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Revista Acadêmica Faculdade Progresso V. 4, N.2, 2018
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Revista Acadêmica Faculdade Progresso V. 4, N.2, 2018
Os artigos aqui publicados refletem a posição
de seus autores e são de sua inteira responsabilidade.
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Revista Acadêmica Faculdade Progresso V. 4, N.2, 2018
A TIPICIDADE CONGLOBANTE COMO INSTITUTO CONCRETIZADORDO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO DIREITO PENAL
Sylvia Helena Ono1
Resumo : O presente trabalho visa uma reflexão acerca da teoria da tipicidade conglobante,
criada por Eugenio Raúl Zaffaroni, como instituto concretizador da dignidade da pessoa
humana no âmbito do direito penal. Demonstraremos que em consonância ao ordenamento
jurídico vigente e aos tratados internacionais de direitos humanos, o direito penal há de
acompanhar, no mesmo passo, a evolução dos tempos, adotando teorias modernas como a da
tipicidade conglobante na aplicação da persecução penal do Estado, filtrando condutas
criminosas daquelas que não o são, por imposição ou fomentação de condutas pelo próprio
Direito. Assim, por meio de uma abordagem reflexiva, trataremos do tema consubstanciado
nos princípios constitucionais da legalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade
encampados pela Constituição Cidadã de 1988 como direitos fundamentais do homem, ora
corolários da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Tipicidade Conglobante. Direitos Fundamentais. Exercício Regular de
Direito. Estrito Cumprimento do Dever Legal. Atipicidade. Dignidade Humana.
Abstract: This work aims to reflect on the theory of conglobante typicity, created by Eugenio
Raul Zaffaroni, as concretizing of Institute of human dignity in the context of criminal law.
We'll demonstrate that in accordance to the legislation in force and to international human
rights treaties, the criminal law's track, in step with the trend of the times, should adopting
modern theories such as the conglobante application of criminal persecution the State,
filtering criminal behaviors of those who are not criminal, by imposition or incentive by the
law. Thus, through a reflective approach, we will deal with the theme embodied in the
constitutional principles of legality, rationality and proportionality taken over by the Citizen
Constitution 1988 as fundamental rights, corollaries of the dignity of the human person, the
1 Advogada atuante na Justiça Militar do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Militar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMP). Professora de Direito Militar e Direito Penal no Curso de Direito da Faculdade Progresso. Professora da pós-graduação em Direito Militar na Escola Paulista de Direito (EPD). Mestre em Direitos Humanos pela UNIFIEO. Email: [email protected]
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foundation of democratic state.
Keywords: Conglobante Typicity. Fundamental Rights. Regular Exercise of Law. Strict
compliance wtih the Legal Obligation. Atypicity. Human Dignity.
Sumário: 1. Introdução. 2. Da Tutela Penal dos Bens Jurídicos. 3. Da tutela penal do bemjurídico à luz da Teoria do Crime. 3.1 Da tipicidade. 3.2 Da antijuridicidade. 4. Da tutelapenal do bem jurídico à luz Tipicidade Conglobante. 5. Conclusão. 6. Referênciasbibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com a dicção do art. 1º, inciso III, da vigente Constituição da República, a
dignidade da pessoa humana constitui-se num dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito, assumindo o caráter de verdadeiro princípio político fundamental estruturante do Estado,
pelo qual nosso ordenamento jurídico, na sua inteireza, deve se pautar como princípio reitor na
interpretação de todos os direitos e garantias conferidos aos cidadãos na Carta Constitucional.
Conforme ensinamentos de José Afonso da Silva (2002)2 "a dignidade da pessoa humana é
um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o
direito à vida." Assim, como um valor supremo do cidadão, impõe-se uma maximização valorativa
da dignidade humana no seu amplo sentido normativo-constitucional.
Por essa razão, os reflexos de tão importante fundamento republicano - a dignidade da
pessoa humana - deve reverberar em todo e qualquer ramo do direito que atinja, direta ou
indiretamente, os direitos e garantias constitucionais das pessoas, notadamente no Direito Penal que
cuida do ius libertatis dos cidadãos.
Num Estado Democrático de Direito onde se prega a máxima da dignidade humana, o
direito penal, sendo um ramo do direito apto a impor restrição do direito fundamental da liberdade,
deve ser um Direito Penal Garantista, de modo a submeter o cidadão à persecução penal do Estado
se, e somente se, houver real ofensividade ao bem jurídico penalmente tutelado e, mais do que isso,
se tal ofensividade não for legal e excepcionalmente autorizada ou fomentada por lei.
Ocorre, que por conta de antinomias do sistema jurídico algumas condutas humanas, apesar
2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20º ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 105.
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de autorizadas por lei, não raras vezes são também consideradas antijurídicas à luz do direito penal
e, bem por isso, paradoxalmente são levadas a efeito no campo criminal perante as polícias
judiciárias (civil ou militar) assim como perante as varas criminais do Poder Judiciário por
provocação do Ministério Público no exercício do seu múnus público da persecução penal do
Estado.
