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Nova Economia ISSN: 0103-6351 [email protected] Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Suzigan, Wilson; Furtado, João; Garcia, Renato; Sampaio, Sérgio E. K. A indústria de calçados de Nova Serrana (MG) Nova Economia, vol. 15, núm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 97-116 Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400437540004 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Nova Economia

ISSN: 0103-6351

[email protected]

Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil

Suzigan, Wilson; Furtado, João; Garcia, Renato; Sampaio, Sérgio E. K.

A indústria de calçados de Nova Serrana (MG)

Nova Economia, vol. 15, núm. 3, septiembre-diciembre, 2005, pp. 97-116

Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=400437540004

Como citar este artigo

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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A indústria de calçados de Nova Serrana (MG)

Wilson SuziganProfessor do Instituto de Geociências da Unicamp

João FurtadoProfessor da UNESP e da Escola Politécnica da USP

Renato GarciaProfessor da Escola Politécnica da USP

Sérgio E. K. SampaioMestrando em Desenvolvimento Econômico – UFPR

ResumoUtilizando resultados de trabalho estatístico combase nos dados da Relação Anual de InformaçõesSociais (RAIS), que permitem caracterizar a indús-tria de calçados de Nova Serrana (MG) como umsistema local de produção, e nos resultados de pes-quisa de campo efetuada em abril de 2002, quandoforam realizadas entrevistas e visitas em empresas einstituições locais, o artigo estuda o sistema local deprodução de Nova Serrana tanto em termos do sis-tema como um todo quanto das empresas e institui-ções que o compõem. O objetivo é produzir, nessesdois níveis de análise, evidências que possam orien-tar ações públicas e privadas, visando ao aprimora-mento do sistema e das empresas locais em duas es-feras: (1) produtiva e tecnológica, em seus váriosdesdobramentos, e (2) institucional e organizacio-nal. Para isso, caracteriza e dimensiona primeira-mente o sistema local em termos de sua localizaçãoe região de influência, sua logística, população e em-pregos gerados, história e evolução, estrutura deprodução, instituições de apoio, contexto social,cultural e político. Em seguida, caracteriza as em-presas em termos de tamanho e quanto a: desenvol-vimento de produto, sistemas de comercialização,relações cooperativas, interações com fornecedo-res, fontes de informação para desenvolvimentode produtos e sobre mercados e processos de fa-bricação, práticas e políticas quanto à qualidade,ao financiamento e a outros aspectos pertinentesao caso em estudo. Por fim, ressalta os problemasmais relevantes que podem ser objeto de políticaspúblicas e/ou de ações conjuntas das empresas einstituições locais.

AbstractOn the basis of previous statistical work with dataand information from RAIS – Relação Anual deInformações Sociais, characterizing the Nova Serranashoe industry as a local production system, and theresults of a field research work with visits andinterviews in local firms and institutions, this paperstudies the Nova Serrana local production system asa whole as well as its firms and supportinginstitutions. The objective is to bring empiricalevidence to guide public policy and private actionswith a view to upgrade the local system in twospheres: (1) productive and technological, and (2)institutional and organizational. With this purposein mind, this paper first characterizes and describesthe local system in terms of location, adjoininginfluenced areas, logistics, population and numberof jobs, history and evolution, production structure,supporting institutions, and social, cultural andpolitical contexts. Next, the paper characterizeslocal firms in terms of size, product development,trading system, cooperation between rival firms,interactions with suppliers, sources of informationfor product development and on market trendsand production technologies, practices and policieswith regard to quality, financing, and other aspects.Finally, the paper summarizes the most relevantissues for policy measures and private actionsby local firms and institutions.

Palavras-chavesistemas locais de produção,economia mineira, indústriade calçados, Nova Serrana.

Classificação JEL R12, L67,L52.

Key words

local production systems,

shoe manufacturing industry,

Nova Serrana (Minas Gerais).

JEL Classification R12, L67,

L52.

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1_ IntroduçãoO município de Nova Serrana notabili-zou-se recentemente por concentrar gran-de número de empresas fabricantes decalçados, notadamente tênis e seus com-ponentes. Essas empresas respondiam,em 2002, por 55% da produção nacionalde tênis e geravam entre 20 e 25 mil em-pregos diretos e indiretos, segundo esti-mativas do Sindicato da Indústria do Cal-çado de Nova Serrana (Sindinova). Dadasua relevância, não só do ponto de vistalocal/regional como também de sua par-ticipação na indústria brasileira de calça-dos, foi objeto de um dos estudos de ca-sos realizados no âmbito do projeto depesquisa Sistemas Produtivos Locais naIndústria Calçadista Brasileira: avaliaçãoe sugestões de políticas, realizado em 2001-2003 com apoio financeiro do CNPq, doqual este artigo foi derivado.

O artigo apóia-se em duas fontesde dados e informações:

1. indicadores quantitativos elabo-rados com base nos dados daRelação Anual de InformaçõesSociais (RAIS);

2. resultados da pesquisa de campoefetuada em abril de 2002, quan-do foram realizadas entrevistase visitas em empresas e institui-ções locais.

Os indicadores são: o Quociente Loca-cional (QL) e o coeficiente de Gini Lo-cacional (GL), cuja metodologia já foiapresentada em trabalhos anteriores dosautores,1 e os números absolutos de em-pregos e estabelecimentos por classes deindústria (CNAE 4 dígitos) para a mi-crorregião de Divinópolis e o municípiode Nova Serrana. Esses indicadores per-mitem caracterizar Nova Serrana comoum sistema local de produção.2 Os resul-tados da pesquisa de campo, por suavez, são constituídos por dados e infor-mações coletados e sistematizados combase nas entrevistas e nas visitas. Na im-possibilidade de aplicar questionários poramostragem estatística, procurou-se se-lecionar um grupo de empresas que fosserepresentativo do universo local com-posto majoritariamente por micro, pe-quenas e médias empresas. A maioria dasempresas visitadas foi fundada nas déca-das de 1980 e 1990, emprega entre 20 e110 pessoas (sem contar o emprego gera-do em atividades terceirizadas), fabrica tê-nis adulto/infantil e esportivos (uma delasé fabricante de sandálias), e vende predo-minantemente no mercado interno. Asentrevistas e as visitas em instituições lo-cais incluíram o Sindicato da Indústria(Sindinova) e o Centro de Desenvolvi-mento Empresarial, que abriga um centrode modelagem de calçados e um laborató-

