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2013.2 1 Profº Emerson Luiz PSICOLOGIA DO TRABALHO

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2013.2 1

Profº Emerson Luiz

PSICOLOGIA DO TRABALHO

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ACIDENTES DO TRABALHO: EVOLUINDO DO MODELO DE CAUSALIDADE CENTRADA NO INDIVÍDUO PARA

O MODELO DE CULTURA ORGANIZACIONAL

RESUMO:

Um importante aspecto no tratamento da questão dos acidentes do trabalho nas organizações é a

evolução das teorias da propensão para acidentes e da fadiga para as teorias da normalidade dos acidentes

e das organizações de alta confiabilidade. Tal transição significou uma importante mudança na abordagem

da questão tanto do ponto de vista dos seus fundamentos teóricos como de suas implicações práticas. O

presente trabalho mostra como tal transição ocorreu e explicita a existência de um paralelismo entre essa e

a transição da abordagem clássica da administração para a teoria geral de sistemas. Finalmente, o estudo

conclui que essa concomitância entre as duas transições foi o que possibilitou incorporar, tanto na

abordagem teórica do tema como no tratamento prático da questão, os fatores organizacionais nas

explicações causais da segurança e da saúde ocupacional. Assim, o estudo chama a atenção para a

necessidade de um novo olhar sobre o tema no sentido de se tratar os fatores organizacionais como

variáveis preditoras nos modelos que se proponham explicar as causas dos acidentes de trabalho.

PALAVRAS-CHAVE

Acidentes do trabalho, teoria sobre acidentes, fatores organizacionais.

1. Introdução

A explicação das causas dos acidentes de trabalho têm sido baseada, fundamentalmente, em

modelos de culpabilidade ou falhas dos trabalhadores durante a execução de suas tarefas. Tais modelos

têm suas raízes na abordagem clássica da Administração decorrente dos trabalhos pioneiros de dois

engenheiros: Frederick Winslow Taylor (1856-1915) e Henri Fayol (1841-1925). Não é de se admirar,

portanto, que essa explicação esteja baseada numa visão microscópica do homem de acordo com a qual, os

engenheiros individualizam cada operário ao considerarem suas relações com os instrumentos de trabalho,

com seus companheiros e seus superiores. Dessa visão microscópica, enfatizando a relação homem-

instrumento de trabalho, nasce um modelo de culpabilidade que não tem levado em conta o ambiente

organizacional no qual essa interação acontece.

Essa visão microscópica favoreceu o aparecimento de duas teorias psicológicas para a explicação

das causas dos acidentes, a saber, a teoria da propensão de certos indivíduos para se acidentarem e a

teoria da fadiga que procurou mostrar a relação entre os acidentes e a sobrecarga no trabalho. Essas

teorias nunca se preocuparam em incorporar a cultura organizacional como preditora importante da

ocorrência dos acidentes negando estar a origem dos mesmos em fatores organizacionais. Desse modo, a

busca da explicação das causas dos acidentes tem sido sempre centrada na relação do trabalhador com seu

instrumento de trabalho.

Os novos modelos para explicação das causas dos acidentes do trabalho têm sido basicamente

desenvolvidos a partir de uma visão mais abrangente da interação entre o trabalhador e a cultura

organizacional. Essa nova abordagem tem seus fundamentos na Teoria Geral de Sistemas desenvolvida a

partir dos trabalhos do biólogo alemão Ludwig Von Bertalanfy publicados entre 1950 e 1968. Os conceitos

extraídos da Teoria Geral dos Sistemas possibilitaram a evolução de uma visão microscópica e estática para

uma abordagem mais abrangente e dinâmica da explicação das causas dos acidentes. Isto significou um

deslocamento da ênfase do subsistema homem-instrumento de trabalho para a interação desse subsistema

com o ambiente organizacional. O trabalho, aqui apresentado, objetiva explicitar a trajetória segundo a

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qual essa evolução ocorreu bem como destacar as consequências práticas dessa nova maneira de tratar a

questão da segurança no trabalho.

2. A teoria da propensão dos acidentes

A Psicologia Industrial advoga ser possível prever a adaptabilidade dos trabalhadores mediante

uma classificação pelo grau de inteligência, habilidade manual, propensão a acidentes e pelo perfil

desejado pela gerência. A história da pesquisa sobre as disposições individuais e sua relação para os

acidentes é longa e problemática (IVERSON; ERWIN, 1997). O conceito de ‘propensão para acidentes’ foi

primeiramente desenvolvido por Greenwood & Woods (1919/1964) que, ao examinarem os acidentes

ocorridos em uma fábrica de munição inglesa, estudaram a distribuição e confiabilidade dos acidentes e

concluíram que, a um grupo particular de indivíduos, poderia ser creditada uma responsabilidade

considerável pelos acidentes. Para realização desse estudo, eles partiram de três hipóteses: (a) os acidentes

ocorrem de forma casual, (b) não existem diferenças individuais ligadas à ocorrência dos acidentes, mas a

probabilidade de um indivíduo se acidentar pode ser influenciada ou não por acidentes passados e (c)

existem certos indivíduos mais predispostos a sofrer acidentes. Em outras palavras, um grupo particular de

indivíduos tinha mais probabilidade de se envolver em um certo tipo de acidente ou em vários outros num

intervalo de tempo. Os estudos de Greenwoods & Woods confirmaram a ultima hipótese trazendo consigo

novas análises de outros pesquisadores que, no entanto, não confirmaram esses achados (DELA COLETA,

1991).

Tanto Dela Coleta (1991) quanto Iverson & Erwin (1997) destacam os trabalhos posteriores de

Shaw & Sichel que caracterizaram a propensão individual para acidentes ao compararem as características

individuais dos trabalhadores envolvidos em acidentes com os não envolvidos e ao calcularem o grau de

associação entre as características individuais e o envolvimento em acidentes. Esses estudos agregaram

novas discussões sobre o comportamento de risco de certos trabalhadores. Se a forma que o individuo se

comporta no ambiente de trabalho revela sua característica de propensão a acidentes é preciso cuidar que

“os indivíduos podem ter diferentes razões para seguir o mesmo curso de ação, mas no ambiente

organizacional, os meios para alcançar uma variedade de metas individuais são reduzidos a poucos

caminhos (KATZ; KAHN, 1970, p.75). Cada indivíduo, para alcançar sua meta, pode apropriar-se de um

caminho que o exponha em maior ou menor grau aos riscos presentes no ambiente. Katz e Kahn (1970)

ressaltam ainda que “cada indivíduo reage à organização em termos da percepção que dela tem, percepção

que pode diferir, de várias maneiras, da organização real”. Muitos trabalhadores podem se expor aos riscos

das tarefas como reflexo de um comportamento que é entendido como valor para a organização na qual

estão inseridos. Esta exposição pode gerar em um setor um maior número de acidentes e uma maior

reincidência de acidentes por um mesmo grupo de trabalhadores.

Dela Coleta (1991), ao estudar a distribuição dos intervalos entre os acidentes sofridos por milhares

de operários da construção naval em 1977, mostrou que o tempo médio de espera entre acidentes

consecutivos por um mesmo operário diminui com o numero de acidentes sofridos pelo operário. O autor

apresenta as razões que julga explicar essa diminuição do tempo médio de espera entre acidentes

consecutivos por um mesmo operário interpretando que (a) o operário perderia o medo e se acostumaria

com os acidentes, negligenciando os perigos e (b) supõe que o operário, após o primeiro acidente, se

tornaria tão temário de sofrer outros que este medo seria acompanhado de reações emocionais mal

ajustadas, que o predisporiam aos acidentes. Dejours (1987) não relaciona o medo à propensão para

acidentes. Ao contrário, o autor considera que uma consciência demasiado aguda e impregnada de perigo

tornaria impossível o trabalho, devido ao aparecimento do medo. O autor considera tratar-se da criação de

defesas e, em particular, de defesas coletivas que permitem aos trabalhadores resistirem frente aos perigos

a que estão expostos. Os acidentes podem ocorrer devido a uma avaliação incorreta do ambiente de

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trabalho. Segundo Perrow (1972ª, p.141) “o ambiente constitui sempre uma ameaça e um recurso. Às

vezes é claramente um dos dois, e outras vezes o que poderia ter constituído uma ameaça, transforma-se

em um recurso, a um certo preço, naturalmente”. Esse fato seria explicado por Simon (1965, p.5) ao definir

que “toda a vez que as decisões levam à seleção de finalidades ultimas elas serão chamadas “juízos de

valor” e sempre que impliquem na implementação de tais finalidades serão chamadas de “juízos de fato”.

Após um acidente nem sempre é claro identificar qual foi a motivação que levou o acidentado a agir: um

juízo de fato ou um juízo de valor, principalmente, se o operário trabalhava sozinho e veio a falecer em

função do acidente.

A dificuldade de identificar, e comprovar mediante estudos objetivos, as características que um

grupo de indivíduos ou um indivíduo carrega durante o curso de uma ação, provocou um afastamento da

teoria da propensão aos acidentes. Um ceticismo importante em relação à teoria que examina os efeitos

das disposições individuais aos acidentes é a falha desses estudos em controlar tanto os fatores pessoais

quanto as características do ambiente onde o trabalho é realizado e a aplicabilidade desses conceitos

(IVERSON; ERWIN, 1997). Essa dificuldade é confirmada pelos estudos de Dela Coleta (1991) na análise da

indústria de construção naval ao concluir que a eliminação dos reincidentes, ou seja, aqueles que

provavelmente novamente se deixariam envolver em acidentes no segundo semestre do período do estudo

considerado, representaria uma pequena parcela de 1,8%, ou seja, conclui que a eliminação dos

reincidentes em acidentes não é a melhor estratégia para alcançar reduções nas taxas de acidentes.

3. A teoria da fadiga

No período da Primeira Guerra Mundial foram desenvolvidas intensas pesquisas buscando

estabelecer a relação entre os acidentes e a fadiga gerada pela sobrecarga de trabalho. Os resultados dos

trabalhos de Vernon (1918) apud Dwyer (1991) mostraram que o aumento da carga de trabalho de 60 para

72 horas acarretou um aumento de duas vezes e meia no número de acidentes. A maior contribuição dessa

teoria, e de outras pesquisas posteriores, foi trazer para discussão o tema da redução do horário da jornada

de trabalho que passou a ser debatido em vários congressos despertando interesse pelo tema por

sindicalistas e pelo governo.

A teoria da fadiga encontrou a mesma dificuldade que a teoria da propensão dos acidentes: validar

os resultados com pesquisas similares. Essa constitui a principal questão quando se trata da pesquisa de

acidentes: a existência de um número significativo de variáveis de difícil controle. Como os acidentes

acontecem nos mais variados ambientes e, em um mesmo ambiente pode ocorrer durante a execução das

mais diversas tarefas, elimina-se quase totalmente a possibilidade de uma pesquisa-ação. Essa é a razão

pela qual a maioria das pesquisas em acidentes trata os dados pós-evento e encontram dificuldades em

sugerir medidas preventivas para evitar futuras ocorrências danosas.

Segundo Dwyer (1991), a teoria da propensão para acidentes encontrou mais apoio dos

empregadores que a teoria da fadiga, pois a última questionava a ética moral da sobrecarga do trabalho

que se impunha aos trabalhadores. A teoria da propensão aos acidentes seria suportada pela ideia secular

do acidente como uma punição de Deus ao pecado ao trabalhador e sua pretensa base cientifica dos

acidentes a tornava atrativa aos empregadores por tratar os acidentes como falhas dos empregados. Os

modelos de propensão para acidentes e da fadiga geraram confusão e conflito pela dificuldade da validação

de resultados. Buscou-se, então, explicação para as causas dos acidentes na análise da falha humana ou

erro humano no trabalho.

4. A falha humana como explicação para as causas dos acidentes

É geralmente aceita que 80 a 90% dos acidentes decorrem do erro humano no trabalho (HEINRICH,

1959; HALE e GLENDON, 1987). Considerar que os acidentes proveem de falha humana passou a não

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acrescentar muitas explicações para o desenvolvimento de medidas preventivas de segurança, uma vez

que, na quase totalidade das tarefas, a presença humana é, ainda, muito significativa. Os estudos sobre a

falha humana ou erro humano trouxeram significativas contribuições para a compreensão e

desenvolvimento de abordagens e técnicas mais modernas sobre a confiabilidade humana. As razões de se

atribuir a culpa pelos acidentes aos empregados parece ser bastante óbvia à luz dos argumentos

apresentados por diversos autores (BARAM, 1998; ALMEIDA, 2001; REASON, 1999, 2000; HOPPKINS, 2000).

Segundo esses, tal procedimento traz intrínseco o deslocamento do principal eixo do problema que se quer

omitir: as falhas da organização. À medida que crescem as ações que demandam responsabilidade civil,

responsabilidade criminal dos prepostos e a responsabilidade ética e social das organizações maior é a

tendência de responsabilizar os trabalhadores pelos acidentes.

Almeida (2001) traz significativas contribuições ao tema ao explorar importantes aspectos da

construção das análises e atribuição de culpa. Pondera o autor que “as investigações de acidentes são

conduzidas de forma superficial... e a busca de “falhas” atribuídas ao trabalhador, no período que

antecede, de modo imediato, o acidente, sem a análise das intenções e razões envolvidas na origem desses

atos” mostra que culpar o trabalhador continua como principal foco das análises dos acidentes (ALMEIDA,

2001, p.200). O autor ressalta, ainda, que “apenas 20% dos fatores de acidentes relativos a aspectos de

gestão e/ou da organização do trabalho acompanham-se de alguma sugestão de medida preventiva” o que

evidencia a necessidade de se considerarem novas formas de gestão e organização do trabalho (p.200).

O deslocamento do eixo da análise da simples atribuição de culpa ou de falhas humanas para as

formas de gestão e organização do trabalho em que os fatores organizacionais são analisados como

significativos para a ocorrência dos eventos, decorre, em grande parte, dos estudos de Turner (1978),

Perrow (1999), Reason (2000) e Hopkins (2000). Os acidentes representam uma disfunção organizacional

em seu sistema sócio-técnico (TURNER, 1978; GHERARDI et al, 1998; HOPKINS, 1999). Um sistema sócio-

técnico é constituído de uma interação de componentes sociais e componentes técnicos. Os componentes

técnicos são as instalações, equipamentos, ferramentas, processos produtivos e materiais que as

organizações se utilizam para alcançarem os produtos de suas finalidades. Os componentes sociais

influenciam e sofrem influências das forças ambientais representadas pelos sindicatos, pelos mecanismos

de concorrências interna e globalizada, pelas taxas de câmbio, pelas legislações de segurança, saúde e

ambientais e pelos valores temporais dos grupos sociais dominantes em um espaço de tempo e lugar.

O termo ‘erro humano’ é largamente utilizado pela mídia ao referir-se a falhas, imperfeições ou

inadequações causadas pelos homens e, em conexão com acidentes ou falhas nas decisões. Fazer

referência ao erro humano sem relacioná-lo ao contexto no qual o erro ocorre, incluindo os fundamentos

culturais e sistêmicos e a missão do sistema pode ser um engano ou mesmo antiético (EINARSSON, 1999).

O fenômeno do erro humano inclui não somente ações, decisões, comunicações e transmissão de

informações entre humanos, mas também reações dentro do ambiente de trabalho e no processo do

acidente. Reason (1999) ressalta que os acidentes ocorrem como consequência de duas causas: falhas

ativas e falhas latentes. As falhas ativas referem-se àqueles erros ou violações que têm um efeito

imediatamente adverso. Esses erros estão geralmente associados às atividades realizadas pelo pessoal de

frente, ou seja, operadores de equipamentos, pilotos de avião, médicos, engenheiros, dentre outros,

durante a execução de uma tarefa. As falhas latentes são aquelas que estão intrínsecas nas organizações e

que contribuem de forma significativa para que as falhas ativas se manifestem. As falhas latentes são

decisões ou ações de consequências danosas que podem ficar adormecidas por longos períodos, só

tornando-se evidentes, quando se combinam com outros fatores (falhas ativas, falhas técnicas, desenhos

inadequados, condições atípicas, etc.) atravessando todos os sistemas de defesas organizacionais.