Contudo, a experiência forense tem demonstrado que a totalidade desses paradoxais casos de
deflagração da persecução penal se revelam inúteis, porquanto os inquéritos policiais acabam sendo
arquivados a requerimento do próprio dominus litis, ou, quando iniciada a ação penal, os
respectivos processos-crime culminam inexoravelmente na absolvição do acusado por exclusão da
ilicitude, em ambos os casos com fundamento no art. 23, inciso III ou IV, do Código Penal (no caso
dos crimes militares, art. 42, incisos III ou IV do Código Penal Militar), que se referem,
respectivamente, ao estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito.
Apesar de tais resultados jurídicos serem favoráveis ao acusado da suposta infração penal, a
mera instauração do procedimento criminal causa consequências inevitáveis, desastrosas e
permanentes ao cidadão que outrora foi submetido à constrangedora situação de investigado num
inquérito policial ou à condição de réu num processo-crime, este desde o início estava fadado à
improcedência da acusação ministerial, porquanto, fica a mácula indelével de um dia ter sido
investigado ou réu perante o Judiciário.
Referida mácula se estende, sobretudo, perante toda a sociedade, a qual, não obstante o
passar dos anos, invariavelmente estigmatiza e negativa permanentemente o cidadão, sob a pecha de
outrora ter sido investigado ou réu em processo-crime, seja por conta da ignorância dos leigos em
matéria jurídica, seja porque contaminada pela mídia sensacionalista que na época repercutiu em
meios de comunicação em massa.
Pior que isso, permanece a mácula no íntimo do próprio cidadão injustamente submetido à
odiosa persecução penal, já que resta perene o sentimento de constrangimento e humilhação que
jamais será reparado, atingindo, de forma pungente, a sua dignidade humana.
Nesse passo, o presente trabalho tem por escopo refletir acerca da sábia teoria construída
pelo penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni – a teoria da tipicidade conglobante – como uma
solução a ser adotada para dirimir a antinomia jurídica existente em nosso ordenamento normativo
que, sob a tradicional dogmática do direito penal, sistematicamente viola a dignidade da pessoa
humana, valor supremo do cidadão e que se constitui num dos fundamentos do Estado
Constitucional Democrático de Direito.
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2. DA TUTELA PENAL DOS BENS JURÍDICOS
É através do direito penal, em harmonia com o direito constitucional, que o legislador elege,
pelos critérios de relevância e preferência, quais bens jurídicos merecem a proteção penal de acordo
com os valores indispensáveis à convivência humana, objetivando a busca da pacificação e
viabilidade social. Com efeito, o interesse estatal de tutelar alguns bens jurídicos através de sua
normatização penal decorre das próprias funções essenciais do Estado Democrático e Social de
Direito de proteger e concretizar os valores fundamentais da sociedade e de garantir a pacificação
social, surgindo daí a consagração dos bens jurídicos que formam a base material para a tipificação
de tipos penais.
Nesse passo, oportuna a lição de Miguel Navarrete (apud LIBERATTI, 2000)3 que afirma:
“sem a presença de um bem jurídico de proteção prevista no preceito punitivo, o próprio Direito
Penal, além de resultar materialmente injusto e ético-socialmente intolerável, careceria de sentido
como tal ordem de direito”.
Por outro lado, tratando-se do ramo do direito apto a restringir direito fundamental do ius
libertatis do cidadão, o direito penal também possui o viés de delimitar o poder punitivo estatal,
cuja intervenção penal está indissoluvelmente vinculada às determinações do bem jurídico tutelado
pela norma incriminadora, a qual também delimita a extensão da pena em função do valor atribuído
ao bem jurídico lesado.
O bem jurídico é um produto sócio-histórico decorrente das bases das relações sociais de um
determinado período. Sem qualquer intenção de nos aprofundar na parte histórica, apenas
importante destacar que o bem jurídico-penal surgiu através de uma evolução histórica em
contraposição ao Ancien Régime em que o direito penal de outrora era produzido de forma arbitrária
com definições de delito de forma indeterminada. Foi com a filosofia penal iluminista que o
postulado da garantia dos bens individuais prosperou e prevaleceu em detrimento do arbítrio
judicial e da gravidade das penas. A partir daí, surgiu um conceito material de delito: “violação de
um direito subjetivo variável, de acordo com a alteração da espécie delitiva e pertencente à pessoa
ou ao Estado” (PRADO, 1996).4
3 Apud LIBERATI, Wilson Donizeti. Bem jurídico-penal e constituição. In: LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro; LIBERATI, Wilson Donizeti (Org.). Direito Penal e Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 158.
4 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p.23.
