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MARLIA KENIG
POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O
JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO
ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO
TUBARO, 2005.
2
MARLIA KENIG
POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O
JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO
ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Cincias da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Fbio de Carvalho Messa
TUBARO, 2005
3
MARLIA KENIG
POR UMA TEORIA NO-OFICIAL DA COMUNICAO: O
JORNALISMO COMO TEMA DA OBRA RECORDAES DO
ESCRIVO ISAAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO
Esta dissertao foi julgada adequada obteno do grau de Mestre em Cincias da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubaro- SC, 21 de outubro de 2005.
______________________________________________________
Prof. Dr. Fbio de Carvalho Messa (orientador)
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Simo Vugman
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Prof. Dr. Tnia Regina Oliveira Ramos
Universidade de Federal de Santa Catarina
4
DEDICATRIAS
Dedico este trabalho a todas as pessoas que me auxiliaram a chegar at aqui. Em especial a meus pais, meus grandes incentivadores, esta a minha maneira de demonstrar toda a minha gratido e expressar meu amor. Vencemos mais uma etapa!
5
AGRADECIMENTOS
Agradeo, em primeiro lugar, a Deus, por me permitir dar mais este importante passo em direo ao crescimento pessoal e profissional. Tambm a meus pais, Teresinha e Clair, e minha irm Izabela, agradeo por terem me apoiado durante toda a execuo deste. Agradeo, por fim, equipe docente do Mestrado em Cincias da Linguagem, em especial ao meu orientador e amigo, Dr. Fbio de Carvalho Messa, que partilhou comigo o esforo e o fascnio de escrever sobre um tema complexo e, ao mesmo tempo, saudosista e atual, marca da obra de Lima Barreto.
6
Ler os livros de Lima Barreto (...) um exerccio de conscincia histrica que conta com a vantagem, como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de um difcil testemunho: constatar como a vida, e nesta a opresso e o fracasso, se converte em literatura.
Antonio Arnoni Prado
7
RESUMO
Este trabalho se prope a analisar como o jornalismo tematizado em Recordaes do escrivo Isaas Caminha, de Lima Barreto (1909). Nesse sentido, ser visto de que maneira a referida obra descreve a prtica jornalstica e os valores da sociedade da poca, bem como suscita uma reflexo acerca do jornalismo da atualidade. As teorias da literatura e do jornalismo serviro de base para a identificao do jornalismo como tema na Literatura. Tambm o conceito de tema ser base para essa parte inicial. As concepes de polifonia e dialogismo (BAKHTIN, 1992, 2003), sero levados em conta a fim de que se possa compreender como o livro de Lima Barreto ora analisado se configura como uma possvel stira realidade vivida pelo autor. Verificar-se- de que modo este se configura como livro-resistncia em contraposio ao conceito de livro-espelho. Palavras-chave: Lima Barreto, resistncia, literatura, jornalismo.
8
ABSTRACT
This work will analyze as the journalism is the theme of the in the novel Recordaes do escrivo Isaas Caminha, by Lima Barreto (1909). It will be seen how this history describes the journalistic pratices and the values of the society of time which it was written, and also how it excites a reflection about journalism nowadays. Theories of literature and the journalism will serve as base for the identification of journalism as a subject in the literature. Also the concept of theme will be base for this initial part. The conceptions of polyphony and dialogism (BAKHTIN, 1992, 2003), will be taken in account so that if it could be understood as the novel of Lima Barreto configures as a possible satire of the reality lived for the author. It will be verified which way the novel is configured as in agreement resistance work in contraposition to the mirror work concept. Key-words: Lima Barreto, resistance, literature, journalism.
9
SUMRIO
SUMRIO.............................................................................................................................................................. 9
1 INTRODUO ............................................................................................................................................... 11 1.1 PROBLEMA: DIRETRIZES DO TRABALHO..................................................................................... 11 1.2 OBJETIVOS ........................................................................................................................................... 12 1.3 JUSTIFICATIVA.................................................................................................................................... 13 1.4 METODOLOGIA ................................................................................................................................... 14
2 O JORNALISMO COMO TEMA............................................................................................................ 15 2.1 CONTEXTUALIZAO DA OBRA .................................................................................................... 15 2.2 CONCEPES DE TEMA .................................................................................................................... 19
2.2.1 O tema como crtica ........................................................................................................................... 24 2.3 O SUPOSTO CARTER AUTOBIOGRFICO ................................................................................... 26 2.4 RELAES DA TRAMA COM OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA CRTICA ................................ 35
2.4.1 Breve panorama das teorias do jornalismo ......................................................................................... 38 2.4.2 A crtica ao mito do interesse pblico................................................................................................. 43
2.5 LITERATURA E RESISTNCIA.......................................................................................................... 46 2.5.1 Lima Barreto e a literatura de protesto: um salto na histria da literatura brasileira atravs da resistncia .................................................................................................................................................... 49
2.6 A PRESENA DO AUTOR-NARRADOR ........................................................................................... 50 2.6.1 Os literatos e o jornalismo ............................................................................................................. 53
2.7 BAKHTIN: ANLISE DO JORNALISMO COMO TEMA EM LIMA BARRETO............................ 56 2.7.1 A relao autor-personagem sob a tica bakhtiniana..................................................................... 58 2.7.2 Dilogo versus monlogo no campo de batalha social, a linguagem ............................................ 61 2.7.3 O contexto extra verbal da linguagem: o embate entre as foras centrpetas e as centrfugas....... 67
3 A RELAO DA TRAMA DE LB COM A REALIDADE ......................................................................... 69 3.1 A CHAVE DA NARRATIVA DE LIMA BARRETO: UM AUTNTICO ROMAN CLF ................ 70
3.1.1 LB: viso metonmica da sociedade por intermdio da stira............................................................. 73 3.2 O JORNALISMO NA BERLINDA ........................................................................................................... 74
3.2.1 A fabricao de verdades................................................................................................................. 77 3.2.2 Inexistncia de tica............................................................................................................................ 82 3.2.3 Mediocridade ...................................................................................................................................... 83 3.2.4 Sensacionalismo.................................................................................................................................. 86 3.2.5 Ideologia dominante............................................................................................................................ 91
10
3.3 A NEGAO DO PURISMO LINGSTICO........................................................................................ 94 3.4 A CONTRIBUIO DE LIMA BARRETO PARA UMA IMPRENSA (AO MENOS) MAIS REFLEXIVA 100
4 CONCLUSO ................................................................................................................................................ 102
REFERNCIAS ................................................................................................................................................ 108
ANEXOS ............................................................................................................................................................ 112
11
1 INTRODUO
1.1 PROBLEMA: DIRETRIZES DO TRABALHO
Este trabalho consiste na anlise do livro Recordaes do escrivo Isaas
Caminha, de Lima Barreto, datada de 1909. Dentre os aspectos destacados, um deles, em
especial, diz respeito tematizao do jornalismo enquanto objeto de observao e crtica.
Vai abordar como o jornalismo foi tematizado na literatura. Nesse sentido, ser
percebido, por intermdio da anlise da obra, como esta reflete a prtica jornalstica e expe,
de forma metonmica, a crtica ao jornalismo e aos literatos como um repdio sociedade
carioca da poca em que Lima Barreto viveu.
A crtica ferina realidade vivenciada pelo protagonista da obra reflexo de uma
crtica burguesia carioca. Tal fator faz de Recordaes de Isaas Caminha um romance de
cunho social, oriundo da chamada literatura engajada ou, de acordo com algumas vertentes da
crtica e historiografia literria nacional, um documento autobiogrfico.
As teorias literrias serviro de base para a identificao do jornalismo como tema
na literatura. Sero destacados os efeitos do cruzamento narrativo entre o jornalismo e a
literatura. Tambm o conceito de tema ser base para o referencial terico.
12
As concepes de polifonia e dialogismo (BAKHTIN, 1992, 2003) sero levadas
em conta a fim de que se possa compreender a como a trama de Lima Barreto ora analisada se
configura como uma possvel stira realidade vivida pelo autor.
1.2 OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho mostrar que Recordaes do escrivo Isaas Caminha
constitui-se como livro-resistncia conforme a tipologia desenvolvida por Alfredo Bosi
(2003), em contraposio ao conceito de livro-espelho.
Um outro objetivo apontar como a crtica empreendida ao jornalismo pelo autor,
ao longo da obra, reflete metonimicamente o seu protesto em relao aos valores da burguesia
carioca e realidade dos meios de comunicao, uma vez que o jornalismo que descreve
guarda semelhana com as prticas de veculos sensacionalistas da vida real, de acordo com
os pressupostos da teoria crtica.
A relao com o real, nesse sentido, significativa, uma vez que se confere obra
um carter autobiogrfico. Pretende-se perceber, na trama, quais so os indcios da resistncia
do autor aos padres lingsticos, literrios e sociais vigentes poca do lanamento.
13
1.3 JUSTIFICATIVA
O tema foi escolhido, em primeira instncia, por se acreditar que a reflexo sobre
a confluncia entre jornalismo e literatura produtiva. Mais especificamente, optou-se por
este tema pelo interesse em estudar obras que se configurem como literatura de resistncia,
tratando de temticas crticas e marcadas pela polmica, como o caso da obra ora analisada.
Outro fator motivador foi a relevncia do trabalho de Lima Barreto, o qual, por sua
militncia em favor de uma literatura mais prxima do real, se props a redigir na lngua do
povo e criticar a excluso e o preconceito ao qual este era relegado.
O jornalismo, sobretudo no romance jornalstico1, aproxima-se da literatura pela
dimenso mais humanizada que se busca evidenciar nos relatos (como nas reportagens, por
exemplo). Nestes relatos, a neutralidade exigida do reprter d lugar evidente
subjetividade do autor-narrador, terminologia adotada para definir o foco narrativo desta obra.
Este, ao se posicionar, deixa de ser observador (aparentemente) neutro, no
ocultando o seu ponto de vista acerca de um acontecimento, sem, entretanto, ser infiel
verdade dos fatos. Simultaneamente, assume a posio de narrador e personagem.
