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Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação 110 Ano VIII - Nº 8 - pág 110 - pág 113 - Outubro 2007 Tiago André G. dos Santos * FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (orgs.) Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. Resenha “Limiares da imagem: tecnologias e estética na cultura contemporânea” reúne artigos que discutem a evolução da percepção da imagem quando esta adentra na era da digitalização. O livro compila textos apre- sentados no Ciclo de Conferências Novas Fotografias, Novas Tecnologias, realizado no Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro – FotoRio, sediado na Escola de Comunicação da UFRJ, em junho de 2005. A coletânea busca novos rumos no entender e interpretar a imagem nesta complexa realidade digital. Realidade em que as possibilidades tecnológicas da cultura contemporânea dão à imagem um novo poder de narrativa ou um deslocamento da ordem indicial, para uma nova situação de espaço-tempo. Assim sendo, como o título sugere, a imagem, neste contexto, está à beira de um limiar, uma nova época, que delimita a forma “moderna” de leitura de mundo da forma “pós- moderna”, ou “contemporânea”, mais interacional, imediata e performática. Antônio Fatorelli e Thomas Y. Levin irão discutir o novo formato de temporalidade presente na fotografia digital. No artigo “Entre o analógico e o digital”, Fatorelli analisa três obras fotográficas criadas na década de 80, quando da transição entre as culturas analógica e digi- tal. Segundo o artigo, os trabalhos Revenge of the Gold Fish, de Sandy Skoglund (1981); Double Stark Portrait in Swirl, dos gêmeos Doug e Mike Starn (1985/86), e trabalhos diversos da fotógrafa Rosângela Rennó de- monstram um novo poder narrativo da fotografia que provoca o espectador a dimensionar seu olhar para além da própria fotografia, associando, nesta leitura, várias possibilidades de tempo e espaço. Thomas Y. Levin discute, em “O terremoto da representação: composição digital e a estética tensa da imagem heterocrônica”, o advento do movimento na fotografia e a concepção da imagem em sua pós-produ- ção. A fotografia como signo deserdaria sua indicialidade para se tornar “uma projeção de vídeo de um híbrido semiótico consistindo em uma antiga imagem fotoquí- mica na qual um dos elementos centrais foi submetido à mágica animatográfica da pós-produção digital”. Ela perde, portanto, a suposição que cristalizou a reflexão sobre a imagem na era moderna: sua base fotoquímica imóvel e atemporal, projetando-a num emaranhado espaço-temporal heterocrônico, onde não só um, mas vários e diversos tempos coexistem. Mauricio Lissovsky, em “A fotografia documental no limiar da experiência moderna”, debate a prática do fotógrafo na era digital: como o tempo do clique fotográfico tornou-se paralelo ao tempo de produção da imagem? Lissovski argumenta que o fotógrafo clássico põe em evidência sua relação de instantaneidade com a fotografia, deixando claro que houve uma espera, ou expectação ao que se a-presenta, pelo clique correto, dando ao fotógrafo um eixo, uma posição central em sua relação com a imagem. Seria o caso de fotógra- * Acadêmico do quarto período do curso de Jornalismo do Bom Jesus/Ielusc e bolsista do Necom (Núcleo de Estudos em Comunicação).

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Resenha Limiares da Imagem

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Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

110

Ano VIII - Nº 8 - pág 110 - pág 113 - Outubro 2007

Tiago André G. dos Santos*

FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (orgs.) Limiares da imagem: tecnologia e estética na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006.

Resenha

“Limiares da imagem: tecnologias e estética na

cultura contemporânea” reúne artigos que discutem a

evolução da percepção da imagem quando esta adentra

na era da digitalização. O livro compila textos apre-

sentados no Ciclo de Conferências Novas Fotografias,

Novas Tecnologias, realizado no Encontro Internacional

de Fotografia do Rio de Janeiro – FotoRio, sediado na

Escola de Comunicação da UFRJ, em junho de 2005.

A coletânea busca novos rumos no entender e

interpretar a imagem nesta complexa realidade digital.

Realidade em que as possibilidades tecnológicas da

cultura contemporânea dão à imagem um novo poder

de narrativa ou um deslocamento da ordem indicial,

para uma nova situação de espaço-tempo. Assim sendo,

como o título sugere, a imagem, neste contexto, está

à beira de um limiar, uma nova época, que delimita a

forma “moderna” de leitura de mundo da forma “pós-

moderna”, ou “contemporânea”, mais interacional,

imediata e performática.

