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VII SEMINÁRIO REDESTRADO – NUEVAS REGULACIONES EN AMÉRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008 1 TRABALHO DOCENTE, CARREIRA E AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA E MERCANTILIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO Roberto Leher * e Alessandra Lopes No período subseqüente à Crise da Dívida de 1982, especialmente a partir de meados dos anos 1990, fase em que as condições materiais e simbólicas do trabalho docente foram mais atingidas pelas contra-reformas, as investigações acadêmicas dedicadas a investigar o tema foram menos numerosas. Muitos estudos priorizaram temas importantes como: a representação do docente sobre o seu labor, a formação docente, as “competências” como centralidade da formação e o professor reflexivo. “Tais estudos não conseguem refletir, mesmo porque não se propõem, as condições efetivas em que se realiza o trabalho na escola” (OLIVEIRA, et.al.,s/d). Este estudo se soma aos que sustentam que a forma de abordar a problemática não pode deixar de considerar a organização do trabalho como uma forma específica de organização do trabalho sob o capitalismo (ANTUNES, 1999). Com efeito, as profundas modificações no mundo do trabalho, concomitantes a concentrada ofensiva governamental no plano das políticas trabalhista, previdenciária e educacional por meio de Portarias, Decretos, Leis, mudanças constitucionais, como a Emenda Constitucional N. 19 – que alcançou a garantia de regime jurídico único para os professores das instituições federais e destacados direitos previdenciários (Emendas Constitucionais N os 20 e 41) – , transtornaram o conjunto do trabalho docente, tanto em nível básico, como em nível superior. Essas mudanças nas condições contratuais do trabalho foram acompanhadas de movimentos de expropriação do saber docente e de subordinação do que é dado a pensar às agências externas às instituições educacionais. Embora o presente artigo tenha como propósito principal analisar o trabalho docente na educação superior, é preciso situar brevemente a materialidade do trabalho docente na rede pública em geral. E, por isso é inescapável examinar * . Professor da Faculdade de Educação da UFRJ . Faculdade de Educação (Bolsista PIBIC/CNPq)

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    TRABALHO DOCENTE, CARREIRA E AUTONOMIA UNIVERSITRIA E

    MERCANTILIZAO DA EDUCAO

    Roberto Leher* e Alessandra Lopes

    No perodo subseqente Crise da Dvida de 1982, especialmente a partir de

    meados dos anos 1990, fase em que as condies materiais e simblicas do

    trabalho docente foram mais atingidas pelas contra-reformas, as investigaes

    acadmicas dedicadas a investigar o tema foram menos numerosas. Muitos estudos

    priorizaram temas importantes como: a representao do docente sobre o seu

    labor, a formao docente, as competncias como centralidade da formao e o

    professor reflexivo. Tais estudos no conseguem refletir, mesmo porque no se

    propem, as condies efetivas em que se realiza o trabalho na escola (OLIVEIRA,

    et.al.,s/d). Este estudo se soma aos que sustentam que a forma de abordar a

    problemtica no pode deixar de considerar a organizao do trabalho como uma

    forma especfica de organizao do trabalho sob o capitalismo (ANTUNES, 1999).

    Com efeito, as profundas modificaes no mundo do trabalho, concomitantes

    a concentrada ofensiva governamental no plano das polticas trabalhista,

    previdenciria e educacional por meio de Portarias, Decretos, Leis, mudanas

    constitucionais, como a Emenda Constitucional N. 19 que alcanou a garantia de

    regime jurdico nico para os professores das instituies federais e destacados

    direitos previdencirios (Emendas Constitucionais Nos 20 e 41) , transtornaram o

    conjunto do trabalho docente, tanto em nvel bsico, como em nvel superior. Essas

    mudanas nas condies contratuais do trabalho foram acompanhadas de

    movimentos de expropriao do saber docente e de subordinao do que dado a

    pensar s agncias externas s instituies educacionais.

    Embora o presente artigo tenha como propsito principal analisar o trabalho

    docente na educao superior, preciso situar brevemente a materialidade do

    trabalho docente na rede pblica em geral. E, por isso inescapvel examinar

    * . Professor da Faculdade de Educao da UFRJ

    . Faculdade de Educao (Bolsista PIBIC/CNPq)

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    tambm o trabalho na educao bsica, nvel em que atua a grande maioria dos

    docentes da rede pblica e que se relaciona mais diretamente com grande parte da

    infncia e juventude trabalhadora. Embora as condies salariais e de carreira

    sejam, em geral, significativamente melhores na educao superior, a precarizao,

    a compresso salarial, a intensificao do trabalho e os processos de expropriao

    do conhecimento e de subordinao da produo do conhecimento a espaos de

    poder extra-educacionais possuem fortes similaridades. Ademais, a precarizao

    dos professores da educao bsica repercute diretamente na formao de

    professores nas universidades, engendrando transformaes que alteram a

    totalidade da instituio universitria. Entre as medidas de maior repercusso

    necessrio mencionar a relocalizao da formao em cursos distncia e, a partir

    de 2007, na Universidade Aberta do Brasil, processo este inscrito na ressignificao

    da universidade como organizao de ensino terciriai.

    A carreira da educao bsica dos professores brasileiros, conforme

    reconhecem a Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e a UNESCOii, est

    entre as piores em termos de remunerao entre os pases de perfil semelhante. O

    estudo demonstra, ainda, que, no Brasil, alm dos salrios serem muito baixos, a

    diferena salarial entre o incio da carreira e o trmino no ultrapassa 45%,

    enquanto que em pases como Portugal, a diferena da ordem de 170%. No

    surpreende, pois, o elevado grau de evaso de estudantes dos cursos de formao

    de professores e os abandonos da profisso. Conforme o Frum de Pr-Reitores de

    Graduao das universidades federais, o ndice de evaso dos cursos de licenciatura

    ultrapassa 50% em cursos como matemtica, fsica, educao artstica, alcanando

    75% em qumica. O documento da UNESCO acima mencionado indica que sero

    necessrios cerca de 400 mil novos docentes na prxima dcada para o ensino

    fundamental. Considerando os baixos gastos educacionais, em torno de 3,5% do

    PIB, e os baixos salrios, essa meta ser difcil de alcanar considerando-se uma

    formao de qualidade.

    A alternativa de formao nos moldes de programas como o Pr-Licenciatura,

    que prev a formao a distncia e, principalmente, com a localizao do consrcio

    Universidade Aberta do Brasiliii no centro da formao massiva de docentes, de se

    prever que as referidas metas quantitativas podem ser alcanadas, mas em

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    detrimento da qualidade da formao. Com efeito, a partir da definio da EAD

    como modalidade de ensino pela Lei 9394/96 e, principalmente, pelo Decreto

    5.622/05, editado pelo governo Lula da Silva, medida aperfeioada pelo Decreto

    6.303/07, j no contexto do Plano de Desenvolvimento da Educao, no resta

    dvida de que a EAD a principal estratgia de formao de professores, colocando

    as universidades a reboque desta estratgia.

    As implicaes educacionais desse deslocamento so notavelmente

    relevantes. A formao a distncia ou em cursos presenciais de curta durao nos

    termos do fast delivery diploma esvazia o territrio concreto da formao

    universitria as faculdades de educao e os institutos de cincias bsicas e

    esto referenciadas em diretrizes curriculares com foco nas chamadas

    competncias centradas em indivduosiv.