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1 Ver particularmenteSuzigan et al. (2003), publicadopela Nova Economia.2 O significado do conceitode sistema local de produçãoaqui adotado é praticamente omesmo do conceito de“sistema produtivo einovativo local” adotado pelaRedeSist, que o distingue doconceito de “arranjoprodutivo local”. Esteapresenta vínculos incipientesentre atores locais (Cassiolatoe Lastres, 2003). Optamos,porém, pela utilização de umconceito único e simples desistema local de produção,seguindo a tradição de estudosde pesquisadores italianos(ver, por exemplo, Lombardi,2003) e considerando que asdistinções entre sistemasresumem-se a graus variadosde desenvolvimento, deintegração da cadeiaprodutiva, de presença deindústrias correlatas, dearticulação e interaçãoentre agentes e instituiçõeslocais, e de capacidadessistêmicas para a inovação.

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rio de ensaios e testes, além de coordenarvários tipos de assessoria e serviços em-presariais e realizar cursos e treinamentos.

De acordo com a metodologia ado-tada, o sistema local de produção de NovaSerrana é analisado nas seções seguintestanto em termos do sistema como um to-do quanto das empresas que o compõem.O objetivo é produzir evidências, nessesdois níveis de análise, que possam servirde orientação a ações públicas e privadas,visando ao aprimoramento do sistema edas empresas locais em duas esferas:

1. produtiva e tecnológica, em seusvários desdobramentos;

2. institucional e organizacional.

Procura-se, assim, caracterizar edimensionar primeiramente o sistemalocal em termos de sua localização e re-gião de influência, sua logística, popula-ção e empregos gerados, história e evolu-ção, estrutura de produção, instituiçõesde apoio, contexto social, cultural e polí-tico. Em seguida, procura-se caracterizaras empresas quanto a: desenvolvimentode produto, sistemas de comercialização,relações cooperativas e associativismo,relações entre fabricantes de calçados eseus fornecedores, fontes de informaçãopara desenvolvimento de produtos e so-bre mercados e processos de fabricação,práticas e políticas quanto à qualidade, aofinanciamento e a outros aspectos perti-

nentes ao caso em estudo. Por fim, res-saltam-se os problemas mais relevantesque podem ser objeto de políticas públi-cas e/ou de ações conjuntas das empre-sas e instituições locais.

2_ Localização e regiãode influência

Nova Serrana está localizada na regiãoCentro-Oeste do Estado de Minas Gerais,às margens da BR – 262, a 112 km de BeloHorizonte e a 42 km de Divinópolis, cida-de mais importante e que dá nome à mi-crorregião que contém o município de No-va Serrana (ver Mapa 1). As atividades daindústria de calçados local se ramificampor vários municípios vizinhos, que não sóparticipam do processo de fabricação decalçados, como também fornecem mão-de-obra para a indústria de Nova Serrana.As etapas terceirizadas do processo de-produção são distribuídas por municípiosnum entorno de 30 a 40 quilômetros, in-cluindo Divinópolis, São Gonçalo do Pará,Itaúna e Perdigão, na microrregião de Di-vinópolis, além de outros de microrregiõescircunvizinhas, incluindo os municípios deOliveira, Bom Despacho, Pitangui e Paráde Minas. Ademais, segundo informaçõesde empresários locais, mais de cem ônibuspartem diariamente desses e de outros mu-nicípios levando trabalhadores para a in-dústria de Nova Serrana.

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Alguns dos municípios vizinhos,entre os quais Divinópolis, Perdigão e SãoGonçalo do Pará, também desenvolve-ram, por influência do pólo de Nova Ser-rana, sua própria indústria de calçados.Perdigão, por exemplo, concentra atual-mente cerca de 100 pequenas empresas,na maioria familiares, que fabricam pro-dutos similares aos de Nova Serrana. Se-gundo o presidente do Sindinova, JúniorCésar Silva, em entrevista a uma revistalocal, não existe preocupação quanto auma eventual concorrência com Nova

Serrana; ao contrário, o novo pólo poderácontribuir para o crescimento e o fortale-cimento da região, atraindo mais compra-dores, empresas fornecedoras de compo-nentes e apoio do setor público.

3_ Logística e infra-estrutura3

A localização de Nova Serrana às mar-gens da BR-262 é bastante satisfatóriapara as empresas locais do ponto de vistade acesso a mercados para seus produ-tos, bem como para compra de matérias-

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Mapa 1_ Localização e região de influência da indústria de calçados de Nova Serrana, MG

Fonte: Elaboração própria.

Municípiode Nova Serrana

MicrorregiãoBelo Horizonte

MicrorregiãoDivinópolis

BR 262

112 km de Belo Horizonte

42 km de Divinópolis

3 Para a elaboração desteitem, foram utilizadas,além de informaçõesobtidas na pesquisa decampo, aquelas disponíveisno trabalho de Crocco et al.(2001, p. 367-371).

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primas e componentes não produzidoslocalmente. Os principais mercados sãoos dos grandes centros urbanos mais pró-ximos (Belo Horizonte, São Paulo e Riode Janeiro), com os quais há ligações ro-doviárias satisfatórias, mas há tambémcondições razoáveis de acesso por rodo-vias a outros mercados importantes paraa produção local, tais como o interior doEstado e as regiões Nordeste e Centro-Oeste do País. Essa mesma infra-estrutu-ra rodoviária permite outra importanteforma de comercialização da produçãolocal, ou seja, as vendas diretas realizadasnas próprias fábricas.

Outros componentes da infra-es-trutura física, como o suprimento de ener-gia elétrica e os serviços de telecomuni-cações, apresentam condições adequadasem função de melhoramentos recentes.Dados levantados pelo Sindinova mos-tram que a Cemig atende 11.680 residên-cias, 1.429 estabelecimentos industriais e1.244 estabelecimentos comerciais no mu-nicípio; revelam também que há 11.000terminais de telefonia fixa instalados e 3.000aparelhos de telefonia móvel habilitados.