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Em relação ao erro gerado por uma insuficiência na concepção e da prescrição da tarefa, os estudiosos

franceses dedicaram-se ao tema com afinco, apresentando as disfunções entre o trabalho prescrito e o

trabalho real (DEJOURS, 2002; GUERIN et al.2001; LLORY, 1999).

Segundo Guérin et al. (2001) “a distância entre o prescrito e o real é a manifestação concreta da

contradição sempre presente no ato de trabalho, entre “o que é pedido” e “o que a coisa pede”. (p.15). Um

dos elos fracos do sistema sócio-técnico surge nesse ponto pelo divórcio taylorista entre os que pensam e

entre os que executam, excluindo o trabalhador da ‘análise do processo de trabalho’. É exatamente na

análise do trabalho que se permite compreender como os operadores enfrentam a diversidade e as

variações de situações, e quais consequências trazem para a saúde e para a produção (GUÉRIN et al. 2001).

Se os trabalhadores são afastados da análise do processo de trabalho a riqueza desse

conhecimento é mantida individualizada e os efeitos sociais coletivos da prevenção são anulados. Essa

questão é tão fundamental que estudos dos grandes acidentes mostram que muitas vezes o conhecimento

dos fatores contributivos para os acidentes estavam ao nível dos operadores que foram negligenciados.

LLory (1999, p.20) destaca o exemplo do acidente acontecido com a nave espacial Challenger no qual os

operadores dispunham de informações que teriam sido de grande utilidade para os tomadores de decisão,

mas não foram envolvidos pois “eles não sabiam escrever bons relatórios”. Almeida (2001) pondera que

quando os trabalhadores iniciam suas atividades eles a fazem após as chefias já terem estabelecido os

objetivos, metas de produção, definido prescrições, horários e dividido os trabalhadores em equipes. Se o

trabalho prescrito é planejado pela gerência quando o trabalhador erra durante a execução de suas

atividades a primeira pergunta que surge é se a norma ou procedimento foi seguida na íntegra.

A distância entre o que se prescreve e o real faz surgir o conceito de culpabilidade do trabalhador,

pois todo o direito escrito tem um duplo objeto: prescrever certas obrigações e definir as sanções que lhes

estão cometidas. Se o procedimento não contempla todos os riscos envolvidos na tarefa a falha da gerência

na elaboração não é destacada, mas realça-se sim, a falha do trabalhador que não comunicou à gerência

que ele executava passos fora do planejado no procedimento. Inicia, aqui, o velho dilema que acompanha a

segurança do trabalho: as falhas gerenciais não são evidenciadas e o enfoque centrado na culpa do

trabalhador pelos acidentes persiste pela facilidade de se apontar o instrumental dos erros.

Katz e Kahn (1970, p.91) ponderam que “nem todo comportamento na organização pode ser

prescrito por padronização de tarefa”. Mudar o eixo de estudos de falha humana para as falhas

organizacionais não é tão simples. Sagan (1997, p.46) citando o físico britânico Michael Faraday que alerta

contra a tentação poderosa “de procurar as evidências e aparências que estão a favor de nossos desejos, e

desconsiderar as que lhes fazem oposição. Acolhemos com boa vontade o que concorda com nossas ideias,

assim como resistimos com desgosto ao que se opõe a nós, enquanto todo preceito de bom senso exige

exatamente o oposto”. Se os acidentes acontecem devido às falhas humanas ou se errar é humano, então o

acidente é um acontecimento normal?

5. A ‘normalidade’ dos acidentes

Perrow (1999), ao estudar os grandes acidentes ocorridos em organizações, ressalta que a maioria

dos sistemas de alto risco tem algumas características especiais, além dos perigos tóxicos, explosivos ou

genéticos, que fazem com que acidentes sejam considerados “normais” ou inevitáveis. Essas organizações

possuem sistemas que se interagem de forma firme e em cadeia. Quando acontece um erro em um

subsistema este influencia o desempenho do sistema seguinte e em determinado momento o somatório

dessas forças dos subsistemas provoca interações fortes e complexas que não podem ser neutralizadas

tendo como resultado um acidente.

A tese básica de Perrow – Teoria da Normalidade dos Acidentes (NAT) – é que os acidentes são

inevitáveis em sistemas tecnologicamente complexos e fortemente interligados, por exemplo, em plantas

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nucleares, plantas petroquímicas e na aviação. O termo ‘acidente normal’ significa que, dadas às

características dos sistemas possuírem interações múltiplas e não previstas, as falhas são inevitáveis.

Ressalta que isto significa uma expressão de uma característica integral do sistema e não de uma afirmação

relativa a frequência, ou seja, não está relacionada a sua repetitividade. Considera o autor que é a

interação de múltiplas falhas que conduz a um acidente e por mais que esforços sejam feitos para controle

total dos diversos subsistemas, determinadas reações são imprevisíveis e quando interagem conduzem a

um acidente ou catástrofe. A primeira análise de Perrow (1999) sobre os sistemas complexos foi o acidente

ocorrido no dia 28 de março de 1979 em Three Miles Island, planta nuclear situada perto de Harrisburg,

Pensilvânia, Estados Unidos, a partir do qual construiu a base de sua teoria.

Prosseguindo em sua análise o autor discorre sobre os acidentes ocorridos e o grande potencial de

catástrofes existentes nas plantas petroquímicas capazes de afetar todo o sistema ambiental onde se

localiza. Analisa também o potencial de riscos existentes nas aeronaves dos voos comerciais concluindo

que, apesar do declínio dos acidentes aéreos pelo avanço da tecnologia e habilidade dos pilotos, esses

sistemas nunca se tornarão totalmente seguros, devidos a pressão organizacional sobre a tripulação para

voarem mesmo em condições inadequadas. Essa pressão pode implicar em deficiências de manutenção e

de sobrecarga de trabalho. Em seguida Perrow (1999) analisa a complexidade dos acidentes marítimos que

possuem complexidades similares a plantas nucleares e aos transportes aéreos. Um navio é como uma

fábrica ou planta nuclear contendo misturas explosivas, problemas ambientais diversos, estrutura

organizacional de comando centralizada e a adoção de modernas tecnologias, por exemplo, o uso de

radares que permitem o aumento da velocidade, mas em compensação aumenta os riscos de colisão.

Nesses sistemas, a probabilidade de falhas está sempre presente e essa são capazes de

desencadear interações que se processam com grande rapidez ou independentes de outras partes do

sistema que não permitem um tempo de resposta adequado. A exposição de Perrow (1999, p.7) conduz a

uma reflexão sobre a causalidade dos acidentes. Durante as análises de acidentes é preciso que as causas

sejam investigadas na complexidade do sistema e que se abandone modelos simplistas que apontem

eventos isolados esquecendo-se que “o acidente é o resultado de interações múltiplas”. Churchman (1972,

p.9 – prefácio) inicia seus estudos sobre sistemas chamando a atenção para o fato de que “quando alguém

examina sistemas, é sempre atitude sábia levantar questões a respeito das suposições mais óbvias e

simples”. O autor pondera que o enfoque sistêmico terá de perturbar processos mentais típicos e sugerir

alguns enfoques radicais para pensar. Na verdade, já poderia ser considerada uma atitude de todo radical

para alguém pensar primeiro sobre o objetivo global e, em seguida, começar a descrever o sistema em

função desse objetivo global. Portanto, as investigações de acidentes devem suspeitar daquelas causas que,

a princípio, parecem tão óbvias que, por si mesmas, eliminam a necessidade da continuidade da análise.

A causa do acidente pode ser facilmente negligenciada principalmente se um culpado já foi apontado. Para

Cyert e March (1963) como as organizações modernas são grandes e complexas, possuindo diversas

funções e procedimentos, sendo as decisões tomadas em diferentes níveis com objetivos específicos é

preciso buscar um entendimento da arquitetura organizacional. Reafirma-se, assim, a necessidade

premente, na analise da causalidade dos acidentes, de abandonar o modelo unicausal e ampliar os

horizontes na investigação do processo de tomada de decisões que permeia dentro das organizações.

6. Organizações de alta confiabilidade e os fatores organizacionais

Outra abordagem em relação aos acidentes são os estudos desenvolvidos pelas organizações

denominadas de HRO – high reliability organisations – ou organizações de alta confiabilidade que parte de

um pressuposto exatamente inverso ao da visão de Perrow (1999). Para essas organizações, os acidentes

são considerados totalmente previsíveis, razão pela qual, investiram maciçamente em elementos de

controle gerenciais e em sistemas de engenharia que pudessem evitar falhas humanas e de manutenção.

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Como o acidente é “esperado”, medidas de controle são tomadas preventivamente para que as situações

sejam mantidas dentro de um alto nível de confiabilidade. Desenvolve-se, então, a visão do homem como

fator de confiabilidade dos sistemas de alto risco (WEICK, 1987; SAGAN, 1995).

Teóricos, engenheiros e outros profissionais especializados em análises de sistema de alto risco

concordaram que sérios acidentes com tecnologias perigosas podem ser prevenidos mediante um desenho

organizacional inteligente e de um sistema de gerenciamento eficaz. A análise de organizações que lidam

com produtos altamente perigosos e apresentam um histórico de gerenciamento sem acidentes

significativos indicam a adoção de um processo deliberado no qual os riscos são monitorados, avaliados e

reduzidos. Assim, a pesquisa nessas organizações centrou-se na identificação as estratégias e processos

organizacionais (SAGAN, 1995).

Sagan (1995) destaca que a principal suposição dos teóricos da alta confiabilidade não é a crença

ingênua na habilidade do ser humano para comportar-se de forma racional; é uma crença bem mais

plausível de que as organizações, propriamente estruturadas e gerenciadas, podem compensar as

conhecidas fragilidades humanas e podem, além do mais, ser significativamente mais racionais e efetivas

que os indivíduos. As organizações de alta confiabilidade, que gerenciam sistemas perigosos, são vistas

como ‘racionais’ no sentido de possuírem estruturas altamente formalizadas e orientadas para alcançar

seus objetivos de forma clara e consciente (neste caso a extrema segurança e confiabilidade de suas

operações). Quatro fatores críticos foram identificados como responsáveis pelo desempenho e alcance de

excelentes recordes de segurança na grande maioria dessas organizações: a priorização da segurança e da

confiabilidade como um objetivo das lideranças da organização; altos níveis de redundância em pessoal e

medidas técnicas de segurança; o desenvolvimento de uma ‘cultura de alta confiabilidade’ através de

descentralizadas e contínuas práticas de suas operações e um sofisticado sistema de julgamento e

aprendizagem organizacional pelo erro (SAGAN, 1995). Esses quatro fatores constituem, de acordo com os

teóricos dessa escola de pensamento, a rota para operações extremamente seguras e confiáveis mesmo

em tecnologias altamente perigosas. A teoria da ‘normalidade dos acidentes’ foi considerada como uma

visão negativa do homem no controle de seus sistemas e a ‘teoria da alta confiabilidade’, ao contrário,

passou a ser encarada como uma forma positiva da capacidade humana de controlar seus sistemas de alto

risco (SAGAN, 1995).

Rijpma (1997) faz uma análise comparativa das duas teorias onde coloca pontos que devem ser

objeto de atenção quando se deseja manter estrito controle dos acidentes. Segundo o autor, a

complexidade e as fortes interações propostas por Perrow pode afetar de forma abrangente a

confiabilidade dos sistemas. A complexidade e as fortes interações podem diminuir tanto os efeitos da

estratégia organizacional quanto pode neutralizar os efeitos da redundância. Por outro lado, os efeitos da

redundância e as constantes análises de riscos desenvolvidas para aumentar a confiabilidade dos sistemas

poderão neutralizar os acidentes que seriam considerados ‘normais’. Se a teoria da normalidade dos

acidentes pode explicar e ser usada, inclusive, para a compreensão dos acidentes nos sistemas de alto

risco, a teoria da confiabilidade pode trazer significativa luz sobre a compreensão dos fatores que

contribuem para a propensão de algumas organizações terem acidentes. O autor sugere que a adoção dos

princípios das duas teorias pode prover os especialistas de segurança com respostas mais compreensivas e

balanceadas sobre a prevenção e a confiabilidade. Qual é o melhor caminho a seguir deve ser objeto de

uma análise mais apurada, pois conforme “a historia da ciência ensina que o máximo que podemos esperar

é um aperfeiçoamento sucessivo de nosso entendimento, um aprendizado por meio de nossos erros... mas

a certeza absoluta sempre nos escapará (SAGAN, 1997, p.42)”.

Os critérios de confiabilidade ou falibilidade apresentados por essas teorias são sempre suscetíveis

de controvérsias. Ao re-analisar o acidente de Three Miles Island (TMI), que serviu de base para a

construção da teoria da normalidade dos acidentes por Perrow em 1984, Hopkins (2001) questiona se

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realmente esse acidente poderia ser considerado ‘normal’. Segundo Hopkins (2001, p.65), o argumento de

Perrow para justificar esse acidente como ‘normal’ é um “descarado argumento tecnologicamente

determinístico”. Seu argumento é que o acidente era perfeitamente explicável em termos de falhas de

gerenciamento, pois o reator já apresentava problemas que eram conhecidos.

À medida que os estudos sobre as causas dos acidentes afasta-se da centralidade da culpa dos

operadores, os fatores organizacionais emergem de forma mais acentuada e passam a ser analisados

dentro do contexto social em eles ocorrem. Perrow (1999) tenta mostrar que a falha dos operadores, no

caso do acidente de TMI, em reconhecer que um acidente estava ocorrendo pela perda de resfriamento do

reator e pela decisão prematura dos operadores de parar a injeção de água em alta pressão para

compensar a perda de resfriamento, não poderia ser creditada ao ‘erro do operador’ mas sim ao resultado

de interações fortes e complexas. Os estudiosos da teoria da confiabilidade chamam a atenção para o fato

de que o desenho da estrutura organizacional pode conduzir a uma organização livre de erros.

Como se depreende da análise anterior, os primeiros modelos explicativos de acidentes estavam

em consonância perfeita com a visão microscópica e de sistema fechado utilizada pela abordagem clássica

da administração. A ideia de existência de objetivos dos sistemas, alcançáveis pela interação permanente

entre as suas partes, introduzida pela teoria geral dos sistemas, é que permitiu evoluir em direção a

modelos explicativos que levam em conta os fatores organizacionais na análise das causas dos acidentes.

Foi a partir deste ponto que o desempenho em segurança passou a ser tratado como ‘variável resposta” e

os fatores organizacionais como “preditores".

7. Conclusões

Seguindo Becker (1998), abrir mão da abordagem baseada nos conceitos de ‘propensão para

acidente’ e ‘fadiga’ em favor da abordagem baseada em ‘fatores organizacionais’ não tem sido simples. O

autor destaca os seguintes aspectos dessa dificuldade:

a) fatores organizacionais com influência na segurança são difíceis de capturar e eles são pobremente

definidos e categorizados;

b) o recente desenvolvimento do conceito de “cultura de segurança” ilustra a complexidade de contexto

entre fatores organizacionais e segurança;

c) as tarefas e ações nos níveis mais altos da hierarquia gerencial raramente são processos padronizados.

Um desempenho inadequado pode ser difícil de descobrir já que se tem tido uma abordagem

tradicionalmente de análise de evento como análise de desvio;

d) erros que podem ser atribuídos a uma unidade definida da organização não podem ser facilmente

separados da questão da responsabilidade. É como nos casos de erros individuais em que eles tornam-se

motivos de acusações ou, no mínimo, sentimentos de culpa ou de acusação;

e) o comportamento dos órgãos e instituições no ambiente organizacional tem uma considerável influência

nas possibilidades de aprendizagem organizacional, usando os sistemas de reportagem de eventos ou

análise de eventos.

