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Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de Conclusão de Curso O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LUIZ VILELA Autor: Fabiano Sorrequia Oliveira Orientador: Msc. Robson André da Silva Brasília - DF 2012

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Page 1: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

Pró-Reitoria de Graduação

Curso de Letras

Trabalho de Conclusão de Curso

O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LUIZ VILELA

Autor: Fabiano Sorrequia Oliveira

Orientador: Msc. Robson André da Silva

Brasília - DF

2012

Page 2: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

FABIANO SORREQUIA OLIVEIRA

O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LUIZ VILELA

Monografia apresentada ao curso de graduação

em Letras da Universidade Católica de

Brasília, como requisito parcial para a

obtenção do Título de Licenciado em Letras.

Orientador: Msc. Robson André da Silva

Brasília

2012

Page 3: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

Monografia de autoria de Fabiano Sorrequia Oliveira, intitulada “O FANTÁSTICO NOS

CONTOS DE LUIZ VILELA”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de

Licenciado em Letras da Universidade Católica de Brasília, em 29 de novembro de 2012,

defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

Prof. Msc. Robson André da Silva

Orientador

Curso de Letras - UCB

Prof. Msc. Lívila Pereira Maciel

Curso de Letras - UCB

Prof. Dr. Maurício Lemos Izolan

Curso de Letras - UCB

Brasília

2012

Page 4: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

A minha tia Maria do Carmo Oliveira Sousa,

professora, por seu exemplo de força e

honestidade.

Page 5: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente a Deus, por seu amor que me sustenta e conduz.

Agradeço ao meu orientador, professor Robson André da Silva, por seu

profissionalismo, sua dedicação e paciência.

Agradeço aos meus professores da graduação, que ao longo de quatro anos me

enriqueceram com seus conhecimentos e partilharam suas experiências.

Agradeço à professora Vera Lucia Cordeiro da Conceição, por sua estima e presença

amiga.

Agradeço à Offitex e aos seus membros, que me ajudaram a crescer ao longo da

graduação e torcem por meu sucesso.

Agradeço a minha esposa Mara Celiany Mota Sales, por seu apoio, confiança,

estímulo e compreensão.

Agradeço aos meus familiares que colaboraram para meus progressos nos estudos e se

alegram com minhas conquistas.

Agradeço aos meus colegas da graduação, que também colaboraram para meu

crescimento com suas experiências e estímulos.

Page 6: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

Ficção é a mais profunda e a mais completa

forma de expressão do homem. Luiz Vilela.

Page 7: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

RESUMO

OLIVEIRA, Fabiano Sorrequia. O fantástico nos contos de Luiz Vilela. 2012. 45 f. Letras-

UCB, Brasília, 2012.

As relações do homem com o sobrenatural ou com o inexplicável aos olhos da razão

encontrou espaço na literatura desde a Antiguidade, mas, devido ao grande número de obras

que trouxeram essa temática ao longo do século XVIII, atribui-se a esse período o nascimento

da literatura fantástica. Este trabalho faz um breve percurso pelas manifestações do fantástico

europeu, hispanoamericano e brasileiro, pondo em confronto o posicionamento de relevantes

teóricos do gênero. A literatura fantástica se manifestou de variadas formas ao longo dos

séculos, mas sempre conservando um princípio de causalidade mágica, ou seja, totalmente

arbitrário segundo a lógica científica. Uma vez liberto dos questionamentos promovidos pelo

exacerbado racionalismo, ao qual foi submetido ao longo dos séculos XVIII e XIX, e

influenciado pela mistura dos gêneros e pelas novas técnicas da narrativa, no século XX o

chamado fantástico contemporâneo aparece sem a preocupação de estabelecer as fronteiras

entre o real e o imaginário. Agora, absurdo e cotidiano se misturam, sem que isso desperte a

necessidade de qualquer explicação racional. A narrativa fantástica se volta para o homem e

seu cotidiano, e nela se podem encontrar tanto uma crítica velada à sociedade quanto questões

de caráter existencial. É sob essa perspectiva que abordaremos o fantástico presente nos

contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da noite”, da autoria do escritor Luiz Vilela.

Palavras-chave: Literatura fantástica. Luiz Vilela. Teorias do gênero.

Page 8: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

ABSTRACT

Human relationship with the supernatural or the inexplicable to eyes of reason has found its

space in literature since ancient times, but due to the amount of works that focused on this

theme in the 18th

century, the birth of fantastic literature is attributed to this period. This paper

made a brief journey through fantastic manifestations in Europe, Hispanic America and

Brazil, confronting the position of relevant theorists of this literary genre. Although fantastic

literature has manifested itself in many ways throughout time, it has always maintained a

magic causality principle, in other words, totally arbitrary according to scientific logic. Once

freed from the inquiries promoted from the exacerbated rationalism, it was submitted to along

the 17th

and 18th

centuries, and influenced by the mixture of genre and new narrative

techniques, in the 20th

century, the so-called contemporary fantastic arises without the concern

to establish a limit between the real and the imaginary. Now the absurd and the daily blend

without the urge or need of any rational explanation. The fantastic narrative turns itself to men

and their daily routine, inside which both a veiled critic to society and questions of existential

matter can be found. It is under such perspective that we have approached the fantastic within

the following short stories: “O fantasma”, “O buraco” and “Tarde da noite”, all of them by the

writer Luiz Vilela.

Keywords: Fantastic literature. Luiz Vilela. Genre theories.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

1 AS TEORIAS E APORIAS DO FANTÁSTICO 11

1.1 O fantástico generalizado 11

1.2 O “nascimento” do fantástico 13

1.3 O fantástico para Louis Vax, Lovecraft e Todorov 15

1.4 Objeções a Todorov: o fantástico à luz de Irène Bessière e Filipe Furtado 17

2 O FANTÁSTICO CONTEMPORÂNEO 21

2.1 Considerações sobre a verossimilhança artística 21

2.2 O fantástico hispanoamericano 23

2.3 A literatura fantástica no Brasil 28

3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS E AS NOVAS TÉCNICAS DA NARRATIVA 29

3.1 A

questão da mistura dos gêneros 29

3.2 As novas técnicas da enunciação e do enunciado 30

4 A NARRATIVA FANTÁSTICA EM LUIZ VILELA 33

4.1 A fantasmagórica realidade em “O fantasma” 34

4.2 Em “O buraco”, a metamorfose do homem em tatu 36

4.3 Sonho e realidade em “Tarde da noite” 38

CONSIDERAÇÕES FINAIS 42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 43

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Page 11: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

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INTRODUÇÃO

Ao longo do século XX, multiplicou-se o número de teóricos e críticos literários que

passaram a discorrer sobre uma espécie de produção literária em que os eventos apresentados

não encontram explicações dentro do nosso universo racional. A esse tipo de literatura,

nascida na Europa – mais precisamente na França, com a obra Le Diable Amoureux, de

Jacques Cazotte (1719-1792) – convencionou-se chamar de “literatura fantástica”.

Desde muito antes, porém, a questão do inverossímil já se fazia presente na literatura.

Tomemos, por exemplo, a mitologia pagã da Antiguidade ou, mais recentemente, a chamada

mitologia cristã, na Idade Média.

O século XIX já havia testemunhado uma vasta produção de narrativas fantásticas em

solo europeu, tendo no alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1882) seu grande

expoente e, no século passado, foi a vez de a América se render a um grande número de

escritores do gênero, revelando grandes nomes como o do argentino Jorge Luis Borges e o do

brasileiro Murilo Rubião. Em ambos os continentes, essas narrativas promoveram uma

ruptura com o princípio estético conhecido como realismo, que se caracteriza por tomar o real

como objeto da representação ficcional.

No primeiro capítulo, intitulado “As teorias e aporias do fantástico”, trazemos algumas

definições do fantástico, que conduzem o gênero de um sentido amplo a um sentido mais

restrito, bem como as circunstâncias que favoreceram o seu surgimento em pleno Século das

Luzes (século XVIII) e seu fortalecimento no século seguinte. Os esforços dos teóricos na

tentativa de singularizá-lo tomaram caminhos variados. Como resultado, surgiram

“condições” para a ocorrência do fantástico como, por exemplo, os “terrores imaginários”, a

“hesitação”, a “ambiguidade indissolúvel” e a “desconstrução dos discursos que oscilam entre

o real e o anormal”.

No segundo capítulo, sob o título de “O fantástico contemporâneo”, a atenção agora se

volta sobretudo para o fantástico presente em solo hispanoamericano e brasileiro. No

continente americano, determinadas expressões como “realismo mágico”, “real maravilhoso”

e “realismo fantástico” anunciavam uma espécie de literatura em que a presença do

inverossímil indicava não se tratar de uma simples representação mimética da realidade.

Page 12: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

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Importantes reflexões trazidas sobre a questão da verossimilhança interna e do conceito de

“realismo artístico” ajudarão a reconhecer que a literatura não se resume a um compromisso

fidedigno de imitação da realidade tal como a conhecemos.

A questão da mistura dos gêneros e o surgimento das novas técnicas da enunciação e

do enunciado, indispensáveis para a constituição da narrativa moderna, serão tratadas no

terceiro capítulo, que traz como título “A questão dos gêneros e as novas técnicas da

narrativa”. Acompanhando as transformações sofridas pela narrativa tradicional, o fantástico

agora deixa de ser predominantemente “visionário” e passa a explorar os mistérios da mente

humana, sendo também chamado de fantástico abstrato, psicológico ou cotidiano.

No quarto e último capítulo, que tem por título “A narrativa fantástica em Luiz

Vilela”, serão analisados os contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da noite”. A narrativa

de Luiz Vilela, um dos maiores contistas brasileiros da atualidade, é reconhecida tanto por seu

estilo ágil e pela qualidade dos seus diálogos quanto pela profundidade de seus temas, já que

no centro está sempre o homem, com seus sonhos, suas angústias, suas esperanças.

Os três contos escolhidos são bastante representativos do que podemos chamar de

fantástico contemporâneo, sinalizando para uma visão mais ampla da realidade, em que o

absurdo se instaura no cotidiano das relações humanas. O riso irônico, presente nos contos

analisados, revela tragicomicamente uma verdade incômoda: o homem se encontra

irremediavelmente ameaçado pelos próprios pesadelos que cria.