Antônio Fatorelli e Thomas Y. Levin irão discutir o

novo formato de temporalidade presente na fotografia

digital. No artigo “Entre o analógico e o digital”, Fatorelli

analisa três obras fotográficas criadas na década de 80,

quando da transição entre as culturas analógica e digi-

tal. Segundo o artigo, os trabalhos Revenge of the Gold

Fish, de Sandy Skoglund (1981); Double Stark Portrait

in Swirl, dos gêmeos Doug e Mike Starn (1985/86), e

trabalhos diversos da fotógrafa Rosângela Rennó de-

monstram um novo poder narrativo da fotografia que

provoca o espectador a dimensionar seu olhar para além

da própria fotografia, associando, nesta leitura, várias

possibilidades de tempo e espaço.

Thomas Y. Levin discute, em “O terremoto da

representação: composição digital e a estética tensa

da imagem heterocrônica”, o advento do movimento na

fotografia e a concepção da imagem em sua pós-produ-

ção. A fotografia como signo deserdaria sua indicialidade

para se tornar “uma projeção de vídeo de um híbrido

semiótico consistindo em uma antiga imagem fotoquí-

mica na qual um dos elementos centrais foi submetido

à mágica animatográfica da pós-produção digital”. Ela

perde, portanto, a suposição que cristalizou a reflexão

sobre a imagem na era moderna: sua base fotoquímica

imóvel e atemporal, projetando-a num emaranhado

espaço-temporal heterocrônico, onde não só um, mas

vários e diversos tempos coexistem.

Mauricio Lissovsky, em “A fotografia documental

no limiar da experiência moderna”, debate a prática

do fotógrafo na era digital: como o tempo do clique

fotográfico tornou-se paralelo ao tempo de produção da

imagem? Lissovski argumenta que o fotógrafo clássico

põe em evidência sua relação de instantaneidade com

a fotografia, deixando claro que houve uma espera, ou

expectação ao que se a-presenta, pelo clique correto,

dando ao fotógrafo um eixo, uma posição central em

sua relação com a imagem. Seria o caso de fotógra-

* Acadêmico do quarto período do curso de Jornalismo do Bom Jesus/Ielusc e bolsista do Necom (Núcleo de Estudos em Comunicação).

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fos como Cartier-Bresson, Diane Arbus e Sebastião

Salgado. Lissovsky contrapõe esta posição do artista

alegando que “para muitos fotógrafos modernos, no

entanto, o presente, como território de atualização do

instantâneo fotográfico, foi motivo de inquietação”. O

autor do artigo busca em obras de Bill Brant, Walker

Evans, Robert Frank, Willian Klein e Lee Friedlander a

despresentificação do instante na fotografia. Na obra

desses fotógrafos estaria imprecisa qual a relação do

tempo com o “acontecido” durante a espera do clique

fotográfico (o que o autor chama de expectação).

Diferentemente dos clássicos, aqui não é possível rela-

cionar a posição entre o fotógrafo e a imagem obtida,

como se a expectação se desse ainda enquanto a obra

é apreciada pelo espectador.

Discutindo a referencialidade da imagem e suas

funções representacionais, Ivana Bentes, em seu “Mídia-

arte ou as estéticas da comunicação e seus modelos

teóricos”, relaciona a auto-suficiência da reprodução

da imagem digital com a topologia e morfologia de

organismos vivos. Para tanto, Bentes consulta as teo-

rias sobre morfogênese e topologia do filósofo Gilbert

Simondon. “Se no cinema clássico as imagens parecem

determinadas por leis de associação, contigüidade,

semelhança, oposição, por leis exteriores à própria

imagem, as imagens de síntese se autoproduzem do

interior, numa espécie de gênese maquínica que simula

a gênese físico-biológica do ser vivo”. Ainda citando

Simondon, Bentes relaciona esta autoprodução interior

da imagem com a idéia de ontogênse — “um pôr-em-

obra do ser vivo”. Ivana propõe, então, que, assim

como seres vivos, as imagens se multiplicam não só a si

mesmas, como também suas funções representacionais

e de referências.

Victa de Carvalho, em “Dispositivos em evidência:

a imagem como experiência em ambientes imersivos”,

reconhece essa idéia de autoprodução da referencia-

lidade da imagem como a paradoxal possibilidade de

uma anti-referenciabilidade, ou um real além do real,

um mais-real: a transformação da experiência virtual

contida na imagem em e xperiência visível e palpável.

Questões como a teoria dos dispositivos e a imersão do

sujeito são alguns dos focos amplamente discutidos por

Victa. Em seus argumentos, ela assume que a impor-

tância que se confere às imagens vem do entendimento

do dispositivo que as projeta. Por meio de um texto

de Jean-Louis Baudry, Victa apresenta o famoso mito

platônico da caverna como posto em prática através

da experiência do cinema, porque este, análogo à

caverna de Platão, é dispositivo enquanto produtor de

simulacro, enquanto gerador de representação do real

responsável pela imersão do sujeito na teatralidade da

representação. O fato de se entender a mecânica desse

dispositivo traz a necessidade de se entender, também,

que a representação é tão dependente do real quanto

este é daquela.