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Posteriormente, surgiram várias outras Escolas Jurídicas5 aprimorando e modernizando o
conceito de bem jurídico-penal. No sistema criminal neokantiano, bem jurídico é compreendido
como um valor abstrato e cunho ético-social, tutelado pela norma penal6, ou seja, “valor abstrato e
juridicamente protegido da ordem social” (JESCHECK, 1993).7
Atualmente, o conceito de bem jurídico é extraído da própria Constituição Federal que
fornece um quadro axiológico penalmente tutelável, conforme oportuno magistério de Luiz Regis
Prado (1996):
[...] o próprio conteúdo liberal do conceito de bem jurídico exige que sua proteção seja feitatanto pelo direito penal como ante o direito penal. Encontram-se, portanto, na normaconstitucional as linhas substanciais prioritárias para a incriminação ou não de condutas.[...] A conceituação material do bem jurídico implica o reconhecimento de que o legisladoreleva à categoria de bem jurídico o que já na realidade social se mostra bem como umvalor. Esta circunstância é intrínseca à norma constitucional, cuja virtude não é outra que ade retratar o que constitui os fundamentos e os valores de uma determinada época. Não criavalores a que se refere, mas se limita a proclamá-los e dar-lhes um especial tratamentojurídico.8
Obviamente, que a delimitação dos bens jurídicos penalmente tuteláveis sofrem uma
limitação fática, porquanto “impossível aprisionar o bem jurídico num conceito hermético, que
esgote qualquer dúvida em relação ao seu conteúdo” (BIANCHINI, 2002).9 De toda forma, o
inventário de bens jurídicos penalmente tuteláveis de um Estado, bem como sua limitação material,
dependem da estruturação política do Estado em que se situa. Num Estado Democrático de Direito
bem pontua Alice Bianchini (2002) que:
um Estado do tipo democrático e de direito deve proteger, com exclusividade, os bensconsiderados essenciais à existência do indivíduo em sociedade. A dificuldade encontra-se,exatamente, na identificação desta classe de bens. A determinação do que seria digno detutela penal representa uma decisão política do Estado, que, entretanto, não é arbitrária, mascondicionada à sua própria estrutura. Em um Estado social e democrático de direito, aeleição dos bens jurídicos haverá de ser realizada levando em consideração os indivíduos esuas necessidades no interior da sociedade em que vivem. A seleção dos bens jurídicos, afim de contemplar os interesses individuais, à vista das necessidades concretas doindivíduo, encontra-se sujeita a limitações impostas ao Estado, no exercício do juspuniendi.10
5Feuerbach, Birnbaum, Binding, Kaufmann, Von Liszt, Welzel.6 PRADO, Luiz Regis. op. cit., p.29.7JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. 4 ed. Granada: Comares, 1993.8 PRADO, Luiz Regis. op. cit., p.67.9BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
p. 42.10 _________. p. 41.
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De certo que os bens jurídico-penais assumem caráter fundante da intervenção estatal,
porquanto referidos bens jurídicos regulam o fundamento e o limite legitimador do direito penal,
sendo relevante ressaltar que vigora o princípio da intervenção mínima do Estado, pelo qual nem
todo bem jurídico enseja a proteção do direito penal, mas tão somente aqueles que gozam de certa
importância, considerados essenciais à existência do indivíduo em sociedade.
Contudo, o estabelecimento constitucional dos bens jurídicos-penais que representam os
bens socialmente relevantes se presta apenas para limitar a atividade legiferante do legislador
ordinário em matéria penal, de forma que a valoração de um comportamento incriminador na
persecução penal não se esgota ao bem jurídico penalmente tutelado pela lei incriminadora,
exigindo, ainda, uma análise e interpretação da conduta à luz da teoria do crime, bem como em
consonância com todo o arcabouço legislativo que integra o sistema normativo, consoante
estudaremos adiante pela tipicidade conglobante.
3. DA TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO À LUZ TEORIA DE CRIME
Antes de analisarmos a teoria da tipicidade conglobante, necessário fazer uma pequena
incursão na teoria do crime, cuja doutrina ainda se divide quanto à estruturação analítica do delito,
em teoria tripartida e teoria bipartida.
Para os defensores da teoria tripartida, também conhecida como teoria causalista da ação
ou teoria clássica, criada por Franz Von Listz crime é um fato típico, antijurídico e culpável, cujo
sistema jurídico penal se concebe pelo ato humano (ação ou omissão) como fenômeno causal
natural do delito, sendo certo que o exame do processo psicológico que determinou essa ação ou
omissão, isto é, o dolo ou a culpa do agente, não pertencem ao estudo da fase objetiva do delito,
senão à subjetiva, ou seja da culpabilidade (terceiro elemento do conceito de crime).
Já a teoria bipartida, também conhecida como teoria finalista da ação, criada por Hanz
Welzel, crime é apenas um fato típico e antijurídico. Para Welzel, o delito também é uma ação,
conduta voluntária do agente, porém voltada para uma finalidade, isto é, uma ação ou omissão cujo
agente persegue um fim por dolo ou culpa, sendo a culpabilidade, assim, um pressuposto de
aplicação da pena por política criminal. Assim, para esta teoria, o dolo e culpa são analisados ainda
no primeiro elemento do conceito de crime, qual seja, a tipicidade.
