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CENTRO UNIVERSITÁRIO DO DISTRITO FEDERAL – UDF REITORIA
EDITAL Nº 01/2016
PROCESSO SELETIVO PARA INGRESSO NO MESTRADO ACADÊMI CO
DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS E TRABALHISTAS 1º Semestre Letivo de 2016
A MM. Reitora do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF, Dra. Beatriz Maria Eckert-Hoff , no uso das suas atribuições regimentais, torna público o presente Edital do Processo Seletivo para o Mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, com duas linhas de pesquisa: “Constitucionalismo, Direito do Trabalho e Processo” e “Direitos Humanos Sociais, Seguridade Social e Meio Ambiente do Trabalho”. A) INSCRIÇÃO NO PROCESSO SELETIVO
1. As inscrições terão início no dia 15 de fevereiro de 2016 , estendendo-se até o dia 7 de março de 2016 , por meio de correspondência eletrônica a ser enviada para o e-mail: [email protected]. 2. Poderá inscrever-se no processo seletivo brasileiro ou estrangeiro, portador de título de graduação em Direito ou áreas afins, devidamente reconhecido. 3. No ato de inscrição deverão ser enviados por via eletrônica, exclusivamente, os seguintes documentos digitalizados:
a) Requerimento de inscrição no processo seletivo em formulário próprio, conforme Anexo;
b) Cópia do diploma de graduação em Direito ou áreas afins; c) Cópia da Carteira de identidade e do CPF ou outro documento oficial com foto; d) Currículo Lattes atualizado nos últimos três meses; e) Certificado de proficiência em língua estrangeira, se for o caso;
3.1. Os candidatos com necessidades especiais devem apresentar suas demandas, com as devidas comprovações, no ato de inscrição, sob pena de preclusão.
3.2. Os candidatos aprovados no processo seletivo deverão apresentar, no ato de matrícula no curso, as vias originais ou cópias autenticadas dos documentos acima indicados para fim de comprovação da autenticidade, bem como outros documentos a serem solicitados posteriormente, sob pena de exclusão do processo seletivo. 4. São oferecidas 20 (vinte) vagas para alunos regulares no programa de Mestrado, não estando a Coordenação Acadêmica do Curso de Mestrado em Direito do UDF obrigada a preencher todas as vagas.
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5. O resultado das inscrições e a convocação para a realização das demais etapas do processo seletivo serão informados exclusivamente via e-mail até o dia 08 de março de 2016. B) PROCESSO SELETIVO 6. O processo de seleção compreende as seguintes etapas:
a) 1ª Etapa - Prova de Proficiência em Língua Estrangeira : preliminar e eliminatória, a ser realizada no dia 10 de março de 2016 , quinta-feira, das 14h às 15h30;
b) 2ª Etapa - Prova de Conhecimentos Específicos : eliminatória e classificatória, a
ser realizada também no 10 de março de 2016 , quinta-feira, das 16h30 às 20h30;
c) 3ª Etapa - Entrevista Individual : eliminatória, a ser realizada nos dias 11 e 12 de março (sexta-feira e sábado), a partir das 15h do dia 11 de março de 2016, em horário a ser divulgado quando da publicação da lista dos candidatos aprovados nas duas primeiras fases do processo seletivo.
7. A Prova de Proficiência em Língua Estrangeira consistirá na compreensão de texto jurídico na língua indicada pelo candidato no momento da inscrição, entre as seguintes opções: francês, inglês, espanhol ou italiano. 7.1. Não será admitido o uso de dicionário na prova. 7.2. Nesta etapa, o candidato deverá obter a menção "aprovado". 7.3. Serão dispensados da avaliação candidatos que comprovem proficiência em alguma das línguas estrangeiras referidas: a) Inglês : TOEFL (mínimo de 213 pontos para CBT Toefl, 550 pontos para o Toefl
Tradicional ou 80 pontos para o Internet-based-test – IBT); Cambridge (Key English Test); IELTS (mínimo de 6,0), ou Michigan Proficiency.
b) Francês : Diplome d’Études em Langue Française – DELF (nível B2) ou teste de proficiência em língua francesa emitido pela Aliança Francesa, com aproveitamento mínimo de 70 pontos.
c) Espanhol : Diploma de Español como Lengua Extranjera – DELE-Cie (nível avanzado – B2) – Instituto Cervantes.
d) Italiano – CELI – Certificato di Conoscenza della Lingua Italiana (CELI 3), CILS – Certificato di Italiano come Lingua Straniera (CILS DUE – B2) ou teste lato sensu do Instituto Italiano de Cultura, com aproveitamento de 70%.
7.3.1. Outros diplomas de proficiência poderão ser analisados pela Comissão de Seleção e pela Coordenação Acadêmica do Curso de Mestrado em Direito do UDF.
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8. A Prova de Conhecimentos Específicos terá conteúdo jurídico relativo a tópicos de Direitos Sociais e Relações Trabalhistas e envolverá exame escrito de acordo com as referências bibliográficas básicas e temas indicados neste Edital. 8.1. Serão avaliadas na Prova de Conhecidas Específicos: a qualidade do texto, que compreende a clareza da exposição, coerência de ideias e da argumentação, completude da informação e correção no uso da língua portuguesa, além da capacidade crítica e grau de conhecimento jurídico do candidato. 8.2. Nesta etapa, o candidato receberá menção entre 0 e 10 pontos. 8.3. A Prova Escrita será baseada nos temas indicados neste item, podendo também referenciar quaisquer dos textos nele indicados. Não será permitida a consulta a qualquer livro, artigo ou material informativo de qualquer natureza, inclusive texto de "legislação seca". 8.3.1. Temas :
i. O Estado Democrático de Direito na Constituição da República e sua Influência no Direito do Trabalho, no Direito Processual do Trabalho e no Direito da Seguridade Social.
ii. Princípios Constitucionais Humanísticos e Sociais Relacionados ao Trabalho. Princípios de Direito Individual do Trabalho e Direito Coletivo do Trabalho Constitucionalizados.
iii. Relações de Trabalho e Relação de Emprego. Elementos da Relação de Emprego. Centralidade e Desafios à Relação de Emprego no Capitalismo.
iv. Direito Coletivo do Trabalho: princípios próprios. Características e Desafios do Sistema Sindical Brasileiro. Negociação Coletiva Trabalhista: peculiaridades jurídicas.
v. Meio Ambiente do Trabalho e Infortunística Laboral: as correlatas indenizações por danos morais, inclusive estéticos, e danos materiais.
vi. Direito Processual do Trabalho: especificidades de sistemas processuais, de princípios jurídicos e de suas regras; harmonização do Direito Processual do Trabalho à Constituição da República. A Instrumentalidade do Processo do Trabalho: antigos e novos desafios; o impacto do novo CPC-2015.
8.3.2. Textos bibliográficos:
i. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. "Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte anos da Constituição Federal de 1988". Disponível em: www.stf.jus.br.
ii. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. “Considerações sobre a autonomia do processo do trabalho”. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, RT, ano 39, v. 153, p. 167-180, set.-out. 2013. Revista Magister de Direito do Trabalho, Porto Alegre, Lex-Magister, ano 10, n. 56, p. 39-51, set.-out. 2013. Revista Fórum Trabalhista, Belo Horizonte, Editora Fórum, ano 2, n. 7, p. 55-67, jul.-ago. 2013. Revista Síntese Trabalhista e
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Previdenciária, São Paulo, IOB, ano XXIV, n. 294, p. 206-218, dez. 2013. Revista do Direito Trabalhista, Brasília, Consulex, ano 20, n. 2, p. 20-24, fev. 2014.
iii. DELGADO, Mauricio Godinho. "Estado Democrático de Direito, Constituição Federal de 1988 e Direito do Trabalho". In DELGADO, M. G.; DELGADO, G.N. Constituição da República e Direitos Fundamentais - dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2015.
iv. PEREIRA, Ricardo José Macêdo de Britto. A inconstitucionalidade da liberação generalizada da terceirização. Revista da ABET (Impresso), v.14, p. 62-77, 2015.
9. Os resultados das provas de língua estrangeira e de conhecimentos específicos serão divulgados no dia 11/03/2016, a partir das 12h. Somente os candidatos aprovados nas duas primeiras fases irão participar da terceira fase de seleção. 10. A seleção final dos candidatos consiste em entrevista individual que poderá se referenciar aos temas de estudo indicados neste Edital, à prova escrita aplicada e/ou aos textos indicados, além da análise curricular do candidato e de seu perfil acadêmico. Serão consideradas as condições objetivas de frequência, dedicação ao programa e de conclusão do curso pelo candidato, além da adequação do tema de trabalho proposto na ficha de inscrição e sua ligação com a linha de pesquisa escolhida. 10.1. Serão selecionados candidatos em número proporcional às linhas de pesquisa existentes. 10.2. O candidato deverá obter, nesta fase, a menção “apto” para lograr aprovação no processo seletivo. 11. A aprovação do candidato estará condicionada à aprovação na Prova de Proficiência em língua estrangeira, a obtenção da nota mínima 7,0 (sete) na Prova de Conhecimentos Específicos e menção “apto” na fase de entrevista. C) ESTRUTURA E DURAÇÃO DO PROGRAMA 12. A conclusão do Programa de Mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas exigirá a realização de, no mínimo, 29 créditos acadêmicos, equivalentes a 15 horas-aula cada, que serão integralizados da seguinte maneira:
i. Duas disciplinas comuns e obrigatórias . Cada uma dessas disciplinas totalizará 4 créditos - equivalentes à 60 horas-aula.
ii. Em cada linha de pesquisa, haverá uma disciplina obrigatória que dará fundamento teórico às demais disciplinas optativas do curso e guiará a escolha de pesquisa dos alunos. Cada uma das disciplinas obrigatórias totalizará 4 créditos - equivalentes à 60 horas-aula e o discente cursará somente a disciplina obrigatória da sua linha.
iii. No mínimo uma disciplina Optativa , totalizando o mínimo de 4 créditos.
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iv. Mínimo de 5 créditos de Atividades Complementares , a serem realizados de maneira obrigatória em forma de participação em grupos de pesquisa e publicação de um artigo em revista com classificação QUALIS. Serão ainda facultados ao aluno participação em projetos de extensão, participação em editoração de revistas e periódicos acadêmicos e em atividades de docência orientada.
v. Elaboração da dissertação - 8 créditos. 13. A obtenção do título de Mestre em Direito dependerá de aprovação em todas as etapas do Programa de Mestrado, culminado com a aprovação da dissertação por uma banca examinadora, em defesa pública. 14. O curso deverá ser concluído em até 24 meses , impreterivelmente. 15. São exigidos dos alunos matriculados no programa assídua e ativa participação nas aulas, seminários, grupos de pesquisa e outras atividades relacionadas à pesquisa acadêmica, além da produção de artigos, resenhas e revisões bibliográficas. A exigência de tempo e disponibilidade para participar de tais atividades deve ser considerada pelo candidato antes da matricula. D) DISPOSIÇÕES FINAIS 16. Em todos os eventos da seleção, deverá o candidato comparecer com antecedência de pelo menos 30 (trinta) minutos, munido de documento de identificação e caneta esferográfica azul ou preta. Não haverá tolerância para atraso, que implicará na eliminação do candidato do processo seletivo. 17. Somente será aceita a inscrição no processo seletivo do candidato que enviar todos os documentos indicado no item 3 deste Edital. 18. Será eliminado do processo seletivo o candidato que deixar de participar de alguma das fases do processo seletivo ou que descumprir com as regras previstas neste Edital. 19. O resultado final relacionará os candidatos selecionados dentro das vagas oferecidas, em ordem alfabética. 20. Poderão ser admitidos alunos especiais nas diferentes disciplinas. Os créditos concedidos com a aprovação nas disciplinas cursadas nessa condição terão validade máxima de 02 (dois) anos para aproveitamento no programa regular do Mestrado.
21. Somente serão admitidos recursos quanto aos resultados da seleção sob alegação de vícios de forma. 21.1. Eventual recurso deverá ser encaminhado a Coordenação Acadêmica do Curso de Mestrado em Direito do UDF, mediante razões escritas, em até 02 (dois) dias úteis contados da respectiva publicação do resultado/ato a ser impugnado.
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22. A inscrição no processo de seleção representa a aceitação plena e irrestrita pelo candidato de todos os termos deste Edital. 23. A matrícula no curso está condicionada à aprovação do candidato em todas as etapas do processo de seleção, bem como ao cumprimento dos termos deste Edital e à aceitação das regras do programa. 24. As datas fixadas neste edital poderão ser alteradas, com prévia notícia no site do UDF e/ou comunicação por email. 25. Os casos omissos neste Edital serão resolvidos pela Coordenação Acadêmica do Curso de Mestrado em Direito do UDF. 26. As atividades acadêmicas do programa obedecerão ao calendário acadêmico 2016 a ser publicado pela Reitoria do UDF. As aulas terão início na semana de 28 de março de 2016. 27. Todos os horários do presente edital estarão referidos ao Horário de Brasília. COORDENAÇÃO ACADÊMICA DO MESTRADO EM DIREITO DAS RE LAÇÕES SOCIAIS E TRABALHISTAS: Prof. Dr. Maurício Godinho Delgado e Profª. Dra. Re nata de Assis Calsing Contatos: - E-mail: [email protected] - Tel.: (61) 3704-8892 e (61) 3704-8803
Brasília, 28 de janeiro de 2016.
Profª. Drª. Beatriz Maria Eckert-Hoff
Reitora – UDF
Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinte
anos da Constituição Federal de 19881
Ingo Wolfgang Sarlet. Doutor em Direito do Estado (Munique, 1997). Pós-Doutor em Direito pelo Instituto Max-Planck de Direito Social Estrangeiro e Internacional (onde atua como correspondente científico e representante brasileiro desde 2000) e pela Universidade de Munique, tendo sido bolsista e pesquisador visitante pelo do Instituto e pelo DAAD por vários períodos, entre 2001 e 2005. Pesquisador visitante junto ao Georgetown Law Center (2004) e na Harvard Law School (2008). Professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Pós-Graduação em Direito e em Ciências Criminais (Mestrado e Doutorado) da PUCRS. Professor do Programa de Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Coordenador do Mestrado e Doutorado em Direito e do Centro de Pesquisas da Faculdade de Direito da PUCRS, bem como do GEDF – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais (CNPq/PUCRS). Professor da Escola Superior da Magistratura (AJURIS) e Juiz de Direito no RS.
1 – Considerações iniciais: contextualizando e delimitando o tema
Poder integrar um qualificado ciclo de debates que tem como um dos seus objetivos
avaliar, transcorridos praticamente vinte anos de sua promulgação, a “trajetória existencial”
da nossa Constituição Federal, identificando, dentre outros aspectos, se tal caminhada tem
sido marcada por mais sucessos do que derrotas, representa uma honra, mas, acima de tudo,
constitui um desafio, não apenas, mas particularmente para todos os que elegeram o estudo e
a prática do direito constitucional como preocupação central de sua atividade diária. Aliás, é
justamente esta (a evolução constitucional desde 1988) a temática a respeito da qual versa o
notável ensaio de Luís Roberto Barroso, que integra a presente coletânea. Neste contexto,
oportuna a manifestação de Paulo Ricardo Schier, ao apontar que a comemoração dos vinte
anos da nossa Constituição não deve restar limitada a uma exortação da qualidade e
substancial permanência (apesar das reformas) do texto constitucional, mas, acima de tudo,
resultar em reflexão sobre o seu atual sentido, englobando a constituição nos seus sentidos
formal e material, como projeto em permanente reconstrução2. Cientes da correção e
relevância de tal observação, é possível afirmar que, tanto no plano textual, quanto no que diz
com a vivência constitucional, os direitos fundamentais em geral - e os direitos sociais em
1 O presente texto constitui versão revista, atualizada e parcialmente reformulada de trabalho redigido anteriormente sobre o tema, que, todavia, enfatizava, de um modo geral, o problema das resistências aos direitos sociais, e que, além de remetido para publicação em coletâneas (Editoras Forense e Saraiva) versando sobre os 20 anos da Constituição Federal de 1988, foi objeto de veiculação na Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. 20 Anos de Constitucionalismo Democrático – E Agora? Porto Alegre-Belo Horizonte, 2008, p. 163-206. 2 Cf. Paulo Ricardo Schier, “Constitucionalização e 20 anos da Constituição: reflexão sobre a exigência de concurso público (entre a isonomia e segurança jurídica)”, capítulo I, publicado nesta coletânea.
particular – têm ocupado, tanto por ocasião das discussões travadas no âmbito do processo
Constituinte, quanto no próprio texto constitucional promulgado em 05 de outubro de 1988 e
na evolução subseqüente, uma posição de destaque sem precedentes no contexto da história
constitucional brasileira e, em se lançando um olhar sobre o direito comparado, mesmo em
relação a outras ordens constitucionais, certamente não haverá de ser contestado seriamente.
Não apenas em termos quantitativos, ou seja, no que diz respeito ao número expressivo de
direitos sociais expressa e implicitamente consagrados pela Constituição, mas também em
termos qualitativos, considerando especialmente o regime jurídico-constitucional dos direitos
sociais, a Assembléia Constituinte de 1988 foi inequivocamente (para alguns em demasia!)
amiga dos direitos sociais, o que não significa, de acordo com a conhecida advertência de
Lenio Streck, que com o advento da nossa atual Constituição as promessas da modernidade
tenham sido efetivamente cumpridas entre nós 3.
Além disso, constata-se que passada uma (rápida) fase de maior ufanismo, não apenas
a constitucionalização de direitos sociais, mas uma série de outros aspectos ligados ao texto
resultante do embate no âmbito da Assembléia Constituinte, voltaram ou mesmo passaram a
ser objeto de acirrada crítica, inclusive no meio jurídico, o que, à evidência, não é em si um
dado necessariamente negativo, já que mesmo indispensável ao processo democrático-
deliberativo, mas acabou, não raras vezes, assumindo dimensões preocupantes, especialmente
quando se tentou difundir a mensagem da ilegitimidade do processo constituinte (não que este
tenha sido isento de problemas), inclusive com o objetivo de, entre outras medidas, justificar a
revisão ampla do texto constitucional, acompanhada da exclusão até mesmo de uma série de
direitos fundamentais expressamente consagrados pelo Constituinte, como é o caso, v.g., dos
direitos dos trabalhadores.
De qualquer sorte, independentemente de tais discussões, que aqui são referidas
apenas em caráter ilustrativo e não constituem o objeto da nossa abordagem, certo é que,
especialmente no que diz com a constitucionalização de direitos e deveres em matéria social,
não são poucas as objeções registradas entre nós e no direito comparado, tanto é que, a
despeito da evolução constitucional contemporânea em matéria de direitos fundamentais e do
sistema internacional de tutela dos direitos humanos, diversas constituições seguem refratárias
à inserção de direitos sociais em seus textos. Com isto não se está a dizer – é bom enfatizar -
que os níveis de proteção social, concretizados pela via da legislação ordinária e das políticas
3 Cf. Lenio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, especialmente p. 57 e ss., destacando, inclusive, a necessidade de promover a defesa das instituições da modernidade que se revelam indispensáveis à instauração de um efetivo Estado Democrático (e Constitucional!) de Direito.
públicas, não sejam em vários casos até mesmo mais altos do que em países onde a opção foi
pela constitucionalização dos direitos sociais, o que, por sua vez, acaba, para alguns, servido
de argumento adicional para justificar não apenas a desnecessidade e mesmo inconveniência
da inserção de direitos sociais nas constituições. Da mesma forma, segue acesa a controvérsia
na esfera doutrinária e jurisprudência, seja no que diz respeito à própria fundamentação e
legitimação dos direitos sociais, seja no que concerne ao seu conteúdo e regime jurídico.
Assim, resulta evidente que mesmo à vista da expressa previsão de direitos sociais no
catálogo constitucional dos direitos fundamentais, também entre nós tais temas têm sido
objeto de crescente e cada vez mais intenso (em termos quantitativos e qualitativos) debate.
Dentre os temas preferidos pela doutrina (e que acabam refletindo, com maior ou
menor intensidade, na esfera jurisprudencial, legislativa e administrativa) destacam-se,
notadamente em matéria dos assim chamados direitos sociais, tanto as teses que questionam a
própria constitucionalização de tais direitos sociais (sustentando até mesmo que, no todo ou
em parte, tais direitos sequer deveriam estar na Constituição!) quanto as vozes daqueles, que,
embora admitam a possibilidade de ter tais direitos previstos no texto constitucional, refutam
a sua condição de autênticos direitos fundamentais. Além disso, assume particular relevância
a controvérsia em torno do regime jurídico-constitucional dos direitos sociais, uma vez
reconhecida a sua condição de direitos fundamentais, o que, por sua vez, remete ao problema
de sua eficácia e, por conseguinte, de sua efetividade.
De outra parte, resulta evidente que a mera previsão de direitos sociais nos textos
constitucionais, ainda que acompanhada de outras providências, como a criação de um
sistema jurídico-constitucional de garantias institucionais, procedimentais, ou mesmo de outra
natureza, nunca foi o suficiente para, por si só, neutralizar as objeções da mais variada
natureza ou mesmo impedir um maior ou menor déficit de efetividade dos direitos sociais,
notadamente no que diz respeito aos padrões de bem-estar social e econômico vigentes. Saber
em que medida os direitos sociais, a despeito do regime jurídico que lhes foi atribuído pela
Constituição (em que pese a controvérsia sobre qual exatamente é este regime jurídico), de
fato representam mais do que manifestação de um constitucionalismo simbólico, já seria
matéria mais do que suficiente para ocupar uma monografia de envergadura, e, por certo, não
haveria como ser suficientemente discutido nos limites deste breve ensaio. Todavia, embora
não seja o nosso propósito discorrer sobre o constitucionalismo simbólico4, não há como
4 Sobre o tema v. os referenciais desenvolvimentos de Marcelo Neves, A Constitucionalização Simbólica, 2ª
ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007. Enfocando a questão no plano dos direitos humanos e fundamentais, v., do mesmo autor, “A Força Simbólica dos Direitos Humanos”, in: Cláudio Pereira Souza Neto e Daniel
desconsiderar que o tema guarda íntima vinculação (também) com o problema das
resistências aos direitos sociais, seja no que diz com o uso meramente retórico do discurso dos
direitos, seja no que diz respeito à sua eficácia e efetividade.
Considerando que prescinde de maior esforço reflexivo a constatação de que o tema
ora abordado constitui uma fonte praticamente inesgotável de tópicos e problemas a serem
mapeados e analisados, desde logo há que frisar que não é nosso intento sequer buscar um
levantamento mais preciso dos diversos aspectos que dizem respeito ao conteúdo dos direitos
sociais e ao seu regime jurídico, nem mesmo no pertinente ao problema de sua eficácia
efetividade. Aliás, sequer em relação aos tópicos selecionados isto seria possível. O que nos
move, em primeiro plano, é a vontade de identificar alguns dos problemas centrais vinculados
à teoria e prática dos direitos sociais no âmbito do sistema constitucional pátrio, pinçando
alguns aspectos de maior relevo, notadamente em relação à sua eficácia e efetividade,
procedendo, em relação a cada uma delas, uma análise que, de algum modo, possa contribuir
para um balanço e desenvolvimento do debate em torno do tema. Certo é que ao fim destes
quase vinte anos, estamos em boas condições de realizar tal tarefa. Com efeito, a farta
produção científica surgida desde então, somada à trajetória da jurisprudência, mas também o
conjunto de políticas públicas criadas, a legislação infraconstitucional que regulamenta e
concretiza os projetos sociais e os próprios direitos sociais da Constituição, assim como os
inúmeros indicadores sociais e econômicos, revelam que material não nos falta para isso.
Assim, procedendo a uma seleção de aspectos a serem abordados, iniciaremos por
analisar alguns aspectos da discussão, cada vez mais intensa entre nós, a respeito da própria
condição dos direitos sociais como direitos fundamentais, já que, a despeito de assim terem
sido designados no texto constitucional, há quem siga – e fundado em razões respeitáveis -
contestando tal condição. Umbilicalmente ligada a este aspecto, visto que da afirmação da
fundamentalidade dos direitos sociais decorrem também certas conseqüências,
designadamente no que concerne ao regime jurídico de tais direitos, situa-se a problemática
da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais sociais, possivelmente um dos temas mais
debatidos na doutrina e jurisprudência constitucional brasileira nos dias atuais. Neste
contexto, abordaremos alguns pontos polêmicos vinculados à problemática do assim
designado “custo dos direitos” e da polêmica reserva do possível, especialmente no que diz
respeito às resistências em aceitar o controle dos atos legislativos e administrativos com base
nos direitos sociais e a possibilidade de fazer valer a sua condição de direitos subjetivos.
Sarmento (Coord.), Direitos Sociais, Fundamentos, Judicialização e Direitos Sociais em Espécie, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 417 e ss., doravante referido apenas como Direitos Sociais.
Outrossim, convém salientar, evitando que o leitor habitual venha a se sentir frustrado nas
suas expectativas, que estamos revisitando temas já tratados em trabalhos anteriores, de tal
sorte que, embora o novo contexto, a reestruturação do texto e uma significativa atualização
bibliográfica, em grande parte estamos a reafirmar e reproduzir produção intelectual anterior,
que, todavia, necessita de permanente reafirmação e reconstrução em função da difusão de um
expressivo número de novas e relevantes contribuições, agregando subsídios e outros olhares
ao debate, em parte mesmo veiculando críticas a serem levadas a sério, implicando, se não
uma correção de rumo, pelo menos o ônus de uma constante “testagem” do nosso próprio
trabalho. Por derradeiro, antes de investirmos, no próximo segmento, na discussão sobre a
fundamentalidade dos direitos sociais, há que agradecer aos ilustres amigos e colegas
CLÁUDIO PEREIRA SOUZA NETO, DANIEL SARMENTO e GUSTAVO BINENBOJM
pela acolhida deste texto na presente coletânea e pelo convite para o excepcional encontro de
Professores em Petrópolis, uma das experiências acadêmicas e pessoais mais gratificantes das
quais tive a ocasião de participar.
2 – Algumas notas em torno dos direitos sociais como direitos fundamentais na ordem
constitucional brasileira
Embora aparentemente estejamos diante de uma obviedade, o fato de existirem
segmentos da doutrina, ainda que bem intencionados e mesmo amparados em argumentos de
relevo, que estejam negando a condição de autênticos direitos fundamentais dos direitos
sociais (existe até quem negue a própria existência de direitos sociais5!) torna oportuna a
lembrança de que ao se tratar de direitos fundamentais na Constituição não há como abrir mão
de uma perspectiva dogmático-jurídica (mas não necessariamente formal-positivista) da
abordagem, reafirmando-se, de tal sorte, a necessidade de uma leitura constitucionalmente
adequada da própria fundamentação (inclusive filosófica) tanto da assim designada
fundamentalidade quanto do próprio conteúdo dos direitos sociais. De outra parte, é a nossa
Constituição (doravante citada como CF) e não outra - o que é bom sempre recordar! – que
nos servirá como referencial, inclusive quanto aos compromissos expressa e/ou
implicitamente firmados pelo Constituinte, seja no que diz com a aderência a determinadas
5 Cf., por exemplo, Fernando Atria, “Existem Direitos Sociais?” in: Cláudio Ari Mello (Coord.), Os Desafios
dos Direitos Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 09-46, destacando-se que não temos como empreender aqui o debate com as teses esgrimidas pelo autor. Para uma crítica às objeções de Atria, v., especialmente, Carlos Bernal Pulido, “Fundamento, Conceito e Estrutura dos Direitos Sociais: uma crítica a “Existem direitos sociais?” de Fernando Atria”, in: Direitos Sociais, p. 137 e ss.
concepções de Justiça, especialmente no que diz com a noção de justiça social (que foi
expressamente inserida como objetivo a ser alcançado no âmbito da ordem econômica da
Constituição, designadamente no seu artigo 170, “caput”6), seja no concernente a determinada
ordem de valores que, de acordo com concepção amplamente consagrada, encontra expressão
também e acima de tudo por meio dos princípios e dos direitos fundamentais7.
Uma primeira constatação que se impõe e que resulta já de um superficial exame do
texto constitucional, é a de que o Poder Constituinte de 1988 acabou por reconhecer, sob o
rótulo de direitos sociais, um conjunto heterogêneo e abrangente de direitos (fundamentais), o
que, sem que se deixe de admitir a existência de diversos problemas ligados a uma precária
técnica legislativa e sofrível sistematização (que, de resto, não constituem uma particularidade
do texto constitucional, considerando o universo legislativo brasileiro) acaba por gerar
conseqüências relevantes para a compreensão do que são, afinal de contas, os direitos sociais
como direitos fundamentais. Neste sentido, verifica-se, desde logo e na esteira do que já tem
sido afirmado há algum tempo entre nós, que também os direitos sociais (sendo, ou não, tidos
como fundamentais) abrangem tanto direitos prestacionais (positivos) quanto defensivos
(negativos), partindo-se aqui do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva reconhecida
ao titular do direito, bem como da circunstância de que os direitos negativos (notadamente os
direitos de não-intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais tutelados pela
Constituição) apresentam uma dimensão “positiva” (já que sua efetivação reclama uma
atuação positiva do Estado e da sociedade) ao passo que os direitos a prestações (positivos)
fundamentam também posições subjetivas “negativas”, notadamente quando se cuida de sua
proteção contra ingerências indevidas por parte dos órgãos estatais, mas também por parte de
organizações sociais e de particulares8.
6 Sobre os princípios que informam a ordem econômica em geral v., entre nós, o já clássico contributo de Eros Roberto Grau, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997; No âmbito da literatura mais recente, v. Gilberto Bercovici, Constituição Econômica e Desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituição de 1988, São Paulo: Malheiros, 2005. 7 A respeito deste tópico, v., por todos (no âmbito da doutrina estrangeira), Konrad Hesse, Grundzüge des
Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland (existe tradução para o português, publicada pela Editora Sérgio Fabris, Porto Alegre), 20ª ed., Heidelberg: C. F. Muller, 1995, p. 133 e ss. Entre nós, além do nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 9ªed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 158 e ss., onde desenvolvemos de modo mais detido esta dimensão dos direitos fundamentais, à luz de farta doutrina nacional e estrangeira, v. também, entre outros, especialmente Daniel Sarmento, “A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais”, in: Ricardo Lobo Torres e Celso Albuquerque Mello (Org.). Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 63-102 e, mais recentemente, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, São Paulo: RT, 2007, p. 116 e ss., assim como Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 255 e ss..
8 Sobre o ponto, inclusive para maior desenvolvimento do problema da classificação dos direitos fundamentais, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit., p. 176 e ss. Por último, com destaque para a estrutura diferenciada dos direitos sociais como direitos a prestações, v. Virgílio Afonso
Que tais constatações não podem ter o condão de tornar obsoleta ou mesmo
equivocada a classificação dos direitos fundamentais em direitos de defesa e direitos a
prestações – muito embora assim tenha sido sustentado por alguns – afigura-se como
evidente. Com efeito, especialmente em se tendo presente a distinção entre texto (enunciado
semântico) constitucional e norma jurídica (resultado da interpretação do texto), de acordo
com o qual pode haver mais de uma norma contida em determinado texto, assim como
normas sem texto expresso que lhe corresponda diretamente9, sabe-se que a partir de um
determinado texto há como extrair uma norma (ou normas) que pode (ou não) reconhecer um
direito como fundamental e atribuir uma determinada posição jurídico-subjetiva (sem prejuízo
dos efeitos jurídicos já decorrentes da dimensão objetiva) à pessoa individual ou
coletivamente considerada, posição que poderá ter como objeto uma determinada prestação
(jurídica ou fática) ou uma proibição de intervenção10.
Se os direitos sociais a prestações (segundo Alexy, os direitos a prestações em sentido
estrito, no sentido de direitos subjetivos a prestações materiais vinculados aos deveres estatais
do Estado na condição de Estado Social de Direito11), na sua dimensão subjetiva, implicam
direitos subjetivos negativos, também há que destacar que a Constituição de 1988, pelo menos
da Silva, “O Judiciário e as Políticas Públicas: entre Transformação Social e Obstáculo à Realização dos Direitos Sociais”, in: Direitos Sociais, p. 589 e ss.