Ainda no tema da representação do real, Luiz

Alberto Oliveira nos presenteia, em seu artigo “Homo

lumines”, com uma bela leitura de “Tlön, Uqbar e Orbis

Tertius”, conto de Jorge Luiz Borges em que se descreve

um mundo feito exclusivamente de representações vir-

tuais do real. Um mundo em que a tecnicidade intervém

em todo o fundamento dos corpos materiais. Oliveira

argumenta que à medida que mergulhamos cada vez

mais num mundo sujeito à interpretação pela técnica,

onde as próteses tecnológicas se confundem com nosso

suporte biológico, tornamo-nos tal qual os habitantes de

Tlön: sem saber diferenciar, ou simplesmente sem mais

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se importar em diferenciar, o real do virtual. Contudo, a

virtualidade da imagem é irredutível e inaugural, perten-

ce ao homem como corpo situado e dirige o olhar para o

que não está presente, mas mais além: para um distante

mais fundamental, desvinculando-se do pensamento

operativo axiomático positivista. Este é o argumento que

Rogério Luz desenvolve no artigo “Imagem: o visível e

a escrita”, analisando proposiçoes de Merleau-Ponty e

Maurice Blanchot sobre a ação criativa.

Fernanda Bruno, no artigo “Quem está olhan-

do? Variações do público e do privado em weblogs,

fotologs e reality shows”, e Beatriz Jaguaribe, em

“Realismo sujo e experiência autobiográfica”, atacam

a questão da imagem diferenciando as esferas pública

e privada. Fernanda constata que o olhar do outro é

imprescindível para a consolidação das subjetividades

contemporâneas. A exposição da intimidade feita

através de fotologs, blogs e reality shows comprova

a importância da subjetividade convertida em imagem

carente do olhar do espectador. Já Beatriz explora a

função da imagem na construção de um imaginário

criado a partir de um texto biográfico. Ela compara as

biografias de Juan Pedro Gutiérrez e da fotógrafa Nan

Goldin com a exposição de intimidade feita através

da imagem presente nos sites da web. Constata que

há sempre uma “vontade de ser” maior que um “ser”

simplesmente. O realismo sujo da vida de Gutiérrez

influencia sua obra de maneira que o espectador — ou

leitor — da biografia (esta sendo uma descrição real

da vida do autor) a lê como se fosse uma ficção criada

pelo próprio Gutiérrez. Da mesma maneira acontece

na interação feita nos fotologs e blogs: deseja-se ser

o que se lê, deseja-se ser o que se vê.

Dentro da discussão sobre cinema, Kátia Maciel

vai ao encontro da linha tênue entre a imagem sensível

pertencente ao espectador e ao autor. A tal relação

dá-se o nome de transcinema, segundo a autora do

artigo “Transcinema e a estética da interrupção”. An-

dré Parente faz uma análise da instalação interativa

“Figuras na paisagem: estereoscopia”, onde há uma

concepção estética do fragmento, implicada na imagem

mosaico. Os fragmentos, segundo Parente, permitem

dimensionar o caos sem reduzi-lo a um plano uniforme

e unitemporal. Distribui-se a imagem da paisagem em

paisagens.

Os textos presentes em “Limiares da imagem”

são diversos entre si, mas abordam, sempre de ma-

neira lúcida, um grande tema-mãe: a imagem e seus

novos conceitos de leitura; e levantam uma discussão

bastante pertinente à cultura contemporânea: se há

ou não limites entre o ser biológico soberano em sua

funcionalidade e criador através de uma tecnicidade

humanizada, consciente do real, e o ser da técnica

mecanizada produtora de uma virtualidade que dá ao

homem novas possibilidades de criação, interpretação e

interação com o mundo. Tendo em vista as novas formas

de criação artísticas, a evolução do conceito de imagem

dentro do cinema, o advento das instalações — onde

há uma fusão entre artes plásticas, cinema e vídeo —,

enfim, diante de todas essas “mutações” da cultura

contemporânea, os estudos refletidos sobre as funções

e as infinitas questões que a interação feita através da

imagem discute são relevantes para a construção de

uma consciência capaz de apreciar essas diferenças.

Essencialmente, “Limiares da imagem” nos leva

a refletir o quanto a experiência da arte, inserida na

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contemporânea cultura da imagem, torna-se insuficiente

enquanto sozinha. Naturalmente se exige cada vez mais

que a obra, tanto quanto o próprio artista, conflua sua

experiência como criador com a do espectador, leitor,

ouvinte ou simplesmente receptor; e vice-versa.