Mas a infra-estrutura urbana demodo geral é bastante deficiente, sobre-tudo pela falta de um planejamento quediscipline a instalação de fábricas em áre-as próprias. A cidade cresceu muito rapi-

damente, e centenas de fábricas foramsendo instaladas por toda a área urba-na, criando um ambiente de convivên-cia “promíscua” entre fábricas de calça-dos ou componentes e residências.

Há também notórias deficiênciasno ensino médio e superior, que se refle-tem na insuficiência de capacitação técnicae gerencial local. É insuficiente tambéma oferta de cursos técnicos, o que acar-reta falta de mão-de-obra especializada,particularmente na operação de pesponto,bem como de alguns serviços técnicos es-pecializados, tais como modelagem, design

e serviços financeiros.

4_ População locale empregos gerados pelaindústria de calçados

O município de Nova Serrana tem pou-co mais de 40 mil habitantes, e sua po-pulação vem crescendo a uma taxa ex-tremamente alta (cerca de 8% ao ano,segundo dados divulgados pelo Sindino-va), o que denota significativo movimen-to migratório estimulado pela criação deemprego nas atividades econômicas lo-cais. Os dados da RAIS de 2002, referen-tes à microrregião de Divinópolis, indi-cam um total de 9.972 empregos formaisnas atividades relacionadas com a produ-

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ção de calçados na região. Entretanto, es-timativas realizadas pelo Sindinova, em2002, indicam que a indústria de calçadosgera cerca de 15 mil empregos diretos, eum total de 20 mil a 25 mil empregos,quando considerados também os indire-tos, os formais e os informais.

Levando-se em conta a dimensãoda população local, pode-se perceber quehá de fato necessidade de atrair mão-de-obra dos municípios vizinhos, uma vezque a proporção da população local queconstitui a força de trabalho é evidente-mente insuficiente. Isso comprova o quefoi dito antes, que cerca de uma centenade ônibus vai diariamente a Nova Serra-na levando trabalhadores de municípiosvizinhos. E ainda assim, segundo os em-presários entrevistados, há falta de mão-de-obra, sobretudo com qualificações maiselevadas, por exemplo, para as atividadesde pesponto, como já dito.

5_ História: condições iniciaise evolução

A organização da produção de calçadoscomo atividade industrial em Nova Ser-rana começou na década de 1950. Ante-riormente, as atividades agrícolas e depecuária leiteira parecem ter criado ascondições iniciais para o surgimento da

produção artesanal de artigos de couro ebotinas rústicas. O aprendizado na fabri-cação de calçados, porém, começou noinício da década de 1950, quando um dospioneiros da indústria “foi para Bom Des-

pacho aprender o ofício de sapateiro” (Almeida,1996). Na segunda metade da década,após a emancipação do município, surgi-ram as primeiras fábricas e dois peque-nos curtumes. O calçado produzido eraum tipo de botina de couro com soladode pneu laminado.

As dificuldades de transporte e desuprimento de energia, entretanto, restrin-giam o crescimento da produção. Somen-te após a ligação à rede de energia elétricada Cemig, em 1967, e a abertura ao tráfe-go da BR-262, em 1969, é que a indústrialocal prosperou. No início dos anos 1970,já havia 48 pequenas fábricas de calçadosem operação, todas produzindo calçadosde couro (Almeida, 1996). Com a chegadadas primeiras agências bancárias e a insta-lação de rede de telefonia, completou-se ainfra-estrutura mínima necessária para aexpansão da indústria.

O primeiro surto de rápido cresci-mento da indústria de calçados de NovaSerrana ocorreu entre os meados das dé-cadas de 1970 e 1980. Após uma viagemdos fabricantes locais a Novo Hamburgo(RS), em 1971, viagem essa que, segundo

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Almeida (1996), “constituiu-se em mola pro-

pulsora dos eventos futuros”, e a fundaçãoda Associação Comercial e Industrial deNova Serrana (ACINS), em 1974, os fa-bricantes locais de calçados se organiza-ram, para intensificar o aprendizado, in-corporar novas tecnologias e melhorar aqualidade dos produtos e o gerenciamen-to das empresas. A produção diversifi-cou-se com a fabricação de mocassins esandálias de couro. Das 48 fábricas exis-tentes em 1972, pulou-se para cerca de400 em 1985. O auge do crescimento pa-rece ter ocorrido no ano de 1986, com oPlano Cruzado, mas a crise subseqüente,que marcou o fim do plano, atingiu pro-fundamente a indústria local.

É nessa época que se verifica umamudança radical na trajetória da indústriade calçados de Nova Serrana, isto é, o iní-cio da fabricação de tênis. Essa mudançarepresenta verdadeira bifurcação na evo-lução da indústria por três razões:

1. muda o patamar de taxas de cres-cimento da produção;

2. altera radicalmente a base tecnoló-gica da produção;

3. modifica também a forma de orga-nização da produção industrial.

A pergunta que intriga é a seguinte: o quelevou a indústria local, que já havia acu-

mulado significativo conhecimento na fa-bricação de calçados de couro, a mudarradicalmente o produto, a base tecnoló-gica e a organização industrial?

Crocco et al. (2001, p. 344) ofere-cem duas justificativas relevantes:

1. o aproveitamento pelos fabrican-tes locais da “janela de oportuni-dade” oferecida pelo boom do ma-terial sintético;

2. a simplicidade na fabricação detênis em comparação ao calça-do de couro.

Sem entrar no mérito dessas justificati-vas, mesmo que verdadeiras, elas nãorespondem à pergunta feita acima. O queparece ter ocorrido é que, em reação àcrise dos anos oitenta, um empresárioimitador local, burlando as regulamenta-ções de marcas e patentes, iniciou a pro-dução de “similares” de marcas famosasde tênis, especialmente a Nike.4 O suces-so comercial desse tipo de produto deuorigem a um processo, que, por fim, serevelou virtuoso, de aprendizado e disse-minação de conhecimento na fabricaçãode tênis. A partir dessa origem obscura, afabricação de tênis atraiu muitas outrasempresas, e a história do pólo mudou,verificando-se uma guinada em sua evo-lução. Hoje a produção de tênis respon-

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4 Crocco et al. (2001, p. 344,nota n. 15) afirmam que oprimeiro empreendimentoprodutor de tênis em NovaSerrana fabricava tênisfalsificados com marcas degrifes famosas.