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1 AS TEORIAS E APORIAS DO FANTÁSTICO

1.1 O FANTÁSTICO GENERALIZADO

Pôde-se constatar, ao longo do século passado, uma grande discussão por parte de

críticos e teóricos a respeito da categoria literária conhecida como fantástico, num esforço de

se estabelecerem as fronteiras entre esta categoria, o “maravilhoso” e o “estranho”. Por outro

lado, houve também uma tentativa de nomear o que Bastos (2010, p. 11) chama de literatura

“elevada” ou de “realismos irrealistas”: “realismo fantástico”, “realismo absurdo”, “realismo

mágico”, “realismo maravilhoso”, “Surrealismo”, onde realismo e fantasia, realismo e magia

ou realismo e sonho se misturam.

Um breve olhar sobre a produção literária da Antiguidade e da Idade Média nos

permitirá concluir que, na literatura, o espaço para o inverossímil sempre foi garantido: dos

deuses pagãos da Grécia clássica à China de Marco Polo e às novelas de cavalaria, contamos

com a presença do “maravilhoso", que é um conceito literário europeu (CHIAMPI, 1980, p.

11). Por sua vez, em meados do século XVIII, o chamado "romance gótico" (nos quais o

cenário e os acontecimentos evocavam terror e horror) abriu caminho para os contos

fantásticos do século seguinte, que têm em Hoffman, Poe e Maupassant, alguns de seus

ilustres representantes (BASTOS, 2010, p. 12).

Mas o que vem a significar a palavra “fantástico”? O dicionário Houaiss (2009, p.

873) mostra que o adjetivo “fantástico” (do latim phantasticu, proveniente do grego

phantastikós) tem sua origem na palavra grega phantasia e significa: 1. “que ou aquilo que só

existe na imaginação, na fantasia”, 2. “que tem caráter caprichoso, extravagante”, 3. “que é

fora do comum; extraordinário, prodigioso”, 4. “que não tem nenhuma veracidade; falso,

inventado”, 5 “LIT. diz-se de obra do gênero fantástico”.

Esta definição, reportando-se a algo “que só existe na imaginação”, que é “fora do

comum” e que é “inventado” aplica-se, segundo Rodrigues (1988, p. 9), mais adequadamente

“a um fenômeno de caráter artístico, como a literatura, cujo universo é sempre ficcional por

excelência, por mais que se queira aproximá-la do real”. Em comunhão com essa perspectiva

está a definição de Salvatore D’ Onofrio para a literatura fantástica:

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Consideramos fantástico todo texto literário cujo conteúdo fabular, além de não ter

acontecido no plano histórico, não tem sequer a virtualidade de poder acontecer,

porque infringe as leis físicas da realidade em que vivemos e os padrões normais da

nossa razão. O fantástico é, portanto, o extraordinário incrível. (D’ONOFRIO, 1995,

p. 157).

De acordo com Rodrigues (1988, p. 14), fragmentos de textos que não correspondem

ao realismo estrito, concebido dentro dos moldes do Realismo e do Naturalismo do século

XIX, se voltam para o “fantástico” lato sensu, ou seja, em seu sentido amplo, o que nos

conduziria à conclusão de que a narrativa fantástica é a mais antiga forma de narrativa

existente. Vários teóricos, como Dorothy Scarborough, Louis Vax, Jorge Luis Borges, Eric S.

Rabkin e Emir Rodríguez Monegal, só para citar alguns, compartilham dessa visão.

Um exemplo claro de reflexão que vai ao encontro do fantástico em sentido amplo

podemos encontrar em Salvatore D’Onofrio, o qual vê por bem classificar o fantástico como

um macrogênero que engloba várias espécies ou subgêneros:

A esse macrogênero do fantástico pertence uma série de espécies ou subgêneros: os

mitos do maravilhoso pagão e cristão; os contos feéricos e outros contos populares; a

literatura de ficção científica centrada sobre um herói super-humano (Batman,

Superman, Mulher Maravilha, etc.); o romance de terror, cujas histórias vertem

sobre aparições de almas de outro mundo; os contos de lobisomens, vampiros,

corpos humanos ou de animais possuídos pelo demônio; histórias de bruxarias e

feitiçarias; enfim, todos os textos literários em que não há nenhuma explicação

racional possível para os fatos extraordinários apresentados. (D’ONOFRIO, 1995, p.

157).

Um particular florescimento da literatura fantástica no século XVIII, conhecido como

o “século das luzes” – no qual a razão iluminista buscava tudo submeter à claridade dos seus

raciocínios e desacreditar tudo aquilo que parecia obscuro e incompreensível para a razão –

despertou a atenção de vários teóricos, a ponto de muitos acreditarem se tratar de um

verdadeiro nascimento da literatura fantástica. É a respeito desse fantástico stricto sensu que

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trataremos a seguir.

1.2 O “NASCIMENTO” DO FANTÁSTICO

Como vimos, embora existam os que defendem não ser a literatura fantástica um

privilégio do século XVIII, são numerosos os teóricos que optam por declarar o nascimento

do fantástico entre os séculos XVIII e XIX. Fazem parte dessa segunda corrente teóricos

como Roger Caillois, Tzvetan Todorov, Jean Bellemin-Noël, Irène Bessière e Irlemar

Chiampi entre outros.

À primeira vista, é muito curioso o florescimento da literatura fantástica ter ocorrido

em pleno século XVIII, quando o racionalismo iluminista se empenhava em libertar o mundo

e as mentes da metafísica e do pensamento teológico medieval. No entanto, afirma Rodrigues

(1988, p. 27-28), a racionalidade, devido à própria limitação do homem racional, não

consegue a solução de todos os questionamentos existentes, e, nesse solo de incertezas, o

imaginário ganha um novo vigor, permitindo a reinvenção do fantástico, bem de acordo com

o pensamento da época. Na literatura fantástica dos séculos XVIII e XIX, conclui, o próprio

sobrenatural não é de natureza teológica, mas humana, e os temas são antropocêntricos:

mistura de sonho e realidade, a existência do duplo, o magnetismo e o hipnotismo servem

para explicar experiências etc.

É verdade que a literatura fantástica que se produziu nos séculos XVIII e XIX herdou

da Idade Média “o gosto do irracional e do sobrenatural” (PAES, 1985b, p. 8), o que inclusive

contribuiu para dar-lhe uma definição, mas, ainda segundo o teórico, a sua preocupação

consistia mais “[...] em por em xeque o racional do que o real propriamente dito” (PAES,

1985a, p. 189). Mesmo assim, essa literatura se apresentava como uma alternativa à

entediante imitação da realidade sob os moldes do Realismo e do Naturalismo, muito em voga

na época.

A arte neoclássica setecentista, muito a gosto do racionalismo iluminista, empenhou-se

em exaltar da cultura do povo greco-latino apenas elementos como o equilíbrio, a serenidade,

a objetividade, a rejeição ao sobrenatural, o amor à forma, o que, segundo Silva (1979, p.

437), se caracteriza como uma “[...]visão muito unilateral da cultura greco-latina”. De fato,

como anteriormente mencionou-se e como reafirma o teórico, também estão presentes na

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cultura grega o gosto pelo irracional, pela agitação, o vínculo ao sobrenatural.

É justo se dizer que o conto fantástico encontrou no Romantismo alemão do século

XIX um terreno propício, no qual a representação da realidade, tal como propunha o realismo

do século XIX, não está no centro das atenções. É o que afirma Calvino:

Assim como o conto filosófico setecentista foi a expressão paradoxal da razão

iluminista, o conto fantástico nasceu na Alemanha como o sonho de olhos abertos do

idealismo alemão, com a intenção declarada de representar a realidade do mundo

interior e subjetivo da mente, da imaginação, conferindo a ela uma dignidade

equivalente ou maior do que a do mundo da objetividade e dos sentidos. Portanto, o

conto fantástico é também filosófico. (CALVINO, 2004, p. 10-11).

Podemos afirmar então que, com o Romantismo, ganham destaque “o subjetivo, o

excêntrico, o individual, o misterioso, o místico, o libertário” (PAES, 1985a, p. 190). A

literatura fantástica parece enfim dizer –prossegue o mesmo autor – que veio “[...] contestar a

hegemonia do racional, fazendo surgir, no seio do próprio cotidiano por ele vigiado e

codificado, o inexplicável, o sobrenatural – o irracional, em suma” (PAES, 1985a, p.190).

Para Rodrigues (1988, p. 10 - 13), o fantástico não permaneceu inalterável ao longo

dos séculos, o que lhe rendeu duas classificações: "fantástico questionado" e "fantástico

naturalizado". Na primeira classificação, equivalente aos séculos XVIII e XIX, o

acontecimento fantástico deveria ser submetido a um quadro de verossimilhança, ser

questionado, explicado, servindo por sua vez de pretexto para uma luta entre razão e desrazão.

Na segunda classificação, que diz respeito à literatura fantástica do século XX, o fantástico,

recorrendo à verossimilhança interna e já liberto dos conflitos alimentados pelo racionalismo,

exclui a necessidade de explicação ou questionamento, de modo que verossímil e inverossímil

se harmonizam dentro do discurso narrativo.

A seguir, voltaremos nossa atenção para o posicionamento de alguns teóricos a

respeito da literatura fantástica. Mesmo assumindo concepções por vezes divergentes, todos

concordam em um ponto: na narrativa fantástica, “o fato se explica por uma causalidade

totalmente arbitrária, do ponto de vista da verdade da ciência” (RODRIGUES, 1988, p. 8).

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1.3 O FANTÁSTICO PARA LOUIS VAX, LOVECRAFT E TODOROV

Fugindo de uma definição mais abrangente do fantástico, Louis Vax, Lovecraft e

Todorov se dispuseram a identificar na narrativa fantástica alguns elementos ou condições

com os quais pudessem singularizá-la. Como se pode esperar, algumas obras acabariam por

ser postas de fora de suas relações.

Em seu livro A arte e a literatura fantásticas, Louis Vax prefere considerar o

fantástico como um subgênero do maravilhoso, que também abriga o feérico (o mundo dos

contos de fadas, do deslumbrante). Para esse teórico, o fantástico seria “a irrupção do

sobrenatural na natureza cósmica ou humana, sem uma explicação lógica ou religiosa,

induzindo terrores imaginários no seio do mundo real” (VAX apud D’ONOFRIO, 1995, p.