O fato é que, independentemente de qual das duas teorias acima for adotada, a teoria do
crime nos ensina que uma conduta será considerada criminosa, sob o enfoque penal, se ela for
típica e antijurídica, ou seja, se a referida conduta for prevista em lei penal substantiva e se for
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proibida ou não autorizada por lei, respectivamente, para sofrer a devida repressão no elemento
culpabilidade.
Em outras palavras, para ser considerada criminosa e passível de sanção repressora, a
conduta há de preencher, pari passu, todos os requisitos elementares do crime: a tipicidade, sob
pena se ser considerada atípica; a antijuridicidade, sob pena se ser considerada lícita; e a
culpabilidade, sob pena de o agente não sofrer sanção.
Todavia, diante das garantias constitucionais asseguradas pelo ordenamento jurídico vigente
e pelos tratados internacionais de direitos humanos, ora adotados pelo Brasil, a questão deixou de
ser tão simples quanto colocava a doutrina tradicional, exigindo do aplicador do direito penal uma
interpretação e adequação mais acurada da norma com o fato punível para a responsabilização do
suposto infrator. E uma das soluções para o aplicador do direito não recair em error in judicando é a
adoção de ciências jurídicas modernas, como a portenha teoria da tipicidade conglobante que
veremos ao longo deste artigo.
O estudo da tipicidade conglobante envolve, inexoravelmente, o estudo da teoria do delito,
todavia, considerando que a proposta do presente trabalho não é o estudo da teoria do crime, nos
limitaremos a discorrer com mais vagar sobre o elemento da tipicidade (primeiro elemento do
conceito de crime) que apesar de possuir óticas diferentes perante as duas teorias – causalista e
finalista – ambas convergem no sentido de se tratar do primeiro elemento do conceito de crime.
De maneira perfunctória, porém, também ingressaremos no elemento antijuridicidade
(segundo elemento do conceito de crime), porquanto, de forma reflexa, tal elemento também está
intimamente ligado à teoria da tipicidade conglobante.
3.1. Da Tipicidade
Consoante nos ensina a melhor doutrina o fato típico é composto por quatro elementos:
conduta do agente, resultado, nexo causal e tipicidade. Essa tipicidade, porém, se trata de mera
tipicidade formal consistente na simples subsunção do fato à norma jurídica, isto é, mera adequação
formal.
A conduta é a simples exteriorização da vontade humana (qualquer comportamento
humano) que pode ser comissiva ou omissiva, espontânea e consciente, culposa ou dolosa,
direcionada a um objetivo. A conduta, seja ela comissiva ou omissiva, é indispensável para a
existência de um crime, conforme resume o brocardo nullum crimen sine actione. O resultado é o
produto final gerado pela conduta e pode ser resultado jurídico ou normativo, que corresponde,
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respectivamente, ao dano ou perigo de dano a um bem jurídico penalmente tutelado. Nas palavras
de Nelson Hungria (1983)11 resultado é "a consequente lesão ou periclitação de um bem ou interesse
jurídico penalmente tutelado". O nexo causal é o liame entre a conduta do agente e o resultado
produzido. E a tipicidade, como se disse alhures, consiste na simples adequação do fato concreto ao
tipo penal abstratamente prevista na norma. Portanto, trata-se de uma tipicidade formal.
Pois bem, de acordo com a sistema tradicional da teoria do crime, a análise da tipicidade,
antes da deflagração da persecução penal, é realizada de maneira perfunctória, pois, como já
mencionado, é verificado apenas se a conduta do agente se amolda aos exatos elementos da conduta
descrita no tipo penal. É a denominada tipicidade formal.
Assim sendo, somente com base na tipicidade formal o Ministério Público oferece a
denúncia que por sua vez é precipitadamente recebida pelo Magistrado, consumando a relação penal
e tornando o agente, agora, um réu. Com efeito, a análise dos outros elementos do crime,
antijuridicidade e culpabilidade, são examinados ao longo da instrução criminal, de modo que, não
raras vezes, somente no julgamento se reconhece que a conduta do agente não alcançou lesividade
suficiente que justificasse a intervenção penal do Estado, isto é, que a conduta não possui tipicidade
material. Ou, pior ainda, somente no julgamento o Ministério Público e o Magistrado verificam que
a conduta supostamente criminosa não é antinormativa, porque, na verdade, é autorizada ou
fomentada por lei.
Conforme veremos adiante, o exame inicial da conduta do agente, pela teoria da tipicidade
conglobante, seguramente impediria a ocorrência dessa grave situação.
3.2. Da Antijuridicidade
No segundo elemento do crime, a antijuridicidade, é verificado se a conduta do agente não
se subsumi a uma das causas excludentes da ilicitude previstas no art. 23 do CP (e no art. 42 do
CPM), ou seja, se analisa se a conduta fática foi praticada em legítima defesa, em estado de
necessidade, no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito. Caso seja
constatado que a conduta do agente se deu sob o manto de alguma dessas causas excludentes, o fato
será atípico, isto é, não será considerado crime.