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de pela quase totalidade da produção decalçados de Nova Serrana, que participacom cerca de 55% da produção nacional.A falsificação foi reduzida a cerca de 3%da produção, o que equivale a cerca de 10mil pares/dia.5

6_ Estrutura da produçãoe forma de organização industrial

O sistema local de produção de calçadosde Nova Serrana comporta entre 850 e900 empresas,6 das quais 368 eram asso-ciadas ao Sindinova em 2002. A distribui-ção das empresas por tamanho, segundoos dados da RAIS/2002, mostra grandepredominância de micro/pequenas em-presas: 70,5% dos estabelecimentos dasclasses “Fabricação de tênis de qualquermaterial” e “Fabricação de calçados deoutros materiais” no município de NovaSerrana empregam até 9 pessoas. Há ape-nas 7 empresas com mais de 100 empre-gados nessas duas classes de indústria.Isso é confirmado pelos resultados dasentrevistas, que indicam um universocomposto por algumas empresas de por-te médio e grande número de micro/pe-quenas empresas.

Essas empresas produzem um to-tal aproximado de 330 mil a 350 mil pa-res/dia. A quase totalidade da produção

é de tênis, o que caracteriza o sistema lo-cal como altamente especializado nessetipo de calçado. Mas há também conside-rável produção de chinelos e sandálias,fabricados predominantemente com ma-terial sintético. Como esse tipo de produ-to é geralmente de baixo valor, especial-mente os chinelos, sua participação nototal do valor da produção local de cal-çados é pouco expressiva.

Essa especialização na produçãode tênis e outros calçados de material sin-tético explica a ausência, em Nova Serra-na, de alguns segmentos da cadeia pro-dutiva e a pequena presença de outrasclasses de atividades que compõem o sis-tema local de produção, tais como má-quinas e equipamentos. A principal ma-téria-prima – resinas termoplásticas paraprodução de solados – é adquirida dospólos petroquímicos de São Paulo, daBahia e do Rio Grande do Sul e é forneci-da por distribuidores locais às empresasfabricantes de calçados que a encami-nham a empresas especializadas na inje-ção de solados. Alguns componentes maissimples são produzidos localmente, mascom matéria-prima de fora da região. Esteé o caso, entre outros, de cadarços, etique-tas (enfeites e adesivos de plástico), pal-milhas, caixas de papelão, componentesde borracha e de espuma. Componentes

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5 Segundo um dosentrevistados, os falsificadoresremanescentes são de doistipos: o da empresa que“quebra” e volta nainformalidade, falsificando(que o folclore local chama de“ressurreição”), e o daempresa que falsificou umavez e ficou “viciada”.6 O levantamento estatísticofeito pelo Sindinova apontaum total de 854 empresas emfins de 2001/início de 2002,mas, um folheto de divulgaçãoque circulou no própriosindicato em abril de 2002,mencionava 900 empresas.

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de couro têm maior conteúdo local, assimcomo alguns dos equipamentos, como fa-cas e navalhas para balancins e matrizespara solados. Mas a maior parte dos com-ponentes, das matérias-primas, das má-quinas e dos equipamentos é fornecidapor empresas que não são da região.7

Os dados da Tabela 1 compro-vam que apenas duas das classes de in-dústria que compõem o sistema localde produção de calçados têm indicado-res incontestáveis de forte concentra-ção na microrregião que inclui NovaSerrana, a saber: as de “fabricação detênis de qualquer material” e as de “fa-bricação de calçados de outros mate-riais”. Outras classes de indústria quefazem parte do sistema estão presentesna região, mas com indicadores menossignificativos de concentração. São elas:fabricação de acessórios de vestuário,curtimento e preparação de couro, arte-fatos de couro, calçados de couro, cal-çados de plástico, embalagens de papele papelão, artefatos de borracha, arte-fatos de plástico e máquinas para in-dústria de vestuário e calçados.

Nesse sentido, as inter-relaçõesprodutivas são relativamente fracas nosistema local de produção de calçadosde Nova Serrana e municípios vizinhos.

Entretanto, uma característica notávelda organização industrial desse sistemaé a divisão de trabalho entre fabricantesde calçados e empresas especializadasna produção de solados (“injetoras”, nojargão local). Essas empresas, em núme-ro de 30 a 50, conforme as fontes locais,operam com máquinas injetoras que têm,cada uma, capacidade de produção de1.000 pares/dia de solados. As maioreschegam a ter 25 máquinas injetoras.

Uma vez que os fabricantes decalçados, em sua maioria, não têm escalapara produção própria de solados,8 essadivisão de trabalho torna possível a rea-lização de importantes ganhos de escalapor parte do conjunto dos fabricantesde calçados locais. Mas o que é mais no-tável em termos de organização indus-trial é a classificação das empresas inje-toras, do ponto de vista fiscal, comoprestadoras de serviços aos fabricantesde calçados. Estes compram as matérias-primas, entregam-nas às injetoras juntocom as matrizes dos solados a ser pro-duzidos, e pagam pelo serviço prestadode injeção dos solados. Isso reduz a car-ga tributária na cadeia produtiva, já queas injetoras não pagam IPI; pagam ape-nas o ICMS sobre o valor agregado.9

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7 Incluindo todas asmáquinas do processo deinjeção, fabricação emontagem; matérias-primascomo TR, PU, PVC,EVA, cola, nylon, curvim,linhas, tecidos; componentesde metais, e caixas depapelão (cuja origem éprincipalmente Jaú (SP).8 As poucas que têm,segundo informações colhidasnas entrevistas, comprammáquinas injetoras usadas,provavelmente obsoletas, oque implica menorprodutividade e maiorescustos de produção.9 Com a recente mudança nalegislação tributária daCOFINS, o custo desseserviço deve ter sido oneradoe repassado para osfabricantes locais de tênis.