    Contudo, preciso indagar tambm sobre o sentido dessa formao

    aligeirada. No possvel deixar de observar a quase ausncia de estudos que

    situem essa problemtica no escopo da especificidade do capitalismo materializado

    no pas e na regio. Essa imensa precarizao do trabalho docente (e o

    aligeiramento da educao pblica em todos os nveis) congruente com o

    aprofundamento da condio capitalista dependente do pas que se aprofunda com

    a reprimarizao (BASUALDO & ARCEO, 2006; GONALVES, 2006).

    Recentemente, o Ministro Roberto Mangabeira Unger, encarregado de pensar

    estrategicamente o pas, fez projees educacionais para o futuro prximo do

    Brasilv. Chama a ateno o fato de que a universidade no tem lugar na sua poltica

    e em seu discurso. Mesmo recusando a tentao de estabelecer nexos causais

    lineares, nos moldes do portanto, por conseguinte etc., evidente que uma

    projeo de futuro em que a universidade no uma instituio relevante repercute

    na natureza e no carter da educao bsica. Se a educao bsica no parte de

    um sistema que contm universidades pblicas abertas a todos os que desejam

    prosseguir os seus estudos, e de alta qualidade, o pragmatismo e o utilitarismo da

    formao podem ser mais explcitos. Em termos gramscianos, a escola pode ser

    mais interessada, balizando-se pelas demandas (modestas) do mercado. A

    investigao dos nexos entre o padro de acumulao e a educao foi objeto de

    vigorosas pesquisas de Florestan Fernandesvi que analisou as mediaes entre a

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    condio capitalista dependente e a heteronomia cultural. O presente artigo

    reivindica a atualidade dessa perspectiva para dar conta da reflexo do trabalho

    docente no processo capitalista.

    As indicaes feitas a respeito do trabalho docente na educao bsica,

    articuladas s consideraes sobre o esvaecimento da formao universitria,

    sugerem um quadro geral de depauperamento da formao e da docncia.

    plausvel argumentar que o rebaixamento da formao est relacionado baixa

    expectativa da formao da massa de estudantes que freqentam as escolas

    pblicas, notadamente daquelas situadas nas reas de maior concentrao de

    trabalhadores precarizados, desempregados e hiperexplorados, loci em que

    habitam o imenso exrcito industrial de reserva do sculo XXI (DAVIS, 2006). A

    partir dessas consideraes possvel examinar o trabalho docente dos professores

    das universidades federais brasileiras. Estaro eles completamente apartados desse

    quadro?

    Desde o incio da dcada de 1980, a ento Associao Nacional dos Docentes

    das Instituies de Ensino Superior (ANDES), hoje Sindicato Nacional dos Docentes

    das Instituies de Ensino Superior (ANDES-SN), concebeu o trabalho docente

    como parte de seu projeto de universidadevii, sustentando que a carreira condio

    para uma docncia plena e para garantir a indissociabilidade entre ensino, pesquisa

    e extenso. preciso lembrar que os ento 42 mil docentes das universidades

    Federais no possuam uma carreira nacional, havendo significativas diferenas

    entre os que atuavam nas Federais autrquicas e nas Federais fundacionais (como

    as implementadas pela ditadura empresarial-militar).

    O debate, no perodo, estava ligado problemtica gramsciana do padro

    unitrio de qualidade das instituies de ensino pblicas. Coexistiam instituies

    com naturezas jurdicas distintas (autrquicas e fundacionais) e com carreiras

    diferentes. Todas as novas instituies criadas pela ditadura foram fundacionais,

    mais atraentes em termos salariais, mas com menos direitos previdencirios e de

    estabilidade do que as autrquicas. Isso no foi uma poltica desinteressada da

    ditadura empresarial-militar. As fundacionais possuam docentes regidos pela CLT,

    significando uma via para a privatizao das universidades federais. Por isso, a luta

    dos professores pela unificao jurdica das instituies federais de ensino superior

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    (IFES) e, por conseqncia, para a consolidao de uma carreira unificada para

    todos os professores das Federais era algo que colidia com as perspectivas do

    governo ditatorial.

    Era compreenso dos professores organizados nas nascentes associaes de

    docentes que a carreira deveria, alm de garantir a indissociabilidade entre ensino,

    pesquisa e extenso, possuir carter nacional e assegurar que a progresso seria

    por titulao e pelo mrito acadmico. Ademais, a carreira nacional pressupunha o

    ingresso exclusivamente por concurso pblico, afastando prticas clientelistas que

    reproduziam os padres de poder estabelecidos, uma condio para o pluralismo

    acadmico, um tema em si mesmo de grande relevncia, mas ainda mais

    importante em um contexto de ditadura.

    Desse modo, o conceito de que a carreira deveria ser um instrumento para a

    autonomia intelectual do docente, permitindo-o realizar a referida

    indissociabilidade, ao ser assimilado como uma bandeira poltica fez irromper um

    tema particularmente difcil, visto que o pas ainda se encontrava submetido a um

    regime empresarial-militar ditatorial. A idia de uma carreira que garantisse a

    estabilidade no emprego como condio para a autonomia intelectual dos

    professores era obviamente um antema para um regime que prendeu e afastou

    compulsoriamente docentes e estudantes por meio do AI-5 e do Decreto 477/68.

    A conquista da carreira para o magistrio em 1981, aps uma extensa greve

    realizada por 35 mil docentes, fora dos marcos legais vigentes que impediam

    greves no setor pblico, foi um marco importante na luta pela carreira nacional.

    Garantiu uma nova tabela de vencimentos para os docentes das IFES autrquicas,

    promoveu a incorporao dos professores colaboradores contratados at 1979 em

    seus quadros efetivos e, principalmente, foi o incio de um longo processo

    permeado de reivindicaes e conquistas que levou aprovao, em 1987, do

    PUCRCE Plano nico de Classificao e Retribuies de Cargos e Salrios,

    acabando com as diferenas ainda existentes entre os docentes das IFES

    fundacionais e das IFES autrquicas.

    Mesmo com o fim da ditadura empresarial-militar, as lutas pelo carter

    unitrio e pblico das IFES no se deram em um contexto mais fcil. A transio

    pelo alto, o silenciamento do debate sobre o pblico, por meio da oposio entre o

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    Estatal-burocrtico e a Sociedade civil-democrtica (LEHER & SADER, 2004),

    manteve a agenda universitria prisioneira de projetos que claramente

    pressupunham a diferenciao das IFES, como o Projeto GERES Grupo Executivo

    para a Reformulao do Ensino Superior. Criado em 1986 no governo Sarney, que

    entregara o MEC a Jorge Bornhausen, notrio organizador da ditadura, fez acender

    um intenso debate entre alguns setores da sociedade civil, a exemplo da ANDES,

    Academia Brasileira de Cincias e da SBPC, cindindo a unidade poltica que at

    ento caracterizara a ao dessas entidades. Parte minoritria da Andes defendia

    que a entidade deveria negociar os termos da reestruturao, posio encontrada

    tambm nas outras duas entidades. Contudo, a avaliao majoritria do movimento

    docente e de setores da SBPC considerava a proposta nefasta e, por conseguinte,

    no deveria ser emendada, mas combatida. Com efeito, o GERES recomendara que

    o governo de Jos Sarney deveria apoiar as instituies de maior prestgio

    objetivando constituir centros de excelncia, o que pressupunha que as demais

    deveriam se especializar como instituies de ensino tout court, denominadas na

    poca como escoles.