Esse estudo mostrou que a transição dos modelos baseados em ‘propensão para acidentes’ e de

‘fadiga’ para os modelos da ‘normalidade’ e ‘organizações de alta confiabilidade e fatores organizacionais’

se deu de modo concomitante à transição da Abordagem Clássica da Administração para a abordagem

baseada na Teoria Geral de Sistemas. Desse modo, ele chama a atenção para a necessidade de incorporar

os fatores organizacionais na explicação das causas dos acidentes do trabalho. Em função do exposto, o

estudo representa tanto uma contribuição teórica quanto prática para a questão dos acidentes do trabalho.

A contribuição teórica refere-se à explicitação do paralelismo analisado acima enquanto que a contribuição

prática refere-se às mudanças no tratamento da questão da Segurança e Saúde Ocupacional decorrentes

das novas abordagens. Assim, as medidas preventivas para a obtenção de Segurança do Trabalho passam a

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ser tomadas com base na interação homem-ambiente organizacional ao invés da relação homem-

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CULPA DA VÍTIMA: UM MODELO PARA PERPETUAR

A IMPUNIDADE NOS ACIDENTES DO TRABALHO

Introdução: acidentes de trabalho e sua importância Os acidentes do trabalho constituem fenômeno de

múltiplas facetas. Sua ocorrência costuma trazer à tona no mínimo a face existencial, a técnica e a jurídica.

Ou seja, simultaneamente ao drama existencial que produz para vítimas, familiares e pessoas próximas, os

acidentes costumam ser seguidos de iniciativas técnicas visando a compreensão de suas causas e podem

ensejar ações também na esfera judicial.

Segundo estimativas e dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no plano mundial, os

acidentes do trabalho causaram em 1994 um total de 335 mil mortes em acidentes típicos, que se somam a

um total de 158 mil mortes por acidentes de trabalho durante o trajeto e 325 mil mortes por doenças

relacionadas ao trabalho, que totalizam 818 mil mortes no ano de 1994. Além desses dados estima-se que

ocorrem anualmente 250 milhões de acidentes e 160 milhões de doenças ocupacionais.

Segundo os últimos dados do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no ano de 2000

ocorreram no país 343.996 acidentes e 3.094 mortes por acidente de trabalho para uma população

segurada pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de 20.374.176, o que representa uma proporção de

incidência de acidente de trabalho de 1,68 por 100. A taxa de letalidade no ano foi de 9,0 mortes por mil

acidentes e a taxa de mortalidade ficou 15,2 mortes por 100 mil trabalhadores registrados pela CLT. Os

coeficientes de 2000 mostram que o Brasil está com taxa de mortalidade por acidentes de trabalho acima

da média dos países da América Latina, que ficou em 13,5/100 mil, só perdendo para a os países da Ásia –

23.1/100 mil e da África que é de 21/100 mil, segundo o último levantamento da OIT, que tomou como

base os dados do ano de 1994. No Brasil, parte dos acidentes do trabalho que resultam em morte e lesões

aos trabalhadores são objeto de investigação pelos órgãos da Secretaria de Segurança Pública (Polícia Civil).

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No entanto, a despeito de sua importância no que tange a iniciativas de responsabilização civil e penal,

essas investigações têm sido pouco exploradas enquanto fonte de informações sobre os acidentes do

trabalho graves e fatais. As investigações do Instituto de Criminalística (IC) são efetuadas a partir de

solicitação das Delegacias de Polícia que instauram inquérito policial quando ocorrem os acidentes graves e

fatais do trabalho, visando a apurar responsabilidade criminal. Segundo o Manual da Secretaria de

Segurança Pública do Estado de São Paulo, além da abertura do Inquérito Policial, o delegado que coordena

as investigações deve registrar o Boletim de Ocorrência, com o histórico dos fatos; comparecer ao local;

ouvir o trabalhador acidentado e testemunhas; inquirir e verificar junto ao empregador o cumprimento de

normas de saúde e segurança no trabalho. Cabe ao delegado solicitar investigação do IC para apuração das

causas do ocorrido e quando for o caso, o laudo do Instituto Médico Legal.

O IC, por intermédio de seu representante técnico, comparece ao local da ocorrência para

investigação das causas do acidente do trabalho, emitindo laudo técnico, que irá subsidiar o delegado na

apuração dos fatos e encaminhamento do inquérito. Após a fase de inquérito na Delegacia de Polícia, o

caso é encaminhado para a Justiça, que, de posse das informações disponíveis dá prosseguimento aos

processos. O interesse no acompanhamento e investigação dos acidentes graves e fatais foi-nos despertado

a partir das experiências desenvolvidas no Programa de Saúde do Trabalhador de Piracicaba, a contar de

1998. Quatro acidentes fatais, dois do setor de papel e papelão e dois da construção civil, foram

investigados pelo Programa de Saúde do Trabalhador de Piracicaba, ensejando os primeiros contatos com

os laudos do IC despertando atenção para a importância da Secretaria de Segurança Pública, tanto como

fonte de informações como na apuração de responsabilidades dos empregadores e seus representantes na

geração de acidentes do trabalho.

Alguns casos foram objeto de inspeção de campo quando tivemos a oportunidade de confrontar os

laudos com informações obtidas no local de ocorrência dos acidentes. Além de entrevistas com os

acidentados, com a equipe e familiares foi possível acessar outros documentos como Atas de CIPAS,

processos administrativos dos órgãos oficiais, como do Programa de Saúde do Trabalhador de Piracicaba e

do Ministério do Trabalho e Emprego, além de registrar as condições de trabalho por meio de fotografias.

Usando-se a aplicação do Método de Árvore de Causas (ADC) foi possível confrontar os laudos oficiais com

outra abordagem, demonstrando de modo mais detalhado as distorções e simplificações resultantes da

concepção monocausal conforme consta de pesquisa de Vilela.

Concepções de acidentes

A análise de acidentes é sempre influenciada pela visão ou compreensão do analista acerca desses

eventos. No entanto, nem sempre os valores ou pontos de vista implícitos numa determinada concepção

são claramente assumidos ou compreendidos por esse mesmo analista. A própria ideia da existência de

uma determinada concepção de acidente associada a cada proposta de análise pode causar estranheza tal

é a frequência com que essas propostas são enunciadas como técnicas assépticas ou neutras. O que é o

acidente? Como ele é descrito em cada uma das diferentes concepções ou “escolas de pensamento”

existentes? Nos próximos parágrafos busca-se apresentar esboço de resposta a essas questões.

Inicialmente, pode-se afirmar que predomina, no Brasil e no mundo, a compreensão de que o acidente é

um evento simples, com origens em uma ou poucas causas, encadeadas de modo linear e determinístico.

Sua abordagem privilegia a ideia de que os acidentes decorrem de falhas dos operadores (ações ou

omissões), de intervenções em que ocorre desrespeito à norma ou prescrição de segurança, enfim, “atos

inseguros” originados em aspectos psicológicos dos trabalhadores. Os comportamentos são considerados

como frutos de escolhas livres e conscientes por parte dos operadores, ensejando responsabilidade do

indivíduo. A dimensão coletiva aparece associada com noção de cultura de segurança, compreendida como

soma dos comportamentos dos indivíduos.

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Essa abordagem associa-se a propostas de gestão da segurança e da saúde que enfatizam a

vigilância e o recenseamento desses “atos inseguros ou abaixo do padrão”, a adoção de punições ou

recompensas em caso de descumprimento ou de adesão às regras e a ideia da responsabilidade individual.

A cultura de segurança seria construída com a adoção de estruturas hierárquicas e disciplina rígida. Em

alguns casos a referência ao modelo de organizações militares e instituições totais é explícita.

Com pequenas diferenças, às vezes, apenas de ênfase segundo o autor, essa forma de conceber o

acidente recebe denominações como: centrada na pessoa, paradigma tradicional, paradigma burocrático

da Saúde e Segurança centrada no erro. Segundo Llory, essa é a única forma de conceber o acidente que

alcançou o status de paradigma, no sentido dado por Kuhn ao termo. Infelizmente, quando se trata de

apresentar outras concepções de acidentes predominam diferenças entre os autores. A seguir, de modo

resumido, apresenta-se algumas das propostas de sistematização desse tema que estão presentes na

literatura. Reason classifica duas concepções de acidentes como sendo “da engenharia” e a

“organizacional”. A concepção da engenharia enfatiza a quantificação da probabilidade de eventos ou

aspectos associados, e as falhas de concepção ensejando o surgimento de propostas de sistemas de gestão

de segurança e da saúde no trabalho e de melhoria das interfaces de troca de informações. Abordagens de

confiabilidade que privilegiam cálculos de probabilidade são apontadas como exemplos desse enfoque.

Essa forma de conceber o acidente mostra-se pouco difundida no Brasil, sendo praticamente inexistentes

experiências e publicações que a tenham adotado, sobretudo como instrumento para abordagens de

acidentes. Na concepção organizacional, Reason considera que o erro é muito mais consequência do que

causa e que suas origens estariam em condições latentes, incubadas na história do sistema.

O modelo de acidente organizacional proposto por Reason enfatiza o fato de o acidente apresentar

origens latentes, associadas às escolhas estratégicas adotadas desde sua concepção e às políticas de gestão

assumidas. O autor critica as análises de acidentes que restringem-se à identificação de falhas humanas que

ocorrem nas proximidades da lesão e do acidente propriamente dito por que eles têm pouca importância

para a prevenção. Segundo ele, a gestão da segurança e da saúde passa a recomendar medidas pró-ativas e

a busca de reformas contínuas do sistema, como por exemplo, as estratégias de qualidade. Apesar da

referência à visão de Perrow nessa proposta, a teoria do acidente normal ou sistêmico dá origem a uma

concepção de acidente que tem vida própria e é adotada, sobretudo em estudos de desastres ocorridos em

sistemas técnicos complexos, com consequências que estendem-se muito além dos muros da organização

em si. Na visão de Perrow, nesse tipo de sistema, sempre haverá interações de natureza inesperada,

complexas, incompreensíveis em tempo real para os operadores e capazes de desencadear, de modo

irreversível, o processo acidental. O acidente é normal não por ser frequente, mas sim por ter origem em

propriedades inerentes ao sistema.

Além da referência ao modelo de gestão do erro, acima citado, Hollnagel cita dois outros: o da

“gestão do desvio de desempenho” e o da “gestão da variabilidade de desempenhos”. A gestão do desvio

do desempenho destaca a ideia de desvio, que teria origens em causas manifestas e latentes a serem

geridas, tanto pela busca de sinais ou avisos de sua existência, quanto pela sua supressão. O termo desvio é

usado para indicar mudança tanto em relação ao que é esperado e, portanto, previamente conhecido

como, por exemplo, uma norma ou padrão, como em relação ao habitual, entendido de modo equivalente

ao trabalho real ou atividade desenvolvida pelos operadores. O acidente é compreendido principalmente

como sinal de disfunção no sistema sociotécnico. É enfatizada a necessidade de estender a análise além dos

limites dos aspectos causais situados nas proximidades do acidente propriamente dito e de suas

consequências. Ao citar explicitamente as causas latentes, o autor sugere que a visão apresentada por

Reason também situa-se no marco dessa concepção.

A técnica de análise de acidentes dita “árvore de causas” adota como um de seus principais pilares

de sustentação o conceito de variação, apresentado de modo muito próximo dessa visão, apesar da ênfase

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que dá ao fato de que a definição de variações deve basear-se na noção de trabalho real, e não em normas,

regras ou prescrições. Aliás, é essa característica que permite sua utilização e interpretação de modo

diferente deste, ou seja, como ponto de partida para demanda de análises complementares que sirvam de

lastro, por exemplo, para a compreensão de comportamentos humanos aparentemente irracionais ou

inusitados quando olhados sem a “perspectiva do nativo”, ou seja, a compreensão daqueles que vivem o

cotidiano do sistema. A terceira concepção proposta por Hollnagel dita da gestão da variabilidade de

desempenhos, destaca contribuições de abordagens cognitivas rompendo com a leitura que vê o erro

sempre como evento negativo. A variabilidade do trabalho tanto pode ser negativa como positiva. No caso

de sistemas sócio-técnicos abertos que alcançaram bons desempenhos em termos de segurança e

confiabilidade, essa variabilidade mostra-se associada, sobretudo, aos componentes humanos, sendo

fortemente influenciada pela compreensão dinâmica da atividade em todos os seus momentos. Em outras

palavras, trabalhar implica a adoção de estratégias cognitivas de gestão da atividade: do planejamento à

execução. As representações mentais do que vai ser e do que está sendo feito são influenciadas por

aspectos do tempo (hora do dia, “idade” dos componentes etc.), da história do indivíduo, dos grupos e da

empresa a que se vincula, como das características técnicas e organizacionais do sistema e do contexto

sócio-político-econômico em que esse está inserido. Assim é que a compreensão de um ruído, por

exemplo, pode ser diferente para um novato e um trabalhador experiente; ou para um membro de equipe

de empresa contratada e trabalhador da contratante que atua há anos naquele setor.

O erro é um dos sinais que orienta a compreensão da equipe acerca do que está ocorrendo, do

controle ou não da atividade, em cada momento. De acordo com esse enfoque, sua ocorrência revela que a

representação mental da atividade tanto dos objetivos (o que fazer), seja do como fazer, não está em

consonância com a realidade. Distanciou-se dela. No entanto, os procedimentos usados para elaborar e

atualizar esse modelo mental, enfim, o próprio modelo adotado, foram exatamente os mesmos usados nas

situações sem acidente. De acordo com Hollnagel, as origens dessa variabilidade podem ser identificadas e

monitoradas.

Essa forma de pensar o trabalho leva a compreender o acidente como indicador da ruptura da

compreensão da atividade, do compromisso cognitivo usado pelos operadores na gestão da atividade. No

entanto, embora o acidente nos mostre o momento em que ocorre a ruptura, ele não nos permite

compreender em que consiste esse compromisso. Para desvendá-lo, torna-se necessária a realização de

análises complementares, entre elas, a da própria atividade. Discutindo as abordagens do fator humano na

Saúde e Segurança, Neboit descreve quatro enfoques, a saber: da unicausalidade, da multicausalidade, a

sistêmica e da confiabilidade humana. Segundo Neboit, o surgimento da multicausalidade representou

rompimento com a visão reducionista acerca de acidentes, e serviu de base para o surgimento das

compreensões sistêmicas e da confiabilidade humana que alargaram o perímetro da compreensão desses

fenômenos. Segundo ele, a visão sistêmica estaria representada, sobretudo, por contribuições que

romperam com a noção de Ergonomia de Posto de Trabalho introduzindo ideias como as de Confiabilidade

e Ergonomia de Sistema.

Por sua vez, o enfoque da confiabilidade humana centra-se no estudo da evolução tecnológica e

organizacional, explorando aspectos como os da mediação simbólica e da complexidade, e também do

modo como as ciências humanas abordam o acidente. Esses dois últimos enfoques apresentam leitura que

parece associar aspectos das visões de Reason e Hollnagel, acima expostas, sem perder de vista a forma

como o fenômeno acidente é abordado na Ergonomia (sobretudo na França) e por escolas das ciências

humanas. Uma perspectiva que também associa aspectos de diferentes escolas é apresentada por Llory Seu

modelo psico-organizacional de acidentes não perde de vista a importância da compreensão de aspectos

técnicos presentes em acidentes, mas ressalta sua insuficiência para a compreensão desses eventos. O

acidente é apontado como potencialmente revelador de aspectos da história da organização, sobretudo

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daqueles relacionados às suas origens, que estavam incubados ou adormecidos. A dimensão subjetiva é

reconhecida tanto em nível individual, quanto no das relações horizontais e verticais estabelecidas

historicamente nas situações de trabalho. Ou seja, ressalta-se a necessidade de explorar tanto aspectos

conjunturais, ditos sincrônicos, como aqueles construídos ao longo da história de vida das pessoas e da

organização, ditos diacrônicos. No Brasil, o modelo explicativo monocausal centrado na culpa da vítima

vem se mantendo intocável no meio técnico – industrial, em meios acadêmicos mais conservadores e em

organismos oficiais como mostraremos neste estudo, mesmo após inúmeras críticas publicadas nas

décadas de 80 e 90.