Oportunos os ensinamentos de Mirabete (2008)12 no sentido de que "a tipicidade é o indício
da antijuridicidade do fato. Praticado um fato típico, presume-se também sua antijuridicidade,
11HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Vol. I, Tomo II, Art. 11 ao 27, 6.ed.Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 6.
12MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. I, 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.102.
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presunção que somente cessa diante da existência de uma causa que a exclua". Na mesma toada são
as lições de Reale Junior (1973) que ensina "a antijuridicidade se manifesta indiciariamente na
conformidade do fato ao tipo".13
Ocorre, porém, que da mesma forma que ocorre com a tipicidade material, a antijuridicidade
também é geralmente analisada somente ao longo da instrução criminal, sujeitando o agente,
portanto, à inevitável persecução penal.
Não podemos negar que na maioria dos casos o reconhecimento de uma excludente de
ilicitude depende de uma produção de provas mais apurada e de uma análise mais detida dos fatos e
das circunstâncias. Contudo, duas excludentes prevista na lei penal se revelam flagrantemente
incongruentes com o sistema normativo, quais sejam, o estrito cumprimento do dever legal ou no
exercício regular de um direito, porquanto a primeira determina que o agente se comporte de
determinada maneira, e a segunda autoriza o agente a praticar alguma conduta.
Ora, a ordem jurídica não se compõe só de normas proibitivas, mas também de normas
permissivas. Logo, não faz sentido o ordenamento jurídico ordenar ou autorizar determinada
conduta, e, por outra norma, admitir que a prática daquela conduta é tipicamente criminosa, mas
não é ilícita. Afinal, o juízo de tipicidade não é mero juízo de tipicidade legal, porquanto exige
outro passo que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da
proibição da conduta através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada
isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa (ZAFFARONI, 2002).14
Conforme aduzem Zaffaroni e Pierangeli (2002)15, “uma ordem normativa, na qual uma
norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se
uma desordem arbitrária”. Destarte, por uma harmônica logicidade, há uma ordem mínima que
proíbe que uma norma proíba o que a outra ordena ou fomenta, razão pela qual a análise de uma
conduta fática há de ser analisada de maneira global em consonância com todo o sistema normativo.
É nesse cenário paradoxal que a tipicidade conglobante assume relevante papel de corretivo
da tipicidade legal, porquanto permite excluir do âmbito da tipicidade aquelas condutas que
aparentemente estão proibidas, mas não são. Com efeito, a tipicidade conglobante assume a função
de reduzir a tipicidade legal à dimensão daquilo que a norma proíbe, deixando fora da tipicidade
penal aquelas condutas que somente são alcançadas pela tipicidade legal, mas que a ordem
13 REALE JR., Miguel. Antijuridicidade concreta. São Paulo: Bushatsky, 1973, p. 35.14ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral, 4ª ed.
São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 460.15 Ib idem, p. 458.
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normativa não quer proibir, precisamente porque as ordena ou as fomenta (ZAFFARONI e
PIERANGELI, 2002).16 Daí porque, pela teoria da tipicidade conglobante, a conduta do agente só
terá tipicidade penal se, além da tipicidade material (lesividade) também se apresentar
antinormativa. A antijuridicidade pressupõe a antinormatividade, contudo esta última pode ser
neutralizada por um preceito permissivo.
Especificamente em relação ao estrito cumprimento do dever legal e ao exercício regular de
um direito, necessárias algumas ponderações:
O estrito cumprimento do dever legal compreende ações que a lei diretamente determina, e
que o sujeito diretamente cumpre. Consoante preciosos ensinamentos do Professor Ivan Martins
Motta (2000) são "apenas os deveres inerentes ao cargo ou à função pública, aqui denominados
deveres que se revestem de caráter público"17, ou seja, as condutas abarcadas pelo estrito
cumprimento do dever legal são apenas aquelas realizadas com rigorosa determinação do
ordenamento jurídico.
O exercício regular de direito, por sua vez, compreende ações que a lei não proíbe, ao revés,
são autorizadas ou fomentadas pela lei. Nesse passo, o Professor Martins Motta (2000) observa que
"deve-se observar que o exercício de direitos deve ser efetivado dentro da condicionante expressa
pelo adjetivo regular, ou seja, de forma não abusiva e rigorosamente dentro da autorização dada."18
Apesar de previstas como excludentes de antijuridicidade, as condutas praticadas sob o
manto do exercício regular de direito e do estrito cumprimento do dever legal advirão sempre de
imposição ou incentivo legais, razão pela qual, sob o viés da teoria da tipicidade conglobante do
fato, tais condutas hão de ser consideradas atípicas e não antijurídicas.