153).

Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) tem uma posição semelhante ao considerar

como necessário ao fantástico que o leitor real experimente “um sentimento de temor e de

terror, a presença de mundos e poderes insólitos” (LOVECRAFT, 1945, p. 16 apud

TODOROV, 2003, p. 40).

Em todos os estudos relevantes a respeito desse tipo de literatura, um nome tornou-se

bastante recorrente: o do austríaco Tzvetan Todorov. Embora sua teoria a respeito do

fantástico não tenha sido acolhida por unanimidade entre os teóricos, ele deu uma

contribuição muito importante para a definição do gênero.

Em sua Introdução à literatura fantástica, Todorov desaconselha firmemente a visão

de Lovecraft, ressaltando que o medo, embora esteja frequentemente associado ao fantástico,

não lhe seja uma condição necessária, e tampouco o “sangue frio do leitor” seria um critério

seguro para julgar ser fantástica ou não uma narrativa (TODOROV, 2003, p. 41). Nessa obra

citada, o fantástico se define como uma “[...] hesitação experimentada por um ser que só

conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV,

2003, p. 31), geralmente devendo ser satisfeitas, segundo o teórico, três condições para que o

fantástico ocorra:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das

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personagens como um mundo das pessoas vivas e a hesitar entre uma explicação

natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos evocados. Em seguida,

essa hesitação deve ser igualmente sentida por uma personagem; deste modo, o

papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma personagem e ao mesmo tempo a

hesitação se acha representada e se torna um dos temas da obra; no caso de uma

leitura ingênua, o leitor real se identifica com a personagem. Enfim, é importante

que o leitor adote uma certa atitude com relação ao texto: ele recusará tanto a

interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. O gênero fantástico é pois

definido essencialmente por categorias que dizem respeito às visões na narrativa e,

em parte, por seus temas. (TODOROV, 1979, p. 151-152).

O acontecimento inexplicável pelas leis naturais surge, portanto, no cotidiano dos

personagens, gerando ambiguidade. Para Todorov (2003, p. 37) a atitude do leitor é

fundamental ao fantástico: ele deve hesitar, mesmo que a hesitação não esteja representada no

interior da obra, ou seja, nos personagens, deve ter uma percepção ambígua dos

acontecimentos narrados, além de realizar uma leitura que nem seja alegórica nem poética.

Destaca, no entanto, que não se trata de um leitor particular ou real, como o faz Lovecraft,

mas de um leitor “implícito” no texto. Para o teórico austríaco, o fantástico seria o momento

da incerteza, da oscilação.

A ambiguidade da narrativa fantástica seria garantida também pela sua própria

estrutura, via artifícios verbais presentes:

A ambiguidade depende também do emprego de dois processos verbais que

penetram o texto todo. Nerval os utiliza habitualmente juntos; são eles: o imperfeito

e a modalização. Esta última consiste, lembremo-nos, em usar certas locuções

introdutivas que, sem mudar o sentido da frase, modificam a relação entre o sujeito

da enunciação e o enunciado. Por exemplo, as duas frases “Chove lá fora” e “Talvez

chova lá fora” se referem ao mesmo fato; mas a segunda indica também a incerteza

em que se encontra o sujeito que fala, quanto à verdade da frase que enuncia. O

imperfeito tem um sentido semelhante: se eu digo “Eu amava Aurélia” não preciso

se a amo ainda agora ou não; a continuidade é possível, mas em regra geral pouco

provável. (TODOROV, 1979, p. 153-154).

Ainda segundo Todorov (1979, passim), a narrativa fantástica se apresentaria como

Page 19: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

17

uma espécie de linha divisória entre dois gêneros que lhe são vizinhos: o estranho e o

maravilhoso. O “fantástico puro” ou fantástico propriamente dito estabeleceria fronteira entre

o fantástico-estranho (no qual os acontecimentos supostamente sobrenaturais são explicados

pela razão; e caso conduzam leitor e personagem a acreditarem na ocorrência do sobrenatural,

inclinam-se para o insólito ou estranho) e o fantástico-maravilhoso (em que a narrativa que

inicialmente se apresenta como fantástica termina no sobrenatural, ou seja, no inexplicável de

acordo com as leis da natureza). O "estranho puro" se situaria próximo do fantástico,

retratando acontecimentos explicáveis pela razão, mas conservando, contudo, um caráter

"incrível", "extraordinário", em que a explicação sobrenatural é sugerida, podendo ser ou não

aceita. Por fim, o “maravilhoso puro”, no qual o sobrenatural seria aceito sem provocar reação

nas personagens ou no leitor implícito, a exemplo do conto de fadas e da ficção científica,

encontrando-se eles, por sua vez, distantes do fantástico.

1.4 OBJEÇÕES A TODOROV: O FANTÁSTICO À LUZ DE IRÈNE BESSIÈRE E FILIPE

FURTADO

Como citamos há pouco, a teoria todoroviana acerca do fantástico – fundamentada,

sobretudo no que ele chama de “hesitação” entre uma explicação racional e realista e o

reconhecimento do sobrenatural – não se encontra imune a objeções.

A crítica de teóricos a respeito das considerações de Todorov se deve ao fato de elas

serem tidas por muito limitadoras, principalmente quanto à natureza extrínseca da hesitação:

A tese de Todorov tem sido refutada, no todo ou em parte, por inúmeros estudiosos,

que apontam como seu ponto mais fraco a natureza “extrínseca” da “hesitação”, pois

não resulta ela de procedimentos literários, mas já pertence ao senso comum de que

há oposição entre o natural e o sobrenatural, “tal como se manifesta à nossa

experiência”, sendo, portanto, anteriores tanto à semiose literária quanto à

decodificação do texto. (BASTOS, 2010, p. 14).

Um nome que vemos por bem destacar por sua contribuição à teoria do fantástico é

Filipe Furtado, crítico português. Para ele, o fantástico seria uma construção de “equilíbrio

difícil” voltada para o metaempírico, tendo a “ambiguidade indissolúvel” como característica

Page 20: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

18

fundamental:

Um texto só se inclui no fantástico quando, para além de fazer surgir a ambiguidade,

a mantém ao longo da intriga, comunicando-a às suas estruturas e levando-a a

refletir-se em todos os planos do discurso. (...) Longe de ser o traço distintivo do

fantástico, a hesitação do destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero

reflexo dele, constituindo apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a

irresolução face aos acontecimentos e figuras evocados. (FURTADO, 1980, p. 40-41

apud GARCÍA, 2005, p. 6).

Tal ambiguidade, por sua vez, "[...] não pode ser vista como categoria preexistente à

narrativa, mas como decorrência de processos discursivos" (FURTADO, 1980, p. 38-39, apud

BASTOS, 2010, p. 14). Em outras palavras, não será determinante a hesitação do leitor para

que um texto seja caracterizado como fantástico, uma vez que ele, para existir, requer um

discurso no qual a ambiguidade entre natural e sobrenatural vá se manifestando no interior do

texto. Essa ambiguidade aparece na tessitura do texto, segundo Furtado, pela intervenção do

narrador, das personagens ou do narratário, se este último for intradiegético (coincida com um

personagem), “[...] ou quando o narrador o interpela de forma perceptível e com certa

frequência, circunstâncias que, de fato, não se verificam na maioria das narrativas do gênero”

(FURTADO, 2010, s/p).

O teórico português considera ainda que "[...] fazer depender a classificação de

qualquer texto apenas (ou, sobretudo) da reação do leitor perante ele equivaleria a considerar

todas as obras literárias em permanente flutuação ente os vários gêneros, sem alguma vez lhes

permitir fixarem-se definitivamente num deles" (FURTADO, 1980, p. 77 apud BASTOS,

2010, p. 14).

Se por um lado o raciocínio escolhido por Furtado livra o fantástico de “flutuar” entre

os gêneros estranho e maravilhoso, por outro lado, como o teórico mesmo reconhece, o

grande esforço narrativo para construir e manter a ambiguidade indispensável acaba por

limitá-lo, levando-o a “[...] não admitir subgêneros nem a ele se circunscrever um grande

número ou variedade de narrativas” (FURTADO, 2010, s/p.).

Outro nome relevante que adota a via do fantástico “intrínseco” à narrativa é o de

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Irène Bessière. Embora ela considere que o conteúdo semântico do fantástico se relacione de

fato com o sobrenatural ou o extranatural, não deixa de destacar como predominante o seu

caráter literário ou fictício, ou seja, como fruto da criatividade, da imaginação do artista:

O relato fantástico é, por si mesmo, sua causa, como todo relato literário; a descrição

semântica não deve fazê-lo ser assimilado nem pelos testemunhos ou meditações

sobre os fatos extranaturais, nem pelo discurso do subconsciente: ele é comandado

do interior por uma dialética de constituição da realidade e da desrealização própria

do projeto criador do autor. (BESSIÈRE, 1974, p. 2).

Para Rodrigues (1988, p. 29), a dependência de um leitor que hesite entre duas

possibilidades de interpretação se mostra um argumento duvidoso para se estabelecer a

definição de um tipo de narrativa. Da mesma forma, Bessière aponta como característica do

fantástico não a hesitação do leitor, mas a desconstrução, dentro do espaço narrativo, dos

variados discursos que oscilam entre o real e o anormal: “É próprio do fantástico emprestar a

mesma inconsistência ao real e ao sobrenatural, reunindo-os numa só e mesma coerência, que

é a da linguagem e a da narrativa” (BESSIÈRE, 1974 apud PAES, 1985b, p. 9).

De fato, se tomarmos por referência as assertivas de Todorov, um limitado número de

obras pertenceria à literatura fantástica, tendo ela, inclusive, apresentado um curto período de

existência, iniciado por Cazotte, no final do século XVIII e se estendendo até as novelas de

Maupassant, um século depois. Muitos autores também, como Kafka, Jorge Luis Borges,

Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Murilo Rubião e J. J. Veiga, dentre outros, não

seriam representantes nem do fantástico, nem do que Todorov chama de “maravilhoso puro”.

