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Revista Tecer - Belo Horizonte – vol. 1, nº 0, maio 2008 142 Língua: pluralismos, dinamismos, poder e textualidade Alemar Silva Araújo Rena Resumo Para melhor lidar com textos em geral, questões como o universo contextual, estilo, jogos de estranhamento, funções da linguagem, a língua como poder, fatores de textualidade, entre outras, precisam ser estudadas e consideradas na práxis. Procurarei discorrer, neste artigo, sobre tais questões sob um viés ligado à realidade jornalística, sem, no entanto, ignorar reflexões em outros campos discursivos. Palavras-chave: língua; jornalismo; fatores de textualidade. Abstract In order to better deal with texts in general, issues such as context, style, language functions, language as a tool to impose power, and standards of textuality are to be studied in practice. In this article, I intend to approach these issues taking into consideration text production in journalism as well as in other discursive fields. Keywords: language; journalism; textuality factors. Pluralismos, dinamismos e poder Ainda que soe estranho para boa parte dos falantes, a língua possui por natureza caráter mutante e impuro, ou seja, novas palavras são criadas ou ganham novos sentidos, estruturas sintáticas se alteram e vernáculos se misturam gerando, no mais das vezes, ampliações positivas. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, a língua, “[...] utilização social da faculdade da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela ao organismo social que a criou.” (2001, p. 1) Além de ser objeto sociocultural em constante mudança, ela traz ainda arraigados, em qualquer ponto de sua escala temporal de evolução, diversos sistemas linguísticos, o que faz dela um diassistema e a torna não um instrumento de comunicação com caráter de regulação interno único, mas marcado por variações que se dão no âmbito do espaço geográfico, das diferenças das camadas socioculturais e dos tipos de modalidades expressivas. Para se referir a essas variações surgem rótulos como Mestre em Teoria da Literatura pela FALE – UFMG, docente do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e do curso de pós-graduação Processos Criativos em Palavra e Imagem da PUC-MG. Desenvolve pesquisas nas áreas de comunicação, tecnologias e cognição, inteligência coletiva, comunicação em redes, autoria e obra no universo do digital.

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RENA PluralismoPoder

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  • Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 1, n 0, maio 2008

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    Lngua: pluralismos, dinamismos,

    poder e textualidade

    Alemar Silva Arajo Rena

    Resumo

    Para melhor lidar com textos em geral, questes como o universo contextual, estilo,

    jogos de estranhamento, funes da linguagem, a lngua como poder, fatores de

    textualidade, entre outras, precisam ser estudadas e consideradas na prxis. Procurarei

    discorrer, neste artigo, sobre tais questes sob um vis ligado realidade jornalstica,

    sem, no entanto, ignorar reflexes em outros campos discursivos.

    Palavras-chave: lngua; jornalismo; fatores de textualidade.

    Abstract

    In order to better deal with texts in general, issues such as context, style, language

    functions, language as a tool to impose power, and standards of textuality are to be

    studied in practice. In this article, I intend to approach these issues taking into

    consideration text production in journalism as well as in other discursive fields.

    Keywords: language; journalism; textuality factors.

    Pluralismos, dinamismos e poder

    Ainda que soe estranho para boa parte dos falantes, a lngua possui por natureza

    carter mutante e impuro, ou seja, novas palavras so criadas ou ganham novos

    sentidos, estruturas sintticas se alteram e vernculos se misturam gerando, no mais

    das vezes, ampliaes positivas. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, a lngua, [...]

    utilizao social da faculdade da linguagem, criao da sociedade, no pode ser

    imutvel; ao contrrio, tem de viver em perptua evoluo, paralela ao organismo

    social que a criou. (2001, p. 1)

    Alm de ser objeto sociocultural em constante mudana, ela traz ainda arraigados, em

    qualquer ponto de sua escala temporal de evoluo, diversos sistemas lingusticos, o

    que faz dela um diassistema e a torna no um instrumento de comunicao com

    carter de regulao interno nico, mas marcado por variaes que se do no mbito

    do espao geogrfico, das diferenas das camadas socioculturais e dos tipos de

    modalidades expressivas. Para se referir a essas variaes surgem rtulos como

    Mestre em Teoria da Literatura pela FALE UFMG, docente do Centro Universitrio Metodista Izabela

    Hendrix e do curso de ps-graduao Processos Criativos em Palavra e Imagem da PUC-MG. Desenvolve

    pesquisas nas reas de comunicao, tecnologias e cognio, inteligncia coletiva, comunicao em redes,

    autoria e obra no universo do digital.

