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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS Centro de Educação e Ciências Humanas Caixa Postal 676 - 13565-905 - São Carlos - SP http://www.cech.ufscar.br RELATÓRIO CIENTÍFICO - FAPESP Título: “Mídia e Ideologia reacionária: Uma análise discursiva da construção midiática de acontecimentos progressistas no Brasil contemporâneo” Bolsista: Bruno Ferreira de Lima ([email protected]) Orientador: Prof. Dr. Carlos Felix Piovezani Filho ([email protected]) Órgão Financiador: FAPESP Processo: 2014/05628-0 Vigência: 01/05/2014 a 30/04/2015 Relatório Científico Final, referente às atividades realizadas pela bolsista de Iniciação Científica no período de Outubro de 2014 a Maio de 2015. Prof. Dr. Carlos Félix Piovezani Filho Orientador do Projeto Bruno Ferreira de Lima Bolsista de Iniciação Científica

Relatorio Final

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analise do discurso

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOSCentro de Educao e Cincias HumanasCaixa Postal 676 - 13565-905 - So Carlos - SPhttp://www.cech.ufscar.br

RELATRIO CIENTFICO - FAPESP

Ttulo: Mdia e Ideologia reacionria: Uma anlise discursiva da construo miditica de acontecimentos progressistas no Brasil contemporneo Bolsista: Bruno Ferreira de Lima ([email protected]) Orientador: Prof. Dr. Carlos Felix Piovezani Filho ([email protected]) rgo Financiador: FAPESP Processo: 2014/05628-0 Vigncia: 01/05/2014 a 30/04/2015

Relatrio Cientfico Final, referente s atividades realizadas pela bolsista de Iniciao Cientfica no perodo de Outubro de 2014 a Maio de 2015.

Prof. Dr. Carlos Flix Piovezani FilhoOrientador do Projeto

Bruno Ferreira de LimaSo Carlos,Maio de 2015

Bolsista de Iniciao Cientfica

1. INTRODUO

Este relatrio final possui como objetivo descrever as atividades relativas ao Projeto de Pesquisa Mdia e Ideologia reacionria: Uma anlise discursiva da construo miditica de acontecimentos progressistas no Brasil contemporneo desenvolvidas pelo bolsista Bruno Ferreira de Lima no perodo de outubro de 2014 a maio de 2015, com vistas a cumprir nossos deveres perante a Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (doravante FAPESP), relativas ao processo 2014/05628-0. Aqui sero apresentadas a proposta de pesquisa, o resumo das atividades realizadas no perodo anterior e as etapas realizadas no perodo mencionado, tal como as concluses obtidas a partir das pesquisas e anlises realizadas.Alm desta introduo, o relatrio est segmentado em outras x sees, permitindo assim uma melhor visualizao de cada atividade realizada. Desta forma, na seo 2 retomaremos ao projeto que submetemos FAPESP, apresentando um resumo do projeto proposto, como a justificativa do projeto e seus os objetivos; na seo 3, discorreremos sobre as atividades realizadas no primeiro perodo, tal como a leitura e discusso da bibliografia, alm de fazermos um apontamento sobre a constituio do corpus colhido para nossa pesquisa; na seo 4 comeamos a apresentar as atividades realizadas neste segundo perodo, onde continuamos com a discusso de nossa bibliografia, fazendo mais alguns apontamentos sobre os aparelhos ideolgicos do estado (AIE) e a mdia;

2. RESUMO DO PROJETO PROPOSTO

2.1. INTRODUO E JUSTIFICATIVA

sabido que a condio humana compreende as constantes tentativas daqueles que falam para fazer com que seus interlocutores se identifiquem s suas posies. Ao menos, desde a Grcia Antiga, o homem utiliza-se sistematicamente de sua habilidade de falar para tentar manter consigo os partidrios de suas ideias e convencer os indiferentes e os adversrios de seus pontos de vista. Com o surgimento da democracia e seu recrudescimento na Antiguidade Clssica, tornou-se cada vez maior e relevante o papel desempenhado pela fala pblica nas assembleias, em que os cidados-oradores defendiam e sustentavam suas posies e interesses, em tese visando ao bem comum. No pouco provvel que os detratores do regime grego tenham evocado poca os prejuzos que ele traria sociedade, sob a forma de uma alegada inocuidade, de supostas ameaas s conquistas j adquiridas e dos pretensos efeitos contrrios e perversos que seriam provocados pelas mudanas polticas. Com efeito, as acusaes dirigidas aos oradores gregos, em geral, e aos sofistas, em particular, cuja nfase faz com que cheguem ainda hoje aos nossos ouvidos, parecem ser uma espcie dessa reao. O que lhes frequentemente atribudo o estigma de manipuladores que, sem compromisso algum com a verdade e com o bem da sociedade de que fazem parte, apenas buscavam sobrepujar os adversrios em debates pblicos mediante o uso da eloquncia e de tcnicas retricas.Dito isso, ocorre-nos a seguinte questo: qual seria na sociedade brasileira de nossos dias o campo do qual provm de modo privilegiado os discursos que reagem aos fatos e dizeres que propem polticas de justia social e de igualdade de condies de vida? Na esteira de outros pensadores, entre os quais se encontra a proposta de Payer (2005), cremos que a mdia goza de poder quase hegemnico no desempenho dessa sua funo primordial na contemporaneidade. A mdia passou a usufruir um estatuto fundamental em nossos tempos, na medida em que se tornou um espao privilegiado de produo e de circulao de discursos e, por extenso, de formao de opinies, que efetivamente so posicionamentos ideolgicos.Assim, nosso trabalho pautou-se em identificar e interpretar a ocorrncia e a reiterao de alguns procedimentos discursivos na materializao de ideologias reacionrias produzidas e/ou reproduzidas por grandes veculos da mdia brasileira, quando da emergncia de recentes e relevantes fatos e fenmenos com potencial transformador (real e/ou imaginrio) na sociedade brasileira contempornea. Fundamentados na Anlise do Discurso de linha francesa, derivada do pensamento de Michel Pcheux, foram analisados a construo dos efeitos de inocuidade, ameaa, perversidade e derrocada fatal, caractersticos da retrica reacionria[footnoteRef:1] (Hirschman, 1991; e Angenot, 2011), eventualmente presentes nos discursos da mdia brasileira acerca dos seguintes acontecimentos: os programas de governo Minha Casa, Minha Vida, institudo em maro de 2009, e Mais Mdicos, criado em julho de 2013, e ainda as manifestaes de rua ocorridas em junho de 2013. [1: Tais caractersticas j foram apresentadas em nosso projeto, no relatrio anterior e esto explicitadas na seo 3 deste relatrio final. ]

2.2. OBJETIVOS

Como j explicitamos na seo anterior, nesta nossa pesquisa temos como objetivo geral analisar a construo dos efeitos de inocuidade, ameaa, perversidade e derrocada fatal, caractersticos da retrica reacionria eventualmente presentes nos discursos da mdia brasileira. Para possibilitar o cumprimento deste objetivo geral, estabelecemos outros trs objetivos especficos, tal como listados em nosso projeto e reproduzidos abaixo:

a) Buscar compreender o funcionamento de certas caractersticas discursivas da grande mdia brasileira, quando seus veculos tratam de fatos e fenmenos sociais com potencial efetivo e/ou imaginrio de transformao social.b) Identificar e interpretar os argumentos reacionrios presentes nos textos do portal online e do jornal Estado de So Paulo e do portal online e da revista Veja que trataram dos programas do governo federal Minha Casa, Minha Vida e Mais Mdicos e das manifestaes de rua ocorridas no Brasil no ms de junho de 2013.c) Analisar a produo dos efeitos de sentido desses textos, a partir da identificao das posies de seus enunciadores, das formaes discursivas de que provm e das condies de produo nas quais eles foram formulados, considerando ainda os recursos lingusticos, enunciativos e discursivos de que a mdia se vale para materializar a reao e para produzir efeitos de legitimidade e de credibilidade de seu prprio dizer.

3. ATIVIDADES REALIZADAS - PRIMEIRO PERODO

3.1. LEITURA E DISCUSSO DA BIBLIOGRAFIA

Muitas foram as reaes aos possveis progressos conquistados pelo fazer humano na histria. Tais relaes entre a ao progressista e a reao conservadora ocorreram e tornaram-se objeto de reflexo de modo capital por volta de vinte e dois sculos mais tarde, quando do advento e consolidao do Iluminismo. o que Jean Starobinki (2002) examina no captulo Reao e progresso, de sua obra Ao e Reao. Segundo o autor, contrapondo-se a uma concepo naturalmente evolutiva da histria, Marx e os marxistas deram considervel ateno reao poltica diante de conquistas histricas dos desfavorecidos. A reao conservadora estaria frequente e mais facilmente identificada no polo ideolgico adversrio, mas no estaria ausente do outro lado, junto a alguns daqueles que pareceriam estar sob uma mesma filiao poltica: o pensamento marxista distinguir, por um lado, as ideologias intrinsecamente reacionrias em seu contedo explcito, ou seja, aquelas que, extrema direita, recorrem a modelos do passado, e, por outro lado, as ideologias que desempenham um papel funcionalmente reacionrio, ou seja, que, mesmo esquerda, fazem o jogo da reao, em razo das foras nas circunstncias dadas. (Starobinski, 2002, p. 329). Diante desse cenrio, ocorre-nos a seguinte questo: qual seria na sociedade brasileira de nossos dias o campo do qual provm de modo privilegiado os discursos que reagem aos fatos e dizeres que propem polticas de justia social e de igualdade de condies de vida? Visando responder esta indagao, durante as anlises dos discursos miditicos, focalizaremos nas propriedades dos enunciados reacionrios, buscando apreender e interpretar os argumentos concebidos por Hirschman (1991) e Angenot (2011) e mencionados acima: a inocuidade, a ameaa, a perversidade e a derrocada fatal. Produziremos interpretaes discursivas desses argumentos, a partir de anlises das sequncias discursivas que sero empreendidas com base num j consolidado procedimento em AD, a saber, o estabelecimento de relaes entre os enunciados, sob a forma de cadeias parafrsticas no interior das formaes discursivas (doravante FDs) e nas relaes que elas instauram entre si, articulando-as s condies de produo do discurso e s posies de seus enunciadores. Pelo fato de as FDs serem instncias que determinam o dizer e que se configuram como matrizes da produo do sentido, assim procedendo, ser possvel identificar na disperso dos textos miditicos as regularidades discursivas em que se materializam os posicionamentos ideolgicos dos veculos da mdia analisados e, por conseguinte, apreender o que esses discursos determinam que se pode e se deve dizer e os sentidos que eles produzem. Em suma, a polissemia constitutiva da linguagem passvel de ser interpretada a partir da identificao das parfrases empreendidas pelo discurso em meio a relaes sociais de fora e de sentido (Orlandi, 2003). Ademais, com vistas a alcanar nosso terceiro objetivo especfico, buscaremos identificar os recursos lingusticos, enunciativos e discursivos empregados nos textos sob anlise, tais como as opes lexicais, a referenciao, as modalizaes lingusticas, as modalidades enunciativas e a retomada de j-ditos do interdiscurso, a partir da metodologia da cadeia parafrstica[footnoteRef:2]. [2: Detalhada com todas suas especificidades mais adiante nesta seo, na subseo Princpios e Procedimentos, cf. 3.1.1.a.iv. ]

Mas antes, consideramos pertinente apresentar brevemente a disciplina, tal como seus pilares constitutivos, alm dos demais aportes tericos utilizados para esta pesquisa.