Ao analisar a obra A metamorfose, de Franz Kafka (1883-1924), Todorov não a

considera representante da literatura fantástica tradicional, pois, em substituição à hesitação, o

que se dá diante do acontecimento insólito é o que o austríaco designa por “adaptação”:

Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil: ela servia para preparar a percepção

do acontecimento inaudito, caracterizava a passagem do natural ao sobrenatural.

Aqui é um movimento contrário que se acha descrito: o da ‘adaptação’, que se segue

ao acontecimento inexplicável: e caracteriza a passagem do sobrenatural ao natural.

(TODOROV, 2003, p. 179).

Page 22: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

20

Em A metamorfose, apenas a noção da referência ao universo das pessoas vivas se

mantém, o que, para o teórico, é suficiente para descaracterizar a ocorrência do maravilhoso,

no qual as leis que governam a narrativa não fazem parte da realidade à qual estamos

habituados. Com Kafka, conclui, o fantástico passa a ser generalizado, estendendo-se a toda a

obra (TODOROV, 2003, p. 182). Nos dizeres de Selma Rodrigues, o absurdo se torna aqui

verossímil e o fantástico deixa de ser questionado para se tornar “naturalizado”: por meio da

coerência narrativa se estabelece a verossimilhança interna, na qual o verossímil se assimila

ao inverossímil em um universo de ficção total (RODRIGUES, 1988, p. 12-13).

Essa nova manifestação do fantástico, conhecida entre os europeus como “literatura do

absurdo” e que tem Franz Kafka como seu maior representante, colheu também seus frutos

em solo americano. Devido à relevância e implicações desse fato, resolvemos dedicar à

Hispanoamérica uma particular atenção, concedendo-lhe o próximo capítulo.

Page 23: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

21

2 O FANTÁSTICO CONTEMPORÂNEO

Se considerarmos apenas o fantástico europeu dos séculos XVIII e XIX sob a ótica do

austríaco Tzvetan Todorov, certamente deixaremos de fora do fantástico, conforme citamos

anteriormente, não apenas as obras de Franz Kafka, mas também uma lista considerável de

autores e obras da América do Sul e Central que, no século XX, apresentaram uma tendência

oposta às correntes puramente realistas, seja em favor de uma visão “mágica” da realidade, de

um “real maravilhoso” do continente americano ou de uma poética cuja causalidade seja, por

assim dizer, “mágica”.

Trataremos neste capítulo das peculiaridades da narrativa fantástica em solo

hispanoamericano, bem como, à luz de Emir Rodríguez Monegal (1980; 1987), de Irlemar

Chiampi (1980), de Selma Calasans Rodrigues (1988) e de Alcmeno Bastos (2010), dos

acertos e equívocos da crítica em torno das denominações que tal narrativa recebeu. Antes,

porém, é conveniente levarmos em consideração algumas reflexões sobre a verossimilhança

artística, que nos ajudará a compreender a relação entre literatura e realidade.

2.1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A VEROSSIMILHANÇA ARTÍSTICA

Antes de nos determos a respeito da inovação literária hispanoamericana do século

XX, convém voltarmos nossa atenção à relação entre literatura e realidade, o que nos

permitirá chegar a duas conclusões: a de que a literatura não se trata de uma simples imitação

da realidade existente, uma espécie de “cópia” do real, bem como a de que o real, para a obra

de arte literária, não requer uma espécie de equivalência ao real tal como o conhecemos.

Com o Realismo-Naturalismo, mesmo que o conceito de verossimilhança

representasse a reprodução fiel da realidade, uma imitação “imparcial, impessoal e objetiva”

dela, os seus adeptos somente conseguiram captar, mediante a limitação do olhar do artista, os

mecanismos sociais e históricos e suas repercussões na vida dos indivíduos (cf.

RODRIGUES, 1988, p. 24). Isso porque é impossível para o artista uma reprodução literal da

realidade que o cerca.

Segundo Silva (1979, p. 143), a noção de que a obra de arte deve manter uma relação

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22

de semelhança e adequação com a realidade remonta a importantes filósofos da Antiguidade,

como Platão e Aristóteles. Intermediado pela mimese (imitação), o artista recriaria o real,

partindo de uma realidade já existente, resultando assim em uma arte verossímil, ou seja,

semelhante à verdade.

Ainda que atualmente não se interprete o conceito de mimese aristotélica enquanto

apenas "cópia" do real, o fato é que a tradição ocidental revelou sua vocação para o que

Bastos (2010, p. 9) chama de "realismo verossímil", ou seja, a inclinação para obras segundo

a verossimilhança externa (a realidade comum dos homens). Aristóteles, porém, já

considerava a coerência interna em uma obra de arte como sendo mais relevante do que a

imitação que ela possa realizar do real, de modo que um personagem, mesmo que seja

absurdo (inverossímil), o seja dentro de uma coerência interna requerida pela obra

(RODRIGUES, 1988, p. 21).

Essa coerência interna, à qual podemos também chamar verossimilhança interna, está

limitada ao universo ficcional. Na prática, ela revela todo o vigor que a arte tem de recriar o

real, sem que esse se submeta, necessariamente, às leis que regem o nosso cotidiano:

A verossimilhança dita interna consistiria num sistema de relações que

"naturalizaria" o não natural, tornando aceitável o que, em princípio, não o seria, a

transformação de um príncipe num sapo, por exemplo. Assim, a obra de arte

"escaparia" da acusação de não ser verdadeira, de nem mesmo parecer verdadeira,

pois o mundo que ela nos expõe seria regido por leis diferentes das leis que regem o

nosso. Neste caso, caduca o próprio conceito de verossimilhança, pois tal mundo

dispensaria o paralelo com o nosso. Seria verossímil em relação a si próprio, o que

implica dizer: não apenas semelhante (símil) ao verdadeiro (vero), mas o próprio

verdadeiro. Num mundo em que bruxas podem transformar príncipes em sapos, se o

quiserem, inverossímil seria não o fazerem, querendo (BASTOS, 2010, p. 10).

Um elemento que impossibilita a arte literária de fazer valer, na prática, a noção de

verossimilhança “natural”, conforme concebida por Platão, encontra-se, segundo Roman

Jakobson, na própria natureza da palavra, levando-nos a entender que o realismo é

convencional, figurativo:

Se na pintura, na arte figurativa podemos ainda ter a ilusão de uma fidelidade

objetiva e absoluta à realidade, a questão da verossimilhança “natural” (segundo a

terminologia de Platão), de uma versão verbal, de uma descrição literária é

evidentemente desprovida de sentido. Será que podemos propor a questão do grau de

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verossimilhança deste ou daquele tipo de tropo poético? Será que podemos dizer que

tal metáfora ou metonímia é objetivamente mais realista que esta outra?

(JAKOBSON, 1970, p. 121).

Após essas considerações, daqui em diante voltaremos nossa atenção ao que

afirmamos há pouco: o Realismo-Naturalismo viu, ainda na primeira metade do século

passado, serem abaladas as suas bases também em solo americano, com o surgimento de uma

nova “crítica de praticantes”, ou seja, de escritores que também são críticos literários.

2.2 O FANTÁSTICO HISPANOAMERICANO

Se na Europa a imaginação romântica comumente associava à narrativa fantástica

aparições visionárias nas quais a irrupção do sobrenatural gerava especulações de ordem

racional, não convém generalizar. Grandes representantes da literatura fantástica como o

alemão T. A. Hoffmann (1776-1882) e o norteamericano Edgar Allan Poe (1809-1849) nos

concederam exemplos bem diversificados de narrativas fantásticas, a ponto de indicarem duas

vertentes que vão, segundo Calvino (2004, p. 13-14), do fantástico “visionário” ao fantástico

“mental”, “abstrato”, “psicológico” ou “cotidiano”; este último, sendo mais “sentido” do que

“visto”, tornou-se predominante no final do século XIX.

Com a chegada do século XX, o fantástico ganhou, por assim dizer, uma nova

roupagem, vendo-se agora livre das amarras do racionalismo e do cientificismo dos dois

séculos anteriores. A narrativa fantástica não mais se esforça para oferecer uma explicação

plausível aos questionamentos da razão:

[...] a “abertura” da racionalidade no século XX veio afinal libertar o fantástico de

seus antigos compromissos com a hesitação entre o natural e o sobrenatural e com a

proibição da visada metafórica ou alegórica. Agora goza ele de plena liberdade para

fazer o que queira – tornar o real de todo absurdo, como em Kafka, ou intercambiar

ficcional e real a seu bel prazer, como em Borges e Cortázar (PAES, 1985a, p. 192).

À primeira vista paradoxal por tentar conciliar opostos “inconciliáveis” sob a ótica da

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corrente realista do século XIX – realismo e fantasia, por exemplo – a produção literária

hispanoamericana que eclodiu na primeira metade do século XX, como bem afirmamos

anteriormente, evidencia a decadência da estética realista-naturalista, ainda vigente nas

primeiras décadas do mesmo.

Dessa forma, mesmo servindo-se a narrativa ficcional do elemento sobrenatural, o

novo romance hispanoamericano o faz sem recorrer a questionamentos, “naturalizando-o”, o

que para Salvatore D’Onofrio leva o “realismo fantástico” a responder por agora duas

atitudes: serve como recurso expressivo para negar as fronteiras entre o real e o imaginário,

entre o natural e o sobrenatural, bem como para pôr em evidência “o que há de absurdo e

desumano na realidade individual e social” (D’ONOFRIO, 1990, p. 435).

Vários foram os escritores hispanoamericanos inscritos nesse movimento de superação

da poética do realismo, como Jorge Luis Borges, Miguel Ángel Astúrias, Julio Cortázar, Juan

Carlos Onetti, Uslar Pietri, Adolfo Bioy Casares, Alejo Carpentier, José María Arguedas,

Agustín Yáñes, José Lezama Lima, Leopoldo Marechal, Gabriel García Márquez, Mário

Vargas Llosa, José Donoso, Guilherme Cabrera Infante, Juan Rulfo, Severo Sarduy, Manuel

Puig, Carlos Fuentes. Dentre esses, três merecem nossa atenção particular, pelo motivo de

serem considerados os pioneiros: Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Uslar Pietri.