1 Acerca do romance jornalstico, cabe destacar a anlise desenvolvida por Davi Arrigucci Jnior (cf. BIANCHIN, 1994, p. 22). Nela, o pesquisador destaca que narrativas como estas se utilizavam de tcnicas advindas do Naturalismo, cujas bases, deterministas, davam s narrativas um carter de mostra da realidade, tal como em O Cortio, de Aluzio de Azevedo (destacada por Bosi (1982) como a mais expressiva obra dessa fase da Literatura), alm de tcnicas prprias da narrativa jornalstica. Neila Bianchin (1994), na obra que trata da natureza do romance-reportagem discorre a respeito do trabalho de Rildo Cosson Mota. Para o autor, este compe um gnero autnomo a ser distinguido tanto do jornalismo quanto da literatura enquanto discursos sociais e esteticamente demarcados. Obras dessa natureza representam, portanto, um ponto de confluncia entre literatura e jornalismo. Nestas, fico e realidade se misturam por intermdio da utilizao de tcnicas jornalsticas (que tratam do real) s abordagens literrias (voltadas ao ficcional).
14
1.4 METODOLOGIA
Para analisar a obra Recordaes do escrivo Isaas Caminha, sero observados
alguns aspectos que aproximam a obra da realidade. Para tanto, a noo de tema ser um dos
enfoques da anlise, a fim de se verificar as relaes de verossimilhana que a obra guarda
com o contexto em que foi composta.
Para vislumbrar o modo como o autor empreende sua crtica, tanto pela linguagem
utilizada quanto pelas vozes que permeiam o seu discurso, os conceitos de dialogismo e
polifonia institudos por Bakhtin (1992, 2003), sero fundamentais anlise, tendo em vista o
carter de obra de resistncia, haja vista a militncia literria qual o autor dedicou sua vida.
Nesse contexto, o entendimento do romance de Lima Barreto como fora centrfuga,
desenvolvido tambm por Bakhtin (2003) levado em conta.
Noes de tema - como crtica sociedade, de forma geral, e ao Jornalismo, em
particular - sero discutidas ao longo do trabalho. Alm disso, a consonncia da trama com os
pressupostos discutidos pela teoria crtica ser vislumbrada, tendose em vista a proximidade
da crtica empreendida por Lima Barreto com tal corrente.
15
2 O JORNALISMO COMO TEMA
2.1 CONTEXTUALIZAO DA OBRA
Afonso Henriques de Lima Barreto estreou na Literatura em 1909 com a
publicao de Recordaes do Escrivo Isaas Caminha. A crtica literria o considera o mais
expressivo escritor pr-modernista brasileiro. Uma preocupao perceptvel na obra e que
vale a pena ressaltar a necessidade de retratar o social e o indivduo inserido em um meio
hostil.
Lima Barreto viveu na poca em que o Rio de Janeiro conheceu suas primeiras
greves e os primeiros distrbios sociais de massa que mobilizaram o operariado crescente,
fatos que no escaparam da anlise do escritor. O autor, nesse contexto, est dentro dos
padres da Literatura Engajada que marcaram do final do sculo XIX. Assim, toda a fico de
Lima Barreto tem muito da realidade que ele registrava aps profundas observaes da vida
durante os primeiros momentos da Repblica (BONDAN, 2002, p. 1).
Nasceu a 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro. Recebeu o nome do padrinho, o
Visconde de Ouro Preto. Era filho de um tipgrafo, Joo Henriques, e de uma professora
primria, Amlia Augusta, ambos mestios. Aos sete anos de idade, perdeu a me. Ao ser
16
proclamada a Repblica, o pai de Lima Barreto foi demitido da imprensa nacional. Diante
disso, vo morar na Ilha do Governador, onde o pai trabalhava como almoxarife na Colnia
de Alienados.
Em virtude da proteo do padrinho, Lima Barreto, ao completar os estudos
secundrios, ingressou na faculdade de Engenharia Civil da Escola Politcnica, no ano de
1898. No educandrio, que veio a abandonar em 1903, foi vtima de intenso preconceito
racial. Sobre esse aspecto, cabe salientar o fato relatado por Carlos Faraco no suplemento
Uma Literatura afiada, que est no posfcio da edio de 2001 de Os Bruzundangas (in
LIMA BARRETO, 2003, p. 1).
Contam que um dia um colega de faculdade comentou sobre Afonso: - Vejam s! Um mulato usar o nome do rei de Portugal! O tal colega deve ter vivido o suficiente para ver que a ousadia maior de Lima Barreto no foi portar nome de rei: foi desprezar o uniforme da classe dominante, preferindo vestir o traje de uma histria pessoal, que ele mesmo duramente se arriscaria a tecer. Tudo em nome de uma paixo exclusiva: a literatura.
Ao longo do curso, no qual Lima colecionou reprovaes, uma vocao
despontou de forma gritante: o dom de escrever. Preferia permanecer longas horas na
biblioteca a freqentar as aulas, sendo este um dos fatores que acarretaram a sua desistncia.
Culto, sem diploma, pistoles ou dinheiro, o mulato Lima Barreto ingressou no jornalismo e,
por intermdio da crtica aos profissionais da rea, denunciou as injustias sociais e
ideolgicas que marcaram a sociedade de seu tempo (COSTA, 2005, p. 59).
O sarcasmo e a ironia, caractersticas marcantes de sua obra como escritor, j se
faziam presentes nos artigos que escrevia para os jornais A Lanterna e Quinzena Alegre.
Nestes, publicava, sob os pseudnimos de Alfa Z e Momento de Inrcia, verdadeiras
caricaturas verbais de colegas e situaes da Escola, especialmente (ibid.).
17
Em sua carreira, as atividades que desenvolveu no mbito jornalstico o ajudaram
a registrar, com preciso, os fatos que estavam ocorrendo no Rio do incio do sculo passado.
Graas prtica, conseguiu um estilo mais despojado, longe da tendncia parnasiana que invadia as Letras na poca. A adjetivao torna-se econmica, a linguagem flui com clareza e preciso, se bem que no possvel presenciar a renovao no interior da frase ou na utilizao de uma linguagem coloquial como fariam os modernistas (ibid. , p. 2).
Apesar de ter seu estilo narrativo influenciado pela prtica jornalstica, Lima
Barreto compe uma crtica cida realidade dos veculos de comunicao impressa de sua
poca, em especial, dO Globo, jornal em que o personagem Isaas Caminha trabalha como
contnuo e posteriormente como reprter.
Atentando ao possvel carter autobiogrfico da obra, o que ser mais bem tratado
a seguir, Isaas compe uma extenso do autor, visto que, no protagonista, o leitor tem a
oportunidade de vislumbrar as ideologias, os sonhos, as frustraes e as revoltas do escritor,
tido como marginal das Letras (RODRIGUES, 2001, p. 01).
O escritor sofreu as vicissitudes da vida turbulenta e dedicada Literatura.
Mulato, sentia-se vtima do preconceito racial, que foi fortemente retratado em suas obras.
Isaas o narrador e o personagem principal da obra, transformando-se, no decorrer da
narrativa, numa espcie de alter ego do escritor que lhe deu conformao, pois nele e atravs
dele pode o leitor contemplar boa parte da vida, das iluses e das ideologias de Lima Barreto
(BONDAN, 2002, p. 3).
Lima Barreto dedicou sua vida militncia por uma Literatura mais acessvel. Por
essa razo, buscava escrever de forma mais coloquial, negando a utilizao do portugus
castio, o que fez com que a seu tempo, fosse desprezado por grande parte dos literatos, que o
tinham como persona non grata.
Tal aspecto evidenciou-se quando do lanamento da obra, a primeira da carreira
de Lima Barreto. Conforme Francisco de Assis Barbosa, (2004, p. 4) , a recepo ao Isaas
18
Caminha, quer da imprensa, quer da crtica, seria mais uma decepo a acrescentar s outras
que o escritor vinha sofrendo desde a adolescncia. Sem amigos na direo dos jornais de
prestgio, poucas foram as notas que apareceram, registrando o aparecimento do livro.
A trama consiste na chegada do jovem Isaas Caminha ao Rio de Janeiro.
Dedicado aos estudos e educado, tem o sonho de se tornar um doutor. ele o narrador e o
protagonista da histria. Nessa conjuntura, o tio de Isaas, Valentim, recorre ao coronel
Belmiro, que escreve uma carta de recomendao endereada ao deputado Doutor Castro.
Com a carta em mos, parte para o Rio com a certeza de que obteria xito em seu intento.
Aos 18 anos de idade, Isaas desembarca no Rio, aps uma longa e difcil viagem.
Ao chegar no hotel em que se hospedou, d incio amizade com um comerciante de farinha,
o padeiro Laje da Silva, que o acompanhou nas primeiras investigaes pela nova cidade.
Nessas incurses, tambm conheceu o jornalista russo, Doutor Iv Gregorvitch Rostloff,
ilustrado e simptico reprter, que impressionou Isaas por sua versatilidade lingstica.
nessa fase que o personagem tem seus primeiros contatos com a imprensa e os literatos, sobre
os quais ele enuncia ao longo de toda obra.
O jornalismo , nesse caso, o alvo da crtica e do rano do protagonista. Ao
tematizar a prtica jornalstica em Recordaes, Lima Barreto busca salientar, de forma
contundente, que a informao est em ltimo plano. Por intermdio da crtica ao jornalismo,
a trama promoveu uma desforra sociedade que tanto humilhou seu autor. As observaes de
Isaas continuam colocando no s a rotina do jornal, em evidncia, como tambm suas
prprias idias e sua vivncia. De certa maneira, esse contnuo simples e humilde tornou-se
uma espcie de observador passivo dos homens que trabalhavam naquele ambiente, uma vez
que pouco participava da rotina do jornal.
Ao longo da trama, possvel perceber que, pouco a pouco, Isaas vai constatando
que a rotina do jornal uma sucesso de enganos e estavam todos merc de um diretor
19
tirano e voluntarioso e conferiram a ele o tratamento dispensado a um deus, obedecendo-o
cegamente. Cabe tambm a Isaas Caminha depositar confiana e admirao pela atuao de
Ricardo Loberant, o diretor do Jornal O Globo. Pde concluir, ainda, que todos se
desprezavam entre si, o que fazia do ambiente do jornal de uma atmosfera falsa, embora todos
ali procurassem manter as aparncias a qualquer custo.
Aps o dia em que flagra o patro num bordel, Loberant passou a cobrir Isaas
Caminha de dinheiro e atenes. Levava-o a toda a parte elogiando-lhe o talento, a
inteligncia e a cultura. O ex-contnuo e agora reprter manifestou vontade de abandonar o
Rio, satisfazer seus mais simples anseios, como se casar, ter filhos. Nesse momento final da
trama, ele manifesta uma forte angstia: a de ter se deixado seduzir e abarcar pelo universo
que ele tanto criticara anteriormente...