3.1.1 DETALHAMENTO DOS PROGRESSOS REALIZADOS

3.1.1.a. A ANLISE DO DISCURSO Ao sermos iniciados disciplina, como graduandos, uma srie de textos e demais manuais introdutrios so apresentados com a premissa: a anlise do discurso, tal como formulada pela linha francesa, possui uma dupla fundamentao na lngua e na histria. Tambm nos informado que a Anlise do Discurso estabelece a unio de trs continentes (se atendo metfora althusseriana): a Lingustica, o Materialismo Histrico e a Psicanlise. Por se tratarem de textos introdutrios, pouco nos informado sobre a forma como estes pilares tericos se relacionam com a teoria, de forma que consideramos pertinente iniciar nosso trajeto com uma breve explanao sobre como cada um destes campos se constituem na Anlise do Discurso, buscando evidenciar como estes influenciaram (e ainda influenciam) a rea, antes de nos atermos aos demais tpicos da AD. Subscrevemos os tpicos que julgamos cruciais para a Anlise do Discurso e iremos expor no presente relatrio na seguinte ordem: falaremos das i) influncias tericas da disciplina, tal como foi anteriormente citado; para na sequncia abordarmos o ii) histrico de formao da disciplina, seus iii) Postulados tericos e seus iv) procedimentos metodolgicos e por fim, iremos nos debruar sobre as v) peculiaridades do discurso poltico.

i) AS INFLUNCIAS TERICAS DA DISCIPLINA Tal como citado na seo acima, a Anlise do Discurso surge na dcada de 60 como um campo interdisciplinar, possuindo uma dupla fundamentao na lngua e na histria e alando o discurso poltico como objeto privilegiado de estudo[footnoteRef:3] (cf. seo 3.1.1.a.ii). [3: Apenas a partir da dcada de 80, a disciplina passa a se debruar sobre outros discursos, tais como o publicitrio e o miditico, por exemplo. ]

Da aliana entre lingustica e histria, eclodia a interdisciplinaridade que se configuraria atravs da trplice aliana: lingustica, por meio de uma releitura pecheutiana (com as devidas crticas) do estruturalismo proposto por Ferdinand de Saussure em seu Curso de Lingustica Geral; psicanlise, atravs da releitura que Lacan fez da obra de Freud; e materialismo histrico, retomado pela releitura de Althusser sobre a obra de Karl Marx. Como nos mostra Piovezani, a Anlise do Discurso: tratava-se de uma perspectiva de pesquisa que surgia na Frana dos anos de 1960, no seio do movimento estruturalista, sob a forma de uma sntese entre certa lingustica e certa psicanlise, sob a gide de certo materialismo histrico uma mistura to ao gosto daquele contexto francs (2009, p. 162). A lingustica (estruturalista) constitui-se pela afirmao da no-transparncia da linguagem, tendo como objeto a lngua, com esta tendo sua ordem prpria. O materialismo histrico, por sua vez, contribui com a AD por sua caracterstica de considerar a histria, tambm no-transparente na produo de sentidos, trabalhando com a forma material (e no abstrata), sendo assim, lingustico-histrica. Por fim, a psicanlise colabora com o deslocamento da noo de homem para a noo de sujeito, este se constituindo na relao com o simblico (ORLANDI, 1999). A propsito da noo de sujeito para a AD, podemos considerar que a mesma possui uma dupla fundamentao na psicanlise e no materialismo histrico. A influncia da psicanlise parte do sujeito afetado pela ferida narcsica[footnoteRef:4], enquanto o materialismo histrico apresenta o sujeito assujeitado, materialmente constitudo pela linguagem e interpelado pela ideologia. Assim, O sujeito sempre e, ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito do desejo inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados pela linguagem antes de qualquer cogitao (Henry, 1992, p.188). Em outras palavras, o sujeito do discurso se aloca entre o sujeito da ideologia, a partir da noo de assujeitamento, e o sujeito da psicanlise, a partir da noo de inconsciente, onde ambos so constitudos e revestidos materialmente pela linguagem. Apesar disso, importante ressaltar que ainda que interpelado pela ideologia, o sujeito ainda possui um determinado grau de liberdade, estabelecendo uma relao dialtica com seu discurso. Nem a hipertrofia do sujeito cheio de vontades e intenes, nem o total assujeitamento e a determinao de mo nica. O sujeito assim como afetado pela formao discursiva onde se inscreve, tambm a afeta e determina em seu dizer (Indursky, 2005, p. 19). [4: Segundo Sigmund Freud, no transcorrer da modernidade nossas concepes humanas foram abaladas trs vezes, constituindo trs feridas que atingiram nosso narcisismo. Com a descoberta de Coprnico de que terra no estava no centro do Universo, descobrimos tambm que no somos o centro do universo, acarretando na primeira ferida; com a constatao de Darwin, de que o homem descente de um primata, provando que somos apenas um elo no ciclo da evoluo, tambm descobrimos que no somos seres especiais criados por Deus, caracterizando a segunda ferida; a terceira ferida surge com Freud e sua descoberta de que a conscincia apenas uma nfima e fraca parte de toda a vida psquica. Descobrimos que, nos termos do prprio Freud, o sujeito no mais senhor em sua prpria casa (FREUD [1917] 1944, p.295; traduo nossa). Por ferida narcsica referimo-nos a esta terceira ferida, a ferida da inconscincia do sujeito. ]

Como podemos observar, a Anlise do Discurso se posiciona como uma disciplina de entremeio, onde outros campos das cincias humanas (como a Lingustica, a Psicanlise e o Materialismo Histrico) afetam e so afetados por este saber. No item abaixo, observemos as influncias de cada uma dessas disciplinas de forma um pouco mais detalhada:

ESTRUTURALISMO SAUSSURIANO LIDO POR PCHEUX

A AD pressupe a Lingustica e pressupondo a Lingustica que ganha especificidade em relao s metodologias de tratamento da linguagem nas cincias humanas (ORLANDI, 1986, p.110).

Os primeiros eventos que acarretaram lingustica, como cincia da linguagem ou cincia que trata a lngua como objeto de estudo, ocorreram no sculo XIX, com o surgimento da Filologia Comparativa (tambm conhecida como Gramtica Comparada). Estes estudos, em geral, analisavam a lngua por uma perspectiva diacrnica, isto , estudando um elemento e sua respectiva mudana ao longo do tempo, aspecto que corroborou com a alcunha de lingustica histrica. Com Saussure, a lingustica modifica seu paradigma, deixando de olhar para a lngua em perspectiva diacrnica, instituindo uma lingustica sincrnica, analisando a lngua em seu aspecto esttico em um determinado estado da lngua. Saussure ([1916] 2006) fazia esta distino da seguinte maneira: sincrnico tudo quanto se relacione com o aspecto esttico da nossa cincia, diacrnico tudo que diz respeito s evolues. Do mesmo modo, sincronia e diacronia designaro respectivamente um estado de lngua e uma fase de evoluo (p. 96). Alm disso, o mestre genebrino efetuou uma separao no conjunto da linguagem em langue (lngua) caracterizando a parte social e a parole (fala) caracterizando o ato individual. A langue postulada por Saussure, em uma sucinta explicao, se constitui como um sistema psquico depositado no crebro dos indivduos (seria como um banco de dados regido pelo uso social). Na prtica, nada impede o falante de escolher seus vocbulos e criar neologismos ao seu bel prazer, entretanto, essas palavras no se transformaro em signo lingustico a menos que seja aceita pelo coletivo. Uma vez que o signo aceito pelo coletivo, este se estabiliza na langue, sistema no qual o falante se baseia ao se comunicar. Esta exteriorizao dos signos denominada de fala (parole). Tal fenmeno, como todos os outros descritos pelo modelo sistmico de Saussure no Curso de Lingustica Geral, de carter relacional[footnoteRef:5]. [5: Segundo Piaget (1979) dentre os poucos pontos no qual todos estruturalistas estavam de acordo, est o carter de totalidade prprio s estruturas. Assim, consensual que uma estrutura formada por elementos, porm, a forma como estes elementos so vistos nas estruturas divergem: h o ponto de vista da associao atomstica, no qual os elementos so observados isoladamente na estrutura; a posio das totalidades emergentes, onde o todo observado per si (como algo alm de uma simples soma de elementos) e, por fim, a posio das estruturas operatrias (adotada no Curso de Lingustica Geral) no qual os elementos no so considerados isoladamente, nem como um todo emergente, mas sim, como elementos que se relacionam entre si.]

Esta mudana de paradigma nos estudos lingusticos, que deixava de analisar a linguagem a partir da diacronia observando a lngua como um sistema sincrnico, foi chamada de corte epistemolgico da lingustica, sendo a mudana de rumo que alou Saussure como precursor da lingustica moderna, com seu Curso de Lingustica Geral[footnoteRef:6]. Segundo Benveniste (1995) todos os linguistas que o sucederam lhe devem algo. [6: A obra, apesar de no ser de sua autoria, e sim de Charles Bally e Albert Sechehaye que editaram e copilaram as informaes das aulas, creditada (no sem polmica) Saussure. H quem advogue que a essncia do pensamento do mestre genebrino foi deturpada, ficando relegada apenas a seus manuscritos. Simon Bouquet (2009), por exemplo, considera o CLG como uma representao de um pseudo-Saussure, deslegitimando as ideias editadas na obra. ]