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Tabela 1_ Microrregião de Divinópolis – Indústria de Calçados e Correlatas, 2002

Classe CNAE (4 dígitos)Índice de GiniLocacional da

Classe*

QuocienteLocacionalEmprego*

Part. Rel. noTotal do

Emprego daClasse (%)*

Número deEmpregosFormais

Número deEstabelecimentos

1821Fabricação de acessório

do vestuário0,58 2,09 14,2 253 28

1910Curtimento e preparações

em couro0,83 2,03 13,8 417 13

1921Fabricação de malas, bolsas, valises

e outros artefatos para viagem0,61 0,13 0,9 11 4

1929Fabricação de outros artefatos

de couro0,63 1,11 7,5 155 12

1931 Calçados de couro 0,60 1,61 10,9 775 61

1932 Tênis de qualquer material 0,91 12,27 83,4 2.466 205

1933 Fabricação de calçados de plástico 0,90 5,17 35,2 77 7

1939 Calçados de outro material 0,86 11,84 80,4 5.230 434

2131 Fabricação de embalagens de papel 0,51 2,18 14,8 152 7

2132Fabricação de embalagens

de papelão0,77 0,62 4,2 90 3

2491 Fabricação de adesivos e selantes 0,64 0,31 2,1 1 1

2519Fabricação de artefatos diversos

de borracha0,63 0,65 4,4 126 8

2529Fabricação de artefatos diversos

de plástico0,58 0,36 2,4 173 25

2964Máquinas e equipamentos

para vestuário, couro e calçados0,92 13,27 90,2 46 5

(*) relativamente ao Estado de Minas Gerais.

Fonte: Elaboração própria, com base em dados da RAIS/MTE 2002.

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Trata-se, portanto, de uma inova-ção organizacional que proporciona ga-nhos de escala na fabricação de calçados,independentemente do tamanho das em-presas e da estrutura da indústria; tira dasfábricas de calçados uma fase do proces-so de produção que é estranha à fabrica-ção de calçados propriamente dita, já quea injeção dos solados é um processo quí-mico; reduz impostos na cadeia produti-va, e ainda reduz custos de produção. Emcontrapartida, implica problemas de vá-rias ordens, quais sejam: pode ocorrercomprometimento da qualidade dos so-lados, uma vez que é comum haver, porparte das injetoras, mistura de matérias-primas de qualidade inferior à que foi en-viada para injeção; pode haver perda decontrole sobre as matrizes (moldes), quecorrem o risco de ser repassadas pela em-presa injetora a outros fabricantes de cal-çados, e pode haver atraso na entrega dossolados, provocando interrupções e atra-sos na produção de calçados.

Portanto, apesar de ser uma inova-ção organizacional importante, a terceiri-zação da produção dos solados pode re-sultar em perda de controle do processode produção e spillover de novos conheci-mentos embutidos no desenvolvimentode produtos, incorporados em novas for-mas e designs de solados, ou na utilização

de novos tipos de material. Para evitar es-ses problemas, seria necessário que o sis-tema local de produção de calçados dis-pusesse de uma estrutura de governançacapaz de coordenar as relações entre asempresas e de administrar conflitos. Naépoca em foi realizada a pesquisa de cam-po, tal estrutura não existia em Nova Ser-rana, mas começou a ser formalizada apartir de 2003 sob a liderança do Sindi-nova, como se discute adiante.

7_ Instituições de apoioAlém da Associação Comercial e Indus-trial de Nova Serrana (ACINS), que tevepapel relevante como organização repre-sentativa da classe empresarial de NovaSerrana a partir de 1974, a única outra ins-tituição atuante no apoio às empresas lo-cais é o Sindicato da Indústria do Calçadode Nova Serrana (SICNS – Sindinova).Embora não se constitua formalmenteem agente coordenador, o Sindinova mo-biliza a classe empresarial, coordena defato várias ações coletivas das empresas edesempenha diversos papéis relevantes.A principal iniciativa do Sindinova foi acriação do Centro de DesenvolvimentoEmpresarial (CDE), inaugurado em ju-nho de 1996.

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O CDE funciona nas modernasinstalações onde também se localiza aprópria sede do Sindinova. Além de abri-gar, na época da visita, o Showroom Per-manente do Calçado de Nova Serrana,10

posteriormente desativado, o CDE man-tém instalações de laboratório para tes-tes físicos e um centro de modelagem, epresta vários tipos de serviço às empre-sas (Figura 1).

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Centro deModelagem

Laboratório detestes físicos

AssessoriaEmpresarial

– Linhas crédito efinanciamento

– Orientação p/ aberturade Novos Negócios

FEBRAC – Feirade Calçados eComponentes

Sindinova

Cursos

– Centro de TreinamentoOperacional/SENAI

– Faculdade de Nova Serrana– Escola Técnica de

Calçados/SENAI– Atualização e Prática de Negócios

ConvênioBB/CEF

CDE

Serviços

– Assistência jurídica– Medicina do trabalho– Negociações coletivas– Participação em feiras– Registro de marcas e patentes– Palestras técnicas e seminários– Sistema de proteção ao crédito

Figura 1_ Estrutura do Centro de Desenvolvimento Empresarial (CDE), Nova Serrana

Fonte: Elaboração própria.

10 A criação do showroom foiiniciativa de um grupo de 14empresários locais que seuniram instituindo a UniãoCalçadista de Nova Serrana(UNICANS). Por meio daUNICANS, buscarammobilizar recursos e encontrarespaço para o showroom. Oapoio da Prefeitura de NovaSerrana, segundo fonteslocais, foi “decisivo e vital”para concretizar essainiciativa. Posteriormente, oSindinova assumiu o showroom,e a UNICANS se desfez.