    Os embates contra o GERES indicaram que uma outra dimenso do padro

    unitrio de qualidade estava em jogo: a possibilidade de fazer pesquisa e,

    sobretudo, de fazer pesquisa acadmica, inclusive por meio da investigao no

    pragmtica de questes tericas e referentes a problemas lgicos internos aos

    diversos campos do conhecimento. Assim, distintamente das expectativas em torno

    da Nova Repblica (nutridas pela participao de setores que haviam resistido

    ditadura, como os provenientes do MDB), ficou evidente para muitos, entre eles

    Florestan Fernandes (1986), que o novo governo seria incapaz de alterar as bases

    econmicas erigidas pela ditadura empresarial-militar. Tampouco aconteceram

    mudanas significativas nas universidades, frustrando as expectativas de grande

    parte da comunidade acadmica vida por produzir conhecimento novo, original e

    crtico. Os segmentos que haviam colaborado com a modernizao conservadora,

    em nome da cincia, seguiram com prestgio e poder, contribuindo para que a

    Nova Repblica no desfizesse o aparato de C&T erigido pelo governo empresarial-

    militar. Para compreender as continuidades da modernizao conservadora com a

    chamada redemocratizao e suas conseqncias para o trabalho docente,

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    preciso examinar o modo como a heteronomia da universidade se aprofundou na

    Guerra Fria.

    Universidade, modernizao conservadora e heteronomia

    A Guerra Fria tornou-se uma rude realidade na Amrica Latina a partir do

    incio da dcada de 1960, notadamente aps a vitria da Revoluo Cubana (1959).

    Desde ento, a prioridade foi a de impedir, a todo custo, uma nova Cuba na

    regio e, quando a Aliana para o Progresso foi lanada como uma ampla estratgia

    estadunidense para manter a Amrica Latina ao lado do mundo livre, um de seus

    analistas afirmou que o marxismo j era uma realidade na regio e, em particular,

    nas universidades e que, por isso, urgia aes rpidas nas (e sobre as)

    universidades por parte dos EUA (SCHEMAN, 1988).

    Nesse contexto, um dos projetos mais clebres promovido pelas foras

    armadas dos EUA (Special Operations Reseach Office do Exrcito dos EUA) foi o

    Projeto Camelot, at ento a maior subveno concedida a um projeto de cincia

    social. Criado em 1964, consistia em uma grande pesquisa nos pases latino-

    americanos sobre a imagem que os povos tinham dos EUA, a propenso desses

    povos em relao a possveis governos pr-estadunidenses, por meio de estudos

    sociais e de psicologia social. O propsito assumido pelos que financiavam o projeto

    era o de elaborar um modelo geral de sistemas sociais que possibilitasse prever e

    influenciar os aspectos politicamente importantes da mudana social nas naes

    em desenvolvimento do mundo, contemplando: o potencial de guerra interna em

    cada pas, avaliao da melhor maneira de intervir por parte do governo na guerra

    interna e obter informaes estratgicas para alcanar os objetivos polticos

    mencionados.

    Esse programa foi denunciado por pesquisadores estadunidenses,

    notadamente por Irwing Louis Horovitz, professor da Universidade de Washington,

    em virtude de seus bvios objetivos intervencionistas na regio. Ademais, a

    denncia fora dirigida tambm s universidades estadunidenses de prestgio que

    aceitaram participar dessa pesquisa em troca de substanciais recursos. Horovitz

    (1969) denunciou o engajamento de honorveis universidades e pesquisadores

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    estadunidenses no Camelot como fruto de uma poltica que assumiria imensas

    propores no Brasil durante a ditadura: a poltica de editais elaborados fora das

    universidades, por instncias e esferas de poder que tentaram fazer das

    universidades esferas sob sua tutela.

    No Brasil, to logo o golpe foi deflagrado, as universidades foram alvos

    priorizados pelo regime, em uma primeira fase por meio de um abrangente

    processo repressivo, que se agravou com o AI-5 e o Decreto-Lei 477/69. Mas

    medida que o golpe era consolidado, com apoio estadunidense, o governo ditatorial

    promoveu substanciais mudanas na organizao e na forma de financiamento

    pesquisa, alterando, em profundidade, a universidade. A primeira instituio a ser

    atingida de modo sistemtico pela represso foi a UnB. Conforme Salmeron (1999),

    cerca de 80% dos docentes da UnB foram afastados direta ou indiretamente pela

    interveno do novo regime. Logo a seguir, a partir de 1968, a onda repressiva foi

    sumamente agravada com centenas de docentes compulsoriamente afastados de

    suas instituies em todo o pas. Contudo, a interveno estadunidense e do novo

    regime no se limitaram s terrveis prises e aos afastamentos compulsrios de

    docentes.

    importante salientar que a Guerra Fria no se fez sentir apenas por atos

    provenientes de fora da instituio, pois no interior mesmo das universidades,

    programas, acordos, convnios com fundaes estrangeiras, agncias multilaterais,

    agncias locais de fomento produziram dinmicas que reconfiguraram intensamente

    o fazer acadmico. Muitos desses programas de colaborao vinham sendo

    desenvolvidos antes do Golpe e, embora com objetivos frequentemente

    desvinculados da Guerra Fria, difundiram o modelo estadunidense de educao

    superior como o modelo por excelncia para o Brasil. Assim, quando foram

    firmados os acordos MEC-USAID, em 1968, parte de suas recomendaes j era

    ansiada por setores acadmicos locais. No contexto, parecia que havia sido criada

    uma zona cinza, em que os objetivos poltico-ideolgicos e econmicos do

    Departamento de Estado dos EUA foram eclipsados pelo modelo moderno de

    universidade reivindicado por pesquisadores comprometidos com a universidade.

    Contudo, uma considerao menos edulcorada dos acordos MEC-USAID, da

    vinda de conselheiros estadunidenses, dos programas de bibliotecas da United

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    States Information Agency (USIA), da ao das fundaes privadas ligadas ao

    mundo empresarial estadunidense, confirma que estava em curso uma ao de

    longo flego lanada pelo Departamento de Estado estadunidense e pelo governo

    empresarial-militar brasileiro para transformar a universidade brasileira em uma

    instituio inserida na modernizao conservadora da ditadura e pr-EUA.

    A ditadura tinha um dilema a resolver. O apoio ativo dos EUA ao golpe

    empresarial-militar de 1964 indicava que o regime contava com o apoio de

    Washington para alavancar o processo de modernizao conservadora com forte

    presena estatal e com um brao robusto de fraes burguesas locais conformadas

    com um lugar subordinado nas relaes econmicas. Isso demandaria

    inevitavelmente uma universidade que pudesse produzir conhecimento C&T e

    formar quadros tcnicos de alto nvel, tanto para setores estatais estratgicos

    (energia, inclusive nuclear, telecomunicaes, engenharia, agricultura, minrios,

    etc), como para a florescente industrializao por meio de filiais de multinacionais

    e, tambm, por grandes empresas nacionais. O problema concreto que a ditadura

    tinha em suas mos era desenvolver uma universidade com certa capacidade de

    desenvolver pesquisa (o que requereria constituir um sistema de ps-graduao) e,

    ao mesmo tempo, impedir que a pesquisa se voltasse contra a ditadura, uma

    possibilidade real, considerando o alcance e a profundidade dos estudos crticos

    teoria da modernizao e ao desenvolvimentismo.