No mesmo passo é a doutrina de Isoldi Filho (2008) que leciona: “tanto o estrito
cumprimento de dever legal quanto o exercício regular do direito sempre possuem natureza jurídica
de causa de exclusão da tipicidade, em razão da aplicação do critério da atipicidade conglobante"19.
E finaliza seu raciocínio acrescentando:
Pouco importa se o dever legal é genérico ou específico, pois, em ambos os casos, háimposição da lei e seu cumprimento nunca pode ser considerado fato típico. O exercícioregular de direito, seja ele autorizado, fomentado ou incentivado, também sempre serácausa de exclusão da tipicidade do fato. Em nenhum desses casos há lesão a bem jurídico
16 Id idem.17MOTTA, Ivan Martins. Estrito Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular de Direito – Dupla Natureza
Jurídica e Repercussões Processuais Penais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 45.18 Ib idem.19ISOLDI FILHO, Carlos Alberto da Silveira. Causas de exclusão da tipicidade. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008,
pp. 62/63.
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penalmente tutelado.20
Assim, é de se concluir que a teoria da tipicidade conglobante mais uma vez se mostra
instrumento útil e necessário para a concretização de um direito penal contemporâneo e garantista,
porquanto permite um exame da conduta fática do agente de forma conglobalizada com todo o
universo normativo, evitando uma persecução penal precipitada e desnecessária e, por
consequência, com rigorosa observância aos dogmas constitucionais como o da dignidade da pessoa
humana.
4. DA TUTELA PENAL DO BEM JURÍDICO À LUZ DA TIPICIDADECONGLOBANTE
Adentrando ao núcleo do presente trabalho, convidamos o leitor, neste momento, a uma
profunda reflexão acerca da análise da efetividade de todo o sistema normativo com o direito penal
constitucional, observando-se a proposta da teoria da tipicidade conglobante como instrumento de
asseguramento dos direitos e garantias fundamentais e de concretização do princípio da dignidade
humana.
Ao contrário das teorias tradicionais, a teoria da tipicidade conglobante exige algo mais do
que a mera tipicidade formal para configuração do fato punível como fato típico penal. Além da
perfeita adequação típica do fato à norma (tipicidade formal), a tipicidade conglobante exige que a
conduta do agente seja dotada de ofensividade a bem jurídico relevante ao Direito Penal que se
denomina da tipicidade material, exigindo, ainda, antinormatividade, isto é, que a conduta fática
seja contrária à norma penal.
Segundo o autor argentino há de se distinguir tipicidade penal de tipicidade formal e de
tipicidade conglobante. De acordo com sua teoria, tipicidade penal é gênero, a qual comporta duas
espécies cumulativas: (1) a tipicidade formal (tipicidade legal) que é a mera adequação da conduta
fática praticada no mundo real à lei penal com todas as suas elementares; (2) e a tipicidade
conglobante que exige, em primeiro lugar, que a conduta do agente, de fato, provoque real ofensa a
um bem jurídico penalmente relevante (tipicidade material) e, em segundo, que a conduta fática
seja ilícita à luz do sistema jurídico como um todo (antinormatividade). Logo, a tipicidade
conglobante é a soma da tipicidade material mais antinormatividade.
Numa visão panorâmica, a tipicidade penal, segundo a doutrina de ZAFFARONI, poderia
ser demonstrada pelo seguinte quadro sinótico bastante didático:
20 Ib idem.
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A tipicidade material, primeiro requisito exigido pela tipicidade conglobante, diz respeito:
(a) à importância do bem jurídico no caso concreto de acordo com o princípio da intervenção
mínima que prega que somente os bens relevantes merecem a tutela penal; (b) e à potencialidade
lesiva ao bem jurídico de acordo com o princípio da lesividade, pelo qual deve se analisar se a
conduta fática, mesmo que descrita na norma penal, de fato ofende o bem jurídico tutelado. É o caso
da aplicação do princípio da insignificância (crime de bagatela), cuja ausência de potencialidade
lesiva ao bem jurídico implica na atipicidade da conduta. Tal princípio pressupõe a mínima
ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo
grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, cujo
desvalor da conduta não representa prejuízo nem ao titular do bem jurídico tutelado, e nem à
integridade da própria ordem social.
A antinormatividade, segundo requisito da tipicidade conglobante, significa averiguar se a
conduta fática supostamente criminosa não é determinada ou fomentada por lei, como por exemplo
o estrito cumprimento do dever legal (determinada por lei) e o exercício regular de direito
(fomentado por lei). Nota-se que a antinormatividade se presta a corrigir eventuais distorções
provocadas pelos diferentes comandos emitidos pelas normas jurídicas, resolvendo aparentes
conflitos da manifestação da vontade do Estado.
Assim, pela citada teoria, o operador do direito, antes de iniciar a persecução penal, deveria
submeter a conduta fática do agente à três perguntas lógicas e subsequentemente dependentes:
1. a conduta fática viola um bem jurídico penalmente relevante? Em outras palavras, à luz do
princípio da intervenção mínima do Estado, a conduta do agente atinge um bem jurídico
penalmente tutelado (descrito em lei penal)? Em caso afirmativo, segue à segunda pergunta.