9 Sobre o tema (distinção entre texto e norma e seu significado), no âmbito da doutrina nacional, indispensável, dentre outros, Eros Roberto Grau, Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 19 e ss.(retomando aqui os desenvolvimentos efetuados na já citada obra sobre a ordem econômica na constituição), afirmando, em apertada síntese, ser a norma produto da interpretação, não sendo idêntica ao texto, mas neste se encontrando parcialmente contida, porém em estado potencial, bem como Lenio Luiz Streck, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, 5ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, especialmente p. 310 e ss., em capítulo que ostenta o significativo título “O caráter não-relativista da hermenêutica ou de como a afirmação ‘a norma é (sempre) o produto da atribuição de sentido a um texto’ não pode significar que o intérprete esteja autorizado a ‘dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, destacando que a distinção entre texto e norma não pode ser compreendida como uma absoluta independência entre ambas as figuras e muito menos como uma irrelevância do texto. Na mesma linha, v., ainda entre nós, o arguto magistério de Humberto Ávila, Teoria dos Princípios, 6ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 30 e ss., apontando para o fato de que o intérprete “utiliza como ponto de partida os textos normativos, que oferecem limites à construção de sentidos...” (p. 33-34). Neste mesmo contexto, aliás, há que relembrar a conhecida – e correta - afirmação de Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 20ª ed., Heidelberg: C.F. Müller, 1995, especialmente p. 29 e ss. no sentido de que o texto constitucional atua como limite para o intérprete, aspecto que, assim como os demais que lhe são conexos, aqui não estamos em condições de desenvolver.
10 Cfr. paradigmaticamente demonstrado por Robert Alexy Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp 1994, p. 53 e ss (quando apresenta seu conceito de norma de direito fundamental) e, mais adiantem, especialmente no ponto em que examina a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos a prestações (op. cit., p. 159 e ss.)
11 Com efeito, para Robert Alexy, op. cit., p. 395 e ss., os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais) se distinguem dos direitos a prestações em sentido amplo, já que estes dizem com a atuação positiva do Estado no cumprimento dos seus deveres de proteção, já decorrentes da sua condição de Estado democrático de Direito e não propriamente como garante de padrões mínimos de justiça social, ao passo que os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais) dizem com direitos a algo (prestações fáticas) decorrentes da atuação do Estado como Estado Social.
de acordo com seu texto, incluiu no seu rol de direitos sociais posições, que, a despeito de
uma correlata dimensão (ou função) positiva ou prestacional, assumem a feição de típicos
direitos de caráter negativo (defensivo), como dão conta, entre outros, os exemplos do direito
de greve, da liberdade de associação sindical, das proibições de discriminação entre os
trabalhadores (direitos especiais de igualdade).
A partir disso, ao se empreender uma tentativa de definição dos direitos sociais
adequada ao perfil constitucional brasileiro, percebe-se que é preciso respeitar a vontade
expressamente enunciada do Constituinte, no sentido de que o qualificativo de social não está
exclusivamente vinculado a uma atuação positiva do Estado na promoção e na garantia de
proteção e segurança social, como instrumento de compensação de desigualdades fáticas
manifestas e modo de assegurar um patamar pelo menos mínimo de condições para uma vida
digna (o que nos remete ao problema do conteúdo dos direitos sociais e de sua própria
fundamentalidade). Tal consideração se justifica pelo fato de que também são sociais (sendo
legítimo que assim seja considerado) direitos que asseguram e protegem um espaço de
liberdade ou mesmo dizem com a proteção de determinados bens jurídicos para determinados
segmentos da sociedade, em virtude justamente de sua maior vulnerabilidade em face do
poder estatal, mas acima de tudo social e econômico, como demonstram justamente os
direitos dos trabalhadores12, isto sem falar na tradição da vinculação dos direitos dos
trabalhadores à noção de direitos sociais, registrada em vários momentos da evolução do
reconhecimento jurídico, na esfera internacional e interna, dos direitos humanos e
fundamentais.
Tais ponderações, embora digam respeito ao universo abrangente e heterogêneo dos
direitos sociais, não respondem por si só a pergunta a respeito de sua fundamentalidade e
sobre o regime jurídico que a esta é inerente. Sem que se pretenda aqui arrolar as diversas
objeções encontradas no seio da doutrina, é preciso, desde logo, afastar qualquer leitura
reducionista, designadamente naquilo em que – equivocadamente – se afirma que sustentamos
uma concepção estritamente formal de direitos fundamentais13. Em primeiro lugar, afirmar
que são fundamentais todos direitos como tais (como direitos fundamentais!) expressamente
12 Para um maior desenvolvimento especialmente do conceito e classificação dos direitos fundamentais sociais,
v., além do nosso “Os direitos fundamentais sociais na Constituição de 1988”, in: Ingo Wolfgang Sarlet (Org), Direito público em tempos de crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 140 e ss., bem como alguns desenvolvimentos mais recentes no igualmente nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,p. 176 e ss.
13 Pelo menos esta a leitura da nossa obra, no nosso sentir manifestamente equivocada neste ponto, realizada por Alceu Maurício Júnior, “Direitos Prestacionais, Concepções de Direitos Fundamentais e Modelos de Estado”, in: Celso Albuquerque Mello e Ricardo Lobo Torres (Dir.), Arquivos de Direitos Humanos vol. 7, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 4 e ss.
consagrados na Constituição não significa que não haja outros direitos fundamentais, até
mesmo pelo fato de que se deve levar a sério a já referida cláusula de abertura (na condição de
norma geral inclusiva14) contida no artigo 5°, § 2°, da Constituição Federal. Vale lembrar,
nesta mesma perspectiva, que sempre – mesmo antes da inclusão do polêmico § 3 ° no artigo
5° da Constituição – defendemos, acompanhando a melhor doutrina15, a hierarquia
constitucional e a fundamentalidade (neste caso “apenas” material, vez que não incorporados
ao texto constitucional) dos direitos humanos consagrados nos tratados internacionais
ratificados pelo Brasil. Que neste ponto ainda há resistências a serem superadas, resulta
evidente, visto que mesmo tendo abandonado – tardiamente - a tese da paridade entre a lei
ordinária e os tratados internacionais (mesmo daqueles versando sobre direitos humanos!), o
nosso Supremo Tribunal Federal segue outorgando aos direitos previstos nos tratados
internacionais hierarquia infraconstitucional (negando-lhes, portanto, a condição de
“verdadeiros” direitos fundamentais), embora já reconheça que tais tratados devam prevalecer
sobre qualquer norma infraconstitucional (legal) interna.
A sustentação da fundamentalidade de todos os direitos assim designados no texto
constitucional (que alcança todo o Título II e, portanto, os direitos sociais do artigo 6° e os
direitos dos trabalhadores), por sua vez, implica reconhecer pelo menos a presunção em favor
da fundamentalidade também material desses direitos e garantias, ainda que possamos ter, a
depender da orientação ideológica ou concepção filosófica professada, boas razões para
questionar tal fundamentalidade. Mesmo para os direitos do Título II (que, reitere-se, não
excluem outros, tanto fundamentais em sentido formal e material, quanto fundamentais em
sentido apenas material) a posição adotada não está dissociada de critérios de ordem material,
já que sem dúvida se cuida de posições que – independentemente de outras razões que possam
justificar a fundamentalidade no plano material e axiológico - já de partida receberam no
momento do pacto constitucional fundante a proteção e força normativa reforçada peculiar
dos direitos fundamentais pela relevância de tais bens jurídicos na perspectiva dos “pais” da
Constituição (o que, aliás, aponta para uma legitimação democrática, procedimental e
deliberativa, mas também substancial!16), decisão esta que não pode pura e simplesmente ser
14 Como bem reforça, reafirmando toda uma tradição doutrinária, Juarez Freitas. A Interpretação Sistemática
do Direito, 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005. 15 Aqui remetemos, dentre tantos, ao magistério de Flávia Piovesan, “Reforma do Judiciário e Direitos
Humanos”, in: André Ramos Tavares et al (Coord.), Reforma do Judiciário Analisada e Comentada. São Paulo: Editora Método, 2005, p. 103-105, e, mais recentemente Valério de Oliveira Mazzuoli, “O novo §3o do art. 5o da Constituição e sua Eficácia”, in: Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Estado do Rio Grande do Sul, v. 32 no 98.
16 Discutindo, ainda que não exatamente sob este ângulo, a questão da fundamentação dos direitos sociais como direitos fundamentais pelo prisma democrático (no caso, democrático-deliberativo) v., dentre outros,
desconsiderada pelos que (na condição de poderes constituídos!) devem, por estar diretamente
vinculados, assegurar a esses direitos fundamentais a sua máxima eficácia e efetividade.
Em síntese, firma-se aqui posição em torno da tese de que – pelo menos no âmbito do
sistema de direito constitucional positivo nacional – todos os direitos, tenham sido eles
expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da CF (dos direitos
e garantias fundamentais), estejam localizados em outras partes do texto constitucional ou nos
tratados internacionais regularmente firmados e incorporados pelo Brasil, são direitos
fundamentais17. Como corolário desta decisão em prol da fundamentalidade dos direitos
sociais na ordem constitucional brasileira, e por mais que se possa, e, até mesmo (a depender
das circunstâncias e a partir de uma exegese sistemática, por mais que seja possível
reconhecer eventuais diferenças de tratamento, os direitos sociais – por serem fundamentais -,
comungam do regime da dupla fundamentalidade (formal e material) dos direitos
fundamentais. Aqui, todavia, verificam-se outros problemas e outras resistências, visto que,
no todo ou em parte (mesmo dentre os que aceitam, em princípio, a tese da fundamentalidade
dos direitos sociais) existe tanto quem queira negar aos direitos sociais a aplicação do regime
jurídico pleno assegurado pela Constituição aos direitos fundamentais, quanto quem discuta o
exato conteúdo deste regime, matéria que, aliás, constitui o objeto do próximo segmento.
Cláudio Pereira de Souza Neto. Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Um estudo sobre o papel do Direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 225 e ss., sustentando que os direitos sociais são (especialmente no campo do mínimo existencial) condições fundamentais para a democracia. Nesta mesma linha de abordagem (embora uma série de divergências entre o pensamento dos autores referidos e entre esses e a nossa concepção) v., ainda, entre outros, a recente e indispensável coletânea de Marcelo Cattoni (Org). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, 2006 e, por último, a instigante contribuição de Álvaro Ricardo de Souza Cruz. Hermenêutica Jurídica e(m) Debate. O constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, especialmente o capítulo 7, onde é discutida a questão dos direitos sociais. Como contraponto, professando uma concepção de cunho mais substancialista (adotando aqui a terminologia mais habitual) v. o referencial trabalho de Lenio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Rio de Janeiro: Forense, 2004 (especialmente capítulos I a V). Do mesmo autor, já adotando uma postura crítica em relação aos excessos cometidos em nome dos princípios e valores constitucionais, e aderindo em boa parte aos críticos da assim designada ponderação (em especial os já citados Marcelo Cattoni e Àlvaro Cruz), o indispensável Verdade e Consenso, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, assim como José Adércio Leite Sampaio. Direitos Fundamentais, Belo Horizonte: Del Rey, 2004. Embora a nossa resistência às abordagens de cunho prevalentemente procedimental (o que não temos condições de desenvolver aqui), não há como desconsiderar a relevância da discussão produzida no Brasil nos últimos anos a respeito do tema, contribuindo para uma qualificação substancial do debate sobre a legitimidade e fundamentação dos direitos fundamentais e da própria ordem constitucional, a atuação do Poder Judiciário na defesa da Constituição e dos direitos fundamentais, entre outros temas que têm integrado a pauta acadêmica.
17 A respeito da abertura material dos direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, remete-se ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 90 e ss.
3 – A discussão a respeito do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais
sociais, especialmente sua aplicabilidade e eficácia
Um problema central relacionado com a própria eficácia e efetividade dos direitos
fundamentais sociais é o de estabelecer, no âmbito do marco constitucional brasileiro (e,
portanto, de modo afinado com os limites do nosso direito constitucional positivo), os
contornos do seu (dos direitos sociais) respectivo regime jurídico-constitucional, o qual, além
do que expressamente – e implicitamente - foi estabelecido pelo Constituinte, tem sido objeto
de fecundo – mas amplamente controverso - desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.
Dados os limites deste ensaio e para que possamos tecer algumas considerações a
respeito e avaliar, pelo menos, alguns dos principais argumentos manejados pelos que se opõe
aos direitos sociais e lhes querem atribuir um regime jurídico mais débil em relação aos assim
– tradicionalmente - designados direitos individuais (ou direitos civis e políticos como
preferem outros), é preciso relembrar que os direitos fundamentais somente podem ser
considerados verdadeiramente fundamentais quando e na medida em que lhes é reconhecido
(e assegurado) um regime jurídico privilegiado no contexto da arquitetura constitucional.
Neste sentido, acabou sendo incorporada ao discurso constitucional brasileiro, até mesmo
pelo fato de que o direito constitucional positivo assim o exige, a conhecida formulação de
Robert Alexy ao enfatizar que os direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto
relevantes que o seu reconhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente
à disposição das maiorias parlamentares simples18. Também por esta razão, os direitos
fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem
estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos
estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade
plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla fundamentalidade
formal e material19. Alinhando-se à tradição constitucional contemporânea, também a CF de
1988 aderiu a este modelo e, além de inserir – expressa e implicitamente - os direitos
fundamentais no seleto rol das assim designadas “cláusulas pétreas”, tornando-os limites
materiais ao poder de reforma constitucional (artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF), afirmou que
18 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, p. 406. 19 Cf., novamente, Robert Alexy, op. cit., p. 473 e ss.
as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis (artigo
5º, § 1º, da CF)20.
O problema que se coloca é justamente a resistência em relação à aplicação desses
elementos nucleares do regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais aos direitos
sociais. Com efeito, tanto há quem diga que as normas de direitos sociais não se encontram
abrangidas pelo disposto no artigo 5°, § 1°, da CF, quanto quem sustente que os direitos
sociais não operam como limites materiais ao poder de reforma constitucional, por não terem
sido expressamente referidos no artigo 60, § 4°, inciso IV, da C F.
Voltando-nos desde logo ao primeiro aspecto, é possível partir da premissa de que a
despeito da circunstância de que a localização topográfica do dispositivo poderia sugerir uma
aplicação da norma contida no art. 5º, § 1º, da CF apenas aos direitos individuais e coletivos,
o fato é que este argumento não corresponde sequer à expressão literal do dispositivo, visto
que esta utiliza a formulação genérica “normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais”, tal como consignada na epígrafe do Título II da CF, revelando que, mesmo
em se procedendo a uma interpretação meramente literal, não há como sustentar, pelo menos
não sem contestação relevante, uma redução do âmbito de aplicação da norma a qualquer das
categorias específicas de direitos fundamentais consagradas em nossa Constituição21. Em
sentido contrário, houve inclusive quem propusesse uma “nova exegese” da norma contida no
art. 5º, § 1º, sustentando a sua necessária interpretação restritiva quanto ao alcance (embora
supostamente “reforçada” quanto à eficácia) já que o Constituinte “disse mais do que o
pretendido”22, advogando, por via de conseqüência, uma interpretação nitidamente inspirada
em um peculiar e manifestamente equivocado “originalismo”, curiosamente ancorado numa
“vontade do Constituinte” presumidamente contrária ao próprio teor literal do dispositivo.
Se optarmos por uma argumentação não embasada numa interpretação de viés
eminentemente literal (textual) será possível verificar que, também uma interpretação
sistemática e teleológica, conduzirá aos mesmos resultados. Neste sentido, percebe-se, desde
logo, que o Constituinte não pretendeu (e nem é legítimo presumir isto!) excluir, os direitos
políticos, de nacionalidade do âmbito do art. 5º, § 1º, de nossa Carta, que, assim como os
direitos sociais, integram o conjunto dos direitos cuja fundamentalidade foi expressamente
afirmada na Constituição. Também não há como sustentar, no direito pátrio, a concepção
20 Neste sentido, de modo um pouco mais desenvolvido, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p.
86 e ss. 21 Cf., para maior desenvolvimento, o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais,, p. 277 e ss. 22 Cf. a posição (e crítica) de João Pedro Gebran Neto, A Aplicação Imediata dos Direitos e Garantias
Individuais São Paulo: RT, 2002, p. 153 e ss.
lusitana (lá expressamente prevista na Constituição) de acordo com a qual a norma que
consagra a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais abrange apenas os direitos,
liberdades e garantias (Título II) que, em princípio, correspondem aos direitos de defesa,
excluindo deste regime reforçado (e não apenas quanto a este aspecto) os direitos econômicos,
sociais e culturais do Título III da Constituição da República Portuguesa23. Parece evidente
que a ausência de uma distinção expressa entre o regime dos direitos sociais e os demais
direitos fundamentais, somada ao texto do § 1° do artigo 5° da CF, ainda mais em face da
circunstância de que os direitos sociais (mas pelo menos os elencados no Título II da CF) são
direitos fundamentais, deve prevalecer sobre uma interpretação notadamente amparada em
critério meramente topográfico. Por estas razões, há como sustentar, a exemplo do que tem
ocorrido no âmbito da doutrina hoje aparentemente majoritária24, a aplicabilidade imediata
(por força do art. 5º, § 1º, de nossa Lei Fundamental) de todas as normas de direitos
fundamentais constantes do Título II da Constituição (artigos. 5º a 17), bem como dos
localizados em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. É preciso
enfatizar, que a extensão do regime material da aplicabilidade imediata aos direitos fora do
catálogo não encontra qualquer óbice no texto constitucional, harmonizando, além disso, com
a concepção materialmente aberta dos direitos fundamentais consagrada, entre nós, no art. 5º,
23 O tratamento jurídico diferenciado de ambos os grupos de direitos fundamentais constitui, sem dúvida, um
dos marcos caracterizadores da posição reforçada que os direitos, liberdades e garantias assumiram em relação aos direitos sociais no âmbito do constitucionalismo lusitano. Neste sentido, v., dentre tantos, José Casalta Nabais, “Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa”, in: Boletim do Ministério da Justiça, nº 400 (1990), p. 21 e ss. Este tratamento diferenciado também se pode encontrar na Constituição Espanhola de 1978, na qual a parte significativa dos direitos fundamentais sociais de cunho prestacional está prevista no capítulo dos “principios rectores de la política social y económica”, que, por sua vez, não se encontra ao abrigo do princípio da aplicabilidade imediata dos “derechos y libertades” consagrado no artigo 53.1. Com isto, não se está negando, aos princípios da ordem econômica e social, o caráter jurídico-normativo, já que, de acordo com o artigo 9º, 1, da Constituição Espanhola “Los ciudadanos y los poderes públicos están sujetos a la Constitución y al resto del ordenamiento jurídico”, princípio que se aplica a todas as normas constitucionais. Todavia, reconhece-se – a exemplo do que leciona Francisco Fernández Segado, “La Teoría Jurídica de los Derechos Fundamentales em la Constitución Española de 1978 y su Interpretación por el Tribunal Constitucional”, in: Revista de Informação Legislativa nº 121 (1994), p. 80, que o valor normativo da Constituição “necesita ser modulado en lo concerniente a los principios rectores de la política social y económica.”
24 Neste sentido, além da linha argumentativa proposta já na nossa tese de Doutorado (Die Problematik der sozialen Grundrechte in der brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz – eine rechtsvergleichende Untersuchung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 1997, concluída em 1996), desenvolvida com mais detalhes no nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 277 e ss., v., por exemplo, Flávia Piovesan, Proteção Judicial contra Omissões Legislativas, São Paulo: RT, 1995, p. 90, que sustenta a viabilidade de uma interpretação extensiva da norma que consagra a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. No mesmo sentido, v. também Dimitri Dimoulis, “Dogmática dos Direitos Fundamentais. Conceitos Básicos”, in: Caderno do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba, ano 5, nº 2 (2001), p. 22; e, mais recentemente, o magistério de Clémerson Merlin Cléve, “O desafio da efetividade dos direitos fundamentais sociais”, in: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional”, vol. IV, p. 295.
§ 2º, da CF, que aqui não poderá ser analisada25. Da mesma forma, será objeto de
considerações adicionais, logo mais adiante, a exegese imprimida ao artigo 5°, § 1°, da CF, no
que diz com o seu possível papel para a questão da aplicabilidade e eficácia dos direitos
fundamentais, com destaque para os direitos sociais.
Já com relação à inclusão dos direitos fundamentais sociais no elenco dos limites
materiais à reforma constitucional, em se tomando como ponto de partida o enunciado literal
do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF, poder-se-ia afirmar – e, de fato, há quem sustente tal ponto
de vista – que apenas os direitos e garantias individuais do artigo 5º da CF se encontram
blindados contra a atuação do poder de reforma da Constituição. Caso fôssemos nos aferrar a
esta exegese de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos
sociais (artigos 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (artigos 12 e 13), bem
como os direitos políticos (artigos 14 a 17, com exceção do direito de voto, já previsto no
elenco do inciso IV do § 4° do art. 60) estariam todos excluídos da proteção outorgada pela
norma contida no artigo 60, § 4º, inc. IV, de nossa Lei Fundamental. Aliás, por uma questão
de coerência, até mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do
artigo 5º não seriam merecedores desta proteção. Já esta simples constatação indica que tal
interpretação dificilmente poderá prevalecer, pelo menos não na sua versão mais extremada.
Caso assim fosse, alguns dos direitos essenciais de participação política (artigo 14), a
liberdade sindical (artigo 8º) e o direito de greve (artigo 9º), apenas para citar alguns
exemplos, encontrar-se-iam em condição inferior a dos demais direitos fundamentais, não
compartilhando o mesmo regime jurídico reforçado, ao menos não na sua plenitude.
Paradoxalmente, em se levando ao extremo este raciocínio, poder-se-ia até mesmo sustentar
que apenas o mandado de segurança individual, mas não o coletivo, integra as “cláusulas
pétreas”! Neste contexto, foi inclusive sustentado que o termo “direitos e garantias
individuais”, utilizado no artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF, não foi reproduzido em nenhum
outro dispositivo da Constituição, razão pela qual mesmo com base numa interpretação literal
não se poderia confundir estes direitos individuais com os direitos individuais e coletivos do
art. 5º de nossa Lei Fundamental.26
Para os que advogam uma interpretação restritiva, abre-se, todavia, alternativa
argumentativa. Com efeito, poder-se-á sustentar, ainda, que a expressão “direitos e garantias
individuais” deve ser interpretada de tal forma, que apenas os direitos fundamentais
25 Sobre o tópico remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 90 e ss. 26 Cf. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Poder Constituinte Reformador: limites e possibilidades da revisão
constitucional brasileira, São Paulo: RT, 1993, p. 182.
equiparáveis aos direitos individuais do artigo 5º podem ser considerados “cláusula pétrea”,
ou mesmo, aos assim designados direitos civis e políticos, de titularidade individual, embora
neste caso a tutela contra a supressão por meio de emendas constitucionais alcançaria também
direitos não previstos no artigo 5°, mas excluiria os direitos sociais. A viabilidade desta
concepção esbarra na difícil tarefa de traçar as distinções entre os direitos individuais e os
não-individuais. Mesmo se considerássemos como individuais apenas os direitos
fundamentais que se caracterizam por sua função defensiva (especialmente os direitos de
liberdade), concepção que corresponde à tradição no direito constitucional pátrio, teríamos de
levar em conta a existência, nos outros capítulos do Título II da nossa Carta, de direitos e
garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa, de tal sorte que as liberdades
sociais (direitos sociais como direitos negativos), como é o caso, entre outros, do direito de
greve da liberdade de associação sindical, também se encontrariam ao abrigo das “cláusulas
pétreas”. Também por esta razão, ainda mais à míngua de um regime jurídico diferenciado
expressamente previsto na Constituição, não nos parece possível excluir os direitos sociais do
rol das assim chamadas “cláusulas pétreas”.
No direito constitucional brasileiro, a despeito dos argumentos já colacionados, há
ainda quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, integrar as
“cláusulas pétreas” da Constituição pelo fato de não poderem (ao menos na condição de
direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do artigo 5º. Além disso,
argumenta-se que, se o Constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos
sociais com a vedação da sua abolição, ele o teria feito, ou mencionando expressamente esta
categoria de direitos no artigo 60, § 4º, inc. IV, ou referindo-se de forma genérica a todos os
direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais.27 Tal
concepção e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes
argumentos: a) a Constituição brasileira, diferentemente de outras ordens constitucionais,
como é o caso da já referida Constituição da República Portuguesa, não traça uma genérica e
expressa diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que
diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese
conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem
ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se
demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função
27 Cf., por exemplo, Otávio Bueno Magano, “Revisão Constitucional”, in: Cadernos de Direito Constitucional
e Ciência Política nº 7 (1994), p. 110-1, chegando até mesmo a sustentar não apenas a possibilidade, mas inclusive a necessidade de se excluírem os direitos sociais da Constituição.
precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma
interpretação que limita o alcance das “cláusulas pétreas” aos direitos fundamentais previstos
no artigo 5º da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos
políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no artigo 60, § 4º, inc. IV, de
nossa lei Fundamental.28
Todas estas considerações revelam que apenas por meio de uma interpretação
sistemática se poderá encontrar uma resposta satisfatória no que concerne ao problema da
abrangência do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF. Que uma exegese cingida à expressão literal do
referido dispositivo constitucional não pode prevalecer parece ser evidente. Todavia, a
despeito das considerações precedentes, há que admitir que a inclusão dos direitos sociais (e
demais direitos fundamentais) no rol das “cláusulas pétreas”, em especial no que diz com a
sua justificação à luz do direito constitucional positivo, é questão que merece análise um
pouco mais detida. Já no preâmbulo de nossa Constituição encontramos referência expressa
no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça
constitui objetivo permanente de nosso Estado. Além disso, não há como negligenciar o fato
de que nossa Constituição consagra a idéia de que constituímos um Estado democrático e
social de Direito, o que transparece claramente em boa parte dos princípios fundamentais,
especialmente no art. 1º, incisos I a III, assim como no artigo 3º, incisos I, III e IV. Com base
nestas breves considerações, verifica-se, desde já, a íntima vinculação dos direitos
fundamentais sociais com a concepção de Estado consagrada pela nossa Constituição, sem
olvidar que tanto o princípio do Estado Social quanto os direitos fundamentais sociais,
integram os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa Constituição, razão pela qual já
se sustentou que os direitos sociais (assim como os princípios fundamentais) poderiam ser
considerados – mesmo não estando expressamente previstos no rol das “cláusulas pétreas” –
autênticos limites materiais implícitos à reforma constitucional.29 Poder-se-á argumentar,
ainda, que a expressa previsão de um extenso rol de direitos sociais no título dos direitos
fundamentais seria, na verdade, destituída de sentido, caso o Constituinte, ao mesmo tempo,
lhes tivesse assegurado proteção jurídica diminuída.
28 Não esqueçamos, como oportunamente averbou Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 146 e ss., que o direito à nacionalidade e o direito à cidadania – este, por sua vez, umbilicalmente ligado ao primeiro, como verdadeiro direito a ter direitos –, fundamentam o vínculo entre o indivíduo e determinado Estado, colocando o primeiro sob a proteção do segundo e de seu ordenamento jurídico, razão pela qual não nos parece aceitável que posição jurídica fundamental de tal relevância venha a ser excluída do âmbito de proteção das “cláusulas pétreas.”
29 Esta a pertinente lição de Raul Machado Horta, “Natureza, Limitações e Tendências da Revisão Constitucional”, in: Revista Brasileira de Estudos Políticos nº 78-79 (1994), p. 14-5.
Para além do exposto, verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em
nossa Constituição (mesmo os que não integram o Título II) são, na verdade e em última
análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva. É o
indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à
saúde, assistência social, aposentadoria, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente
saudável e equilibrado (art. 225 da CF), em que pese seu habitual enquadramento entre os
direitos da terceira dimensão, pode ser reconduzido a uma dimensão individual, pois mesmo
um dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente delimitável de pessoas
(indivíduos) gera um direito à reparação para cada prejudicado. Ainda que não se queira
compartilhar este entendimento, não há como negar que nos encontramos diante de uma
situação de cunho notoriamente excepcional, que em hipótese alguma afasta a regra geral da
titularidade individual da absoluta maioria dos direitos fundamentais. Os direitos e garantias
individuais referidos no artigo 60, § 4º, inc. IV, da nossa Lei Fundamental incluem, portanto,
os direitos sociais e os direitos da nacionalidade e cidadania (direitos políticos)30.
Contestando esta linha argumentativa, Gustavo Costa e Silva, sustenta que a
“dualidade entre direitos “individuais” e “sociais” nada tem a ver com a titularidade,
remetendo, em verdade, à vinculação de uns e outros a diferentes estágios da formação do
ethos do Estado constitucional,” no caso – tal como segue argumentando o autor – na
circunstância de que os direitos individuais estão vinculados ao paradigma do Estado liberal e
individualista, e não ao estado social, de cunho solidário.31 Todavia, ainda que se reconheça a
inteligência da crítica (o autor, de qualquer sorte, acaba reconhecendo que os direitos sociais
integram os limites materiais implícitos), parece-nos que a resposta já foi fornecida,
designadamente quando apontamos para o fato de que não é possível extrair da nossa Carta
Magna um regime diferenciado – no sentido de um regime jurídico próprio – entre os direitos
de liberdade (direitos individuais) e os direitos sociais, mesmo que entre ambos os grupos de
direitos, especialmente entre a sua dimensão negativa e positiva, existam diferenças no que
diz com o seu objeto e função desempenhada na ordem jurídico-constitucional. Além do mais,
em momento algum nos limitamos a colacionar o argumento da titularidade individual de
todos os direitos como fundamento exclusivo de nossa posição, já que esta constitui apenas
uma razão entre outras.
30 Esta a posição que temos sustentado já desde a primeira edição (1998) do nosso A eficácia dos Direitos
Fundamentais, p. 424 e ss. 31 Cf. Gustavo Just da Costa e Silva. Os Limites da Reforma Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.
124 e ss. (citação extraída da p. 129).
Outro argumento utilizado pelos que advogam uma interpretação restritiva das
“cláusulas pétreas” diz com a existência de diversas posições jurídicas constantes no Título II
de nossa Constituição que não são, na verdade, merecedoras do status peculiar aos
“verdadeiros” direitos fundamentais, razão pela qual há quem admita até mesmo a sua
supressão por meio de uma emenda constitucional32, linha argumentativa que guarda ligação
direta com a discussão sobre a própria fundamentalidade dos direitos sociais. Muito embora
não de modo exatamente igual, Oscar Vieira Vilhena, em iluminado ensaio sobre o tema,
prefere trilhar caminho similar, ao sustentar, em síntese, que apenas as cláusulas que designa
de superconstitucionais (isto é, os princípios – incluindo os direitos fundamentais essenciais –
que constituem a reserva de justiça constitucional de um sistema) encontram-se imunes à
supressão pela reforma da Constituição, não advogando, de tal sorte, a exclusão prévia de
qualquer direito ou princípio do elenco dos limites materiais.33 No nosso sentir, em que pese o
cunho sedutor de tal linha argumentativa34, tal tese apenas poderia prevalecer caso
partíssemos da premissa de que existem direitos apenas formalmente fundamentais, e que
estes, justamente por serem fundamentais em sentido meramente formal, poderiam ser
suprimidos da Constituição, o que, consoante já assinalado, não corresponde à concepção
majoritária (que, é preciso reconhecer, nem sempre é, por ser majoritária, a correta!) no
âmbito da doutrina, de acordo com a qual tal distinção (em si já questionável) não afasta a
fundamentalidade do direito e tampouco, pelo menos em termos gerais, infirma as
conseqüências daí decorrentes. De qualquer modo, é de questionar-se a possibilidade de
qualquer um dos poderes constituídos, no mais das vezes o Poder Judiciário, dada sua
prerrogativa de controlar a opção dos demais órgãos estatais, decidir qual direito é, ou não,
formal e materialmente fundamental, decisão esta que, em última análise, importaria numa
afronta à vontade do Poder Constituinte, que, salvo melhor juízo, detém o privilégio de
deliberar sobre o que é, ou não, fundamental. Além disso, correr-se-ia o sério risco de
32 Este o entendimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Significação e Alcance das Cláusulas Pétreas”,
in: Revista de Direito Administrativo nº 202 (1995), p. 16, que, no entanto, reconhece que o art. 60, § 4º, inc. IV, da nossa Constituição abrange todos os direitos fundamentais, e não apenas os direitos individuais e coletivos do art. 5º.
33 Cf. Oscar Vilhena Vieira, A Constituição e sua Reserva de Justiça, São Paulo: Malheiros, 1999, p. 222 e ss., onde desenvolve seu pensamento, que aqui vai reproduzido em apertadíssima síntese. Registre-se, contudo, que o ilustre jurista não exclui os direitos sociais da proteção contra eventuais reformas, notadamente quando estiverem em causa os direitos sociais básicos, tais como os direitos à alimentação, moradia e educação, já que “essenciais à realização da igualdade e da dignidade entre os cidadãos.” (op. cit., p. 321).