Esta manutenção silenciosa não seria uma demonstração de que este modelo é conveniente e

interessante para esconder as verdadeiras causas dos acidentes do trabalho? Recente campanha da

Confederação Nacional da Indústria (CNI) repete em folhetos e cartazes o conteúdo das mensagens dos

cartazes das décadas de 70 e 80. Um deles mostra uma mão embaixo de um martelo de uma prensa

mecânica sem proteção na zona de risco (portanto uma máquina desprotegida, com zona de prensagem

aberta, caracterizando situação de risco grave e iminente – que deveria ser proibida de operar) com

dizeres: “Atenção ao trabalhar com prensas!”.

Figura 1

Detalhe: cartaz mostra a mão do trabalhador

sendo prensada ao ingressar na zona de operação

do equipamento. A máquina desprotegida

permite o acesso da mão na zona de risco, em

desacordo com as normas atuais de proteção

(Norma Regulamentadora nº 12 do Ministério do

Trabalho e Emprego, e Norma Brasileira da

ABNT). O cartaz induz a uma culpabilização

transferindo a responsabilidade para o operador.

A máquina sem proteção pode ser operada desde

que o operador preste atenção, tome cuidado.

Nesse estudo explora-se o conteúdo de análises de acidentes do trabalho graves, conduzidas por

organismo técnico policial. A questão central do estudo refere-se à identificação de concepções de

acidentes adotadas e de implicações associadas às conclusões dessas investigações. Antes disso, apresenta-

se breve relato de estudos que exploraram o mesmo tema com base em análises conduzidas no âmbito de

empresas, publicações, material de divulgação dito de prevenção de acidentes e discurso de vítimas de

acidentes atendidas em instituição pública.

Fonte de informações e método

Em contato formal com o IC de Piracicaba, obtivemos acesso a 104 laudos produzidos para

investigação de causas de acidentes ocorridos entre (data) e (data) na cidade de Piracicaba e em alguns

municípios vizinhos. O material foi fornecido na forma de gravação eletrônica (CD), cujos textos não vieram

acompanhados de informações complementares como fotografias, cópias dos Boletins de Ocorrência e

outros documentos como cópia das CATs etc. Dos laudos fornecidos foram selecionados 71 casos de

acidentes graves e fatais do trabalho para estudo, pois os demais não eram relacionados ao trabalho ou

estavam incompletos, impossibilitando o estudo. Os casos selecionados foram distribuídos segundo a

localidade onde ocorreu a lesão e causas, conforme conclusões emitidas nos laudos. Eles foram

classificados quanto à categoria da atividade econômica do empreendimento em que ocorreu o acidente,

causa externa da lesão segundo a Classificação Internacional de Doenças – 10a versão (CID-10) e segundo

tipologia proposta por Monteau, sendo distribuídos em grupos 1 e 2. Nesta divisão, os acidentes

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pertencentes ao Grupo 1 ocorrem em situações de risco evidente, cujos fatores de risco estão presentes de

modo habitual no processo de trabalho e que podem ser facilmente identificados por meio de simples

inspeção. Já os acidentes do Grupo 2 necessitam de conjunção de fatores que não ocorrem de modo

habitual e de técnicas mais apuradas para investigação de causas, como entrevistas aos operadores,

observação das atividades de trabalho etc. O modelo de laudo, as descrições dos acidentes e as conclusões

relativas a causas do evento foram comparados com as concepções de acidentes apresentadas, de modo a

possibilitar identificação da concepção presente no modelo de investigação adotado na Instituição. Alguns

casos selecionados são apresentados e discutidos.

Resultados

A maioria dos laudos referia-se a acidentes ocorridos na cidade de Piracicaba, que responde por

41,0% dos eventos, seguida das cidades de Araras (17,0%), Limeira (12,7%), Americana (5,6%) e Rio das

Pedras (4,2%). As demais 11 cidades da região totalizaram 14 casos do conjunto. Tal situação pode ser

explicada pelo maior contingente de trabalhadores e maior densidade econômica das cidades pólo

comparadas com as vizinhas.

A distribuição dos casos de acordo com a atividade econômica do empreendimento em que

ocorreu o acidente, mostra que os ramos de atividade que apresentam maior frequência de casos são os da

indústria de produtos alimentícios e de bebidas, com 16,9% dos casos, seguido do setor da construção civil,

com 1 5, 5 %. Em seguida, surge o setor de fabricação de papel e celulose, que responde por 11,2% do

universo estudado. Destaca-se ainda o fato de que o setor da indústria de transformação responde por 41

casos, o que equivale a 58,0% das ocorrências, enquanto que outros grupos de atividade econômica, como

o setor primário (agrícola e extrativo), respondem por 11,2% e o setor de comércio e serviços por 15,5%

dos casos. As causas externas das lesões foram agrupadas segundo a CID-10. Podemos observar que as

máquinas, exceto as agrícolas, respondem por 38,0% das ocorrências em estudo. A queda de altura

responde por 15,5% das ocorrências e os acidentes causados por corrente elétrica respondem por 11,3%

dos casos. Em seguida, surgem os acidentes causados por equipamento agrícola incluindo tratores com

8,5% dos casos.

A Tabela 1 mostra a distribuição das conclusões das análises em termos de “causa apura da”. Dos

71 casos investigados, quarenta, ou seja, 56,3%, foram atribuídos a atos inseguros cometidos pelos

trabalhadores. Por sua vez, 17 casos (24,0%) foram atribuídos a atos inseguros cometidos pelos

trabalhadores e seus mentores. A falta de segurança ou condição insegura de trabalho responde por 11

casos, representando 15,5%. Observa-se que a menção aos atos inseguros seja do trabalhador acidentado

e/ou dos mentores, responde por um total de 80,3% do universo.

A presença de campo denominado “causa apurada” no modelo de laudo adotado nas investigações

não parece ser fruto de acaso. A mesma expressão, no singular, foi adotada durante anos em modelo de

análise de acidente recomendado em norma regulamentadora do Ministério do Trabalho e Emprego e em

norma brasileira referente a investigação de acidentes do trabalho. Sua presença em laudos do IC sugere

que o modelo adotado tenha encontrado inspiração nessas fontes. As conclusões redigidas com uso das

noções de atos e condições inseguras, ou seja, as mesmas adotadas durante anos no campo da Saúde e

Segurança do Trabalho, reforçam essa idéia. Por si só, esses elementos já permitem afirmar que a

concepção de acidente subjacente a essas análises é a mesma anteriormente descrita como “centrada na

pessoa”, gestão do erro, paradigma tradicional ou burocrático da saúde e segurança no trabalho. O uso do

singular na denominação do campo “causa apurada” revela a natureza simplista com que se vê o acidente.

Descrições sucintas, restringindo-se quase que exclusivamente à desestabilização do sistema e às origens

da lesão confirmam essa afirmação.

Discutindo implicações de análises que atribuem o acidente a comportamentos dos operadores,

Lima & Assunção (p. 95), afirmam: “não é a conclusão quanto aos atos inseguros que leva à prevenção

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baseada em mudanças de atitude e de comportamento, mas sim a concepção racionalista de que o

comportamento humano é determinado exclusivamente pela consciência e que, portanto, o acidente

decorre da falta de consciência do risco”. Outro autor que também destaca a inadequação da concepção de

ser humano presente nas práticas tradicionais de segurança é Llory (p.150). Referindo-se a seus colegas

engenheiros, ele afirma: “os engenheiros esquecem o medo, a incerteza, o sofrimento, a incapacidade de

manter a atenção a todos os instantes, os perigos da agressividade, às vezes, da violência, eles

desconhecem as frustrações, o mal-estar, a desmobilização subjetiva”. “Eles concebem o homem com um

ser sem corpo ou sem moral respondendo essencialmente aos imperativos das sanções e ou aos atrativos de

uma recompensa...”.

Classificação Quantidade % % acumulada

Ato inseguro 40 56,3 56,6

Ato inseguro do trabalhador e/ou dos

mentores

17 24,0

80,3

Falta de segurança 11 15,5 95,8

Outros não conclusos 3 4,2 100,0

Total 71 100,0 -

Tabela 1

Essa incapacidade de compreender e incorporar a concepção de homem, contemporânea da

evolução dos conhecimentos, aparece como um dos maiores problemas de análises de acidentes baseadas

na concepção tradicional de Saúde e Segurança. Uma das consequências mais perversas associadas a essas

análises é a adoção de leituras acerca dos comportamentos humanos presentes nos acidentes que

sistematicamente desconsideram o contexto ou situação em que ocorrem. Entre os aspectos não

abordados nessas análises pode-se citar: (a) atividade que estava sendo desenvolvida, aí incluída as noções

de prescrições, objetivos, recursos disponibilizados, os aspectos temporais, sua variabilidade normal e

incidental etc.; (b) influências do contexto externo ao sistema, como urgência de pedidos de fornecedores,

exigências de legislação etc.; (c) variações do estado psíquico dos trabalhadores, inclusive aquelas

referentes a aspectos da gestão da atividade, como a ansiedade decorrente de dificuldades na resolução de

problemas etc.

Estudando a tipologia dos acidentes quanto à sua complexidade e possibilidade de identificação das

causas durante investigação, conforme proposto por Binder & Almeida, utilizamos a descrição encontrada

nos laudos e observamos que dos 71 casos 37 podem ser enquadrados como pertencentes a acidentes do

Grupo 1, representando 52,0% do total, enquanto que 18 casos podem ser enquadra dos como do Grupo 2,

representando 25,5%, e 16 casos não permitem uma classificação precisa por falta de informações

complementares. Esses achados reforçam a necessidade de ações de vigilância e de promoção à saúde dos

trabalhadores nos segmentos produtivos, com atenção aos fatores causais de maior relevância como

máquinas e equipamentos, queda de altura e acidentes com eletricidade. A presença de tais fatores causais

revela que no contexto local e regional os problemas clássicos de segurança do trabalho não estão

equacionados, persistindo processos e condições de elevado risco, com a maioria dos casos (52,0%)

classificados como do Grupo 1 de Monteau, ou seja, acidentes com relativa facilidade para identificação de

suas causas, por meio de inspeções simples, em situações onde é flagrante e visível o desrespeito às regras

mínimas de segurança.

Discussão: atribuindo culpa e abrindo caminho para a impunidade

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Os casos apresentados a seguir podem ser considerados como emblemáticos de investigações que

adotam a concepção tradicional de saúde e segurança.

Acidente: trabalhador é ferido na região do pescoço com a ponta da lâmina de uma roçadeira de mato tipo

costal motorizada. A lâmina rompeu-se ao atingir uma pedra conforme atesta o exame pericial.

“Conclusão: do observado e do relatado, a causa do acidente deu-se em função de uma somatória de atos

inconsequentes, a saber:

• utilização inadequada do equipamento, uma vez que o local não é propício, dada a existência de pedras

de cobertura;

• operar o equipamento sem a proteção devida da ferramenta de corte;

• não utilizar o cinto de apoio recomendado;

• utilizar a ferramenta não recomendada pelo fabricante (faca dupla metálica).

Do exposto conclui-se que o acidente ocorreu em função de atos inseguros caracterizados por negligência e

imprudência, potencializados pela inobservância por parte dos mentores e fiscalizadores no cumprimento

das normas regulamentadoras e no obedecimento das instruções de operação e manuseio ditadas pelo

fabricante. Era o que havia a relatar” (Fonte: Superintendência da Polícia Técnica e Científica).

Esta é a reprodução de conclusão de um dos laudos que foram objeto desta pesquisa, numa

situação característica em que se imputa culpa ao acidentado por decisões que não estão ao seu alcance.

Como é feito habitualmente esse tipo de trabalho na empresa? Que aspectos organizacionais e individuais

modelam ou determinam a forma de fazê-lo? Quem “escolhe” o local em que ele será executado? Por

acaso existe terreno isento de pedras? Quem decide o tipo de ferramenta a ser usada na execução da

tarefa? E por acaso existe lâmina de aço disponível no mercado que seja inquebrável, resistente a impactos

desta natureza? O ambiente de produção, especialmente no Brasil, é um terreno definido, de antemão

imposto por relações hierárquicas rígidas e relações de trabalho essencialmente autoritárias.

Chama a atenção o fato de que em grande número de casos, mesmo reconhecendo a existência de

várias situações de risco evidentes no local de trabalho, a conclusão é enfática em atribuir culpa às vítimas:

“certificou-se que a referida obra não obedecia os critérios mínimos exigidos pelas Normas

Regulamentadoras de Segurança e Medicina do Trabalho... especificamente no tocante a trabalhos em

alturas, sendo observado: – ausência de tapumes frontais para isolamento de transeuntes... – área de

trabalho conturbada e impedida – emprego de poucas e estreitas pranchas de tábuas nos andaimes –

presença de entrelaçamento de tábuas nos andaimes sem critério técnico de sustentação – apoios instáveis

de andaimes, tanto na vertical e horizontal – piso acidentado”. O laudo conclui que o acidente “deu-se em

função dum ato inseguro por parte da vítima, caracterizado por negligência e imprudência, potencializado

pela inexistência de critérios técnicos de segurança presentes na obra, e acima descrito” (Fonte:

Superintendência da Polícia Técnica e Científica).

Em outro caso, dois trabalhadores desmaiam ao acessar área contendo gases de uma galeria de

esgotos, sem que fossem tomadas as medidas mínimas de segurança como ventilação forçada ou

fornecimento de proteção individual, com suprimento de ar externo, falta de monitoramento do ambiente

etc., a conclusão é taxativa alegando que o acidente é causado por:

“ato inseguro caracterizado por imprudência e negligência por parte da vítima e seus mentores, pela

inexistência de política preventiva a acidentes do trabalho, sinalização de alertas e cuidados, normas,

procedimentos e treinamentos alusivos a este tipo de atividade” (Fonte: Superintendência da Polícia

Técnica e Científica).

Considerações finais – os laudos e suas conclusões

Os laudos fornecidos para análise na forma de CD representaram limites para estudo mais

aprofundado, uma vez que não permitiam acesso a outras informações que pudessem elucidar questões

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como o resultado das lesões, acidentes levaram a óbito, existência ou não de vínculo formal de emprego

dos trabalhadores acidentados etc. Mesmo com estas limitações, o estudo revela que as máquinas estão

envolvidas na gênese da maioria dos acidentes graves e fatais na região, seguidos dos acidentes causados

por queda de altura e choques elétricos, o que confirma estudos recentes sobre causa de acidentes graves

e fatais.

Apesar das limitações das informações apresentadas para estudo, o acesso aos dados obtidos pela

Secretaria de Segurança Pública, constitui uma importante fonte de informações, que podem ser úteis para

investigação e vigilância em saúde do trabalhador, especialmente para os acidentes graves e fatais. Em

todos os casos a conclusão apresentada mostra-se circunscrita a acontecimentos situados nas

proximidades da lesão e do acidente propriamente dito. Pior ainda, atribuindo a esses fatos papel

determinante na avaliação do processo causal. Em todos eles verifica-se a repetição de referências a

comportamentos “inadequados”, “não recomendados”, omissões ou similares definidos com base em

padrão fruto de idealização do analista acerca de qual “deveria ser” o comportamento seguro naquela

situação. A adesão da vítima a esse padrão é tomada como obrigatória e inalterável em todas as situações e

contextos, como se a mera suposição de sua existência representasse condição necessária e suficiente para

a adesão dos trabalhadores. Ou seja, independentemente de mudanças no desenvolvimento da atividade e

no estado fisiológico e psicológico dos indivíduos que a realizam.