    O governo empresarial-militar contava com a inteligncia contra-

    revolucionria que apoiava entusiasticamente o golpe empresarial-militar. Como

    salientado, inicialmente o novo regime procurou resolver esse dilema afastando

    muitas das referncias do pensamento crtico, mas no seria possvel afastar a

    todos nos diversos campos do saber. Os termos dessa difcil equao foram

    resolvidos com a edificao de um aparato de C&T que no estaria a servio da

    autonomia universitria. O governo ditatorial convergiu todo o aparato de C&T para

    o interior do ncleo dirigente do novo regime, selecionando os professores que

    fariam parte dos comits a partir de restritas consultas (ou simplesmente sem

    consultas). Dessa forma, as agncias de financiamento converteram-se nos loci

    que definiriam o que seria dado a pensar por meio de editais. Os rgos de C&T

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    foram deslocados para o ento poderoso Ministrio do Planejamento, chefiado na

    poca pelo ministro Antnio Delfim Neto.

    A ps-graduao e a pesquisa foram expandidas imersas nessas

    contradies. A poltica cientfica e tecnolgica da ditadura promoveu grupos,

    linhas de pesquisa e instituies que foram considerados mais afins ao modelo em

    implementao apoiando, inclusive, professores que sustentavam mais ou menos

    abertamente o regime em nome da cincia. Com isso, uma nova hierarquia

    acadmica foi criada, conferindo poder e prestgio a esses professores (e s suas

    linhas de pesquisa) nos programas de ps-graduao. At os dias de hoje vivemos

    os efeitos dessas marcas de origem da ps-graduao e do sistema de cincia e

    tecnologia. Entretanto, no presente, a lealdade ao modelo da modernizao

    conservadora foi substituda por um empreendedorismo mais pragmtico e

    utilitarista, situao que assume novo patamar com a Lei de Inovao Tecnolgica

    (Lei N. 10.973, de 2 de Dezembro de 2004).

    Trabalho docente, luta pela carreira e pelo reconhecimento sindical

    Todas as mudanas promovidas pelo governo empresarial-militar com o

    apoio de setores acadmicos aliados ao regime, implantado aps 1964, no

    deixaram de provocar reaes, inclusive assumindo grandes propores, como as

    lutas de 1968. Para os professores que no nutriam simpatias pela ditadura o

    ingresso na universidade pblica como docente era um processo difcil. Raramente

    eram abertos concursos pblicos. Em geral, os professores entravam como

    colaboradores e assistentes dos Catedrticos. Quando havia um concurso, o

    candidato vaga de professor tinha de apresentar, no ato da inscrio, um

    atestado de bons antecedentes fornecido pela Delegacia de Ordem Poltica e

    Social (DOPS). E entre os que sobreviviam ao cerco, poucos encontravam condies

    mnimas para desenvolver pesquisas que no estivessem em acordo com as linhas

    prioritrias dos editais.

    A ascenso na carreira dependia em grande parte de critrios subjetivos que

    no estavam livres de apreciaes polticas. Ademais, coexistiam dois regimes de

    contratao muito distintos, pelo Estatuto do Servio Pblico ou pela CLT, o que

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    tambm expressava perspectivas distintas sobre o porvir das Universidades

    Federais. No surpreende, portanto, que o problema da carreira tenha impulsionado

    os maiores conflitos das universidades federais com o governo empresarial-militar

    no incio da dcada de 1980. A localizao da carreira acadmica como parte de um

    projeto de universidade com padro unitrio e como condio para a real

    autonomia dos professores estava inserido na luta por uma universidade que

    pudesse definir, nos termos de suas normas acadmicas, suas prioridades de

    ensino e pesquisa, algo impensvel na ditadura.

    As lutas pelo reconhecimento dos profissionais da educao como

    trabalhadores portadores de direitos, inclusive sindicais, lograram conquistas

    importantes, como o Plano nico de Classificao e Retribuio de Cargos e

    Empregos para o pessoal docente e tcnico-administrativo das Instituies Federais

    de Ensino Superior (PUCRCE) e, sobretudo, o direito de greve e de organizao

    sindical no setor pblico na Carta de 1988. A conquista dos direitos sindicais e da

    estabilidade do emprego com o Regime Jurdico nico expressa a vitria de uma

    longa luta travada desde os speros anos da ditadura. No menos relevante, a

    Constituio assegurou a condio autnoma da universidade e a exigncia da

    indissociabilidade ensino, pesquisa e extenso para que uma instituio fosse

    denominada universidade.

    Construindo a converso do docente em empreendedor

    A vingana do capital no tardou a se impor com a entrada do Brasil no

    moinho satnico das polticas neoliberais, nas dcadas de 1990 e 2000. Em meados

    dos anos 1990, um analista da CEPAL sustentava que, para avanar nas contra-

    reformas, era preciso quebrar o monoplio do saber dos professores (LABARCA,

    1995). Trs anos depois, os professores das IFES dependiam de uma gratificao

    de desempenho, a Gratificao de Estmulo Docncia (GED), inspirada nos

    manuais de reengenharia e da qualidade total. Com a nova gratificao, parte

    substantiva da remunerao do professor passou a depender de sua

    produtividade individual. Criada como instrumento indutor de transformaes

    das prticas docentesviii, ela estabeleceu que o valor da gratificao recebido pelos

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    docentes dependeria de um sistema de pontuao que estabeleceria parmetros

    para a avaliao da prtica docente e conformaria uma determinada idia do que

    deveria constituir a atividade de um professor universitrio.

    Os pontos eram computados por: a) hora-aula semanal; b) orientaes

    aluno/ano; c) produo intelectual: livro publicado; obra artstica e exposio;

    artigo e resenha publicados em peridico nacional e internacional. Alm disso, a

    avaliao abarcava produto de divulgao cientfica, tecnolgica, artstica ou

    cultural; artigo de opinio; artigos completos em congressos nacionais e

    internacionais; patente ou registro de software; projeto didtico-pedaggico de

    inovao curricular, desenvolvimento de tecnologias e de equipamentos de apoio ao

    ensino; atividades de extenso no remuneradas cursos, conferncia proferida,

    participao em comisses organizadoras, em mesasredondas, e projetos;

    atividades de qualificao docente em formao; atividades administrativas e de

    representao.

    No contexto da GED, a observao sem remunerao naturalizava o fato de

    que o professor poderia desenvolver atividades com o objetivo de obter uma

    remunerao extra cursos de ps-graduao lato sensuix, consultorias, atividades

    administrativas e de representao desde que estas no compusessem a

    pontuao da GED por j preverem remunerao. A GED instituiu uma lgica

    empresarial no fazer acadmico e, ao mesmo tempo, banalizou o

    empreendedorismo por meio de prticas como a cobrana de mensalidade nos

    cursos lato sensu em instituies pblicas de ensino superior que se converteram,

    muitas vezes, em fonte de remunerao adicional, principalmente para os docentes

    da ps-graduao, devido possibilidade de ministrarem tais cursos e de

    trabalharem em contratos com empresas privadas. Prticas que foram

    posteriormente ampliadas e regularizadas pelo governo por meio de leis, decretos e

    pareceres que contemplaram o incentivo pesquisa e desenvolvimento e

    cooperao cientfica e tecnolgica e institucionalizaram as fundaes ditas de

    apoio, privadas, nas instituies pblicas.