Conhecido como o iniciador do fantástico na América Latina, o argentino Jorge Luis

Borges (1889-1986) serviu-se inicialmente da expressão “narrativa mágica” e posteriormente

de “literatura fantástica” para se opor à representação mimética da realidade, e dois trabalhos

seus confirmam seus objetivos: o ensaio El arte narrativo y la magia (1932)) e o prólogo a La

Invención de Morel (1940), romance de Adolfo Bioy Casares.

Em Borges: uma poética da leitura, Monegal (1980, p. 161-174) apresenta a

relevância desses dois trabalhos para o novo romance hispanoamericano. No primeiro, Borges

concebe a arte narrativa como um artifício e se baseia no que chama de causalidade mágica

para distinguir dois tipos de romances: o “romance de tipos”, “psicológico”, realista ou

mimético (que imita a causalidade do mundo real) e o “romance de aventuras”, que adota a

causalidade mágica. Esse tipo de causalidade, para Borges, não está associada ao mistério ou

ao maravilhoso, mas a um novo princípio de ordenação causal, a um argumento rígido e

lúcido, oposto à realidade, considerada arbitrária, desordenada e caótica.

No segundo trabalho, Borges, além de reiterar suas convicções anteriores, estabelece

Page 27: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

25

uma diferença entre fantástico e sobrenatural. Enquanto no primeiro a causalidade é mágica,

no segundo, ela nem é natural nem mágica, uma vez que depende de seres ou acontecimentos

de todo arbitrários, estando no âmbito que denominamos por “maravilhoso”.

Em seu texto intitulado Jorge Luis Borges y la literatura fantástica (1949), Monegal

se refere ainda a uma importante conferência pronunciada por Borges no dia 2 de setembro do

mesmo ano em Montevidéu, La literatura fantástica, na qual o escritor e crítico argentino

destaca a antiguidade da narrativa fantástica, examina pelo menos quatro procedimentos dela

(a obra de arte dentro da obra de arte, a contaminação da realidade pelo sonho, a viagem no

tempo e o duplo), bem como, rebatendo a crítica de que a literatura fantástica seria uma fuga

do real, defende que, na verdade, esse tipo de narrativa “[...] vale-se de ficções não para

evadir-se da realidade, mas para expressar uma visão mais profunda e complexa da realidade”

(MONEGAL, 1980, p. 179).

A fórmula “realismo mágico” foi aplicada ao novo romance hispanoamericano,

inicialmente, pelo escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, em Letras y hombres da

Venezuela (1948), tornando-se a mais disseminada entre todas. Nessa ocasião, Pietri afirma:

O que veio a predominar no conto e marcar seus passos de um modo perdurável foi

a consideração do homem como mistério em meio a dados realistas. Uma

adivinhação poética ou uma negação poética da realidade. O que, na falta de outra

palavra, poderia denominar-se um realismo mágico. (PIETRI, 1948 apud

MONEGAL, 1980, p. 130).

Contudo, a origem dessa fórmula, ao que tudo indica, data de 1925, ano em que o

historiador e crítico de arte Franz Roh a empregou para referir-se à pintura do Pós-

Expressionismo alemão, associando o que ele chamava de realismo mágico à “arte

metafísica” dos pintores italianos do período posterior à Primeira Guerra. Para Roh, o

“realismo mágico” representaria na pintura alemã uma mistura de duas tendências, realismo e

expressionismo; enquanto a primeira estava preocupada com uma representação mimética da

realidade, a segunda buscaria, por meio do enfoque fenomenológico, “[...] explorar o que está

oculto, atrás ou dentro das coisas, e para a qual o espírito que contempla é mais importante

que a coisa contemplada” (MONEGAL, 1980, p. 133).

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26

O italiano Massimo Bontempelli, recorrendo à arte do Quattrocento, inspiradora da

então chamada “arte metafísica” italiana, serviu-se da expressão “realismo místico” e

“realismo mágico” em artigos literários como forma de se opor ao Futurismo e ao realismo da

narrativa italiana do século XX. Tanto para Franz Roh quanto para Bontempelli, ressalta

Chiampi (1980, p. 22), “[...] a nova estética refutava a realidade pela realidade e a fantasia

pela fantasia, ou seja, propugnava buscar outras dimensões da realidade, mas sem escapar do

visível e concreto”.

Outra expressão associada ao novo romance hispanoamericano pelo escritor cubano

Alejo Carpentier é o “real maravilhoso americano”, que se encontra no prólogo do seu

romance El reino de este mundo (1949), com o intuito de designar “[...] não as fantasias ou

invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e eventos reais que singularizavam a

América no contexto ocidental” (CHIAMPI, 1980, p. 32). Eis sua definição de “real

maravilhoso”:

O maravilhoso começa a apresentar-se de modo inequívoco quando surge de uma

alteração inesperada da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da

realidade, de uma iluminação inabitual ou singularmente favorecedora das riquezas

despercebidas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade,

captadas como particular intensidade, devido a uma exaltação do espírito que o

conduz a uma espécie de “estado-limite”. (CARPENTIER, 1949, p. 10-11 apud

MONEGAL, 1980, p. 154).

Ao entrar em contato com as ruínas históricas do reino de Henri Christophe, um nativo

haitiano que se tornou o primeiro rei do seu povo, governando-o de 1807 a 1820, Carpentier

se depara com um quadro de crenças míticas e religiosidade primitiva (o vodu). Esse terreno

de misticismo e religiosidade levou Carpentier a buscar o maravilhoso na realidade

americana. Embora Carpentier tenha tentado por meio desse caminho dissociar sua definição

de “real maravilhoso americano” da influência do surrealismo europeu, ela apresenta, como

veremos a seguir, indícios desse incômodo parentesco.

Para o surrealista Breton, afirma Monegal (1980, p. 156), maravilhoso, fantástico e

real não são contraditórios, mas uma única coisa; e Carpentier não exclui de sua definição

uma “alteração inesperada da realidade”. Por outro lado, continua, as expressões às quais

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recorre o cubano em sua definição são de clara tendência bretoniana.

Ainda quanto ao Surrealismo, convém reforçar que ele sofreu com o tempo alterações

significativas, passando a acolher “os aspectos mágicos e irracionais do real”, conforme nos

aponta Chiampi: “Se na sua etapa inicial o surrealismo se erigiu como um sistema fechado

que propugnava alcançar o maravilhoso pelo sonho, a loucura e os delírios da imaginação, a

sua evolução assinala o entendimento do suprarreal como imanente ao real” (CHIAMPI,

1980, p. 34).

Para Monegal (1980, p. 180), as fórmulas “realismo mágico” e “real maravilhoso

americano” se tornaram obsoletas, e a persistência de seu uso é fruto do esquecimento e

incompreensão da teoria de Borges a respeito da literatura fantástica; ambas permanecem

mergulhadas “no pântano do realismo”.

Chiampi (1980, p. 22-24) propõe que se faça uma distinção entre literatura fantástica e

realismo mágico, “cujas peculiaridades formais e focos de procedência são distintos”,

lembrando que o segundo termo sofreu um esvaziamento conceitual ao ser aplicado às letras

hispanoamericanas e que “o problema da construção poética do novo realismo

hispanoamericano não pode ser pensado fora da linguagem narrativa, vista em suas relações

com o narrador, o narratário e o contexto cultural” (p. 28-29).

Por sua vez, Rodrigues (1988, p. 64-65) identifica na América hispânica duas

tendências na literatura fantástica em seu sentido amplo ou “naturalizado”: a que explora o

espaço urbano, liberto do tradicional conceito de verossimilhança, a exemplo das obras de

Borges e Cortázar, e a que explora o espaço rural ou pequenos povoados, tendo como

intertexto mitos e lendas locais, buscando reescrever as origens da história do continente, a

exemplo de Gabriel García Marquez, Juan Rulfo e Alejo Carpentier, enquadrando-se

perceptivelmente no chamado realismo maravilhoso.

Embora os teóricos apresentem divergências quanto ao nome a ser dado às

manifestações do fantástico na América Hispânica ou no Brasil no século XX (realismo

mágico? real maravilhoso americano? realismo fantástico? literatura fantástica?), a principal

proposta dessa narrativa parece estar associada ao que Camarini (2008, p. 3) chama de

“representação mais ampla da realidade” (não simplesmente mimética), seja em seus aspectos

culturais e históricos, seja nos dramas individuais e coletivos contra os quais o homem se

defronta em seu cotidiano.

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2.3 A LITERATURA FANTÁSTICA NO BRASIL

Como vimos, embora possamos apontar um grande número de escritores

latinoamericanos simpatizantes da literatura fantástica, a presença desse tipo de narrativa na

América Hispânica se tornou quantitativamente expressiva apenas por volta da quarta década

do século XX em diante.

No que diz respeito ao Brasil, mesmo que o fantástico não tenha apresentado por aqui

uma produção tão abundante quanto a de seus vizinhos de língua espanhola, os sinais de sua

presença em solo brasileiro surgiram ainda no século XIX. Um significativo exemplo seria

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis.

Considerado um dos maiores nomes da literatura fantástica no Brasil, o contista

mineiro Murilo Rubião (1916-1991) estreia na literatura com o seu livro de contos O ex-

mágico (1947). Um importante trabalho sobre sua obra se intitula Murilo Rubião: a poética

do uroboro (1981), do professor Jorge Schwartz, oportunidade em que, além de refletir sobre

a relação entre fantástico e linguagem, revela ser a obra de Rubião repleta de metáforas e

alegorias com as quais se põe em questão o homem, sua existência, sua vida, ante as

turbulências de um sistema social opressor (RODRIGUES, 1988, p. 67).

Outro nome que convém destacar é o de José Jacinto Pereira Veiga, conhecido por J. J.

Veiga (1915-1999). Estreou na literatura aos 45 anos com Os cavalinhos de platiplanto

(1959), escrevendo ainda A hora dos ruminantes (1966), A máquina extraviada (1967) e

Sombras de reis barbudos (1972), dentre outras obras. O alegórico presente em seus textos

também sugere a tensa relação entre opressor e oprimido e reflexões de caráter existencial

(RODRIGUES, 1988, p. 66).