No nos cabe aqui explicitar a teoria de Saussure em seus pormenores, entretanto, nos parece de suma importncia apresentar os pontos de concatenao entre a anlise do discurso de Pcheux e o estruturalismo de Saussure, mesmo porque sabemos que Pcheux leu e estudou Saussure. Alis, leu no s o CLG, como tambm os manuscritos (Gadet & Hak,1990), sendo influenciado por seus postulados, principalmente na primeira fase da disciplina, onde foi erguida a maquinaria discursiva (ADD 69): Com respeito concepo geral de lngua: na passagem do interesse pela funo ao interesse pelo funcionamento das lnguas, ele tira proveito do fundamento sobre o qual repousa a lingustica moderna a partir de Saussure: a lngua um sistema; Se verdade que ele constata, como os sociolinguistas, que a oposio lngua/fala no poderia se incumbir da problemtica do discurso, no pela diluio da oposio que ele vai resolver o problema, mas por meio de uma reflexo sobre o polo da oposio menos desenvolvido por Saussure: a fala; (PLON et al, 2010, p. 42) Pcheux afirmava que para se constituir estudos discursivos era preciso considerar a trplice tenso entre historicidade, interdiscursividade e a sistematicidade da lngua, esta ltima herana inegvel do pensamento de Saussure. Ademais, para a construo da oposio Lngua/Discurso foi necessrio, com as devidas ressalvas, pressupor a dicotomia saussuriana de Lngua/Fala. Pcheux sustenta que os postulados de Saussure no foram devidamente respeitados e desenvolvidos pelas correntes lingusticas em voga no sculo XX e, de forma isomorfa a Benveniste, atribui a Saussure a instaurao dos fundamentos da Lingustica e do corte epistemolgico, embora, no sem fazerem as devidas ressalvas e crticas, tal como nos mostra Piovezani (2008): Ambos reivindicam o legado de Saussure e situam-se mais ou menos na ascendncia de seu pensamento, mas advogam tambm a necessidade e a capacidade de ultrapass-lo. Por um lado, conferem a Saussure a emergncia da autonomia de um objeto e o advento da positividade cientfica de uma teoria e de um mtodo; por outro, reclamam a necessidade de se focalizar aquilo que pretensamente teria sido excludo das consideraes saussurianas, como a subjetividade na linguagem e a ordem do discurso. (p.8) O linguista suo tambm foi criticado pela forma como fundou o corte saussuriano, optando pela langue, em detrimento da parole, como nos mostra (Haroche; Henry; Pcheux, 1971), levando excluso das variedades lingusticas, as unidades transfrsticas, as condies de produo, a histria e o sujeito, da anlise lingustica. Dessa forma, a relao da AD com o pensamento saussuriano se d a partir de uma continuidade reativa e legitimadora e de uma vontade de recusa e ultrapassagem, na forma de uma transposio alm do domnio estrito da lngua e de uma extenso em direo histria e ao sujeito do discurso (PIOVEZANI, 2008, p. 16). Apesar do pensamento de Pcheux se coadunar com o de Saussure em muitos aspectos, tal como foi anteriormente dito, a AD impe uma mudana de terreno para se analisar a lngua levando em conta a ideologia e o sujeito. Tal mudana (...) Nos parece determinada por duas necessidades: lutar contra o empirismo (se desembaraar da problemtica subjetivista centrada sobre o indivduo) e contra o formalismo (no confundir a lngua como objeto da lingustica com o campo da linguagem). Isso implica, a ttulo de contraparte positiva, a introduo de novos objetos, descobertos pelas relaes ao novo terreno terico que determina as formas e os contedos da mudana: bem entendido, por uma larga parte, os objetos, e os termos que designam, no so novos aos olhos do provincialismo terico que caracteriza cada uma das cincias humanas no tocante s suas vizinhas, e sobretudo tendo em conta o recalcamento-disfarado que se exerce por intermdio dos conceitos do materialismo histrico. (PCHEUX, 1971, p. 14).

Segundo Courtine (1999, p.9) a AD pretendeu ser o momento inaugural de uma revoluo epistemolgica, visto que a lingustica pressupunha a emergncia sbita, no trabalho de Saussure, de uma cincia da lngua. Efetuando uma leitura onde Pcheux mantm, alm da ruptura, uma continuidade com o pensamento saussuriano, podemos afirmar que se a lngua constituda de langue e parole (tal como exposto por Saussure), sendo a langue algo social, constituda por meio da conveno, e a parole sendo da ordem do individual, o discurso se posicionaria no meio, sendo o elemento scio-histrico da lngua, negligenciado at ento pelos estudos estruturalistas. Parece-nos evidente que a AD, em sua totalidade, possui muito mais pontos de conjuno do que disjuno com Saussure. Entretanto, no muda o fato de que, para se realizar uma anlise discursiva, apenas o sistema saussuriano no seria o suficiente, o que propiciou a escolha da AD de no s ampliar a concepo de sistema de Saussure, como tambm buscar aporte em outros campos. No tpico seguinte desta seo, tentaremos ilustrar de forma sucinta e breve a influncia da psicanlise, a partir da releitura de Lacan, sobre a Anlise do Discurso.

A PSICANLISE (RE) LIDA POR LACAN NA AD

O pensamento estruturalista de Saussure, divulgado pelo Cours de linguistique gnrale (1916) no foi absorvido de imediato, se popularizando apenas em meados dos anos 50, na terceira recepo do Curso[footnoteRef:7]. No decorrer desta dcada, o estruturalismo se popularizou, passando a influenciar diversas reas no mbito das cincias humanas, entre elas, a psicanlise. [7: A Historiografia lingustica divide a recepo do pensamento saussuriano em quatro momentos: o 1 ocorreu com a publicao do curso, o 2 ocorre durante o perodo entre as duas guerras, sendo comentado por linguistas como Brunot, Damourette, Pichon e Gillaume, o 3 momento ocorre nos anos 50, proporcionando o surgimento do estruturalismo e o 4 com a descoberta e publicao dos manuscritos de Saussure. No entraremos em seus pormenores aqui, destacando apenas que uma exposio mais detalhada das quatro diferentes fases de recepo do pensamento de Saussure pode ser encontrada em Puech (2005). ]

A influncia do pensamento freudiano na anlise do discurso se deu atravs da releitura de Lacan das obras de Freud acerca do inconsciente, contribuindo para a implantao da noo de sujeito na teoria de Pcheux. Tal noo, junto com o aporte de Althusser, ser pertinente para a AD na articulao terica a respeito do assujeitamento do sujeito, uma vez que nessa noo da psicanlise o sujeito fundado pelo desconhecimento (VILAR DE MELO, 2005), de forma que o sujeito pode expressar algo que para ele consciente, sem perceber que expresso de seu inconsciente[footnoteRef:8]. [8: Este conceito ser retomado quando falarmos da noo de esquecimento, em especial, do esquecimento n 2, o esquecimento enunciativo, que nos parece ter sido influenciado por este pressuposto. (cf. seo 3.1.1.a.iv) ]

Freud j concebia a noo de inconsciente na linguagem antes mesmo do apogeu da lingustica. Entretanto, antes de darmos prosseguimento, preciso delimitar o que seria o inconsciente na concepo freudiana. Comeando pelo o que o inconsciente no .Lacan (1966) afirma que O inconsciente no uma espcie definida na realidade psquica pelo crculo do que no tem o atributo (ou a virtude) da conscincia (LACAN, p. 830). Sabendo o que o inconsciente no e se atendo noo da AD de memria discursiva[footnoteRef:9] nos soa familiar a definio lacaniana de que O inconsciente no perder a memria; no se lembrar do que se sabe (idem, 2001, p. 333) [9: Cf. 3.1.1.a.iv]

Para Lacan (apud. CASTRO, 2009), o inconsciente tramado, encadeado e estruturado como uma linguagem, ao ponto que a frase o inconsciente estruturado como uma linguagem se tornou frequente em seus seminrios e congressos. Entretanto, para ele, tal mxima se caracteriza como um pleonasmo, uma vez que a lngua em si j uma estrutura. A noo de inconsciente teve influncia em diversas outras correntes da lingustica. Por exemplo, em determinadas leituras, possvel estabelecer um paralelo entre o pensamento de Freud e a teoria dos atos de fala de Austin (1975), pois Freud afirma que o ser humano: ...encontra na linguagem um equivalente do ato, equivalente graas ao qual o afeto pode ser redirecionado quase que da mesma forma. Em outros casos, so as prprias palavras que constituem em o reflexo adequado, por exemplo, as queixas, a revelao de um segredo que causa dor (FREUD, 1974, p. 19-20). Freud se preocupava com a linguagem, ainda que em uma perspectiva pautada sob o psiquismo, e tinha sua prpria teoria a respeito da relao consciente/linguagem. Em sua obra Projeto de uma psicologia (1895), Freud afirma que a linguagem desempenha uma dupla funo em relao com a conscincia, tornando possvel a conscincia que podemos chamar de mediata, isto , a rememorao. Nesta obra, ele sustentava que: a associao de uma representao com as associaes lingusticas que permitiria a sua rememorao; portanto, antes da constituio das representaes-palavra, s haveria a possibilidade de uma conscincia imediata, ou seja, resultante diretamente das propriedades dos estmulos perceptivos (CAROPRESO, 2007, p.1) Segundo (CAROPRESO, 2007), Freud d prosseguimento a esta ideia em suas obras seguintes, entretanto, ampliando seus postulados, formulando a hiptese de que a memria possuiria vrios nveis de registro, atravs de um processo denominado elaborao secundria em que um estmulo de origem externa, antes de se tornar consciente, passaria por uma srie de reorganizaes no nvel das relaes verbais. Dessa forma, a linguagem desempenharia tambm, em relao conscincia, a funo de organizar o campo perceptivo, o que implicaria que o mundo, tal como o percebemos, um mundo, de certa forma, construdo pela linguagem (idem, ibdem). Em uma entrevista, Lacan argumenta: Quando realiza uma anlise do inconsciente, a qualquer nvel, Freud sempre fez uma anlise do tipo lingustico. Freud havia inventado a nova lingustica, antes que esta nascesse. Ele no a conhecia e, portanto, no podia saber que fazia era lingustica, e a nica diferena entre a sua posio e a minha, se baseia no fato de que eu, abrindo um livro seu, em seguida posso dizer: isto , lingustica. Posso diz-lo porque a lingustica apareceu alguns anos depois da Psicanlise. Saussure a comeou pouco depois de Freud, na Interpretao dos sonhos, tivesse escrito um verdadeiro tratado de lingustica. (Lacan, apud LEITE, 1994, p. 35) Lacan deu continuidade ao pensamento de Freud, afirmando em As Formaes do Inconsciente (1958), entre outras obras, que aquilo que reprimido pelo sujeito emerge no discurso do Sujeito. Para analisar esses discursos, Lacan considerava de essencial importncia se ater aos mecanismos de metfora e sinonmia. A metfora um processo de seleo vertical - o qual implica a substituio das palavras na cadeia significante do discurso - um meio criativo que repe, comprime e cria novas palavras na cadeia em determinado momento no tempo, isto , em uma dimenso sincrnica[footnoteRef:10]. (Lacan, apud OLIVEIRA, 2012, p. 111) [10: Este conceito influenciou o surgimento de um mtodo de anlise da AD, a cadeia parafrstica (cf. seo 3.1.1.a.iv). ]

Enquanto que a sinonmia se caracteriza como um processo horizontal de combinao das palavras na cadeia significante, em que um significante desliza para outro, em uma dimenso diacrnica, uma cadeia de eventos sucessivos. (Idem, ibdem). ntida a influncia de Saussure nestes postulados lacanianos relativos linguagem. Os conceitos de metfora e sinonmia esto vinculados as noes expostas pelo Curso, a saber, as divises em sincrnica e diacronia. Entretanto, o que consideramos de maior influncia do pensamento de Lacan ao surgimento da AD a noo de Sujeito, que surge a partir da noo de inconsciente de Freud. O inconsciente expresso no discurso funda a noo de Sujeito, tal como o prprio Lacan afirma: Tambm o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar j est inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome prprio[footnoteRef:11] (1957, p. 498). Tal como na AD, o Sujeito para a psicanlise construdo socialmente. A propsito, para a AD, a trade inconscincia, linguagem e ideologia possui uma relao de interdependncia, onde todos esses elementos transpassam o sujeito. Considerando a pertinncia do tpico, evocamos o n borromeano[footnoteRef:12] abaixo, presente em FERREIRA (2010, p.21): [11: Podemos afirmar que a noo de sujeito nos postulados da Anlise do Discurso possui sua base neste postulado lacaniano, juntamente com as noes tericas do materialismo histrico de Althusser (a serem expostas no prximo tpico desta seo). ] [12: O n borromeano apesar de ter se popularizado com, no inveno de Jacques Lacan. O mesmo admite em sua obra O Seminrio, no livro 20, que o havia notado no braso da dinastia da famlia Borromeo. ]

Figura 1 : N borromeano simbolizando uma trplice aliana entre Inconsciente, Linguagem e Ideologia afetando o sujeito, presente em FERREIRA (2010, p.21) Dito tudo isso, nos evidente que, assim como encontramos pontos de unio entre os dois campos, fatalmente encontramos pontos de ciso, ao passo que nos pareceu mais vivel apresentar aqui apenas os conceitos, de forma um tanto quanto especulativa, que evidenciariam possveis pontos de concatenao entre os dois campos de saber. Feita esta exposio, em linhas gerais, da influncia da psicanlise na AD, no tpico seguinte iremos expor a contribuio do materialismo histrico relido por Althusser, alm de tentar evidenciar como os diferentes aportes se coadunam e se retroalimentam, constituindo a denominada trplice aliana da Anlise do Discurso.