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2. A conduta fática praticada pelo agente, apesar de formalmente descrita na lei penal
incriminadora, teve potencialidade lesiva? Ou seja, à luz do princípio da insignificância,
houve lesão significativa ao bem jurídico penalmente tutelado? Somente em caso afirmativo,
segue-se, então, à terceira pergunta.
3. Apesar de a conduta fática ser prevista na lei penal e ter causado real ofensa ao bem
jurídico tutelado, paradoxalmente tal conduta era determinada ou autorizada por lei? Isto
é, apesar do bem jurídico tutelado ter sofrido uma real lesão, o agente não agiu em
conformidade com a lei? (como por exemplo no estrito cumprimento do dever legal
(determinada por lei) ou no exercício regular de direito (fomentado por lei)). Nesta última
pergunta, somente se a resposta for negativa é que haverá, então, a caracterização da
tipicidade plena e concreta do ato ilícito sob o enfoque penal. Caso contrário, a conduta será
atípica à luz do direito penal.
É nesse sentido, pois, que a teoria da tipicidade conglobante sustenta que o estrito
cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito caracterizam, na verdade, excludentes
de tipicidade e não excludentes de ilicitude. Com efeito, diante de tal instituto, resta esvaziada a
excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, CP), vez que todo aquele
que cumpre um dever legal estará fazendo exatamente o que lei manda. Igualmente ocorre com a
excludente de ilicitude do exercício regular de direito (art. 23, IV, CP), porquanto aquele que exerce
um direito que a lei lhe garante estará agindo de acordo com a lei permissiva. Em ambas as
hipóteses, o agente age de acordo com a lei e não em desacordo com a norma penal.
Nota-se, portanto, que pela evoluída teoria de Zaffaroni não se pode mais compreender a
antinormatividade como a relação específica com uma norma isolada, mas com todas as demais
normas do ordenamento. Assim, a conduta do agente é analisada globalmente dentro do sistema
normativo e não somente sob o manto do direito penal, daí o nome de tipicidade conglobante,
porquanto a análise da conduta é conglobada por todo o arcabouço jurídico, de modo que a conduta
fática do agente somente terá tipicidade penal se, além da tipicidade formal, a conduta também
apresentar tipicidade conglobante, ou seja, tipicidade material e antinormatividade global. Caso
contrário, repita-se, a conduta será atípica.
Daí porque, a lógica proposta pela teoria portenha de Zaffaroni parece fazer todo sentido na
configuração da tipicidade (primeiro elemento do conceito de crime), vez que as normas não
subsistem isoladamente, ao revés, existe um íntimo vínculo entre normas, de modo que uma,
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implícita e explicitamente, delimita a outra. Negar razão a tal assertiva implica em flagrante
incongruência. É exatamente nesse sentido que nos ensina Zaffaroni (2002):
[...]. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir,deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma desordem arbitrária. As normasjurídicas não vivem isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam asoutras, e não podem ignorar-se mutuamente. Uma ordem normativa não é um caos denormas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, não é um depósito de proibiçõesarbitrárias, mas uma ordem de proibições, uma ordem de normas, um conjunto de normasque guardam entre si uma certa ordem, que lhes vem dada por seu sentido geral: seuobjetivo final, que é evitar a guerra civil (a guerra de todos contra todos, bellum omniumcontra omnes) (Welzel). Esta ordem mínima, que as normas devem guardar entre si,impede que uma norma proíba o que a outra ordena, como também impede que umanorma proíba o que a outra fomenta. A lógica mais elementar nos diz que o tipo nãopode proibir o que o direito ordena e nem o que ele fomenta.21 (g.n.)
Com efeito, a posição doutrinária da teoria da tipicidade conglobante expressa, de maneira
lógica e coerente, a ferramenta apta a viabilizar a formação de correto juízo de valor acerca da
tipicidade penal de determinada conduta, porquanto induz a uma tipicidade plena e concreta,
revelando-se manifesta limitação estatal na aplicação do direito penal, como ultima ratio, bem
como instrumento concretizador do princípio fundamental da dignidade humana.
5. CONCLUSÕES
O Estado Democrático e Social de Direito tem como uma de suas funções essenciais
proteger e concretizar as garantias e os valores fundamentais do indivíduo consagrados na Lei
Maior, garantindo, assim, a convivência humana e a pacificação social da sociedade. Para tanto, o
legislador constituinte criou os denominados bens jurídicos relevantes que formam a base material
de proteção estatal, os quais são legal e objetivamente tutelados pelo poder coercitivo do Estado
através do direito penal.