34 Também neste sentido, questionando a tese de que todos os direitos fundamentais do Título II sejam “cláusulas pétreas”, embora privilegiando uma justificativa democrático-deliberativa, o indispensável aporte de Rodrigo Brandão, Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas Pétreas, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
eliminar direitos “autenticamente” fundamentais e mesmo direitos previstos no próprio artigo
5° da CF, circunstância que deveria ser suficiente para rechaçar este tipo de argumento.
Por derradeiro, cumpre relembrar que a função precípua das assim denominadas
“cláusulas pétreas” é a de impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição,
encontrando-se, neste sentido, a serviço da preservação da identidade constitucional, formada
justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte. Isto se manifesta com
particular agudeza no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que
tendencial, implicaria, em boa parte dos casos, simultaneamente uma agressão (em maior ou
menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF). Assim, uma
interpretação restritiva da abrangência do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF não nos parece ser a
melhor solução, ainda mais quando os direitos fundamentais inequivocamente integram o
cerne da nossa ordem constitucional.
Feita a sustentação pelo menos sumária da tese de que os direitos sociais são também
protegidos contra uma supressão (e esvaziamento) por parte do poder de reforma
constitucional, não há como negar que uma interpretação restritiva das “cláusulas pétreas”
tem por objetivo impedir uma petrificação ampla do texto constitucional, impedindo reformas
necessárias. Tal risco (o de uma indesejável galvanização da Constituição) acabou sendo, pelo
menos em termos gerais, afastado pelo próprio Constituinte, ao explicitar (no § 4° do artigo
60), que apenas uma efetiva ou tendencial abolição das decisões fundamentais tomadas pelo
Constituinte se encontra vedada, de tal sorte que, em princípio e sempre preservado o núcleo
essencial do princípio ou direito fundamental em causa, não se vislumbra qualquer obstáculo
à necessária adaptação às exigências de um mundo em constante transformação, temática que
todavia aqui não iremos abordar35. Além disso, a evolução constitucional desde 1988 tem
revelado que, a despeito do grande número de reformas, a amplitude do catálogo dos direitos
fundamentais, mesmo na esfera dos direitos sociais, não tem sido, pelo menos por ora,
submetida a ataques exitosos, visto que, embora se possa falar, aqui e ali, de alguma restrição
merecedora de atenção e crítica, o processo de constante reforma constitucional tem mantido
íntegro o projeto original do Constituinte de 1988, pelo menos no que diz com os direitos
fundamentais sociais.
35 Aqui remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 430 e ss. Sobre o tema, adotando, neste
ponto, posição similar, v. também Rodrigo Brandão, Direitos Fundamentais, Democracia e Cláusulas Pétreas, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 283 e ss., ainda que, notadamente quanto ao fato de nem todos os direitos fundamentais serem “cláusulas pétreas” (segundo o autor ora citado), já termos enfatizado nossa posição divergente.
De outra parte, o reconhecimento de um regime jurídico substancialmente uniforme
(especialmente no concernente à abertura material, aplicabilidade direta e proteção) para a
totalidade dos direitos fundamentais, revela que, entre nós, não há que falar – pelo menos
assim segue sendo o nosso entendimento - numa espécie de “esquizofrenia constitucional”36,
decorrente de um tratamento diferenciado – dicotômico e mesmo conflitante - dos direitos
sociais, no sentido de estarem sujeitos, de forma generalizada, a um regime jurídico distinto e
menos robusto em relação aos demais direitos fundamentais, em particular os assim
designados direitos civis e políticos.
4 – Os direitos sociais como direitos exigíveis: revisitando alguns aspectos ligados à
efetividade dos direitos sociais, em especial, pela via jurisdicional
Embora tenhamos sustentado que também as normas definidoras de direitos sociais
sejam dotadas de aplicabilidade imediata, isto não responde uma série de outras indagações,
especialmente a respeito de quais os limites da vinculação dos órgãos estatais e mesmo dos
particulares aos direitos fundamentais, assim como, em relação ao problema de quais as
posições jurídicas subjetivas exigíveis que podem ser diretamente extraídas da previsão
constitucional de determinado direito social. É precisamente nesta esfera que se situam uma
série de outras importantes e sempre atuais objeções aos direitos sociais, especialmente no
que diz com a sua efetivação37. Certamente é a assim designada “reserva do possível”, que,
por sua vez, diz respeito a uma série de outras “resistências” aos direitos sociais como direitos
subjetivos, que tem sido o pivô da maioria das discussões, que vão desde a delimitação do
conteúdo em si da reserva do possível, até os limites da atuação jurisdicional nesta matéria,
designadamente quando esta esbarra em escassez de recursos, limitações orçamentárias e
obstáculos de outra natureza.
Justamente pelo fato de os direitos sociais na sua condição (como vimos, não
exclusiva!) de direitos a prestações terem por objeto prestações estatais vinculadas
diretamente à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens
materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante. Já os
direitos de defesa, por serem, na sua condição de direitos subjetivos, em primeira linha 36 Aqui estamos nos valendo da expressão utilizada por Vasco Pereira da Silva, professor da Universidade de Lisboa, por ocasião de conferência proferida em seminário internacional sobre direitos sociais realizado sob os auspícios da Procuradoria do Município do Rio de Janeiro, em novembro de 2007. 37 Embora não se trate de uma relação exaustiva, vale conferir as bem lembradas objeções colacionadas por José Adércio Sampaio, Direitos Fundamentais. Retórica e Historicidade, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 264 e ss.
dirigidos a uma conduta omissiva (atuando como proibições de intervenção), são geralmente
considerados destituídos desta dimensão econômica, na medida em que o bem jurídico que
protegem (vida, intimidade, liberdade, etc.) pode ser assegurado, na dimensão negativa ora em
destaque – como direito subjetivo exigível em Juízo – independentemente das circunstâncias
econômicas, ou, pelo menos, sem a alocação direta, por força de decisão judicial, de recursos
econômicos para este efeito. De qualquer modo, é preciso que se deixe consignado, que a
referida “irrelevância econômica” dos direitos de defesa (negativos) não dispensa alguns
comentários e esclarecimentos mais detidos. Com efeito, já se fez menção que todos os
direitos fundamentais (inclusive os assim chamados direitos de defesa), na esteira da obra de
Holmes e Sunstein e de acordo com a posição entre nós sustentada por autores como Gustavo
Amaral38 e Flávio Galdino39, são, de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que
também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem, para sua tutela e
promoção, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre
abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e
efetivação de uma maneira geral. Assim, não há como negar que todos os direitos
fundamentais podem implicar “um custo”, de tal sorte que esta circunstância não se limita
nem aos direitos sociais na sua dimensão prestacional. Apesar disso, seguimos convictos de
que, para o efeito de se admitir a imediata aplicação pelos órgãos do Poder Judiciário, o “fator
custo” de todos os direitos fundamentais, nunca constituiu um elemento, por si só e de modo
eficiente, impeditivo da efetivação pela via jurisdicional. É exatamente neste sentido que deve
ser tomada a referida “neutralidade” econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a
sua eficácia jurídica (ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos
negativos) e a efetividade, naquilo que depende da possibilidade de efetivação pela via
jurisdicional, não tem sido colocada na dependência da sua possível relevância econômica. Já
no que diz com os direitos sociais a prestações, seu “custo” assume especial relevância no
âmbito de sua eficácia e efetivação40, significando, pelo menos para grande parte da doutrina,
que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se aloque algum
recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a
possibilidade de os órgãos jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das
prestações reclamadas.
38 Cf. Gustavo Amaral. Direito, Escassez & Escolha, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 69 e ss. 39 Cf. Flávio Galdino, Introdução à Teoria do Custo dos Direitos: direitos não nascem em árvores, Rio de
Janeiro: Lúmen Juris, 2005, p. 147 e ss. 40 Neste sentido também, entre outros e por último, Virgílio Afonso da Silva, in: Direitos Sociais, op. cit., p. 591 e ss.
Por outro lado, se a regra da relevância econômica dos direitos sociais na condição de
direitos a prestações pode ser aceita sem maiores reservas, há que questionar, todavia, se
efetivamente todos os direitos desta natureza apresentam dimensão econômica relevante,
havendo, neste contexto, quem sustente a existência de exceções, apontado para direitos
sociais a prestações economicamente neutros (não implicam a alocação de recursos para sua
implementação), no sentido de que há prestações materiais condicionadas ao pagamento de
taxas e tarifas públicas41, além de outras que se restringem ao acesso aos recursos já
disponíveis. É preciso observar, contudo, que, mesmo nas situações apontadas, ressalta uma
repercussão econômica ao menos indireta, uma vez que até o já disponível resultou da
alocação e aplicação de recursos, sejam materiais, humanos ou financeiros em geral, oriundos,
em regra, da receita tributária e outras formas de arrecadação do Estado.
Diretamente vinculada a esta característica dos direitos fundamentais sociais a
prestações está a problemática da efetiva disponibilidade do seu objeto, isto é, se o
destinatário da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada (isto é, de
prestar o que a norma lhe impõe seja prestado), encontrando-se, portanto, na dependência da
real existência dos meios para cumprir com sua obrigação42. Já há tempo se averbou que o
Estado dispõe apenas de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações
reconhecidas pelas normas definidoras de direitos fundamentais sociais43, de tal sorte que a
limitação dos recursos, segundo alguns, opera como autêntico limite fático à efetivação desses
41 Cf. Dietrich Murswiek, “Grundrechte als Teilhaberechte, soziale Grundrechte” in: J. Isensee-P. Kirchhof
(Org.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. V, p. 254. 42 Assim, entre nós, sem pretensão de esgotar as referências, José Reinaldo de Lima Lopes, “Direito Subjetivo e
Direitos Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito” in: José Eduardo Faria (Org.) Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, São Paulo: Malheiros, 1994, p. 131. No mesmo sentido, v. Gilmar Ferreira Mendes, “A Doutrina Constitucional e o Controle de Constitucionalidade como Garantia da Cidadania – Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro” in: Caderno de Direito Tributário e Finanças Públicas nº 3 (1993), p. 28, ressaltando que a efetividade dos direitos sociais se encontra na dependência da atual disponibilidade de recursos por parte do destinatário da pretensão. Também Andreas Krell, “Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais” in: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). A Constituição Concretizada – Construindo Pontes para o Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 40 e ss., aceita esta dependência dos direitos sociais prestacionais da existência de recursos para sua efetivação, sem, contudo, negar-lhes eficácia e efetividade. Sobre o tema, v., ainda e dentre tantos (como é o caso das obras de Gustavo Amaral e Flávio Galdino, já referidas, além das contribuições de Ana Paula Barcellos e Ricardo Lobo Torres sobre o tema, igualmente citadas neste artigo), a recente coletânea de Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Timm (Org), Direitos Fundamentais, Orçamento e “Reserva do Possível”, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, contendo um representativo conjunto de ensaios a respeito do tema. Por último, confira-se a indispensável e já referida coletânea sobre os direitos sociais (Editora Lumen Juris, 2008) coordenada por Cláudio Pereira Souza Neto e Daniel Sarmento.
43 Cf. Georg Brunner, “Die Problematik der sozialen Grundrechte” in: Recht und Staat Nr. 404-405, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen, 1971, p. 14 e ss.
direitos44. Distinta (embora conexa) da disponibilidade efetiva dos recursos, ou seja, da
possibilidade material de disposição, situa-se a problemática ligada à possibilidade jurídica de
disposição, já que o Estado (assim como o destinatário em geral) também deve ter a
capacidade jurídica, em outras palavras, o poder de dispor, sem o qual de nada lhe adiantam
os recursos existentes45. Encontramo-nos, portanto, diante de duas facetas diversas, porém
intimamente entrelaçadas, que caracterizam os direitos fundamentais sociais prestacionais. É
justamente em virtude destes aspectos que se passou a sustentar a colocação dos direitos
sociais a prestações sob o que se convencionou designar de uma “reserva do possível”, que,
compreendida em sentido amplo, abrange mais do que a ausência de recursos materiais
propriamente ditos indispensáveis à realização dos direitos na sua dimensão positiva46.
A utilização da expressão “reserva do possível” tem, ao que se sabe, origem na
Alemanha, especialmente a partir do início dos anos de 197047. De acordo com a noção de
reserva do possível, a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a
reserva das capacidades financeiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais
dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos. A partir disso, a “reserva do
possível” (Der Vorbehalt des Möglichen) passou a traduzir (tanto para a doutrina majoritária,
quanto para a jurisprudência constitucional na Alemanha) a idéia de que os direitos sociais a
prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do
Estado, disponibilidade esta que estaria localizada no campo discricionário das decisões
governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público48. Tais noções foram
acolhidas e desenvolvidas na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha,
que, desde o paradigmático caso numerus clausus, versando sobre o direito de acesso ao
ensino superior, firmou entendimento no sentido de que a prestação reclamada deve
corresponder àquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade. Com efeito, 44 Esta, dentre outros, a lição de Christian Starck, “Staatliche Organisation und Staatliche Finanzierung als
Hilfen zu Grundrechtsverwirklichungen?” in: Bundesverfassungsgericht und Grundgesetz aus Anla des 25 jährigen Bestehens des Bundesverfassungsgerichts, vol. II, Tübingen: J. C. Mohr (Paul Siebeck), 1976, p. 518.
45 A este respeito, v. também Georg Brunner, op. cit., p. 16. Entre nós, tal dimensão cresce em relevo se levarmos em conta o problema da repartição de competência no âmbito do Estado Federal e, acima de tudo, na repartição das receitas tributárias e sua afetação e aplicação, temática que aqui não há como desenvolver e da qual se tem ocupado consistente doutrina, com destaque para as recentes coletâneas sobre os Direitos Fundamentais, Orçamento e Reserva do Possível, organizada por Ingo Sarlet e Luciano Timm, e sobre os Direitos Sociais,coordenada por Cláudio Souza Neto e Daniel Sarmento, ambas já referidas.
46 Nesse sentido, acompanhando o nosso pensamento, mas com especial atenção ao direito à saúde, v. recente contribuição de Mariana Filchtiner Figueiredo, Direito Fundamental à Saúde, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 131 e ss. Por último, igualmente seguindo esta linha, v. Daniel Sarmento, “A Proteção Judicial dos Direitos Sociais: Alguns Parâmetros Éticos e Jurídicos”, in: Direitos Sociais, p. 569 e ss.
47 Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 1999, p. 108.
48 Andreas Krell, op. cit., p. 52.
mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar
em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável49. Assim,
poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social
a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos
suficientes para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável também depende – de
acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã – da ponderação por parte do
legislador50.
A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível,
especialmente se compreendida em sentido mais amplo, apresenta pelo menos uma dimensão
tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos
direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que
guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias,
orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama
equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional
federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações
sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em
especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Todos
os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais
(por exemplo, os da igualdade e subsidiariedade), exigindo, além disso, um equacionamento
sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima
eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir não como barreira
instransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais
de cunho prestacional.
Por outro lado, não nos parece correta a afirmação de que a reserva do possível seja
elemento integrante dos direitos fundamentais51, como se fosse parte do seu núcleo essencial
ou mesmo como se estivesse enquadrada no âmbito do que se convencionou denominar de
49 Cf. BVerfGE 33, 303 (333). 50 Esta a ponderação de Dietrich Wiegand, “Sozialstaatsklausel und soziale Teilhaberechte” in: DVBL 1974, p.
657. 51 Neste sentido, pelo menos, a recente afirmação de Jairo Schäfer, Classificação dos Direitos Fundamentais:
do Sistema Geracional ao Sistema Unitário – uma Proposta de Compreensão, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 67. Nas palavras do autor, a reserva do possível “é um elemento que se integra a todos os direitos fundamentais”. Em verdade, o próprio autor – na esteira da doutrina precedente – reconhece na reserva do possível uma condicionante jurídica ou concreta à efetivação dos direitos, de tal sorte que, a despeito da contradição, resulta claro que o autor vislumbra na reserva do possível um limite fático e jurídico que incide, em princípio, em relação a todos os direitos fundamentais.
limites imanentes dos direitos fundamentais52. A reserva do possível constitui, em verdade
(considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos
fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos
direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da
invocação – desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo
existencial em relação a todos os direitos fundamentais – da indisponibilidade de recursos
com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental53.
Neste contexto, há quem sustente que, por estar em causa uma verdadeira opção
quanto à afetação material dos recursos, também há de ser tomada uma decisão sobre a
aplicação destes, que, por sua vez, depende da conjuntura socioeconômica global, partindo-se,
neste sentido, da premissa de que a Constituição não oferece, ela mesma, os critérios para esta
decisão, deixando-a a cargo dos órgãos políticos (de modo especial ao legislador)
competentes para a definição das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica54. É
justamente por esta razão que a realização dos direitos sociais na sua condição de direitos
subjetivos a prestações – de acordo com oportuna lição de Gomes Canotilho – costuma ser
encarada como sendo sempre também um autêntico problema em termos de competências
constitucionais, pois, segundo averba o autor referido, “ao legislador compete, dentro das
reservas orçamentais, dos planos económicos e financeiros, das condições sociais e
económicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, económicos e
culturais”55.
Como dá conta a problemática posta pelos que apontam para um “custo dos direitos”
(por sua vez, indissociável da assim designada “reserva do possível”), a crise de efetividade
vivenciada com cada vez maior agudeza pelos direitos fundamentais de todas as dimensões
está diretamente conectada com a maior ou menor carência de recursos disponíveis para o
atendimento das demandas em termos de políticas sociais. Com efeito, quanto mais diminuta
a disponibilidade de recursos, mais se impõe uma deliberação responsável a respeito de sua
destinação, o que nos remete diretamente à necessidade de buscarmos o aprimoramento dos
52 Sobre os assim chamados limites imanentes dos direitos fundamentais v., entre nós, especialmente Jane Reis Gonçalves Pereira, Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 131 e ss., assim como, por último, Virgílio Afonso da Silva, “O Conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais”, Revista de Direito do Estado, Ano 1, n. 4, out/dez 2006, p. 23-52, síntese da sua impactante tese de titularidade apresentada na USP, em vias de ser publicada. 53 Cf. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, especialmente p. 364 e ss. 54 Neste sentido, posiciona-se José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 200 e ss. 55 Cf. Joaquim José Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra: Coimbra
Editora, 1982, p. 369.
mecanismos de gestão democrática do orçamento público56, assim como do próprio processo
de administração das políticas públicas em geral, seja no plano da atuação do legislador, seja
na esfera administrativa, como bem destaca Rogério Gesta Leal57, o que também diz respeito
à ampliação do acesso à justiça como direito a ter direitos capazes de serem efetivados e, além
disso, envolve a discussão em torno da necessidade de evitar interpretações excessivamente
restritivas no que diz com a legitimação do Ministério Público e das organizações sociais para
atuar na esfera da efetivação também dos direitos sociais58. Neste contexto, é de saudar a
doutrina que, desde que ressalvada a possibilidade de uma tutela individual, tem advogado
um maior investimento e até mesmo uma preferência da tutela coletiva, com o intuito de
reduzir os diversos efeitos colaterais (os excessos e inconsistências dos quais nos fala Luís
Roberto Barroso59), resultantes especialmente da litigância individual descontrolada em
matéria de prestações sociais, assegurando, por esta via (da ação coletiva) um tratamento mais
isonômico e racional, além de evitar ao máximo o casuísmo, a insegurança, que implicam
impacto sobre o sistema de políticas públicas, nem sempre compatível com o objetivo de
assegurar a máxima efetividade dos direitos fundamentais para a maior parte das pessoas60.
Além disso, assume caráter emergencial uma crescente conscientização por parte dos
órgãos do Poder Judiciário, de que não apenas podem como devem zelar pela efetivação dos
direitos fundamentais sociais, mas que, ao fazê-lo, haverão de obrar com máxima cautela e
responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem) um direito subjetivo a
determinada prestação social, ou mesmo quando declararem a inconstitucionalidade de
56 Sobre a participação democrática, e de modo geral, o controle social do orçamento público e da atuação do
poder público na consecução das metas constitucionalmente fixadas, v., entre nós e dentro outros, o instigante ensaio de Fernando Facury Scaff, “Controle Público e Social da Atividade Econômica”, in: Anais da XVII Conferência Nacional da OAB, vol. I, Rio de Janeiro, 1999, p. 925-941, bem como, mais recentemente, a monografia de Adriana da Costa Ricardo Schier, A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de Reclamação, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
57 Cf. Rogério Gesta Leal, Estado, Administração Pública e Sociedade: Novos Paradigmas, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, especialmente p. 57 e ss., cuidando do tema à luz da teoria discursiva e da concepção de uma democracia deliberativo-procedimental de matriz Habermasiana.
58 Sobre o tópico, designadamente a respeito da atuação do Ministério Público nesta seara, v., entre outros, o recente estudo de Pedro Rui da Fontoura Porto, Direitos Fundamentais Sociais. Considerações acerca da legitimidade política e processual do Ministério Público e do sistema de justiça para sua tutela, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
59 Cf. Luís Roberto Barroso, “Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial”, in: Direitos Sociais, p. 876. 60 No mesmo sentido, além da contribuição de Luís Roberto Barroso, já citada, os aportes de Ana Paula Barcellos, “O direito a prestações de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens coletiva e abstrata”, in: Direitos Sociais, p. 815 e ss.; Daniel Sarmento, “A proteção judicial dos direitos sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos”, in: Direitos Sociais, p. 883 e ss.; Cláudio Pereira Souza Neto, “ A justiciabilidade dos direitos sociais: críticas e parâmetros”, in: Direitos Sociais, p. 543-44; Virgílio Afonso da Silva, “O Judiciário e as Políticas Públicas: entre transformação social e obstáculo à realização dos direitos sociais”, in: Direitos Sociais, p. 597 e ss., embora este último adote posicionamento ainda mais restritivo em relação às demandas individuais.
alguma medida estatal com base na alegação de uma violação de direitos sociais, sem que tal
postura, como já esperamos ter logrado fundamentar, venha a implicar necessariamente uma
violação do princípio democrático e do princípio da separação dos Poderes. Neste sentido (e
desde que assegurada atuação dos órgãos jurisdicionais, quando e na medida do necessário)
efetivamente há que dar razão a Holmes e Sunstein quando afirmam que levar direitos a sério
(especialmente pelo prisma da eficácia e efetividade) é sempre também levar a sério o
problema da escassez61. Parece-nos oportuno apontar aqui (mesmo sem condições de
desenvolver o ponto) que os princípios da moralidade e eficiência62, mas também os
correlatos princípios (e deveres) de publicidade e transparência63, que direcionam a atuação da
administração pública em geral, assumem um papel de destaque nesta discussão, notadamente
quando se cuida de administrar a escassez de recursos e potencializar a efetividade dos
direitos sociais.
Neste contexto, dada a íntima conexão desta problemática com a discussão em torno
da assim designada “reserva do possível” na condição de limite fático e jurídico à efetivação
judicial (e até mesmo política) de direitos fundamentais – e não apenas dos direitos sociais,
consoante já frisado – vale destacar que também resta abrangida na obrigação de todos os
órgãos estatais e agentes políticos a tarefa de maximizar os recursos e minimizar o impacto da
reserva do possível. Isso significa, em primeira linha, que se a reserva do possível há de ser
encarada com reservas64, também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível
não são, em si mesmas, necessariamente uma falácia. O que tem sido, de fato, falaciosa, é a
forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como
argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no
campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social. Assim, levar a
61 Cf. Stephen Holmes e Cass Sunstein, The Cost of Rights. Why Liberty Depends on Taxes, New York –
London: W. W. Norton & Company, 1999, p. 94 (“Taking rights seriously means taking scarcity seriously”), bem como, de modo geral, p. 87 e ss., onde os autores demonstram como a escassez afeta as liberdades e discutem o papel do Poder Judiciário na imposição de encargos ao poder público notadamente no que diz com a alocação dos recursos. Entre nós, embora não se esteja aqui a aderir (assim como no caso de Holmes & Sunstein) às conclusões dos autores, vale conferir, dentre tantas, as obras já referidas de Gustavo Amaral, Direito, Escassez & Escolha e de Flávio Galdino, Introdução à Teoria do Custo dos Direitos, mas também, a recente coletânea por nós organizada em parceria com Luciano Benetti Timm (Direitos Fundamentais, Orçamento e “Reserva do Possível”), igualmente já referida.
62 A respeito da relevância e da operatividade do princípio da eficiência no campo da efetivação de direitos fundamentais, notadamente dos direitos sociais, v., entre outros, Flávio Galdino, Introdução à Teoria dos Custos dos Direitos, p. 255 e ss., ainda que se possa discordar do autor no que diz com alguns aspectos de sua proposta teórica, o que aqui não será objeto de desenvolvimento.
63 Aqui assumem especial relevo os deveres de informação e o correlato direito do cidadão às prestações (informações) correspondentes, bem apontado especialmente por Ana Paula Barcellos no seu artigo que integra a presente coletânea. 64 Cf. a oportuna advertência de Juarez Freitas, A Interpretação Sistemática do Direito, 3ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 211.
sério a “reserva do possível” (e ela deve ser levada a sério, embora sempre com as devidas
reservas) significa também, especialmente – mas não exclusivamente! - em face do sentido do
disposto no artigo 5º, § 1º, da CF, que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta
efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da
eficiente aplicação dos mesmos65. Por outro lado, para além do fato de que o critério do
mínimo existencial – como parâmetro do reconhecimento de direitos subjetivos a prestações –
por si só já contribui para a “produtividade” da reserva do possível66, há que explorar outras
possibilidades disponíveis na nossa ordem jurídica e que, somadas e bem utilizadas,
certamente haverão de reduzir de modo expressivo, se não até mesmo neutralizar, o seu
impacto, inclusive no que diz com prestações que transcendam a garantia do mínimo
existencial.
Neste contexto, também assume relevo o já referido princípio da proporcionalidade,
que deverá presidir a atuação dos órgãos estatais e dos particulares, seja quando exercem
função tipicamente estatal, mesmo que de forma delegada (com destaque para a prestação de
serviços públicos)67 seja aos particulares de um modo geral68. Além disso, nunca é demais
recordar que a proporcionalidade haverá de incidir na sua dupla dimensão como proibição do
65 Neste sentido v. também, igualmente passando a trilhar esta linha de pensamento, Cláudio Pereira de Souza Neto, “A justiciabilidade dos Direitos Sociais: Críticas e Parâmetros”, in: Direitos Sociais, p. 545, assim como Daniel Sarmento, in: Direitos Sociais, op. cit., p. 66 Enfatizando que não há como ignorar a contingência da limitação de recursos, mas relativizando a sua
incidência no campo do mínimo existencial, além de apontar para a necessidade de priorização das destinações orçamentárias, v., mais uma vez, Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, especialmente p. 236 e ss.
67 Sem que aqui se possa discorrer sobre a natureza, função e mesmo o controle da prestação de serviços públicos com base nos direitos fundamentais, registra-se ser no mínimo questionável a afirmação de que, embora os serviços públicos sejam essenciais ao exercício de alguns direitos fundamentais, não há um direito de acesso aos serviços públicos, como parece afirmar Alexandre Santos de Aragão, “Serviços Públicos e Direitos Fundamentais”, in: Daniel Sarmento; Flávio Galdino (org.). Direitos Fundamentais: Estudos em Homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 3. Com efeito, considerando-se que a prestação de serviços públicos, especialmente os enquadráveis como essenciais (sendo, de qualquer sorte, discutível a existência de serviço não essencial no contexto do Estado social e democrático de Direito na sua feição atual), diz diretamente com a efetiva fruição dos direitos fundamentais na sua dupla dimensão negativa e positiva (basta recordar os exemplos da segurança pública, do acesso à justiça, do saneamento básico, do fornecimento de energia, bem como das prestações em matéria de educação e de saúde, entre tantos outros) no mínimo haveria de se reconhecer um direito fundamental a todos os serviços públicos essenciais. De todo o modo, a despeito da divergência apontada, o próprio autor referido, em seu importante e culto ensaio, não deixa de enfatizar que o “fundamento último da qualificação jurídica de determinada atividade como serviço público é ser pressuposto da coesão social e geográfica de determinado país e da dignidade dos seus cidadãos” (op. cit., p. 2).
68 Sobre o tema, especialmente no que diz com os direitos fundamentais sociais, v. especialmente Daniel Sarmento, Direitos Fundamentais e Relações Privadas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p.332 e ss., e, por último, Ingo Wolfgang Sarlet, “Direitos Fundamentais Sociais, Mínimo Existencial e Direito Privado”, in: Revista de Direito do Consumidor n° 61, janeiro-março de 2007, p. 90 e ss.
excesso e de insuficiência69, além de, nesta dupla acepção, atuar sempre como parâmetro
necessário de controle dos atos do poder público, inclusive dos órgãos jurisdicionais,
igualmente vinculados pelo dever de proteção e efetivação dos direitos fundamentais. Isto
significa, em apertadíssima síntese, que os responsáveis pela efetivação de direitos
fundamentais, inclusive e especialmente no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência de
proteção e promoção70 (em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e administrador)
causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar os critérios parciais da adequação
(aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada), necessidade (menor
sacrifício do direito restringido) e da proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da
equação custo-benefício – para alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os
meios e os fins), respeitando sempre o núcleo essencial do(s) direito(s) restringido(s), mas
também não poderão, a pretexto de promover algum direito, desguarnecer a proteção de
outro(s) no sentido de ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de
garantia do direito. Neste contexto, vale o registro de que a proibição de insuficiência assume
particular ênfase no plano da dimensão positiva (prestacional) dos direitos fundamentais, o
que remete, por sua vez, à questão do mínimo existencial, que volta a assumir um lugar de
destaque também nesta seara, embora não se possa aqui desenvolver mais tais aspectos71.
Além do mais, convém destacar que aqui se revela possível a aplicação – cautelosa - de
algumas das propostas oriundas da assim chamada análise econômica do Direito (ou Direito e
69 Sobre o ponto, v. especialmente, dentro outros no âmbito da doutrina estrangeira, Claus-Wilhelm Canaris,
Direitos Fundamentais e Direito Privado, Trad. Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Almedina, 2003, especialmente p. 119 e ss., e, entre nós, Ingo Wolfgang Sarlet, “Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência”, in: Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 47, mar.-abr. de 2004, p. 60-122; Lenio Luiz Streck, “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais”, in: Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica nº 2, 2004, p. 243-284; e, mais recentemente, Luciano Feldens, A Constituição Penal. A Dupla Face da Proporcionalidade no Controle de Normas Penais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 107 e ss., bem como, do mesmo autor, Direitos Fundamentais e Direito Penal, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
70 No que diz com a terminologia adotada (que, no nosso caso, é a de proibição de insuficiência), são várias as opções disponíveis na literatura, como dão conta as contribuições de Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 267 e ss. (proibição por defeito, entre nós adotada por Lenio Luiz Streck, “Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente...”, p. 243 e ss. e Luciano Feldens, A Constituição Penal..., p. 108 e ss., que fala em proteção deficiente, e Juarez Freitas, O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 38 e ss. (proibição de inoperância), não sendo o nosso intento adentrar aqui a discussão em torno do tópico. Sobre o tema, v., entre nós, também as referências de Paulo Gilberto Cogo Leivas, Teoria dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 76, destacando que os órgãos estatais estão obrigados a alcançar limites mínimos de satisfação dos direitos sociais, bem como, mais recentemente, Walter Claudius Rothenburg, “Princípio da Proporcionalidade”, in: Olavo de Oliveira Neto e Maria Elizabeth Castro Lopes (Org.), Princípios Processuais Civis na Constituição, São Paulo: Elsevier, 2009, p. 309 e ss., bem consignando que se cuida, neste contexto, não de “uma técnica focada no controle das restrições a direitos , mas uma técnica focada no controle da promoção de direitos” (p. 310).
Economia), precisamente no controle da observância dos critérios da proporcionalidade na
sua dupla dimensão, onde não se pode mais justificar, até para que se possa responder às
críticas endereçadas ao mau uso do princípio, a ausência de preocupação, registrada em
muitas decisões judiciais, com as conseqüências do provimento jurisdicional, como se tais
efeitos não pudessem, por sua vez, atingir direitos de terceiros e do próprio titular da
demanda72. Com efeito, aferir a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido
estrito não dispensa considerações vinculadas à realidade – análise do impacto sobre o
sistema de políticas públicas, por exemplo - e não se faz apenas no âmbito de uma análise
“estritamente jurídica”, como se fosse possível, ainda mais neste plano, desvincular questões
de fato e de Direito.