Além dos que acabamos de citar, escritores consagrados como Mário de Andrade,

Guimarães Rosa, Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles e, em nosso caso, Luiz Vilela, dentre

outros, também podem aparecer na lista dos que se utilizaram em suas narrativas de elementos

fantásticos.

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29

3 A QUESTÃO DOS GÊNEROS E AS NOVAS TÉCNICAS DA NARRATIVA

3.1 A QUESTÃO DA MISTURA DOS GÊNEROS

Já havíamos citado no capítulo anterior que, no final do século XIX, o fantástico

“visionário” deixou de ser predominante, cedendo seu lugar para o fantástico mental, abstrato,

psicológico ou cotidiano. Em outras palavras, a ênfase da narrativa fantástica atual não

consiste em pôr a realidade de um lado e o fantástico do outro, como se o fantástico fosse uma

intervenção do outro mundo. Agora, a própria realidade chega a ser fantástica.

Se atentarmos para as transformações sofridas pela narrativa do século XX, seremos

levados a compreender o porquê de o fantástico ter tomado novas proporções. Inicialmente,

um elemento de fundamental importância para se compreender a narrativa contemporânea é a

mistura dos gêneros lírico, épico e dramático, tal como defende Emil Staiger:

[...] uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou exclusivamente

dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética participa em maior ou

menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor

participação, designamo-la lírica, épica ou dramática. Esta afirmativa fundamenta-se

na própria essência da linguagem. (STAIGER, 1997, p. 190).

Helena Parente Cunha (1991, passim), a partir de Staiger, elenca de maneira bastante

didática os fenômenos predominantes de cada gênero, sendo relevante citarmos alguns.

Dentre as características do gênero lírico, podemos identificar tanto a presença constante de

um eu que se expressa, gerando um clima de indiscutível subjetividade, afetividade e

emotividade, numa fusão entre sujeito e objeto, mundo interior e mundo exterior, quanto a

alogicidade, que obscurece o exercício da razão.

No gênero dramático, acontece a representação das ações pelas personagens, sem a

interferência do narrador, prevalecendo a tensão, razão pela qual todos os acontecimentos

são interdependentes e conduzem a ação para o final. Pertencem a esse gênero a tragédia e a

comédia.

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No gênero épico, a existência de um narrador tende a trazer objetividade ao evento por

ele apresentado, geralmente narrando progressivamente ações de personagens nobres ou de

caráter elevado. Do gênero épico nasce o romance e o conto, nos quais o autor escreve para

seus leitores.

Se as estéticas clássica e renascentista criam na imutabilidade dos gêneros, dentro dos

quais cada obra deveria ser classificada, esse caminho normativista de fato não consegue dar

conta da diversidade das obras existentes, encontrando vozes contrárias, que se intensificaram

no Barroco, no Pré-Romantismo e no Romantismo. Um exemplo clássico se dá no Prefácio de

Cromwel, no qual Victor Hugo, referindo-se ao drama romântico, promove a união entre o

sublime e o grotesco. Na narrativa moderna, vale reiterar, o que também prevalece é um

gênero participando da essência dos demais.

3.2 AS NOVAS TÉCNICAS DA ENUNCIAÇÃO E DO ENUNCIADO

No século XX, novas técnicas de construção da enunciação e do enunciado

conduziram à fragmentação da narrativa moderna, resultando assim em um

multiperspectivismo narrativo. O resultado desse conjunto de transformações se apresenta

nitidamente nos contos de Luiz Vilela, que iremos analisar no capítulo seguinte.

Em se tratando da enunciação, lembra-nos Salvatore D’Onofrio (1995, p. 60),

enquanto na narrativa tradicional predominava um narrador onisciente neutro (foco narrativo

em 3ª pessoa), visando trazer objetividade ao relato, a manifestação de um narrador onisciente

seletivo, via discurso indireto livre, na qual a voz do narrador se mistura com a voz do

personagem (falsa 3ª pessoa), favorece o aparecimento de vários pontos de vista acerca do

real, gerando uma narrativa desprovida de verdades absolutas.

Outra situação semelhante ocorre quando da manifestação de um narrador-

protagonista, em que a voz que narra é a do personagem principal (foco narrativo em 1ª

pessoa), cabendo a ela revelar as ações e os pensamentos dos demais personagens.

No que diz respeito ao enunciado, vale destacar que outra característica da narrativa

moderna é, segundo D’ Onofrio (1995), a derrocada progressiva do herói romanesco,

influenciada por diversos fatores:

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A degradação da figura do herói romanesco, iniciada com o romantismo (Os

miseráveis, de Victor Hugo), continuada pelo realismo (Germinal, de Émile Zola),

chega ao ponto máximo no modernismo, quando, pela ação convergente de fatores

filosóficos (intuicionismo de Bergson e existencialismo de Kierkegaard), científicos

(as várias correntes psicanalíticas e a teoria da relatividade), sociais (a

tecnoburocratização, que desumaniza o homem) e morais (a ética hippie), o conceito

de indivíduo, de pessoa una e indivisível, entra em crise, pulverizado pelas leis do

inconsciente. (D’ONOFRIO, 1995, p. 95).

O herói romanesco agora é um sujeito em constante busca, indefinido, sem verdades

incontestáveis. Para Cunha (1991), tais evoluções do gênero narrativo ocorrem naturalmente,

como forma de se adaptarem a uma nova visão de mundo e do homem: “O homem de nossos

dias é um ser perdido num universo sem fronteiras, à procura de si mesmo, à espera das

respostas para as novas perguntas oriundas de sua inquietação de sempre” (CUNHA, 1991, p.

126).

Vale relembrar ainda que a análise das categorias de tempo e de espaço é de singular

importância à apreensão do significado da obra de arte e que, na narrativa moderna, esses

elementos apresentam traços inovadores.

No plano da enunciação, a questão do tempo auxilia no estudo dos personagens

(narrador e narratário). D’Onofrio lembra que a narração será linear quando seguir a ordem

cronológica dos fatos, e invertida quando o narrador, desobedecendo a essa ordem, diz antes

um fato que aconteceu depois ou vice-versa. (D’ONOFRIO, 1995, p. 100).

No plano do enunciado, prossegue o teórico, o tempo pode ser cronológico ou

psicológico. Na narrativa tradicional, predomina o tempo cronológico, ou seja, que pode ser

medido, estando intimamente associado ao princípio de causalidade. Por tempo psicológico,

entende-se aquele que, não mensurável, identifica-se como sendo “[...] o tempo interior à

personagem e a ela relativo, porque é o tempo da percepção da realidade, da duração de um

dado acontecimento no espírito da personagem” (D’ONOFRIO, 1995, p. 101).

O tempo psicológico, encontrado nas narrativas de fluxo de consciência, caracteriza-

se, ainda segundo o teórico, pela abolição das fronteiras entre presente, passado e futuro, que

se dissipam na mente do personagem, restando apenas o presente existencial, que é a do

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passado modificado pela memória e do futuro pressentido pelo espírito” (D’ONOFRIO, 1995,

p. 101). Esse tipo de narrativa foi explorado por vários escritores como James Joyce, Virgínia

Woolf, William Faulkner e Clarice Lispector, entre outros.

O crítico Robert Humphrey (1976, p. 7 apud D’ONOFRIO, 1995, p. 102) aponta

quatro técnicas básicas para o fluxo de consciência: o monólogo interior direto (o narrador,

em primeira pessoa, é responsável por apresentar o conteúdo de sua consciência), o monólogo

interior indireto (o narrador, em terceira pessoa, via discurso indireto livre, expõe o que se

passa na mente do personagem), o solilóquio (no qual o narrador se dirige formalmente a um

destinatário ou ao público presente) e a descrição onisciente (o narrador-observador descreve,

a seu modo, o que se passa na consciência dos personagens).

A questão do espaço também é relevante dentro da obra de ficção. Para D’Onofrio,

quando se fala em espaço na narrativa, é preciso levar em conta tanto a espacialidade

dimensional quanto a não dimensional. A primeira diz respeito ao espaço comensurável,

dividindo-se em horizontal (humano ou natural) e vertical (divino ou sobrenatural); a segunda,

semelhante ao tempo psicológico do qual se falou há pouco, refere-se ao espaço interior ou

fechado (o espaço subjetivo do eu que fala) ou ao espaço exterior, voltado ao relato

(D’ONOFRIO 1995, p. 95-98).

Coube ao Realismo e ao Naturalismo dos séculos XVIII e XIX uma valorização

exagerada do espaço mensurável na narrativa, chegando ao ponto de ele ser capaz de

influenciar e determinar a conduta dos personagens. Porém, essa perspectiva já não ditava as

regras em romances de escritores como Dostoiévski, Proust, James Joyce, Henry James,

Virgínia Woolf, William Faulkner e outros, por exemplo, que, como vimos, voltaram-se para

narrativas nas quais o elemento psicológico permeia o tempo e o espaço.

No capítulo seguinte, com a análise dos contos “O fantasma”, “O buraco” e “Tarde da

noite”, poderemos observar os efeitos da mistura dos gêneros e do acolhimento das novas

técnicas da enunciação e do enunciado na narrativa ficcional de Luiz Vilela.

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33

4 A NARRATIVA FANTÁSTICA EM LUIZ VILELA

Luiz Vilela inscreve definitivamente seu nome entre os escritores brasileiros em fins

dos anos 60 do século passado, ao publicar, em 1967, às próprias custas e com apenas 24

anos, Tremor de terra, um conjunto de vinte contos que lhe concedeu o Prêmio Nacional de

Ficção.

No cenário em que a ficção de Vilela eclodiu, a sociedade brasileira vivia um período

de intensas transformações. A população urbana se tornou maioria, com a industrialização

impulsionando a economia dos grandes centros do país. No entanto, as desigualdades sociais

se intensificaram e uma grande parte da população se viu vítima do sistema capitalista.

Irrompe uma profunda insatisfação do proletariado e das forças de esquerda contra a

confortável situação da burguesia e da classe média.

Em meio a essas tensões, a classe empresarial brasileira se articulou com empresários

multinacionais e com os militares, conduzindo o país ao golpe civil-militar de 1964, que

sinalizava para a prevalência das forças socioeconômicas dominantes. Nas décadas seguintes,

as crises financeiras acabaram por tornar insustentável o regime militar e, mesmo com a

redemocratização, a crise inflacionária e a estagnação econômica não davam sinais de um

futuro promissor.

