentar o mesmo exerccio com raciocinar, calcular ou imaginar: pode-se "imaginar" uma festa inslita ou um suplcio original; pode-se "calcular" para elaborar um oramento de desenvolvimento ou uma fraude fiscal; pode-se "raciocinar" para salvar uma vida ou preparar um assalto. Entende-se por que a escola no se aventura no campo minado das prticas sociais e costuma contentar-se, ao propor um referencial de prticas transversais, com frmulas cautelosas, bastante "etreas", no melhor dos casos acompanhadas de alguns exemplos apresentveis. Tais programas, infelizmente, no resolvem a questo da transposio didtica. Se as competncias sero formadas pela prtica, isso deve ocorrer, necessariamente, em situaes concretas, com contedos, contextos e riscos identificados. Quando o programa no prope nenhum contexto, entrega aos professores a responsabilidade, isto , o poder e o risco de determin-lo. Isso agradar aos que desejam dar a eles a maior autonomia possvel na escolha dos contedos e dos processos de formao. Porm, surgem dois problemas: Os professores adeptos da idia de competncia assumem tremendas responsabilidades na escolha das prticas sociais de referncia e investem nelas sua prpria viso de sociedade, cultura e ao, ainda mais medida que transmitem conhecimentos. Os professores que no se interessam por essa abordagem, que no desejam nem podem fazer esse trabalho de transposio a partir das prticas sociais, iro desprez-la e ficaro limitados a competncias disciplinates consagradas, como, por exemplo, em francs, o resumo, a explicao de textos, a composio de idias; em matemtica, as operaes aritmticas, a resoluo de problemas ou equaes, a construo de figuras, a demonstrao. Elas investiro, por outro lado, o essencial de sua energia na transmisso de conhecimentos tericos e mtodos. Haver uma resposta satisfatria para essa pergunta? Talvez, desde que os autores dos programas estejam, ao mesmo tempo, engajados o bastante para fazer escolhas claras e sejam hbeis o suficiente para multiplicar os exemplos de situaes isentas de equvoco sem, por isso, carem na

armadilha da lista exaustiva. Isso exigiria uma resposta clara e, portanto, corajosa pergunta de saber que tipo de seres bitmanoi a escola quer formar, com vista a que prticas familiares, sexuais, polticas, sindicais, artsticas, esportivas, associativas, etc. Disso depende a escolha das competncias transversais a serem desenvolvidas! Na verdade, os conhecimentos poderiam gerar os mesmos problemas, desde que se queira pensar a esse respeito. Eles so protegidos, entregando-se a cada um dos professores a responsabilidade moral do seu uso - cincias sem conscincia - e acentuando-se o carter geral e propedutico dos conhecimentos ensinados na escola primria ou no colgio. Somente mais adiante no currculo so que se transmite - por exemplo, para os futuros mdicos, qumicos, informticos ou engenheiros - conhecimentos suscetveis de salvar ou destruir vidas ou bens. Tratandose das competncias, fica difcil embaralhar as coisas, pois no existem competncias propeduticas, uma vez que cada uma confere, de imediato, um poder sobre os outros e o mundo. O uso desse poder inscreve-se em relaes sociais, ou seja, fica suspeito de "subverso", de desistir dos clichs e dos esteretipos. Estaro os sistemas educacionais prontos para chamar as coisas pelo seu nome? Se adotarem a linguagem das competncias transversais, preferiro contentar-se com formulaes muito gerais e asspticas, sem referncia a prticas ou contextos identificveis. Assim, os textos sero neutros e uniformes o bastante para serem adotados por instncias decisrias que s conseguem entender-se com intenes relativamente vagas. Uma sociedade democrtica procura, legitimamente, um meio-termo aceitvel (Perrenoud, 1995a). Essa procura do consenso no encoraja a expresso clara das finalidades da escola e obscurece qualquer referncia concreta vida das pessoas, para no destacar a diversidade dos valores e da desigualdade das condies sociais. Talvez se pudesse, ainda hoje, propor formar os alunos na compreenso ativa dos desafios e dos perigos da engenharia gentica. Quem ousaria fazer uma proposta equivalente para o perigo nuclear? Os lobbies, sentindo seus interesses ameaados, fariam presso a favor de uma frmula mais prudente, do tipo "Entender os desafios, as chances e os riscos do desenvolvimento tecnolgico".

COMPETNCIAS E DISCIPLINASAlguns temem que desenvolver competncias na escola levaria a renunciar s disciplinas de ensino e apostar tudo em competncias transversais e em uma formao pluri, inter ou transdisciplinar. Esse temor infundado: a questo saber qual concepo das disciplinas escolares adotar. Em toda hiptese, as competncias mobilizam conhecimentos dos quais, grande parte e continuar sendo de ordem