O MATERIALISMO HISTRICO (RE) LIDO POR ALTHUSSER NA AD.

Tal com afirmamos nos tpicos anteriores, a AD pode ser considerada como uma disciplina de entremeio, sendo influenciada por campos vizinhos, entre eles, o marxismo althussereano. Segundo Gregolin (2004, p.113), a anlise do discurso proposta por Pcheux tem uma profunda relao com as teses althusserianas. Para evidenciar algumas pistas dessa relao estabelecida com Althusser nos postulados da AD, alm de Gregolin (2003), nos basearemos nos trabalhos de Figueira (2012), Mazire (2007), Maldidier (2003), entre outros. Maldidier (2003), a propsito, afirma: Althusser , para Michel Pcheux, aquele que faz brotar a fagulha terica, o que faz nascer os projetos de longo curso. A toda uma gerao, alis, que ele oferecia a possibilidade de pensar o marxismo fora de uma vulgata mecanicista (p.18). Louis Althusser, ao dar prosseguimento ao pensamento marxista, tambm foi influenciado pelos postulados de Ferdinand de Saussure e se filiou corrente estruturalista. Entre suas teses estava presente o anti-humanismo terico, que consistia em criticar a individualidade como sendo um produto da ideologia burguesa[footnoteRef:13]. As teses de Althusser tiveram distintos nveis de influncia sobre a teoria de Pcheux ao longo do tempo, passando por diversas transformaes. Para Maldidier (2003), essas transformaes na AD se devem ao fato de que, ao passo que Pcheux reafirmou algumas teses althusserianas, tambm abandonou outras proposies por problemas epistemolgicos que entravavam a teoria. [13: Pcheux & Gadet ([1973] 1998) consagraram uma apresentao inteira, a saber, H uma via para a lingustica fora do logicismo e do sociologismo, em um colquio, refletindo sobre a lingustica que vinha sendo feita na poca, alm de criticar ambas vertentes (logicismo e sociologismo) por serem adeptas ao humanismo terico. ]

No nos cabe neste relatrio detalhar todos os pormenores e as metamorfoses da disciplina sob a tica do pensamento de Althusser, entretanto, nos parece vivel mostrar, ainda que brevemente, as principais influncias na disciplina francesa do discurso[footnoteRef:14], mas antes disso, consideramos pertinente destacar algumas de suas posies. [14: Apesar de comumente denominarmos como linha francesa os estudos influenciados por M. Pcheux e seu grupo, pertinente ressaltar nosso conhecimento acerca da situao atual da AD na Frana. Sabemos que desde 1990, sob a rubrica de Anlise do Discurso esto as pesquisas que, em geral, esto desligadas da tradio construda por Pcheux e seu grupo, e geralmente prxima da Anlise do Discurso Interacional e a Anlise Crtica do Discurso (Paveau, Rosier, 2005). ]

Marx, ao se pronunciar a respeito de ideologia, possua uma viso totalmente disfrica a respeito da mesma, como perceptvel em sua obra A Ideologia Alem. Para o filsofo alemo, a caracterizao da ideologia era fruto de uma separao entre a produo de ideias e as condies sociais e histricas nas quais so produzidas. Segundo Chau (1980), para Marx a ideologia consistia de um sistema ordenado de ideias ou representaes e das normas e regras como algo separado e independente das condies materiais, visto que seus produtores os tericos, os Idelogos, os intelectuais no esto diretamente vinculados a produo material das condies de existncia. E, sem perceber, exprimem essa desvinculao ou separao atravs de suas ideias (p.65) Tal definio de ideologia, evidentemente, se restringia especificamente ideologia da classe dominante[footnoteRef:15]. Althusser, em sua obra Aparelhos Ideolgicos do Estado ([1970] 1985), ao dar prosseguimento ao pensamento de Karl Marx, afirma que para manter sua dominao, a classe dominante gera mecanismos para se perpetuar no poder, por meio das polticas de explorao e da reproduo das condies materiais. Esta perpetuao do poder pode ser legitimada atravs da fora, pela ao dos ARE - os Aparelhos Repressores do Estado entre eles, o governo, o exrcito, a polcia, os tribunais, etc., como pode se dar atravs dos AIE os Aparelhos Ideolgicos do Estado como a religio, a famlia, a poltica, etc., que intervm pacificamente atravs da ideologia. Sabendo dos constantes embates da desequilibrada luta de classes, os AIE, na literatura althusseriana, so os responsveis pela legitimao do sistema atual, atravs da dominao ideolgica. [15: Retomaremos ao conceito de ideologia de forma mais detalhada, cf. seo 3.1.1.a.iv]

Dessa forma, a ideologia tem por finalidade ocultar o real, gerando um sentimento conformista de que a vida como e nada pode ser feito para mud-la, com a classe dominante tecendo o objetivo amestrar a massa com suas ideias fazendo com que os homens creiam que tais ideias representam efetivamente a realidade, algo que, especialmente no caso dos argumentos reacionrios (que iremos expor ao longo da pesquisa), pode condicionar a opinio pblica sobre determinados acontecimentos. A propsito, parece-nos pertinente mencionar que no no campo das ideias que as ideologias existem. As ideologias possuem uma existncia material e nessa existncia material que devem ser estudadas, e no enquanto ideias (CHAU, 1980). A existncia da ideologia , portanto, material, porque as relaes vividas, nela representadas, envolvem a participao individual em determinadas prticas e rituais no interior de aparelhos ideolgicos concretos. Em outros termos, a ideologia se materializa nos atos concretos, assumindo com essa objetivao um carter moldador das aes (BRANDO, 2004, p.25) A ideologia tem como funo constituir indivduos em sujeitos. nesse processo que ocorre a sujeio, quando o sujeito se insere em prticas reguladas pelos aparelhos ideolgicos. Em cada ideologia o lugar do sujeito ocupado por entidades abstratas, Deus, a Humanidade, O Capital, a Nao, etc., as quais, embora especficas em cada uma, so perfeitamente equivalentes nos mecanismos da ideologia em geral (ALBUQUERQUE, 1983, p8). A ideologia sistematizada por Althusser enquanto prtica. Dessa forma, parece-nos bvio que o discurso, enquanto prtica social, tambm seja assim considerado (embora sua sistematizao, tal como a organizao de seu funcionamento, no tenha ocorrido de forma detalhada na obra do filsofo). Por meio destes pressupostos, aplicados AD, justificado a necessidade de uma anlise que no se limite aos elementos lingusticos per si, que acaba negligenciando a ideologia e consequentemente o posicionamento do sujeito, mas que tente depreender os sentidos obscuros intrnsecos a todo enunciado, atravs de uma anlise discursiva que possibilite a depreenso do real discursivo. Concluindo esta seo, ao passo que retomamos o que foi dito de incio, podemos concluir que a Anlise do Discurso se estabelece na trade lngua-discurso-ideologia. Evidentemente, no expusemos os pilares tericos constitutivos da AD em sua totalidade, deixando de evidenciar muitos postulados e possveis influncias desses pilares, at mesmo pelo fato deste no ser o enfoque do projeto. Tal seo se fez necessria para uma maior contextualizao do histrico de formao e do cenrio epistemolgico da poca de surgimento da AD, apresentada na seo seguinte. ii) HISTRICO DE FORMAO E CONTEXTO EPISTEMOLGICO DA DISCIPLINA

Nesta seo, atentaremos para o histrico de formao da disciplina juntamente com seu contexto epistemolgico, devido dificuldade de expor ambos separadamente. Para tal incurso nesta aventura terica, buscaremos aporte em um razovel montante de autores que constam em nossa bibliografia, tais como Maldidier ([1993] 2003), Orlandi (1999), Brando (2004), Mussalim (2001), Piovezani (2009), Gregolin (2003b) Silva & Sargentini (2005), Mazire (2007), Pcheux & Gadet (1998), entre outros. Podemos considerar que os trabalhos de Z.S Harris (em especial, Discourse Analysis, 1952) foram embrionrios para o surgimento da Anlise do Discurso de linha francesa, estendendo o limite de anlise da frase ao enunciado (chamado em sua obra de discurso). Zelig Harris fazia uma concisa anlise lingustica, atravs do mtodo distribuicionista, embora negligenciasse o sujeito e rejeitasse o sentido fora da lingustica. Na Frana, os mtodos formais de anlises utilizados por Harris foram adaptados, juntamente com a concepo de lngua de Saussure, iniciando uma nova vertente de anlises lexicais sociopolticas, atravs das pesquisas de Jean Dubois. Esta transferncia de mtodos no foi o suficiente para fundar uma nova prtica disciplinar que considerasse o sujeito, embora nos parea evidente que tenha permitido e propiciado sua fundao na dcada seguinte (Mazire, 2007). Os anos 60 certamente se configuraram como uma dcada de efervescncia terica. O estruturalismo estava em alta, a lingustica celebrava o surgimento da recente gramtica gerativa, o marxismo althusseriano, com suas ideias acerca da ideologia, se direcionava a uma aliana terica com a psicanlise. Esse cenrio intelectual somado poltica da poca (com o povo francs alando a figura de General de Gaulle, poltico de direita, ao status de heri nacional no ps-guerra levando-o a presidncia da Frana, alm dos episdios dos distrbios de maio de 68) propiciou o surgimento da disciplina da AD (MALDIDIER, [1993] 2003). A propsito, a teoria e a prtica poltica sempre estiveram vinculadas na perspectiva do discurso pcheutiana. Antes da erupo da AD, Michel Pcheux, sob o pseudnimo de Thomas Hebert, observou a relao intrnseca entre as cincias sociais e seus instrumentos com a prtica poltica. Tal observao foi crucial para a elaborao da teoria do discurso, levando-o a implicar que o instrumento da prtica poltica o discurso, ou mais precisamente, que a prtica poltica tem como funo, pelo discurso, transformar as relaes sociais reformulando a demanda social (Henry, 1990, p.24). Como nos mostra Silva & Sargentini (2005) por meio dessa reflexo inicial que erguida a teoria da anlise do discurso, inicialmente, a partir de um dispositivo experimental: A anlise Automtica do Discurso (doravante ADD ou ADD69)[footnoteRef:16]. Tais incurses possuam o apoio e a ajuda dos acadmicos da Universidade de Paris X Nanterre[footnoteRef:17], alm dos pesquisadores do Centre National de la Recherche Scientifique [CNRS], entre eles, destacamos a importncia de Paul Henry, o linguista lexiclogo Jean Dubois, Denise Maldidier (tambm lexicloga, pertencia ao grupo de Dubois, em Nanterre), Franoise Gadet e Michel Plon, no desenvolvimento da Anlise do Discurso na Frana. pertinente lembrar da importncia da lexicologia para os primeiros trabalhos em AD[footnoteRef:18]. [16: Iremos especificar um pouco mais esta fase na seo seguinte, onde exporemos brevemente as trs fases da AD (cf. seo 3.1.1.a.iii). ] [17: A propsito, o sintagma anlise do discurso introduzido por esta instituio, nos anos de 1967 a 1972, por Jean Dubois, fundando o que seria a ser conhecida como Escola Francesa de Anlise do Discurso. ] [18: Segundo Mazire (2007), os primeiros trabalhos acadmicos em AD, a saber as teses de Marcellesi e Maldidier, sofreram forte influncia das denominadas anlises lexicais sociopolticas. ]