  • Revista Tecer - Belo Horizonte vol. 1, n 0, maio 2008

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    variantes regionais, nvel culto, lngua padro, nvel popular, lngua falada,

    lngua escrita, lngua literria, linguagem dos homens, linguagem das mulheres,

    etc. Roland Barthes dizia Se eu fosse legislador (...) eu encorajaria (...) a aprendizagem

    simultnea de vrias lnguas francesas, com funes diversas, promovidas igualdade.

    (...) Essa liberdade um luxo que toda sociedade deveria proporcionar a seus

    cidados: tantas linguagens quantos desejos houver. (2004, p. 24)

    Se a lngua se apresenta intrinsecamente multifacetada, incorporadora de sistemas e

    subsistemas diversos, no se deve falar em uma nica utilizao correta da mesma.

    Para Otto Jespersen, falar correto significa falar o que a comunidade espera, e erro

    em linguagem equivale a desvios desta norma, sem relao alguma com o valor

    interno das palavras ou formas, ou seja, em sentido lato, uma questo de

    situacionalidade, um dos fatores da textualidade* (apud CUNHA e CINTRA, 2001, p. 6).

    A situacionalidade diz respeito aos elementos responsveis pela pertinncia e

    relevncia do texto quanto ao contexto em que ocorre, isto , uma adequao

    situao sociocomunicativa.

    Extrapolando essa questo podemos fomentar, na esfera da interpretao textual,

    consideraes mais pertinentes. Em diversas ocasies, o receptor ingnuo encontra-se

    desarmado perante o discurso retrico rebuscado mal intencionado. Ao crer na lgica

    do quanto mais estruturalmente complexo melhor, ele facilmente levado a avaliar

    positivamente um texto apenas pelo seu grau de complexidade formal. Ele para no

    nvel de significao das palavras enquanto elementos autnomos, que ainda no se

    tornaram agentes produtores de significados em um dado contexto, e ento pe em

    prtica a sua lgica absurda, mas recorrente, de complexo equivalente a aceitvel,

    bom.

    Essa se torna uma conjuntura comum quando o poltico usa sua habilidade com as

    palavras, adquirida pelos anos de discursos em palanques, para falar pouco, no plano

    do contedo, mas rebuscadamente no plano da forma, utilizando figuras de linguagem,

    torneios de estilo, lxico obscuro e desatualizado, etc. O ingnuo receptor se v

    diante de uma soluo: julgar o discurso por sua complexidade formal apenas uma

    vez que ele no o assimilou , e assim aprov-lo.

    Evidentemente, nem sempre o discurso portador de uma estrutura sinttica ou lexical

    complexa apresenta ausncia de informaes no nvel do contedo. Mas o discurso

    complexo e rebuscado mesmo imbudo de contedo pertinente e bem elaborado

    conceitualmente pode ser usado para exercer poder e manipulao. Gnerre nos lembra

    que no Brasil os cidados, apesar de declarados iguais perante a lei, so, na

    realidade, discriminados j na base do mesmo cdigo em que a lei redigida. (1998,

    p. 10) Uma enorme fatia da populao brasileira economicamente desprivilegiada no

    tem acesso ou, pelo menos, tem uma possibilidade reduzida de acesso norma

    padro. Mas o bom uso dessa variante, entre outras coisas, pr-requisito para a

    compreenso do discurso oficial e ascenso socioeconmica que, por sua vez, pode

    * Maria da Graa Costa Val define textualidade como o conjunto de caractersticas que fazem com que um

    texto seja um texto, e no apenas uma sequncia de frases. Ver Redao e Textualidade (1999). Seguindo

    o mesmo caminho da autora, utilizo em minha discusso alguns fatores de textualidade estudados por

    Robert Alain de Beaugrande e Wolfgang U. Dressler em Introduction to Text Linguistics (1983).

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    permitir ao cidado proporcionar uma educao de melhor qualidade a seus filhos.

    Como se v, um ciclo vicioso que s pode ser interrompido pela interveno forte

    do Estado atravs de pesados investimentos em educao gratuita e eficiente, o que

    no o caso brasileiro.