    Ao mesmo tempo, a avaliao da CAPES que outrora desempenhara um

    papel relevante na organizao do sistema de ps-graduao brasileiro, incorporou

    a mesma lgica produtivista, pragmtica e utilitarista presente na GED e nos

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    mecanismos de financiamento do Ministrio de Cincia e Tecnologia, situao que

    alcana o paroxismo no Plano Nacional de Ps-Graduao 2005-2010. Em lugar de

    avaliar o programa, suas dificuldades, potencialidades e relevncia para a

    instituio e para a regio, o resultado da avaliao depende de uma planilha de

    indicadores cujo foco incide diretamente sobre cada professor credenciado na ps-

    graduao: inicialmente, exigindo um padro produtivista, depois, restringindo o

    campo possvel desse produtivismo, impondo que as publicaes sejam limitadas a

    um conjunto de peridicos qualificados e que a produo do conhecimento gere

    produtos teis, utilidade essa que os Conselhos do Ministrio da Cincia e

    Tecnologia (MCT), tambm composto por representantes das empresas, aferiro

    conforme a eficcia da pesquisa vis--vis ao mercado. A excelncia acadmica, na

    virada do sculo e, em especial na presente dcada, sofre relexicalizaes

    profundas, sendo identificada crescentemente com o empreendedorismo.

    Slaughter e Leslie (1997) afirmaram que o trabalho dos professores est

    cada vez mais dirigido para a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) ou, nos termos do

    lxico do MCT, para a Inovao. As verbas de pesquisa, desde a ditadura

    empresarial-militar, vm sendo disponibilizadas por editais que definem cada vez

    mais as prioridades de investigao em detrimento de editais no dirigidos e,

    principalmente por recursos da prpria universidade. A rigor, hoje nenhum

    professor imagina apresentar seu projeto de pesquisa universidade que, nesse

    caso, torna-se quase que irrelevante como espao em que as pesquisas so

    aprovadas por seu mrito.

    Como a remunerao, na tica das polticas vigentes, deve expressar a

    produtividade do docente, as bolsas de produtividade em pesquisa, em

    desenvolvimento cientfico e inovao tecnolgica oferecidas pelo CNPq passam a

    ter uma relevncia jamais conhecida, no apenas pela complementao salarial,

    como pela possibilidade de recursos extras no CNPq para apoio pesquisa e por ser

    um signo do prestgio do professor no sistema de C&T, abrindo caminho para bolsas

    de iniciao cientfica adicionais, apoio a viagens internacionais etc. Concedidas

    diretamente a profissionais com doutorado concludo h, no mnimo, dois anos,

    apresenta, entre os critrios para sua concesso e manuteno, a ininterrupta

    produo seja em prottipos, artigos, livros etc.

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    A estrutura bsica apresentada pelos critrios de concesso de bolsas

    similar quela j mencionada para a avaliao da GED. Entre as exigncias do

    programa esto: a publicao de artigos, livros e captulos; a formao de recursos

    humanos; a elaborao de equipamentos, inclusive didticos e paradidticos; a

    participao em congressos; trabalhos em anais; elaborao de prottipos; registro

    de patente. O alcance intencionado por programas como esse parece estar no s

    na prtica docente como na prpria carreira, que passa a encontrar modelos,

    classificaes e relaes outras, visto que as bolsas de produtividade prevem sua

    renovao e continuidade por meio de diferentes categorias e nveis, dependendo

    muito mais do produtivismo do profissional do que da pesquisa em si. A passagem

    ou promoo de um nvel ou categoria a outros implica em maior produo,

    literalmente: maior circulao nacional e internacional; comprovada capacidade na

    formao de quadros; demonstrao da produo de artigos em peridicos

    nacionais e/ou internacionais, livros e/ou captulos de livro, apresentao de

    trabalhos em eventos nacionais e/ou internacionais e publicao de trabalhos

    completos em anais; orientao de alunos de iniciao cientfica (IC) e de ps-

    graduandos, com a concluso de mestrado (ME) e de doutorado (DO).

    Evidentemente, esses critrios, se analisados de forma isolada, nada teriam

    a ver com a lgica produtivista e mercantil; entretanto, ao serem quantificadas e

    qualificadas conforme os critrios hegemnicos do sistema de C&T induzem a

    avaliao do professor dentro de determinados parmetros. Certamente, muitos

    professores no inseridos nesse perfil atendem tais critrios, obtendo bolsa, mas,

    alternativamente, muitos outros que se encaixam no modelo podem no ser

    docentes especialmente engajados no ensino, na pesquisa e na extenso

    propriamente acadmicas.

    Como inegvel o aumento da produo cientfica, tecnolgica e cultural dos

    professores e, ainda, os recursos disponveis no tiveram o aumento

    correspondente ampliao do nmero de doutores, os gestores do sistema

    agregaram outros critrios para aferir a excelncia acadmica, introduzindo

    especificaes estabelecidas, por exemplo, por meio do sistema Qualis, da

    indexao ao Scielo e pela utilizao de outras bases de dados. Com isso, a via que

    permite o acesso ao sistema de bolsas de produtividade torna-se mais restrita,

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    aconselhando os professores que desejam chegar ao sistema a adotarem um

    determinado ethos acadmico que no necessariamente tem a ver com a dedicao

    e a relevncia acadmica do trabalho docente.

    Outro mecanismo de complementao de renda poderoso foi possibilitado

    pela Lei n10.973, de dezembro de 2004, denominada Lei de Inovao Tecnolgica.

    Dentre outros aspectos, ela faculta aos docentes o recebimento de incentivos

    financeiros ao desenvolverem projetos em parceria com empresas, assim como

    autoriza o afastamento dos docentes de suas atividades acadmicas para se

    dedicarem s suas inovaes, o que certamente lhes rendero outros ganhos.

    Com efeito, o caminho que leva aos recursos distinto da lgica acadmica

    no mercantil e, para trilh-lo, o docente tem de se ajustar aos editais e, ao

    mesmo tempo, incorporar um determinado modo de trabalho que pode ser mais ou

    menos distante das suas expectativas originais, mas que, certamente, exigir

    uma intensificao considervel do trabalho, inclusive na ps-graduao. Entre os

    novos atributos valorizados, destacam-se o empreendedorismo, a gana de captar

    recursos custe-o-que-custar, inclusive em detrimento da capacidade crtica! Assim,

    flexibilizar as exigncias e os desejos faz parte do jogo. O prprio Estado se

    autodefine como um comprador de servios. Essas so as lgicas da Lei de

    Inovao Tecnolgica, do PROUNI (LEHER, 2004) e do REUNIx, por exemplo.

    Todas essas inflexes so incompatveis com o conceito de trabalho docente,

    carreira docente e de planos de trabalho estabelecidos nos espaos acadmicos

    prprios da universidade. A prpria idia de planos de trabalho elaborados

    conforme critrios dos Departamentos, objetivando atender ao ensino, pesquisa e

    extenso, parece uma idia fora do lugar em uma universidade aberta ao

    mercado e aos seus influxos permanentes. Com efeito, os docentes devem absorver

    integralmente esses fluxos de tarefas para que a sua unidade, o programa de ps-

    graduao e os seus projetos de pesquisa possam prosperar.

    grande a distncia entre o conceito de universidade consignado na

    Constituio Federal e toda a legislao subseqente. O campo universitrio vem

    sendo convertido naturalmente em um espao de interveno heteronmica do

    Estado e, por meio deste, do mercado. A LDB e o Plano Nacional de Educao, os

    Decretos que regulamentam a educao superior, diversificando-a, a avaliao

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    convertida em ferramenta de redesenho da poltica educacional, o estrangulamento

    dos recursos pblicos e a hipertrofia do aparato de Cincia e Tecnologia (C&T

    mais tarde redefinido como Cincia, Tecnologia & Inovao CT&I) externo s

    universidades, tudo isso acompanhado de desregulamentaes que fortalecem o

    mercado educacional, transformam profundamente a educao superior do pas.