Apesar de ser filsofo de formao e de no reivindicar a si uma disciplina, Pcheux se atm lingustica para problematizar o que pode pensar a lngua. Em seu artigo Analyse de contenu et thorie du discours, publicado no Bulletin du CERP (Centre dtudes et de Recherches Psychotechniques) em 1967, Pcheux problematiza a viso de lngua da poca, tal como os impasses da anlise de contedo. O que o linguista chama de lngua aparece como uma fumaa de sistemas semiticos de posies e interaes variveis; em outros termos, a pluralidade do semiolgico no caracterizaria apenas o exterior semiolgico da lngua, mas tambm o prprio nvel lingustico (Pcheux, apud. MAZIRE, 2007, p.49). A partir desses questionamentos, Pcheux prope regras de procedimentos automticos, alm de sistemas semiolgicos no interior da formao social, o que propicia a entrada da AD como uma outra lingustica. (MAZIRE, 2007). Pcheux recusa a noo de linguagem como meramente lngua/fala, insistindo no funcionamento da linguagem entrelaado com sua exterioridade (que lhe constitutiva). O que importa reconhecer que esses nveis de funcionamento da linguagem esto eles prprios submetidos a regras, mas que a apreenso dessas regras escapa (parcialmente) ao linguista, medida que suas determinaes no-lingusticas (por exemplo, efeitos institucionais decorrentes das propriedades de uma formao social) entram necessariamente em jogo. (Fuchs & Pcheux, apud. MAZIRE, 2007, p.51). Naquela poca, os modelos metodolgicos dominantes da lingustica se enquadravam em duas vias, antagnicas e contraditrias entre si, mas que se coadunavam em um aspecto: na denegao da dimenso social e poltica da lngua. A vertente logicista abordava a lngua sob um aspecto biologizante, ignorando o sujeito e postulando uma teoria que enxerga a linguagem como reflexo de uma competncia mental. Segundo Pcheux, tal racionalidade psicolgica seria incapaz de se interrogar sobre o sentido em sua completude. Tambm se ope ao logicismo de Frege, recusando que a sentena Aquele que salvou o mundo morrendo na cruz jamais existiu seja destituda de sentido, uma vez que para ele a relao do objeto de pensamento pressupondo um objeto real ilusria. Na sentena referida, tratar-se-ia de um efeito discursivo ligado ao encaixe sinttico, coadunando o discurso cristo com um discurso ateu, representando ali um dos pontos fundamentais de articulao da teoria dos discursos com a lingustica (Pcheux, apud. MAZIRE, 2007, p.54), ao ponto que ao negligenciar esta caracterstica, se negligencia o carter discursivo da lngua. Por outro lado, a vertente sociologista tambm negligenciava o aspecto da ideologia, considerando que o sujeito dono do prprio dizer e se preocupando apenas com sistematizao das variaes lingusticas expressas por diferentes comunidades, com diferentes nveis socioeconmicos. Em resumo, nenhuma das duas vertentes conseguiam responder questes acerca do sujeito-histrico. A Anlise do Discurso surge como uma tentativa de se analisar o real da lngua, se atendo ao nvel discursivo e apreendendo os aspectos ideolgicos presentes na materialidade da lngua. Tal como afirma Orlandi (1999), a teoria do discurso busca analisar a lngua em seu funcionamento para a produo de sentidos. A AD introduz uma noo de sujeito que no apenas um ser emprico, mas tambm interpelado pela ideologia. Tal noo fruto de influncias bvias da psicanlise e do marxismo althusseriano. Este fator epistemolgico distingue a Anlise de Discurso das demais tentativas de anlises lingusticas precedentes, pois considera a ideologia em suas anlises. Ademais, ao pensar na linguagem fora da dicotomia saussuriana, isto , fora do sistema fechado e neutro, pensasse no discurso como uma relao dialtica entre ideologia e lngua. A materialidade da ideologia o discurso e a materialidade especfica do discurso a lngua. Ao longo do percurso da AD, a concepo de lngua passa por metamorfoses em sua relao com o discurso (que tambm passa por mltiplos enfoques). Inicialmente, a noo de discurso recaa sobre a ideologia a que este se filiava, isto , a nfase era atribuda ao discurso como materializao da ideologia. Em seguida, a focalizao passa concatenao do interdiscurso [footnoteRef:19] ao fio do discurso. Como nos mostra Piovezani (2009), so flagrantes duas reformulaes da concepo de lngua e duas transformaes inerentes a relao de lngua e discurso: [19: Explicaremos melhor esta noo mais adiante (cf. seo 3.1.1.a.iv). ]

(...) de base autnoma, condio de possibilidade para o discurso, para base relativamente autnoma, condio de possibilidade do discurso que o toca eventualmente, em determinados pontos, e para real da lngua, condio para a produo discursiva estreitamente articulada com o discurso que incide constantemente sobre ele. Conforme podemos observar no advento e nas tentativas de sofisticao dos conceitos, a Anlise do discurso focalizou, inicial e preferencialmente, a constituio (concebendo, para tanto, as noes de j-dito, ideologia, interdiscurso, formao discursiva, heterogeneidade constitutiva, memria discursiva, arquivo), passando a considerar, posteriormente, a formulao discursiva (produzindo os conceitos de fio do discurso, intradiscurso, pr-construdo, discurso relatado, heterogeneidade mostrada) e suas relaes com a ideologia, com o interdiscurso, com a memria, enfim. (p.165) Os constantes deslizamentos, as rupturas e as continuidades, enfim, as diversas metamorfoses do arcabouo terico-metodolgico da AD, sero melhor apresentadas na seo seguinte.

iii) AS TRS EPOCAS

A obra Anlise Automtica do Discurso pode ser considerada como um esboo de uma teoria do discurso que ainda estava por vir. Embora tenha sido constantemente criticado por suas ingenuidades e ambiguidades, no podemos negligenciar o fato de que o livro lanou luz sobre questes fundamentais acerca dos textos e o sentido. O livro a tese de doutorado de Michel Pcheux, em que o autor basicamente d continuidade a antigos artigos escritos sob o pseudnimo de Thomas Herbert, atravs do qual foram tecidas severas crticas epistemolgicas s prticas das cincias humanas e sociais da poca, com influncia explcita do materialismo histrico e da psicanlise. O recurso da informtica presente nesta obra fundadora no fruto de motivao espontnea, possuindo uma dupla justificativa: a) a proximidade de tericos como Bacherlard e Canguilhen; b) A elaborao de uma anlise automtica com o aporte de um dispositivo tcnico complexo informatizado se inscrevendo nas prticas e nas teorias. Ou seja, segundo Pcheux, s h instrumento em relao a uma teoria. (MALDIDIER, 2003). Uma das principais crticas tecidas por esta obra de Pcheux foi direcionada para o fato da cincia produzida na poca apagar o elemento poltico, alm de se camuflar em uma pseudo-cientificidade ao utilizar mtodos como, por exemplo, a contagem da frequncia por meio da estatstica e as variantes da anlise de contedo. Como j supracitado, o instrumento desvinculado da teoria no poderia possuir serventia. Em 1969, a teoria do discurso ainda engatilhava. Conceitos que, aps algum tempo, se tornariam cruciais para AD (como as noes de ideologia e de inconsciente) so apenas vagamente citados na obra inaugural, embora, como nos mostra Maldidier (2003), o final deste livro j apontasse para o que seria a Anlise do Discurso de linha francesa, anos mais tarde: Uma teoria do discurso postulada enquanto teoria geral da produo dos efeitos de sentido, que no ser nem o substituto de uma teoria da ideologia nem o de uma teoria geral da produo dos efeitos de sentidos, que no ser nem o substituto de uma teoria da ideologia nem o de uma teoria do inconsciente, mas poder intervir no campo dessas teorias. (Pcheux, apud MALDIDIER, 2003, p.21). A Anlise Automtica do Discurso apreendeu um novo objeto de pesquisa, o processo discursivo. Esta nova empreitada, promovida por Pcheux, ter como terreno epistemolgico a lingustica saussuriana, a partir do corte epistemolgico que estabeleceu a lngua como um sistema (tal como citado anteriormente, cf. seo 3.1.1.a.i). Muitos dos conceitos posteriormente elaborados por Pcheux so influenciados pelo estruturalismo de Saussure, como por exemplo, a noo de efeito metafrico elaborada na esteira da ideia de valor saussuriano. Apesar disso, a adeso lingustica estruturalista de Saussure apenas parcial. Tratar-se- sempre de manter-se no ponto de encontro da lngua, tomada na pura acepo saussuriana de sistema, e de coeres irredutveis ordem lingustica e ao sujeito psicolgico. Mas o conceito de discurso ao mesmo tempo em que teorizado como apoio crtico em Saussure, constri-se no sentido prprio do termo no dispositivo elaborado por Michel Pcheux. (MALDIDIER, 2003, p.22). Alm das (re) elaboraes da lingustica da poca, Pcheux reformula alguns conceitos vigentes nas humanidades, tal como o conceito de condies de produo, fruto de uma reformulao da noo descritiva de circunstncias, oriundo da psicologia social. As condies de produo designavam a relao do discurso com a exterioridade, suas condies scio-histricas. Essa noo imbrica a uma certa noo de corpus. No cerne da relao teoria-dispositivo, a hiptese de uma correspondncia entre um estado determinado das condies de produo e uma estrutura definida do processo de produo do discurso subentende a construo do corpus como conjunto de sequncias dominadas por um estado supostamente estvel das condies de produo. (Idem, ibidem, p.23). Na esteira do pensamento de Zelig Harris, ainda que de forma implcita, o mtodo escolhido nos primrdios da AD era similar s classes de equivalncia do linguista americano. Alm deste, tambm nos parece crucial a influncia de Benveniste na elaborao do mtodo, tal como evidenciado em Mazire (2007). Os trabalhos continuamente solicitados em AD so essencialmente os de Benveniste, que propunham uma oposio entre narrativa e discurso, com discurso designando um dito referido ao presente do enunciador (...). Esse sentido de discurso no foi retomado em AD, mas nela se explorou a ideia de enunciao contrastada, e a noo de enunciador foi sempre muito solicitada desde os primrdios. (p. 20) A Anlise Automtica do Discurso possua uma metodologia rudimentar, com uma concepo pobre de lngua, combinada com uma ideologia estrutural, resultando em um modelo que resume em sintaxe versus lxico, onde a semntica deslocada da sintaxe (Maldidider, 2003; Mazire, 2007), como o prprio Pcheux classificou posteriormente, trata-se de uma obra que surgiu da urgncia terica. At o momento, 1969, Pcheux ainda no tinha adentrado, de fato, a lingustica. Foi apenas no ano seguinte, juntamente com pesquisadores de informtica, que Michel Pcheux se inicia na lingustica, fazendo gramticas de reconhecimento do francs para aprimorar o dispositivo da ADD69. Nessa poca, realizado o Manual para utilizao do mtodo da anlise de discurso, juntamente com Claudine Haroche, e, em 1974, proposto por Pcheux os Primeiros elementos de um analisador morfossinttico do francs. Em 1970, em conjunto com Antoine Culioli e Catherine Fuchs escrito Consideraes Tericas a propsito do tratamento forma da linguagem, uma obra dividida em trs partes, cuja segunda teve uma considervel importncia no desenvolvimento da AD. Esta parte, de ttulo Lexis e Metalexis: o problema dos determinantes, trabalhava com operaes que destinam seu valor aos determinantes, sendo abordado o tpico dois tipos de relativas. Foi nessa parte que surgiu a ideia de Formao Discursiva na obra de Pcheux, sendo relacionada a determinaes no-lingusticas. No trabalho tambm h um preldio do que seria chamado de teoria dos dois esquecimentos[footnoteRef:20]no artigo da revista Langages, nmero 37. [20: Tais esquecimentos sero explanados posteriormente. (Cf. Seo 3.1.1.a.iv) ]