    Embora exista toda uma problemtica que concerne utilizao da lngua padro, sua

    existncia em si no deveria gerar conflitos. Pelo contrrio,

    a linguagem expressa o indivduo por seu carter de criao, mas

    expressa tambm o ambiente social e nacional, por seu carter de

    repetio, de aceitao de uma norma (grifo meu), que ao mesmo

    tempo histrica e sincrnica: existe o falar porque existem os indivduos

    que pensam e sentem, e existem lnguas como entidades histricas e

    como sistemas e normas ideais, porque a linguagem no s expresso

    (grifo meu), finalidade em si mesma, seno tambm comunicao,

    finalidade instrumental, expresso para outro, cultura objetivada

    historicamente e que transcende ao indivduo (grifo meu). (COSERIU apud

    CUNHA e CINTRA, 2001. p. 7)

    Eugenio Coseriu apresenta a lngua enquanto uma dicotomia muito prpria dela. O

    cdigo lingustico (1): ferramenta pela qual indivduos se expressam; e (2): resultado

    de um processo social que, para fins pragmticos, precisa de uma norma, portanto

    cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivduo. Da a importncia

    de livros de referncia como gramticas e dicionrios que, ao buscar desempenhar a

    difcil tarefa de, ao mesmo tempo, refletir e documentar normativamente uma lngua,

    so indispensveis ferramentas para a projeo de um cdigo lingustico padro

    enquanto instrumento eficiente no processo de comunicao de uma nao.

    Essa dicotomia na qual se acha a lngua vem apenas reforar a assero de que

    pens-la exige a compreenso de suas complexas multiplicidades geradas por fatores

    polticos, sociais, econmicos e culturais. Como instncia dinmica e plural dentro de

    uma sociedade, a lngua se apresenta multifacetada e passvel de novas interferncias

    em suas diversas instncias, e o fato de se buscar uma norma to somente uma

    determinao mais ou menos pragmtica e objetiva de uma sociedade.

    Textualidade na inveno

    Dois fatores de textualidade ligados questo da pragmtica do discurso so a

    intencionalidade e a aceitabilidade. A intencionalidade concerne ao empenho do

    produtor em construir um discurso coerente, coeso e capaz de satisfazer os objetivos

    que tem em mente uma determinada situao comunicativa. (VAL, 1999, p. 10) A

    aceitabilidade se encontra no mbito da recepo e diz respeito expectativa do

    recebedor de que o conjunto de ocorrncias com que se defronta seja um texto

    coerente, coeso, til e relevante, capaz de lev-lo a adquirir conhecimentos ou a

    cooperar com os objetivos do produtor. (ibid, p. 11) No h frmulas para a

    produo de textos coesos e coerentes e o que nos guia na busca pela coerncia e

    coeso dois outros fatores de textualidade que se relacionam com o material

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    conceitual e lingustico do texto no sempre a lngua padro. Um estilo textual

    que soa coeso e coerente numa nota jornalstica de um caderno de esportes pode

    no soar coerente na obra de Guimares Rosa, e vice-versa.

    Mas fato que quanto mais o leitor emprico aquele que realmente vai ler o texto

    se aproxima do leitor modelo* o leitor imaginado como ideal pelo autor mais

    chances de sucesso tem uma produo textual. No entanto, essa aproximao nem

    sempre simples de ser alcanada. Por vezes, o autor deseja gerar tenso no

    processo interpretativo a fim de surpreender o leitor. Nesse caso, o seu texto vai se

    distanciar, intencionalmente e conscientemente, da aceitabilidade, gerando assim um

    estranhamento do leitor em relao ao texto. O autor controla este estranhamento

    para que se atinja um objetivo planejado. Mas a aceitabilidade pode se encontrar

    desestabilizada apenas em um primeiro momento, pois, aps perceber a

    intencionalidade ali contida, o leitor rearranja sua posio perante o texto para

    completar, de modo j esperado pelo autor, o processo comunicacional, tornando-se,

    por fim, um leitor modelo.

    muito comum que esses jogos de estranhamento e rompimento com a linguagem

    formal padro partam de autores e jornalistas provenientes do meio literrio e

    artstico. Eles trazem para a linguagem jornalstica traos muito tpicos da linguagem

    literria como a quebra de coeso formal, multissignificao, intertextualidade mais

    acentuada, ritmo forte, desapego pela norma padro quando julgado apropriado, maior

    apuro estilstico e maior nfase nas funes emotiva e esttica da linguagem.