Outra possibilidade, já referida, diz com o controle (que abrange o dever de
aperfeiçoamento, resultante dos deveres de proteção) judicial das opções orçamentárias e da
legislação relativa aos gastos públicos em geral73 (inclusive da que dispõe sobre a
responsabilidade fiscal), já que com isso se poderá, também, minimizar os efeitos da reserva
do possível, notadamente no que diz com sua componente jurídica, tendo em conta a
possibilidade (ainda que manuseada com saudável e necessária cautela) de redirecionar
recursos (ou mesmo suplementá-los) no âmbito dos recursos disponíveis e, importa frisar,
disponibilizáveis. Com efeito, o que se verifica, em muitos casos, é uma inversão hierárquica
tanto em termos jurídico-normativos quanto em termos axiológicos, quando se pretende
bloquear qualquer possibilidade de intervenção neste plano, a ponto de se privilegiar a
72 Sobre este tópico, v., entre outros, os contributos de Thamy Pogrebinschi e Margarida Lacombe, que integram a presente coletânea, mas também os já citados trabalhos monográficos de Gustavo Amaral e Flávio Galdino. 73 Consigna-se que, a despeito de correta a observação de Fernando Facury Scaff, “Reserva do Possível,
Mínimo Existencial e Direitos Humanos”, in: Revista Interesse Público, nº 32, 2005, p. 225, no sentido de que embora tenhamos, na esteira de Alexy, de há muito sustentado a aplicação de um modelo de ponderação na solução concreta dos problemas envolvendo a eficácia e efetividade dos direitos sociais (não apenas, mas com ênfase no mínimo existencial) não tenha, por outro lado, o primeiro autor explorado a questão financeiro-orçamentário, isto não significa que tal aspecto não esteja presente nas digressões tecidas no que diz com eficácia dos direitos fundamentais, até mesmo pelo fato de que se cuida de aspectos inerentes à problemática da reserva do possível (notadamente na sua dimensão jurídica) e nas questões envolvendo o custo dos direitos de um modo geral. Que decisões tomadas em casos concretos – mediante a adequada ponderação – fatalmente, pelo menos em diversas ocasiões – resultam diretamente em afetação do orçamento e das finanças públicas sempre foi evidente, o que não significa – como ora se volta a enfatizar – que não seja o caso de resgatar, ainda que em parte, uma lacuna em termos de maior desenvolvimento deste tópico, que, todavia, reclama – em virtude da miríade de aspectos que suscita – um enfrentamento mais privilegiado do que aqui seria possível, pelo menos neste momento, empreender. Tem razão o autor, todavia, ao sustentar a absoluta necessidade de se investir no aprofundamento da análise sobre a questão do financiamento dos direitos, assim como dos aspectos relativos ao controle da destinação e desvinculação constitucionalmente ilegítima das vinculações orçamentárias (as presentes considerações foram extraídas basicamente de Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 8ª ed., p. 383).
legislação orçamentária em detrimento de imposições e prioridades constitucionais74 e, o que
é mais grave, prioridades em matéria de efetividade de direitos fundamentais. Tudo está a
demonstrar, portanto e como bem recorda Eros Grau, que a assim designada reserva do
possível “não pode ser reduzida a limite posto pelo orçamento, até porque, se fosse assim, um
direito social sob ‘reserva de cofres cheios’ equivaleria, na prática – como diz José Joaquim
Gomes Canotilho – a nenhuma vinculação jurídica”75. Importa, portanto, que se tenha sempre
em mente, que quem “governa” – pelo menos num Estado Democrático (e sempre
constitucional) de Direito – é a Constituição, de tal sorte que aos poderes constituídos impõe-
se o dever de fidelidade às opções do Constituinte, pelo menos no que diz com seus elementos
essenciais, que sempre serão limites (entre excesso e insuficiência!) da liberdade de
conformação do legislador e da discricionariedade (sempre vinculada) do administrador e dos
órgãos jurisdicionais76. Nesta seara, embora já se tenham verificado expressivos avanços, seja
em termos doutrinários, seja no plano jurisprudencial, há que seguir investindo
significativamente.
Além disso, o eventual impacto da reserva do possível certamente poderá ser, se não
completamente neutralizado, pelo menos minimizado, mediante o controle (também
jurisdicional!) das decisões políticas acerca da alocação de recursos, inclusive no que diz com
a transparência das decisões e a viabilização do controle social sobre a aplicação dos recursos
alocados no âmbito do processo político77. Uma vez que a possibilidade de satisfação dos
direitos reconhecidos pela Constituição (e também na esfera da legislação infraconstitucional)
guarda vinculação com escolhas estratégicas sobre qual a melhor forma de aplicar os recursos
74 Rogério Gesta Leal, “O Controle Jurisdicional de Políticas Públicas no Brasil: possibilidades materiais”, in:
Ingo Wolfgang Sarlet (Org.), Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, Tomo I, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 157 e ss., bem lembra a existência de políticas públicas constitucionais vinculantes.
75 Cf. Eros Roberto Grau, “Realismo e Utopia Constitucional”, in: Fernando Luiz Ximenes Rocha e Filomeno Moraes (Coord.), Direito Constitucional Contemporâneo. Estudos em Homenagem ao Professor Paulo Bonavides, Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 125.
76 Sobre os limites da discricionariedade administrativa na base da Constituição e dos Direitos Fundamentais, para além do já clássico aporte de Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª ed., 8ª tir., São Paulo: Malheiros, 2007, v. em especial os recentes desenvolvimentos de Andreas Krell, Discricionariedade Administrativa e Proteção Ambiental, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, Gustavo Binenmbojm, Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, especialmente p. 193 e ss., bem como, por último, Juarez Freitas, Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública, São Paulo: Malheiros, 2007. 77 Nesse sentido, conferir Fábio Konder Comparato, “O Ministério Público na defesa dos direitos econômicos,
culturais e sociais”. In: Sérgio Sérvulo da Cunha e Eros Roberto Grau (Org.). Estudos de direito constitucional em homenagem a José Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 256/257. Bem destacando e desenvolvendo diversas das questões vinculadas ao controle de políticas públicas e o problema do controle das normas orçamentárias, vale conferir o ensaio de Ana Paula de Barcellos, “Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático”, in: Revista de Direito do Estado, nº 3, jul.-set./2006, p. 17/54.
públicos, tal como recordam Holmes e Sunstein, há, de fato, boas razões de ordem
democrática a indicarem que as decisões sobre quais direitos efetivar (assim como sobre em
que medida se deve fazê-lo!) devam ser feitas do modo mais aberto possível e com a garantia
dos níveis mais efetivos de informação da população, destinatária por excelência das razões e
justificativas que devem sustentar as decisões tanto dos agentes políticos em geral quanto dos
juízes78. De outra parte, não se deve olvidar que uma série de garantias constitucionais, como
é o caso da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF) viabilizam o
acesso ao Judiciário, sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direito, sem que se possa
excluir qualquer direito e, em princípio, qualquer tipo de ameaça de lesão ou lesão, ainda que
veiculada por meio de “políticas públicas”, seja decorrente da falta destas.79
De outra banda, conectado com a reserva do possível e com a distribuição das
competências no campo do sistema estatal, de um modo geral no que diz com os deveres
prestacionais vinculados aos direitos fundamentais, importa mencionar o papel do princípio
da subsidiariedade, cuja operatividade transcende a sua já tradicional importância no âmbito
do sistema federativo, ainda mais quando conectado com o princípio (e dever!) de
solidariedade e a própria dignidade da pessoa humana. Sem que se possa também quanto a
este ponto aprofundar o debate, há que recordar – de acordo com a precisa e oportuna lição de
Jörg Neuner – que o princípio da subsidiariedade assume, numa feição positiva, o significado
de uma imposição de auxílio e, numa acepção negativa, a necessária observância, por parte do
Estado, das peculiaridades das unidades sociais inferiores, não podendo atrair para si as
competências originárias daquelas80. Neste sentido, ainda na esteira de Neuner, o princípio da
subsidiariedade assegura simultaneamente um espaço de liberdade pessoal e fundamenta uma
“primazia da auto-responsabilidade”, que implica, para o indivíduo, um dever de zelar pelo
seu próprio sustento e o de sua família81. Já à luz destas sumárias considerações e a despeito
78 Segue texto original em inglês no qual embasamos, com ajustes, o nosso entendimento: “Because rights
result from strategic choices about how best to deploy public resources, there are good democratic reasons why decisions about which rights to protect, and to what degree, should be made in as open a manner as possible by a citizenry as informed as possible, to whom political officials, including judges, must address their reasonings and justifications”. Stephen Holmes e Cass Sunstein, The Cost of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. New York: W. W. Norton & Company, 1999, p. 227.
79 Por evidente que a temática do controle jurisdicional das políticas públicas aqui não será desenvolvido de forma autônoma, a não ser de modo indireto, já que vinculado a uma série de questões centrais para este ensaio. Assim, para o devido aprofundamento, remetemos o leitor, entre outros, às monografias de Eduardo Appio, Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, Curitiba: Juruá, 2004; Maria Paula Dallari Bucci, Direito Administrativo e Políticas Públicas, São Paulo: Saraiva, 2006, e, por último, Nagibe de Melo Jorge Neto, O controle jurisdicional das políticas públicas. Concretizando democracia e os direitos sociais fundamentais, Salvador: Editora Podivm, 2008. 80 Cf. Jörg Neuner, “Los Derechos Humanos Sociales”, in: Anuario Iberoamericano de Justicia
Constitucional, n. 9 (2005), p. 254-255. 81 Cf. Jörg Neuner, op. cit., p. 255.
de toda a controvérsia em torno do significado do princípio da subsidiariedade, vislumbra-se
aqui a premente necessidade de valorizar a sua operatividade, designadamente no campo da
distribuição de encargos no âmbito da efetivação de padrões mínimos de justiça social entre
os órgãos estatais e a sociedade, o que não significa necessariamente aderir a uma
fundamentação prevalentemente liberal dos direitos fundamentais e muito menos implica uma
cogente redução dos direitos sociais (especialmente na sua dimensão positiva) à
subsidiariedade, questões que aqui não poderão ser enfrentadas. De outra parte, o princípio (e
dever) da subsidiariedade, compreendido (também) no sentido de uma exigência do exercício
efetivo da autonomia e da cobrança de pelo menos uma co-responsabilidade pessoal (que, por
óbvio, deverá observar os critérios da proporcionalidade e atender às circunstâncias pessoais)
acaba por atuar inclusive na compreensão do próprio conteúdo e significado do princípio da
dignidade da pessoa humana, temática que por si só já demandaria uma investigação
específica e que, de resto, guarda conexão com o princípio da solidariedade. Apenas para
ilustrar as possíveis aplicações na esfera dos direitos sociais, há que referir o exemplo da
possibilidade de impor, em determinadas circunstâncias, até mesmo a cobrança de taxas
(proporcionais e que considerem as reais condições do usuário) na esfera do sistema público
de saúde, no âmbito de uma leitura harmonizada do princípio da universalidade e da
subsidiriedade, tal como já havíamos sugerido82. Igualmente a exigência de demonstração da
efetiva necessidade (hiposuficiência) por parte do autor das demandas judiciais, também já
referida em outra oportunidade, há que ser levada a sério no controle judicial dos pleitos,
especialmente quando individuais83.
No que diz com a atuação do Poder Judiciário, não há como desconsiderar o problema
da sua prudente e responsável auto-limitação funcional (do assim designado judicial self
restraint), que evidentemente deve estar sempre em sintonia com a sua necessária e já
afirmada legitimação para atuar, de modo pró-ativo, no controle dos atos do poder público em
prol da efetivação ótima dos direitos (de todos os direitos) fundamentais84. Que a atuação dos
órgãos jurisdicionais – sempre provocada – não apenas não dispensa, como inclusive exige
uma contribuição efetiva dos demais atores políticos e sociais, como é o caso do Ministério
Público, das agências reguladoras, dos Tribunais de Contas, das organizações sociais de um
modo geral, bem como dos cidadãos individualmente considerados, resulta evidente, mas nem
82 Cf. Ingo W. Sarlet e Mariana F. Figueiredo, “Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações”, in: Direitos Fundamentais & Justiça, Ano 1- N° 1 –Out/Dez. 2007, p. 201 e ss. 83 Cf., novamente, Ingo W.Sarlet e Mariana F. Figueiredo, op.cit., p. 201 e ss. 84 Sobre o tema, v. a imprescindível contribuição de Cláudio Ari Mello, Democracia Constitucional e Direitos
Fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
sempre corresponde a uma prática institucional efetiva nesta seara. Da mesma forma,
imprescindível, como bem aponta relevante doutrina, maior investimento na análise do perfil
(e da capacidade) institucional do Poder Judiciário na esfera da promoção da justiça social e,
portanto, a importância de se instaurar um autêntico diálogo interinstitucional85, que, por sua
vez, passa pelo respeito ao princípio e correspondente dever de cooperação. Também neste
contexto assumem relevo os princípios da moralidade e probidade da administração pública,
de tal sorte que – mesmo sem desenvolver o ponto – é possível afirmar que a maximização da
eficácia e efetividade de todos os direitos fundamentais, na sua dupla dimensão defensiva e
prestacional, depende, em parte significativa (e a realidade brasileira bem o demonstra!) da
otimização do direito fundamental a uma boa (e portanto sempre proba e moralmente
vinculada) administração.
Por derradeiro, já nos encaminhando para o fechamento desta etapa e cientes de que
diversos aspectos desafiam maior desenvolvimento (além de outros que sequer foram
tangenciados) reafirmamos aqui o nosso entendimento de que embora o conteúdo
judicialmente exigível dos direitos sociais como direitos a prestações não possa ser limitado à
garantia do mínimo existencial, quando este estiver em causa (e pelo menos nesta esfera) há
que reconhecer aquilo que já se designou de direito subjetivo definitivo a prestações (como
tem sido o caso de Robert Alexy e José Joaquim Gomes Canotilho, entre outros) e, portanto,
plenamente exigível também pela via jurisdicional. As objeções atreladas à reserva do
possível não poderão prevalecer nesta hipótese, exigíveis, portanto, providências que
assegurem, no caso concreto, a prevalência da vida e da dignidade da pessoa, inclusive o
cogente direcionamento ou redirecionamento de prioridades em matéria de alocação de
recursos, pois é disso que no fundo se está a tratar86. Até mesmo a tese de que a reserva do
possível poderia servir de argumento eficiente a afastar a responsabilidade do Estado (por
ação ou omissão, vale dizer!) não nos parece possa ser aceita, ainda mais de modo
85 Neste sentido, v., em especial, discorrendo sobre a ótica da promoção da justiça distributiva por meio da atuação do Poder Judiciário, José Reinaldo Lima Lopes, Direitos Sociais. Teoria e Prática, São Paulo: Método, 2006, especialmente p. 185 e ss., bem como, Gustavo Binenbojm e André Rodrigues Cyrino, “O direito à moradia e a penhorabilidade do bem único do fiador em contratos de locação. Limites à revisão judicial de diagnósticos e prognósticos legislativos”, in: Direitos Sociais, p. 997 e ss., chegando a apontar para uma “virada institucional”. Na mesma linha e contidos na mesma obra coletiva, v., ainda, os já referidos aportes de Luís Roberto Barroso, Daniel Sarmento e Cláudio Pereira Souza Neto. 86 Neste sentido, v. o que sustentamos pelo menos desde a publicação da nossa tese de doutoramento na
Alemanha (Ingo Wolfgang Sarlet, Die Problematik der sozialen Grundrechte in der brasilianischen Verfassung und im deutschen Grundgesetz: eine rechtsvergleichende Untersuchung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 1997) e posteriormente na obra A Eficácia dos Direitos Fundamentais (já referida e com primeira edição de 1998), por último, a enfática e bem fundamentada manifestação de Carlos Alberto Molinaro e Mariângela Guerreiro Milhoranza, “Alcance político da jurisdição no âmbito do direito à saúde”, in: Araken de Assis (coord.), Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde, Porto Alegre: Notadez, 2007, p. 220 e ss.
generalizado, na esfera das prestações que inequivocamente dizem com o mínimo existencial.
Que a defesa de um direito subjetivo definitivo na esfera das prestações vinculadas ao mínimo
existencial e a superação da reserva do possível especialmente neste âmbito – aqui retomada
sem maior desenvolvimento – não afasta a necessidade de se discutir uma série de problemas
(parte dos quais já anunciados) e não responde todas as indagações, resulta evidente.
Neste sentido, empreenderemos – no próximo segmento - a tentativa de ilustrar alguns
dos aspectos com base no exemplo do direito à saúde. Por outro lado, antes de prosseguirmos,
consideramos oportuna a referência ao pensamento de Jorge Reis Novais87 ao afirmar que a
reserva do possível (antes de atuar como barreira intransponível à efetivação dos direitos
fundamentais, importa acrescentar!) deve viger como um mandado de otimização da eficácia
e efetividade dos direitos fundamentais, impondo ao Estado o dever fundamental de, tanto
quanto possível, promover as condições ótimas de efetivação da prestação estatal em causa,
preservando, além disso, os níveis de realização já atingidos, o que, por sua vez, aponta para a
necessidade do reconhecimento de uma proibição do retrocesso, ainda mais naquilo que se
está a preservar o mínimo existencial88. Neste contexto, embora aqui não se possa
desenvolver o ponto, já se apontou para uma espécie de entrenchment (entrincheiramento) dos
direitos fundamentais, que, todavia, não inviabiliza ajustes e mesmo restrições, mas opera
como blindagem que objetiva a manutenção de um mínimo em concretude normativa,
notadamente, do assim designado núcleo essencial dos direitos fundamentais, especialmente,
no caso dos direitos sociais, abarcando os níveis de concretização deste núcleo essencial por
parte do legislador89.
5 – Considerações finais
Apesar dos inúmeros aspectos a serem inventariados e discutidos e mesmo
considerando o caráter incompleto e sumário da nossa análise, a evolução constitucional
desde outubro de 1988 revela que, tanto na seara doutrinária quando jurisprudencial, apesar de
87 Jorge Reis Novais. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:
Coimbra Editora, 2004, p. 295. 88 Sobre a proteção contra um retrocesso v., Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p.
442 e ss., bem como a recente coletânea de Christian Courtis (Comp.), Ni un paso atrás. La prohibición de regresividad en materia de derechos sociales, Buenos Aires: Editores del Puerto, 2006. Por último, v. ainda Felipe Derbli, O Princípio da Proibição de Retrocesso Social na Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Renovar, 2007.
89 Sobre o tema, especialmente referindo a figura do entrincheiramento, v. Walber de Moura Agra, A reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal. Densificação da Jurisdição Constitucional Brasileira, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 300 e ss.
algumas posições dissonantes, se verifica, em termos gerais, a construção de uma dogmática e
prática jurisdicional comprometida com os direitos sociais fundamentais e a garantia de um
regime jurídico-constitucional compatível.
Tal fenômeno ocorre tanto no que diz respeito ao reconhecimento em si da condição
de verdadeiros direitos fundamentais aos direitos sociais (pelo menos dos assim designados
direitos sociais básicos, ligados ao mínimo existencial, onde parece existir um consenso)
quanto na superação, pelo menos em boa parte, das principais objeções que lhes são
direcionadas, seja no que diz com a sua constitucionalização, seja no concernente a sua
condição de direitos exigíveis. Com efeito, os direitos sociais não apenas têm sido
considerados como dignos de tutela contra intervenções ilegítimas por parte dos poderes
públicos e dos particulares, como têm sido constantemente tratados como direitos subjetivos
e, como tal, judicialmente exigíveis, ainda que se possa controverter a respeito de eventuais
excessos aqui ou acolá, bem como estejam a aumentar em número os que questionam a
legitimidade do Poder Judiciário para impor, em face dos demais órgãos estatais, os direitos
sociais na sua dimensão positiva.
Se, por outro lado, é preciso reconhecer que a previsão de direitos sociais na
Constituição, nem mesmo quando lhes é garantido um regime jurídico qualificado, não é, por
si só, suficiente para assegurar a todos os brasileiros uma vida digna, a fase inaugurada com a
atual Carta Magna tem demonstrado que a tutela constitucional dos direitos sociais como
direitos fundamentais tem sido um fato relevante tanto como pauta permanente de
reivindicações na esfera das políticas públicas, quanto como poderoso instrumento para, na
ausência ou insuficiência daquelas, ou mesmo pela falta de cumprimento das próprias
políticas publicas, propiciar o assim designado empoderamento do cidadão individual e
coletivamente considerado para uma ação concreta, ainda que nem sempre idealmente efetiva
e muitas vezes mais simbólica. Nesta perspectiva, o fato de os direitos sociais serem
considerados autênticos direitos fundamentais e, como tais, levados a sério também na sua
condição de direitos subjetivos, tem também servido para imprimir à noção de cidadania um
novo contorno e conteúdo, potencialmente mais inclusivo e solidário, o que por si só já
justificaria todo o esforço em prol dos direitos sociais e nos serve de alento para seguirmos
aderindo ao bom combate às objeções manifestamente infundadas que lhes seguem sendo
direcionadas.
De outra parte, como já apontado em diversas passagens do texto, embora sem a
pretensão de uma sistematização, percebe-se uma tendência de superação dos extremismos
que marcaram a evolução constitucional brasileira na esfera da eficácia e efetividade dos
direitos sociais. Entre a negação de sua normatividade (considerando-os como sendo previstos
em normas destituídas de aplicabilidade direta) e a tendência de, em nome dos direitos sociais
(e o caso do direito a saúde se revela emblemático) assegurar-se praticamente tudo o que for
reclamado pela via judicial, verifica-se atualmente, embora ainda com maior ênfase na
doutrina, a busca de um equilíbrio possível, apostando em critérios racionais e razoáveis, que
efetivamente possam balizar uma efetividade maior para um maior numero de pessoas. A
constatação de que a consideração dos direitos sociais como direitos exigíveis não transforma
o Poder Judiciário no agente privilegiado do processo, pois não poderá substituir uma ampla e
coerente política dos direitos fundamentais (e não apenas dos direitos sociais), por mais que
seja correta e deva ser endossada, não pode, por seu turno, conduzir ao afastamento dos
direitos sociais do crivo dos Tribunais. O que há de ser discutido e melhor equacionado, é a
forma pela qual há de atuar o Poder Judiciário, visto que este – assim como seus órgãos e
agentes - também se acha vinculado diretamente pelos deveres de proteção dos direitos
fundamentais. Da mesma forma, como foi objeto de várias contribuições citadas neste
trabalho, há que apostar mais no estudo do papel do Poder Legislativo e do Poder Executivo,
assim como nos mecanismos de aperfeiçoamento do controle social em relação às políticas
públicas.
Assim, há como afirmar que um dos principais desafios com os quais nos deparamos
atualmente e o de resgatar as boas (pois nem todas talvez o sejam!) promessas da
modernidade, dentre as quais assume papel de destaque institucionalização e a permanente
“atualidade dos direitos sociais90”, contribuindo para que também as instituições do Estado
Democrático de Direito consagrado pela nossa Constituição, possam, antes tarde do que
nunca, tornar efetivas tais promessas, especialmente naquilo que estas dizem respeito à
implantação de níveis suficientes de justiça social, em outras palavras, à garantia de uma
existência digna (uma vida com qualidade) para todos. Este e um compromisso de todos,
Estado e Sociedade, e o êxito na sua concretização pressupõe a superação das posturas
maniqueístas e fundamentalistas, assim como o abandono do tão difundido jogo do empurra-
empurra, que assola o cenário político nacional, mediante a sua substituição por uma lógica da
cooperação e do diálogo. Com efeito, os direitos sociais e a cidadania merecem este
investimento, para que cada vez mais a comemoração do aniversário da nossa CF não fique
restrita ao ambiente acadêmico e se transforme num símbolo de um genuíno patriotismo
constitucional.
90 Sobre o tópico, v. as ponderações de José Luis Bolzan de Morais, Do Direito Social aos Interesses Transindividuais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 181 e ss.
26/01/2016 Considerações sobre a Autonomia do Processo do Trabalho Lex Doutrina
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Doutrina
Considerações sobre a Autonomia do Processo do TrabalhoAutor:GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa
RESUMO: O objetivo deste texto é analisar a questão da autonomia do processo do trabalho, especialmente em face do
processo civil. Devem ser estudadas as diversas teorias a respeito.
PALAVRASCHAVE: Processo do Trabalho. Autonomia. Direito Processual do Trabalho.
1 Introdução
O exame da autonomia do processo do trabalho envolve aspectos controvertidos na doutrina, com reflexos na jurisprudência.
Tratase de questão relevante não apenas em termos científicos, mas também com desdobramentos no próprio exercício da
jurisdição.
Sendo assim, para que a matéria seja enfrentada de forma adequada, certos aspectos iniciais devem ser considerados, para
que se possa compreender o processo do trabalho conforme inserido não apenas no direito processual e no exercício da
prestação jurisdicional quanto a certas matérias e conflitos, mas também no sistema jurídico como um todo.
Nesse sentido, cabe salientar que o processo do trabalho não é (e não deve ser) a única forma de pacificação de conflitos
sociais trabalhistas. Além disso, para a compreensão do tema, questões relacionadas à abrangência e à natureza jurídica do
processo do trabalho e do correspondente direito também merecerão algumas considerações.
A visão do direito em seu conjunto, no qual se verificam ramos de natureza substancial e processual, também permite verificar a
posição do processo trabalhista no sistema jurídico e na ciência do direito. Com isso, tornase possível fazer referência às
teorias existentes no âmbito doutrinário, no que se refere ao núcleo do tema em estudo, posicionandose quanto à existência da
autonomia em discussão.
A tomada de posição a respeito da matéria permitirá a indicação de algumas perspectivas e sugestões, no sentido de que o
processo do trabalho alcance os objetivos e resultados esperados pela sociedade.
2 Pacificação dos Conflitos Trabalhistas
Os conflitos sociais relativos ao âmbito trabalhista podem ser solucionados por meio de métodos diversos (1).
Nesse sentido, cabe fazer menção, primeiramente, à autodefesa, na qual uma das partes impõe a sua vontade, visando
solucionar o conflito, à outra parte.
No âmbito das relações coletivas de trabalho, a greve é destacada justamente como forma de pressão para que as
reivindicações e interesses dos trabalhadores sejam alcançados. Tratase de direito exercido coletivamente, atualmente
reconhecido como de natureza fundamental. Integra um dos pilares do direito do trabalho, juntamente com a negociação
coletiva de trabalho e o contrato de trabalho, caracterizado pela subordinação, como registra a doutrina de Maria do Rosário
Palma Ramalho (2).
A autocomposição, por sua vez, constitui a linha estrutural do direito do trabalho na atualidade. Nesse âmbito é que se situa, por
exemplo, a negociação coletiva de trabalho, entendida como a principal e mais adequada forma de solução dos conflitos
coletivos trabalhistas.
Por meio do referido procedimento, os atores sociais envolvidos, no exercício da autonomia privada coletiva, celebram
instrumentos normativos negociais, os quais apresentam não apenas eficácia obrigacional, mas também normativa, ao se
aplicar aos contratos individuais abrangidos pelos grupos ali representados.
Mesmo no âmbito das relações individuais de trabalho, tornase possível a pacificação dos conflitos por meio de formas voltadas
à autocomposição, na qual as próprias partes alcançam a melhor solução à questão discutida, ainda que com o auxílio de um
terceiro (como um conciliador ou um mediador).
A heterocomposição, por sua vez, referese à solução do conflito por meio de decisão imposta por um terceiro. Nesse âmbito,
além da jurisdição, como atividade prestada pelo Estado, no exercício de seu poder, para a pacificação social, também pode ser
destacada a arbitragem. Esta última, entretanto, não tem sido aplicada e utilizada com frequência no Brasil, embora exista
previsão constitucional expressa no que se refere à sua compatibilidade em face das relações e dos conflitos coletivos de
trabalho.
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Mesmo na esfera infraconstitucional, há diplomas legais, inclusive relativos ao direito do trabalho, e que a arbitragem é
expressamente admitida. Nesse sentido, podese fazer menção à Lei Orgânica do Ministério Público da União, ao tratar das
atribuições do Ministério Público do Trabalho (LC nº 75/93, art. 83, XI), bem como à Lei nº 10.101/00, que dispõe sobre a
participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados da empresa (art. 4º, II e § 1º).
De todo modo, quanto ao tema examinado, relativo à autonomia do processo do trabalho, cabe aqui frisar que a jurisdição,
entendida como poder, função e atividade estatal, voltada à pacificação social, também pode ser exercida no que se refere aos
conflitos trabalhistas.
3 Notas Relativas à Evolução Histórica do Processo
O processo, na atualidade, é entendido como o instrumento por meio do qual a jurisdição é exercida, objetivandose alcançar os
escopos de atuação e aplicação do direito material, alcançandose, assim, a pacificação dos conflitos que ocorrem na vida em
sociedade.
Entretanto, no início da evolução científica quanto ao tema, havia outras concepções relativas ao processo.
Nesse sentido, a doutrina voltada à teoria geral do processo faz menção, primeiramente, à ideia de processo como contrato ou
negócio jurídico, no qual as partes firmavam um pacto concordando com a instauração daquele, conforme se observa no direito
romano. A teoria contratual, entretanto, não mais é admitida, conforme demonstra Oskar von Bülow em sua teoria da relação
jurídica processual, a qual não se confunde com aquela de natureza material. Com isso, ficou claro que o ajuizamento da ação
faz surgir relação jurídica diferenciada, de natureza pública, envolvendo o Estadojuiz, bem como as partes processuais, tendo
como objetivo decidirse a respeito da pretensão formulada. O direito processual, assim, não se confunde com o direito material
(3). Embora outras teorias também tenham sido desenvolvidas, o aspecto estrutural, voltado à distinção da teoria da relaçãojurídica processual em face daquela de natureza material, é mantida, como se verifica em Goldschmidt, ao destacar a diferença
entre ônus e obrigações no processo, e mesmo Elio Fazzalari, ao tratar do processo como procedimento em contraditório (4).
Sendo assim, conforme destacam Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, a
chamada fase sincrética do processo, na qual este não era entendido de forma autônoma quanto ao direito material, deu lugar à
fase autonomista, uma vez que a relação jurídica de direito processual é distinta da relação material, externa ao processo (5).
Ademais, na atualidade, destacase a chamada fase da instrumentalidade, no sentido de que o processo, embora autônomo do
direito material, não é um fim em si mesmo, mas deve ser utilizado como instrumento para a aplicação do direito substancial, de
modo a se alcançar, assim, a pacificação social com justiça.
Nessa linha, Chiovenda referese ao processo como instrumento para a atuação concreta do direito objetivo (6), o que éenfatizado pela doutrina atual, aperfeiçoandose o enfoque do processo como instrumento de "acesso à ordem jurídica justa"
(Kazuo Watanabe), de modo a se alcançar os seus diversos escopos, como de natureza política e jurídica (7).
4 Direito Processual do Trabalho: Conceito e Abrangência
Para que se examine a questão da autonomia do processo do trabalho, é relevante, primeiramente, compreender o seu objeto e
alcance.
Conforme acentua a doutrina, o direito processual do trabalho, o qual estabelece a disciplina do processo do trabalho, é o
conjunto de princípios, regras e instituições, que tem como objetivo regular a atividade dos órgãos jurisdicionais, voltada à
solução de dissídios individuais e coletivos pertinentes às relações de trabalho (8).
O processo do trabalho, assim, é o instrumento da jurisdição, em seu exercício voltado aos conflitos trabalhistas, de natureza
individual e coletiva.
Como se nota, quanto à abrangência, o processo do trabalho se estende não apenas aos conflitos decorrentes da relação de
emprego, como a outras relações de trabalho, conforme previsão constitucional e legal (9).
Mesmo no âmbito coletivo, no Brasil, o chamado dissídio coletivo é previsto não apenas em hipóteses de greve e de
interpretação ou aplicação de normas existentes, mas também aos conflitos coletivos de natureza econômica, embora a EC nº
45/04 tenha estabelecido restrições quanto a este último (10), mesmo porque a forma ideal de se solucionar tais controvérsias épor meio da já mencionada negociação coletiva de trabalho (11).
Cabe, ainda, ressaltar que o processo do trabalho, além de disciplinado pelo direito processual do trabalho, é aquele aplicado
nos órgãos que integram a Justiça do Trabalho, no exercício de sua jurisdição, delimitada pela Constituição e pelas leis, ao
estabelecer a sua competência.