2.2 CONCEPES DE TEMA
No que concerne obra de Lima Barreto, dentre os aspectos ora destacados, um
deles, em especial, diz respeito tematizao do Jornalismo enquanto objeto de observao e
crtica na obra literria. Isso reporta ao possvel conceito de tema e s correntes tericas que
trataram da questo.
Tema, no senso comum, faz referncia ao assunto, razo ou motivo de
determinada abordagem, seja obra literria, reportagem, filme ou explanao pedaggica.
Pelo objeto de estudo desse trabalho, interessa saber de que forma, no mbito das Cincias da
Linguagem, o termo tem sido definido.
20
A primeira abordagem do que poderia vir a ser tema remonta potica de
Aristteles, cujos ensinos constituem, at a atualidade, um importante legado teoria literria,
filosofia, esttica e aos estudos da linguagem e da comunicao.
Aqui, os conceitos de mimese, verossimilhana e catarse tm uma importncia
fundamental. Para Aristteles, a arte teria funo de imitar a realidade. O que ele definiu
como mimese no possui o mesmo sentido atribudo ao termo por Plato, para quem as artes
mimticas eram a imitao de uma imitao (COSTA, 1992, p. 5). Na concepo aristotlica,
a mimese representa uma releitura do real atravs de sua tematizao.
Para Aristteles, pelo processo mimtico, surge uma interpretao possvel para a
realidade, autnoma em relao ao que a arte representa. Assim, o critrio do verossmil, que
merecera a crtica de Plato por ser apenas iluso da verdade, torna-se, com Aristteles, o
princpio que garante a autonomia da arte mimtica (ibid, p.6).
A verossimilhana, nesse caso, seria o efeito de similaridade com algo possvel de
acontecer. Da sua relao com a realidade. Por intermdio dos gneros literrios (a tragdia, a
comdia e a epopia), representavam-se os homens em ao, sendo estes seres melhores (na
tragdia e da epopia), iguais ou piores (na comdia) que os homens reais. J a catarse teria
relao com a purificao das emoes atravs do prazer advindo de emoes como o temor e
a piedade suscitados pela tragdia (ibid., p. 52).
Sobre a potica, cabe destacar a sua proximidade com a retrica. A base dessa
separao dada pelas duas obras de Aristteles, a Retrica e a Potica. A diferena entre tais
cincias seriam os objetivos da linguagem da poesia em relao da oratria.
Mais prximo ao sentido emprico (tema como assunto principal, como motivo)
a concepo trabalhada pelo Formalismo Russo. O movimento foi iniciado nos idos de 1914-
1915 por intermdio da fundao do Crculo Lingstico de Moscou.
21
O mtodo formal teve o propsito de desenvolver uma cincia que tratasse da
funo potica como fator essencial linguagem e que, nos estudos lingsticos, estaria em
segundo plano. Para a referida corrente terica, somente a interpretao da obra em si era
importante, sem que fosse necessrio recorrer, em primeira instncia, a recursos extra-
literrios. Vale destacar que os preceitos do Formalismo Russo foram fundamentais
estruturao dos estudos da Literatura.
O mtodo formal, assim, no resulta (sic.) da constituio de um sistema
metodolgico particular, mas dos esforos para a criao de uma cincia autnoma e
concreta (EINKHENBAUM, 1969, p. 03). Estudou, assim, o especfico, o inerente
literatura (SCHNAIDERMAN in EIKHEINBAUM, 1969, p. XII).
Desse modo,
o movimento voltava-se no somente a contar os excessos de crtica sociolgica e poltica, da submisso da esttica tica que havia caracterizado a crtica russa durante anos e anos, mas sobretudo e particularmente contra a metafsica e a religiosidade dos simbolistas russos, para quem o texto literrio aparecia com muita freqncia apenas como uma das maneiras para buscar o inefvel, o inconstil o extraterreno. O trabalho crtico dos chamados formalistas voltava-se para o contingente, o imediato, o palpvel, o analisvel (ibid., 1973, p. X).
O Formalismo recusou, assim, todas as contribuies de reas como a filosofia, a
sociologia e a psicologia como pontos de partida ao estudo de uma obra literria.
Com relao ao conceito de tema, este exposto por Tomachvski na obra Teoria
da Literatura: formalistas russos (in EIKHENBAUM, 1973). A definio de tema, aqui,
estaria relacionada ao despertar de emoes no receptor e no caso da literatura, no leitor.
Segundo o autor, toda obra deve possuir um tema fundamental, que deve ser escolhido de
acordo com a aceitao, com o interesse do pblico. A narrativa giraria em torno deste tema.
22
Para ser atual, o tema deve ocupar-se dos problemas culturais do momento, e que,
abordados pela literatura, satisfazem o leitor. Assim, segundo Tomachvski, no necessrio
compreender a atualidade como uma representao da vida contempornea. Ele diz, por
exemplo, que o interesse por uma revoluo pode ser visto como atualidade hoje, pela
identificao de seus aspectos histricos com um fato atual.
Isso significa dizer que um romance histrico (e aqui se pode fazer uma
associao com a obra aqui analisada) que se proponha a descrever uma poca de movimentos
revolucionrios, pode ser atual em qualquer tempo.
Valorizou-se, nesse nterim, a relao do que tratado na obra literria com o
contexto em que o leitor est inserido. Pela relao que guarda com os pressupostos da teoria
crtica, a obra Recordaes do escrivo Isaas Caminha gerou essa identificao.
Assim, quanto mais o tema for importante e de um interesse durvel, mais a
vitalidade da obra estar assegurada (in EIKHENBAUM, 1973, p. 170). Os temas universais,
que estariam relacionados a interesses universais como os problemas de amor e de morte,
segundo o autor, so sempre os mesmos. Devem, contudo, ser alimentados com matria
concreta e atual freqentemente.
O desenvolvimento desses temas universais o que favorece a mobilizao do
leitor. Atravs da obra literria, necessrio fazer o leitor simpatizar, indignar-se, rejubilar-
se, revoltar-se. Dessa maneira, a obra torna-se atual no sentido do termo, porque o leitor deve
ser orientado por suas emoes (ibid., p. 172).
A proximidade com o real estaria expressa tambm por intermdio dos motivos
realistas (verossimilhana) que compem o tema de uma obra ou de um fragmento dela.
J na concepo de Bakhtin, o tema ou sentido tem sua histria, constituindo-se
como algo particular, irrepetvel e concreto. O autor esclarece que o tema da enunciao
23
concreto, to concreto como o instante histrico ao qual ela pertence. Somente a enunciao
tomada em toda a sua plenitude concreta, como fenmeno histrico, possui um tema (1992,
p. 129).
Bakhtin destaca que o sentido ou tema nico, no renovvel, individual. Por ser
indissocivel do contexto, expressa a situao histrica no momento da enunciao. Se
algum pergunta, por exemplo: Que horas so?, essa expresso tem um sentido em cada vez
que usada. Dependeria no somente das variaes psicolgicas do emissor ou dos aspectos
lingsticos da enunciao, mas tambm do contexto extraverbal em que ocorre (RECHDAN,
2003, p. 02). A significao, porm, ser sempre a mesma.
Esta, para Bakhtin, constitui um aparato para a realizao do tema e um fator
responsvel por sua estabilizao. Ela resulta da interao, sendo indispensvel atribuio
de sentido. O significado de tema, nessa perspectiva, estaria mais prximo do conceito de
unidade temtica.
O autor considera a entonao expressiva e o contexto socialmente determinado
como fatores preponderantes da composio do tema. Assim, nas enunciaes, h tantos
sentidos quanto os diversos contextos em que elas aparecem.
Por isso, o tema pode ser investigado nas formas lingsticas e nos elementos no-
verbais da enunciao, quais sejam: a apreciao, a entonao, o contexto, o contedo
ideolgico e assim por diante. De acordo com Bakhtin (ibid., p. 130), o tema uma qualidade
da enunciao completa. Pertencer a uma palavra somente se esta funcionar como uma
enunciao total.
Nesse sentido, a identificao da significao de um ou outro elemento lingstico pode, segundo a definio que demos, orientar-se para duas direes: para o estgio superior, o tema, nesse caso, tratar-se-ia da investigao da significao contextual de uma dada palavra nas condies de uma enunciao concreta. Ou ento ela pode tender para o estgio inferior, o da significao: nesse caso, ser a investigao da
24
significao da palavra no sistema da lngua, ou em outros termos, a investigao da palavra dicionarizada (BAKHTIN, 1992, p. 131).
Ao definir tema, o autor prioriza a relao dos interlocutores, fixando-se no extra-
textual, no relacional, diferentemente dos formalistas russos, do qual foi crtico. justamente
esse aspecto que frisa nas definies de dialogismo e polifonia, identificando os intertextos
presentes na obra de Dostoievski.
2.2.1 O tema como crtica
O jornalismo, no caso de Recordaes do escrivo Isaas Caminha, alvo do
rano do protagonista. Ao tematiz-lo, Lima Barreto buscou salientar que, na prtica
jornalstica, freqentemente, a informao est em ltimo plano. Da a escolha do romance
como corpus deste trabalho. Como escritor pr-modernista (BOSI, 1983), desafiou os padres
vigentes no contexto literrio, Lima Barreto abriu campo para a verdadeira revoluo
promovida pelo Modernismo, anos mais tarde.
Recordaes retrata a relao bem x mal presente no dia-a-dia do narrador-
protagonista (ou narrador-testemunha, conforme a tipologia desenvolvida por Norman
Friedman) (LEITE, 1994, p. 30). Houve, por parte do autor, a inteno de refletir,
mimeticamente, a realidade, uma vez que expressa algo verossmil, independente de compor
ou no sua autobiografia velada.
Ao longo da trama, Lima Barreto realiza uma verdadeira cartografia do ambiente
jornalstico d O Globo e das figuras que l atuam. Aspectos como a pseudo-erudio dos
jornalistas, o despotismo do diretor e, sobretudo, os interesses mercantis e polticos que se
impunham sobre a informao e a verdade dos fatos, so enfocados.
25
Na trama, Lima Barreto constri personagens caricatos, em que a devassido e a
arrogncia, a falta de carter e os interesses mercantis so amplamente destacados, como o
caso de Ricardo Loberant, diretor do jornal.