Esses achados mostram que as análises adotam a perspectiva tradicional apontada em diversos

momentos nesse artigo, que entende os acidentes como fenômenos simples e unicausais, resultando em

conclusões que descarregam nos trabalhadores as responsabilidades pelos acidentes do trabalho. Estas

conclusões serão utilizadas em eventuais processos de responsabilidade civil e penal com favorecimento

dos interesses dos empregadores.

Merece destaque o uso da ideia de ato inseguro para configuração sistemática da culpa da vítima

nos casos de acidentes do trabalho. Construiu-se então um modelo conveniente e útil para a

descaracterização da culpa do empregador ou de seus prepostos, mantendo-se deste modo um clima de

impunidade em relação aos acidentes do trabalho. Cabe destaque o fato de que nossa teoria jurídica no

acidente de trabalho assenta-se na responsabilidade subjetiva, baseada na necessidade de demonstração

de culpa do empregador para dar fundamento aos processos civil e criminal. Segundo os Códigos Civil e

Penal Brasileiros, não cabe reparação civil ou processo penal quando o acidente tiver ocorrido “por culpa

exclusiva da vítima” ou nas hipóteses de caso fortuito ou de força maior.

Do ponto de vista da prevenção, as conclusões emitidas reforçam a ideia e a cultura em vigor de

que as medidas cabíveis para se evitar novas ocorrências devem ser centradas na mudança do

comportamento dos trabalhadores, para que estes prestem mais atenção, tomem cuidado etc.,

permanecendo intocadas as condições, processos de trabalho, atividades e meios produtivos que são assim

naturalizados– assumidos como perigosos. Embora este estudo não tenha explorado as razões da escolha

desse modelo de análise por parte do IC de Piracicaba, seus achados apontam para a necessidade de se

investir na capacitação e reciclagem dos profissionais desse instituto no tocante às concepções e métodos

de investigação de acidentes do trabalho, bem como na aproximação e tentativa de articulação de ações

conjuntas com as Secretarias de Segurança Pública e os órgãos responsáveis pela vigilância em Saúde do

Trabalhador. A pequena revisão apresentada na introdução deste texto sobre concepções de acidentes,

pode ser tomada como sugestão de conteúdos que precisariam ser abordados em proposta de formação de

técnicos responsáveis pela condução desse tipo de investigações.

Outras pesquisas necessitam ser efetuadas para entender a contribuição das investigações de

causas e suas repercussões na apuração de responsabilidades junto aos inquéritos promovidos pela

Secretaria de Segurança Pública, bem como as repercussões destes inquéritos nas políticas de saúde e

segurança adotadas pelas empresas.

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R E S U M O

Neste artigo analisam-se os laudos e dados obtidos das investigações de acidentes graves e fatais

do trabalho efetuadas pelo Instituto de Criminalística (IC), Regional de Piracicaba. Foram analisados 71

laudos de acidentes ocorridos em 1998, 1999 e 2000. Os acidentes envolvendo máquinas representam

38,0%, seguido pelas quedas de altura (15,5%) e em terceiro lugar os causados por corrente elétrica

(11,3%). Os laudos concluem que 80,0% dos acidentes são causados por “atos inseguros” cometidos pelos

trabalhadores, enquanto que a falta de segurança ou “condição insegura” responde por 15,5% dos casos. A

responsabilização das vítimas ocorre mesmo em situações de elevado risco em que não são adotadas as

mínimas condições de segurança, com repercussão favorável ao interesse dos empregadores. Observa-se

que estas conclusões refletem os modelos explicativos tradicionais, reducionistas, em que os acidentes são

fenômenos simples, de causa única, centrada via de regra nos erros e falhas das próprias vítimas. A

despeito das críticas que tem recebido nas duas últimas décadas no meio técnico e acadêmico, esta

concepção mantém-se hegemônica prejudicando o desenvolvimento de políticas preventivas e a melhoria

das condições de trabalho.

Acidentes de Trabalho; Segurança do Trabalho; Condições de Trabalho.

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Doutorado]. Campinas: Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2002.

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quadrinhos. São Paulo: Confederação Nacional da Indústria/Serviço Social da Indústria/Serviço Nacional de

Aprendizagem Industrial; 2000.

17. Serviço Social da Indústria. Cartazes de segurança. Modelos de cartazes sobre segurança no trabalho.

São Paulo: Serviço Social da Indústria; 2000.

18. Confederação Nacional da Indústria. Prevenção é vida. Campanha da Indústria para Prevenção de

Acidentes do Trabalho – 1999. São Paulo: Confederação Nacional da Indústria; 1999.

19. Organização Mundial da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas

Relacionados à Saúde, 10ª Revisão. v. 1. São Paulo: Centro Colaborador da OMS para a Classificação de

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21. Lima FPA, Assunção AA. Para uma nova abordagem da segurança do trabalho. In: Lima FPA, Assunção

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Ergonomia, Universidade Federal de Minas Gerais; 2000. p. 83-115.

22. Binder MCP, Almeida IM. Investigação de acidentes do trabalho. Botucatu: Universidade Estadual

Paulista; 2000.

23. Superintendência da Polícia Técnica e Científica, Instituto de Criminalística. Laudos de acidentes do

trabalho investigados nos anos de 1997-2000 [CD-ROM]. Piracicaba: Superintendência da Polícia Técnica e

Científica, Instituto de Criminalística; 2000.

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trabalho fatais no Estado de São Paulo no ano de 1995. São Paulo: Ministério do Trabalho e Emprego; 1998.

25. Oliveira SG. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 2ª Ed. São Paulo: Editora LTR; 1998.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E IDEOLOGIA (adaptado)

Resumo

O trabalho enfoca três pontos centrais. Inicia com uma discussão sobre o conceito e a teoria das

Representações Sociais e como eles vêm sendo tratados nos últimos anos, trazendo parte da literatura

mais importante publicada ultimamente, além de expor a atualidade e utilidade da teoria no tratamento de

muitos fenômenos sociais. O segundo ponto discute o conceito de ideologia, procurando mostrar suas

diferentes acepções, apresentando um eixo de leitura que se possa compreender as relações e implicações

das mesmas. Finalmente, no terceiro ponto, é mostrado como os conceitos de Representações sociais e

ideologia podem se relacionar: no que se distinguem, e no que eles possivelmente se sobrepõem,

conforme as diferentes acepções em que são tomados.

Palavras-chave: Representações Sociais; Ideologia; teorias psicossociais.

Uma aproximação das representações sociais

São poucos os que se arriscam a conceituar Representações Sociais, apesar de muitos falarem

sobre o assunto. Os diversos trabalhos que estão sendo produzidos com o objetivo de poder descrevê-las, e

até certo ponto defini-las estão contribuindo, cada um a seu modo, para dar-lhe uma caracterização e uma

estruturação especifica. Cada trabalho traz uma pequena contribuição na sua delimitação e possível

aprofundamento conceitual. Um primeiro ponto que deve sempre ser levado em consideração, a distinção

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que deve ser feita entre os diversos níveis no estudo das Representações Sociais. Podemos distinguir,

seguindo o excelente trabalho realizado por DE ROSA (1994 e GUARESCHI, 1996), três níveis de

Representações Sociais, que poder-se-iam chamar três níveis de discussões sobre as Representações

Sociais:

1. O nível das Representações Sociais como sendo elas um "fenômeno". Nesse nível, as RS são um objeto

de investigação. Esses objetos são elementos da realidade social. Nesse sentido as RS são modos de

conhecimento que surgem e legitimam-se na conversação interpessoal cotidiana e tem como objetivo

compreender e controlar a realidade social.

2. O nível da "teoria" das Representações Sociais. Este se constitui do conjunto de definições conceituais e

metodológicas, juntamente com a elaboração de construtos referentes às RS.

3. O nível das discussões sobre a teoria, que DE ROSA chama de "metateoria". Neste nível colocam-se os

debates e as refutações criticas com respeito aos postulados e pressupostos da teoria das Representações

Sociais, juntamente com uma comparação com os modelos teóricos de outras teorias. Confundir esses três

níveis pode tornar-se desastroso e pode conduzir a um diálogo de surdos.

Robert Farr (1996), em sua história das raízes da psicologia social, mostra como essa síntese foi

difícil de construir, e como a psicologia social, principalmente nos Estados Unidos da América, tomou um

viés profundamente individualista, além de passar a ser fundamentalmente experimental. Por outro lado,

houve tentativas de socializar de tal modo o individual, que ele praticamente se reificou, suprimindo as

subjetividades e cristalizando-se em fenômenos como classe, cultura, mito ou religião. Meu entendimento

das Representações Sociais é que essa teoria tenta, e até certo ponto di conta, de superar diversas

dicotomias que se formaram no decorrer da história da Psicologia Social. Uma primeira, e central, é a

própria dicotomia estabelecida entre o individual e o social. Uma representação social, como definida e

entendida por essa teoria, ao mesmo tempo, individual, pois ela necessita ancorar-se em um sujeito, como

é, do mesmo modo, social, pois existe "na mente e na mídia", como diria MOSCOVICI. Ela está na cabeça

das pessoas, mas não é a representação de uma única pessoa; para ser social ela necessita "perpassar" pela

sociedade, existir a certo nível de generalização. Uma representação social distingue-se, pois, de uma

simples representação mental, que pode ser singular (os que afirmam que é impossível pensar sem

palavras, e as palavras constituem a linguagem que é sempre social, certamente não aceitariam tal

afirmação). A Psicologia Cognitiva estuda as representações mentais, mas não pergunta, ou não se

interessa imediatamente pelo fato de elas serem, ou não, sociais, e de constituírem-se num fenômeno

social. O conceito de representação social coloca-se, então, no centro do eixo individual-social, ligando os

dois extremos e tentando dar conta de uma possível dicotomia. Uma segunda dicotomia é a que muitas

vezes se estabelece entre o interno e o externo. Na história da psicologia social vemos como o

comportamentalismo, por exemplo, recusou-se a transpor a "barreira da pele" (FARR, 1996), não aceitando

qualquer coisa que fosse mental ou introspectivo. Por outro lado, certas teorias permaneceram

exclusivamente na análise do cognitivo, deixando de perguntar pelo que transpõe a cognição das pessoas.

Uma representação social fecha também esse vazio, pois ela, ao mesmo tempo, interna, isto, existente nas

mentes das pessoas, sem deixar de ser também externa, prolongando-se para além das dimensões

intrapsiquicas e concretizando-se em fenômenos sociais possíveis de serem identificados e mapeados.

Mas o que seriam, afinal, as RS? Na superação dessas dicotomias, as RS procuram ocupar um

espaço especifico, e podem ser compreendidas como um conhecimento do senso comum, socialmente

construído e socialmente partilhado, que se vê nas mentes das pessoas e na mídia, nos bares e nas

esquinas, nos comentários das rádios e TVs. São um conhecimento, mas diferente do conhecimento

cientifico, que é reificado e fundamentalmente cognitivo. São um conhecimento social, são como que

"tijolaços de saber", na expressão de JOVCHELOVITH, S. Elas podem possuir aparentes contradições na sua

superfície, mas nos seus fundamentos elas formam um núcleo mais estável e permanente, baseado na

cultura e na memória dos grupos e povos. E somente através deu ma pesquisa cuidadosa que se pode

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identificar esses fundamentos mais duradouros. A investigação feita por Hélio Possamai (1998) sobre a

representação social do acidente de trabalho é um excelente exemplo desse fato. Após muitas entrevistas

e grupos focais feitos com pessoas que tinham se acidentado e com pessoas que não se tinham acidentado,

tinha-se a impressão de um amontoado de dados, aparentemente contraditórios.

Mas uma análise mais cuidadosa e detalhada foi revelando que esses dados todos remetiam,

fundamentalmente, a duas dimensões centrais, pautadas na história e na personalidade de base do povo

brasileiro: o individualismo e o fatalismo. O titulo da dissertação expressa muito bem essas duas facetas:

"Minha culpa, meu destino". Mais de oitenta por cento das falas podiam ser colocadas dentro dessas duas

grandes categorias: os acidentes de trabalho ou são culpa de quem trabalha, pois não se cuidam, não

prestam atenção, ou então são consequência do destino, fatal e determinista. Foi impressionante constatar

como as explicações dos entrevistados remetiam a esses dois traços centrais de nossa cultura.

Ligando representações sociais à ideologia

Uma primeira constatação que surge a partir do que se viu até aqui, é que se o conceito de Representações

Sociais possui um sentido mais ou menos uniforme, o mesmo não se da com o conceito de ideologia.

O passo seguinte é, pois, discutir, a partir das diferentes acepções de ideologia, em que

Representações Sociais e Ideologia coincidem, ou divergem. Sendo que Ideologia pode ser vista ao menos

sob quatro acepções diferentes, são ao menos quatro situações diversas com as quais nos defrontamos.

Vejamos.

a) Representações Sociais e Ideologia, tomando Ideologia no sentido positivo e estático, isto é, ideologia

como uma cosmovisão estabelecida. Podemos dizer que há certa proximidade entre essas duas noções.

Uma representação social é uma cosmovisão, é uma construção simbólica socialmente partilhada. Mas

certamente a representação social não é estática e fixa como poder-se-ia depreender dessa concepção de

ideologia. A RS é dinâmica, suportando até mesmo certas contradições em sua superfície, embora

possuindo um mundo subjacente relativamente estável, fundamentado nas tradições, memórias sociais e

cultura. b) Representações Sociais e Ideologia, assumindo ideologia como algo negativo e fixo. Aqui parece-

nos que o conceito de Ideologia e RS afastam-se mais, pois, se podemos dizer o mesmo que anteriormente,

quanto à questão da fixidez, isto é, que uma RS nunca é totalmente fixa e estática, pode-se dizer também

que uma RS não é necessariamente "negativa", isto é, enganadora e mistificadora, apesar de às vezes

poder ser. Uma RS é essa porção de saber do senso comum, que pode estar impregnada de elementos

pejorativos e enganadores, mas isso é por acaso, não pelo fato de se constituir como um conjunto de

saberes socialmente construídos e partilhados.

c) RS e ideologia, entendendo ideologia como um conjunto de práticas positivas, isto é, formas simbólicas

que servem para criar ou manter as relações sociais. Talvez seja aqui que as noções de RS e ideologia se

aproximam. Ambas as concepções podem ser tomadas como construções simbólicas, conjuntos de saberes

populares que servem para criar, reproduzir ou transformar as relações sociais. Aqui não se pergunta se

essas construções simbólicas criam, ou perpetuam, relações assimétricas, desiguais. As RS seriam mais

amplas, pois poderiam incluir também relações assimétricas, ao passo que ideologia, nessa instância,

referir-se-ia apenas a práticas positivas.

d) Finalmente, RS e Ideologia, tomando-se ideologia como o conjunto de formas simbólicas que servem

para criar, ou reproduzir, relações assimétricas, desiguais, de dominação. A diferença entre as acepções

está no fato de as RS não carregarem, necessariamente, uma dimensão negativa ou pejorativa. Apesar de

poderem ter tal conotação e de, talvez, na maioria das vezes, poder-se descobrir, implícita numa

representação social, modos e estratégias de criação ou reprodução de relações assimétricas.

A que conclusão se chega após estas colocações?

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Uma primeira é a de que, com certeza, os conceitos são bastante próximos. Se tomarmos em

consideração o eixo da fixidez versus prática, o que distinguiria uma RS da ideologia seria o fato de que RS

não possuem tal caráter acentuado de fixidez, apesar de em seus subterrâneos podermos encontrar lastros

duradouros e mais permanentes. Se formos analisar o eixo positivo versus negativo, podemos dizer que a

ideologia perpassa as RS, isto é, o conceito de RS é mais amplo e implica dimensões; ambas as isto é, ao

estudarmos uma representação social não nos fixamos imediatamente no caráter de positividade ou

negatividade. Essa é uma questão posterior que, no caso, só interessa a quem estuda a ideologia.