    O setor privado passa a ser liderado pelo brao empresarial e a participao

    relativa do setor pblico nas matrculas totais despenca de j modestos 40% para

    25% em uma dcada. Em 2006, h um total de 248 instituies pblicas e 2.022

    privadas, sendo que, destas, 1.583 so particulares (assumidamente com fins

    lucrativos). Isso significa que a proletarizao do trabalho docente cresceu de modo

    extraordinrio. Apenas na presente dcada, o nmero de funes docentes nas

    privadas passou de 73.654 para 201.280, crescimento este notadamente

    significativo nas particulares (210%, passando de 36.865 para 114.481).

    O setor pblico no poderia passar inclume por tudo isso, em particular em

    um contexto em que o mesmo vem recebendo um montante de recursos

    praticamente congelado, desde meados dos anos 1990, para o custeio de

    atividades mnimas. Com o Programa de Reestruturao e Expanso das

    Universidades Federais (REUNI), at o custeio de atividades bsicas depender de

    contratos de gesto com o Estado. Os recursos somente sero disponibilizados se a

    universidade alcanar metas de expanso do nmero de vagas que somente sero

    passveis de serem alcanadas com a intensificao desmedida do trabalho docente

    e com o aligeiramento dos cursos, visto que os recursos a serem liberados no so

    compatveis com as metas de crescimento das vagas. evidente que a lgica

    produtivista impossibilitar a consolidao do carter universitrio das instituies

    federais.

    Precarizao do trabalho docente

    Parte substantiva da infra-estrutura das universidades est terceirizada

    limpeza, segurana, servio de alimentao e at mesmo de enfermaria nos

    Sinopses da Educao Superior 2006, MEC/Inep e Evoluo do Ensino Superior- Graduao 1988-1999,

    MEC/Inep. Dados de 1999. EDUDATABRASIL, Inep.

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    hospitais universitrios. De modo relativamente sutil, at mesmo parte da

    graduao feita com servios terceirizados por professores sem vnculo e sem

    direitos professores-substitutos que chegam a alcanar mais de um quarto dos

    professores das IFES na graduao, totalizando, em 2005, cerca de nove mil

    professores. Como exemplo do alcance nefasto das polticas neoliberais, no Chile,

    somente 30% dos docentes possui contratos trabalhistas estveis.

    As investidas contra os direitos previdencirios dos docentes provocaram trs

    grandes ondas de aposentadorias de professores nas IFES, correspondentes s

    medidas dos governos Collor, Cardoso e Lula da Silva. Mas no houve contrapartida

    de concursos. Ao contrrio. A proliferao de professores substitutos cujo trabalho

    pessimamente remunerado, desprovido de direitos trabalhistas, pressupe longas

    jornadas de trabalho (docentes jovens requerem mais tempo para preparar os

    cursos), em prejuzo de seus cursos de ps-graduao. Ademais, o trabalho desses

    professores centrado na sala-de-aula, desvinculado da pesquisa e da extenso,

    assim como das decises sobre a instituio. As conseqncias dessa precarizao

    atingem tambm os professores efetivos que ficam mais sobrecarregados em

    termos de comisses departamentais, orientaes de monografia, mestrado e

    doutorado, orientao de bolsas tipo PIBIC, bancas etc.

    No s a expanso do quantitativo de professores ocorre com prejuzo aos

    direitos assegurados, e s antigas conquistas em favor do padro unitrio das

    universidades, como acena para a intensificao do trabalho docente, situao

    evidente quando se examina a evoluo de matrculas nas federais. No perodo de

    1996 a 2006, o nmero de matrculas na graduao cresceu 52%, apresentando

    flego impressionante na ps-graduao, onde dados apontam para um

    crescimento de 71% para o mestrado, e 179% para o doutorado. Estatsticas que

    registram a evoluo do nmero de funes docentes, contudo, apresentam um

    crescimento bem mais modesto para o mesmo perodo: 23% para a graduao, e

    68% para a ps-graduao**, o que significa que os docentes credenciados na ps

    tiveram uma intensificao extraordinria de sua jornada de trabalho, visto que no

    h contrato para docentes da ps-graduao. O indicador de crescimento real o

    dos novos professores para a graduao, pouco superior a 20% na ltima dcada.

    ** Sinopses Estatsticas da Educao Superior, INEP, 1996-2006 e Estatsticas Capes 1996-2006.

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    Assim, a carreira para o magistrio superior vai assumindo novos contornos, em

    bases cada vez mais frgeis, e cada vez mais distantes daquilo que um dia a

    definiu: a carreira como condio para o padro unitrio de qualidade e para a real

    autonomia das instituies.

    O aumento gradativo da relao professor/aluno na graduao em 1988

    era de 7,1, em 1998 de 9, e em 2006 chegou 10,8 reflete a intensificao do

    trabalho docente, e indica uma redefinio da relao entre docentes e discentes no

    cotidiano das universidades. O que se observa so turmas que crescem a cada ano,

    sobrecarregando os docentes no atendimento e na orientao de discentes,

    inclusive no intuito de promover sua insero em pesquisas. Ainda, pode-se afirmar

    que os nmeros no mostram com clareza o alcance de tais mudanas. Se a

    contratao de substitutos objetiva cobrir parte da demanda de aulas, todo o

    restante, como salientado, permanece como atividade dos efetivos: aulas na ps-

    graduao stricto sensu, orientaes, representaes etc. A relao professor/aluno

    apresentada, portanto, apenas uma parte do problema da intensificao do

    trabalho docente. O quadro total sugere no s conseqncias diferenciadas na

    sobrecarga de trabalho dos docentes, como tambm alteraes estruturais no

    padro unitrio almejado, tanto para a carreira docente quanto para a

    universidade.

    Evoluo nas IFES _1996-2006

    IFES

    Funes

    Doc.

    Matr.

    Graduao Matr. Ps (stricto sensu)

    1996 44.486 388.987 32.282

    2006 54.560 589.821 64.425

    Crescimento %23% 52% 100%

    Fonte: MEC/Inep/SEEC/Capes

    A despeito de todas as mudanas apontadas no ethos acadmico, ainda

    existem traos marcantes da universidade construda na resistncia ao governo

    empresarial-militar, e muitos professores seguem engajados na formao rigorosa

    Sinopses Estatsticas da educao Superior, INEP, 1996-2006.

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

    19

    de seus estudantes, na graduao e na ps-graduao e comprometidos com os

    problemas nacionais.O que virtuoso aos olhos dos que comungam valores

    construdos na esquerda o pensamento crtico, a formao com padro unitrio

    de qualidade e voltada para uma tica pblica etc., concebido pelos sociais-

    liberais e por vertentes ps-modernas como arcaico. Exemplo marcante desta

    ltima perspectiva o projeto Universidade Nova, mais tarde apresentado como

    medida oficial por meio do REUNI.