O jornal onde trabalhava trazia novidade: alm de desabrimento de linguagem e
um franco ataque aos dominantes, uma afetao de absoluta austeridade e independncia (...)
O Globo levantou a crtica, ergueu-a aos grados, ao presidente, aos ministros, aos
capitalistas, aos juzes, e nunca houve to cnicos e to ladres (BARRETO, 1909, p. 60).
Outra personagem que merece destaque Leporace, o arrogante secretrio do
jornal, "sumidade em literatura e jornalismo, rbitro do mrito, distribuidor de gnios e
talentos (ibid., p. 61). A crtica a tais figuras carregada de ironia e acidez. Lima Barreto fez
questo de, pela voz de Isaas, denunciar os valores que, na sociedade, definiam o que seria
um bom literato. Essa foi a principal razo da rejeio que experimentou, ao longo de sua
carreira.
Frederico Loureno do Couto, o crtico literrio dO Globo, assinava artigos com
o pseudnimo de Floc. Era tido como algum entendido em Literatura e assuntos
internacionais e por isso era considerado a alta intelectualidade do jornal. No se metia em
polmicas ou em escndalos. Isaas comparava-o a uma guia, mas detalhou, e forma irnica,
os requisitos que, para Floc, consagravam um grande escritor.
Iv Gregorvitch Rostolf, jornalista russo, era tido como a artilharia do jornal.
Em estilo violento, tecia crticas aos adversrios. Em algumas passagens, seu carter agressivo
fica evidenciado.
Acerca das personagens da trama, Bondan (2002, p. 7), faz uma considerao
interessante. Os mesmos, destaca o autor, so sempre apresentados como se fossem
instrumentos principais ou secundrios de uma batalha em que cabia a cada um enquadrar-se
ao sistema vigente, ao qual, tanto Lima Barreto quanto o seu Isaas estavam excludos...
26
Merece destaque, ainda, o corretor ortogrfico do jornal, Lobo, que acaba por enlouquecer
devido obsesso pelo uso correto da gramtica. Ao criar tal personagem, Lima Barreto,
seguramente, alfinetava a submisso dos literatos e da imprensa nacionais ao padro lusitano
de escrita, ao modo bonito de escrever.
2.3 O SUPOSTO CARTER AUTOBIOGRFICO DA OBRA
Pela crtica que empreendeu, a trama se constri como a extenso dos dramas
individuais de Lima Barreto, sobretudo o ressentimento acerca de sua condio de mulato e as
dificuldades que teve de enfrentar na preconceituosa sociedade carioca do final do sculo XIX
e incio do sculo XX. Assim, toda a fico de Lima Barreto tem muito da realidade que ele
registrava aps profundas observaes da vida durante os primeiros momentos da Repblica
(BONDAN, 2002, p. 2).
Considerado um dos precursores do Modernismo, ironicamente, Lima Barreto
falece justamente no ano da Semana de Arte Moderna, 1922. A prosa marcada pela ironia e
pela contestao ao status quo, se afirma na poca e tem o Rio de Janeiro, capital recente do
pas, como principal fonte instigadora e de contestao da hipocrisia e do caos social, atravs
do relato dos acontecimentos que se passavam (ainda na tipologia de Bosi), do lado obscuro
do espelho.
exatamente isso que no artigo Fico, imagem e imaginrio na crnica de Lima
Barreto, Mrcia Cristina Valdvia (2003) enfatiza, ao afirmar que a crnica-crtica de
Lima Barreto, em geral, registra a cena obscena; o enfoque da urbe que se moderniza e que
quer ocultar a realidade de uma cidade composta por trabalhadores e pobres estes
27
constituindo o quadro de desvalidos do poder pblico (2003, p. 01). Pela amplitude de temas
por ele abordada em toda a sua produo literria, esta s pode ser comparada, no seu tempo e
anteriormente, ao extenso itinerrio percorrido pela obra euclideana (SEVCENKO, 1989, p.
161).
Acerca da trama aqui estudada, segundo Francisco de Assis Barbosa na obra A
vida de Lima Barreto (1981, p. 4), Lima Barreto intentou compor um romance diferente dos
cnones consagrados, que tivesse algo de agressivo. Que atrasse enfim leitores, amigos e
inimigos. Sustenta, nesse contexto, a tese de que a obra nada mais era do que uma stira ao
Correio da Manh, poca o jornal mais influente e por isso, mais retratvel. Nelson Werneck
Sodr (1983, p. 285), fala do surgimento do Correio da Manh, com a proposta de ser um
jornal contestador.
De acordo com o autor, na primeira edio, revela o nome verdadeiro de um dos
personagens principais do romance. Nesse cenrio, Frederico Loureno do Couto, o Floc,
responsvel pelas crnicas literrias era, na vida real, Joo Itiber da Cunha, o Jic, do Correio
da Manh. Tal premissa parece confirmar-se numa das mais intensas passagens do livro, que
descreve o suicdio deste, fato que Isaas descreve como se pudesse compreender/ ler o que,
naquele momento, o crtico estava sentindo. O que fica expresso no perodo marcado pela
metfora os olhos semicerrados tinham uma expresso longa e doce de sofrimento e
perdo.2
Floc esteve um instante com a cabea entre as mos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento prximo. Houve um estampido e o rudo de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operrios, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expresso de sofrimento e perdo. Cado para o lado estava o revlver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e s ambies.
28
Diante de sua demora para redigir um texto, o chefe da oficina volta redao, e
assim se dirige ao famoso crtico:- Seu Couto!! (BARRETO, 1909, p. 123), sendo que, na
redao do Correio, segundo Barbosa Sobrinho, Jic era chamado de Seu Cunha.4
Assim,
o Correio da Manh era atingido duramente pela pena do romancista, que o descrevia qual um museu de mediocridades, tendo frente um diretor violento, mestre de descomposturas, destruindo reputaes em nome da moral, mas que no passava, na realidade, de um mulo de Tartufo, corrupto e devasso (BARBOSA, 1982, p. 5).
Era a isso que Lima Barreto aludia ao tematizar o jornalismo. Tal fator, poca,
fez com que no somente o Correio da Manh, como todos os veculos impressos do Rio de
Janeiro praticamente ignorassem o romance. Ainda de acordo com Barbosa (ibid.), em
Recordaes, figuras influentes nos mbitos jornalstico e literrio nacional no incio do
sculo XX, como Joo do Rio, Edmundo Bittencourt, Leo Veloso, Coelho Neto e Afrnio
Peixoto foram satirizados.
No entanto, h quem refute a tese de que o romance seja autobiogrfico. No
trabalho em que compara as contribuies de Lima Barreto e Coelho Neto (que tambm
promove uma crtica realidade das redaes, embora de forma completamente distinta de
Lima Barreto), Rodrigues (2001, p. 3), a partir da viso de Barbosa relata que as semelhanas
entre o autor e o personagem Isaas Caminha so poucas. Tal aspecto pode ser vislumbrado no
trecho a seguir:
o autor-narrador tomado de uma apatia e se deixa engolir pelo mundo mesquinho que inicialmente criticara; o escritor-criador, ao contrrio, fez da Literatura sua razo de existir e foi coerente com seu projeto de arte militante at o fim da vida, conforme atestam todos os seus escritos. certo que um dos intentos do escritor era mostrar que um rapaz nas condies de Isaas, com todas as disposies, pode falhar, no em virtude de suas qualidades intrnsecas, mas batido, esmagado, prensado pelo preconceito (BARBOSA apud RODRIGUES, 2001, p. 4)
4 Nota sobre o roman clf, que ser tratado a seguir, no captulo de anlise.
29
O protagonista Isaas Caminha tornou-se jornalista por acidente (assim como
casualmente entrou como contnuo na redao dO Globo), ao passo que Lima Barreto
exerceu a profisso por vontade prpria e com muita galhardia. Assim, se ele colocou o
ambiente jornalstico e seus figures foi para escandalizar e chamar a ateno para a sua
narrativa e no para produzir um documento autobiogrfico (RODRIGUES, 2001, p. 5).
Independentemente desse aspecto, no somente neste livro, como em todo o
legado de Lima Barreto, essa foi a forma encontrada pelo autor para denunciar as injustias
presentes na sociedade em que vivia, falando moda do povo, fazendo de sua obra um
documento de protesto, um livro-resistncia.
E esse fator que fica mais evidente no momento que se l a obra.
Independentemente de sua experincia no jornalismo, Lima Barreto fez uso de um
denuncismo justamente para explicitar os valores que motivavam a produo d O Globo.
O veculo, nesse nterim, corresponde sociedade que o oprimia como negro e
como um marginal das Letras. Ao contrrio de literatos ditos acadmicos, como Coelho Neto
(a quem verbalmente atacou, em um artigo), por exemplo, desafia a sociedade da poca at
mesmo pelo uso de uma linguagem mais coloquial, negando o portugus castio. Sua
narrativa, autobiogrfica ou no, em nenhum momento se quis objetiva ou desprovida de
juzos de valor. Seu narrador, na obra ora exposta, algum que denuncia a prtica de um
jornalismo que nada tem de objetivo e que pouco tem de verdadeiro.
Desprezado por no se render ao estilo vigente na poca, Lima Barreto buscou
fazer uma literatura combativa, criticando a chamada literatura do sorriso da sociedade.
Esta ltima era alvo das implicncias do autor por tratar de temticas amenas; com o intuito
de agradar os ricaos, fazia-se de escrever bonito (...) Era a literatura... a literatura do
30
bom-tom, da representao agradvel dos problemas de certas camadas sociais como se
fossem os do Pas (FACIOLI in BARRETO, 2001, p. 5).5
A linguagem de Coelho Neto, ao contrrio, mantinha-se elevada, rebaixando-se
somente nas bocas dos trabalhadores, da gente pobre (o que denota preconceito) - ainda,
assim, por meio do discurso direto, indicando o distanciamento do autor linguagem errada
das camadas populares. Lima Barreto, ao contrrio, deixava o purismo lingstico em segundo
plano, em favor da promoo da conscientizao atravs da literatura militante, a qual exerceu
e propagou como verdadeira profisso de f. Nesse contexto, Nicolau Sevcenko (1989, p.
162) ressalta que a funo crtica, combatente e ativista algo que est fortemente marcado
no legado do escritor.
O que Lima Barreto declarava em artigos publicados em peridicos da poca,
estabelece uma relao de correspondncia com as observaes de Isaas Caminha acerca dos
literatos da poca. Ser este um dos aspectos abordados na anlise a seguir, visto que o
discurso da personagem perpassado pelo discurso do autor a todo o momento. Embora tenha
uma proposta ficcional, a obra reproduz as convices de seu autor de forma veemente.