Num dos últimos escritos sobre RS, Serge Moscivici e Ivana Markowd fazem um diálogo sobre

Representações Sociais (MOSOCVICI e MARKOWA, 1998). Nesse trabalho encontramos uma discussão

muito interessante sobre a questão da ideologia, em que constata-se que MOSCOVICI emprega ideologia

exatamente no sentido de THOMPSON, isto é, como uso de formas simbólicas para criar ou reproduzir

relações de dominação. Ele discute a maneira como a imprensa soviética tratou o conceito de "psicanálise".

Mostra então que enquanto a imprensa liberal francesa empregava determinados adjetivos para qualificar

psicanálise, tais como "ciência psicoanalitica", "eficiência da terapêutica psicanalítica", ou "objetividade das

concepções psicanalíticas", a imprensa soviética empregava adjetivos bem diversos, tais como: "o mito da

psicanálise", "ciência burguesa", "psicanálise norte-americana", etc. O mesmo dava-se com a palavra

"ciência": "ciência soviética", "ciência proletária", ciência materialista", etc. era colocada sempre como

superior A. "ciência norte-americana", "ciência burguesa", ciência racionalista". Que significa isso? Pois eis

um belo exemplo de emprego de formas simbólicas (palavras, conceitos etc.) para criar, ou reproduzir,

relações assimétricas. Através da linguagem criam-se diferentes conotações para determinadas realidades

que são colocadas como superiores, ou inferiores, conforme os interesses das pessoas em questão.

Conclusão

Gostaria de concluir tomando partido, até certo ponto, a favor da necessidade de se distinguir

claramente entre as diversas acepções de ideologia e, até certo ponto, mostrando a importância prática de

se empregar ideologia no sentido de uma prática negativa que serve para criar e manter relações

assimétricas. Ideologia trabalha no sentido de produzir, reproduzir e transformar subjetividades. Nosso

entendimento é de que, apesar de todas as criticas que se possa fazer ao conceito de ideologia, como seu

privilegiamento das funções políticas dos sistemas simbólicos, em detrimento de sua estrutura lógica e das

mediações psicológicas, ele ainda desempenha um papel definitivo e indispensável, principalmente para se

compreender as dimensões éticas, valorativas e criticas, na esperança da emancipação dos seres humanos

de condições de vida humilhantes. E nossa percepção que a dimensão valorativa, ética, jamais pode ser

separada das ações, e por isso, de uma maneira ou outra, ela está presente tanto no processo de

construção das RS, como em sua estrutura. É curioso notar que muitos autores que discutem RS, talvez a

maioria deles, acabam mencionando o conceito e tomando-o, praticamente central em diversas de suas

análises. Veja-se o caso de FARR (1990; 1991), por exemplo. O que é o "individualismo como uma

representação coletiva" senão uma ideologia? Ele é certamente uma RS, mas carrega também consigo uma

dimensão ética que, na verdade, é denunciada pelo autor. Não mereceria essa dimensão ideológica uma

parcela no estatuto das RS? Do mesmo modo o trabalho de Helene Joffe (em GUARESCHI e

JOVCHELOVITCH, 1992).

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ACIDENTES E SUA PREVENÇÃO (adaptado).

Ao longo das últimas décadas, cresceu entre nós o número de estudiosos que exploram o tema dos

acidentes do trabalho. Boa parte de seus estudos pode ser encontrada em sítios da internet que, embora

de acesso gratuito, não parecem ter sido descobertos pelos profissionais de segurança que atuam em

empresas, instituições e organismos externos às universidades e instituições de pesquisa. Três aspectos nos

parecem relacionados com o crescimento desse tipo de estudos. O primeiro é o movimento realizado no

âmbito de universidades brasileiras em busca do aprimoramento da qualidade de sua produção científica,

incluindo exigência de titulação de seu corpo docente, com aumento do intercâmbio com instituições de

outros países e a abertura de cursos de pós-graduação que passam a desenvolver colaboração com

empresas, organismos governamentais, e serviços especializados que atuam nos campos da segurança e da

saúde do trabalhador, criando oportunidades para aumento: a) da difusão de novas formas de pensar a

segurança, o risco e a prevenção; b) do diálogo entre pesquisadores e interessados de diferentes áreas

afins ao estudo de acidentes; e c) do desenvolvimento de estudos centrados em múltiplos aspectos dos

acidentes.

O segundo, menos evidente, parece associado com o crescimento da oferta de serviços ditos de

saúde do trabalhador em, praticamente, todos os estados do país. A procura de profissionais desses

serviços por cursos de pós-graduação em áreas afins à saúde do trabalhador parece fenômeno estabelecido

entre nós e diretamente relacionado com o aumento da produção acima referida. Alguns poucos serviços já

realizam movimento visando à sua própria constituição e reconhecimento como centro de pesquisa e

produção de conhecimento. O terceiro aspecto situa-se no mundo do trabalho propriamente dito e nas

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transformações por que tem passado nosso país com reflexos nas áreas de segurança e saúde no trabalho

na esfera governamental e também em centros de pesquisa. Nas últimas décadas, é crescente o número de

sistemas para os quais a ocorrência de acidentes, desastres ambientais, eventos de grande impacto e

incômodo social e político assumiram destaque de preocupação estratégica.

Esse movimento não só incentiva o surgimento de questionamentos no interior desses sistemas

acerca dos limites da abordagem tradicional de acidentes, como também a busca de novos caminhos, seja

na direção de novas roupagens a serem assumidas pelas abordagens que insistem em explicar os acidentes

como eventos decorrentes de comportamentos faltosos de trabalhadores descritos como elos fracos dos

sistemas, seja na busca de maior aproximação com explicações centradas em enfoques sistêmico,

sociotécnico ou psico-organizacional. Esse último caminho tende a aumentar a aproximação entre esses

sistemas e as universidades e centros de pesquisa existentes no país. Enfim, é possível afirmar que o

chamado desafio da gestão de segurança em sociedade dinâmica mostra reflexos também entre nós

(RASMUSSEN, 1997). No entanto, é preciso destacar que esse movimento ainda está longe de derrotar e

substituir o paradigma tradicional que permanece hegemônico no país, inclusive na maior parte do

aparelho formador que oferece cursos de especialização em Engenharia de Segurança, Medicina do

Trabalho, Enfermagem do Trabalho ou de formação de técnicos de segurança do trabalho.

Além disso, é preciso destacar que resistências às novas abordagens também aparecem na forma

de obstáculos ao livre acesso a informações, ao desenvolvimento de diálogo com pesquisadores e à

abertura de portas para pesquisas coordenadas por setores independentes a esses sistemas e, enfim, ao

estabelecimento de mecanismos democráticos de controle social de sistemas cujo funcionamento implica

em riscos à saúde de populações de usuários, mas não só, e também em possíveis impactos adversos ao

meio ambiente.

A necessidade da construção de um novo olhar para estudos de acidentes: desafio para a prevenção

De um lado, o grande número de acidentes do trabalho é grave problema social em nosso país. De

outro, os estudiosos do tema no Brasil e no mundo têm criticado fortemente as conclusões de várias

análises de acidentes conduzidas no âmbito de empresas e de algumas instâncias governamentais e as

concepções teóricas e metodológicas que lhes dão suporte. Sem pretender esgotar a amplitude dessas

críticas, vale lembrar que, entre outros, elas destacam os seguintes aspectos: o número médio de fatores

apontados como envolvidos nas origens de acidentes é muito pequeno. Na maioria das situações, os

fatores identificados como mais importantes nas conclusões dessas “análises” se referem a

comportamentos de trabalhadores, em especial, ações ou omissões situadas pouco antes do desfecho do

acidente. Esses comportamentos costumam ser descritos e discutidos com o uso de categorias como atos e

condições (ambientes) inseguros ou fora de padrão, falhas humanas ou técnicas ou outras abordagens de

formato dicotômico que adotam como pressuposto a ideia de existência de um jeito certo, ou seguro, de

realizar aquela ação que seria previamente conhecido do operador envolvido e que, na situação do

acidente, teria deixado de ser usado como resultado de uma escolha consciente, originada em aspectos do

próprio indivíduo, quiçá, de sua personalidade descuidada, indisciplinada ou equivalente.

De acordo com essas conclusões, esses acidentes também são vistos como fenômenos individuais

ou, no máximo, restritos a um dos componentes do sistema sociotécnico aberto envolvido na atividade que

era desenvolvida. Esse componente é o alvo das recomendações de prevenção. Compreendida como um

sistema, a organização em que se dá esse evento é diagnosticada como sem problemas. O acidente deixa

de ser compreendido como sinal de disfunção sistêmica ou como revelador, seja de situações com

potencial acidentogênico, seja como fonte de aprendizado organizacional e caminhos para

aperfeiçoamento desse sistema (CTL, 1991; LLORY, 1999a, 1999b; REASON, 1997; REASON & HOBBS, 2003;

WOODS & COOK, 2002). Essa forma de conceber o acidente como fenômeno simples foi chamada de

abordagem ou paradigma tradicional por diversos autores (CATTINO, 2002; LLORY, 1999b; DWYER, 2000).

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Infelizmente, enquanto o usuário desse modelo de investigação vê a conclusão centrada em aspectos do

componente ou fator humano como mero produto de um trabalho técnico, no mundo real, esses

resultados acabam alimentando práticas de atribuição de culpa típicas da abordagem tradicional de

acidentes (VILELA et al., 2004), como temos visto nas declarações de algumas autoridades da área e

deputados da CPI criada para investigar a crise do setor aéreo no país. Apesar da relativa difusão alcançada

pela crítica a esse olhar tradicional, os interessados na utilização de novas ferramentas disponibilizadas

para a análise de acidentes, seja no campo do ensino, seja no terreno das práticas desenvolvidas em

instituições governamentais e empresas, ainda encontram dificuldades no acesso a publicações construídas

com base nesse novo olhar sobre falhas, erros e segurança.

Novas concepções para a compreensão dos acidentes

Na literatura internacional, acidentes como o do voo 1907, mas não só, suscitam estudos que

exploram diferentes aspectos. De forma didática, recorrendo a Llory (1999b) é possível recomendar a

divisão do acidente em três períodos e distribuir os estudos segundo o tipo de aspectos que exploram

como relacionados aos períodos: a) pós-acidental; b) acidental ou do acidente propriamente dito; e c) pré-

acidental. O período pós-acidente já foi denominado como período de crise social em casos de dimensões

catastróficas, em que a situação é vista como ameaça à forma e à estrutura do sistema. Se existem, as

estruturas sociais são incapazes de resolver os problemas econômicos, sociais, culturais e políticos

evidenciados no pós-acidente e ameaçam a integridade do sistema (SHRIVASTAVA, 1987). Entre estudos

relativos a esse período, podemos citar aqueles que exploram consequências psíquicas e sociais de

acidentes, seja para as próprias vítimas, seja para seus familiares; ou os que exploram a resposta de

emergência tanto no que se refere à interrupção do processo acidental em si, como na minimização de

seus impactos ambientais, danos materiais e custo humano. Há ainda estudos que exploram custos

financeiros, descrição de recursos mobilizados na assistência de saúde, efeitos tardios, de instalação

crônica ou que atingem descendentes das populações atingidas no acidente, como nos casos de

contaminação química ou radioativa etc.

Os estudos relacionados a aspectos dos períodos chamados de acidente propriamente dito e pré-

acidental são aqui abordados rapidamente e de modo conjunto. Entre eles estão incluídos aqueles que

detalham aspectos técnicos do processo de descontrole ou liberação de fluxo de energia envolvido no

acidente. Atualmente, há maior divulgação de abordagens sustentadas na noção de modelo de acidente

que usam princípios como os de análise de barreiras e análise de mudanças na descrição desses eventos e

recomendam a continuidade dessa análise no período pré-acidental, evitando interrupções precoces da

busca de aspectos que participam do acidente (ALMEIDA, 2006; HOLLNAGEL, 2004; KLETZ, 2006).

Outros estudos apontam para a contribuição de propriedades de sistemas, como a complexidade

interativa e a convivência com situações de incerteza nas origens de acidentes (PERROW, 1999). Também

há autores que lidam com a relação entre projeto

(design) de subsistemas técnicos e a segurança ou, ainda, aqueles que exploram comportamentos humanos

nessas situações, procurando descrever aspectos dos modos de gestão psíquica/cognitiva e mobilizações

afetivas presentes na atividade e rompidos pelo acidente (AMALBERTI, 1996). Nos primórdios da

introdução desse tipo de estudo, estão as abordagens que exploram isoladamente os componentes

humano, técnico e operacional dos sistemas sociotécnicos em questão. Em seguida, sob a influência de

ergonomistas e psicólogos cognitivistas, surgem críticas à ideia de que a confiabilidade humana seja uma

propriedade invariável do ser humano. Ela passa a ser estudada como “propriedade do funcionamento

humano dentro de determinadas condições, para um determinado tipo de tarefa” (LEPLAT, 2006, p. 27).

Daí a preferência pela expressão componente humano da confiabilidade. Esses pesquisadores enfatizam a

necessidade de conhecer o trabalho real com ênfase em aspectos de sua variabilidade e nas estratégias

usadas no cotidiano pelos operadores para resolver problemas, superar dificuldades e manter o

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funcionamento do sistema. De modo assemelhado, para Rasmussen (1997), a análise do trabalho real

mostra a variedade das situações vividas pelos operadores e não previstas nas normas de segurança

vigentes, assim como as tentativas de desenvolvimento de modos operatórios que reduzam os custos

humanos e aumentem a eficiência do trabalho. As ações desenvolvidas para gerir a variabilidade do

trabalho são descritas por Rasmussen como adaptações locais. Elas podem resolver ou não o problema

enfrentado. Muitas vezes, nessas situações, os operadores precisam fazer escolhas entre, de um lado,

ações que visam retomar a produção, porém contrariam normas de segurança, e, de outro, ações que

privilegiam a segurança e implicam em atraso na retomada dos trabalhos.

Essas adaptações locais implicam em tomadas de decisão e adoção de práticas que tanto podem

criar riscos como segurança. Por isso, risco e segurança podem se constituir como propriedades

emergentes de sistemas. Segundo Neboit (2003), nessas situações, o trabalhador lida com uma abordagem

de risco e perigo diferente daquela tradicional centrada na ideia de liberação de fluxo de energia a ser

controlado. Nessa segunda abordagem, o operador é ator de interações numa situação que, na gestão de

riscos, privilegia o papel do seu conhecimento sobre o trabalho real e sua utilização na compreensão da

atividade que desempenha no sistema. Relatando discussão sobre vazamento de substância inflamável

desencadeado por tentativa de correção autorizada por supervisor, Kletz (2006) destaca: [o...] supervisor

não atuava no vácuo. Seu julgamento foi influenciado por sua avaliação sobre as reações de seus chefes e

pela atitude em relação à segurança na companhia, como demonstrado pelas ações realizadas ou

observações feitas em outras situações. Declarações sobre políticas oficiais têm pouca influência. Nós

julgamos as pessoas pelo que elas fazem, não pelo que elas dizem. O gerente da fábrica tem grande carga

de responsabilidade no estabelecimento de um clima [...] em que seu staff sente que correr risco é

legítimo. (p. 73)

Outros estudos enfatizam as relações sociais estabelecidas nas instituições, por exemplo, sistemas

de recompensas e práticas de controles como origens socialmente construídas de erros que levam a

acidentes (DWYER, 2007). Sob essa ótica, os acidentes são “construtos sociais” (WOODING & LEVEINSTEIN,

1999; MACHADO et al., 2000). No conjunto de estudos citados, os comportamentos humanos no trabalho

passam a ser vistos de modo absolutamente distinto daquele que predomina na abordagem tradicional.