    Nos termos da proposta da Universidade Nova (UN) sistematizada pelo reitor

    da UFBA, a formao aligeirada se justifica em Um mundo do trabalho marcado

    pela desregulamentao, flexibilidade e imprevisibilidade no demanda apenas

    especialistas, mas tambm profissionais qualificados e versteis, com competncia

    para atuar em diferentes reas (MONTEIRO, 2007, p.3).

    Essa universidade minimalista, nos termos da proposta original da UN,

    poderia comportar dois ciclos de graduao, o primeiro genrico, rpido, em

    grandes reas, notadamente por meio de cursos semipresenciais. Nesses

    Bacharelados Interdisciplinares a relao professor-aluno poderia alcanar 1: 40 e

    at mesmo 1:80 em alguns cursos. O segundo ciclo de graduao, voltado apenas

    para os talentosos que sobrevivessem ao gargalo da avaliao (algo como um ou

    dois em cada dez, em vrios pases), a relao docente/ estudante poderia se

    estabilizar em 1:40. No caso do REUNI, mais realstico, a relao para o curso

    bsico poderia ser de 1:18, aumentando o nmero de matrculas entre 50% e

    120%, dependendo da instituio e do curso, sem a contrapartida de recursos

    relevantes. Para atingir tais metas, o governo criou a figura do professor

    equivalente: em vez de contratar um docente em regime de dedicao exclusiva, a

    universidade ter a sinistra autonomia de contratar trs docentes em regime de

    20h, institucionalizando o conceito de que a universidade tem dois grupos de

    professores, um que pode possuir remunerao mais digna e desenvolver pesquisa

    (operacional, nos termos da Inovao Tecnolgica) e outro especializado em aulas

    massificadas, a exemplo do que j ocorre com os docentes proletarizados nas

    instituies privadas mercantis.

    Mudanas no cotidiano da universidade

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

    20

    No chega a ser surpreendente que o Banco Mundial, ao discutir a educao

    superior latino-americana, em especial ao fazer projees, recomendaes e

    sugestes do que seriam boas polticas, se limite a mencionar um nico tipo de

    educao superior: a educao terciria. Considerando que entre as Federais

    muitas ainda possuem uma considervel ps-graduao e muitos grupos de

    pesquisa, de se prever que as grandes linhas delineadas no Plano Nacional de

    Pesquisa e Ps-Graduao 2005-2010 sero radicalizadas. Essas instituies

    esvaziadas em sua (j frgil) autonomia, guiadas pelo utilitarismo e pelo

    pragmatismo, e estruturadas para formar nos moldes da certificao massiva, mas

    vazia, perdero suas caractersticas de instituio e se convertero em

    organizaes (CHAU, 2000).

    As contra-reformas originadas nos acordos de Bolonha, nas frmulas

    bancomundialistas e nas proposies dos Tratados de Livre Comrcio (e em nvel

    nacional, nas Parcerias Pblico-Privadas - PPP) tornam a gesto das universidades

    cada vez mais parecidas com a de uma empresa, esvaecendo o seu carter de

    instituio da sociedade voltada para a formao humana e para a produo do

    conhecimento engajado na soluo de problemas nacionais. A docncia e a carreira

    acadmica passam a ser balizadas por uma outra lgica. Como os professores so

    os principais agentes construtores da universidade, possvel supor que muitos

    docentes operam essas transformaes e so por elas afetados.

    A concepo do que vem a ser conhecimento, como indicado neste artigo,

    tem sido modificada quando o labor acadmico naturaliza a subordinao do que

    dado a pensar ao capital. Prevalece uma concepo pragmtica de conhecimento,

    adequada s competncias e s habilidades prticas. Se a proposta o

    pragmatismo nas aes alcanar o mais til e mais eficaz no espao mais curto

    de tempo, pois, afinal, como reivindicava James e hoje proclama Rorty, a verdade

    o que til para a ao a sociabilidade do conhecimento tambm o terreno

    frtil da reconfigurao de conceitos, a comear pelo do prprio conhecimento

    (MORAES et. al., s/d).

    O trabalho intelectual contraditrio com a lgica do capital. O seu tempo

    no pode ser enquadrado no tempo do processo de trabalho capitalista. O tempo da

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    criao intelectual transborda o processo do capital tal como este se efetiva nas

    unidades industriais, agrcolas, comerciais e de servios. Quem escreve um

    romance, um livro, um trabalho acadmico invadido por intuies, idias e um

    tempo dedicado a leituras, tempo que no pode ser definido por parmetros

    capitalistas. Simplesmente porque as idias e as intuies invadem todo o tempo

    concentrado na criao intelectual. Como remunerar esse tempo? Qual o valor

    desse labor? (BEZERRA & SILVA, 2006).

    Ora, se o capital encontra formas de gerir at mesmo o tempo livre, como

    observou Adorno (1995) em sua crtica indstria cultural, certamente encontraria

    uma maneira de submeter o tempo da criao intelectual sua lgica. Ao faz-lo,

    no entanto, o transforma, e ao transform-lo, incide na prpria criao, mudando

    seu teor, seu carter e sua natureza, convertendo-o em produto que ser avaliado

    conforme regras de mercado.

    A intensificao do trabalho docente, a redefinio de suas atribuies

    tanto em sua forma como em seu contedo , a diviso estabelecida pela crescente

    contratao de professores substitutos como ttica para ampliao do ensino

    superior nas instituies pblicas so estratgias para desarticulao da carreira

    docente uma conquista histrica e do projeto de universidade em que pesquisa,

    ensino e extenso so indissociveis. Mudam os atores em cena, muda a cena, e

    novos atores so formados, adaptados ao novo cenrio. A diferena bsica entre

    um docente-pesquisador e um empreiteiro no est, no entanto, restrita

    quantidade e velocidade do trabalho realizado ou s modificaes nas relaes de

    trabalho: como assinalado, um outro ethos acadmico (o capitalismo acadmico

    perifrico).

    A lgica do capital transforma o docente-pesquisador em empreiteiro quando

    este, ao adequar a sua criao intelectual a um determinado valor mensurado de

    uma forma determinada, conforma o seu labor a padres possveis, restringindo os

    temas e a epistemologia aos marcos do pensamento nico.

    Os critrios e indicadores que supostamente asseguram o valor acadmico de

    uma determinada produo esto imbricados em mecanismos produtivistas como a

    GED, as bolsas de produtividade, o sistema Qualis, o Scielo etc. Se por um lado

    argumenta-se que esses so necessrios avaliao e conformao a padres

  • VII SEMINRIO REDESTRADO NUEVAS REGULACIONES EN AMRICA LATINA BUENOS AIRES, 3, 4 Y 5 DE JULIO DE 2008

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    internacionais (que no so neutros, expressando a correlao de foras na batalha

    das idias), por outro, ao avaliar e ao conformar os referidos critrios, impem

    padres que devem ser acatados caso o professor queira prosperar em sua

    trajetria acadmica junto ao aparato de CT&I externo a universidade. O risco de

    adotar lentes que mais deformam do que contribuem para tornar pensveis a

    realidade do pas obviamente muito grande.

    A lgica utilizada para avaliao e classificao de publicaes imposta nos

    diversos campos de estudos a partir de ndices como o Journal Citation Report- JCR.