De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello (2007, p. 2-3), a passagem de uma

sociedade patriarcal e agrária para uma sociedade urbana e capitalista, com consequente

adoção de novos valores, comportamentos e expectativas típicos dessa nova sociedade – tais

como um crescente individualismo, que se manifesta no culto ao capital e na fruição dos bens

de consumo – também influenciou a prosa de ficção brasileira na direção de uma temática

urbana, e vários contistas, a exemplo de J. J. Veiga, Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Sergio

Sant’Anna e Ignácio de Loyola Brandão se serviram do insólito e do irracional para tecerem

suas críticas à “[...] realidade opressiva, sem saída e sem qualquer alternativa que possa fazer

face à injustiça” (MELLO, 2007, p. 3).

Já havíamos mencionado no capítulo anterior que, referindo-se aos contos de Murilo

Rubião, Jorge Schwartz (1981) identificava não apenas uma crítica à sociedade e seus valores

opressivos, mas também questões de caráter existencial, como bem elenca Selma Rodrigues:

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“[...] a condição absurda do estar-no-mundo, a incomunicabilidade e a solidão – temas caros

ao existencialismo e que também têm raízes na obra de Kafka” (RODRIGUES, 1988, p. 67).

Na leitura dos contos de Luiz Vilela, a temática urbana também prevalece, e o homem

e seu cotidiano são as matérias-primas da narrativa, da qual emanam igualmente situações em

que o insólito irrompe, ora numa espécie de crítica velada à sociedade, ora voltando-se para o

angustiante desafio da existência.

Uma das características marcantes de seus contos é a presença constante de diálogos,

numa linguagem enxuta, polifônica e bem humorada, que o permite problematizar questões

filosóficas e ironizar instituições sociais.

4.1 A FANTASMAGÓRICA REALIDADE EM “O FANTASMA”

O conto “O fantasma”, narrado em primeira pessoa, nos põe, logo de início, diante de

uma situação insólita: o narrador declara ter encontrado o fantasma de um homem decapitado.

É interessante destacar que a narrativa em primeira pessoa se caracteriza, segundo

Ronaldes de Mello e Souza (2007, p. 141), “pela coexistência, numa só pessoa, de dois eus,

um narrante (o narrador) e outro narrado (o protagonista)”, o que, prossegue, acaba por gerar

uma “perspectiva dual na representação dos eventos narrados”: uma externa, a do narrador

distanciado do palco dos eventos, que possui a capacidade de refletir sobre os acontecimentos

que narra, e uma interna, a do protagonista, passionalmente envolvido com as experiências

por ele imediatamente vividas. Essa técnica da narrativa de primeira pessoa já se fazia

presente em importantes obras da literatura universal, como Odisseia, de Homero, A Divina

Comédia, de Dante e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

Essa dupla perspectiva da narrativa de primeira pessoa a conduz para além de um

simples relato de acontecimentos e se constitui como uma forma de conhecimento que

envolve tanto a consciência racional quanto a experiência emocional (SOUZA, 2007, p. 142),

além de ser mais um elemento que favorece a diluição dos limites entre real e imaginário, via

influência da subjetividade:

O ensinamento mais precioso da narrativa de primeira pessoa consiste no

reconhecimento de que a significação da realidade depende da subjetividade de

quem a representa. Não há realidade em si mesma. Toda realidade é duplamente

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35

filtrada pela reflexão do narrador e pela emoção do protagonista (SOUZA, 2007, p.

153).

O episódio do encontro com o fantasma se passa em um sobrado abandonado e

distante da cidade, mergulhado em uma paisagem deserta, inerte e em um silêncio quase

sepulcral. O anoitecer, a região deserta, a chuva torrencial, o escuro, sons estranhos, vindos da

parte de baixo do sobrado, a tensão cautelosa do narrador, a solene interrogação do fantasma,

tudo parece evocar o mistério, o perigo e o medo: a atmosfera que nos faz lembrar a ghost

story ou o romance de terror, as histórias sobre a aparição de almas do outro mundo, bem ao

gosto do romance gótico inglês do século XVIII e que, segundo D’Onofrio (1995, p. 157),

podem ser consideradas uma espécie ou subgênero do fantástico.

A sucessão dos eventos no conto tendem a contrariar a lógica do terror, como

demonstra o início do inusitado e desconcertante diálogo entre o homem, sereno, e o

fantasma, desiludido, em que serão postos frente a frente, como bem mencionamos há pouco,

imaginação e existência, fantasia e realidade, razão e sentimento:

Eu estendi a mão para ele:

– Já o conheço: o senhor é o fantasma do decapitado, não é? Muito prazer.

– Muito prazer?

Ele levou tanto susto que sua cabeça caiu no chão. Catou-a, tornando a pô-la no

pescoço (VILELA, 1977, p. 95).

Como vimos, a vasta produção da literatura fantástica dos séculos XVIII e XIX punha

em diálogo a razão iluminista e a imaginação do idealismo alemão, “[...] com a intenção

declarada de representar a realidade do mundo interior e subjetivo da mente, da imaginação,

conferindo a ela uma dignidade equivalente ou maior do que a do mundo da objetividade e

dos sentidos” (CALVINO, 2004, p. 11). Parece ser essa a conclusão do fantasma ao alertar

seu inquilino sobre o perigo de “raciocinar demais”:

– Você tem razão. Mas você raciocina demais, e isso não é nada bom. Raciocinar

demais faz esquecer o medo, e o medo é necessário (VILELA, 1977, p. 99).

Se a fria e calculista racionalidade do narrador lhe suprime o medo, e seu encontro

com o sobrenatural se torna uma experiência banal, inofensiva e mesmo cômica, para o

fantasma do decapitado, o relato sobre a realidade dos viventes, a realidade dos homens e suas

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relações, que até então desconhecia – imersa em façanhas tecnológicas, ferida pelo descaso

quanto à busca de cura para as mazelas físicas da fragilidade humana e por conflitos armados,

ameaçada pelo uso e fabricação de material bélico poderoso e de sobreaviso quanto à

possibilidade de autodestruição – aos poucos irá se transformar em uma experiência

aterradora, a ponto de o próprio fantasma, resoluto, optar por abandoná-la:

– Não posso – ele disse, com a voz ainda trêmula. – eu morreria de medo. Não posso

mais ver um homem. Por favor, é a última vez que eu apareço no mundo...

(VILELA, 1977, p. 100).

De fato, o semblante perplexo e amedrontado do fantasma reflete uma realidade

espantosa e que, no entanto, parece ter-se tornado banal para o homem. O absurdo se insere

no cotidiano das pessoas por meio das várias formas de violência que corroem as relações

humanas, a tal ponto que os indivíduos vão se tornando insensíveis e pouco propensos a

surpresas “do além”:

– Quem tem medo de fantasmas hoje em dia? – eu disse, mas, percebendo que fora

indelicado, pedi-lhe desculpas. (VILELA, 1977, p. 96).

A essa realidade tão fantasmagórica e aterrorizante quanto o homem que a produz,

diante da qual o próprio fantasma do sobrado, ao se perceber frágil e impotente, emudece,

Vilela lança sua ironia bem humorada. Como bem observou Campos (2008, p. 134), a

inversão dos papéis entre o homem e o fantasma “[...] proporciona uma reflexão acerca da

barbárie, na qual vivemos”. Além disso, a sátira de Vilela denuncia o homem enquanto vítima

dos próprios pesadelos que cria e dos quais busca refugiar-se.

4.2 EM “O BURACO”, A METAMORFOSE DO HOMEM EM TATU

Metamorfose significa transformação, sendo um tema bem recorrente na literatura

universal, desde a cultura greco-romana até a obra A metamorfose, de Franz Kafka, que

instaura o chamado fantástico contemporâneo. Nela, o caixeiro viajante Gregor Samsa, de

súbito, vê-se metamorfoseado em um inseto.

Aqui no Brasil, Murilo Rubião explorou várias vezes esse tema, como em seu conto

“Teleco, o coelhinho”, no qual se dão as diversas metamorfoses de um coelho que, por fim,

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adquire a forma humana. No caso de “O buraco”, o próprio protagonista se põe a narrar sua

lenta e trágica transformação em um tatu.

Mais uma vez, a narrativa em primeira pessoa colabora para a perda de objetividade

perante o relato: a lógica racional e cartesiana se esvai diante de um narrador que, desde o

início, oscila entre incertezas, acuado por questionamentos e sentimentos contrários e às

voltas com acontecimentos simplesmente inexplicáveis aos olhos da razão.

De fato, logo nos primeiros parágrafos do conto, deparamo-nos com uma estranha

relação de proximidade entre o buraco, externo e visível, e a subjetividade do protagonista. O

primeiro parece mesmo transcender sua dimensão física e repercutir na interioridade do

segundo, a tal ponto que, para ele, extinguir o então inconveniente buraco seria pôr termo à

própria existência:

O buraco, somente eu poderia enchê-lo. Porque a essa conclusão eu havia chegado:

o buraco estava ali, e não adiantava querer ignorá-lo; o que eu tinha de fazer era

enchê-lo. Foi o que tentei, já rapaz, e não pude: cada pá de terra atirada dentro do

buraco era como se fosse atirada dentro de minha boca. Eu não podia fazer aquilo,

era como se eu estivesse me assassinando (VILELA, 1977, p. 20).

A enfadonha relação do protagonista com as pessoas que cotidianamente o cercam

conduzem-no a desejar o isolamento e o silêncio do buraco. Nesse sentido, a ambígua figura

do buraco – exterior, mas também interior – surge como símbolo da incomunicabilidade entre

os indivíduos, o que, segundo José Renato Pimentel, é a temática predominante em Tremor de

Terra:

Tentando pesquisar a obra de Luiz Vilela, seja nos contos publicados na imprensa ou

nos do livro “Tremor de Terra”, encontramos, sem dificuldades, a predominância de

um tema: a incomunicabilidade. É este o esteio de sua construção literária. Através

dessa incomunicabilidade, L. V. está dando um testemunho de sua época, realizando

obra de participação psicossocial (PIMENTEL, 1968, p. 9).