No mesmo ano, Althusser publica na revista L Pense o artigo Ideologia e Aparelhos Ideolgicos do Estado (notas a uma pesquisa) , artigo que influenciar todo o trabalho de Pcheux, a partir do final da 1 fase, com a obra Semntica e Discurso16. No ano seguinte, em 1971, Pcheux escreve o artigo Lngua, linguagem e discurso, para a revista Langages, nmero 24, onde tece uma pesada crtica ao estruturalismo que nega as relaes sociais em busca de um mtodo universal de anlise do esprito humano (Maldidier, 2003). Ainda segundo Maldidier (2003), a partir de 1975 que Pcheux comea a reformular drasticamente sua teoria. Prope e articula ao seu campo terico, trs regies de conhecimento: - O materialismo histrico como teoria das formaes sociais e de suas transformaes, a compreendida a teoria das ideologias; - A lingustica como teoria ao mesmo tempo dos mecanismos sintticos e dos processos de enunciao - A teoria do discurso como teoria da determinao dos processos semnticos. E intervm uma quarta referncia de uma teoria da subjetividade (de natureza psicanaltica (Maldidider, 2003, p.38, grifos nossos). Em 1976, d incio segunda fase da AD[footnoteRef:21], em que so feitas algumas alteraes na maquinaria discursiva, como a conciliao com a Histria. chamado por Maldidier de perodo das tentativas. [21: Neste caso, segundo Maldidier (2003). H divergncia entre as datas das fases da AD entre Pcheux e Maldidider. ]

o colquio Materialidades Discursivas, de 1979, que marca o incio da desconstruo da mquina, a terceira e ltima fase da AD. Nesse colquio, alm de Pcheux, estava presente Jean-Marie Marandin, que buscava desenvolver algoritmos para a segunda gerao da ADD: a ADD 80. Michel Pcheux o mestre dos debates e prope intervenes em cinco temas: i) Para onde vai a anlise do discurso?; ii) Discurso e Histria; iii) Discurso e Lgica; iv) Discurso e Lingustica e v) Discurso e Psicanlise. Segundo Maldidier (2003), o colquio era tomado por um processo de desconstruo/reconstruo. Processo que continuou at o momento do falecimento de Pcheux, em 1983. Sintetizando as trs fases: 1 FASE (1968 1972)[footnoteRef:22]: AD-1, corresponde explorao metodolgica da noo de maquinaria discursivo-estrutural. Nesse perodo, o processo de produo discursiva concebido como uma mquina autodeterminada, por etapas com ordem fixa, restrita terica e metodologicamente a um comeo e a um fim predeterminados e debruada sobre si mesmo, onde um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos. Os sujeitos acreditam que utilizam seu discurso, quando na verdade so seus servos assujeitados, seus suportes (Pcheux, 1990a, p. 311). [22: Datas na perspectiva de Pcheux. Na perspectiva de Denise Maldidier, as trs fases so classificadas de forma diferente: 1 fase (1969 1975); 2 fase (1976 1979) e 3 fase (1980 1983). ]

2 FASE (1973 1981): AD-2 na qual Pcheux pouco inovador. nomeada como: da justaposio dos processos discursivos tematizao de seu entrelaamento desigual. Nesta fase, as relaes entre as mquinas discursivas estruturais que se tornam o objeto da AD. Relaes estas que so compreendidas como foras desiguais entre processos discursivos. Nessa poca surge a noo de interdiscurso para nomear a exterioridade especfica de uma determinada FD, mas o sujeito continua sendo compreendido apenas como efeito da maquinaria da Formao Discursiva com a qual o sujeito se identifica, negligenciando o sujeito da enunciao. 3 FASE (1981 1983): AD-3 caracterizada pela emergncia de novos procedimentos em funo do processo de desconstruo das maquinarias discursivas. Nesse perodo tambm so abordados os acontecimentos, assim como lugares enunciativos no fio intradiscursivo.

iv) PRINCPIOS E PROCEDIMENTOS

O ttulo desta seo, de certa forma, j evidencia qual ser nosso aporte para discorrer a respeito do mtodo da Anlise do Discurso. Entretanto, para alm de Orlandi (1999), compe em nossa bibliografia autores como: Possenti (2004), Gregolin (2003), Fernandes (2005), Gadet & Hak (1990), Courtine ([1981 2009), Como vimos na seo 3.1.1.a.i, a lingustica constitui-se pela afirmao da no transparncia da linguagem, tendo como objeto a lngua como sistema, i.e., em sua ordem prpria. O materialismo histrico, por sua vez, contribui com a AD por sua caracterstica de considerar a histria, esta tambm no-transparente, na produo de sentidos, trabalhando com a forma material (e no abstrata, como na Lingustica), sendo assim, lingustico-histrico. J a psicanlise contribui com o deslocamento da noo de homem para a noo de sujeito, este se constituindo na relao com o simblico. A AD no v a lngua apenas como estrutura, mas tambm como acontecimento. No se separa forma e contedo na Anlise de Discurso. Dessa forma, para a Anlise de Discurso: i) A lngua tem sua ordem prpria, mas no totalmente autnoma; ii) A histria tem seu real afetado pelo simblico (os fatos reclamam sentidos) e iii) O sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia, uma vez que afetado pelo real da lngua e tambm pelo real da histria, no tendo controle sobre o modo com que esses o afetam. As palavras simples do nosso cotidiano j chegam at ns carregadas de sentidos que no sabemos como se constituram e que, no entanto, significam em ns e para ns. (ORLANDI, 1999, p.20)

O DISCURSO

No clssico Curso de Lingustica Geral de Ferdinand de Saussure, o terico suo reproduz [footnoteRef:23] o circuito da fala, postulado por Roman Jakobson, onde um emissor transmite uma mensagem (informao) que decodificada e compreendida pelo receptor. [23: Ou melhor, seus alunos assim o fazem. ]

A Anlise de Discurso no se atm apenas a essa troca de informaes, uma vez que no h esta linearidade, onde um emissor fala, a mensagem recebida e decodificada por um receptor, e no h essa separao entre emissor e receptor, atuando em sequncia (um fala, depois o outro decodifica, etc.). Todos esto participando ao mesmo tempo do processo de significao. Alm do mais, ao invs de mensagem, a AD prope pensar em discurso como efeito de sentido entre locutores. Apesar da AD fazer o recorte lngua/discurso, importante ressaltar que o discurso para Pcheux diferente da teoria de fala de Saussure, ou seja, o discurso no apenas a exteriorizao da lngua, como complemento do sistema[footnoteRef:24]. [24: Cf. 3.1.1.a.i ]

Nem o discurso visto como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes lingusticos ou determinaes histricas, nem a lngua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ou equvocos (ORLANDI, 1999, p. 22). Se por um lado, o discurso no se caracteriza como a fala saussuriana, to pouco pode ser caracterizado como um nvel parte de anlise. Em muitas teorias lingusticas, o discurso caracterizado como pura e simplesmente um encaixamento de sentenas. Nessa perspectiva, a anlise da lngua pode ser organizada em camadas (fonologia; morfologia; sintaxe; semntica; pragmtica; discurso). Nessa concepo, advoga-se que a liberdade do sujeito tenderia a aumentar conforme o avano das camadas, ou seja, enquanto que na fonologia o sujeito teria liberdade nula, uma vez que no possvel construir os fonemas, j que eles j esto determinados; na semntica o sujeito teria total liberdade de juntar palavras para a formao de enunciados, formulando as ideias de qualquer modo. O linguista Possenti (2004) questiona essa ideia, afirmando que o discurso que determina dizer, e no o sujeito. Em seu j clssico texto O discurso no uma camada, o autor defende que o discurso deve ser entendido como um sentido que se materializa na lngua, por meio da ideologia, produzindo determinados efeitos de sentido em correlaes com as posies e condies de produo especficas do sujeito-enunciador. Em linhas gerais, o discurso no uma camada, porque est presente em todos os nveis da linguagem, sendo impossvel segment-lo. Dessa forma, a relao entre lngua e discurso de recobrimento, no havendo uma separao estvel entre eles. Em suma, como se ocorresse ao mesmo tempo .

SUJEITO, HISTRIA, LINGUAGEM

A AD no busca procurar o sentido verdadeiro de um texto atravs de uma chave de interpretao, no h verdade oculta no texto. H gestos de interpretao que o analista, com seu dispositivo analtico, capaz de compreender. Dito isso, uma parte da responsabilidade da anlise do analista e a outra parte deriva do mtodo utilizado. O que de sua responsabilidade a formulao da questo que desencadeia a anlise (ORLANDI, 1999, p.27) Cada material de anlise exige do analista um diferente dispositivo de anlise. Logo, dificilmente a AD possuir analises iguais, pois, o dispositivo terico adequado para responder determinadas incgnitas levantadas pelo analista ao fazer sua anlise. Esta a distino entre dispositivo terico da interpretao e o dispositivo analtico construdo pelo analista a cada anlise. Apesar de o dispositivo terico estar embutido no dispositivo analtico, a distino ocorre em detrimento ao fato de que o dispositivo analtico o dispositivo terico individualizado, ou seja, o dispositivo ajustado pelo analista para fazer uma anlise especfica. O dispositivo terico o mesmo, mas os dispositivos analticos, no. O que define a forma do dispositivo analtico a questo posta pelo analista, a natureza do material que analisa e a finalidade da anlise (IDEM, ibidem, p.27). Dito isso, seu trabalho de interpretao tem a forma de seu dispositivo analtico, embora o dispositivo terico se mantenha inalterado na construo dos diferentes dispositivos analticos. Assim, toda e qualquer anlise necessita de uma questo inicial, pois ser ela que desencadear a anlise e a construo do dispositivo analtico correspondente. No nosso caso, a retrica reacionria no discurso miditico nacional.