5 Natureza Jurídica do Direito Processual do Trabalho
Ainda com o objetivo de melhor compreensão da autonomia do processo do trabalho, cabe examinar a sua natureza jurídica,
bem como o ramo do direito em que está inserido.
O direito, entendido como sistema jurídico (12), apresenta normas de direito material, as quais disciplinam as relações emsociedade, e normas de direito processual, voltadas a regular o exercício da jurisdição. Efetivamente, nem sempre as próprias
partes em conflito alcançam a pacificação apenas com a incidência do direito material, passando a controvérsia a ser objeto de
ação e processo judiciais, visandose à obtenção de decisão que aplique o referido direito material.
O processo do trabalho, assim, está situado na esfera do direito processual, que possui natureza de direito público, justamente
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porque regula a atividade estatal de pacificação jurisdicional dos conflitos (13).
Com isso, já se torna possível confirmar não apenas a autonomia do processo em face do direito material, mas do processo do
trabalho e do respectivo direito processual do trabalho em face do direito material do trabalho.
Nessa linha, o direito do trabalho, ao incidir no campo das relações individuais e coletivas (14), está situado na esfera materialdo ordenamento jurídico. O direito processual do trabalho, por sua vez, ao estabelecer normas voltadas ao processo trabalhista,
em consonância com a visão instrumentalista, deve ter como objetivo a adequada aplicação dos preceitos jurídicos materiais,
em consonância com seus princípios e valores, com destaque justamente às normas de direito material do trabalho.
6 Direito Processual do Trabalho e Processo Trabalhista
Embora se discuta a respeito da referida autonomia no campo processual, devese destacar que o direito, como sistema, é um
só; no entanto, apresenta ramos e segmentos internos, tendo em vista a especialidade da matéria e das questões ali tratadas.
Mesmo quanto à área processual, no qual se verificam o direito processual civil, o direito processual penal e o direito processual
do trabalho, há certos institutos essenciais, bem como princípios constitucionais comuns e objeto de tratamento científico
inseridos na teoria geral do processo.
Nessa linha, os institutos da jurisdição, do processo, da ação e da defesa, em seus aspectos nucleares, incidem no direito
processual como um todo, embora existam peculiaridades e regras próprias em cada um de seus ramos.
Cabe salientar, ainda, o enfoque do direito de ação como direito à tutela jurisdicional. Como ressalta José Roberto dos Santos
Bedaque, ela é "a proteção que se dá a determinado interesse, por via jurisdicional, assegurando direitos ou a integridade da
esfera jurídica de alguém" (15).
Da mesma forma, há princípios constitucionais voltados ao âmbito processual, com aplicação em seus diversos ramos,
podendose destacar os princípios do juiz natural, da inafastabilidade do controle jurisdicional, do contraditório, da ampla defesa
e do devido processo legal (16).
Os referidos mandamentos normativos constitucionais, ademais, apresentam natureza nitidamente fundamental, não apenas
porque formalmente previstos no catálogo de direitos fundamentais (no caso específico, no art. 5º da CF/88), mas porque
voltados a valores essenciais ao ser humano e à vida em sociedade.
Mesmo porque, conforme salientam Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a titularidade de direitos não tem sentido quando não há
mecanismos adequados para a sua efetiva proteção. Com isso, entendese que o "acesso à justiça" é o mais básico dos direitos
humanos (17).
Considerandose as observações acima, cabe registrar a controvérsia relativa à autonomia do processo do trabalho,
especialmente em seu aspecto científico (18).
De acordo com a teoria monista, o direito processual do trabalho é uno, de modo que o processo do trabalho é parte dele
integrante, não tendo, assim, autonomia.
Nesse enfoque, o processo do trabalho não é considerado autônomo do processo civil, mesmo porque os institutos básicos são
os mesmos.
Em linha oposta, as teorias dualistas sustentam a autonomia do processo do trabalho, havendo, no entanto, corrente que
defende ser ela relativa.
Argumentase que a aplicação subsidiária do processo comum, ao âmbito trabalhista, revela não ser este totalmente autônomo,
mas dependente do direito processual civil. O art. 769 da CLT estabelece que, nos casos omissos, o direito processual comum
deve ser aplicado como fonte subsidiária do direito processual do trabalho, quando com este compatível. O art. 889 da CLT, por
sua vez, dispõe que para a execução trabalhista são aplicáveis os dispositivos voltados ao processo dos executivos fiscais da
Fazenda Pública Federal para a cobrança de sua dívida ativa (19). O art. 882 da CLT, ainda relativo à execução trabalhista,estabelece que a ordem preferencial dos bens a serem nomeados à penhora é aquela prevista no art. 655 do CPC.
Como se pode notar, há, realmente, a aplicação subsidiária do direito processual comum no âmbito do processo do trabalho,
quando há omissão deste e compatibilidade das normas processuais civis.
Entretanto, esse aspecto não afasta a autonomia do processo do trabalho, bem como do ramo do direito que o disciplina. Tanto
é assim que no direito material do trabalho, de acordo com o art. 8º, parágrafo único, da CLT, o direito comum é fonte subsidiária,
ou seja, aplicável, havendo omissão daquele, desde que exista compatibilidade com os seus princípios fundamentais. Ainda
assim, é atualmente pacífico que o direito do trabalho é ramo autônomo do direito (20), não estando mais inserido no direito civil,mesmo porque apresenta matéria vasta e diferenciada, aspectos peculiares e princípios próprios.
Portanto, cabe aqui destacar a teoria dualista, ao defender a autonomia total do processo do trabalho. Nesse enfoque, o direito
processual do trabalho, além de ser autônomo do direito material do trabalho, também o é em face do direito processual civil. A
autonomia do processo do trabalho, aqui defendida, entretanto, não significa o seu completo isolamento em face dos demais
ramos do direito.
Como já salientado, o direito processual do trabalho, em seu aspecto instrumental, deve conferir efetividade às normas de direito
material, com destaque àquelas de natureza trabalhista, de modo que o processo cumpra o seu papel de assegurar a aplicação
justa da ordem jurídica, em consonância, ademais, com os preceitos constitucionais, com destaque à promoção e à proteção dos
26/01/2016 Considerações sobre a Autonomia do Processo do Trabalho Lex Doutrina
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direitos humanos e fundamentais incidentes ao âmbito trabalhista.
Da mesma forma, o direito processual do trabalho mantém relação com diversos outros ramos do direito, como o constitucional,
processual civil, internacional público (por exemplo, quanto a questões relacionadas à imunidade de jurisdição) (21), penal(tendo em vista a possibilidade de ocorrer ilícitos penais no curso do processo) e administrativo (ao reger os agentes públicos
que integram a Justiça do Trabalho).
Apesar disso, o processo do trabalho apresenta autonomia, o que fica nítido no aspecto doutrinário, tendo em vista a presença
de obras jurídicas específicas relativas ao tema; no aspecto jurisdicional, uma vez que a Justiça do Trabalho é ramo autônomo
que integra, desde a CF/1946, o Poder Judiciário brasileiro; e mesmo no aspecto científico, ao se verificar a presença de objeto
vasto, permitindo o seu estudo de forma sistemática, de doutrinas homogêneas, voltadas a seus conceitos e desdobramentos,
bem como de institutos peculiares.
Quanto ao aspecto legislativo, no Brasil, não se verifica a existência de um Código de Processo do Trabalho, como ocorre em
outros países, como, por exemplo, em Portugal. Ainda assim, a CLT possui diversas normas pertinentes ao processo do
trabalho, reunidas em diferentes títulos. Além disso, observamse leis próprias, que também regulam o processo do trabalho,
tornando nítida a existência de um conjunto normativo próprio e específico.
Nessa linha, Pedro Romano Martinez ressalta que o processo do trabalho abrange um conjunto de normas de direito objetivo, o
qual tem como finalidade "pôr em prática as peculiaridades práticas da parte substantiva do direito do trabalho" (22).
Ainda de acordo com o autor, as normas relativas ao processo do trabalho apresentam particularidades em face do processo
civil e do processo penal, tendo em vista o direito do trabalho em sua parte substantiva (23).
Ainda assim, cabe esclarecer e reiterar que o processo do trabalho, embora entendido como instrumento do direito material
(com destaque ao direito substantivo do trabalho), com ele também não se confunde; da mesma forma que a relação de direito
material se diferencia da relação de direito processual.
Portanto, sustentase a afirmação do processo do trabalho de forma autônoma em face do processo comum, posição esta
majoritária na atual doutrina, como se observa em Wagner D. Giglio (24), a título de exemplo.
Não obstante, em sentido diverso, para Jorge Luiz Souto Maior, "verificase que o processo do trabalho possui, realmente,
características especiais, mas que são ditadas pelas peculiaridades do direito material que ele instrumentaliza. Esses
pressupostos de instrumentalização, especialização, simplificação, voltados para a efetividade da técnica processual, são
encontrados bastante desenvolvidos na teoria geral do processo civil, razão pela qual, no fundo, há de se reconhecer a
unicidade do processo" (25).
Logo, o processo do trabalho, no entendimento do referido autor, "não é autônomo perante o processo civil, mas possui
características que lhe são bastante peculiares no que se refere a seu procedimento" (26).
7 Processo do Trabalho: Confirmação de sua Autonomia
A posição do direito processual do trabalho no âmbito do direito público, em seu sentido de se voltar à disciplina de atividade
estatal, enfoca a sua autonomia em face do direito material do trabalho, no qual, apesar da existência de normas de ordem
pública, são estabelecidas a disciplina do contrato de trabalho e a promoção da autonomia privada coletiva no âmbito das
relações de grupo.
Sob outro aspecto, o processo do trabalho apresenta singularidades em face do processo civil, que confirmam a sua autonomia
na ciência do direito (27).
Destacamse, quanto ao tema, a tendência à coletivização, com a defesa de direitos metaindividuais trabalhistas, por meio de
ações próprias, a oralidade e a concentração dos atos processuais em audiência, que merecem ênfase no processo laboral, o
mesmo ocorrendo quanto à tentativa de conciliação em juízo.
Ainda nesse sentido, no que tange à sistemática recursal, verificase a ausência, em regra, de efeito suspensivo, bem como
peculiaridades relativas à aplicação e valoração dos meios de prova. Tendo em vista o objetivo de se alcançar a efetiva
realidade dos fatos, no processo do trabalho, a prova testemunhal, muitas vezes, é aquela que permite revelar a efetiva verdade
do ocorrido na relação de direito material em discussão, podendo, assim, afastar a incidência da prova documental.
Os poderes do juiz no processo do trabalho também ganham destaque, visando à célere e justa pacificação do conflito, como se
observa no art. 765 da CLT. Outras peculiaridades podem ser indicadas, como a capacidade postulatória das partes, admitida
ao menos na fase ordinária no processo do trabalho (art. 791 da CLT), conforme entendimento atual da jurisprudência
trabalhista (28).
Mesmo quanto à execução, o processo do trabalho estabelece os títulos judiciais e extrajudiciais admitidos (art. 876 da CLT),
diferenciandose do processo civil.
Notase, ainda, intensa atuação da jurisprudência no âmbito laboral, inclusive no que se refere a questões processuais, o que
fica nítido ao se observar o extenso rol de súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes aprovados pelo TST. O processo
do trabalho, assim, mesmo quanto ao aspecto substancial, apresenta o relevante papel de atualizar o direito aplicado aos casos
concretos, em consonância com a evolução e as necessidades sociais do presente.
Nesse sentido, o chamado direito jurisprudencial, produzido no âmbito do processo, ganha relevância quanto à esfera
trabalhista, por vezes tratando de questões complexas, como a própria subcontratação de serviços ("terceirização") e sua
26/01/2016 Considerações sobre a Autonomia do Processo do Trabalho Lex Doutrina
http://www.lex.com.br/doutrina_25789636_CONSIDERACOES_SOBRE_A_AUTONOMIA_DO_PROCESSO_DO_TRABALHO.aspx 5/7
aplicação às relações de trabalho (Súmula nº 331 do TST) (29).
Logo, fica confirmada a mencionada autonomia do processo do trabalho, inclusive por estar voltado a valores próprios, o que
justifica as suas peculiaridades em face do processo comum.
8 Perspectivas do Processo do Trabalho
A autonomia do processo do trabalho, aqui defendida e demonstrada, não o torna imune a problemas e críticas.
Reconhecese que, na atualidade, a tutela jurisdicional deve ser célere, efetiva (art. 5º, LXXVIII, da CRFB/88) e solucionar o
conflito com justiça, aspectos estes que também devem ser alcançados pelo processo do trabalho.
Entretanto, observamse, no presente, diversos pontos críticos relacionados ao processo do laboral, com destaque à
necessidade de reformas legislativas, mesmo porque o processo civil, por exemplo, no que se refere à execução, passou a
adotar dispositivos que permitem a maior efetividade da decisão judicial (30), o que não foi acompanhado pela legislaçãoprocessual trabalhista.
Sugerese, assim, além da ênfase na reforma e adequação legislativa do processo do trabalho, a maior utilização dos meios
alternativos de solução dos conflitos, com destaque à mediação e à arbitragem, reformulandose os princípios e valores que
nortearam as Comissões de Conciliação Prévia. Ainda como proposta para a efetividade da tutela jurisdicional decorrente do
processo trabalhista, cabe realçar a elaboração de sistema próprio de defesa dos direitos metaindividuais, bem como a
possibilidade de reflexão no que tange à especialização de Varas do Trabalho e Turmas de Tribunais (31), em face doalargamento da competência trabalhista, decorrente da Emenda Constitucional nº 45/04 (32), cujas repercussões ainda nãoestão devidamente definidas pela doutrina e pela jurisprudência.
9 Conclusão
O tema da autonomia do processo do trabalho, apesar de controvertido, é de extrema relevância, pois permite que se insira a
própria jurisdição trabalhista no contexto das formas de solução dos conflitos laborais.
Da mesma forma, autoriza a verificação da natureza jurídica do processo e sua evolução, sendo atualmente entendido como
instrumento de pacificação social com justiça.
O direito processual do trabalho, como ramo autônomo do direito que rege o processo laboral, é justamente aquele aplicado
pela Justiça do Trabalho, no exercício de seu papel constitucional de dar a cada um aquilo que lhe é devido no âmbito das
relações de trabalho.
A natureza de direito público do processo trabalhista, diferenciandose do direito material do trabalho, apesar de inserilo na
esfera do direito processual, não afasta a presença da sua autonomia em face do processo civil e comum.
A presença de vasta matéria, bem como de doutrinas homogêneas e institutos peculiares, demonstra que o processo laboral,
embora mantenha relações com outros ramos do direito, conquistou a autonomia científica. As singularidades que apresenta
confirmam essa conclusão.
A destacada autonomia do processo do trabalho, entretanto, não impede a existência de problemas e críticas, as quais revelam
a necessidade de aprimoramento e adequação de suas normas, bem como da forma de sua aplicação.
O momento, assim, é mais do que propício para o avanço do processo do trabalho, modernizandoo em consonância com os
valores da atualidade.
10 Bibliografia
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SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça, procedimento oral. São Paulo: LTr,
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Notas
(1)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 1.3151.318.
(2)Cf. RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Autonomia dogmática do direito do trabalho. Coimbra: Almedina, 2000. p. 708709.
(3)Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 3943. v. 1; GRECOFILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 3035. v. 1.
(4)Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.11. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 279286.
(5)Cf. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo,cit., p. 287292.
(6)Cf. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução da 2. ed. italiana por J. Guimarães Menegale,acompanhada de notas pelo Prof. Enrico Tullio Liebman. São Paulo: Saraiva, 1942. p. 2728. v. 1.
(7)Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 181272.
(8)Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 1920.
(9)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Competência da justiça do trabalho: da relação de emprego à relação de trabalho. Riode Janeiro: Forense, 2012. passim.
(10)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 834839.
(11)Cf. SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Direitos humanos na negociação coletiva: teoria e prática jurisprudencial. São Paulo: LTr,2004. p. 151.
(12)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito: teoria geral do direito. 2. ed. São Paulo: Método, 2013.p. 151154.
(13)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito: teoria geral do direito, cit., p. 245250.
(14)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 8.
(15)BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo. 2. ed. São Paulo:Malheiros, 2001. p. 30.
(16)Cf. NERY Jr., Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 41.
(17)Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e revisão: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: SergioAntonio Farbris, 2002. p. 1112.
(18)Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho, cit., p. 2223.
26/01/2016 Considerações sobre a Autonomia do Processo do Trabalho Lex Doutrina
http://www.lex.com.br/doutrina_25789636_CONSIDERACOES_SOBRE_A_AUTONOMIA_DO_PROCESSO_DO_TRABALHO.aspx 7/7
(19)Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 8789.
(20)Cf. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 2224.
(21)Cf. FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Competência internacional da justiça do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 1829,57, 7986.
(22)MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do trabalho. Coimbra: Almedina, 2010. p. 1.373.
(23)Cf. MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do trabalho, cit., p. 1.373.
(24)Cf. GIGLIO, Wagner D.; CORRÊA, Claudia Giglio Veltri. Direito processual do trabalho. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.
8192. Cf., ainda, NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito processual do trabalho, cit., p. 6465.
(25)SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça, procedimento oral. São Paulo: LTr,1998. p. 25.
(26)SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Direito processual do trabalho: efetividade, acesso à justiça, procedimento oral, cit., p. 26.
(27)Cf. SILVA, Homero Batista Mateus da. Perspectivas e aspirações do processo do trabalho. Revista da Faculdade de Direitoda Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 104, p. 227238, jan.dez. 2009.
(28)Cf. Súmula nº 425 do TST: "Jus postulandi na Justiça do Trabalho. Alcance. Resolução nº 165/2010, DEJT divulgado em30.04.2010 e 03 e 04.05.2010. O jus postulandi das partes, estabelecido no art. 791 da CLT, limitase às Varas do Trabalho e
aos TRTs, não alcançando a ação rescisória, a ação cautelar, o mandado de segurança e os recursos de competência do TST".
(29)Cf. SILVA, Homero Batista Mateus da. Perspectivas e aspirações do processo do trabalho, cit., p. 227238.
(30)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Cumprimento da sentença e outros estudos da terceira fase da reforma do Código deProcesso Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2009. p. 3173.
(31)Cf. SILVA, Homero Batista Mateus da. Perspectivas e aspirações do processo do trabalho, cit., p. 227238.
(32)Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Competência da justiça do trabalho: da relação de emprego à relação de trabalho, cit.,passim.
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2016
DEMOCRACIA, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO,
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
E DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
Mauricio Godinho Delgado
*
I – INTRODUÇÃO
A análise das inter-relações entre a Constituição da República
Federativa do Brasil, o conceito constitucional de Estado Democrático de
Direito e o segmento jurídico especializado do Direito do Trabalho passa
pela referência a conceito e realidade correlatos, o da Democracia.
A Democracia consiste em uma das mais importantes e criativas
instituições geradas pela inteligência humana, propiciando o
desenvolvimento de novos e importantes fenômenos no campo da
sociedade e do Direito.
A conexão da Democracia com a História das Constituições constitui
liame que permite classificar as mais bem demarcadas fases do
constitucionalismo contemporâneo, até se chegar ao presente Estado
Democrático de Direito.
Nesse quadro de elaboração de novas realidades sociais e jurídicas e
de tessitura de inter-relações de conceitos contemporâneos, ocupa posição
de destaque o Direito do Trabalho. De simples ramo jurídico especializado,
no instante de seu nascimento há século e meio atrás, esse complexo de
princípios, regras e institutos jurídicos trilhou caminho de afirmação e
generalização, bem próximo às vicissitudes da Democracia no mundo
contemporâneo. Nesse roteiro nem sempre linear, tem despontado como
componente decisivo do próprio conceito de Estado Democrático de
Direito, em conformidade com a dimensão constitucional que o Texto
Máximo de 1988 conferiu ao fenômeno no Brasil.
Esse processo de criação e de inter-relações é que será objeto do
presente artigo.
II – DEMOCRACIA E CIVILIZAÇÃO
Democracia é construção recente na civilização. Embora a palavra
tenha origem grega há mais de dois milênios atrás, em Atenas (dêmos –
* Ministro do Tribunal Superior do Trabalho do Brasil desde 2007. Magistrado do Trabalho desde 1989.
Professor Universitário desde 1978. Doutor em Filosofia do Direito (UFMG: 1994) e Mestre em Ciência
Política (UFMG: 1980). Professor Titular do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF -, em
Brasília.
2
povo + kratía – força, poder)1, tempo em que se lançaram na cultura
ateniense antiga alguns conceitos de grande relevância para o estudo
próprio e comparativo do fenômeno, o fato é que a realidade efetiva da
Democracia somente despontou na História no período contemporâneo.
Democracia, enquanto método e institucionalização de gestão da
sociedade política e da sociedade civil, baseada ela na garantia firme das
liberdades públicas, liberdades sociais e liberdades individuais, com
participação ampla das diversas camadas da população, sem restrições
decorrentes de sua riqueza e poder pessoais, dotada de mecanismos
institucionalizados de inclusão e de participação dos setores sociais
destituídos de poder e de riqueza, é fenômeno que despontou na História
apenas a partir da segunda metade do século XIX na Europa Ocidental.
Nessa dimensão e extensão contemporâneas, com esse caráter amplo
e principalmente inclusivo - características todas muito recentes -, é que se
pode sustentar o extraordinário impacto da Democracia na História.
1 – Dimensões da Democracia
De fato, considerado esse conceito e essa realidade da Democracia,
pode-se sustentar que o fenômeno tem se afirmado como uma das maiores
construções da civilização, tomadas várias perspectivas, isoladamente ou
em conjunto, a saber, perspectiva política, social, econômica, cultural, além
da institucional.
Há, pois, um caráter multidimensional na Democracia, na acepção do
constitucionalismo contemporâneo, ultrapassando a esfera estrita da
sociedade política, para espraiar-se, cada vez mais, para áreas diversas da
sociedade civil.
No plano político, em face da Democracia, de sua construção e de
seu aperfeiçoamento, é que se viabilizou, pioneiramente, a participação da
grande maioria da população nas questões de interesse mais amplo da
comunidade. Mais do que isso, ela tem permitido e até mesmo instigado
que a seara de interesses de setores não dominantes também tenha de ser
sopesada no contexto da elaboração e concretização das políticas públicas.
Ainda no plano político, a Democracia tem viabilizado a melhor
apreensão da inteligência e esforço humanos, pela circunstância de
propiciar mais amplo e rico debate de ideias e perspectivas no interior da
comunidade.
Nesse mesmo plano, a Democracia assegura, ademais, a realização
da liberdade individual e social – apanágio de raros períodos e locais na
História -, nos limites de ordem jurídica (relativamente) consensual.
1 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1ª edição,
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 935.
3
No plano social, a Democracia incrementa instrumentos mais ágeis e
eficazes de superação das desigualdades sociais, pelo próprio dinamismo
que ela propicia ao desenvolvimento e inter-relação dos grupos sociais.
Ademais, a dinâmica democrática tende a incrementar, de maneira geral,
processos modernizantes da estrutura social, em vista da urbanização que
usualmente incentiva. Além disso, ela inevitavelmente estimula o
surgimento de políticas públicas sensíveis aos interesses dos segmentos
desfavorecidos ou até mesmo marginalizados na estrutura da sociedade.
No plano econômico, a Democracia, caso se mostre efetiva, também
favorece a superação de obstáculos ao desenvolvimento trazidos por
círculos tradicionais e restritos de poder, em face de tender a solapar, ao
longo do tempo, a higidez dos antigos mecanismos de dominação
existentes. A urbanização e a industrialização que costumam acompanhar
seu processo de consolidação, com a ruptura e superação do velho poder
rural dominante, arejam o sistema econômico do respectivo país, criando
estamentos ou, até mesmo, novas classes sociais, com integração
econômica mais ampla e efetiva do conjunto da população.
No plano cultural, a Democracia tem incentivado profundo avanço
nas relações entre as pessoas e grupos sociais, ao produzir a superação ou
revisão de inúmeras tradicionais concepções sedimentadoras da
desigualdade social e do desrespeito à dignidade da pessoa humana. A
dinâmica e a lógica democráticas é que permitem que tal processo floresça
e se espraie na sociedade, cristalizando-se em práticas e até mesmo
instituições novas aptas a concretizar o avanço cultural então atingido.
No plano institucional, a Democracia tem gerado mecanismos
permanentes na sociedade e no Estado de grande relevância à sua própria
afirmação no mundo contemporâneo e, principalmente, para o alcance de
seus objetivos centrais de incremento da participação das pessoas humanas
e de sua inclusão no interior das sociedades civil e política a que se
integram.
As instituições da Democracia, geradas no âmbito da sociedade civil,
têm grande impacto no aperfeiçoamento geral de toda a sociedade.
Observe-se, por exemplo, o papel impressionante dos inúmeros e
diversificados meios de comunicação de massa (entre os principais,
televisão, internet, jornais e revistas, por exemplo). Observe-se ainda o
papel notável de entidades associativas diversas, como sindicatos,
entidades de regulação profissional, associações civis de objetivos
variados, etc. Reflita-se sobre a importância de certas instituições
centenárias ou milenares, como as igrejas, ilustrativamente. Aponte-se,
ainda, o papel crucial desempenhado pelas escolas na estruturação dos
seres humanos e da vida social. Perceba-se a importância das empresas e
das forças econômicas (o chamado mercado econômico) na conformação
da sociedade civil de qualquer país. Note-se, por fim, a inserção dentro da
4
sociedade civil de certas instituições típicas do Estado, tais como os
partidos políticos.
As instituições da Democracia geradas no âmbito da sociedade
política (Estado) também têm grande impacto no aperfeiçoamento geral do
sistema. Citem-se, inicialmente, os partidos políticos, um dos mais
conhecidos canais de inter-relação entre a sociedade civil e a sociedade
política. Mencione-se o Poder Legislativo, com sua potencialidade de
assimilar o impacto das demandas dos diversos grupos sociais. Cite-se o
Poder Executivo, especialmente nos regimes presidencialistas, que tem
dinâmica própria, relativamente autônoma em face do Legislativo, e que
constitui importante núcleo de representação de interesses e perspectivas
gestados na sociedade. Dentro desse poder estatal, há que se enfatizar a
presença da multifacetada burocracia pública, responsável, em grande
medida, pelas políticas públicas aptas a cimentar a coesão social e garantir
um padrão mínimo de inclusão econômica e social em benefício de toda a
população. Note-se também o Poder Judiciário, que nas democracias deve
se integrar e se reger por estuário sensível à compreensão da essencialidade
da própria Democracia e seus desdobramentos na estrutura e no
funcionamento da sociedade civil e do Estado.
Os manuais de Teoria do Estado definem Democracia como regime
político, mediante o qual se assegura, em contexto de garantia das
liberdades públicas, a participação ampla da população institucionalmente
qualificada (cidadãos) na gestão do Estado e de seus organismos, seja pela
representação, seja por veículos de participação direta. Nessa medida, a
Democracia se antepõe às autocracias, que correspondem a regimes
ditatoriais de exercício do poder político.
Tais definições não estão exatamente erradas, é claro, mas
despontam, de modo enfático, como nitidamente insuficientes.
A natureza de regime político da Democracia é inegável, porém ela
não se circunscreve apenas a um temário e a uma realidade jungida à
sociedade política. Ela é bem mais do que isso (embora esse primeiro
aspecto destacado seja, de fato, muito importante). A Democracia, na
verdade, abrange praticamente todos os aspectos da vida social, invadindo,
inclusive, cada vez mais, a seara econômica; nessa medida, o conceito
ultrapassa bastante sua estrita dimensão política e institucional. Desse
modo, é evidente a natureza multidimensional do fenômeno democrático.
Em consequência, a participação ampla da população
institucionalmente qualificada, na Democracia, não se circunscreve apenas
à gestão do Estado e de seus organismos. O conceito contemporâneo de
Democracia invade também a esfera da sociedade civil, a qual, de maneira
5
geral, em alguma extensão, também tem de se subordinar aos ditames
democráticos2.
Na Democracia, todas as formas de exercício de poder, mesmo as
situadas apenas no plano da sociedade civil, estão submetidas a certas
restrições. Essas restrições serão maiores ou menores, evidentemente,
segundo a natureza, a função, os objetivos e as características das
instituições civis; porém, não existe mais, praticamente, a possibilidade
jurídica de exercício incontrastável de poder em sociedade e Estado
efetivamente democráticos.
O enquadramento da Democracia como mero regime político
(embora esse enquadramento seja importante, repita-se) ainda tem o
agravante de não perceber outra dimensão notável da Democracia, ou seja,
seu caráter inclusivo.
De fato, a Democracia, em razão de suas características e de sua
dinâmica, é tendente a produzir – ou, pelo menos, a propiciar e incentivar –
significativo processo de inclusão de pessoas humanas. Inclusão política
(obviamente, isso é de sua natureza original), inclusão social, inclusão
econômica, inclusão cultural.
A potencialidade heurística (criadora de novas hipóteses) da
Democracia evidencia-se, desse modo, como aparentemente inesgotável.
2 - Democracia e Constitucionalismo
A relevância da Democracia, enquanto construção civilizatória,
consiste, em verdade, no grande vértice do constitucionalismo
contemporâneo. A partir da plena incorporação da ideia e da dinâmica
democráticas, tanto na esfera da sociedade política, como na esfera da
sociedade civil, é que o constitucionalismo contemporâneo pode encontrar
a base para alçar a pessoa humana e sua dignidade ao topo das formulações
constitucionais.
De fato, em uma sociedade e em um Estado autoritários, se torna
simples contrafação falar-se em relevância da pessoa humana, dignidade da
pessoa humana, direitos individuais, coletivos e sociais de caráter
fundamental, em suma, falar-se em toda a notável matriz do
constitucionalismo das últimas décadas do século XX e início do presente
século. A noção ampla e a prática crescente e cada vez mais profunda da
Democracia é a energia que confere vida e dinamismo às mais importantes
constituições do mundo contemporâneo.
2 Os constitucionalistas têm percebido esse caráter multidimensional da Democracia. CANOTILHO, por
exemplo, estatui: “O princípio democrático aponta, porém, no sentido constitucional, para um processo de
democratização extensivo a diferentes aspectos da vida econômica, social e cultural” (grifos no original).
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição/8ª reimpressão,
Coimbra: Almedina, 2003.
6
É bem verdade que o primeiro marco do constitucionalismo – que foi
construído em torno do Estado Liberal Primitivo (também chamado de
Estado Liberal de Direito), a partir da segunda metade do século XVIII -
não possuía elementos que permitissem seu enquadramento dentro do
conceito e da realidade da Democracia. Tratava-se de sistemática
manifestamente excludente, dirigida apenas às elites proprietárias da
economia e da sociedade, que mantinha na segregação a larga maioria da
população dos respectivos países.
Entretanto, esse primeiro marco teve a importância histórica de fixar,
com objetividade e clareza, pela primeira vez, alguns pressupostos
decisivos para o ulterior desenvolvimento da Democracia.
Na verdade, apenas a contar do segundo marco do
constitucionalismo (Estado Social de Direito) e, principalmente, no interior
do marco mais recente do constitucionalismo (Estado Democrático de
Direito), é que a Democracia encontra força e estrutura harmônicas à sua
real importância.
III – OS GRANDES MARCOS DO CONSTITUCIONALISMO
O constitucionalismo ocidental ostenta três grandes marcos: as
constituições do Estado Liberal Primitivo (ou Estado Liberal de Direito), a
partir da segunda metade do século XVIII; as constituições que
reconheceram e institucionalizaram a transição para a Democracia,
capitaneando o denominado Estado Social de Direito, nas primeiras
décadas do século XX; finalmente, as constituições que deram corpo e
alma ao contemporâneo Estado Democrático de Direito, no período
posterior à Segunda Guerra Mundial3.
É claro que existem antecedentes ao constitucionalismo norte-
americano e ao francês, de finais do século XVIII, especialmente na
tradição inglesa. Esses prolegômenos podem se situar até mesmo séculos
atrás, no episódio da Magna Carta imposta pela nobreza fundiária ao
monarca da Inglaterra do século XIII, limitando o poder soberano. Ainda
na Inglaterra, no século XVII, a revolução gloriosa e o subsequente
documento político, Bill of Rights (1689), cuja presença pôs cobro à
autocracia monárquica, reafirmando importante alerta de resistência ao
absolutismo real.