Um exemplo dessa relao a crtica que faz a Coelho Neto.
O senhor Coelho Neto o sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual... Ningum lhe pea um pensamento, um julgamento sobre a nossa vida urbana ou rural... Coelho Neto fossilizou-se na bodega do que ele chama estilo, msica do perodo, imagens peregrinas e outras coisas que so o cortejo da arte de escrever, mas no o fim prprio da literatura6
5 Prefcio deOs Bruzundangas (edio de 2001). Na referida obra, Lima Barreto denuncia as desigualdades
sociais e os valores da sociedade de uma nao fictcia denominada Repblica da Bruzundanga. Por intermdio do humor, da ironia e do sarcasmo, o autor constri uma stira sociedade brasileira. Comprometido com o ideal de fazer da literatura um canal de denncia aos problemas sociais, o livro, tal como o analisado neste trabalho, destaca a importncia do trabalho do autor.
6 Antonio Arnoni Prado apud Rodrigues. Lima Barreto: o crtico e a crise. So Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 40.
31
Embora Recordaes indique haver semelhanas entre a trajetria do escritor e as
desventuras do jovem Isaas Caminha, a militncia literria a que Lima Barreto dedicou toda a
sua vida era algo muito maior do que a simples a expresso de sua revolta por meio de suas
obras.
E, no obstante o protagonista de Recordaes expressar, de forma clara, a crtica
e a ironia peculiares do autor, a obra tem projeto para uma vida inteira de militncia literria
contra o preconceito, mas tambm contra os falsos intelectuais, contra um academismo
espelhado no modelo europeu, contra uma literatura (sic.) s de deleite (RODRIGUES,
2003, p. 7). Desde o incio, LB fixou como objetivo escapar s injunes dos mandarins
literrios, aos esconjuros de toda a sorte (BARRETO apud SEVCENKO, 1989, p. 164).
Autor de tese de doutorado que aproxima Lima Barreto e Euclides da Cunha, ao
ser questionado sobre a razo que o levou a realizar tal paralelo, Nicolau Sevcenko destaca
que ambos abraaram a Literatura com o propsito de edificar e contribuir para a melhoria
social. Fizeram da Literatura muito mais que simples deleite do pblico leitor, mas agente
catalisador da conscientizao, encarando a arte de escrever como comprometida misso.
Para Sevcenko, na consolidao do regime republicano, ambos se sentiram
frustrados. Cunha, pelo fato de o advento da Repblica significar a construo de uma
sociedade mais igualitria e que daria possibilidade de uma reparao das mazelas sociais
causadas pelo colonialismo e escravido e Lima Barreto por perceber que novo regime
acabara por fortalecer o conflito entre as elites e as demais camadas sociais, nunca tendo
ocultado seu profundo desgosto com a nova ordem (1989, p. 125).
Ambos, conforme o autor, foram missionrios da literatura e desejavam a criao
de uma sociedade de homens e mulheres iguais no pleno desfrute das possibilidades desse
pas. Neste sentido, frisa o autor, os dois so fonte de inspirao para pensar um Brasil mais
32
justo7.
No contexto de Recordaes, Isaas Caminha constitui, independentemente de o
romance ser ou no uma autobiografia de Lima Barreto, uma voz que perpassada pelo
discurso inflamado que caracterizou o autor como marginal das Letras, e, sua poca, fez
com que ele recebesse o desprezo dos acadmicos, de forma geral.
Atravs de sua militncia, Lima instaurou (...) uma crise na linguagem, por
nunca ter se adequado a um estilo ou aceito o padro portugus de escrita, o qual expressava a
dominao portuguesa sobre os aspectos scio-culturais brasileiros e, sobretudo, na ideologia
do texto, que era a crise verdadeira das relaes de dominao das oligarquias (FACIOLI in
BARRETO, 2001).
Em setembro de 1918, o escritor recebeu carta de Monteiro Lobato, o qual
expressou o desejo de publicar os trabalhos dele, pelo fato de o marginal das Letras fazer uma
Literatura com razo de ser, contrariando o sorriso da sociedade.
Prezadssimo Lima Barreto...
A Revista do Brasil deseja ardentemente v-lo entre seus colaboradores. Ninho de medalhes e perobas, ela clama por gente interessante, que d coisas que caiam no gosto do pblico. E Lima Barreto, mais do que nenhum outro, possui o segredo de bem ver e melhor dizer, sem nenhuma dessas preocupaezinhas de toillete gramatical que inutiliza metade dos nossos autores. Queremos contos, romances, o diabo, mas moda do Policarpo Quaresma (in Barbosa, 1981, p. 266-267).
Crtico, ferino, surpreendente. Em todo o seu legado, Lima Barreto buscou
expressar o seu protesto. Como se pode vislumbrar em fragmento de artigo publicado no
Correio da Noite (1911-1914). O nosso regime atual da mais alta plutocracia, da mais
intensa adulao aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos charlates tintos
com uma sabedoria de pacotilha (SODR, 1983, p. 286). Tal aspecto est bem ilustrado, em
7 Disponvel em . Acesso em 20 set. 2005.
33
Recordaes, na figura de Floc, o crtico literrio D O Globo, que para, Isaas, tinha parco
conhecimento em literatura, por ser um leitor de pacotilha.
Citando Lus Edmundo, Nelson Werneck Sodr destaca o surgimento do jornal
Correio da Manh. Foi para combater esse estado de coisas e restabelecer, na imprensa do
pas, naquele sentido patritico que fez a glria de Evaristo e criou, por muito tempo, a
autonomia de nosso povo, que um jovem advogado (1983, p. 175). Veja-se a semelhana
entre Edmundo Bittencourt (real) e Ricardo Loberant (na obra). Cheio de audcia, de
energia e de civismo, pensou em lanar aqui, um peridico rompendo as normas que os
outros, at ento, haviam estabelecido (ibid).
O jornal, desde seu incio, caracterizou-se como veculo de oposio, o que lhe
ocasionou grande aceitao junto s classes populares. O peridico de Bittencourt fora, no
incio do sculo passado, o veculo, dos sentimentos e valores da pequena burguesia, levantou
os protestos nas camadas mais baixas da sociedade, caracterizou-se pouco a pouco como uma
empresa jornalstica (p. 61).
Logo depois, Lima Barreto o tomava como tpico dessa conjuntura jornalstica.
Neste contexto, o chamado marginal das Letras sentia a transformao da imprensa brasileira
(...) A passagem ao jornalismo (sic.) de empresa era, entretanto, etapa histrica necessria
(...) o jornalismo individual que estava superado (p. 225).
Batista Cepelo (cf. SODR, 1983) destaca as figuras do jornalista venal (em
Triste fim de Policarpo Quaresma) e de literato fracassado, peculiares fase de avano do
capitalismo, despertou a ateno dos ficcionistas, tais tipos foram amplamente destacados por
Lima Barreto no somente em Recordaes, como tambm em Numa e Ninfa e em Triste fim
de Policarpo Quaresma.
34
Em 1917, faz participaes em O Debate e na ABC Revista. Nos textos, ele
destaca que era chegada a hora de o povo se libertar de uma minoria opressora, vida e
cnica (SODR, 1983, p. 319).
No turbulento perodo presidencial de Hermes da Fonseca (1908), Lima Barreto,
que pintara a poca com as fortes cores da crtica em Numa e Ninfa. Na trama, um discurso
proferido fala sobre Rui Barbosa: O Rui falou, falou com aquela pretenso e aquela falta de
viso que lhe so peculiares (ibid, p. 327).
Tambm Numa e Ninfa retrata, tambm na forma de stira, a disputa entre o
Correio da Manh e O Pas (Joo Laje e Fuas Bandeira) (SODR, 1983, p. 333). Mas os ditos
medalhes reagem crtica ferina de Lima Barreto. A exemplo disso, veja-se o que Osrio
Duque Estrada escreveu em O Imparcial (1916) sobre Triste fim de Policarpo Quaresma: h
nela qualidade, mas deplora os defeitos e senes de forma. Condena a obra pela caricatura dos
poderosos que esta promoveu, pois isso envenena a alma da juventude (ibid.).
Em 1919, Lima Barreto candidata-se vaga aberta Academia Brasileira de Letras,
disputando-na com Humberto de Campos e Eduardo Ramos, conquistando somente dois
votos. Permanecia o chamado marginal das Letras ignorado pelos poderosos do seu tempo...
Eu sou escritor, e seja grande ou pequeno, tenho o direito a pleitear as recompensas que no
Brasil oferece aos que h anos se distinguem na sua literatura (1921, em A Careta). Apesar de
no ser menino, no estou disposto a sofrer injrias nem a me deixar aniquilar pela gritarias
dos jornais, frisou (SODR, 1983, p. 337).
Por seu legado, Sodr tambm v Lima Barreto (LB) como o primeiro dos
modernistas. Sabia da superficialidade dos letrados da cultura e conhecendo-os, no os
poupava, no lhes prestava a menor homenagem, no lhes tinha o menor respeito (ibid.).
Em A vida de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa (1982, p. 315) destaca,
ainda, um conselho dado pelo jovem reprter Pelegrino Jnior ao escritor. Recomendando ao
35
mestre que bebesse menos para no se prejudicar, ouviu o que prejudica nossos literatos no
a bebida, mas a burrice (cf. SODR, 1983, p. 339).
No tocante trama, esta, sendo autobiogrfica ou no, em nenhum momento se
quis objetiva ou desprovida de juzos de valor, expondo um jornalismo que nada tem de
objetivo, o que faz a relao de Recordaes com os pressupostos da teoria crtica. Acaba, nas
palavras de Alfredo Bosi (1994) evoluindo, de um relato da adolescncia de Isaas Caminha
para um roman clf.
O autor realiza uma cartografia do Rio de Janeiro de seu tempo, expondo um Rio
de Janeiro agitado e tenso, condensado mais nos seus vcios do que nas suas virtudes. Todas
as personagens trazem a marca do seu meio e constituem o objeto privilegiado da crtica
social do autor (...) todos concorrem para consagrar o destino militante da sua literatura
(SEVCENKO, 1989, p. 162-163).