Por sua vez, o enfoque clássico ressurge em estudos que reiteram a importância de erros humanos como

principais “causas” dos acidentes e defendem a adoção de estratégias de segurança comportamental como

caminho a ser seguido pelos interessados na gestão de segurança. A busca desse objetivo seria baseada em

recenseamentos de “atos inseguros” que ensejariam intervenções de devoluções individuais ou coletivas

direcionadas à redução de comportamentos indesejados. Entre os adeptos deste enfoque também se

defende a criação de uma cultura de segurança, entendida como equivalente da soma de comportamentos

(seguros) dos integrantes do sistema como estratégia central para a gestão de segurança. Esse é, talvez, o

mais controverso dos múltiplos sentidos atribuídos à expressão cultura de segurança. No âmbito deste

texto, fica registrada a crítica ao reducionismo dessa visão e à necessidade de explicitação do seu sentido

quando a expressão é utilizada.

A construção de uma cultura de segurança também é defendida por Reason (2000). Ele destaca três

aspectos que caracterizariam sua existência: a) uma cultura de informação, ou seja, a existência de

atmosfera de confiança que permita a implementação de sistema de informações de eventos adversos e

memória do sistema; b) uma cultura de justiça, ou seja, ambiente de acordo e compreensão sobre atos

passíveis e não passíveis de culpa; e por fim c) uma cultura de aprendizagem caracterizada pela existência

de medidas reativas e pró-ativas usadas para criar melhorias contínuas do sistema. Mais recentemente, há

esboço de diálogo entre essa forma de pensar a cultura de segurança e abordagens originadas das

correntes das organizações de alta confiabilidade, da ergonomia da atividade e da psicologia cognitiva

(REASON, 2000; BOURRIER, 2001). Esses tipos de estudos apontam a importância da alta hierarquia nos

esforços de modificação de aspectos das diversas subculturas de segurança existentes no sistema e

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minimizam a importância das conclusões de análises que atribuem o acidente a falhas de trabalhadores.

Em março de 2007, nos Estados Unidos, o Chemical Safety Board (CSB) publicou sua conclusão sobre a

análise de acidente que destruiu a planta da Formosa Plastics: “A companhia e seu proprietário anterior

não planejaram adequadamente como lidar com os erros humanos” (CSB, 2007).

A invisibilidade dos acidentes do cotidiano

No Brasil, todos os anos, de forma silenciosa, milhares de trabalhadores morrem ou sofrem

mutilações no trabalho. O impacto desses agravos que ocorrem “no varejo” é muito maior que o desses

grandes acidentes, mas apesar disso permanece quase invisível para a sociedade brasileira.

As nossas possibilidades de aprendizado com base em análises de acidentes são ameaçadas todas

as vezes que se alimenta conclusão que assume o formato de revelação da “causa” – assim mesmo, no

singular – do acidente. Ou seja, aquelas que tendem a reduzir o acontecido a uma falha de componente do

sistema ou, no máximo, a algumas falhas de componentes tratados como segmentos isolados ou seu mero

ajuntamento. E, consequentemente, perde-se a oportunidade de analisar esse evento como sinal de

fragilidade do subsistema de gestão de saúde e segurança do trabalho – ou, por exemplo, do sistema de

segurança aérea nos acidentes recentes – em nosso país. O leitor desavisado tende a prender-se na

explicação simplista, em especial quando anunciada com pose doutoral ou ênfase típica de dono da

verdade. O subsistema de gestão de saúde e segurança no trabalho (SGSST), assim como o sistema de

segurança aérea do país, precisa ser entendido como o organismo sociotécnico cujo funcionamento

articulado depende e é produzido por todos os seus componentes, em particular pelas interações que

estabelecem, pelas funções que só desempenham quando atuam como integrantes desse sistema.

Aparentemente, intervenções, como a da CPI do apagão aéreo, representam mais um passo infeliz.

Ao insistir na ideia de identificar culpado a receber punição exemplar, como no caso do controlador do

Cindacta 1, elas “jogam água no moinho” da explicação simplista. As abordagens sobre de acidentes

destacam a importância da identificação dos fatores sociotécnicos que desencadeiam tais eventos e, ao

mesmo tempo, a necessidade de identificar as condições preexistentes no sistema sem as quais não

aconteceriam. Entre nós, historicamente, essa última etapa tem sido sistematicamente obstruída e

inviabilizada. Continuará tudo como dantes no reino de Abrantes? Eventos complexos não têm respostas

simples. Não há um remédio ou solução mágica para a situação da segurança no trabalho no país hoje. É

hora de iniciar a caminhada necessária no rumo da construção do sistema que rompa de vez com o

paradigma tradicional, com seus prejuízos em termos de inibição da prevenção, e estabeleça as bases

necessárias à construção de novos olhares sobre os acidentes.

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ELEMENTOS PARA UMA NOVA CULTURA EM SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO (adaptado)

Resumo

Este artigo propõe-se a discutir o cenário contemporâneo das relações entre saúde e trabalho,

apontando alguns elementos que possam contribuir para o debate sobre o tema, na perspectiva de

alcançar uma nova cultura em segurança e saúde no trabalho. Evidencia-se que a predominância do viés

prevencionista nesta área, que se consolidou ao longo dos anos, é resultado de um modelo hegemônico

centrado no biológico e no indivíduo. A construção de práticas voltadas para a atenção à saúde do

trabalhador exige uma abordagem interdisciplinar e passa pela apreensão de novos referenciais em saúde

e trabalho, compreendendo-os como um processo dinâmico e social.

Palavras-chaves: acidente de trabalho, segurança no trabalho, saúde do trabalhador.

Introdução

O conhecimento produzido nas últimas duas décadas sobre a prevenção de acidentes de trabalho

vem desafiando os profissionais da área de saúde e segurança do trabalho a repensar os modelos de gestão

e de intervenção centrada na lógica da prevenção individual. Exige fundamentalmente a compreensão das

transformações em curso, à luz das mudanças do mundo do trabalho, para que a prevenção seja pensada

na perspectiva das modificações das condições e relações de trabalho.

Constata-se na atualidade não apenas o surgimento e o crescimento de novas patologias

relacionadas ao trabalho, como também a persistência de acidentes típicos, os quais têm seus limites na

organização do trabalho. A saúde e o trabalho estão permeados pelas grandes transformações societárias e

suas contradições contemporâneas, relacionadas fundamentalmente aos processos de gestão e

organização do trabalho, viabilizados em especial pelas novas tecnologias, impactando na saúde dos

trabalhadores. Sistemas produtivos antigos e ultrapassados coexistem com os processos modernos e

tecnologicamente superiores. É neste contexto que os agravos relacionados ao trabalho revestem-se de

novos significados e determinações ao mesmo tempo em que indicam a necessidade de superar problemas

antigos. Este artigo tem como objetivo refletir sobre o acidente de trabalho e as doenças a ele relacionadas

em meio ao contexto atual, bem como contribuir para a compreensão desta temática, considerando a

abrangência das ações de saúde e a concepção ampla do processo de saúde-doença e de seus

determinantes. Entende-se a prevenção não como uma ação unívoca, mas como resultado de uma política

de gestão em saúde do trabalhador. Este enfoque é mais amplo e abrangente, uma vez que busca

identificar e enfrentar os macrodeterminantes do processo saúde-doença na perspectiva de transformá-los

na direção da saúde (BUSS, 2000).

A perspectiva aqui referida deve ser pensada com base na premissa de que a saúde do trabalhador

sofre forte impacto do capitalismo contemporâneo, em que a produtividade, a competitividade e a

flexibilidade se sobrepõem aos aspectos humanos e sociais. Portanto, é preciso extrapolar os “muros” da

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empresa e construir estratégias que articulem a participação e o envolvimento de diferentes instâncias

tripartites, compostas por trabalhadores, empresários e governo, para gerar um desenvolvimento não

apenas sustentável, mas socialmente capaz de enfrentar as consequências do atual modelo econômico.

Aponta-se também como estratégia a articulação das ações no âmbito do trabalho industrial com a Política

Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador e com as diretrizes nela contidas, visando à integralidade

das ações na área. A relevância da discussão sobre o acidente de trabalho e o processo saúde doença e,

consequentemente, suas repercussões sobre a vida do trabalhador vêm se ampliando, bem como o

impacto social que estes agravos produzem. Apesar de avanços científicos e tecnológicos em diferentes

esferas da sociedade, que trazem resultados benéficos para a saúde da população e dos trabalhadores em

geral, ocorre, contraditoriamente, uma expressiva elevação da morbi-mortalidade nesta área. Revela-se,

portanto, que é preciso avançar na construção de uma nova cultura em saúde do trabalhador. Essa cultura

representa o estabelecimento de pactos, princípios e valores que devem nortear práticas e condutas que

atendam novas e antigas demandas da área.

Concepções e cenário do acidente de trabalho e do processo de saúde-doença

As determinações que incidem sobre a saúde do trabalhador na contemporaneidade estão

fundamentalmente relacionadas às novas modalidades de trabalho e aos processos mais dinâmicos de

produção implementados pelas inovações tecnológicas e pelas atuais formas de organização do trabalho.

As profundas transformações que vêm alterando a economia, a política e a cultura na sociedade por meio

da reestruturação produtiva e do incremento da globalização, entre outros motivos, implicam também

mudanças nas formas de gestão do trabalho que engendram a precariedade e a fragilidade das questões

que envolvem a relação entre saúde e trabalho e as condições de vida dos trabalhadores.

Do ponto de vista científico, a saúde e a doença referem-se a fenômenos vitais, sendo formas pelas

quais a vida se manifesta. As experiências dos sujeitos e as ideias dominantes do meio social são

determinantes no processo de construção social da doença e da saúde. Desse modo, em um contexto de

valorização da capacidade produtiva das pessoas, estar doente pode significar, para o trabalhador, ser

indesejável ou socialmente desvalorizado. Assim, para se abordar a questão do acidente e da doença

relacionada com o trabalho, é imprescindível identificar as relações que se estabelecem no âmbito da

saúde do trabalhador, compreendendo-a como embasada na seguinte premissa: Os trabalhadores

apresentam um viver, adoecer e morrer compartilhado com o conjunto da população, em um dado tempo,

lugar e inserção social, mas que é também específico, resultante de sua inserção em um processo de

trabalho particular. (DIAS, 1996, p. 28).

Nesse sentido, a saúde do trabalhador pressupõe uma interface entre diferentes alternativas de

intervenção que contemplem as diversas formas de determinação do processo de saúde-doença dos

trabalhadores. As alterações introduzidas na Carta Constitucional brasileira de 05/10/1988 no seu artigo

196 não deixam dúvidas quanto ao fato de que, desde então, a saúde passou a ser entendida como direito

de cidadania, devendo ser garantida pelo Estado a partir de suas políticas sociais e econômicas, bem como

por meio de outras medidas que possibilitem reduzir os riscos e os agravos e, ainda, que assegurem o

acesso aos serviços através do Sistema Único de Saúde – SUS (DIAS, 1996). Assim, é necessário pensar a

saúde do trabalhador desde a sua organização na sociedade e no trabalho, compreendendo-se essa

realidade sob uma perspectiva de sujeitos coletivos, conhecendo-os e reconhecendo- os historicamente.

Em uma análise transversal dessas mudanças, nos últimos 30 anos, transparece, claramente, o

direcionamento para uma nova hierarquização do setor, na qual o homem passa a assumir a instância de

sujeito das ações, transcendendo a sua condição anterior de objeto no processo de atenção à sua saúde.

No Brasil, os marcos fundamentais referentes a tais mudanças foram a realização da VIII e da IX

Conferências Nacionais de Saúde (1986 e 1992, respectivamente) e a inserção do conceito de saúde na

Constituição Federal, eventos esses que evidenciaram uma nova relação do homem com seu meio social. A

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saúde passou a ser percebida não mais apenas por sua ausência, mas como “*...+ resultante das condições

de alimentação, educação, salário, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer e liberdade, acesso

à propriedade privada da terra e acesso aos serviços de Saúde” (BRASIL, 1988). Os conceitos que definiam a

Medicina do Trabalho e a Saúde Ocupacional, utilizados até então, não contemplavam essa complexidade e

também as necessidades da área naquele momento; daí a importância de se apreender esse processo em

sua totalidade, buscando-se somar esforços e conhecimentos para se intervir nessa realidade.

A concepção atual de saúde do trabalhador entende o social como determinante das condições de

saúde e, sem negar que os doentes devam ser tratados e que seja necessário prevenir novas doenças,

privilegia ações de promoção da saúde. Entende que as múltiplas causas dos acidentes e das doenças do

trabalho têm uma hierarquia entre si, não sendo neutras e iguais, havendo algumas causas que

determinam outras (MENDES & OLIVEIRA, 1995). Diferentemente das visões dicotomizadas anteriores,

propugna-se que os programas de saúde incluam a proteção, a recuperação e a promoção da saúde do

trabalhador de forma integrada e que sejam dirigidos não só aos trabalhadores que sofrem, adoecem ou se

acidentam, mas também ao conjunto dos trabalhadores (DIAS, 1996). Essas ações devem ser

redirecionadas para se alcançar as múltiplas mudanças que ocorrem nos processos de trabalho, sendo

realizadas através de uma abordagem transdisciplinar e intersetorial e, ainda, com a imprescindível

participação dos trabalhadores.

A dinâmica da produção, as condições de trabalho e o modo de vida continuam sendo fontes

importantes para que se compreenda o processo de saúde, adoecimento e morte da população brasileira.

Portanto, falar do processo de saúde-doença é buscar compreender esse binômio que evidencia

sentimentos, não menos contraditórios, de dor e felicidade por se estar diante das questões da vida e da

morte, da doença e da saúde das pessoas. Evidencia-se, assim, que a doença, a saúde e a morte não se

reduzem a evidências “orgânicas”, “naturais”, “objetivas”; elas estão intimamente inter-relacionadas com

características de cada sociedade. Expõem pontos reveladores, como o fato de a doença ser socialmente

construída e de o doente ser um personagem social. Transparece, pois, que a compreensão do processo de

acidente e adoecimento transcende a aceitação de sua multicausalidade, identificando-se seu fator

determinante no social. Santos (1985), buscando ampliar a percepção do processo de trabalho para além

do ambiente fabril, considera a compreensão da doença como [...] uma dinâmica que abrange não só a

produção, consumo e reposição do trabalhador diretamente envolvido no processo de trabalho, mas

também, de forma ampla, a produção da população que compõe a classe trabalhadora, que expressa, no

seu corpo, a face social do ser. (p. 15) Dessa forma, fica evidente que o binômio saúde-doença pressupõe a

articulação entre as diferentes interfaces sociais e que ele depende do modo de viver, da qualidade de vida

e do acesso que os indivíduos têm a bens e serviços (DIAS, 1996). Ao refletirmos sobre saúde, acidente,

doença e trabalho na vida dos indivíduos e da coletividade, fica cada vez mais difícil falarmos de um mundo

do trabalho que pertença, unicamente, à esfera da fábrica e de um outro mundo externo ao trabalho,

pertencente à esfera da rua. Verificamos a existência de uma complexa interação entre aspectos físicos,

psicológicos e sociais relevantes para a compreensão daquilo que seja a história humana. Eles não deixam

dúvidas quanto ao fato de que a saúde e o adoecimento, o viver e o morrer dos indivíduos estão

diretamente relacionados a questões que ultrapassam análises de sua causalidade e multicausalidade.

Nessa perspectiva, a matriz da estrutura de prevenção e proteção da saúde no trabalho passa a se

constituir mais como uma forma de controle da força de trabalho do que como atenção à saúde: há todo

um sistema estruturado para se darem rápidas e competentes respostas às necessidades do sistema

econômico a qualquer custo, tendo como base a equação denunciada por Thébàud-Mony (1997):

crescimento econômico = progresso social, sustentáculo das regulações sociais adotadas. Dessa maneira, a

saúde dos trabalhadores é resultante de uma articulação política, econômica e monetária, na qual as

desigualdades sociais diante das doenças e da morte são os principais elementos reveladores dessa

dinâmica, estruturada pelas relações sociais de produção. Concebe-se, portanto, que o conceito do que é o

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acidente e a doença advinda do trabalho é um dos frutos dessa construção social. Nessa dinâmica,

encontra-se o conceito de “risco aceitável”, baseado na inter- relação entre o diagnóstico pericial e a

determinação das normas que enquadram os riscos nos limites do medicamente aceitável.