Tais episódios e mensagens, contudo, não constituem exemplos
plenos e bem contornados de um novo e revolucionário complexo jurídico,
3 Os epítetos conferidos a esses padrões de Estado constitucional variam, relativamente. O
constitucionalista José Afonso da Silva, por exemplo, refere-se a Estado de Direito ou Estado Liberal de
Direito, quanto ao primeiro padrão; Estado Social de Direito (embora criticando esta denominação,
registre-se), no tocante ao segundo padrão; Estado Democrático de Direito, quanto ao último e atual
padrão. SILVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional Positivo, 34ª edição, São Paulo: Malheiros,
2011, p. 112-122. É claro que outros designativos existem, podendo ser utilizados no presente texto.
7
um novo Direito regente dos demais, o Direito Constitucional. O efetivo
surgimento desse Direito novo somente ocorreu na segunda metade do
século XVIII, com as constituições instituidoras do Estado Liberal
Originário (Estado Liberal de Direito).
1 – Estado Liberal Primitivo (ou Estado Liberal de Direito)
O Estado Liberal Originário consubstancia o primeiro marco do
constitucionalismo. Tem como fulcro as revoluções liberais dos Estados
Unidos da América e da França, ocorridas na segunda metade do século
XVIII, com seus respectivos documentos constitucionais.
Tais documentos são, essencialmente, a Constituição dos Estados
Unidos da América, de 1787 (dez emendas constitucionais foram logo a
seguir aprovadas, em setembro de 1789, com ratificação em dezembro de
1791), e a Constituição da França, de 17914.
Integram a origem desse marco constitucional documentos
precedentes aos dois textos constitucionais referidos. No caso dos EUA, a
Declaração de Direitos da Virgínia, de 16 de junho de 1776, a Declaração
de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776,
além de “outras Declarações de Direitos dos primeiros Estados”5. No caso
da França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Conquistas importantes ocorreram nesse primeiro marco do
constitucionalismo contemporâneo. Tais conquistas, em alguns casos,
seriam explicitadas somente no decorrer do tempo, a partir da construção
jurisprudencial firmada pela Corte Superior respectiva – fato mais notável
especialmente na tradição norte-americana.
Destaque-se, em primeiro lugar, a própria ideia da relevância do
documento constitucional escrito, como síntese das regras dirigentes
principais da estrutura do Estado.
Em segundo lugar, há que se destacar o princípio da primazia da
Constituição na ordem jurídica de cada Estado e sociedade. Essa primazia
constitucional passou a superar, firmemente, qualquer outra tese ou prática
anteriores de prevalência, seja em favor do Poder Executivo (tese e prática,
em geral, cara às monarquias tradicionais ao longo da História), seja em
favor do Poder Legislativo (tese e prática que se mostraria insinuante e
resistente na tradição europeia formada mesmo após as revoluções
liberais)6.
4 A respeito, consultar MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, 7ª edição, Coimbra
(Portugal): Coimbra, 2003, tomo I, p. 141-149. Também MORAES, Alexandre de, Direito
Constitucional, 26ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 1-3. Ainda, LENZA, Pedro, Direito Constitucional
Esquematizado, 13ª edição, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 6-7. 5 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, ob. cit., p. 142. Também MORAES, Alexandre
de, Direito Constitucional, 26ª ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 1-3. 6 Sobre esse contraponto, primazia da Constituição (logo afirmada, no início do século XIX, pela
Suprema Corte, na jovem república dos EUA) versus primazia do Parlamento (algo insistida na tradição
8
Conforme se sabe, na célebre decisão do caso Marbury v. Madison,
prolatada em 1803, a Suprema Corte dos EUA decidiu ser a Constituição
diploma normativo superior a qualquer outro, de qualquer origem, cabendo
ao Judiciário realizar sua interpretação, à medida que interpretar as normas
jurídicas e seus diplomas é tarefa inerente ao Poder Judiciário7.
Destaque-se também a afirmação das primeiras e grandes liberdades
individuais – liberdade de opinião, de locomoção, de reunião, de
manifestação do pensamento, de informação, por exemplo -, que consistem,
com é óbvio, em requisito mínimo para qualquer construção efetiva da
Democracia.
É claro que, no modelo liberal primitivo, tais liberdades eram
circunscritas, efetivamente, apenas às elites proprietárias das respectivas
sociedades - o que conferia a tais postulados caráter de efetiva contrafação.
Esse caráter mais se exacerbava ao se perceber a harmônica convivência do
estuário liberal originário com as próprias idéias e práticas da escravidão.
De fato, no primitivismo da concepção da época ainda não se compreendia
traduzir manifesta antinomia atar semelhante prerrogativas à noção de
propriedade e não apenas ao fato e à noção de pessoa humana. Era mesmo
inviável perceber-se, nessa fase ainda rudimentar, existir relativa
contraposição entre propriedade e liberdade, caso a segunda dependesse –
como era o caso – da primeira.
Enfatize-se ademais a afirmação das primeiras liberdades públicas –
liberdade de reunião e de organização, de propagação de informações e
opiniões, de manifestação coletiva de opinião, por exemplo -, as quais
também seriam, no futuro, depois de ampliadas para os diversos segmentos
da sociedade, requisito mínimo para a construção efetiva da Democracia.
Aqui cabe, igualmente, ressaltar que tais primeiras e decisivas
liberdades públicas ainda não se estendiam a todas as camadas da
população – circunstância que evidenciava os modestos limites do Estado
Liberal Primitivo. De toda maneira, a própria existência histórica de tais
liberdades criava canais para sua subsequente extensão a partir da segunda
metade do século XIX.
Agreguem-se, ademais, as liberdades e direitos políticos clássicos,
tais como o direito de voto, o direito de ser votado, o direito de petição, o
europeia posterior às revoluções liberais), consultar BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, “Capítulo 1 –
Noções Introdutórias”, in MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, Curso de
Direito Constitucional, 6ª ed., SãoPaulo-Brasília: Saraiva-IDP, 2011, p. 45-61. Consultar também
MIRANDA, Jorge, ob. cit., p. 149-152. Jorge MIRANDA, a propósito, demonstra a resistência do
constitucionalismo francês, mesmo já no século XX, em deferir aos tribunais “competência para apreciar
a constitucionalidade das leis”. Ob. cit., p. 169-170. 7 A respeito, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet, ob. cit., p. 59-60. Expõe este mesmo constitucionalista: “O
caso Marbury v. Madison reclama superioridade para o Judiciário, argumentando, essencialmente, com a
ideia de que a Constituição é uma lei, e que a essência da Constituição é ser um documento fundamental e
vinculante. Desenvolve a tese de que interpretar as leis insere-se no âmbito das tarefas próprias ao
Judiciário”. In ob. cit., p. 60.
9
direito de constituir e participar de partidos políticos, ilustrativamente.
Naturalmente, conforme se conhece, todas essas inovações também se
demarcam pelo caráter censitário, nos limites do modelo liberal primitivo,
não favorecendo, desse modo, o conjunto da população, porém apenas as
elites proprietárias.
Há que se indicar, por fim, as restrições jurídicas e institucionais que
se criaram ao Poder Executivo, instaurando limitação de poderes que seria
fundamental ao posterior desenvolvimento das ideias e práticas
democráticas.
No plano da sociedade civil – o reino da propriedade, segundo o
ideário liberalista, como se sabe -, ocorreria importante avanço teórico,
jurídico e institucional, com forte repercussão nas fases seguintes. É que a
ordem jurídica do Estado Liberal Primitivo confere reconhecimento e
institucionalização ao primeiro relevante patamar de separação do ser
humano e de seu trabalho do conceito e realidade do direito de
propriedade.
Ora, a separação do indivíduo, com sua força de trabalho, da noção
jurídica de propriedade – separação inviável nos períodos essencialmente
escravagistas e de servidão – é fato cardeal para os avanços democráticos
experimentados pela sociedade ocidental tempos depois. A afirmação do
trabalho livre (embora tivesse algo de falacioso no período do liberalismo)
constituiu mudança cultural, jurídica, social e econômica de grande
relevância, sendo também, é claro, evidente pressuposto para a posterior
construção democrática.
Todas essas conquistas do Estado Liberal Primitivo traduzem, como
visto, pressupostos relevantes para a subsequente construção da ideia e da
prática democráticas, apanágio da segunda metade do século XIX e
décadas iniciais do século XX.
2 – Estado Social de Direito (ou Estado Social)
O Estado Social de Direito (também chamado de Estado Social)
consubstancia o segundo marco do constitucionalismo. Tem como fulcro o
processo de renovação política e jurídica que ocorreu a partir da segunda
década do século XX, tão bem manifestado em duas constituições
pioneiras, a do México de 1917 e a da Alemanha, de 1919. No Brasil, a
Constituição de 1934 expressa bem esse marco e, em certa medida, a
Constituição de 1946.
Traduz nítido fenômeno de transição, no sentido de que já aponta
para um processo de democratização da sociedade política e da sociedade
civil – à diferença do marco constitucional primitivo -, mas ainda não
consegue desvelar fórmula plena e consistente do novo paradigma em
construção. As constituições dessa fase, segundo Paulo Bonavides,
10
exprimem, “de princípio, um estado de independência, transitoriedade e
compromisso”8.
Esse marco constitucional apresenta destaques que merecem ser
especificadamente referidos.
O primeiro plano de destaques corresponde ao processo de avanço
das liberdades e direitos reconhecidos ou criados pelo Estado Liberal
Primitivo em direção às grandes massas da população.
Nessa linha, manifesta-se a conquista das grandes liberdades
individuais, em certa medida pelo menos, pelos setores subordinados na
estrutura econômica e social, que passam a ter institucionalizados
instrumentos de exercício do direito de opinião, de reunião, de
manifestação do pensamento, de informação, especialmente por meio de
suas organizações coletivas profissionais (os sindicatos) e político-
partidárias (os partidos populares), agora já permitidas e
institucionalizadas.
Na mesma direção, realiza-se a conquista das chamadas liberdades
públicas - liberdade de reunião e de organização, de propagação de
informações e opiniões, de manifestação coletiva de opinião, por exemplo
– pelos demais segmentos sociais, mesmo quando subordinados na
estrutura socioeconômica do respectivo país. Essa conquista também se
materializou por meio, especialmente, das instituições intermediárias de
organização e representação dos grupos sociais, em particular as entidades
sindicais e os partidos políticos populares, únicos instrumentos capazes de
superar as limitações materiais inerentes ao exercício de várias dessas
prerrogativas (equipamentos organizacionais, meios de comunicação de
massa, etc.).
Ainda nesse relevante movimento, em harmonia às conquistas
anteriores e com elas combinadas, a obtenção, pelos segmentos populares,
das liberdades e dos direitos políticos clássicos, tais como, ilustrativamente,
o direito de voto, o direito de ser votado, o direito de petição, o direito de
constituir e participar de partidos políticos. Tal conquista materializa-se por
meio da extirpação das sistemáticas censitárias e congêneres dos sistemas
político-institucionais, de modo a incorporar os setores populares e as
mulheres na vida político-institucional.
O segundo plano de destaques tem forte caráter inovador,
correspondendo à assimilação, pelas novas constituições, de ramos
jurídicos novos, especialmente atados a perspectivas e interesses das
classes populares. É o que se passa com o fenômeno da
constitucionalização do Direito do Trabalho e do Direito de Seguridade
8 BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 24ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009, p. 231.
Referindo-se, especificamente, ao Texto Máximo da Alemanha, o autor declara: “A Constituição de
Weimar foi fruto dessa agonia: o Estado Liberal estava morto, mas o Estado social ainda não havia
nascido”. Ob. cit., p. 233.
11
Social pela Constituição do México, de 1917, e da Alemanha, de 1919. A
partir de então ganham status constitucional regras e princípios jurídicos
antitéticos ao liberalismo prevalecente na fase originária das constituições,
apontando direção muito distinta para o desenvolvimento do
constitucionalismo ocidental.
Além do significado intrínseco da incorporação de ramo jurídico
aparentemente revolucionário, como o Direito do Trabalho, esse fato
também traduzia, de certo modo, a primeira manifestação constitucional no
sentido de autorizar a intervenção do Estado na ordem econômica e social.
Tanto o Direito de Seguridade Social, como o Direito do Trabalho (este,
registre-se, em grau muito mais acentuado), expressam o fenômeno do
intervencionismo estatal na vida socioeconômica, tendência que iria se
tornar, décadas depois, muito mais ampla do que originalmente pensado
pelo Estado Social de Direito.
Essa incorporação do segmento jurídico trabalhista também fazia
avançar, agora mediante status constitucional, o processo anterior de
reconhecimento e institucionalização da separação do ser humano e de seu
trabalho perante o conceito e a realidade do direito de propriedade. A
separação da força de trabalho do indivíduo e de sua própria pessoa de
qualquer resquício da ideia de propriedade é avanço cultural já percebido
na fase anterior e que agora ganha completa consistência, invertendo-se o
polo jurídico na direção de garantir proteções e vantagens ao indivíduo que
trabalha, ao invés de ser o trabalho um demérito. O trabalho, desse modo,
marcha, celeremente, em meio a processo de mudança cultural, jurídica,
social e econômica de grande relevância, para se tornar valor especialmente
celebrado pela ordem jurídica e constitucional.
Naturalmente que essa incorporação do Direito do Trabalho pelas
novas constituições repercute fortemente na sociedade civil, assegurando o
avanço do processo de desmercantilização do trabalho na economia e de
democratização do poder no interior da sociedade civil.
O Estado Social de Direito é, entretanto, de fato, apenas um modelo
jurídico e político de transição, uma fase intermediária do
constitucionalismo; é expressão de uma crise no paradigma originário, sem
que se tenha ainda construído, com plenitude, novo e próprio paradigma.
Efetivamente, esse padrão constitucional, embora tenha superado aspectos
importantes do período precedente, ainda não conseguiu expressar um real
paradigma novo de estrutura das constituições.
Tratando das constituições dessa fase, Paulo Bonavides expõe que
elas exprimem, “de princípio, um estado de independência, transitoriedade
e compromisso”.9 O Texto Máximo da Alemanha, de 1919, segundo o
autor, é exemplo dessa dimensão de crise, de transitoriedade: “A
9 BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 231.
12
Constituição de Weimar foi fruto dessa agonia: o Estado Liberal estava
morto, mas o Estado social ainda não havia nascido”.10
Essa característica transitória se expressa, ilustrativamente, na
circunstância de tais constituições inserirem os direitos individuais da
pessoa trabalhadora, todos também de caráter social, além dos direitos
coletivos trabalhistas, ao final dos textos constitucionais, como espécie de
anexo estranho a seu efetivo corpo constitucional.
Além disso, essa fase histórica e teórica ainda não tem inteira noção
da efetiva relevância da pessoa humana na estrutura da sociedade política e
da sociedade civil, inserindo regras a seu respeito como espécie de “carta
de direitos”, um rol anexo de preceitos estranhos à vida e à estrutura das
constituições.
Por isso é que o constitucionalismo desse período – ainda que
reproduzido contemporaneamente – formulou a bastante divulgada
distinção entre regras constitucionais em sentido material e regras
constitucionais em sentido formal. As primeiras, tratando do Estado, sua
estrutura, competência, prerrogativas, por exemplo, traduziriam o núcleo
próprio de qualquer Constituição. As segundas, tratando, ilustrativamente,
dos direitos sociais trabalhistas e de seguridade social, não fariam parte
desse núcleo próprio, estando apenas circunstancialmente (e, quem sabe,
impropriamente) inseridas na Carta Magna; elas se enquadrariam, desse
modo, apenas formalmente – mas não materialmente, substantivamente –
como regras constitucionais.
Está muito clara essa transitoriedade ainda no fato de essas
relevantes constituições não terem tido o condão de expressar, com clareza
de regras e princípios, a centralidade da questão democrática não apenas no
âmbito da sociedade política (Estado), como também no universo da
sociedade civil.
3 – Estado Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito consubstancia o marco
contemporâneo do constitucionalismo. Tem como fulcro o processo de
transformação política, cultural e jurídica que ocorreu a partir dos finais da
Segunda Guerra Mundial, na realidade histórica do Ocidente.
Ele se expressa, em um primeiro momento, nas Constituições da
França (1946), Itália (1947) e Alemanha (1949), todas de fins da década de
1940. Esse marco, contudo, continuou a se elaborar em textos
constitucionais que surgiram nas décadas posteriores, como a de
Constituição de Portugal, de 1976, a da Espanha, de 1978, além da
Constituição do Brasil, de 1988.
10
BONAVIDES, Paulo, ob. cit., p. 233.
13
O Estado Democrático de Direito consubstancia claro fenômeno de
maturação histórica e teórica, uma vez que incorpora a relevância da
Democracia na construção de seu conceito político e jurídico. Nessa
medida, dá origem a real inovador paradigma de organização e gestão da
sociedade civil e da sociedade política.
Nesse novo paradigma conceitual, tem destaque diferenciado a
importância da pessoa humana e sua dignidade, que direciona princípios e
regras para toda a sua matriz teórica e prática.
Na mesma linha de relevo, desponta a concepção democrática de
organização e funcionamento da sociedade política e da sociedade civil,
erigindo-se a Democracia como o veículo e a estrutura para a melhor
realização, nas mais diversas dimensões, do Estado Democrático de Direito
O conceito de Estado Democrático de Direito funda-se em um
inovador tripé conceitual: pessoa humana, com sua dignidade; sociedade
política, concebida como democrática e inclusiva; sociedade civil,
concebida como democrática e inclusiva. Nessa medida, apresenta clara
distância e inovação perante as fases anteriores do constitucionalismo.
O paradigma novo fez-se presente na estrutura de princípios,
institutos e regras da Constituição da República Federativa do Brasil, de
1988, constituindo o luminar para a compreensão do espírito e da lógica da
ordem constitucional do país.
IV – ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO COMO MARCO
CONTEMPORÂNEO DO CONSTITUCIONALISMO
O Estado Democrático de Direito consubstancia o marco
contemporâneo do constitucionalismo. Tem como fulcro, conforme visto, o
processo de transformação política, cultural e jurídica que se verificou a
partir dos finais da Segunda Guerra Mundial. Ele se manifesta, em um
primeiro momento, nas Constituições da França, Itália e Alemanha, de fins
da década de 1940, embora também continuasse a se elaborar em textos
constitucionais de várias décadas depois, como o de Portugal, de 1976, o da
Espanha, de 1978, além da Constituição do Brasil, de 1988.
Traduz nítido fenômeno de maturação, no sentido de que incorpora,
com plenitude, a importância do fenômeno democrático na construção do
conceito jurídico e político novo de Estado Democrático de Direito, dando
origem a paradigma, real e inovador, de organização e gestão da sociedade
e do Estado.
Tambem incorpora, com plenitude, a relevância da pessoa humana e
de sua dignidade – largamente compreendido o conceito – no âmbito da
sociedade política e, igualmente, da sociedade civil, lançando essa matriz
conceitual em suas regras e princípios.
14
O inovador paradigma constitucional ainda abrange a ideia de
desmercantilização de certos valores e práticas na economia e na
sociedade, como instrumento necessário para a realização de certos
princípios, valores e regras fundamentais do Estado Democrático de
Direito. Essa característica leva, uma vez mais, ao conjunto da sociedade
civil – e não apenas da sociedade política -, o vetor dirigente da respectiva
Constituição.
O intervencionismo estatal na economia e a subordinação da
propriedade privada à sua função social, que despontaram no
constitucionalismo precedente (Estado Social de Direito), são marcas
importantes e bem definidas do presente paradigma constitucional. É que
ele labora em torno de noções como dignidade da pessoa humana, direitos
individuais e sociais fundamentais, valorização do trabalho e especialmente
do emprego, sociedade livre, justa e solidária, erradição da pobreza, da
marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, justiça
social - em suma, noções que reconhecem que o mercado privado, por si
somente, sem regulação e induções públicas, é incapaz de atender os
anseios cardeais de um Estado Democrático de Direito.
O conceito inovador de Estado Democrático de Direito funda-se em
um inquebrantável tripé conceitual: pessoa humana, com sua dignidade;
sociedade política, concebida como democrática e inclusiva; sociedade
civil, concebida como democrática e inclusiva.
A pessoa humana, com sua dignidade, constitui o ponto central do
Estado Democrático de Direito. Daí que firmam, essas Constituições do
pós-Segunda Guerra, o princípio da dignidade da pessoa humana como a
diretriz cardeal de toda a ordem jurídica, dotado de enfático assento
constitucional.
A eleição da pessoa humana como ponto central do novo
constitucionalismo, que visa a assegurar sua dignidade, supõe a necessária
escolha constitucional da Democracia como o formato e a própria energia
que têm de perpassar toda a sociedade política e a própria sociedade civil.
Sem Democracia e sem instituições e práticas democráticas nas diversas
dimensões do Estado e da sociedade, não há como se garantir a
centralidade da pessoa humana e de sua dignidade em um Estado
Democrático de Direito. Sem essa conformação e essa energia
democráticas, o conceito inovador do Estado Democrático de Direito
simplesmente perde consistência, convertendo-se em mero enunciado vazio
e impotente.
A pessoa humana e sua dignidade estão enfatizadas, em uma
Constituição criadora e regente de um Estado Democrático de Direito, em
diversos de seus segmentos e enunciados: por exemplo, nos princípios
fundamentais; nos direitos e garantias fundamentais; na regulação da ordem
econômica e financeira; na regulação da ordem social. Em todas essas
15
dimensões constitucionais, a centralidade da pessoa humana e sua
necessária dignidade estão explícita ou implicitamente asseguradas.
Do mesmo modo, o caráter democrático e inclusivo da sociedade
política está certificado, explícita ou implicitamente, em uma Constituição
criadora e regente de um Estado Democrático de Direito.
Há, de fato, instituições da sociedade política que expressam o
próprio espírito e exercício da Democracia, tais como os partidos políticos,
o Parlamento, o processo eleitoral etc. Outras traduzem essa presença por
meio de certos aspectos, embora não todos. É o que se passa com o critério
geral de recrutamento dos quadros da burocracia pública, mediante
concursos públicos.
É claro que existem instituições tipicamente estatais com grau
variado e específico de inserção no vetor democrático, como, por exemplo,
o Poder Judiciário, o aparelho policial do Estado e as Forças Armadas.
Porém isso não quer dizer que não se harmonizem, dentro de suas
peculiaridades públicas, ao imperativo democrático.
Por fim, também o caráter democrático e inclusivo da sociedade civil
está asseverado, explícita ou implicitamente, em uma Constituição criadora
de um efetivo Estado Democrático de Direito.
Conforme já exposto, há, de fato, instituições da sociedade civil que
expressam o próprio espírito e exercício da Democracia, tais como os
sindicatos e os movimentos coletivos experimentados no mundo do
trabalho. Há ainda as diversas outras entidades organizativas da sociedade
civil, de grande importância na vida democrática. Nesse grupo, arrolem-se
os meios de comunicação de massa (internet, televisão, rádio, revistas,
jornais etc.), que atuam fortemente também na dinâmica de inter-relação
Estado/sociedade civil.
É claro que existem instituições da sociedade civil que não estão
integralmente submetidas ao imperativo democrático e inclusivo, tais como
ocorre com as empresas e o conjunto do mercado econômico. Podem ou
não ser mais ou menos democráticas e inclusivas essas entidades, como se
sabe. Entretanto, ainda assim, estão jungidas a cumprir largo rol de regras e
princípios jurídicos afirmativos do imperativo democrático e de inclusão
social na sociedade política e na sociedade civil. Um dos melhores
exemplos aplicáveis a esse universo empresarial é o Direito do Trabalho,
com suas regras e princípios de tutela da dignidade da pessoa humana, de
moderação no exercício do poder empresarial, de inclusão social e
econômica de trabalhadores.
Estado de Bem Estar Social
Como se percebe pelas características do paradigma do Estado
Democrático de Direito, ele é mais bem atendido, do ponto de vista
16
histórico, concreto, prático – nos marcos do sistema capitalista -, pelo
experimento que se tem denominado de Estado de Bem Estar Social,
Estado Providência ou Welfare State. Esse experimento vicejou
principalmente na Europa Ocidental, a partir do término da Segunda Guerra
Mundial, mantendo-se, em sua essência, presente na região até os dias
atuais.
É evidente que o Welfare State tem sofrido mudanças, algumas
decorrentes da necessária adaptação de suas regras às conquistas da
medicina e da demografia – como se passa com o sistema de Seguridade
Social, que tem calibrado as idades de aposentadoria ao gradativo avanço
das expectativas de vida e de trabalho das respectivas populações. Tais
mudanças sequer diminuem o Estado de Bem Estar Social, repita-se, mas
apenas o calibram ao resultado das conquistas que ele próprio promoveu.
Algumas modificações - reconheça-se - derivam do assédio contínuo,
nos últimos 30 anos, do ideário liberalista que se tornou hegemônico no
Ocidente desde finais dos anos de 1970. Considerada a força desse assédio,
entretanto, com os impressionantes instrumentos de poderio econômico e
midiático que ostenta, mostram-se pouco significativos os recuos do Estado
de Bem-Estar Social em importantes países europeus.
Claro que a configuração do Estado Providência não se mostrou
uniforme no universo europeu ocidental, não traduzindo um modelo único
e indiferenciado. Conforme se sabe, o Welfare State sempre foi mais
generalizado, profundo e economicamente mais bem sucedido nos países
nórdicos (especialmente Suécia, Dinamarca e Noruega), em seguida na
Alemanha e na França, em contraponto a uma configuração menos
acentuada e bem sucedida nos países europeus do Mediterrâneo (Itália, por
exemplo) e do sul europeu (Espanha e Portugal). Não se trata, portanto, de
um único e indiferenciado modelo, caso sopesadas as diversas experiências
nacionais da região (mesmo após a criação da União Europeia, em 1992,
ou da moeda única, euro, em 2002)11
. Porém, se realizada a comparação em
contraponto a países sob influência do velho paradigma do Estado Liberal
Primitivo, a diferença é simplesmente manifesta.
Registre-se que essas mudanças ocorridas nas últimas décadas no
Welfare State de vários países da Europa Ocidental não tem sido capazes
de desconstruir a essência do modelo de bem-estar social. Esse modelo,
como se conhece, funda-se no intervencionismo estatal, na regulação
socioeconômica do mercado privado, em uma importante presença estatal
11
A União Europeia é produto de antigo sonho de pacifistas europeus, cujo início concreto deflagrou-se a
partir de tratados de cooperação econômica entre Estados, subscritos depois da Segunda Guerra Mundial
(o primeiro deles, Tratado de Paris, de 1951, envolveu seis Estados). A intensificação e alargamento da
ideia de comunidade europeia, por além da noção original de Estado, ocorreu nas décadas seguintes,
mediante a lavratura de vários tratados, até que, em 1992, foi assinado, por doze membros originais, o
Tratado de Maastricht (ou Tratado da União Europeia), que entrou em vigor em novembro de 1993. A
partir desse marco histórico, houve crescente adesão de novos Estados à União Europeia.
17
no conjunto da economia, na desmercantilização relativa de certos bens,
valores e práticas. Tal modelo é que tem obtido sucesso no continente
europeu com respeito à construção e manutenção de uma sociedade que
assegure a dignidade à pessoa humana, os direitos individuais e sociais
fundamentais, a valorização do trabalho e especialmente do emprego; que
seja, no possível, exemplo de sociedade livre, justa e solidária, garantindo a
erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades
sociais e regionais; que realize, em síntese, a ideia matriz de justiça
social12
.
V – ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA E DIREITOS SOCIAIS
O Estado Democrático de Direito consubstancia o marco
contemporâneo do constitucionalismo. No Brasil, esse marco apresentou-
se, de certo modo, na Constituição de 1946, embora somente tenha
claramente se afirmado na Constituição da República de 1988.
A Constituição de 1946, na verdade, mesmo tendo elementos
importantes a um Estado Democrático de Direito – a exemplo de sua
estruturação notoriamente democrática -, ainda melhor se enquadrava
dentro dos parâmetros do constitucionalismo imediatamente anterior, o do
Estado Social de Direito (nessa medida, à semelhança da Constituição
brasileira de 1934).
Em 1988 é que o paradigma do Estado Democrático de Direito
realmente se expressa de maneira plena em um texto constitucional do país.
Conforme já exposto, o conceito de Estado Democrático de Direito
funda-se em um inovador tripé conceitual: pessoa humana, com sua
dignidade; sociedade política, concebida como democrática e inclusiva;
sociedade civil, concebida como democrática e inclusiva.
Esse tripé conceitual está claramente inserido na Constituição da
República de 1988.
De fato, a pessoa humana, com sua dignidade, está fortemente
afirmada em diversos títulos da Constituição. No Título I, que trata “Dos
Princípios Fundamentais”; no Título II, tratando “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”; no Título VII – “Da Ordem Econômica e Financeira”;
finalmente, no Título VIII – “Da Ordem Social”.
12
A respeito do Welfare State, suas características e modificações nas últimas décadas, consultar,
ilustrativamente, DELGADO, Mauricio Godinho e PORTO, Lorena Vasconcelos (Org.), O Estado de
Bem Estar Social no Século XXI, São Paulo: LTr, 2007. Também CONDÉ, Eduardo Salomão, Laços na
Diversidade – a Europa Social e o Welfare em Movimento (1992-2002), Juiz de Fora: UFJF, 2008.
Ainda: KERSTENETZKY, Célia Lessa. O Estado do Bem-Estar Social na Idade da Razão – reinvenção
do Estado Social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Igualmente: KRISTENSEN,
Peer Hull e LILJA, Kari (ed.). Nordic Capitalisms and Globalization – new forms of economic
organizations and welfare institutions. Oxford (UK): Oxford University Press, 2012.
18
A concepção de sociedade política democrática e inclusiva está
também asseverada em diversos títulos do Texto Máximo de 1988. O
Título I (“Dos Princípios Fundamentais”) e o Título II (“Dos Direitos e
Garantias Fundamentais”), que tão bem demarcam a superioridade desta
Constituição na evolução histórica constitucional brasileira, submetem as
entidades estatais ao império dos direitos humanos fundamentais.
Os demais títulos, tratando especificamente da estruturação do
Estado e seus entes, também deixam implícito esse caráter democrático e
inclusivo da sociedade política. Vejam-se o Título III – “Da Organização
do Estado”; o Título IV – “Da Organização dos Poderes”; o Título V – “Da
Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”; o Título VI – “Da
Tributação e do Orçamento”.
A concepção de sociedade civil democrática e inclusiva também está
exposta em diversos títulos da Constituição. Note-se a forte diretriz dos
Títulos I e II, os quais submetem as entidades, dinâmicas e práticas da
sociedade civil ao império dos direitos humanos fundamentais.
Essa concepção fica ainda muito evidente no Título VII, que cuida
“Da Ordem Econômica e Financeira”, e no Título VIII, que trata “Da
Ordem Social”.
Os direitos sociais, especialmente os trabalhistas, compõem o núcleo
da Constituição da República, com presença marcante no interior do
decisivo Título II, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” (art.
6º a 11).
Dispõe o art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”.13
O art. 7º, por sua vez, estipula para os trabalhadores largo rol de
direitos trabalhistas, ao lado de alguns previdenciários, fixando um piso
constitucional mínimo para a contratação e gestão trabalhistas no país.
Tão importante quanto esse rol é a circunstância de o mesmo
preceito, no caput do art. 7º, incorporar o relevante princípio da norma
mais favorável no corpo constitucional, ao dispor: “São direitos dos
trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:” (grifos acrescidos). Com isso, a Constituição reforçou a
imperatividade da ordem jurídica trabalhista infraconstitucional que regula
os contratos empregatícios na economia e sociedade brasileiras,
incentivando também iniciativas de incremento dessa legislação ao longo
do tempo.
13
O texto original do art. 6º foi ampliado por duas emendas constitucionais: a de n. 26, de 2000,
introduziu a moradia como direito social, ao passo que a Emenda Constitucional n. 64, de 2010,
introduziu a alimentação como direito social.
19
Note-se que os direitos sociais trabalhistas têm múltipla dimensão,
ultrapassando o caráter unívoco na vida socioeconômica. Indubitavelmente,
ostentam a natureza de direitos e garantias individuais dos trabalhadores,
uma vez que a sua titularidade específica é atribuída a cada indivíduo
delimitado, no universo dos contratos de trabalho existentes. Contudo,
evidenciam igualmente a dimensão de direitos e garantias de natureza
coletiva, uma vez que tendem a abranger, de maneira geral, as categorias
profissionais em que se inserem os trabalhadores, além da comunidade
trabalhista dos estabelecimentos e das empresas. Ao lado de sua dimensão
individual e coletiva, os direitos trabalhistas inscrevem-se ainda como
nítidos direitos sociais, compondo o largo espectro das proteções e
vantagens criadas pelo Estado Democrático de Direito como mecanismo de
certificação de seus princípios fundamentais.