CONDIES DE PRODUO E INTERDISCURSO

O interdiscurso significa a relao do discurso com uma multiplicidade de discursos, ou seja, ele um conjunto no discernvel, no representvel de discursos que sustentam a possibilidade mesmo do dizer, sua memria. Representa assim a alteridade por excelncia (o Outro), a historicidade (Orlandi, 1999, p.80).Considerando condio de produo em seu sentido estrito, trata-se do contexto imediato, considerando condio de produo em seu sentido amplo, trata-se da ideologia do sujeito e do contexto scio-histrico. Por exemplo, na polissmica formulao Queremos liberdade, o contexto imediato o sujeito e o grupo ideolgico ao qual esse sujeito se filia quando formula o enunciado citado, uma vez que a mesma formulao tem significados diferentes mediante a Formao Ideolgica do sujeito (um enunciado proferido numa FD de esquerda no tem a mesma significao da mesma formulao proferida por um sujeito inscrito numa FD de direita). O contexto amplo, por outro lado, se deve historicidade do item lexical Liberdade inserido no mbito poltico, no qual, se buscarmos na memria discursiva, percebemos que pode significar numa dada Formao Discursiva como: liberdade para o povo excludo da sociedade [liberdade ao coletivo] e significar liberdade de mercado (Livre mercado) [liberdade ao indivduo] numa FD antagnica. Estabelecendo em uma cadeia parafrstica:

Liberdade para o trabalhador e o povo excludo (FDE) __ para o mercado e a economia (FDD)

Pouco importa perguntar para o emissor sobre o que ele quis dizer ao exteriorizar um enunciado, pois seu conhecimento pode estar aqum para compreendermos os efeitos de sentido cristalizados em sua formulao. O dizer no propriedade particular, as palavras no so s nossas. Elas significam pela histria e pela lngua. O que dito em outro lugar tambm significa nas nossas palavras. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas no tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele (ORLANDI, 1999, p. 32) o j-dito[footnoteRef:25] do eixo vertical (junto com os esquecidos) da parfrase que ir sustentar a possibilidade mesma de todo dizer, ou seja, h uma relao entre o que est sendo dito e o J-dito, que a que existe entre o interdiscurso (eixo vertical) e o intradiscurso (no eixo horizontal) ou, em outras palavras, entre a constituio do sentido e sua formulao lingustica. [25: Discurso pr-construdo. ]

Todo dizer, na realidade, se encontra na confluncia dos dois eixos: o da memria (constituio) e o da atualidade (formulao) (Idem, ibidem, p.33).

ESQUECIMENTOS

Segundo Pcheux ([1975] 1997b.), podemos distinguir duas formas de esquecimentos: Esquecimento enunciativo: Ao falarmos, fazemo-lo sempre de uma maneira ao invs de outra, com isso, a cada enunciado que proferimos formam-se famlias parafrsticas que indicam as outras formas de que o enunciado podia ser dito. Por exemplo: Faa sem medo, poderia ser dito como Faa com coragem ou faa livremente. Esse esquecimento produz a impresso de realidade do pensamento, ao pensar que ao se comunicar s se poderia usar aquelas palavras e no outras (iluso referencial). Mas este um esquecimento parcial, semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famlias parafrsticas, para melhor especificar o que dizemos (ORLANDI, 1999, p.35). Esquecimento ideolgico: Da instncia do inconsciente e resulta do modo como somos afetados pela ideologia, quebrando a crena de que somos donos do nosso dizer. Este esquecimento reflete o sonho admico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos (ORLANDI, 1999, p.35). No somos donos do dizer. Os sentidos dos enunciados que proferimos so determinados pelo modo que nos inscrevemos na lngua e na histria e por isso que significam e no por nossa vontade. As palavras ou sentenas possuem sentido por meio de sua historicidade, seus usos precedentes e, consequentemente, pelas condies de produo do sujeito (filiao ideolgica, formao discursiva, etc.).

PARFRASE E POLISSEMIA

Todo discurso se faz na tenso entre o mesmo e o diferente. A parfrase est do lado da estabilizao (mesmo), ao passo que, na polissemia, o que temos o deslocamento, ruptura de processos de significao (diferente) (ORLANDI, 1999, p. 36). Numa cadeia parafrstica, se estabelece os outros modos de se dizer um j-dito, a troca de algumas palavras por outras, sem a alterao de sentido, em suma, a variedade do mesmo. J numa relao de polissemia temos a busca pelo diferente, pelo outro sentido. Um exemplo de palavra polissmica j foi dado anteriormente, a palavra liberdade. A mesma pode ter significaes diferentes a depender da filiao ideolgica e a Formao Discursiva de um determinado sujeito. porque a lngua sujeita ao equvoco e a ideologia um ritual de falhas que o sujeito ao significar, se significa. Por isso, dizemos que a incompletude a condio da linguagem: nem os sujeitos, nem os sentidos, logo, nem o discurso, j esto prontos e acabados. Eles esto sempre se fazendo, havendo um trabalho contnuo, um movimento constante do simblico e da histria. (Orlandi, 1999, p.37) Assim sendo, os sujeitos e os sentidos sempre podem ser outros. Em resumo, a polissemia a fonte da linguagem, pois se os sentidos e sujeitos no fossem mltiplos, no haveria necessidade de dizer, enquanto que a parfrase a matriz do sentido, pois no h sentido sem repetio, sem sustentao no saber discursivo.

NOO DE METFORA PARA AD

Diferentemente da Retrica, que enxerga metfora como figura de linguagem, na Anlise de Discurso, a metfora defendida como transferncia; uma palavra tomada por outra, isto , o sentido s existe exclusivamente nas relaes de metfora, a partir da repetio. Uma palavra, uma expresso ou uma proposio podendo ser substituda por outra palavra, expresso ou proposio, estabelece o sentido. No h sentido sem metfora.

FORMAES IMAGINRIAS

Uma das condies de produo que constituem o discurso a relao de sentidos. Essa condio dita que um discurso sempre est relacionado com outro, impossibilitando que a haja delimitao de um comeo ou fim do discurso, uma vez que o mesmo visto como um processo contnuo, tendo relao com outros dizeres realizados, imaginveis ou possveis. Por outro lado, segundo o mecanismo da antecipao, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-se no lugar em que o seu interlocutor ouve suas palavras (ORLANDI, 1999, p.39). Esse mecanismo regula a argumentao de tal forma que, o sujeito dir de um modo, ou de outro, segundo o efeito de sentido que pretende produzir em seu ouvinte. Por fim, temos a relao de foras. Segundo essa noo, podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito constitutivo do que ele diz (Idem, ibidem, p.39). Em uma sociedade hierarquizada como a nossa, evidente que alguns discursos possuam mais fora do que outros, dependendo do local-social de onde o sujeito diz. Por exemplo, as palavras significam de um modo diferente se o sujeito fala da posio de professor ou de aluno; um sujeito falando sobre poltica no alto da posio de presidente possui mais valor perante a sociedade do que o discurso do sujeito sobre poltica na posio social de pedreiro. Todos esses mecanismos de funcionamento do discurso so parte das Formaes Imaginrias. Assim no so os sujeitos fsicos nem os seus lugares empricos como tal, isto , como esto inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projees. So essas projees que permitem passar das situaes empricas os lugares dos sujeitos para as posies dos sujeitos no discurso. Distino entre lugar e posio. Quem sou eu para lhe falar assim? (posio sujeito locutor); (Quem ele para me falar assim e/ou para que fale assim? (posio do interlocutor); Do que estou lhe falando, do que ele me fala? (Objeto do discurso). Todos esses so constituintes do jogo imaginrio do discurso. Visto que o sujeito da AD no o sujeito emprico, mas sim o sujeito discursivo-ideolgico, so esses mecanismos que permitem um operrio (situao emprica) reproduzir o discurso do patro (situao discursiva). A imagem que temos dos sujeitos, tal como a imagem do professor universitrio como uma pessoa culta, no surgiu do nada. fruto do confronto entre o simblico e o poltico em processos que ligam discursos e instituies.

FORMAES DISCURSIVAS

As formaes discursivas esto ligadas s superestruturas (no sentido marxista do termo), ao mesmo tempo, como efeitos e como causas. Uma teoria do efeito discurso no pode ignorar esse ponto, qualquer que seja, alis, a maneira como que ela formula seu objeto (sob a forma de uma pragmtica, de uma retrica ou de uma estratgia de argumentao (Pcheux, apud. MAZIRE, 2007, p.51). O sentido no est nas palavras e sim na discursividade. Tudo que um sujeito diz se inscreve numa Formao Discursiva (doravante FD) e no outra, para ter um determinado sentido e no outro. O discurso a materializao da ideologia, logo, todo discurso empossado de uma ideologia correspondente a Formao discursiva do sujeito. Podemos dizer que o sentido no existe em si, mas determinado pelas posies ideolgicas colocadas em jogo no processo scio-histrico em que as palavras so produzidas (Orlandi, 1999, p.42). A noo de Formao Discursiva, como nos mostra Baronas (2004), possui uma dupla paternidade, sendo inicialmente utilizada por Foucault, em sua fase arqueolgica, para posteriormente vir a ser deslocada por Pcheux. Em Pcheux, a FD est, pelo menos em seu incio, intimamente relacionada com a noo de formao ideolgica (FI), decorrente da leitura que ele fez dos "Aparelhos Ideolgicos do Estado" de L. Althusser, o que, por conseguinte, explica o seu estreito lao com o marxismo. Assim Pcheux expe sua ideia: Chamaremos, ento, formao discursiva aquilo que, em uma formao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio dada em uma conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina "o que pode e o que deve ser dito" (articulado sob a forma de uma alocuo, de um sermo, de um panfleto, de uma exposio, de um programa, etc.). (1997a, p. 160). Palavras iguais podem possuir mltiplos significados, ou seja, as palavras mudam de sentido conforme as posies discursivas daqueles que as empregam, de forma que s possvel depreender verdadeiramente o sentido de uma palavra ou de uma expresso ao se ater a Formao discursiva do sujeito que a exteriorizou. Alm disso, segundo Courtine ([1981] 2009), as Formaes Discursivas so componentes internos das Formaes Ideolgicas, ou seja, as FDs se encontram em FIs antagnicas, imersas em uma relao antagnica no seio das FDs. Ademais, afirma que no interior de um FD que ocorre o assujeitamento do sujeito do discurso.

IDEOLOGIA E SUJEITO

A ideologia, pensada nos postulados da Anlise de Discurso, a condio para a constituio do sujeito e dos sentidos. O indivduo interpelado em sujeito pela ideologia para que produza o dizer, logo, a ideologia constitui o sujeito. As palavras recebem seus sentidos de formaes discursivas em suas relaes. Este o efeito da determinao do interdiscurso (da memria). (Orlandi, 1999, p.46) O sujeito chamado existncia num grande paradoxo: a interpelao pela ideologia. Isso porque a evidncia do sujeito a de que somos sempre j sujeitos - apaga o fato de que o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia. So essas evidncias que do aos sujeitos a realidade como sistema de significaes percebidas, experimentadas. Essas evidncias funcionam pelos chamados esquecimentos. Isso se d de tal modo que a subordinao-assujeitamento se realiza sob a forma da autonomia, como um interior sem exterior, esfumando-se a determinao do real (do interdiscurso), pelo modo mesmo com que ele funciona (Idem, ibidem, p.47). A interpretao na AD no livre de determinaes. Ela garantida pela memria, sob dois aspectos: a) A memria institucionalizada (o arquivo): o trabalho social da interpretao onde se separa quem tem e quem no tem direito a ela;b) A memria constitutiva (o interdiscurso): o trabalho histrico da constituio do sentido (o dizvel; o saber discursivo). Quando algum fala a partir da posio me, por exemplo, o que dito deriva dessas palavras seu sentido, em relao formao discursiva em que est inscrito. Ao dizer ao filho recm-chegado da balada: Isso so horas? , ela est, na posio-me, falando como as mes falam. Podemos at dizer que no a me falando, sua posio (ORLANDI, 1999, p.49).