2.4 RELAES DA TRAMA COM OS PRESSUPOSTOS DA TEORIA
CRTICA
Sob quais aspectos o jornalismo tematizado por Lima Barreto reflete as prticas
da realidade? Visando a corroborar essa aluso ao real, em que as prticas miditicas esto
fortemente condicionadas audincia e preocupao com a vendagem, cabe destacar os
pontos de vista da teoria crtica (COSTA, 1997).8
8 teoria crtica, corresponde uma espcie de rtulo, de bordo de interveno na esfera pblica alem, principalmente usado por Adorno e Horkheimer. A chamada teoria crtica, tornou-se o instrumento intelectual mais refinado e incisivo na anlise tanto do indivduo quanto da sociedade, aliando a teoria social psicanlise, mas sem se subordinar epistemologicamente outra (...), o pensamento da atualidade tem em si o mago da dialtica frankfurtiana. Trata-se na tica frankfurtiana, da viso contrria ao ideal iluminista: o contrrio; essa viso buscava um mundo melhor, mais justo. E o que se tem hoje (induzidos pelo frankfurtianos) justamente esse oposto: um mundo que ainda est condicionado s ideologias dominantes (REZENDE in In: Revista Cult, 92 ed., ano 8, maio de 2005, p. 12-17).
36
Lima Barreto, pode-se dizer, ao tematizar o Jornalismo em sua primeira obra,
constituiu-se como um terico acidental da Comunicao, quando tocou em questes que
passariam a ser discutidas mais tarde pelos tericos da Escola de Frankfurt.
Nesse nterim, segundo Walter Benjamin (cf. COSTA, 1997), a citao e a
tematizao so, de alguma forma, indcios de exterioridade, de um certo distanciamento em
relao ao que citado ou tematizado. Benjamin, assim como os demais tericos da Escola de
Frankfurt, acreditava ser o jornalismo uma narrativa destituda de aura, pelo fato de suas
abordagens estarem presas factualidade e a objetividade dos fatos. Por ser produto do
capitalismo, estaria a servio do status quo.
No ensaio Jornalismo e Literatura, contido na obra Para ler Benjamin (1976),
Flvio Kothe frisa tal crena. Importa destacar que Benjamin analisa o jornal como um
grande instrumento do poder, cujas caractersticas ele tambm assume. Ele no serve
basicamente para comunicar, mas sim para que a verdadeira comunicao entre os homens
no se realize (KOTHE, 1976, p. 81).
Uma outra contribuio elucidativa a de Genro Filho na obra O segredo da
pirmide - para uma teoria marxista do Jornalismo (1987). Nela, o autor salienta a influncia
das concepes do Funcionalismo, sobretudo dos trabalhos de Drkheim, sobre as cincias
sociais e dentre elas a comunicao. Drkheim esmerou-se em estabelecer critrios para sanar
as patologias sociais, reduzindo a condio social do homem a fatores biolgicos, concepo
que, na opinio de Genro Filho, coisifica a sociedade.
A perspectiva funcionalista, cujos alicerces estavam fundados em estudos de
natureza empirista e em modelos matemticos, foi aplicada comunicao social aps a
Primeira Guerra Mundial. Tal fator hegemonizou os estudos desse campo de conhecimento
nos Estados Unidos e na Amrica Latina. De acordo com essa corrente, o desenvolvimento
dos meios de comunicao e do prprio jornalismo so analisados como processos
37
independentes ao desenvolvimento global das foras produtivas e da luta de classes, ou seja,
apartados do movimento histrico em seu conjunto (GENRO FILHO, 1987, p. 33).
Como conceber uma comunicao dissociada dos aspectos sociais? Isso denota a
vulnerabilidade, o curto flego terico de suas premissas (do Funcionalismo) que no
permite responder (...) por que o jornalismo (sic.) assumiu determinadas configuraes
especficas na organizao da informao e na estrutura de sua linguagem (...) (ibid., p. 38).
No deixou, entretanto, de notar a autonomia relativa do fenmeno jornalstico e suas
perspectivas histricas mais amplas, mesmo limitando suas possibilidades como forma de
conhecimento.
Disso decorreu a viso de que o jornalismo enquanto funo deveria ser o mais
objetivo e neutro possvel, o que constitui as mitologias tratadas por Juremir Machado da
Silva na obra A misria no jornalismo brasileiro (2000, p. 93). O Funcionalismo, assim,
reduziu a prtica jornalstica mera reproduo social, embora, de modo vulgar, o tenha
classificado como forma de conhecimento.
Assim,
que as notcias sejam transformadas em mercadoria no de se estranhar, pois, afinal, tratava-se precisamente do desenvolvimento do modo de produo capitalista (...) desde seu nascimento, o jornalismo (sic.) teria de estar perpassado pela ideologia burguesa e, do ponto de vista cultural, associado ao que foi chamado mais tarde de cultura de massa ou indstria cultural (GENRO FILHO, 1987, p. 36).
Essa viso, na verdade, acabou dando margem a abordagens que nada tm de
objetivas, mas que se deseja que sejam lidas como o retrato do real. O que no se sustenta,
haja vista a impossibilidade de se expor os fatos em sua totalidade.
Subtende-se, por essa tica que imps princpios naturais aos estudos sociais e
comunicacionais, que a recepo seja um processo passivo, unilateral, em que os media
transmitem as informaes a uma massa destituda de senso crtico (COSTA, 1997, p. 141).
38
Nesse contexto, em conformidade as idias dos tericos da Escola de Frankfurt,
tanto Genro Filho quanto Costa criticam as premissas funcionalistas, as quais favorecem a
chamada lgica do capital, contribuindo para o que Max Horkheimer definiu como esttica
da barbrie.
Os procedimentos da teoria tradicional (...) estendem-se para todas as esferas da sociedade capitalista, incluindo o universo do fluxo intercambivel de informaes e mercadorias simblicas (...) Na produo jornalstica, as informaes tambm so produzidas para satisfazer todo o tipo de aplicao, pois o conjunto das mensagens passa a estar funcionalmente condicionado temporalidade de circulao de fatos noticiosos, aos fins da indstria, do mercado (COSTA, 1997, p. 131).
Em Recordaes do escrivo Isaas Caminha, o autor descreve as prticas do
jornal O Globo. Sob o disfarce de defensor da moralidade pblica, o jornal buscava reforar
que as suas abordagens nada mais eram do que um fiel retrato da realidade, para conquistar a
credibilidade da populao carioca.
Outros livros tematizaram a prtica jornalstica, tal como As iluses perdidas , de
Honor de Balzac (1978). Nela, o Jornalismo exposto de forma semelhante descrio
empreendida por Lima Barreto em Recordaes.
Na anlise da trama a ser feita a seguir, aspectos como o sensacionalismo, as
posturas destitudas de tica e a fabricao de verdades sero frisados. No contexto da obra,
o jornal se utiliza de todos os artifcios para atingir a uma nica meta: vender, conquistando, a
cada dia, um maior nmero de leitores, mesmo em detrimento da veracidade das informaes
veiculadas.
2.4.1 Breve panorama das teorias do jornalismo
39
Em sua obra Teorias do jornalismo: porque as notcias so como so, Nelson
Traquina (2004) d destaque s principais correntes que estudaram a prtica jornalstica como
um todo. Embora neste trabalho, esteja-se trabalhando dentro de uma tica mais generalista
(teoria crtica, de modo geral), cabe mencionar algumas delas, cujos valores esto amplamente
relacionados trama de Lima Barreto.
Talvez a mais clebre (e mais controversa, diga-se de passagem), seja a chamada
teoria do espelho. Nessa perspectiva, segundo Traquina (2004, p. 147-148), esta a teoria
oferecida pela prpria ideologia profissional dos jornalistas (...) a teoria mais antiga e
responde que as notcias so como so porque a realidade assim as determina.
Aqui, o princpio da objetividade se encaixa perfeitamente, haja vista que, para a
teoria do espelho, o jornalista apenas um observador neutro, atento realidade dos
fatos, cuja finalidade transmitir uma imagem no expurgada real, com honestidade e
equilbrio (ibid., p. 148).
A teoria desenvolveu-se concomitantemente comercializao do jornalismo e
profissionalizao dos jornalistas (sculos XIX e XX), fazendo com que o jornalismo
opinativo desse lugar objetividade. Tal concepo surgida entre 1920 e 1930, ainda
dominante no jornalismo ocidental. Desse modo, qualquer ataque ao pressuposto de que os
jornalistas so os transmissores das verdades colocam em risco esse papel, porque a
legitimidade e a credibilidade dos jornalistas esto assentes na crena de que as notcias
refletem a realidade, que os jornalistas so imparciais devido ao respeito s normas
profissionais e asseguram o trabalho de recolher a informao e de relatar os fatos, sendo
simples mediadores que reproduzem o acontecimento da notcia (TRAQUINA, 2004, p.
149).
Mas nessa conjuntura, quem definiria o que ser ou no publicado? Nesse
contexto, entra em cena a teoria do gatekeeper desenvolvida por David Manning White nos
40
anos 50. O termo gatekeeper refere-se a algum que tem de tomar uma deciso numa
seqncia de decises. Na referida teoria, o processo de produo da informao visto como
um processo em que o fluxo de notcias deve passar por crivos, portes (os gates). Ou seja,
so reas de deciso, em relao s quais o gatekeeper (o editor, neste caso, tem de escolher
se uma determinada notcia vai ou no passar pelo porto.
Embora se imponha tanto captao e redao das notcias quanto sua seleo
uma aura de objetividade, tal processo sempre subjetivo e arbitrrio, conforme concluiu o
prprio David White, autor da teoria, em sua pesquisa. Ele constatou que as decises do
jornalista era altamente subjetivas e dependentes de juzos de valor, baseados no conjunto de
experincias, atitudes e expectativas do gatekeeper (TRAQUINA, 2004, p. 150-151).
Essa teoria, para Traquina, constitui uma abordagem micro-sociolgica, porque se
situa ao nvel do profissional, individualizando uma funo que tem uma dimenso
burocrtica inserida numa organizao (ibid). por assim dizer, uma viso limitada do
processo de produo noticiosa.
Nelson Traquina destaca, ainda, a teoria organizacional, a qual, diz o autor, insere
o jornalista em seu contexto mais imediato. Por esse fato (estar subordinado hierarquia
organizacional), o jornalista se conformaria mais com as normas editoriais da poltica editorial
do que com quaisquer outras crenas pessoais (...). O jornalista acaba por ser socializado na
poltica editorial da organizao.