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O laboratório de testes físicos per-mite que as empresas associadas que nãodispõem de laboratórios próprios reali-zem testes de qualidade e resistência (tra-ção, flexão, abrasão, colagem) em calçadose diversos tipos de material. Os testesoferecidos incluem ensaios em couro, la-minados sintéticos, solados, e no própriocalçado, abrangendo assim todo o pro-cesso de fabricação. Em 2001 e 2002,eram realizados cerca de 540 testes porano. Entretanto, o próprio sindicato re-conhece que o laboratório ainda é pobree subutilizado. Um dos problemas é nãodispor de certificação do INMETRO, oque permitiria atribuir um selo de quali-dade ao calçado que passa pelos testes delaboratório do CDE.11 O centro de mo-delagem, por sua vez, opera um sistemaCAD/CAM de corte a laser para desen-volver escalas e realizar cortes de mode-los para calçados, cobrando R$ 120,00por modelo (abril de 2002). Como a mai-oria das empresas locais não tem escalanem recursos para dispor de sistemaspróprios de CAD/CAM, esse equipa-mento tem sido amplamente utilizado,propiciando significativas economias ex-ternas às empresas associadas.12

Quanto aos serviços prestados, in-cluem, entre outros:

1. cursos profissionalizantes, tais co-mo o curso de pesponto, ofereci-

do desde 1992 em parceria como Senai, e o curso do Cefet –Escola Técnica de Calçados, quedesde 2001 forma técnicos emprodução de calçados, estilismoe modelagem, administração egerenciamento. Além disso, en-contrava-se em negociação como Senai um convênio denomina-do Projeto CTO para montagemde cursos para a formação de2.160 alunos por ano;

2. curso de atualização e prática denegócios, em convênio com aFundação Getúlio Vargas;

3. cursos da Escola Técnica de For-mação Gerencial (ETFG), emconvênio com o Sebrae/MG e aPrefeitura Municipal;

4. serviços do Núcleo de Atendimen-to Tecnológico, também em con-vênio com o Sebrae/MG;

5. Balcão Comex, com serviços deorientação para exportação;

6. Balcão Sebrae/MG, com serviçosde orientação para abertura denovos negócios, para utilizaçãode linhas de crédito e financia-mento para micro/pequenas em-presas, e para utilizar os recursosdo Programa de Apoio Tecnológi-co a Médias e Pequenas Empre-sas (PATME – MCT);

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11 Em exposição duranteevento realizado em fevereirode 2004, o presidente doSindinova, Júnior CésarSilva, afirmou que olaboratório de ensaios“será assumido pelo Senai”.12 Segundo o Sindinova, osistema CAD/CAMdo CDE atende, em média,160 empresas por mês,inclusive empresas deoutros municípios.

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7. serviços gerais de assistência jurídi-ca, registro de marcas e patentes,palestras técnicas e seminários,negociações coletivas, participa-ção em feiras, ações de medicinado trabalho, sistema de proteçãoao crédito, provedor de internet,e home page com dados dos asso-ciados e seus produtos.

Ainda no âmbito do CDE, duas ou-tras importantes iniciativas coletivas fo-ram lideradas pelo Sindinova. A primeirafoi a de formar um Consórcio de Expor-tação. Para isso, buscou o apoio do Se-brae e da APEX. A ampliação das expor-tações era vista como um desafio em2002, quando, segundo os empresáriosentrevistados, não passavam de 3% daprodução. Não mais do que 30 empresas,e apenas as de maior porte, exportavamesporadicamente. Embora não haja in-formação suficiente, há indícios de am-pliação das vendas ao mercado externo,especialmente para países da América La-tina.13 A outra iniciativa foi a realizaçãode entendimentos com a Prefeitura Mu-nicipal e uma fundação privada local, vi-sando à criação da Faculdade de NovaSerrana. O objetivo era preencher umaséria lacuna no sistema de ensino local, jáque não havia uma instituição de ensinosuperior no município.

Outra instituição que desempenhapapel importante no apoio às empre-sas locais é a Cooperativa de Crédito deNova Serrana (Credinova). Fundada em1997 por um grupo de empresários locais,evoluiu rapidamente e, em 2001, já con-tava com 606 associados. É consideradaatualmente a quarta maior cooperativa decrédito do Estado. Tem convênios comvários bancos, presta serviços bancáriosaos associados, e opera por meio de des-conto de cheques e títulos. Além disso,oferece apoio aos associados para par-ticipação em feiras e realização de cursose treinamentos.

8_ Contexto social,cultural e político

Constituída por grande número de pe-quenas empresas, a indústria de calçadosde Nova Serrana apresenta característi-cas positivas em termos de associativis-mo, solidariedade e papel de liderançaslocais, mas há pouca cooperação na esfe-ra produtiva14 e problemas decorrentesde deficiências do sistema educacionallocal e da imagem do produto. O associa-tivismo se revela na forte adesão das em-presas ao Sindinova e no grande númerode associados da Credinova (comentadoacima). No caso do Sindinova, em 2002

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13 Conforme informaçõesdivulgadas pela FIEMG,Projeto Cresce Minas, e peloInstituto Euvaldo Lodi.14 Ver seção seguinte, sobre acaracterização das empresas.

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havia 368 empresas sindicalizadas, de umtotal estimado, à época, de 854 empresas,entre as quais cerca de dez por centoeram microempresas informais fabrican-tes de tênis falsificados. Portanto, apro-ximadamente metade das empresas for-mais era sindicalizada. Isso resultou nãosó do reconhecimento de lideranças lo-cais que dirigiam o sindicato como tam-bém de um meticuloso trabalho políticodesenvolvido pela própria instituição, quecontratou um profissional com ampla ex-periência na área e encarregou-o de visi-tar empresas e obter adesões.

O espírito de solidariedade, porsua vez, manifesta-se por meio de práti-cas comuns em aglomerações como a deNova Serrana: empréstimos de máqui-nas, material, etc., mesmo quando se tratade abertura de novas empresas, e sobre-tudo em situações emergenciais. Dois ca-sos parecem ter significado especial nacultura da cidade: o do incêndio que des-truiu a fábrica de uma empresa local (Cal-çados Adam), motivando a solidariedadede outros empresários, que “se juntarampara ajudar”, emprestando máquinas ematérias-primas.15 Segundo Crocco et al.(2001, p. 358), em uma semana, a empre-sa voltou a produzir. O outro caso foium golpe aplicado nos fabricantes domunicípio por uma rede varejista de Be-lo Horizonte, que, após construir rela-

ções de confiança com os produtores,acumulou débitos e desapareceu, que-brando algumas pequenas empresas lo-cais que tiveram que ser socorridas parareiniciar as atividades.