AS BASES DA ANLISE

Todo discurso se estabelece em relao com um discurso anterior. Logo, um discurso inesgotvel e no se fecha em si mesmo. Isto nos leva a separao entre texto e discurso: Texto: a unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte. O analista o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se explicita em suas regularidades pela sua referncia a uma ou outra formao discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela formao ideolgica dominante naquela conjuntura. Para fazer a anlise, o analista necessita estabelecer seu corpus e organiza-lo face natureza do material e do ponto de vista que o organiza, com a teoria regendo a relao do analista com o objeto, os sentidos e sua intepretao.

O MTODO

Para iniciar uma anlise, preciso antes elaborar um tratamento do corpus. Esse processo consiste em identificar as formaes imaginrias em suas relaes de sentido e de fora atravs dos vestgios que deixam no fio do discurso, isto , identificar como se diz, quem diz, em que circunstncias, em que posio social, o lugar da fala, etc. Feita esta primeira instncia, preciso lidar com a iluso referencial causada pelo esquecimento enunciativo: Trabalhamos no sentido de desfazer os efeitos dessa iluso: construmos, a partir do material bruto, um objeto discursivo em que analisamos o que dito nesse discurso e o que dito em outros, em outras condies, afetados por diferentes memrias discursivas (Orlandi, 1999, p.65) Feita essa desconstruo, convertendo a superfcie lingustica (corpus bruto) em objeto terico, um objeto discursivo, o prximo passo compreender como um objeto simblico produz sentidos. Essa procura de sentidos a partir dos vestgios lingusticos, delineando as formaes discursivas para sua relao com a ideologia, se chama processo discursivo. Todo texto constitudo pela articulao lingustica-histria. A historicidade inscrita na lngua pode ser atestada pelos processos como parfrase, metfora, sinonmia, etc. Alm disso, todo texto heterogneo, possuindo materiais simblicos distintos, posies do sujeito e formaes discursivas distintas. A AD no est interessada no texto em si, como objeto final, e sim como unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. O texto a unidade de anlise afetada pelas condies de produo e o lugar da relao com a representao da linguagem, mas tambm, espao significante: lugar de jogo de sentidos, de trabalho da linguagem, de funcionamento da discursividade (ORLANDI, 1999, p. 72). Compreendendo isso, uma vez atingido o processo discursivo que d ao analista as indicaes que ele necessita, o texto deixa de ser seu objeto (que passa a ser o discurso).

DISPOSITIVO E PROCEDIMENTOS

Segundo Orlandi (1999), h uma sequncia necessria de etapas para a anlise de um discurso. 1 ETAPA: Passagem da Superfcie Lingustica (texto) para o Discurso. Levando em considerao o esquecimento enunciativo, desfazendo assim a iluso de que aquilo que foi dito s poderia s-lo daquela maneira atravs das metforas, parfrases e relaes do dizer e do no-dizer, desnaturalizando a relao palavra-coisa (pensamento de Plato). 2 ETAPA: Incidncia, partir do objeto discursivo, das Formaes Discursivas distintas com a Formao Ideolgica. Fazendo uma anlise que procura relacionar as formaes discursivas distintas com a formao ideolgica que rege essas relaes, nessa etapa que se atinge a constituio dos processos discursivos responsveis pelos efeitos de sentidos produzidos naquele material simblico, de cuja formulao o analista partiu. Cabe ao analista, com seu dispositivo analtico, observar os efeitos metafricos a partir da cadeia parafrstica.

DITO E NO DITO

Alm do efetivamente dito, a AD se debrua tambm sobre o no-dito (o implcito) como constituinte do sentido. Existem diferentes concepes de no-dito (implcito, silncio, implicatura, etc.) H sempre no dizer um no-dizer necessrio. Quando se diz x, o no-dito y permanece como uma relao de sentido que informa o dizer de x. Isto , uma formao discursiva pressupe uma outra (ORLANDI, 1999, p.82). Outra forma de se trabalhar o no-dito na anlise de discurso o silncio, seja esse uma respirao da significao, lugar de recuo necessrio para que possa significar. o silncio como iminncia de sentido. Este silncio que indica que o sentido pode sempre ser outro chamado de silncio fundador (faz com que o dizer signifique). Alm do silncio fundador, h o silenciamento ou poltica do silncio que se divide em: i) Silncio constitutivo: uma palavra apaga outras (para dizer preciso no-dizer: se digo sem medo no digo com coragem). ii) Silncio local: censura, aquilo que proibido dizer em uma certa conjuntura (O que faz com que o sujeito no diga o que poderia dizer). Dessa forma, preciso se ater na anlise ao que no est sendo dito e/ou o que no pode ser dito, uma vez que algo que se fala, tambm algo se omite, que se deixa de dizer.

3.1.1.b. MDIA E DISCURSO POLTICO

Desde seu surgimento at os dias atuais, a mdia tem desempenhado um papel crucial nas mudanas de conjuntura, seja no mbito civil, poltico ou social. inegvel, por exemplo, sua participao nos conflitos entre os Estados Unidos e os pases do Oriente Mdio, visando guiar a opinio pblica. Suas denominaes destinadas aos opositores do governo norte-americano no oriente mdio, chamando-os de fanticos e terroristas, colaboraram para legitimar as invases americanas, realizadas no governo Bush (Rajagopalan, 2003). No Brasil no diferente, a mdia majoritria constantemente influencia a opinio pblica, por meio de seus estratagemas. Com o aporte de alguns autores que constam em nossa bibliografia, tal como Claudine Haroche ([1984] 1992), Rajagopalan (2003), Payer (2005), Amossy (2008), entre outros, cremos que a mdia goza de poder quase hegemnico no desempenho da funo de reagir aos fatos e dizeres que propem polticas de justia social e de igualdade de condies de vida, na contemporaneidade. Da nosso interesse em se ater ao funcionamento da mdia perante a acontecimentos progressistas. Se antes o papel de reagir s medidas pblicas e julgar a eficincia (ou no) de alguma poltica era relegada aos livros dos filsofos, psiclogos, socilogos[footnoteRef:26], etc., hoje, essa funo relegada quase exclusivamente mdia contempornea espetacularizada. [26: Cf. Seo 3.1.1.c]

Por outro lado, a poltica em si j no a mesma de outrora, pois espetacularizou-se ao se inserir nos padres miditicos. Segundo Piovezani (2003) , tal configurao dessa poltica na contemporaneidade consequncia de dois momentos distintos da histria: i) o perodo da Renascena, onde surgem as noes de cortesia e de civilidade , onde por meio da observao de determinados comportamentos, fosse estipulado as noes de boas maneiras e de etiqueta, que distinguia a elite aristocrtica das classes menos abastadas. Na sociedade do espetculo, estas noes so evidenciadas, ocorrendo um entrecruzamento da vida privada do governante, com sua vida pblica, gerando a mxima governa-se, governar os outros. Era preciso estabelecer o ethos de bom governante em todos os mbitos de sua vida; ii) o que convencionou chamar de fim da histria, ou fim das utopias, tambm possuiu influncia cabal no surgimento da poltica midiatizada. O declnio dos regimes socialistas, tal como enfraquecimento dos estados fortes e do Welfare State, propiciou na incorporao de estratgias que propiciem tornar mais palatvel o discurso poltico (Piovezani, 2003, p.54). J no Brasil, a espetacularizao ocorreu logo aps da dissoluo do autoritarismo do regime militar (conhecido por sua retrica ao molde fascista), como forma de converter o desinteresse e o descrdito popular frente ao discurso poltico. Contraposta espetacularizao da mdia, devemos tambm perceber a politizao da mdia contempornea, que na anlise de Piovezani (2013) ocorreu porque devido ao enfraquecimento do Estado, segundo ele O enfraquecimento do Estado-providncia no somente possibilitou o deslocamento das estratgias miditicos-publicitrias do mercado (instncia do foro privado) para o cerne do campo poltico (lugar da res publica), mas tambm fomentou a atuao politizada da sociedade civil. Em outras palavras, o encolhimento do raio de ao estatal teria estabelecido, em contrapartida, a ampliao da poltica/moral para o espao privado/tico. (p.57) Tendo em vista nosso objetivo de identificar e interpretar a ocorrncia e a reiterao de alguns procedimentos discursivos na materializao de ideologias reacionrias produzidas e/ou reproduzidas por grandes veculos da mdia brasileira, quando da emergncia de recentes e relevantes fatos e fenmenos com potencial transformador (real e/ou imaginrio) na sociedade brasileira contempornea, importante se ater as nuances do discurso poltico. Como j dizia Saussure a lngua opaca e no transparente. Com isso, o linguista suo queria dizer que o sentido no estava nas palavras em si, mas no valor dado a elas na relao. O valor do signo lingustico dado atrs da relao com os demais no sistema. De maneira isomorfa, Charaudeau ([2005] 2008), logo em seu prefcio, classifica o discurso poltico como o lugar de um jogo de mscaras, onde cada palavra pronunciada no campo poltico deva ser tomada, ao mesmo tempo, pelo que ela diz e no diz, como resultado de uma estratgia cujo enunciador nem sempre soberano. O discurso poltico o lugar de um jogo de mscaras. Mas afinal, o que seria o discurso poltico? Seriam os discursos produzidos no campo da poltica? Da poltica enquanto discurso? Charaudeau ([2005) 2008), tal como Piovezani (2009), classificam o discurso poltico como um todo complexo ao qual se atribuem certos dizeres que esto passveis de serem analisados. Piovezani (idem) inicialmente toma o discurso poltico como um mito, uma vez que pressupe um conjunto de crenas que lhe d sustentao. Barthes, em sua obra Mitologias [1957], postulava que o mito era o instrumento apropriado para a inverso ideolgica, possuindo como funo transformar uma inteno histrica em natureza, i.e., se caracterizando como uma ao despolitizante, visando um apagamento de histria. Logo, para Barthes, o mito era o prprio processo da ideologia burguesa. No discurso poltico, a simulao de um saber e de um poder visa a um fazer-crer e a um fazer-fazer, uma vez que ultrapassando o nvel da convico, deseja atingir o nvel da ao. Por essa razo, o que Barthes, naquele tempo, considerava ser uma propriedade da fala poltica, cremos, hoje, que se trata, antes, de um de seus efeitos ou uma de suas crenas constitutivas (PIOVEZANI, 2009, p.98). Dessa forma, ao refletir sobre o modo como a mdia brasileira fala da poltica nacional, Piovezani (2003) afirma que a primeira outorga a si mesma uma condio politizada de porta-voz da sociedade civil, produzindo efeitos de legitimidade e credibilidade em seu prprio dizer. Desse modo, a conjuno entre a contemplao dicotomizada do campo poltico, sob a forma do par ser/verdade X parecer/mentira-segredo, e a aquisio fiduciria do poder simblico poltico, proporciona esfera miditica aduzir-se como agente (poltico) deslindador ou, antes, em funo de sua suposta politizao, como porta-voz daqueles que j alijados do poder (que, paradoxalmente, eles mesmos concederam), impossibilitados de agir efetivamente no espao poltico, devem contentar-se com a mera assistncia do desenrolar das aes ali empreendidas. Eis a poltica como teatro: de um lado, no palco, a atuao, a representao (no duplo sentido que ela a comporta); de outro, na plateia, a passividade espectadora, ou, talvez, a circunscrio das aes no limite do aplauso ou da vaia; e, de repente..., ainda, a