Assim, nesta modalidade de teoria jornalstica, a nfase est num processo de
socializao organizacional, em que sublinhada a importncia de uma cultura
organizacional, e no da cultura profissional.
J as teorias de ao poltica surgiram nos anos 60, como reflexo das teorias
marxistas e da problemtica da linguagem. Essa nova fase de investigao foi marcada por um
crescente interesse pelas questes ideolgicas. Nesta,
41
a relao entre o Jornalismo e a sociedade conquista uma dimenso central: o estudo do jornalismo (sic.) debrua-se sobre as implantaes polticas e sociais da atividade jornalstica, o papel social das notcias, e a capacidade do quarto poder em corresponder s enormes expectativas em si depositadas pela prpria teoria democrtica (TRAQUINA, 2004, p. 153).
Nas teorias de ao poltica, os media noticiosos so vistos de forma
instrumentalista, isto , servem objetivamente certos interesses polticos. Na verso de
esquerda, os media noticiosos so vistos como instrumentos que ajudam a manter o sistema
capitalista; na verso de direita, servem como instrumentos que pem em causa o capitalismo
(ibid.).
Tratando dessa perspectiva, Traquina destaca a premissa proposta por Herman e
Chomsky. Para Herman, somente um conjunto de assuntos ou acontecimentos exposto
populao, por meio de uma censura (seja oficial ou tcita). No h, por essa razo, uma
significativa diversidade. Assim, se os temas, fatos e pontos de vista ficam limitados aos
media, o resultado, ento, o que se pode denominar diversidade sem sentido ou
marginalizada.
Para Herman e Chomsky, o campo jornalstico uma arena fechada. A teoria dos
autores destaca, nesse nterim, a existncia e o avano da chamada propaganda framework
(modelo de propaganda). Nesse sentido, toda a vastido da cobertura dum acontecimento
particular nos vrios meios de comunicao social tratada como uma campanha de
publicidade macia (...) (ibid, 2004, p. 166).
Freqentemente, frisa o autor, um certo tema ou acontecimento capaz de servir
s relaes pblicas ou s exigncias ideolgicas de um grupo de poder. Estes temas, lembra
o autor, so vistos ento como grandes estrias e podem ajudar a mobilizar a opinio pblica
numa direo especfica. Tal como se v em Recordaes no episdio do motim contra o
sindicato dos sapateiros fomentados pel O Globo.
42
Ao longo de sua obra, Traquina d destaque, ainda, s teorias construcionistas (p.
192), para a qual as notcias so derivadas de uma construo acerca de fato, uma
interpretao do real. Nega, por assim dizer, a teoria do espelho. Acredita-se, nessa corrente,
que as notcias no podem ser transmitidas de modo neutro, uma vez que a linguagem no o
sob esse ponto de vista. No h, por assim dizer, a negao da subjetividade do jornalista e da
angulao das notcias, sendo esta parte do processo constitudo do real.
O autor d nfase, ainda, teoria interacionista. Esta institui que os jornalistas
vivem sob a ditadura da dead line, tendo, em seu cotidiano, o desafio constante de captar,
acontecimentos e finalizar seu produto, seja ele uma matria, uma notcia, um telejornal,
etc...
Pressionadas por essa verdadeira tirania, cabe s empresas jornalsticas elaborar
estratgias com a finalidade de ordenar tempo e espao, haja vista relao entre a
imprevisibilidade dos fatos e o horrio de fechamento. Estendem, por assim dizer uma rede
noticiosa.
A formao de rede noticiosa e a forma como os jornalistas nela esto
distribudos tm importncia terica, dado que so a chave da construo da notcia. O autor
destaca, ainda, a teoria estruturalista, outra corrente macrossociolgica que tambm partilha
da crena de que os media reproduzem a ideologia do status quo, embora, ao contrrio de
outras teorias de base marxista (como a teoria de ao poltica), apregoe a autonomia
relativa dos jornalistas em relao ao controle econmico. Servem (os media) por assim
dizer, como um dos aparelhos ideolgicos do Estado, de acordo com a perspectiva
estruturalista (TRAQUINA, 2004, p. 175-176)
Stuart Hall apontado como um dos principais tericos da escola culturalista
britnica. Na terminologia desta escola, as notcias, como parte da produo da indstria
43
cultural, contribuem para dar a origem hegemonia ideolgica (o que na terminologia
bakhtiniana, corresponderia ao conceito de monologismo, a ser visto a seguir).
2.4.2 A crtica ao mito do interesse pblico
Conforme Silva (2000, p. 93) o mito do interesse pblico, presente nas
abordagens jornalsticas, tambm expressa uma busca por legitimao. Isso reporta ao
conceito de notcia.
Historicamente, notcia corresponde articulao simblica que transporta a
conscincia do fato a quem no o presenciou (LAGE, 1991, p. 49). Acerca do assunto, o
autor destaca que, com a conquista do grande pblico a partir da Revoluo Industrial, as
notcias passaram a ser artigos de consumo, sujeitos a acabamento padronizado, embalados
conforme as tcnicas de marketing (ibid.).
O conceito, porm, no possui uma definio estrita. Nesse nterim, Lage pontua,
de modo bastante genrico, que notcia o relato de uma srie de fatos a partir do fato mais
importante e este, de seu aspecto mais importante.
Contudo, o que noticiado interessante para quem? Sob quais aspectos? Essa
seleo feita, conforme Genro Filho, com base em valores anteriores notcia, tendo como
parmetros julgamentos sociais, pessoais e mercadolgicos. Ser ou no ser um fato, ento,
uma questo de uma ocorrncia x estar em relao a uma possibilidade determinada tanto
da totalidade histrica quanto do fenmeno que, inserido nela vai adquirir seu sentido e
significado (GENRO FILHO, 1987).
Tambm Belarmino Costa (1997, p. 148), discorre sobre a inexistncia de
objetividade na definio do que notcia. Assim, algo que se torna notcia e o enfoque dado
44
informao remetem ao agendamento dos veculos de comunicao quanto s preocupaes
de natureza poltica, econmica e social, sobre as quais cabem a formao de opinies nas
conversas interpessoais.
Em contrapartida, diz o autor, as lacunas tambm identificam os temas a serem
desprezados, definidos a priori como jornalisticamente desinteressantes. Leia-se:
desinteressantes ao veculo, ao mercado...
Pelas premissas discutidas por autores como Genro Filho e Costa, em diversas
instncias jornalsticas da atualidade, notcia corresponde ao que vende mais, o que chama a
ateno e no o que o povo quer, mas o que o status quo deseja que seja evidenciado. nesse
princpio que est fundamentado o que Silva (2000, p. 94) define como mito do interesse
pblico.
Nesse cenrio, h ainda o eufemismo acerca da realidade, que consiste na
suavizao e na ocultao da luta de classes, atuando como um poderoso artifcio ideolgico.
Sublima-se, desse modo, a manipulao.
Para conquistar credibilidade junto ao pblico, busca-se, constantemente, mexer
com os impulsos de proteo (atravs de abordagens sobre animais, crianas, pessoas pobres),
agressividade (atravs do uso de termos como batalha eleitoral) e de posse (por meio de
matrias que incentivem o consumo). Outro recurso utilizado a mobilizao contra revoltas,
atravs da idia de unio passada pelo esporte, por exemplo (LAGE, 1985).
O valor do jornalismo como forma de conhecimento enfocado por Genro Filho
(1987, p. 47). Para o autor, embora o jornalismo (sic.) expresse e reproduza a viso burguesa
do mundo, ele possui caractersticas prprias enquanto forma de conhecimento social e
ultrapassa, por sua potencialidade histrica concretamente colocada, a mera funcionalidade do
sistema capitalista. Ele destaca a veiculao de abordagens que, ao lado das matrias
45
caractersticas do jornalismo propriamente dito, podem ter um maior ou menor grau de
aproximao com o discurso jornalstico tradicional.
O autor estabelece, assim, uma graduao, que parte desse jornalismo tpico
(tcnico e pretensamente objetivo) em direo s mais variadas maneiras de representao
simblica do real. Nessa escala, a cincia e a arte so as principais referncias.
Nesta, podem-se enquadrar as abordagens oriundas do Novo Jornalismo, surgido
da dcada de 1960 nos Estados Unidos e a categoria definida neste trabalho como romance
jornalstico. Tais narrativas atuam na fronteira com a Literatura. Alis, todas as propostas de
jornalismo (sic.) rotuladas normalmente como opinativo, interpretativo ou crtico, atuam,
em algum grau, nas reas limtrofes com as diversas cincias sociais (1987, p. 47).
Genro Filho destaca que os fenmenos so objetivos, mas sua essncia somente
pode ser apreendida atravs da relao com a totalidade. Haveria, segundo o autor, um
componente subjetivo inevitvel na composio do fato social. Por esse motivo, captar a
essncia implica, necessariamente, um grau de adeso ou solidariedade em relao a uma
possibilidade determinada, tanto da totalidade histrica quanto do fenmeno que inserido nela
vai adquirir seu sentido e significado (ibid., p. 49).
Tal premissa est em total consonncia com a relao que Bakhtin (1992) traa
entre o tema de uma enunciao e a sua significao, a qual se d no relacionamento com o
outro, que somente possvel ocorrer no contexto.
Frente disseminao dos fatos, o jornalismo promove uma simulao da
imediaticidade. Por seu carter referencial, reproduz o acontecimento. Contudo, o real j est
distante, uma vez que no momento que ocorre que o fato constitui-se como singularidade
(LAGE, 1985, p. 39).
46
Noticiar, porm, no consiste somente em transmitir uma determinada informao
condicionada a valores mercadolgicos. Cabe tambm ao jornalismo a tarefa de promover
educao. Tal premissa compe uma contra-resposta ao mito do interesse pblico.
Zuenir Ventura, nesse sentido, tem um posicionamento interessante, quando
afirma que:
se (o jornalismo) se demitir da tarefa pedaggica que tem, em respeito a um princpio de que o leitor est sempre com a razo, e por isso deve-se fazer s o que o que l quer, a imprensa corre o perigo de uma espcie de submisso obscurantista (...) No sendo exigido intelectualmente, no sendo provocado em sua preguia mental, em sua inrcia, tender sempre a emburrecer (...) como que se pode ampliar o universo cultural do leitor sem introduzir o desconhecido, sem aceitar o novo, sem substituir a redundncia pela informao oficial (in AZEREDO, 2002, p. 46).