Entretanto, apesar do associativis-mo e do espírito de solidariedade, sãoainda fracas as relações de cooperaçãoentre fabricantes de tênis na esfera pro-dutiva. Prevalece o espírito de competi-ção na disputa por mercados com basena diferenciação e no desenvolvimentode produtos próprios. Isso é bastante sau-dável do ponto de vista da evolução dosistema local de produção, mas limita aspossibilidades de esforços coletivos paraaprimoramento de processos, incorpora-ção de novas técnicas produtivas e geren-ciais, e busca por informações sobre mer-cados, tecnologias e novos produtos.

Para que haja maior cooperaçãoentre fabricantes e destes com as insti-tuições locais, especialmente as da esfe-ra política, é necessário um processode construção de confiança, o que vemsendo buscado pelo Sindinova em cola-boração com a Federação das Indústriasde Minas Gerais (Fiemg) e outras insti-tuições, por meio de um projeto de de-senvolvimento que:

1. reforça a identidade comum, crian-do uma logomarca;

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15 Conforme entrevistacom o presidente doSindinova, Júnior CésarSilva, em 24/4/2002.O mesmo evento foi relatadopor vários empresários locaisdurante as entrevistas.

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2. desenvolve ações estratégicas de-lineadas por um comitê gestorno qual participam representan-tes de poderes públicos, institui-ções de apoio, universidades ecentros de pesquisas, entidadesde fomento e empresas locais.16

Há também deficiências no siste-ma educacional e de formação profissio-nal, que se revelam na falta de trabalha-dores qualificados (um exemplo muitocitado nas entrevistas é o da falta de pes-pontadeiras, como já comentado), nacarência de profissionais especializados(principalmente modelistas e designers), esobretudo em deficiências de capacita-ção gerencial e operacional. Os própriosempresários reconhecem a necessidadede “cursos para melhorar o conhecimentodos empresários sobre o setor de calça-dos”. As facilidades que o próprio ambien-te oferece para iniciar uma nova empresa,muitas vezes com ajuda das empresasexistentes, e o fato de que a maioria dosnovos empresários é oriunda das linhasde produção das empresas locais expli-cam, em grande parte, as dificuldades nagestão das novas empresas.

Ligado a este último fenômeno,há também um problema de imagem quetem a ver com a cultura local sobre a cria-ção de empresas. Segundo um dos entre-

vistados, para iniciar uma nova fábrica, ébastante comum que a pessoa conte com“um galpão emprestado, máquinas quevieram de outra empresa”, e que comece“com pequena produção (cerca de 100pares/dia) e vai investindo os lucros emnovas máquinas”. Assim, ele “tem doiscaminhos: ganhar dinheiro rápido ou fi-car no mercado”. Isso significa entrar nomercado pela informalidade e, de acordocom esse entrevistado: “continuar na in-formalidade, produzindo tênis falsifica-dos, ganhar dinheiro e sair, ou deixar ainformalidade e a falsificação para man-ter-se no mercado”. Esse problema já foibastante minorado, mas ainda persistee prejudica a imagem da indústria decalçados de Nova Serrana.

9_ Caracterização das empresasForam realizadas visitas e entrevistas em12 empresas, das quais três “grandes”,que empregam entre 90 e 110 pessoas eproduzem entre 1.000 e 1.600 pares/dia;três “médias”, com 30 a 60 empregados eprodução entre 500 e 1.000 pares/dia, e 6micro/pequenas, com menos de 30 em-pregados e produção de menos de 1.000pares/dia.17 Duas foram fundadas na dé-cada de 1980, e as demais entre 1990 e1999. A maior parte produz tênis, mas

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16 Conforme exposição dopresidente do Sindinova,Júnior César Silva, no eventoDesenvolvimento Econômicoe a Micro e Pequena Empresa,Programa de EstudosAvançados para LíderesPúblicos. Londrina, PR, 5 e 6de fevereiro de 2004. Vertambém a esse respeito, aexcelente dissertação demestrado de Souza (2004).17 Optou-se por umaclassificação por tamanho dasempresas visitadas que levasseem conta as especificidades douniverso local, dado pelasinformações da RAIS. Porisso, as designações como“grandes” e “médias”empresas estão entre aspas.Os autores reconhecem que,conforme observado por umdos pareceristas da Nova

Economia, esse procedimentolimita as possibilidades decomparação com outros póloscalçadistas. Entretanto, julgamque não há no País sistemasde produção comparáveis comNova Serrana em termos deespecialização produtiva,estratificação por tamanho deempresas e forma deorganização industrial.

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uma produz apenas sandálias e outra es-tava começando a diversificar a produ-ção, iniciando uma linha de calçados decouro. Quase todas vendem exclusiva-mente para o mercado interno; apenasuma exporta esporadicamente para paí-ses da América Latina.

Somente duas das maiores empre-sas têm alguma formalização de estrutu-ra interna para desenvolvimento de pro-dutos, entretanto ainda muito limitadas.A maioria contrata o desenvolvimentopor terceiros, em geral modelistas locais,das quais havia carência em 2002. Segun-do um dos entrevistados, havia cerca de10 modelistas na cidade, e outro afirmouque “falta muito modelista em Nova Ser-rana”, o que ele atribuía à “dificuldadepara se adaptar ao local”. Algumas em-presas se unem para contratar modelistae lançam o mesmo tipo de produto. Duasdas empresas menores usam o sistemaCAD do CDE.

Entretanto, “por desenvolvimen-to de produto”, entenda-se adaptação demodelos existentes no mercado, em geralimportados. Um dos entrevistados decla-rou que a prática usual é a cópia. Em ge-ral, segundo ele, a empresa compra umtênis de marca famosa e “corta no meiopara ver como é montado”.

As formas de comercialização dosprodutos e as estratégias de diferenciação

são ainda muito incipientes. Com exce-ção de duas das maiores empresas, quevendem para grandes varejistas ou paralojistas, possuem marca própria e dãoatenção à qualidade; as demais não têmcanais próprios de comercialização, ven-dem por meio de representantes ou diretona fábrica, a maior parte para os chama-dos “marreteiros”, e competem primor-dialmente via preços, ficando a qualidadeem segundo plano.