Considerada sua primeira dimensão (direitos e garantias individuais
dos trabalhadores), não são passíveis de modificação in pejus, ainda que
por meio de emenda constitucional. É o que resulta do disposto no art. 60, §
4º, IV, da Constituição e da própria circunstância de integrarem o núcleo
dos direitos individuais fundamentais do Texto Máximo da República.14
VI – CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITO DO TRABALHO:
DIRETRIZES ESSENCIAIS DA CONFORMAÇÃO
CONSTITUCIONAL BRASILEIRA
A Constituição da República Federativa do Brasil inseriu em seu
núcleo mais importante e definidor o Direito do Trabalho.
É o que resulta da circunstância de se estruturar em torno da matriz
de um Estado Democrático de Direito, com destaque para os direitos
fundamentais da pessoa humana, inclusive os que tenham concomitante
dimensão coletiva e social. Tais direitos ocupam o centro da estrutura
normativa constitucional, alçando em seu ápice a pessoa humana e sua
dignidade. Além disso, a mesma circunstância demarca a ideia e a prática
da Democracia como luminar normativo do Texto Máximo, focado em
direção à sociedade política e também à sociedade civil.
É impensável a estrutura e a operação prática de um efetivo Estado
Democrático de Direito sem a presença de um Direito do Trabalho
relevante na ordem jurídica e na experiência concreta dos respectivos
Estado e sociedade civil. É que grande parte das noções normativas de
democratização da sociedade civil (e, em certa medida, também do Estado),
garantia da dignidade da pessoa humana na vida social, garantia da
prevalência dos direitos fundamentais da pessoa humana no plano da
14
O art. 60 da Constituição trata das emendas constitucionais, estabelecendo em seu § 4º, IV, que: “Não
será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) os direitos e garantias individuais”.
20
sociedade, subordinação da propriedade à sua função social, garantia da
valorização do trabalho na atividade econômica e do primado do trabalho e
especialmente do emprego na ordem social, desmercantilização de bens e
valores cardeais na vida socioeconômica e justiça social, em suma, grande
parte das noções essenciais da matriz do Estado Democrático de Direito
estão asseguradas, na essência, por um amplo, eficiente e incisivo Direito
do Trabalho disseminado na economia e sociedade correspondentes.
Essa notável compreensão constitucional, tão bem expressa no Texto
Magno de 1988, é que levou à inserção do Direito do Trabalho para dentro
dos dois títulos mais importantes da Constituição (o de n. I – “Dos
Princípios Fundamentais” e o de n. II – “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”), fazendo esse ramo jurídico e seu objeto, o trabalho,
também abrir, como luminar geral normativo, os notáveis Título VII (“Da
Ordem Econômica e Financeira”) e Título VIII (“Da Ordem Social”).
Diretrizes Constitucionais
Passados mais de 25 anos do surgimento da Constituição, já existe
maturidade histórica, cultural e científica para se bem compreender suas
diretrizes essenciais com respeito ao Direito do Trabalho. Na verdade, hoje
se tem claro que a Constituição de 1988 produziu leitura e compreensão
abrangentes do Direito do Trabalho na economia, na sociedade e na ordem
jurídica brasileiras, destacando com clareza seu papel na sociedade política
e na sociedade civil do país.
Eis as diretrizes essenciais da Constituição da República
relativamente ao Direito do Trabalho do Brasil:
a) No tocante à dimensão individual e coletiva do Direito do
Trabalho, a Constituição firmou clara prevalência do Direito Individual do
Trabalho perante o Direito Coletivo do Trabalho, em casos de confrontos
de normas jurídicas.
Todos conhecem, é claro, a notável importância do Direito Coletivo
do Trabalho. Trata-se do segmento do Direito do Trabalho que melhor
expressa a capacidade de agregação dos trabalhadores em torno de suas
entidades coletivas, conduzindo a certo clímax os direitos de reunião,
organização e manifestação inerentes à Democracia.
É o Direito Sindical expressão e mecanismo notáveis de
democratização da sociedade civil, especialmente em seu âmbito social e
econômico, permitindo o alcance de fórmulas mais participativas e
equânimes de gestão social no mundo do trabalho. Por meio desse
segmento jurídico e de seus institutos, princípios e regras, a Democracia
invade a sociedade civil, concretizando mais de perto sua expansividade,
marca que tão bem distingue o Estado Democrático de Direito.
21
O Direito Coletivo do Trabalho (ou Direito Sindical), mediante a
negociação coletiva, pode até mesmo criar normas jurídicas, dando origem
a um estuário normativo relevante nas economias e sociedades
contemporâneas.
A Constituição de 1988 reconheceu a importância do Direito
Coletivo na ordem jurídica do país, atribuindo-lhe status superior ao fixado
nos documentos constitucionais precedentes. Entretanto, não deixou de
enfatizar a primazia dos direitos individuais e sociais trabalhistas
estabelecidos nos diplomas heterônomos estatais do Brasil.
De fato, considerou a Constituição que o Direito Individual do
Trabalho tem maior aptidão para atingir, com maior celeridade, eficiência e
generalização, o conjunto da economia e da sociedade brasileiras, de modo
a realizar um efetivo Estado Democrático de Direito no país. De fato, o
Direito Individual tem plenas condições de estar presente, ao mesmo
tempo, em todos os rincões e segmentos da realidade brasileira,
independentemente da conjuntura política ou sindical, da maior ou menor
organização da classe trabalhadora nas múltiplas áreas do mercado de
trabalho e regiões do país. Em face dessas suas características - que bem se
ajustam à enorme dimensão geográfica e populacional do Brasil -, o Direito
Individual do Trabalho despontaria como mais inclusivo, rápido e
universal, mesmo em contexto de incentivos normativos constitucionais
manifestos ao avanço e aperfeiçoamento do Direito Coletivo do Trabalho.
Nessa medida, para o Texto Máximo da República, despontaria o
Direito Coletivo como instrumento adicional para o aprofundamento e
melhoria das regras legais, nos segmentos profissionais mais bem
organizados.
A Constituição aponta, desse modo, para a generalização e o
aperfeiçoamento do Direito Coletivo, embora ciente de suas ainda claras
limitações na realidade sindical, institucional, social e econômica do país.
Nessa mesma direção do novo constitucionalismo brasileiro,
desponta inegável prevalência das normas imperativas estatais, que
compõem o Direito Individual do Trabalho, sobre as normas coletivas, as
quais não recebem poder para diminuir as garantias legais, salvo exceções
indubitavelmente fixadas.
Em consequência dessa direção constitucional, não há sentido em se
pensar em instrumentos coletivos negociados que simplesmente rebaixem o
padrão civilizatório estabelecido, de modo imperativo, na ordem jurídica
estatal trabalhista – salvo as exceções fixadas pela Constituição e regras
legais específicas.
b) No que tange aos direitos individuais trabalhistas, fica claro que,
embora sendo também, ao mesmo tempo, direitos sociais, integram o
núcleo inexpugnável da Constituição, na qualidade de direitos individuais
fundamentais.
22
Os direitos trabalhistas têm uma dimensão dupla e combinada, que
está bem reconhecida na estrutura normativa da Constituição. São direitos e
garantias individuais de seus titulares, os trabalhadores, e, ao mesmo
tempo, são direitos sociais (além de direitos coletivos, muitas vezes).
Sob a ótica da pessoa humana que vive do trabalho, especialmente o
trabalho empregatício, tais direitos são o principal instrumento de
concretização dos princípios, valores e regras constitucionais da
prevalência da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e,
particularmente, do emprego, da subordinação da propriedade à sua função
social, da efetivação da justiça social e da democratização da sociedade
civil.
Sob a ótica dessa mesma pessoa humana individual, mas também da
comunidade de trabalhadores, de parte majoritária da sociedade e famílias
brasileiras, sob a ótica ainda do Estado e de suas decisivas políticas
públicas, são direitos sociais, ou seja, um universo fundamental de
realização, no plano mais amplo da economia e da sociedade, daqueles
princípios, valores e regras tão bem acentuados pela Constituição.
Esses direitos e garantias individuais e sociais, por isso mesmo,
integram o Título II do Texto Máximo, “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”.
São dessa maneira parte componente do núcleo inexpugnável da
Constituição, na qualidade de direitos e garantias individuais fundamentais.
c) Há princípios e direitos coletivos do Capítulo II (Dos Direitos
Sociais) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da
Constituição que integram o núcleo inexpugnável do Texto Máximo,
embora nem todos o façam, como, por exemplo, a regra concernente à
unicidade sindical (art. 8º, II) e a regra relativa ao financiamento do
sistema sindical (art. 8º, IV).
Há princípios e regras coletivos que integram o núcleo inexpugnável
da Constituição, embora, evidentemente, nem todos aqueles arrolados nos
artigos 8º até 11 do Texto Máximo o façam.
Compõem esse núcleo inexpugnável apenas os princípios e regras
que traduzem, efetivamente, dimensão fundamental do projeto normativo
constitucional de realizar no Brasil um Estado Democrático de Direito.
Regras e princípios sem os quais não se pode falar na presença desse
paradigma na realidade social, econômica, cultural, institucional e jurídica
brasileiras.
Desse modo, entre os princípios e regras coletivos que integram o
núcleo inexpugnável da Constituição, estão, pelo menos, quatro: os que
asseguram a liberdade sindical e a autonomia das entidades sindicais (art.
8º, I e V); os que asseguram aos sindicatos a função de defesa dos direitos e
interesses coletivos ou individuais da categoria (art. 8º, III); os que
determinam ser obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações
23
coletivas de trabalho (art. 8º, VI); os que estabelecem garantias eficientes
ao exercício da administração e das funções sindicais (art. 8º, VIII).
Em coerência com o exposto, não compõem esse núcleo fundamental
regras sobre o tipo de modelo sindical (a unicidade sindical, fixada no
inciso II do art. 8º, por exemplo), além de critérios de financiamento do
sistema sindical (ilustrativamente, a chamada contribuição confederativa,
referida no inciso IV do art. 8º, preceito que se reporta também, de modo
implícito, à contribuição sindical obrigatória, fixada na CLT).
d) No contraponto entre regras coletivas negociadas e regras
estatais, a Constituição determinou a prevalência da regra mais favorável
aos trabalhadores (art. 5º, §§ 1º e 2º; art. 7º, caput), salvo os estritos casos
em que a própria ordem jurídica autorize a preponderância de regras
convencionais menos benéficas.
O Texto Magno do Brasil, embora tenha estabelecido notáveis
incentivos e garantias à negociação coletiva trabalhista – garantias e
incentivos praticamente desconhecidos na história jurídica anterior do país
-, teve o cuidado de prever a incidência do princípio da norma mais
favorável em casos de contraponto entre regras coletivas negociadas e
regras estatais. Com isso assegurou a concretização mais rápida e universal
de um efetivo Estado Democrático de Direito no país, garantindo, com
segurança, a supremacia de suas diretrizes essenciais da proteção à
dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e especialmente
do emprego, da subordinação da propriedade à sua função social, da
democratização da sociedade civil – e não só da sociedade política -, da
concretização da justiça social.
Com sabedoria e prudência, a Constituição permitiu o afastamento
do princípio da norma mais favorável nos estritos casos em que a própria
ordem jurídica heterônoma estatal autorize a preponderância de regras
menos benéficas oriundas da negociação coletiva.
Tais casos excepcionais podem estar previstos no próprio Texto
Máximo (incisos VI, XIII e XIV do art. 7º, por exemplo).
Claro que nesses dispositivos a Constituição apenas estabelece um
comando, o qual, muitas vezes (hipótese do art. 7º, VI – irredutibilidade de
salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo), tem de ser
especificado em lei (casos de redução salarial por conjuntura econômica
adversa: Lei n. 4.923, de 1965, em seu art. 2º).
Outras vezes, esse comando tem de ser atenuado, em vista da
necessária interpretação sistemática do Texto Máximo, feita em harmonia a
outros preceitos constitucionais (a redução não prevalece, por exemplo, em
se tratando de matéria de saúde e segurança do trabalhador, em decorrência
de imperativo específico vindo da própria Constituição – art. 7º, XXII:
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde,
higiene e segurança).
24
Esses casos excepcionais podem ainda ser estabelecidos pela própria
legislação fixadora de certo direito ou garantia trabalhistas (por exemplo,
§§ 2º e 3º do art. 58 da CLT, que instituem o direito às horas in itinere,
porém flexibilizam, em parte, seu cálculo econômico).
Naturalmente que pode a negociação coletiva realizar certa
adequação setorial negociada sem produzir efetivo prejuízo (não ferindo,
pois, o princípio constitucional da norma mais favorável), embora
autorizando determinada mudança formal, tida como prática pelo
empregador. É o que ocorre com cláusulas convencionais que fixam
adicional noturno mais elevado do que os 20% estipulados pelo caput do
art. 73 da CLT (40% ou 50% de adicional noturno normativo,
ilustrativamente), em contraponto ao aumento da hora ficta noturna para 60
minutos, ao invés dos 52’30’’ estabelecidos pelo § 1º do art. 73 da mesma
lei nacional.
Pode ainda a negociação coletiva, como se sabe, em harmonia à
adequação setorial negociada permitida pelo Texto Máximo, criar parcelas
trabalhistas efetivamente novas, supralegais, porém lhes modulando o
efeito jurídico. É o que tradicionalmente tem sido reconhecido pela
jurisprudência com respeito a parcelas de auxílio alimentação e congêneres,
instituídas por CCTs ou ACTs, mas com efeitos contratuais restritos (por
exemplo, sem natureza salarial)15
.
e) A Constituição da República sepultou o debate acerca do
paradigma mais adequado para o Brasil (isto é, o modelo jurídico
legislado versus o modelo jurídico negociado), realizando enfática escolha
pelo modelo legislado de regulação trabalhista.
Os debates sobre a Democracia no Brasil, onde o fenômeno sempre
foi verdadeiro enigma histórico16
, conduziram, durante certo tempo, ao
contraponto de modelos jurídicos trabalhistas: o padrão jurídico negociado
(também chamado de normatização autônoma e privatística), hegemônico
nos países de formação angloamericana, versus o padrão jurídico legislado
15
Sobre o princípio da adequação setorial negociada, conferir DELGADO, Mauricio Godinho, Curso de
Direito do Trabalho, 11ª edição, São Paulo: LTr, 2012, Capítulo XXXIV, item V.2. Do mesmo autor,
Direito Coletivo do Trabalho, 4ª edição, São Paulo: LTr, 2011, Capítulo IV, item VIII (“Negociação
Coletiva – possibilidades e limites”). Consultar ainda TEODORO, Maria Cecília Máximo, O Princípio da
Adequação Setorial Negociada no Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 2007. 16
Sobre as vicissitudes da democracia e da cidadania no Brasil, com suas renitentes dificuldades de
afirmação, consultar análise feita pela Professora de História da UFMG, PUCMINAS e UnB, Lucilia de
Almeida Neves Delgado, em seu artigo “Cidadania e república no Brasil: desafios e projeções do futuro”,
in PEREIRA, Flávio Henrique Unes e DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.), Cidadania e Inclusão Social –
estudos em homenagem à Professora Miracy Barbosa de Souza Gustin, Belo Horizonte: Fórum, 2008, p.
322-335. A historiadora sustenta que “a prática da democracia no Brasil e a plena realização da cidadania
apresentam-se como um enigma histórico a ser decifrado, pois a tradição do país tem sido marcada por
dois tipos de movimento: o primeiro refere-se à facilidade com que experiências democráticas foram
interrompidas no decorrer do período republicano; o segundo relaciona-se à permanência residual e
paradoxal de práticas políticas autoritárias em conjunturas de exercício político da democracia”. In ob.
cit., p. 322.
25
(chamado também de normatização privatística mas subordinada), com
origem na Europa continental.
As dificuldades de afirmação da Cidadania e da Democracia na
história brasileira produziram reflexões sobre a dimensão trabalhista e
sindical da estrutura institucional do país, ao ponto de se formarem
algumas concepções negativistas sobre a compatibilidade do padrão
legislado de ordem jurídica trabalhista com a sedimentação de sólidas
perspectivas para o desenvolvimento econômico, social e político no Brasil.
Segundo tais concepções, o pecado original da origem autoritária do
modelo justrabalhista brasileiro, estruturado na ditadura Vargas (1930-
1945), comprometeria toda e qualquer tentativa de compatibilizar esse
subsistema jurídico, social, econômico e cultural com a Democracia no
país. Nesse pessimismo analítico, o padrão essencialmente negociado de
sistema trabalhista, derivado da matriz angloamericana, despontava como
alternativa política e jurídica a ser considerada17
.
A Constituição de 1988 firmemente superou esse debate e tal
insegurança sobre a questão trabalhista no Brasil. O mais democrático e
inclusivo Texto Máximo já produzido na História do Brasil realizou
explícita, clara e estrutural escolha pelo modelo legislado de regulação
trabalhista, indicando, inclusive, os caminhos mais coerentes para sua
afirmação, desenvolvimento e melhoria.
A partir dessa manifesta escolha constitucional, vindo do Texto
Magno mais democrático construído em cinco séculos de história, torna-se
inconsistente e meramente ideológica qualquer tese de rediscussão sobre a
importação do modelo angloamericano para a economia, a sociedade e a
cultura brasileiras.
Em conformidade com a Constituição de 1988, cabe, essencialmente,
universalizar-se o estuário de regras e princípios jurídicos trabalhistas na
sociedade e economia brasileiras, elevando-se o patamar civilizatório
mínimo de inclusão social e econômica na realidade do país, conferindo-se
efetividade à mais importante política pública de inclusão social e
econômica já construída nos marcos do capitalismo.
Os aperfeiçoamentos necessários no plano do Direito Coletivo do
Trabalho – a respeito do qual a Constituição, de fato, reconheceu existir
certa transição democrática – não tem a aptidão de recolocar em debate
todo o sistema jurídico constitucionalizado. A estrutura, o sentido e o papel
17
A respeito desse debate em torno das origens do sistema trabalhista brasileiro (o pecado original), sua
evolução nas décadas seguintes aos anos de 1940, com os subsequentes ajustes promovidos pela
Constituição de 1988, consultar no livro DELGADO, Maurico Godinho e DELGADO, Gabriela Neves,
Constituição da República e Direitos Fundamentais – dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito
do Trabalho, São Paulo: LTr, 2012, especialmente três capítulos: o de n. V – “Democracia, Cidadania e
Trabalho”; o Capítulo VII – “Direito do Trabalho e Inclusão Social – estrutura, evolução e papel da CLT
no Brasil”; e, finalmente, o Capítulo IX – “Papel da Justiça do Trabalho no Brasil”.
26
desse sistema jurídico trabalhista estão firmemente assentados pela própria
Constituição da República.
VII – CONCLUSÃO
O paradigma do Estado Democrático de Direito constroi-se em torno
de três eixos centrais: a pessoa humana e sua dignidade; a sociedade
política, democrática e inclusiva; a sociedade civil, também democrática e
inclusiva.
Esse paradigma estruturou-se depois de suplantada a fase de
transição que se deflagrou ainda no início do século XX, pelo Estado Social
de Direito, que teve o condão de repercutir o temário da Democracia na
estrutura institucional e cultural do precedente Estado Liberal Primitivo.
Firmemente incorporado pela Constituição de 1988 no Brasil, o
Estado Democrático de Direito permitiu alçar a um plano constitucional
diferenciado os ramos jurídicos sociais, em especial o Direito do Trabalho.
A partir do marco do novo constitucionalismo, sabe-se ser inviável
garantir-se efetiva centralidade à pessoa humana na vida econômica, social
e institucional, tangendo-se sua dignidade, sem lhe assegurar patamar
civilizatório mínimo no mundo do trabalho que caracteriza a economia e a
sociedade reais. O instrumento historicamente testado para essa garantia
reside na generalização do Direito do Trabalho e de seu estuário normativo
próprio.
Da mesma maneira, o novo constitucionalismo apreendeu ser
imprescindível à democratização da sociedade política e especialmente da
sociedade civil a presença de sistema normativo interventivo no contrato de
emprego, mecanismo racional e eficiente para viabilizar maior equilíbrio de
poder na principal relação de trabalho existente no capitalismo.
Esse mesmo sistema normativo é que irá garantir, ao mesmo tempo,
constante dinâmica de distribuição de renda no universo econômico e
social, completando o ciclo virtuoso de construção do Estado Democrático
de Direito no âmbito da sociedade civil, especialmente na economia.
Nesse quadro analítico, a inter-relação entre Constituição da
República, Estado Democrático de Direito e Direito do Trabalho ganha
inarredável consistência histórica, lógica e normativa, descortinando o real
sentido do projeto central da Constituição de 1988.
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27
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28
TEODORO, Maria Cecília Máximo, O Princípio da Adequação Setorial
Negociada no Direito do Trabalho, São Paulo: LTr, 2007.
1
A INCONSTITUCIONALIDADE DA LIBERAÇÃO GENERALIZADA DA
TERCEIRIZAÇÃO1
Ricardo José Macêdo de Britto Pereira2
Resumo
O presente texto trata das propostas de liberação da terceirização em todas as atividades
empresarias, mediante a superação da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho que a
veda na atividade fim. As investidas empresariais se concentram no Congresso Nacional e no
Supremo Tribunal Federal. Neste estudo, defende-se que a liberação generalizada da
terceirização viola a Constituição de 1988. Para tanto, são analisados os direitos sociais dos
trabalhadores como imposição constitucional, superando as interpretações conservadoras, o
modelo de emprego constitucionalmente protegido, as tentativas de desconstitucionalizar os
direitos dos trabalhadores e a dignidade humana como referência dos valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa.
Abstract
This paper deals with the proposed release of outsourcing in all entrepreneurial activities, by
means of overcoming the Labor Superior Court jurisprudence that proscribes it in the core
business. The business invested focus in Congress and the Supreme Court. In this study, it is
argued that the widespread release of outsourcing violates the Constitution of 1988. To this end,
it analyses the social rights of workers as constitutional imposition, instead of conservative
interpretations, the constitutionally protected employment model, the attempts to take out the
Constitution rights workers, and the human dignity as a reference of the social values of work
and free enterprise.
1. Considerações iniciais.
Diversas iniciativas encontram-se em curso visando a uma profunda alteração
estrutural do Direito do Trabalho. Uma das mais graves refere-se à liberação da
terceirização, transferindo para os empresários a decisão de utilizarem intermediários
para a prestação das atividades que digam respeito a parte ou a todo o seu negócio.
Tanto o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 30/2015, que tramita no
Senado e dá continuidade à deliberação da Câmara no Projeto de origem nº
1 Artigo vencedor do XVI Prêmio Evaristo de Moraes Filho (1º lugar), organizado pela Associação
Nacional dos Procuradores do Trabalho, na categoria de Melhor Trabalho Doutrinário (outubro/2015). 2 Professor Titular do Centro Universitário do Distrito Federal – UDF (Mestrado em Direito das Relações
Sociais e Trabalhistas). Doutor pela Universidade Complutense de Madri. Mestre pela Universidade de
Brasília. Subprocurador Geral do Ministério Público do Trabalho.
2
4.330/20043, quanto à Repercussão Geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal
(ARE 713211 – Tema 7254) constituem instrumentos para a abertura de vias à
intermediação de mão de obra em quaisquer ou em todos os setores das empresas.
Essa investida na liberalização da terceirização possui o objetivo de ampliar o
âmbito do mercado, mediante o desmonte dos pilares de sustentação do Direito do
Trabalho. A terceirização não afasta o Direito do Trabalho, mas o fragiliza. O seu
caráter altamente ideologizado encobre as suas reais intenções e os meios para alcançá-
las, ao tempo em que forja um ideal de progresso e de desenvolvimento econômicos,
como símbolos da modernidade, em que o modelo regulatório trabalhista tradicional
seria a barreira arcaica que inviabiliza a prosperidade da nação.
O Supremo Tribunal Federal aceitou conhecer da matéria sobre os limites
jurisprudenciais estabelecidos pelo Tribunal Superior do Trabalho, consagrados na
Súmula 3315, ao argumento de que eles não se encontram na Constituição e somente o
3 O artigo 4º do projeto aprovado na Câmara possui a seguinte redação:
É lícito o contrato de terceirização relacionado a parcela de qualquer atividade da contratante que obedeça
aos requisitos previstos nesta Lei, não se configurando vínculo de emprego entre a contratante e os
empregados da contratada, exceto se verificados os requisitos previstos nos arts. 2º e 3º da Consolidação
das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto – Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
4 Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA.
OMISSÃO. DISCUSSÃO SOBRE A LIBERDADE DE TERCEIRIZAÇÃO. FIXAÇÃO DE
PARÂMETROS PARA A IDENTIFICAÇÃO DO QUE REPRESENTA ATIVIDADE-FIM.
POSSIBILIDADE. PROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARA DAR
SEGUIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A liberdade de contratar prevista no art. 5º, II,
da CF é conciliável com a terceirização dos serviços para o atingimento do exercício-fim da empresa. 2.
O thema decidendum, in casu, cinge-se à delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra
diante do que se compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da liberdade
de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB. Patente, outrossim, a repercussão geral do tema,
diante da existência de milhares de contratos de terceirização de mão-de-obra em que subsistem dúvidas
quanto à sua legalidade, o que poderia ensejar condenações expressivas por danos morais coletivos
semelhantes àquela verificada nestes autos. 3. Embargos de declaração providos, a fim de que seja dado
seguimento ao Recurso Extraordinário, de modo que o tema possa ser submetido ao Plenário Virtual desta
Corte para os fins de aferição da existência de Repercussão Geral quanto ao tema ventilado nos termos da
fundamentação acima.(ARE 713211 AgR-ED, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em
01/04/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 14-04-2014 PUBLIC 15-04-2014)
5 Súmula nº 331 do TST
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos
os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente
com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).
3
Legislador poderia prevê-los. A repercussão geral reconhecida cogita da violação à
liberdade de contratar inserida no princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, CF),
de modo que limitação imposta pelo Judiciário, sem o respaldo do Legislativo, afronta o
texto constitucional.
Observa-se que a tese provisoriamente anunciada se apoia numa suposta
primazia da liberdade contratual em detrimento da proteção ao trabalho. Dos diversos
dispositivos constitucionais que consagram essa proteção não desencadearia qualquer
restrição à prática da terceirização. Segundo esse raciocínio, eventuais limitações à livre
iniciativa estariam a critério exclusivo do Legislador.
Trata-se de interpretação que, na história constitucional de nosso país, jamais
logrou semelhante prestígio. Sua confirmação pode gerar um incalculável passivo
trabalhista e social.
O julgamento a curto prazo, como parte da estratégia empresarial, não ocorreu,
em razão de mobilizações em apoio ao Direito do Trabalho. No entanto, a pressão para
liberar a terceirização se intensificou. Os seus defensores encontram na atual
composição do Congresso Nacional ambiente propício para eliminar os limites
atualmente aplicados.
Havia sinais de resistência por parte do Poder Executivo em relação ao projeto
liberalizante. Ocorre que o Executivo perdeu o controle de sua agenda, com a crise
política e econômica. O Senado Federal chegou a esboçar alguma contrariedade à forma
açodada como o projeto foi aprovado na Câmara. Porém, tratava-se de manobra no jogo
da disputa pelo poder que, no momento, já não é mais decisiva para o seu resultado.
II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego
com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).
III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102,
de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-
meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade
subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação
processual e conste também do título executivo judicial.
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas
mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações
da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais
e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero
inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da
condenação referentes ao período da prestação laboral.
4
Ou seja, a proposta que libera a terceirização vai ocupando espaços e se
consolidando cada vez mais no meio político.
A reação de parcela do movimento sindical, do meio acadêmico e de entidades
públicas voltadas à defesa do trabalho e dos direitos dos trabalhadores tem sido
fundamental para ganhar tempo, o que propicia o aprofundamento do estudo visando
identificar os limites constitucionais ao projeto que persegue a terceirização ampla
(Delgado; Amorim, 2014, p. 67).
A abordagem constitucional do tema é inevitável. Ainda que a aprovação da
liberação da terceirização não se verifique como esperada pelos autores das propostas,
as mencionadas investidas empresariais não serão as únicas. É importante que o
Supremo Tribunal Federal se posicione neste tema, mas não sem antes conhecer a
realidade do mundo do trabalho, por meio de representantes dos trabalhadores e das
instituições públicas e privadas encarregadas de defender o trabalho e o Direito do
Trabalho. Matéria trabalhista de tamanha relevância não pode ser decidida à revelia do
diálogo social, como preconizado pela Organização Internacional do Trabalho na
Declaração sobre a Justiça Social para uma Globalização Justa, de 2008.
É da análise constitucional da terceirização que o presente texto se ocupa. A
hipótese de trabalho é que as disposições normativas constitucionais não autorizam a
terceirização de toda e qualquer atividade do processo de produção de bens e serviços e
que eventual possibilidade jurídica de utilização da terceirização em algumas atividades
atrai a observância de limites constitucionais no tocante às condições de trabalho.
O texto será dividido em quatro partes: os direitos sociais dos trabalhadores
como imposição constitucional e a superação da interpretação conservadora; a
consagração constitucional de um modelo específico de emprego; a
desconstitucionalização do Direito do Trabalho como estratégia para a exploração dos
trabalhadores e a flexibilização dos direitos trabalhistas; e, por último, a dignidade
humana como referência aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
2. Os direitos sociais dos trabalhadores como imposição constitucional e a
superação da interpretação conservadora
5
A Constituição de Weimar de 1919 reveste-se de grande simbolismo para o
constitucionalismo social, pois marca a era da inserção dos direitos sociais nos textos
constitucionais.
Apesar dessa relevância, os opositores a seu texto tiveram grande influência a
ponto de eliminar a força normativa do conteúdo social da constituição. Um jurista que
teve grande peso nesse sentido foi Carl Schmitt, defensor de um decisionismo político
conservador.
A primeira parte da Constituição de Weimar tratava da organização do Estado. A
segunda parte, dos direitos fundamentais. Carl Schmitt (1982, p. 52) considerava que a
segunda parte da Constituição de Weimar não passava de uma ordem obscura, em razão
da incorporação de declarações correspondentes a compromissos desprovidos de
decisão. Na parte dos direitos e deveres fundamentais dos alemães, foram reunidos
programas e prescrições baseados em distintos conteúdos e convicções políticas, sociais
e religiosas.
Para Schmit (1982, p. 53), a Constituição de Weimar contém decisões políticas
fundamentais sobre a forma de existência política concreta do povo alemão, mas não
todas em razão do caráter misto dos direitos fundamentais enumerados em sua segunda
parte. Isso porque foram mescladas concepções burguesas e sociais, o que gera confusão
para se identificar o conteúdo das decisões que conferem a forma e a unidade ao Estado.
Segundo Schmitt (1982, p. 54), apesar da enumeração dos direitos sociais, a
decisão fundamental foi a de afirmar o Estado burguês de Direito e a democracia
constitucional, opção extraída do preâmbulo e dos primeiros artigos da Constituição de
Weimar. Vários dispositivos da segunda parte da Constituição são por ele denominados
de compromissos não autênticos, apócrifos ou dilatórios. Na ausência de decisão, não
deveria haver dúvida de que prevalece o status quo social, ou seja, da manutenção da
ordem burguesa, uma vez que a decisão pela revolução socialista foi expressamente
rechaçada.
Apesar do prestígio dessa concepção decisionista na primeira metade do Século
XX, alcançando inclusive a segunda metade, ela é totalmente inadequada no atual
6
estágio do constitucionalismo. Além disso, seu caráter autoritário a torna incompatível
com o Estado Democrático de Direito.
É importante comparar a Constituição de Weimar com a Lei Fundamental de
Bonn de 1949. Esta última, diferentemente da primeira, não contém direitos sociais,
mas logrou avanços significativos a partir da interpretação de cláusulas abertas. Isso
marca a diferença entre o constitucionalismo da primeira metade e o da segunda metade
do Século XX.
Ao contrário da doutrina de Schmitt, as disputas político-ideológicas não passam
ao largo da Constituição, mas para ela convergem, lá encontrando limites rigorosos, que
não consubstanciam meros programas ou compromissos dilatórios. Deparam com
genuínas decisões que representam as opções fundamentais para o Estado e a sociedade
como um todo e condicionam o exercício de poderes tanto no âmbito público quanto no
privado. A rigor, a Constituição, ao invés de adotar compromissos que dilatam essas
disputas, impõe a elas severas condicionantes e restrições.