2.5 LITERATURA E RESISTNCIA
No prefcio da edio de 2001 da obra Os Bruzundangas, Valentim Facioli
ressalta, em Lima Barreto, a urgncia em evidenciar seu interesse em fazer, de sua literatura,
um protesto s chamadas narrativas do sorriso. Estas, to combatidas pelo marginal das
Letras, eram, no seu entendimento, obras concebidas nica e exclusivamente com o propsito
de abstrair, de divertir e, sobretudo, de agradar sociedade.
Pela militncia literria que empreendeu, Lima Barreto no poderia compreender
uma Literatura que no tivesse o propsito de denunciar os problemas sociais. Nesse quadro,
frisa Facioli, a literatura do sorriso da sociedade era a distrao e passatempo das elites
letradas e ociosas, ornamento e distino mundanos e inconseqentes, completamente alheia
aos problemas sociais e s contradies entre trabalho e capital (2001, p. 4).
47
Em contraposio a essa Literatura descomprometida com os reais problemas da
sociedade, Lima Barreto buscou, por intermdio de seu legado, exercer sua luta. Para ele, a
misso da Literatura seria a de promover a comunicao e integrar os indivduos, reforando
aspectos como a solidariedade e o respeito mtuo como caminhos resoluo das
dificuldades.
Assim, tanto atravs das temticas crticas que abordou, como a negao ao
padro lusitano vigente, o qual recusou e veementemente combateu, Lima Barreto se props a
escrever de forma que pudesse ser compreendido, falando a lngua do povo. Temos em Lima
Barreto um registro da lngua brasileira do incio do sculo XX e um ritmo, a despeito dos
tropeos de seu estilo inconstante, genuinamente nacional na literatura brasileira, que
prenunciava a linguagem modernista (RODRIGUES, 2003, p. 11).
Mostrar o lado avesso do espelho da sociedade (a literatura do sorriso). Eis o
objetivo maior da obra de Lima Barreto. Ao se analisar o legado de LB, percebe-se que, de
fato, ele impunhou a bandeira da resistncia, tanto no mbito ideolgico quanto no estilstico.
Est, por assim dizer, em ampla consonncia com a definio de obras-resistncia destacada
por Alfredo Bosi (in MORENO, 2003, p. 1-5). Cabe destacar a declarao do autor em
entrevista jornalista Leila Kyiomura Moreno do Jornal da USP (2003): o espelho tem um
lado transparente que reflete a nossa imagem, mas tambm tem um lado opaco, o seu avesso.
Nesse lado opaco h uma resistncia imagem. A sociedade no o v porque o oposto da
imagem dominante.
Na entrevista, Alfredo Bosi lana mo dessa analogia para definir a diferena
entre as obras que corroboram e as que desafiam e se prope a desconstruir o status quo, os
quais correspondem, respectivamente, ao lado que reflete e ao lado obscuro de um espelho.
Frisa o autor:
48
Existe, ento, uma dialtica. A literatura tem as duas funes: a do espelho, onde est a imagem especular, e tem um lado resistente, que o avesso da ideologia dominante, que a prpria sociedade no percebe. Porm, os bons escritores percebem. Acredito que 99% dos livros que esto nas livrarias so espelhos.
Espelhar a sociedade, fazer rir, absorvendo o leitor e o alienando. Desse modo,
atuam as obras que apenas refletem o social, cujo percentual altssimo nas prateleiras das
bibliotecas.
Nesse contexto, Bosi complementa:
a literatura no s o espelho da sociedade. Ela , s vezes, resistncia sociedade (...) uma leitura que compreenda o texto em sua complexidade. Sigo a hermenutica de Paul Ricoeur, para quem a obra literria deve ser compreendida de forma ampla e no ser reduzida a uma mera explicao cientfica, do tipo estruturalista. 9
Nesse trecho, Bosi toca num ponto nevrlgico no cenrio da Literatura. Como
forma de conhecimento, tal como o Jornalismo, no pode ser reduzida mera finalidade (tal
como na perspectiva funcionalista) de distrair a massa. Ao contrrio, deve servir de fonte de
engajamento e ao. Bosi pontua ainda, que:
devemos buscar os pontos de ruptura na histria literria, seus elementos contraditrios. o que denomino dialtica negativa. O desafio est em escolher os textos que apresentem essa luta. Ler resistir.
9 Entrevista concedida por Alfredo Bosi a Leila K. Moreno. Jornal da USP, 31 de maro a 4 de abril de 2003, p. 20. Ano XVIII n 636. Disponvel em . Acesso em 20 jan. 2005.
49
2.5.1 Lima Barreto e a literatura de protesto: um salto na histria da literatura
brasileira atravs da resistncia
Na tematizao do jornalismo que realiza em Recordaes do Escrivo Isaas
Caminha, Lima Barreto expe, concomitantemente, o aspecto crtico e a resistncia ao status
quo. Ele critica, numa relao de verossimilhana, as prticas jornalsticas e a sociedade do
incio do sculo XX.
O mote, aqui, est na linguagem utilizada pelo chamado marginal das Letras, que
recebeu essa alcunha por seu estilo rebelde e no condicionado ao portugus castio.
Ele manifestou o seu protesto, utilizando um padro lingstico e estilstico
diferente do vigente poca em que a obra foi concebida. Atravs de seu aspecto crtico, tida
como autobiogrfica, foi rejeitada pela maioria dos veculos de comunicao da poca.
Sendo assim, as agruras do jovem Isaas Caminha seriam o relato sobre o racismo
e a rejeio aos quais Lima Barreto fora submetido. Toda a discriminao por ser negro e,
sobretudo, por contrariar os padres pr-estabelecidos indicam o carter de obra de
resistncia de Recordaes, segundo a classificao feita por Bosi acerca da diferena de
objetivos entre estas dos livros-espelho, ou seja, aqueles que expressam e confirmam o status
quo.
Para Bosi, tais livros refletem (e refratam) a ideologia dominante, com a proposta
de se estabeleceram como verdade, como espelho do real. Em contraposio a estas, h
aquelas que indicam o que ele chama de o lado do espelho que ningum v, ou seja, a viso
outra, a histria no-oficial, o lado que se ignora, que se quer aniquilar, esquecer.
Nesse contexto, sero identificadas as marcas que, no interior do texto, indiquem,
de algum modo, a resistncia, atravs das figurativaes estilsticas ou da crtica direta que
Lima Barreto faz ao jornalismo.
50
No cenrio da literatura brasileira, posteriormente, ainda por meio da relao
literatura-fico, se buscava manifestar, pela via literria, a resistncia, fazendo disso um
subterfgio censura durante a ditadura militar. Assim como em Lima Barreto, em que o
autor nega os padres vigentes e critica a sociedade carioca de sua poca, em obras como
Zero, de Igncio de Loyola Brando (1974), uma narrativa no-linear e aparentemente
confusa na qual o protesto se manifestava, justamente por esse desvio, por essa negao dos
padres literrios prosaicos.
O intuito era o resistir, o renunciar ao que estava posto: os padres (lingsticos,
literrios e sociais) excludentes, no caso de Lima Barreto; censura, no caso dos livros-
reportagem citados.
2.6 A PRESENA DO AUTOR-NARRADOR
Esse aspecto est presente tanto nas abordagens em que o Jornalismo tematizado
quanto naquelas em que atua como discurso prprio. Estas utilizam tcnicas que pretendem
facilitar a compreenso do leitor. Isso sem esconder, sob a mscara objetiva, a viso do autor,
uma vez que, segundo Luiz Gonzaga Motta na obra Narratalogia (2004, p. 15), nossas
maneiras de descrever e de contar o mundo fsico e humano so sempre percepes
particulares destes mundos, formas de perceber e de cont-los.
Essa afirmao refora que no se pode chegar ao fato sem mediao. Mesmo nas
obras literrias e nas matrias em que o foco narrativo aponta para uma possvel ausncia do
narrador, como se o texto ou as personagens falassem por si s, ali est o narrador,
implicitamente, comandando a narrativa.
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A fidelidade verdade dos fatos, no jornalismo, e a retratao da realidade, na
Literatura, seriam os traos objetivos. No h, porm, uma narrativa que possa ser construda
sem interveno. Somente possvel ver a realidade pelos olhos do ficcionista ou do
jornalista. O texto romanesco j no trata das musas, mas do social do homem (SCHLER,
1989). O que h uma recriao da realidade, mesmo que se intente contar o fato tal como
ocorreu.
Sobre a relao fato-fico e a desconstruo de fronteiras que esta promove, faz-
se oportuno destacar o que diz Fernando Resende (2002, p. 111). Na viso do autor, nos
trabalhos resultantes do hibridismo jornalismo e a literatura, a literatura (sic.) do fato (...)
quer deixar transparecer as verdades contidas, representar as narrativas cotidianas sem o rigor
factual que as encerra, quer, enfim, brincar com a realidade dos fatos. Isso tem a ver com a
mincia com a qual Lima Barreto constituiu sua narrativa em Recordaes, atravs da voz
do narrador, Caminha, que configura um alter ego do autor.
Esse aspecto, alis, evidencia-se pela relao do contedo da obra com as crticas
barretianas que, publicadas nos jornais da poca, criticavam personalidades como Coelho
Neto (chamado o virtuose). Pode-se traar um paralelo entre real e ficcional, aspecto de suma
importncia no que diz respeito s obras do marginal das Letras.
Em debate entre estudiosos da obra de Lima Barreto, Beatriz Resende destaca o
registro desse submundo, o qual o escritor buscou registrar ao denunciar os fatos da cidade
do Rio, do centro do Rio especificamente, onde fica evidente a presena da rua do Ouvidor e
de algumas outras ruas importantes no perodo em que viveu11.
11 Transcrio de debate em fita transcrio: fita XX Lima Barreto um grito brasileiro. Disponvel em:. http://www.mec.gov.br/seed/tvescola/Mestres/PDF/Roteiros/Roteiro%20-%20LimaBarreto.pdf).
http://www.mec.gov.br/seed/tvescola/Mestres/PDF/Roteiros/Roteiro - LimaBarreto.pdf
52
No mesmo debate, Afonso Carlos Marques pontua que a relao de LB com a
cidade do Rio de Janeiro uma relao visceral. Ele vivia a cidade assim como a cidade vivia
dentro... dentro dele. E nesse sentido, a cidade para ele uma espcie de laboratrio para
pensar o Brasil. E a cidade tambm o objeto de uma reflexo profunda sobre a sociedade
brasileira do