Seus artifícios são a desqualificação (o desnivelamento da qualificação) dos trabalhadores ditos de

“fora do quadro, exteriores, ajudantes” e a redução do tempo de trabalho, com rebaixamentos salariais

legalmente permitidos quando se trata de trabalho em tempo parcial. Por outro lado, o próprio conceito

legal de acidente de trabalho, em que se equipara doença profissional e doença do trabalho, constante da

Lei n. 8213 (BRASIL, 1997), que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, tem se

demonstrado contraditório na sua aplicabilidade. Além disso, devido ao quadro de violência urbana,

notadamente a relacionada ao trânsito e aos assaltos, assumem particular valor os eventos ocorridos no

percurso da residência para o trabalho e vice-versa. Nos termos das Ciências Sociais, considera- se acidente

de trabalho todo acidente que ocorra no transcurso da atividade do homem na transformação da natureza,

no processo de criação de mercadorias com fins econômicos, remunerado ou não (ALBORNOZ, 1994),

excluindo-se, portanto, apenas as atividades com caráter de hobby ou lazer, por exemplo.

A legislação brasileira encontra-se embasada nessa dicotomia entre fatores humanos e ambiente

de trabalho. Os riscos, os atos inseguros, o risco aceitável, os limites suportáveis pelo trabalhador, em

geral, são caracterizados dentro das empresas e estão tensionados pela necessidade de se reduzir o

número de acidentes a qualquer custo. A legislação em vigor relativa ao acidente de trabalho encontra-se

sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988.

Consta, em seu artigo 7º, que estão contemplados os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de

outros benefícios que visem à melhoria de sua condição social. Nesse artigo se destacam os seguintes

incisos: [...]

XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança;XXVIII -

seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que está

obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;

XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito anos e de qualquer

trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz;

XXXIV - igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador

avulso; [...] Assim, a redução dos riscos inerentes ao trabalho e o seguro contra acidentes de trabalho são

direitos de todos os trabalhadores. Sem exclusão do direito à indenização a que fazem jus quando ocorre

dolo ou culpa, todos os trabalhadores teriam direito constitucional à cobertura por um seguro contra

acidentes de trabalho, independentemente da sua forma de inserção no mercado de trabalho.

O reconhecimento legal e, consequentemente, o direito a ele relacionado ocorrem a partir da

notificação oficial do acidente de trabalho e cabe à Previdência Social a caracterização do acidente de

trabalho de forma administrativa e o estabelecimento do nexo entre o trabalho exercido e o acidente.

Tecnicamente, isso é feito através da perícia médica, que determina o nexo de causa e efeito entre o

acidente e a lesão, a doença e o trabalho ou entre a causa mortis e o acidente. Entretanto, há um

crescimento significativo do número de trabalhadores afastados do trabalho por incapacidade, sendo que,

contraditoriamente, o benefício por acidente de trabalho representa menos de 20% desta parcela (BRASIL,

2005).

Os dados oficiais disponíveis no Brasil não revelam a realidade do acidente e da doença o trabalho,

primeiro pelo fato de que o conceito de acidente de trabalho, para fins de enquadramento no Seguro de

Acidente do Trabalho e, secundariamente, para fins de inclusão nas estatísticas oficiais, abrange,

exclusivamente, alguns trabalhadores urbanos (o empregado – exceto o doméstico –, o trabalhador avulso,

o segurado especial e o médico residente) e os trabalhadores rurais empregados ou membros de unidade

de economia familiar. Excluem-se completamente, portanto, no âmbito do mercado formal, todos os

trabalhadores domésticos, os autônomos e todos os servidores públicos civis e militares (municipais,

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estaduais e federais), além de todos os acidentes de trabalho que ocorram com trabalhadores não

registrados e os do mercado informal de trabalho. Neste sentido, os números divulgados pela Organização

Internacional do Trabalho (OIT) são alarmantes e representam apenas uma parcela desta realidade. A

estimativa da entidade é de que, no mundo todo, os acidentes e as doenças do trabalho matem, por ano,

cerca de 2 milhões de trabalhadores. As doenças relacionadas ao trabalho respondem por 1,6 milhão de

mortes; os acidentes de trabalho, por 360 mil mortes. O número de mortes causadas por acidentes e

doenças relacionadas ao trabalho ultrapassa aquele causado por epidemias como a AIDS. No Brasil,

segundo o Ministério da Previdência Social, em 2005, foram registrados 492 mil casos de acidentes e

doenças relacionadas ao trabalho, com 2.708 mortes de trabalhadores (BRASIL, 2005).

Esses dados, no entanto, são parciais e as justificativas, já referidas anteriormente, reafirmam as

dificuldades com as quais nos deparamos ao tratar dos acidentes de trabalho no Brasil. Como pode ser

demonstrado, em termos da legislação previdenciária, no que tange ao seguro contra acidente do trabalho,

ainda é grande a parcela de trabalhadores do setor formal que são excluídos de sua cobertura face à

ausência de efetiva caracterização do adoecimento relacionado ao trabalho, seja pelo empregador, seja

pela previdência social. Por conseguinte, muitas infortunísticas referentes ao trabalho não são levadas ao

Ministério do Trabalho e, daí, aos órgãos internacionais. Relacionando- se, ainda, o perfil do tipo de

trabalhador do mercado formal que tem acesso ao seguro acidentário com o tamanho de nosso mercado

informal de trabalho, tem se a exata ideia do quanto trabalhadores estão fora das estatísticas oficiais e sem

proteção social. Em relação a essa discussão, ganha relevância o papel das pesquisas sobre acidente,

doença e morte no trabalho.

Através da pesquisa é possível desvendar a dinâmica que envolve o adoecimento e o acidente de

trabalho identificando os elementos consensuais e as divergências, a relação entre os processos de

trabalho, as determinações sociais e a manifestação de doenças do trabalho e profissionais, a exposição

ocupacional a agentes nocivos para a saúde do trabalhador e seus agravos latentes e residuais. E, por

último, não poderíamos deixar de apontar o que Dwyer (1991) refere como intrínseca correspondência

entre a história da saúde no trabalho e as histórias que se inscrevem na evolução do conhecimento de

processos sociais de gestão dos riscos no trabalho. A construção da paz social entre patronato e movimento

sindical dá-se em torno de questões referentes à saúde e à segurança através da prevenção alcançada pela

formação profissional. Porém, a ruptura desta paz social ocorre por ocasião de grandes catástrofes

sanitárias, indicando a chegada de um momento de acidentes de grandes proporções, com impactos

coletivos na saúde e no meio ambiente. Tal situação revela o choque social dos acidentes quando, pela sua

gravidade, provocam importantes perturbações nos planos emocional, psíquico e psicossocial daqueles

diretamente envolvidos, como especialistas, técnicos, mas principalmente a população em geral, através da

proximidade que a mídia pode oferecer do evento. Para Llory (1999), esses episódios são o retorno à

dimensão oculta ou ocultada da construção social dos agravos relacionados ao trabalho, a desforra da

realidade global sobre a visão reducionista da ciência especializada.

Se reconhecermos que a saúde e a doença se definem como um processo dinâmico, expresso no

corpo, no trabalho, nas condições de vida, nas dores, no prazer e no sofrimento, enfim, em tudo que

compõe uma história singular, mas também coletiva, pela influência das múltiplas lógicas inscritas nesse

processo, estaremos caminhando para uma concepção ampliada de saúde do trabalhador (MENDES, 2003).

O cenário, portanto, compõe-se de diferentes interfaces, fruto de construções sociais, históricas e

contemporâneas, entrelaçando concepções e aspectos legais, estruturais e conjunturais. Esse sistema está

fundado na prevenção e na reparação de danos à saúde, focalizado no indivíduo e, secundariamente, na

organização do trabalho. Ao se constatar que as relações de produção vêm apresentando outras

configurações e impondo demandas diferenciadas, redobram- se as exigências e os cuidados na área da

saúde do trabalhador, elevando-se a um novo patamar as ações e estratégias dos profissionais nela

inseridos.

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Da prevenção do acidente de trabalho à saúde do trabalhador

O contexto atual não só altera as múltiplas determinações da saúde do trabalhador, como exige um

redimensionamento dos conhecimentos e das ações nesta área que contemple as diferentes manifestações

que emergem da relação do trabalho versus saúde-doença. A visão prevencionista que centra nos

trabalhadores os cuidados com os riscos a que estão expostos revela-se deficitária e acaba ocultando as

manifestações decorrentes da inserção produtiva e social destes trabalhadores. Nesse sentido, não

promove a saúde nem o enfrentamento dos diferentes condicionantes. Prevalece uma ação normatizadora

da legislação vigente em detrimento das reais possibilidades de formular proposições conjuntas que

atendam as necessidades oriundas da vida no trabalho, pois a concepção de saúde do trabalhador e seus

aspectos relacionados à prevenção e à proteção ocupacional devem reconhecer o processo de doença-

trabalho dentro e fora do âmbito produtivo e, fundamentalmente, como as diferentes expressões de

agravo à saúde se manifestam em diferentes épocas e espaços profissionais.

Destaca-se que uma questão sempre atual diz respeito à concepção adotada quanto às causas dos

acidentes de trabalho. A mais frequente indica que os acidentes de trabalho são resultantes dos chamados

atos inseguros praticados pelo próprio trabalhador. Contudo, sabemos que mesmo aqueles acidentes que

ocorrem pelo descuido do trabalhador muitas vezes são condicionados por diferentes determinantes, tais

como o cansaço provocado pelas horas extras, estafa crônica, horas não dormidas, alimentação e

transporte deficientes, precárias condições ambientais, manuseio de máquinas e equipamentos que

requeiram atenção redobrada, intensificação do ritmo de trabalho, exigências de um trabalhador

polivalente e más condições de vida e de trabalho, entre outras causas. A lógica apresentada tende a

imputar a culpa ao trabalhador: [...] vai desde teorias da culpa, em que é enfatizada a imperícia do

trabalhador; à acidentabilidade, que supõe a existência de trabalhadores acidentáveis; à predisposição aos

acidentes, em função de características individuais, e à dicotomia entre os fatores humanos e o ambiente

do trabalho. (MACHADO & MINAYO-GOMES, 1995, p. 118).

Historicamente, o trabalhador se tornou objeto de ações que centram nele a responsabilidade de

evitar a iminência de dano ou risco à sua saúde, tendendo, ao mesmo tempo, a responsabilizá-lo em caso

de acidente de trabalho em detrimento das condições de trabalho, caracterizando, portanto, o acidente

como consequência de “ato inseguro”. Segundo Wünsch (2005), essa visão, que parece ter se consolidado

em meio aos profissionais da área, desencadeou dois processos opostos e linearmente construídos:

a) conceber o acidente de trabalho como produto da conduta do trabalhador no seu ambiente laboral; este

é entendido como resultante de causa endógena e individualizada por parte do acidentado. A ação tende a

“educar” o indivíduo para se prevenir; b) centrar o foco no indivíduo contribui para um distanciamento da

percepção da saúde do trabalhador como algo implicado também com as condições de vida – alimentação,

habitação, remuneração, entre outros – e com a organização do trabalho – incluindo todos os

componentes do processo de trabalho, como a força de trabalho, os desgastes físico, psíquico e social, a

matéria-prima (muitas vezes insalubre, de manuseio penoso e pesado, tóxica etc.), os instrumentos de

trabalho e os riscos ao operacionalizá-los.

Autores como Dejours (1988) e Seligman (1990) chamam a atenção para os aspectos geradores de

risco à saúde dos trabalhadores, fundamentalmente relacionados ao processo de organização do trabalho.

Para Dejours (1988), o sofrimento no trabalho se relaciona à insatisfação com a tarefa realizada e seu

conteúdo significativo e também ao conteúdo ergonômico do trabalho. A adaptação do homem ao

trabalho, seja ela física ou mental, vem merecendo diferentes estudos por parte da ergonomia, que se

preocupa com os meios e as condições de execução do trabalho. As melhorias dessas condições dizem

respeito ao grau de participação, autonomia e organização dos envolvidos (OLIVEIRA, 2002). Entretanto,

segundo este mesmo autor, é importante diferenciar o trabalho real e o trabalho prescrito, ou seja, o

trabalho efetivamente realizado, o real, depende dos meios fornecidos para realizá-lo e das condições

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físicas e mentais do trabalhador. Neste sentido, o resultado do trabalho depende de vários fatores que

envolvem o trabalhador, a empresa, as condições de saúde e trabalho. Decorre desse contexto também a

necessidade do reconhecimento do trabalho real, pelos diferentes níveis de relações de trabalho e sociais

do trabalhador, como fator subjetivo de satisfação e saúde mental no trabalho.

Em estudo realizado por Seligman (1990) sobre condições de trabalho e vida dos trabalhadores

vinculadas à saúde mental destes, a autora chama a atenção para as condições que são derivadas também

das características da organização do trabalho. Destaca os seguintes fatores de riscos para a saúde mental:

jornada prolongada; trabalhos em turnos alternantes; ritmo acelerado e exigências referidas ao mesmo;

tempo de descanso insuficiente; hierarquização rígida; sistemas de controle do desempenho na produção;

sistema insatisfatório de segurança do trabalho; rotatividade de pessoal; desinformação; desvios de função

e acúmulo de funções. Situam também os riscos físicos, ambientais e químicos, bem como as relações

interpessoais conflituosas dentro da empresa, principalmente em relação às chefias, como geradoras de

mágoa e insatisfação. O mesmo estudo traz outras questões relacionadas às condições de vida como

fatores principais causadores de tensão e a perdas relacionadas à migração e habitação em condições

insatisfatórias, entre outras. Conclui-se que a compreensão da forma de organização do trabalho,

imbricada com as necessidades advindas das condições de vida do trabalhador, é central para a (re)

formulação de uma proposta de gestão em saúde do trabalhador nas empresas que venha a ser articulada

com a política específica para esta área.

Considerações para um debate continuado

Tem-se presente que as formulações aqui apresentadas trazem em si elementos para uma reflexão

inesgotável sobre a saúde e o trabalho na atualidade, constituindo-se em categorias que expressam a nova

configuração societária, na qual o trabalho tem novos significados e determinações. A saúde, por sua vez,

expressa a sinergia com as condições de vida e trabalho e só pode ser pensada na sua totalidade num

cenário em que a dimensão social não seja ocultada por diferentes mecanismos presentes na sociedade.

Portanto, a dinâmica da produção, as condições de trabalho e o modo de vida continuam sendo

fontes importantes para que se compreenda o processo de saúde, adoecimento e morte dos trabalhadores.

Ao evidenciar o acidente de trabalho e as doenças profissionais como expressão e síntese do processo de

saúde-doença e trabalho, torna-se constitutiva a busca de uma “contralógica” que trabalhe na perspectiva

da saúde e segurança no trabalho como estratégia organizacional, fundada em processos participativos e

educativos, nas diferentes instâncias de tomada de decisão. Esses modelos de gestão participativa, de

mudanças nas condições físicas, ergonômicas e organizacionais, pactuações em torno de prioridades,

estabelecimento de práticas inovadoras e relações horizontais têm se revelado importantes instrumentos

para uma nova cultura em saúde e segurança no trabalho desde que não sejam utilizados como meros

instrumentos de elevação das taxas de lucro. Sem dúvida, não se trata de uma tarefa fácil para os

profissionais que atuam na área, tendo em conta a dinâmica de organização e gestão do trabalho e o

tensionamento presente neste contexto, fundamentalmente, pela secundarização do papel do trabalhador

nessa dinâmica. Os avanços obtidos com a construção de um novo conceito de saúde do trabalhador, nas

últimas décadas, precisam ser consolidados socialmente, o que passa pelo reconhecimento da centralidade

do trabalhador nesse processo, pela compreensão e enfrentamento dos determinantes sociais,

econômicos, políticos e culturais presentes na sociedade atual e, por conseguinte, na saúde do trabalhador.

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