A consagração do pluralismo, pela qual tendências diversas e até contraditórias
encontram o seu lugar no texto constitucional, não autoriza uma opção pela livre
iniciativa em detrimento do valor social do trabalho. O modelo de Estado e
sociedade previsto na Constituição de 1988 baseia-se na centralidade do trabalho
socialmente protegido.
A democracia permeia todo o texto constitucional e ela só se realiza mediante a
participação efetiva nas deliberações relevantes e o exercício dos direitos fundamentais.
No nosso modelo constitucional, a cidadania é a essência de todas as relações
envolvendo o Estado e a sociedade.
A cidadania no trabalho e a democratização nas relações de trabalho são de
fundamental importância para a democratização da sociedade como um todo. Não há
democracia na sociedade, se no ambiente de trabalho prevalece a lógica autoritária e da
exploração.
Nesse ponto, a Organização Internacional do Trabalho desempenha papel
relevante na defesa da liberdade sindical. Segundo a OIT, não há liberdade sindical sem
democracia no local de trabalho e não há democracia na sociedade se não há liberdade
7
sindical assegurada. A liberdade sindical se condiciona ao exercício dos direitos
fundamentais e os direitos fundamentais dependem do exercício dos direitos de
liberdade sindical. (Pereira, 2007).
Guastini (2001, p. 154), em texto referencial, trata da constitucionalização do
direito na experiência jurídica italiana. Segundo o jurista, o processo de
constitucionalização do direito depende de condições estruturais, que consistem na
existência de uma constituição rígida e de um sistema de controle da primazia das
normas constitucionais. São condições necessárias, mas não suficientes para o seu
avanço, uma vez que não se trata de um processo inexorável. O avanço do processo de
constitucionalização do direito só é possível desde que presentes condições
complementares, que correspondem às convicções prevalecentes na sociedade e na
comunidade jurídica acerca dos dispositivos constitucionais. São citados alguns
exemplos de ideias compartilhadas que impulsionam a constitucionalização do direito,
como a convicção de que as disposições constitucionais são genuinamente normativas,
não necessitando da intermediação do legislador para serem aplicadas; que os direitos
sociais possuem força normativa tal qual os direitos civis; que os direitos fundamentais
são dotados de eficácia não apenas vertical, mas também horizontal, ou seja, incidem
nas relações com o Estado e também com os particulares; que o ordenamento jurídico
deve ser interpretado em conformidade com as disposições constitucionais; e, por fim,
que a interpretação constitucional deve levar em conta que as questões fundamentais
para a sociedade necessariamente estão inseridas na Constituição, ainda que seu texto
não faça menção expressa, esta última denominada pelo autor de sobreinterpretação.
Essa bem elaborada construção de Guastini dá margem a cogitar de inúmeras
condições complementares em várias outras áreas que, se observadas, propiciarão o
avanço do processo de constitucionalização do direito. A convicção em torno dos
direitos sociais dos trabalhadores previstos na Constituição e, especialmente, a
afirmação cotidiana do valor social do trabalho, constituem condições para o avanço do
processo de constitucionalização do direito em nosso ordenamento jurídico.
Por essa ótica, a liberalização da terceirização, caso seja aprovada e reconhecida
a sua possibilidade jurídica, representará grave retrocesso constitucional.
8
Não faltam dados sobre os efeitos da terceirização nas relações de trabalho,
especialmente no âmbito da saúde e segurança no trabalho. As piores formas de trabalho
na sociedade, que contrariam as convenções fundamentais da Organização Internacional
do Trabalho, consagradas na Declaração de Princípios e Direito Fundamentais de 1998,
são favorecidas com a terceirização de mão de obra, conforme vários estudos realizados
na matéria. (Pereira, 2014, p. 791-795)
3. A consagração constitucional de um modelo específico de emprego
O Direito do Trabalho foi construído a partir da reunião de elementos fáticos-
jurídicos, após um processo que se prolongou e consolidou no tempo. A finalidade do
ramo especializado sempre foi a de que o empregado detivesse a condição de sujeito e
não objeto de direito, como ocorreu em boa parte da história da prestação de trabalho na
humanidade.
A relação de trabalho submetido ao Direito Civil formalizou a exploração do
trabalhador, de modo que só com o Direito do Trabalho é que se passou a destinar a
proteção necessária ao trabalhador contra os propósitos de convertê-lo em mercadoria.
Ao mesmo tempo dotou o empresário da possibilidade de perseguir lucros mediante a
observância de bases civilizatórias mínimas, assegurando mecanismos de controle da
atividade prestada.
Os elementos determinantes para esse passo foi a previsão da subordinação e da
pessoalidade para a configuração da relação de emprego (Delgado, 2015, 300). O
tomador dos serviços estabelece um vínculo direto com o prestador e comanda toda a
atividade por esse executada, havendo vínculos pessoais que acarretam deveres de
lealdade e proteção.
Nesse aspecto, merece menção o bem elaborado parecer emitido pelo
Subprocurador Geral da República, Odim Brandão Ferreira (Ramos Filho; Loguércio:
Menezes, 2015, p. 243), na mencionada repercussão geral reconhecida pelo Supremo
Tribunal Federal.
Valendo-se das lições da doutrinadora Maria do Rosario Palma Ramalho, em sua
obra Da autonomia dogmática do direito do trabalho, destaca:
9
Motivos ponderáveis, além das dificuldades técnicas intransponíveis de
lidar com os problemas trabalhistas com as categorias do direito civil impuseram
novo modelo teórico para tal relação. Também “a desastrosa situação econômica
e social da maioria dos trabalhadores subordinados no final do séc. XIX (...)
demonstra, à evidência que os princípios da liberdade e da igualdade eram
profundamente ilusórios quando aplicados à relação laboral”. Como correção da
posição de inferioridade do trabalhador é “que se vai cimentar aquele que será
reconhecido pela generalidade da doutrina como objectivo norteador de toda a
evolução do direito laboral (...): o objectivo de proteção do trabalhador
subordinado
Ambos os fatores impuseram a reconstrução da relação de emprego, por
meio da “deslocação definitiva do âmago do vincula laboral do binômio de troca
entre duas prestações patrimoniais (o trabalho e a remuneração) para o primitivo
enquandramento obrigacional, incapaz, por exemplo, de explicar a contento os
poderes diretivos e sobretudo o disciplinar entre iguais. Na impossibilidade de
recordação aqui de todos os seus termos, indica-se qua a moderna relação de
trabalho se assenta na “proteção da ideia de pessoalidade nos deveres de
lealdade e de assistência e a sua justificação na empresa como comunidade de
trabalho”.
A Constituição de 1988 ao dispensar proteção à relação de emprego adota como
modelo a contribuição da dogmática trabalhista. Não se trata de qualquer relação de
emprego, mas a que é baseada na subordinação e na pessoalidade, entre os demais
elementos previstos na legislação que são onerosidade, não eventualidade e trabalho
prestado por pessoa física. Nessa evolução, é importante dar ênfase a algumas etapas.
A primeira corresponde a passagem da “situação definida pelo status a uma
situação regulada pelo contrato”. A expressão “do status ao contrato” foi consagrada por
Henry Maine (Feaver, 1968, p. 49) para simbolizar a evolução social que parte de uma
sociedade composta por grupos de famílias, baseada no poder patriarcal, em direção a
uma ordem social em que as relações se originam de livres acordos entre os indivíduos.
A passagem do estado legal à sociedade do contrato significa a ruptura com
a ideia de que os homens se submetem a uma ordem objetiva, que fixa com antecipação
a posição de cada um para dar lugar à ideia de que os homens possuem a possibilidade
de decidir e definir suas situações na sociedade, mediante o exercício da vontade de
cada um (DaCruz, 1996, p. 50).
No âmbito das relações trabalhistas, substituiu-se o fechado sistema
corporativo pela liberdade do trabalhador de ditar, mediante contrato, as condições da
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prestação do trabalho, que convergia com a igual liberdade do beneficiário dos serviços.
A aplicação do contrato às relações de trabalho, nos países de tradição romanista,
resultou da combinação da categoria da locatio do Direito romano com a objetivação da
força de trabalho e sua separação da pessoa do trabalhador. A atividade, e não a pessoa,
constituía o objeto em torno do qual se vinculavam livremente os contratantes. O
trabalhador, como proprietário de seu trabalho, tinha a possibilidade de determinar a
maneira de negociar o que se encontrava sob seu domínio. A regulação do trabalho,
nessa etapa, era feita pelos sujeitos nele envolvidos, com exclusividade, em consonância
com a autonomia da vontade de cada um. (Supiot, 1996, p. 30).
A greve e outras manifestações coletivas eram reprimidas como ações de
grupo e reprovadas individualmente, consideradas descumprimento do contrato de
trabalho, dando margem à aplicação de sanções de natureza penal (Jacobs, 1994, p.
246).
A aplicação das fórmulas individualistas às relações de trabalho provocou
inúmeros problemas. Intensificou a desigualdade real e favoreceu a concentração de
capital na classe tomadora dos serviços. Os trabalhadores foram excluídos das
vantagens do sistema, passando a constituir uma coletividade marginal, cujas principais
notas de identidade eram as precárias condições de trabalho e de vida. A prometida
liberdade frustrava-se ao não oferecer aos trabalhadores oportunidades de desfrutá-la e,
consequentemente, de suprimir ou reduzir a opressão nas relações sociais (Veneziani,
1994, p. 87).
O trânsito ao contrato, nas relações trabalhistas, não poderia realizar-se
como uma mera relação de intercâmbio patrimonial. A separação entre trabalhador e
atividade, dissimulava o fato de que a cessão da atividade ao outro envolve
inevitavelmente a própria pessoa que a realiza.
A desigualdade real dos contratantes levava à completa sujeição do
trabalhador, sem outra opção para satisfazer suas necessidades vitais, às determinações
do empregador. O contrato de trabalho converte-se em pura manifestação unilateral de
poder, assemelhando-se mais à pretérita situação de domínio homem-coisa,
característica do trabalho forçado, que à relação entre sujeitos livres e iguais,
propugnada pelas novas correntes filosóficas e jurídicas.
11
Santos (1999, p. 14) ressalta que “a contratualização liberal não reconhece o
conflito e a luta como elementos estruturais do contrato... Sob a aparência de contrato, a
nova contratualização propicia a renovada emergência do status, ou seja, dos princípios
pré-modernos de ordenação hierárquica pelos quais as relações sociais são
condicionadas pela posição na hierarquia social das partes.
Grau (1991, p. 20), por sua vez, observa que o sistema liberal desvirtua as
situações de subordinação em “relações de coordenação entre seres livres e iguais”,
mediante a utilização do contrato”.
As análises teóricas feitas a partir dessa realidade vieram como crítica à
autonomia da vontade, que logo se estenderam às demais relações contratuais (Supiot,
1996, p. 141).
O abandono de uma concepção exclusivamente normativista e a
proximidade aos estudos sociológicos permitiu ao direito inclinar-se a interesses
contraditórios, para considerar as posições antagônicas não só de indivíduos entre si,
mas também de grupos sociais, dando origem a relações coletivas, “sendo protagonista
um peculiar sujeito de direito: o sujeito coletivo.” (Carrasco, 2001, p. 43)
O processo de consolidação do Direito do Trabalho realizou-se em duas
vias. Na Alemanha, foi reabilitado o antigo Direito germânico para conter a relação de
trabalho como operação de intercâmbio, de origem romanista. Determinadas situações
de trabalho originavam vínculos pessoais de fidelidade, como os familiares, fazendo do
trabalhador um partícipe da mesma comunidade de direitos e deveres do tomador de
serviços. A ênfase na comunidade e na hierarquia e não na vontade do indivíduo ou do
Estado, significou o desprestígio do contrato, ou sua eliminação nas versões mais
extremistas. O fato de contribuir com seu trabalho “confere ao trabalhador o status de
membro da comunidade. O trabalhador assalariado encontra-se, pois, numa posição
estatutária, e não contratual”. (Supiot, 1996, p. 33)
Será levado em conta que a pessoa do trabalhador está diretamente
envolvida no objeto da relação jurídica e necessita de uma tutela especial. No plano
individual, essa tutela será promovida a partir da restrição da autonomia da vontade na
determinação das condições de trabalho. O direito já não tutela a liberdade como é, mas
12
como deve ser. A liberdade deixa de ser puro pressuposto para ser também o fim do
direito.
Como ressalta Dacruz (1996, p. 45) “o Direito social do trabalho não se
contenta com uma caracterização secamente patrimonialista da relação de trabalho, e daí
o enérgico reforço de seu conteúdo ético ou moral”. Acrescenta que o “trabalhador que
‘arrenda’ seu trabalho não pode separar-se do objeto arrendado; ele, que é sujeito, entra
como objeto na relação de arrendamento”. Por isso a necessidade de tutelar, “além do
conteúdo patrimonial (salário e serviço), um conteúdo moral derivado das exigências
dessa ‘comunidade pessoal’, que surge, inevitavelmente, entre o empregador e o
prestador de serviços”.
Na França, levou-se em conta a desigualdade real dos sujeitos da relação de
trabalho, para questionar sua disciplina pelo contrato de direito comum. A
sobrevivência do contrato de trabalho só foi possível com uma modificação substancial
de seus princípios e aproximação à concepção germanista. A intervenção dos poderes
públicos, nos países latinos, será a tônica da nova disciplina. A noção de “ordem pública
social” vai propiciar um trato de favor aos trabalhadores, a partir da aplicação de um
conjunto de normas sistematizadas e ditadas à margem da vontade das partes. À vontade
se reserva o papel de condicionar a aplicação do estatuto (Supiot, 1996, 44/49).
Ao contrato-estatuto do trabalho, marcado por seu forte caráter heterônomo,
soma-se a autonomia coletiva, resultante do reconhecimento progressivo da liberdade de
organização para a defesa de interesses comuns. O desenvolvimento da autonomia
coletiva foi possível com a incorporação aos ordenamentos jurídicos de mecanismos
específicos capazes de permitir a solução dos conflitos pelos próprios interessados.
A consolidação do Direito do Trabalho como disciplina autônoma foi
possível com o desenvolvimento de uma teoria da convenção coletiva, a partir das
elaborações de Philipp Lotmar e Hugo Sinzheimer (Hepple, 1984, p. 26 e 27), que logo
integrou o ordenamento jurídico alemão, para garantir o direito de organizar sindicatos e
associações patronais, com vistas à melhoria das condições de trabalho e econômicas e
o direito à negociação coletiva.
A primeira guerra mundial provocou profundas mudanças nas relações
trabalhistas em toda Europa. O reconhecimento estatal dos sindicatos e a colaboração
13
entre Estados, empresários e sindicatos foram imprescindíveis para a infraestrutura da
guerra. A satisfação das pretensões dos trabalhadores, por meio de seus sindicatos, foi
importante para a obtenção de apoio político e contenção das ameaças revolucionárias
Jacobs, 1984, 277-280).
A ação conjunta entre poderes públicos e atores sociais, por outro lado, foi
exacerbada em alguns sistemas jurídicos, deixando de ser estratégias espontâneas para
converter-se em dever social, como resultado da influência de concepções coletivistas.
A liberdade, tanto do trabalhador como do empresário, nesses modelos, desapareceu
com o contrato de trabalho. O vínculo de trabalho que os une era resultado do
desempenho das funções que competem a cada um ante toda a sociedade, razão da
incorporação do trabalhador à empresa, com a aproximação entre trabalho privado e
serviço público. Os deveres e direitos das relações de trabalho procediam dos princípios
superiores do Estado, não fazendo sentido fortalecer os mecanismos de reivindicação. A
greve, nesse modelo de corte autoritário, era também considerada delito, assim como os
demais descumprimentos de serviço. (DaCruz, 1996, p. 74)
O Direito do Trabalho respondeu a essas tendências individualistas e
coletivistas restringindo a liberdade no plano do direito individual e a ampliando no
âmbito coletivo, especialmente em relação ao Estado, estabelecendo um jogo
equilibrado entre normas cogentes de origem estatal e normas resultantes da autonomia
coletiva da vontade. Em outras palavras, conciliou a “situação ambivalente entre
liberdade e imposição” ou “autonomia contratual e lei” (DaCruz, 1996, p. 76).
O reconhecimento dos sindicatos como representantes do grupo profissional
e não do interesse geral e da convenção coletiva de trabalho, esse misto de contrato e
lei, será o eixo de desenvolvimento do Direito do Trabalho, ao lado da intervenção do
Estado, para restringir a autonomia individual. Nos ordenamentos jurídicos atribuiu-se,
com mais ou menos intensidade, primazia a um ou outro.
O compromisso do Direito do Trabalho, constituído pelo jogo aberto entre
intervenção estatal e autonomia coletiva, passa a ser com a pessoa, não como indivíduo
abstrato e sim dentro de seu contexto de vida, membro de uma coletividade. O Direito
do Trabalho é um “Direito pessoal do Trabalho” na expressão de DaCruz (1996, p. 77),
que se baseia “na aceitação do trabalhador como pessoa plena e, portanto, sui iuris
14
senhor de si mesmo”. Com o apoio de outros direitos sociais, esse ramo do direito se
voltará para a solução dos problemas de uma sociedade efetivamente desigual.
A Constituição não admite a desfiguração da relação de emprego, seja ela
resultante da aprovação de proposta que opere a total flexibilização do Direito do
Trabalho, seja da liberação irrestrita da terceirização. Ela simplesmente não admite um
sistema que atribua aos indivíduos contratantes a definição das condições de trabalho.
Da mesma forma que não admite o fim da intervenção estatal no estabelecimento de
patamares mínimos ou o fim da organização sindical e resolução dos conflitos mediante
a autonomia coletiva da vontade. Mudanças radicais como quaisquer dessas
mencionadas seriam atentatórias à Constituição e parece pouco provável que o Supremo
Tribunal Federal, como o seu guardião, admita tamanho desvirtuamento do texto
constitucional.
4. A desconstitucionalização do Direito do Trabalho como estratégia para a
exploração dos trabalhadores e a flexibilização dos direitos trabalhistas.
O discurso é bastante conhecido. As políticas mais liberalizantes e
conservadoras investem contra as conquistas sociais, mesmo as que se encontram
consagradas no texto constitucional, com base em argumentos de modernidade ou que o
Estado do bem estar social representa um peso que contribui para o atraso e incrementa
as crises econômicas.
Em períodos de acentuadas e prolongadas dificuldades econômicas, esses
discursos possuem grande penetração, dando lugar a processos de reformas para a
flexibilização e eliminação de direitos sociais.
É fato que experimentamos profundas transformações nos sistemas de produção
de bens e serviços e na gestão empresarial. São vários os fatores determinantes dessas
transformações e merecem destaques a globalização econômica e os avanços
tecnológicos. Mas o que mais impacta nas relações de trabalho é a perda da referência
ao sujeito tomador dos serviços. A “unidade básica da organização econômica” já não
corresponde ao “sujeito, seja individual (como o empresário ou a família empresarial)
ou coletivo (como a classe capitalista, a empresa, o Estado)”. Assume seu lugar uma
“rede” integrada por “diversos sujeitos e organizações, que se modifica constantemente
15
a medida que se adapta aos ambientes que a respaldam e às estruturas do mercado”
(Castells, 2001, p. 151-253).
A indivisibilidade do empresário é importante para garantir um centro único e
identificável de imputação de responsabilidades ao tempo em que contribui para a
identificação dos sujeitos coletivos envolvidos com as relações de trabalho. A
descentralização que se verifica na atualidade gera o crescimento do passivo trabalhista,
dificultando a tarefa de alcançar quem responda por ele.
A fragmentação e o deslocamento da produção de bens e serviços associadas à
dificuldade de identificar centros de responsabilidades e de agregação dão margem à
individualização dos trabalhadores, dificultando a formação de vínculos de
solidariedade entre eles. A descentralização produtiva, em razão de sua complexidade,
variedade e generalidade, acarreta prejuízos aos trabalhadores, mesmo naqueles
ordenamentos em que haja um sistema de proteção para os trabalhadores das empresas
prestadoras de serviços (Dal-Ré, 2002, p. 25).
Harvey (2010, p. 140-141) faz menção à lógica da “acumulação flexível”, que se
contrapõe a sistemas rígidos de produção, como o fordismo. A acumulação flexível “se
apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos
produtos e padrões de consumo”. A flexibilidade e a mobilidade permitem que os
empregadores incrementem o seu poderio em termos de controle de trabalho e fragiliza
a capacidade de reação dos trabalhadores.
Krein (2013, p. 199) observa que:
O processo de terceirização baseado na redução de custos tende a
fortalecer as relações de trabalho mais heterogêneas, incluindo o trabalho por
conta própria sem proteção social e contratação de trabalhadores sem registro
como forma de obter competitividade para sobreviver no mercado.
A restrição de direitos e garantias sociais, acompanhada do controle dos
conflitos sociais, caracterizam o denominado Estado penitenciário (Wacquant, 2011).
Por meio de uma cultura do medo, que enfatiza o caráter perturbador e de instabilidade
dos conflitos, o Estado e a própria sociedade legitimam as posições de dominação,
esvaziando todo o potencial de questionamento para desestruturar relações estabelecidas
de poder. O temor ao coletivo e a aversão aos conflitos fortalecem a convicção de que
16
os diversos problemas sociais devem ser enfrentados e resolvidos pelo Estado e pelos
próprios indivíduos isoladamente.
Bourdieu (1998, p. 44) alertava para essa força do neoliberalismo na degradação
das condições de trabalho, apesar de ser transmitido para a sociedade ideia
completamente distinta. Diz ele:
Por exemplo, na França, não se diz mais ‘patronato’, diz-se ‘as forças vivas da
nação’; não se fala mais de demissões, mas de ‘cortar gorduras’, utilizando uma
analogia esportiva (um corpo vigoroso deve ser esbelto). Para anunciar que uma
empresa vai demitir 2.000 pessoas, fala-se do ‘plano social corajoso da Alcatel’.
Há também todo um jogo com as conotações e as associações de palavras como
flexibilidade, maleabilidade, desregulamentação, que tendem a fazer crer que a
mensagem neoliberal é uma mensagem universalista de libertação.
A desconstrução do modelo juslaboralista tradicional contribui para degradar as
condições sociais e de trabalho e incrementar o processo de exclusão dos trabalhadores
do sistema de direitos. Isso dá margem a existência de grupos de trabalhadores em
situação de extrema vulnerabilidade, com pequena capacidade de reação.
A terceirização se expressa como se referisse a cada um dos trabalhadores
individualmente, mas ela diz respeito à organização do trabalho como um todo. Por
isso, ela não pode ser a forma prevalecente de relação de trabalho, pois debilita os
grupos e promove a exclusão social e no trabalho. Ela obsta o acesso aos direitos
básicos e a participação na determinação das condições de trabalho, principais
conquistas do Direito do Trabalho que se consolidaram ao longo do século XX e que,
nos últimos tempos, vêm sendo gravemente ameaçadas e destruídas.
A força da ideologia difundida pelos grupos majoritários naturaliza a violação
sistemática dos direitos sociais dos trabalhadores e interpretam as reações como
transgressões.
A construção de uma identidade coletiva pelos trabalhadores na atualidade fica
extremamente comprometida, pois são diferenciadas as situações resultantes da violação
sistemática das normas trabalhistas. Há categorias de trabalhadores que usufruem seus
direitos, conquistam benefícios e se organizam com mais efetividade, em condições de
participar ativamente das discussões e deliberações que lhes dizem respeito. Há outras
em que alguns direitos são observados, mas não em condições de isonomia, o que já
dificulta ou inviabiliza a organização coletiva. Por fim, há os que são totalmente
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excluídos, com barreiras de toda ordem para lograr algum tipo de inserção social, por
mais reduzida que seja.
Esse ponto é ressaltado por Castel (1998, p. 568/9), ao esclarecer que a exclusão
social:
não é uma ausência de relação social, mas um conjunto de relações sociais
particulares da sociedade tomada como um todo. Não há ninguém fora da
sociedade, mas um conjunto de posições cujas relações com seu centro são mais
ou menos distendidas: antigos trabalhadores que se tornaram desempregados de
modo duradouro, jovens que não encontram emprego, populações mal
escolarizadas, mal alojadas, mal cuidadas, mal consideradas etc. Não existe
nenhuma linha divisória clara entre essas situações e aquelas um pouco menos
mal aquinhoadas dos vulneráveis que, por exemplo, ainda trabalham mas
poderão ser demitidos no próximo mês, estão mais confortavelmente alojados
mas poderão ser expulsos se não pagarem a prestação, estudam conscientemente,
mas sabem que correm o risco de não terminar... Os ‘excluídos’ são, na maioria
das vezes, vulneráveis que estavam ‘por um fio’ e que caíram. Mas também
existe uma circulação entre essa zona de vulnerabilidade e a da integração, uma
desestabilização dos estáveis, dos trabalhadores qualificados que se tornam
precários, dos quadros bem considerados que podem ficar desempregados. É do
centro que parte a onda de choque que atravessa a estrutura social.
É necessário frear com extremo rigor os intentos de exploração e exclusão dos
trabalhadores e de tratamentos que violem a dignidade da pessoa humana. Ainda
estamos a meio do caminho da conversão dos trabalhadores em cidadãos plenos. O
modelo de relação de emprego incorporado na Constituição é que assegura um piso de
civilidade como condição de desenvolvimento da sociedade. A desconstitucionalização
do Direito do Trabalho é vedada em nosso ordenamento jurídico, uma vez que a
identidade constitucional está diretamente vinculada ao valor social do trabalho.
5. A dignidade humana como referência aos valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa.
Em diversas passagens do texto constitucional é possível observar a centralidade
do ser humano na dinâmica social, econômica e política. Essa centralidade é
evidenciada a partir dos valores consagrados ao longo de todo o texto constitucional. A
valorização do ser humano, mediante patamares civilizatórios asseguradores da vida em
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sociedade, encontra no eixo constitucional da dignidade humana a sua razão de ser.
Como acentua Habermas (2012, p. 11), o "apelo dos direitos humanos alimenta-se da
indignação dos humilhados pela violação de sua dignidade humana."
A ideia de dignidade humana, incorporada em várias Constituições, foi
fortemente influenciada pela doutrina kantiana, que diferenciou o que possui preço, e é
substituível, do que está acima de todo preço e, por não ser substituível, possui
dignidade (Kant, 1991, p. 81). Esse “valor interno absoluto” de cada ser humano é
atributo da “pessoa aparelhada com identidade moral e auto-responsabilidade, dotada de
razão prática e capacidade de autodeterminação” (Häberle, 2005, p. 117).
A noção de dignidade humana vem sendo contextualizada para atender as
exigências da democracia e do pluralismo. Não se trata de uma essência imutável alheia
às ações humanas. São as ações concretas que constroem espaços de lutas pela
dignidade humana (Flores, 2004, p. 68).
O conceito de dignidade humana se abre em vários de seus aspectos para que sua
densidade resulte de um processo comunicativo de disputa e compartilhamento de
sentidos entre culturas distintas, do reconhecimento do outro para “ampliação dos
círculos de reciprocidade” e a consequente ampliação de sua “capacidade de inclusão
social” (Santos, 2003, p. 62/3).
Quando se perde o referencial social do tratamento com igual consideração e
respeito vulneram-se os direitos fundamentais. A dimensão moral desses direitos os
dota do caráter questionador e transformador de situações que estão em
desconformidade com os enunciados que os consagram. Assim, preservam a condição
do ser humano como fim em si mesmo e não como instrumento de satisfação de
interesses alheios, assegurando processos de emancipação dos sujeitos submetidos a
vínculos hierárquicos de dominação, no âmbito econômico, social e político. Os direitos
fundamentais se voltam contra a exploração e as práticas que afastam os seres humanos
dos bens destinados à satisfação de necessidades básicas, situando-os abaixo de um
padrão que os excluem da vida comum.
A noção de dignidade humana foi incorporada ao movimento trabalhista na
metade do século XIX e associada à ideia de justiça, o que permitiu que ela extrapolasse
do campo do pensamento para a prática jurídica (Häberle, 2005, p. 118).
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O trabalho digno permeou toda a história do Direito do Trabalho, embora seja
nos últimos tempos que vem merecendo atenção diferenciada por parte da doutrina e
jurisprudência trabalhistas. No plano internacional, a dignidade do trabalhador é a base
para o programa de trabalho decente promovido pela Organização Internacional do
Trabalho.
Apesar da tendência expansiva dos direitos fundamentais, há o confronto com os
detentores de poderes, que buscam converter tudo e todos em objeto para criação e
acumulação de riquezas, bem como para preservar e incrementar capacidades de
influenciar na dinâmica social, política e econômica.
As investidas para minar a capacidade de resistência das conquistas sociais
incorporadas no texto constitucional provocam instabilidades no sistema de proteção
constitucional, baseado na dignidade da pessoa humana. A sua difusão decorre da
cumplicidade de meios de comunicação, cujos detentores possuem especial interesse
nesse projeto que se volta contra o trabalho socialmente protegido (Calixto, 2014, p. 46-
61). O efeito devastador, tanto em relação às conquistas consolidadas no ordenamento
jurídico, quanto no tocante aos movimentos sociais reivindicatórios, numa espécie de
criminalização, abre os caminhos para a dominação do mercado e o esvaziamento das
políticas de bem estar social.
Ao prever o valor social da livre iniciativa, a Constituição não garante a
possibilidade de fazer tudo o que não está proibido, mas a liberdade de agir levando em
conta sempre a situação do próximo, colocando-se no lugar do outro e exigindo
responsabilidade pelos atos praticados. Não é a liberdade de perseguir o lucro em
qualquer circunstância, muito menos de obter vantagens de maneira selvagem e
predatória.
Os empresários estão vinculados à sociedade por meio de redes de relações
humanas e todas elas foram tratadas no texto constitucional. A necessidade de zelar pelo
meio ambiente, respeitar consumidores e trabalhadores constam como elementos
essenciais da República Federativa do Brasil, figurando como cláusulas pétreas, por
dizerem respeito aos direitos mais fundamentais da pessoa humana. A terceirização
rompe com essas redes, de modo que sua autorização de forma generalizada viola
diretamente o texto constitucional.
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6. Considerações finais.
As investidas para a liberação da terceirização em todas as atividades das
empresas se acentuaram nos últimos tempos. Elas se dão em duas vias: no Congresso
Nacional e no Supremo Tribunal Federal.
A estratégia empresarial não logrou êxito, pelo menos no aspecto da aprovação
célere do projeto de lei e no julgamento do recurso extraordinário que teve a
repercussão geral reconhecida.
A mobilização de vários defensores dos direitos dos trabalhadores foi de
fundamental importância para retardar tais decisões. Assim, há tempo para discutir
todas as consequências da terceirização para os trabalhadores e a sociedade como um
todo, como deve ocorrer numa sociedade democrática. As consequências prejudiciais
ainda não foram inteiramente reveladas, de modo que o processo deve avançar para que
os estudos e as pesquisas que vêm se realizando por especialistas cheguem às instâncias
decisórias.
Não é mais suficiente retardar a aprovação do projeto que tramita no Congresso
Nacional ou o julgamento do recurso em que foi reconhecida a repercussão geral da
matéria, sob a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal decida, como em outras
oportunidades, que se trata de debate infraconstitucional.
A proteção ao emprego previsto na Constituição não é a de qualquer modelo,
mas do que foi consagrado na dogmática trabalhista, baseado na pessoalidade e
subordinação diretas. A ruptura desse alicerce, mediante a liberação generalizada da
terceirização, viola a Constituição de 1988.
A inconstitucionalidade refere-se à eventual aprovação pelo Legislador da
possibilidade de terceirização em qualquer atividade empresarial. A terceirização em
atividades acessórias, em princípio, não é vedada pela Constituição de 1988, na medida
em que fica preservado o modelo de relação de emprego protegida no texto
constitucional. Mas ela violará a Constituição se for adotada para desmobilizar os
trabalhadores, comprometer o meio ambiente de trabalho ou gerar discriminações.
É essencial, para o melhor encaminhamento da discussão no Supremo Tribunal
Federal, que haja audiências públicas para ouvir todos os atores envolvidos. A decisão
21
de matéria da tal envergadura pela mais alta Corte do país não pode desconsiderar os
princípios preconizados pela Organização Internacional do Trabalho, como o diálogo
social e o tripartismo. Só assim o Supremo Tribunal Federal terá condições de anunciar
o verdadeiro conteúdo constitucional.
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