As transformações físicas no corpo do protagonista ocorrem à medida que ele vai se

ambientando com o buraco, cada vez mais profundo – a corcunda surge, o rosto se afina e

escurece; as mãos se transformam em patas, torna-se impossível manter-se de pé, a voz

emudece – todas reforçando ainda mais o rompimento da lógica e das certezas da narrativa

tradicional, como que a afirmar a inutilidade de qualquer tentativa de explicação razoável para

a trágica sorte do herói:

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38

Como explicar para ela que nem eu, nem ela, nem ninguém tinha culpa daquilo, que

aquilo acontecera porque havia começado um dia, e havia começado por um simples

acaso? E tudo era assim porque havia começado assim, e que se tivesse começado de

outro jeito, teria sido de outro jeito, mas que ninguém poderia saber por que uma

coisa começava desse ou daquele jeito, e que, mesmo que soubesse, isso não

adiantaria nada porque a coisa já havia começado? (VILELA, 1977, p. 23).

Mesmo se transformando fisicamente em um tatu, o personagem permanece com a

capacidade de sentir e pensar como um homem e, ironizando sua trágica condição, consegue

rir de si mesmo. O narrador autorreflexivo de “O buraco” simboliza perfeitamente o que

Souza (2007, p. 148) chama de “interdependência entre vontade, sentimento e razão”,

inseparáveis da própria condição humana. É justamente com esta perspectiva que o conto se

encerra:

Mas logo voltei a mim e pensei: diabo, quê que eu quero? por acaso queria que ela

continuasse minha noiva? Acabei achando a ideia divertida, e pensei numa manchete

de jornal assim: “Mulher apaixonada por um tatu mata-se.” Seria engraçado

(VILELA, 1977, p. 26).

4.3 SONHO E REALIDADE EM “TARDE DA NOITE”

Se formos elencar alguns temas do fantástico, o sonho seguramente será um deles, e

Vilela se serve desse recurso para criar, à semelhança de “O fantasma”, um tenso e ao mesmo

tempo bem humorado diálogo, por telefone, entre um senhor casado e uma moça que ameaça

suicidar-se. É o que se passa no conto “Tarde da noite”, que dá o título à terceira coletânea de

contos do escritor, publicada em 1970.

Ao lado do pacto diabólico, como em Le Diable amoureux (1772), de Jacques Cazotte,

onde natural e sobrenatural constituem o cerne do enredo, do inanimado que de repente passa

a agir por si mesmo, como em “A Vênus da Ilha” (1837), de Prosper Mérimée ou da questão

do duplo, como em “O outro”, de Jorge Luis Borges, o sonho aparece, segundo Rodrigues

(1988), como uma maneira de romper as fronteiras entre o real e o irreal:

O sonho tem sido usado frequentemente como explicação, mas o que determina a

fantasticidade stricto sensu é exatamente a brecha deixada pela narrativa ao inserir

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no enunciado a pergunta: Será ou não sonho? Ou seja, uma indagação sobre os

limites entre o sonho e o real (RODRIGUES, 1988, p. 33-34).

Essa mistura entre sonho e realidade está presente, a título de exemplo, no famoso

conto “O pé da múmia”, do francês Pierre Jules Theóphile Gautier, em que se pode identificar

“um alto nível de ambiguidade e de ficcionalidade de um texto narrativo” (RODRIGUES,

1988, p. 35).

No conto “Tarde da noite”, logo de início, a ambiguidade decorrente da mistura entre

sonho e realidade é reforçada intencionalmente, tanto no plano da enunciação quanto no do

enunciado, via afirmativas que imediatamente se opõem:

“Um telefone tocava com insistência no sonho – o homem abriu os olhos: não era no

sonho. A mulher também acordou, e os dois se olharam”. (VILELA, 1970, p. 179).

O narrador de terceira pessoa ironiza a situação de embaraço em que se encontram os

personagens, que insistem em separar sonho e realidade, e conduz o leitor a aderir a uma nova

perspectiva, distante da lógica tradicional. Agora, objetividade e subjetividade se misturam no

relato, a ponto de serem desfeitas as fronteiras entre a realidade e a fantasia.

Por meio do diálogo, tomamos conhecimento da profunda frustração de um homem

perante a monotonia que há nove anos envolve o seu matrimônio, a ponto de levar o sujeito a

desejar novas aventuras e insinuar-se para sua idealizada interlocutora. Ela, por sua vez,

diante de sua liberdade de escolha, vê-se impelida ao suicídio; seu raciocínio a tornou cética e

irônica, parece tê-la encaminhado à conclusão de que tudo é relativo, senão inútil e, por isso,

causa tédio e conduz ao não sentido da vida, à tristeza:

“É algum problema de doença? Posso saber?...”

“Saber? Pra quê?... Pode sim; não, não é nenhum problema de doença.”

“Quê que é, então?”

“É que...É inútil, a tristeza jamais me deixaria.”

“Como?...”

“É uma frase de Van Gogh, a frase que ele disse para o irmão, antes de morrer... Fez

uma pausa. O senhor é meu irmão...”. ( VILELA, 1970, p. 196).

A questão do suicídio surge quatro vezes no livro Tarde da noite. Ela está presente já

em “Lembrança”, que abre a coletânea, mas também em “No sábado” e em “O suicida”. Em

“Tarde da noite”, o último de uma lista de vinte e cinco contos, ela reaparece no meio da

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narrativa, e o protagonista, na tentativa de evitar que o mesmo fato ocorra, é aos poucos

conduzido a um estado de intensa aflição, desespero mesmo:

De novo o telefone. “Alô”, disse. Ninguém atendeu. “Alô”, insistiu. O telefone

estava ligado mas ninguém atendia. “Alô, alô”, repetia aflito, “alô, alô, alô!”

(VILELA, 1970, p. 197).

Referindo-se ao livro Tremor de terra, Ramos (1974, p. 220) afirma que a temática de

Luiz Vilela “[...] se fundamenta no drama existencial, que culmina na metamorfose do homem

nostálgico de suas origens, concretizada através do símbolo do tatu”. Essa temática

existencialista está presente também em vários contos de Tarde da noite.

O Existencialismo surgiu ainda no século XIX, com Kierkegaard (1813-1855), e se

fortaleceu no século passado, com Martin Heidegger (1889-1976) e Jean-Paul Sartre (1905-

1980). Suas doutrinas antropocêntricas, segundo D’Onofrio, deixaram de lado “[...] as

especulações trancendentais sobre a essência de Deus, do homem e da natureza” e se

preocuparam “[...] especialmente com a problemática da existência humana, na tentativa de

alcançar-se a autenticidade através da prática do conhecimento de si próprio e da rejeição das

ideologias aprisionadoras”. (D’ONOFRIO, 1990, p. 412).

A valorização do sofrimento, decorrente da liberdade do homem, é uma de suas

características, como indica Souza (2003, p. 131): “O homem é liberdade; liberdade é escolha;

toda escolha é dolorosa; o sofrimento é, pois, uma decorrência da própria natureza livre do

homem”.

No conto “Tarde da noite”, encontramos personagens marcados pelo angustiante

desafio da condição humana: uma moça provavelmente solitária que, vendo quão inútil

qualquer esforço para se compreender o sentido da vida, acredita encontrar no suicídio um

alívio para suas inquietações; um senhor que, aprisionado à sua entediante vida matrimonial,

vê a mulher idealizada converter-se bruscamente em pesadelo. Ambos, enfim, reduzidos a

duas vozes unidas ao acaso por uma simples linha telefônica e reféns de suas próprias

escolhas.

No final do conto, a ambiguidade entre sonho e realidade é novamente anunciada:

“Acorda”, falou a esposa, “você está sonhando?”

Acabou de abrir os olhos. Por um segundo pensou que o resto também tinha sido um

sonho – “tudo foi apenas um pesadelo”. Mas não; fora real, muito real. (VILELA,

1970, p. 197).

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No conto, os absurdos do sonho vão se mesclando ao absurdo da existência, a ponto de

ambos – o real e o sonho – parecerem fazer parte de um mesmo e único pesadelo. Se por um

lado o narrador irônico consegue rir com o leitor do desencontro e da incompreensão

reinantes entre os personagens, nem por isso ignora que os dramas por eles vividos apontam,

como bem sentencia Azevedo (2003, p. 466), para um elemento bastante presente na narrativa

de Vilela: a vida do homem tem se tornado cada vez mais absurda. Eis um campo que tem

sido fértil para a narrativa fantástica contemporânea.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a declaração de que a literatura fantástica representa situações que desafiam a

lógica racional, se torna até compreensível que muitos acreditem se tratar de uma fuga da

realidade, imaginação doentia ou atividade inútil, desmerecendo-a. É que é mais prático e

cômodo para nós escolhermos o convencional e evitarmos caminhos que não sabemos aonde

nos conduzirá.

No entanto, é preciso reconhecer, como bem observou Jorge Luis Borges (1949 apud

MONEGAL, 1980, p. 179), já na primeira metade do século passado, que a narrativa

fantástica se propõe, antes, a expressar “uma visão ainda mais profunda e complexa da

realidade”.

Ao analisarmos a narrativa fantástica contemporânea presente nos contos de Luiz

Vilela, tomamos como verdadeiras e bem contextualizadas as palavras de Borges. Diga-se,

inclusive, que nunca como antes a narrativa fantástica, hoje, caminha tão próxima da condição

humana.

Na época do seu surgimento, a literatura fantástica era palco privilegiado da luta entre

a razão e a imaginação, e o inverossímil, ao violar as leis naturais e causar espanto, se insurgia

contra os anseios de objetividade do pensamento cartesiano. O fantástico contemporâneo, por

sua vez, rompe as barreiras entre verossímil e inverossímil, libertando-os de questionamentos.

A narrativa fantástica em Luiz Vilela traz para o centro das atenções o homem, sua

realidade e seus dramas existenciais. A mistura entre cotidiano e fantástico, levada a efeito

pela mistura dos gêneros e pelas novas técnicas da enunciação e do enunciado, fortalece ainda

mais a ideia de que, no homem, a despeito do que pretendia o racionalismo positivista,

vontade, sentimento e razão seguem interdependentes, pois fazem parte da própria condição

humana.

Page 45: Pró-Reitoria de Graduação Curso de Letras Trabalho de

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