    Vejamos o texto Barulho msica, de Arnaldo Antunes, originalmente publicado no

    caderno Folhinha da Folha de So Paulo e posteriormente republicado no livro 40

    Escritos:

    Barulho msica? Quem pode me dizer se barulho . Msica? E se as

    falas das pessoas falando forem. Canes? Velhas orelhas ouvem o rock

    e dizem: Essa barulheira infernal no . Msica. Abaixe o volume!

    berram as orelhas velhas. Mas no d pra passar a vida ouvindo s

    canes de ninar. E se os carros na rua forem to bons compositores

    quanto o vento nos bambus? E os sabis? Msica. Pode ser feita por

    algum, mas tambm se faz. Um compositor chamado John Cage disse:

    Os sons que a gente ouve so. Msica. O que a lavadeira faz com as

    roupas no tanque. O que o guarda noturno faz com seu apito. O que os

    dentes fazem com as batatas chips dentro da cabea. O que fazem a

    chuva, o mar, a televiso, os passos, o piano, as panelas, os relgios. Tic

    tac tic tac. O corao. Bom bom bom bom. Uma msica que no

    brasileira, nem americana, nem africana, nem de nenhuma parte do

    planeta porque . Do planeta todo. Fechando os olhos fica mais fcil da

    gente escutar. Ela. (2000, p. 39)

    Nesta crnica-poema Antunes conversa com seu pblico sobre a possibilidade de

    msica no ser somente o que se convencionou chamar de msica, o que fora

    enquadrado em padres rtmicos e meldicos previstos em mtodos de msica e

    * Os conceitos leitor modelo e leitor emprico podem ser achados em Lector in Fabula (1979), de Umberto Eco.

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    presentes em praticamente todas as rdios no mundo. O texto de Antunes teria

    apenas uma informao a passar, do ponto de vista do discurso objetivo e preso ao

    referencial: barulho do dia a dia tambm pode ser msica, dependendo do ponto de

    vista. No entanto, ao quebrar com elementos coesivos formais observe que o verbo

    ser no se comporta transitivamente em quem pode me dizer se barulho . Msica

    (1) como sugere a gramtica da lngua padro , Antunes busca outros campos de

    atuao que vo alm da funo referencial. As palavras so trabalhadas em dois

    nveis semnticos, artifcio muito comum na poesia; ao mesmo tempo em que no

    plano do contedo ele faz uma pergunta, ele sugere uma resposta no plano da forma:

    sim, parece dizer ele, se meu texto pode no seguir os padres formais da lngua

    quanto transitividade do verbo ser, gerando um barulho lingustico, ento voc,

    leitor, pode aprender a perceber a msica do barulho.

    Em outros momentos como e se os carros na rua forem to bons compositores

    quanto o vento nos bambus?, Antunes brinca com a coerncia externa ao texto, com

    a prpria lgica de mundo do recebedor de sua mensagem, pois, ao ler essa frase o

    leitor se pergunta: mas bambus so bons compositores?. Na verdade, novamente o

    autor nos prope uma questo e simultaneamente a responde; desta vez no no

    plano da forma, como em 1, mas no plano do prprio contedo: se a pergunta

    assume que bambus so bons compositores, destarte os carros tambm o podem ser.

    Antunes vai em direo oposta quela da prtica da escrita objetiva presa funo

    referencial da linguagem apenas, aquela que traz consigo o sentido explcito e em

    primeiro plano, que apresenta forma atrofiada e enrijecida, presa a frmulas. Em seus

    textos, publicados em jornais, catlogos, revistas, CDs ou livros de poesia, Antunes

    busca um arranjo sofisticado que se d no plano da funo potica, tanto no nvel

    semntico do contedo quanto da forma. Publicado no ambiente jornalstico, fica

    como paradigma seno de estilo (os textos informativos do jornal obviamente no

    podem seguir suas subverses), certamente de uma postura inventiva perante a lngua

    que pode potencializar a comunicao e neutralizar a mesmice sufocante da

    objetividade pragmtica.

    Referncias

    ANTUNES, Arnaldo. 40 escritos. So Paulo: Iluminuras, 2000.

    BARTHES, Roland. Aula. So Paulo: Cultrix, 2004.

    CMARA, Joaquim Matoso. Manual de expresso oral e escrita. Petrpolis: Vozes, 2001.

    p. 134.

    CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova gramtica do portugus contemporneo. Rio de

    Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    KOCH, Ingedore. O texto e a construo dos sentidos. So Paulo: Contexto, 2001.

    VAL, Maria da Graa. Redao e textualidade. So Paulo: Martins Fontes, 1999.