    O JCR afere a importncia de um suporte de comunicao cientfica supostamente

    seu impacto social mensurando a quantidade e a velocidade com que um artigo

    citado a partir de sua publicao. Evidentemente, o sistema somente avalia artigos

    publicados em suportes j indexados ao seu banco de dados Science Citation

    Index (SCI) , o qual conta com rgidos critrios de seleo, a respeito dos quais

    somente cabe adequao, e valoriza determinadas reas do conhecimento e, dentro

    destas, os suportes autorizados como confiveis.

    A tendncia para a avaliao e classificao das publicaes nacionais segue

    a mesma lgica do JCR, estando j sujeitas indexao bases de dados cada

    qual com seus critrios de seleo e s consideraes de outras instncias, tais

    como sociedades cientficas etc. Em nenhum momento, a Universidade ou os

    profissionais nela atuantes citada como um lugar em que observaes podem

    ser feitas e fronteiras delineadas.

    H, assim, um complexo sistema que, em ltima instncia, limita o alcance

    da problemtica cientfica, o que ser pesquisado e divulgado, como e onde.

    Escolhas feitas margem de tais contornos encontram dificuldades de toda ordem,

    inclusive na quantidade e qualidade do tempo que o profissional poder dispensar a

    suas atividades de escolha. H que se perguntar, certamente, na composio desse

    novo quadro, qual o tempo da criao intelectual. Ainda, como pode haver criao

    intelectual se h to pouca margem para escolhas reais, concretas, que resultam e

    se fazem resultado desse mesmo processo de criao? de se indagar se no est

    havendo um processo de expropriao do saber do docente universitrio por meio

    da ao do Estado e da crescente subordinao do trabalho ao capital. Quando o

    capital se sobrepe ao trabalho livre por meio de constrangimentos diretos e

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    indiretos o financiamento, o valor simblico do que foi produzido, os suportes que

    faro os estudos circularem, a incluso do professor no sistema de produtividade

    cientfica etc. est evidente que a universidade est se afastando da funo

    social que fez da universidade latino-americana uma instituio relevante para seus

    povos.

    Conhecimento autnomo, universidade e protagonismos

    A resistncia ofensiva privada-mercantil sobre a universidade pblica tem

    de ser configurada como estratgica. Medidas reativas ou palavras de ordem

    limitadas a denunciar os algozes da universidade pblica dificilmente podero

    reverter esse quadro to entranhado na realidade social do pas e da Amrica

    Latina. Embora o quadro da educao pblica em geral seja sumamente

    preocupante, ele bastante grave na tica daqueles que se insurgem contra o

    aprofundamento da condio capitalista dependente do pas. Para os setores

    dominantes tudo uma questo de eficincia, de gesto e de adequao das

    organizaes educacionais ao momento miraculoso da economia brasileira.

    A lgica destrutiva que converte os professores em empreendedores e as

    universidades em organizaes tercirias no impulsionada puramente a partir de

    fora da universidade. Longe disso. Setores importantes abraaram a tese de que

    no h como mudar substancialmente o curso da mercantilizao da educao,

    sendo possvel somente atenu-lo aqui e ali ou, pior, como no admissvel um

    outro projeto, o melhor associar-se ao empreendedorismo.

    Mas no possvel perder de vista que existe um marco mais amplo em que

    essas transformaes acontecem e que esse contexto determinante. Claramente,

    a universidade produtora de conhecimento original no uma causa de quaisquer

    das principais fraes locais da burguesia, nem do setor que vive de juros, nem do

    setor agro-mineral, nem dos que exportam commodities em geral. Pela primeira

    vez na histria latino-americana o futuro da universidade est nas mos dos que

    lutam por mudanas estruturais na base material e no plano da cultura. Nessa

    perspectiva, trata-se de produzir conhecimento de novo tipo para que a ao

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    poltica para desmercantilizar a economia e a cultura possa se sobrepor ao processo

    de coisificao dos seres humanos.

    Uma universidade autnoma e comprometida com os problemas nacionais ter

    muito a aprender com os movimentos que esto empreendendo transformaes

    sociais estruturais por meio de uma radical reorganizao de atos, de palavras e de

    smbolos. Temas como a crtica ao eurocentrismo, ao falso universalismo liberal e a

    defesa de uma universidade de fato intercultural constituda por espaos pblicos

    capazes de garantir processos de produo e socializao do conhecimento

    emancipatrio, com base em novas epistemologias no eurocntricas, crticas ao

    modo nico de produzir conhecimento preconizado pelos neopositivistas ou pelo vazio

    relativismo epistemolgico, so demandas de todos os movimentos que propugnam

    uma universidade em que caibam todos os povos e perspectivas de produo rigorosa

    de conhecimento.

    A defesa de condies materiais e institucionais para que o trabalho docente

    possa levar essas tarefas adiante parte dessa estratgia. certo que a reforma

    radical da universidade requer avanos nas lutas anticapitalistas. O possvel ascenso

    das lutas sociais ser virtuoso para as lutas universitrias, hoje desenvolvidas em um

    escopo relativamente restrito. Mas igualmente correto sustentar que hoje as

    universidades podem criar canais de dilogo, produzir estudos relevantes sobre

    grandes problemas e dilemas da humanidade e implementar processos de formao

    em conjunto com os lutadores sociais que podero potencializar e elevar a

    autoconscincia dos protagonistas das lutas anti-sistmicas, assegurando-lhes um

    carter mais latino-americano e universal. Por tudo isso, a construo de agendas que

    abram o dilogo com os movimentos sociais anti-sistmicos, organizando lutas

    articuladas, so medidas que podem fortalecer a dimenso pblica das universidades.

    Para tanto, a universidade tem de ser um lugar aberto ao tempo, capaz de mobilizar a

    energia criadora de todos os que recusam o vaticnio do fim da histria!

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    NOTAS

    i World Bank Constructing Knowledge Societies: New Challenges for Tertiary Education (2002). http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTEDUCATION/0,,contentMDK:20298183~menuPK:617592~pagePK:148956~piPK:216618~theSitePK:282386,00.html, acesso em fevereiro de 2008. ii Teachers and Educational Quality: Monitoring Global Needs for 2015, produced by the UNESCO Institute for

    Statistics. To download the report, see www.uis.unesco.org/publications/teachers2006. Ver tambm UNESCO Teachers and Educational Quality: Monitoring Global Needs for 2015 iii

    Instituda pelo Decreto presidencial 5.800/06. iv Para uma leitura crtica da pedagogia das competncias, ver Marise N. Ramos. A pedagogia das competncias:

    autonomia ou adaptao? SP: Cortez Ed.,2001. v Roberto Mangabeira Unger O longo prazo a curto prazo. FSP, A3, Opinio (Tendncias e Debates), 20 de janeiro

    de 2008. vi Ver, entre outras obras do autor, Florestan Fernandes, (1974). A revoluo burguesa no Brasil. Um ensaio de

    interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar. vii

    Proposta das Associaes de Docentes e da Andes para a Universidade Brasileira, 1982. viii

    Ofcio-Circular n 054/99-Gab/SESu/MEC. Braslia, 16 de agosto de 1999. ix

    A lei da GED de 1998, governo de Fernando Henrique. Em 2002, um parecer do CNE considerou que cursos de ps-graduao lato sensu no constituam atividade de ensino, por assim dizer, estando mais prximos das atividades de extenso, justificando dessa forma a regulao da cobrana desses cursos em instituies pblicas de ensino superior. x Brasil. Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que Institui o Programa de Reestruturao e Expanso das Universidades

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