Assim, os bens jurídicos dignos de tutela penal passam, primeiro, por um juízo de valor do
constituinte originário que elege os valores imprescindíveis à convivência humana, e, depois, são
submetidos à valoração do legislador ordinário penal que criminaliza condutas violadoras de tais
valores relevantes, em franca contraposição aos famigerados antecedentes históricos de violação aos
preceitos básicos do Homem como a legalidade, a presunção de inocência e a dignidade da pessoa
humana. Destarte, a intervenção coercitiva estatal somente estará legitimada quando orientada pela
21ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral, 4ª ed. São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 458).
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proteção de um bem jurídico constitucionalmente relevante que se constitui na condição legitimante
da tutela penal repressiva.
Ao mesmo tempo em que o legislador constituinte originário criou o direito penal como
instrumento ao legítimo exercício do poder coercitivo estatal para a pacificação social, também
estabeleceu o princípio da intervenção mínima do Estado, relegando tal disciplina como a ultima
ratio para a intervenção punitiva do Estado na repressão dos atos ilícitos, porquanto a lei penal é
apta a restringir direitos e liberdades do indivíduo. Prestigiou, assim, os demais ramos do direito
como solução primeira dos conflitos em sociedade em homenagem aos princípios fundamentais.
Porém, mesmo alocando o Direito Penal como último recurso do Estado, refletimos no
sentido de que, ainda que a solução dos conflitos alcance tal ramo repressivo do direito, há de se
analisar diligentemente se a conduta posta sob eventual repressão não se amolda, de forma
concomitante e aparentemente incongruente, com outras previsões legais permissivas do sistema
normativo, visto que uma precipitada deflagração da persecução penal pode gerar, como dito
alhures, efeitos nefastos ao cidadão, em grave afronta a dogmas constitucionais como o da
dignidade da pessoa humana.
Com a devida vênia, a tradicional teoria do crime fornece uma visão caolha do elemento da
tipicidade, porquanto a velha dogmática fere de morte a dignidade humana do agente, vez que, não
raras vezes, o mesmo é desnecessariamente submetido aos dissabores de um inquérito policial e/ou
de um processo-crime sabidamente predestinado à improcedência da acusação, porque a persecução
penal foi deflagrada mediante a mera análise da tipicidade formal da conduta sem apreciação da sua
antinormatividade perante todo o ordenamento jurídico.
Ou seja, pela sistemática tradicional a persecução penal do Estado é iniciada mediante a
simples verificação da adequação típica formal da conduta concreta ao tipo penal abstrato, para,
somente depois, ao longo da instrução processual, verificar a tipicidade material e a
antinormatividade da conduta perante o sistema normativo, culminando, invariavelmente, no
arquivamento do inquérito ou no pedido de absolvição no processo crime, pois o próprio dominus
litis reconhece que a denúncia é improcedente. Isto é, somente depois de sujeitar o agente ao
constrangimento de uma persecução penal é que o Estado verifica que a conduta do agente não
provocou real ofensa a um bem jurídico penalmente relevante e/ou que a conduta era autorizada ou
fomentada pelo próprio sistema jurídico normativo.
Destarte, verifica-se que a visão obtusa da teoria tradicional inequivocamente macula o
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Estado Democrático de Direito, porquanto coloca em xeque o princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana, valor supremo do cidadão.
A teoria portenha de Zaffaroni, por outro lado, oferece uma visão muito mais ampla, com
alcance de 360 graus acerca da conduta do agente em relação ao sistema normativo global,
porquanto permite filtrar, com mais acuidade, as condutas tipicamente criminosas daquelas que, por
imposição ou previsão do próprio ordenamento jurídico, não o são, evitando, assim, não só a inútil e
custosa deflagração da máquina do Judiciário, mas sobretudo a desnecessária submissão do agente
ao constrangimento de uma persecução penal.
Assim, a adoção da teoria da tipicidade conglobante em nosso direito penal poderá garantir,
de forma mais segura, a preservação dos direitos fundamentais do agente, notadamente a dignidade
humana, posto que, antes de se deflagrar qualquer procedimento penal a conduta fática será
analisada de forma ampla perante a grandeza do sistema normativo, conferindo-se, assim, se a
conduta possui tipicidade material e antinormatividade a justificar a persecução penal.
Enfim, em face das garantias constitucionais asseguradas pela Carta Cidadã de 1988 e pelos
tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é signatário, é de se ter em conta a
necessidade de um Direito Penal garantista e cientificamente moderno. Para tal mister o operador
do direito penal há de fazer uma interpretação e uma adequação mais acurada da norma com o fato
punível antes de submeter o suposto infrator às agruras de uma persecução penal, evitando, assim,
qualquer mácula sobre a dignidade humana do agente e a banalização de demandas penais
frustradas e desastrosas. Uma das soluções para o operador do direito não recair em error in
procedendo e/ou error in judicando é a adoção de ciências jurídicas mais modernas, tal como a
portenha teoria da tipicidade conglobante.
Daí porque dizer que a tipicidade conglobante é um instituto concretizador do princípio da
dignidade humana no direito penal.
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