As relações de cooperação produ-tiva entre as empresas são muito limita-das, em geral envolvendo “só as que seconhecem” ou “amigos que não são con-correntes”. É comum, porém, a práticade empréstimos de máquinas e matéri-as-primas, assim como a formação de pe-quenos grupos de empresas para a reali-zação de algumas operações de compra,contratação de modelista, negociação defretes, realização de cursos, participaçãoem feiras. São também comuns as visi-tas para “ver máquinas novas” e a trocade idéias e de informações. Apenas noâmbito do CDE, no entanto, pode-se di-zer que há cooperação de fato entre asempresas locais.

As interações das empresas locaiscom seus fornecedores são dificultadaspelo fato de que boa parte desses fornece-dores não é de Nova Serrana e até mesmodo Estado de MG, como já foi discutido

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acima. Há contatos com fornecedores pa-ra discutir, por exemplo, cores, utilizaçãode novos tipos de material, e com repre-sentantes e lojistas para recolher suges-tões quanto a desenvolvimento de pro-dutos. Entretanto, pelas características daorganização da indústria local, é a intera-ção com os fabricantes de matrizes e comas empresas especializadas na injeção desolados que se revela de importância es-tratégica. Não só porque envolve a prote-ção de conhecimentos sobre novos tipose designs de solado, como também porqueé preciso estabelecer relação de confian-ça entre as partes, de modo a evitar quehaja misturas inadequadas de matérias-primas e atrasos na injeção dos solados, oque faria parar a linha de produção de tê-nis. Quase todas as empresas ressaltaramser essa a forma de interação a que dãomais importância.

Apesar das limitações das empre-sas quanto a desenvolvimento de novosprodutos, a introdução de inovações deproduto ou de processo é uma preocu-pação constante das empresas. Emboradeclarem sem peias que a cópia pura esimples é a prática mais usual, muitasafirmam também que buscam informa-ções sobre produtos e processos em váriasfontes, entre as quais: fornecedores de má-quinas, visitas a feiras (inclusive no exte-

rior), publicações especializadas (catálogos,revistas), sugestões de representantes e lo-jistas, visitas a shopping centers e aindacom os próprios modelistas contratados.

Quanto à política da qualidade, amaior parte da empresas realiza testes daqualidade dos produtos, seja internamen-te (duas das maiores), seja nas instalaçõesdo laboratório de testes físicos do CDE(9 das 10 empresas restantes). Uma dasempresas grandes declarou ter certifi-cação ISO 9002, e outra estava tentandoobtê-la. Portanto, a preocupação com aqualidade parece disseminada, a ponto deum dos entrevistados dizer que “qualidadejá não é diferencial, todo mundo tem queter”. Mas está limitada na maior parte dasempresas ao produto final; poucas empre-sas declararam ter uma política da quali-dade mais abrangente da cadeia produti-va ou um programa da Qualidade Total.

Por fim, praticamente todas as em-presas têm dificuldades quanto a finan-ciamento. Investimentos são financiadoscom recursos próprios e, em poucos ca-sos, com crédito de fornecedor de má-quinas. As queixas são generalizadas quan-to a juros muito elevados, exigências degarantias muito altas, burocracia, etc. Nocapital de giro, os recursos próprios sãocomplementados com descontos bancá-rios e pequenos empréstimos.

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10_ ConclusõesEste artigo mostra que a indústria de cal-çados de Nova Serrana ocupa posiçãoinegavelmente destacada na economia daregião e, em particular, na produção detênis esportivos no Estado de Minas Ge-rais e no País. Sua evolução foi impulsio-nada com base na especialização nessaclasse de indústria, na adoção de formasespecíficas de organização industrial e deum papel ativo do sindicato patronal noapoio à indústria, particularmente após acriação de um centro tecnológico e deprestação de serviços às empresas. Osdesafios que se colocam ao desenvolvi-mento do sistema local de produção vêmsendo enfrentados por novas iniciativascoordenadas pelo sindicato, com apoio eparticipação de outras instituições.

Vários problemas, entretanto, per-sistem. Primeiro, permanece um númeroelevado de microempresas informais fa-bricantes de tênis falsificados. Embora aquantidade tenha sido bastante reduzidaem relação ao passado, continua sendoum problema que prejudica a imagem daindústria de calçados de Nova Serrana.Segundo, há notórias deficiências em ter-mos das chamadas capacitações técnicassuperiores, o que, por sua vez, reflete in-suficiências do sistema educacional e deformação profissional da região. Isso

implica dificuldades para as empresas en-gajarem-se em atividades de pesquisa edesenvolvimento de novos produtos, uti-lizarem material mais avançado, melho-rarem a qualidade total e, com isso, tor-narem-se mais capacitadas a diferenciar evalorizar o seu produto. Terceiro, os sis-temas de comercialização da produçãolocal tornam as empresas reféns da compe-tição via preço baixo; é preciso desenvol-ver formas de comercialização compatí-veis com a valorização do produto. Quar-to, embora haja elevado associativismo emanifestações de solidariedade, há poucacooperação em sentido amplo entre asempresas fabricantes de produtos finais.

Dado o grande número de micro epequenas empresas na estrutura produti-va local, a indústria de calçados de NovaSerrana constitui campo fértil para açõescoletivas sob algum regime de governan-ça que induza a cooperação entre empre-sas e destas com instituições de apoio,sistema educacional, centros de pesquisae setor público. Esses são alguns dospontos que podem ser alvos de políticaspúblicas e ações privadas, visando au-mentar e sustentar a capacidade de com-petição do sistema local de produção deNova Serrana.

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Referências bibliográficas

Os autores agradecem o apoio

financeiro do CNPq por meio

de auxílio pesquisa (Processos

466034/2000-8

e 478786/2003-4) e de bolsa

PIBIC para a estagiária

Ana Paula Munhoz Cerrón.

Agradecem também a dois

pareceristas anônimos por

comentários e sugestões que

permitiram aprimorar o artigo.

E-mail de contato dos autores:

[email protected]

[email protected]

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[email protected]